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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
Defender os sãos e consolar os lázaros
Lepra e isolamento no Brasil 1935/1976
Luciano Marcos Curi
Uberlândia março de 2002
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de
Catalogação e Classificação / mg
C975d Curi, Luciano Marcos.
“Defender os sãos e consolar os lázaros” : lepra e isolamento
no Brasil 1935/1976 / \c Luciano Marcos Curi. Uberlândia, 2002.
231f. : il.
Orientador: Vera Lúcia Puga de Sousa.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlân-
dia, Programa de Pós-Graduação em História.
Inclui bibliografia.
1. Saúde e história - Teses. 2. Hanseníase - História -
Teses.
3.Hanseníase - Hospitais - Teses. 4. Saúde Pública - Brasil -
História. 5. Assistência social
Teses. I. Sousa, Vera Lúcia Puga
de. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós -
Graduação em História. III. Título.
CDU: 930.2:616.982.21(043.3)
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Universidade Federal de Uberlândia
Mestrado em História
“Defender os sãos e consolara os lázaros”
Lepra e isolamento no Brasil 1935/1976
Luciano Marcos Curi
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal de
Uberlândia.
Orientadora: Profª. Dr.ª Vera Lúcia Puga de Sousa
Uberlândia
2002
Universidade Federal de Uberlândia
Mestrado em História
“Defender os sãos e consolara os lázaros”
Lepra e isolamento no Brasil 1935/1976
Luciano Marcos Curi
Orientadora: Profª. Dr.ª Vera Lúcia Puga de Sousa
Uberlândia
2002
Abreviaturas
CIL- Congressos Internacionais de Hanseníase
CLBR Coleção de Leis do Brasil
CNCL Campanha Nacional Contra a Lepra
DOU Diário Oficial da União
DPL Departamento de Profilaxia da Lepra
FSAL e DCL Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa
Contra a Lepra
FSDCL Federação das Sociedades de Defesa Contra a Lepra
FSEW Federação das Sociedades Eunice Weaver
FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
MES Ministério da Educação e Saúde
MORHAN Movimento de Reintegração das Pessoas Atingias pela Hanseníase
OMS Organização Mundial de Saúde
SAL e DCLde Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra
SAL e DCL/SP de Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra
da cidade de São Paulo
SNL Serviço Nacional de Lepra
suas vidas marcadas pela “lepra”.
Agradecimentos
Cheguei a este tema através de uma pequena curiosidade. Em 1998, quando
deparai-me com o nome de Eunice Weaver pela primeira vez encontrava-me recém
formado e recém-efetivado para lecionar História na Escola Municipal Eunice
Weaver, no Distrito de Itaipu em Araxá/MG. O nome da escola me soou estranho,
principalmente pelo sobrenome estrangeiro o que me levou a começar a indagar
sobre quem teria sido aquela figura eleita para ser homenageada na nossa escola. Por
trás do nome revelou-se toda uma página surpreendente e consternadora da história
brasileira, para mim, até então desconhecida.
Daquele momento até o atual procurei aprofundar e dar continuidade aos
meus estudos. Cursei dois cursos de especialização em História, ambos ministrados
pelos professores do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia que
me permitiram ingressar no curso de Mestrado.
Nesses dois anos em que estive no curso de Mestrado, apesar de toda correria
e exiguidade de tempo, vivi experiências gratificantes, importantes e com as quais
aprendi muito e sem dúvida nenhuma me possibilitaram um amadurecimento
significativo.
Procurei neste período investir todas as minhas energias na pesquisa. Assim,
corri atrás de muitas fontes, pelejei, telefonei e inquiri muito sobre o assunto. A
medida que novas informações chegavam e outras constatações iam surgindo, mais
intrigante ficava a pesquisa. Ao término do trabalho tenho consciência de que o
pesadelo que foi o mundo da lepra me ensinou muito.
No entanto, um trabalho acadêmico não se faz sozinho. Muitas pessoas
auxiliaram-me neste percurso, sem as quais não poderia ter concluído mais esta etapa
da vida. A essas pessoas devo muitos agradecimentos. Registrar aqui seus nomes é
uma forma insuficiente e aquém da dívida que tenho com elas. A estas pessoas devo
muito mais que palavras.
Inicialmente gostaria de agradecer as professoras Maria Clara Tomaz
Machado e Leila Regina Scalia Gomide. A ambas devo muitas reflexões e
orientações que foram importantes para minha pesquisa. A minha orientadora, Vera
Lúcia Puga de Sousa, agradeço a sua imensa capacidade de ouvir-me, em meio a
tantos afazeres, novidades aflitas que eu sempre apresentava. Todas elas foram
importantes para o meu percurso. Aproveito para agradecer ao corpo docente do
Instituto de História da UFU com os quais tenho convivido desde 1999, todos
envolvidos na árdua batalha pela construção de educação pública de maior qualidade.
A meus irmãos, Lucine, Leonardo, Letícia e Juninho gostaria de agradecer a
torcida e os auxílios valiosos que me prestaram, atendendo à pedidos de socorro
sempre urgentíssimos, apressadíssimos, “situações de emergência”, e muitas vezes
complicados. Ao meu pai pelas palavras de incentivo e disponibilidade. A minha Tia
Neta que me recebeu em sua casa em Araxá desde 1994 para estudar tenho de
externar meus agradecimentos. A todos os outros da minha família e amigos que de
alguma forma me ajudaram fica aqui registrado meu agradecimento.
A minha mãe, pela imensa torcida e pela serenidade com que sempre
relacionou-se comigo. Contrariada pela minha ausência, mas incapaz de manifestar
tal sentimento temendo comprometer a vida do filho, a ela devo muito, uma dívida há
muito já impagável. Gostaria de agradecer a minha namorada, Marcia Elena Pereira,
cujo auxílio foi fundamental, principalmente nos momentos mais turbulentos da
pesquisa.
Aos meus colegas de pós-graduação Roberto Carlos dos Santos, Rosa Maria
Spinoso Montandon e Valéria Maria Queiroz Cavalcante Lopes com os quais tive o
prazer de conviver durante o curso.
A todas aquelas pessoas que auxiliaram-me na pesquisa enviado fontes ou
prestando informações deixo aqui meu agradecimento: Arthur Custódio e Erica do
MORHAN, Maria Helena da Biblioteca Luiza Keffer do ILSM de Bauru, Maria
Augusta Tibiriçá Miranda, Zoica Barkirtzief, Abrahão Rotberg, Rita de Cássia
Marques do Centro de Memória de Medicina de MG/UFMG, Sinesio Talhari de
Manaus, prof. Benito Bisso Schmidt de Porto Alegre, Wagner Nogueira, Gerson
Fernando, Dr. Isabela Goulart, Hélina Ayres de Arruda e Antonio Carlos Pereira
Alves Junior dos Correios/Brasília e o pessoal da Editora RHM de São Paulo, entre
outros, meu muito obrigado.
A Prefeitura Municipal de Araxá, particularmente a Secretaria Municipal de
Educação, nas pessoas da ex.-secretária Elizabeth Afonso de Oliveira Paiva e da
atual secretaria Marlene Borges Pereira, pela liberação de minhas atividades
docentes sem a qual o cumprimentos dos créditos e disciplinas e o desenvolvimento
da pesquisa com todos os percalços que esta acarreta teria sido impossível.
A Deus e a vida pelas oportunidades.
RESUMO
A hanseníase, antiga lepra, sempre constituiu-se num grave problema de saúde
pública mundial, situação que pouco se diferencia da atualidade.
Introduzida no Brasil por europeus e africanos, junto com o bacilo aportou o
estigma e a memória mítica da doença. Um dos males mais antigos a afligir a
humanidade, sobre ele encontra-se referências variadas nos mais diversos povos e
regiões do mundo.
O período abordado na pesquisa, de 1935 a 1976, corresponde na história
brasileira, em termos de saúde pública, àquele em que o Estado, pressionado por
determinados segmentos sociais, edifica uma rede institucional exclusivamente
dedicada ao “combate a lepra” objetivando a erradicação desse mal no país.
Essa rede institucional utilizava como medida profilática central o isolamento
dos acometidos em estabelecimentos especialmente destinados a esse fim.
Complementando esta prática foram instituídos os preventórios para os filhos indenes
dos leprosos e os dispensários de lepra para vigiar e controlar os demais familiares,
amigos, parentes e outros que haviam convivido com aquele que estava sendo
internado. A vida de todos ficaria marcada e estigmatizada. Filhos órfãos, pai ou mãe
na viuvez, com dificuldades no trabalho e no convívio social, e o ente infectado
trancafiado em nome da preservação dos “sãos”. Todos privados do ambiente
familiar. Preventório, dispensários e asilos-colônias eram, respectivamente, seus
destinos. Arsenal profilático que deveria ter acabado com a lepra no Brasil.
A pesquisa procurou contextualizar este conjunto de práticas discursivas e
não-discursivas que fundamentaram o isolamento dos leprosos no país e demonstrar o
imbricado entrelaçamento entre filantropia, medicina e o Estado nas atividades
relacionadas com a lepra no Brasil do século XX.
No entanto, a hanseníase, como é hoje denominada no Brasil a doença
provocada pelo mycobacterium leprae, permanece um desafio. Nem o isolamento
nem a moderna quimioterapia conseguiram debelar a endemia. Procurou-se, ainda
que limitadamente, compreender os inúmeros acontecimentos, mitos, memórias e
tragédias que envolveram, e lamentavelmente ainda envolvem, os acometidos por
esse mal no decorrer do período em que vigorou o isolamento compulsório no país.
Hoje uma doença, outrora uma categoria que combinava exclusão social, perigo
infectante e indivíduos indesejáveis. Hoje hanseníase, ontem lepra.
Sumário
Introdução.......................................................................................................................I
Capítulo I: “Leprophobia social”: o imaginário da lepra
1.1 A Lepra e a Bíblia..................................................................................................01
1.2 Lepra: doença física e enfermidade sócio-cultural................................................22
1.3 Leprofobia social: a memória mítica da lepra.......................................................37
1.4 O estigma da lepra.................................................................................................52
Capítulo II: “Chamarizes do Inferno”: o isolamento como profilaxia da Lepra no
Brasil
2.1 A Lepra no Brasil...................................................................................................65
2.2 Lepra, caridade e filantropia..................................................................................80
2.3 A Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a
Lepra (FSAL e DCL)...................................................................................................94
2.3.1 Alice Tibiriçá e a ausência do Estado.................................................................95
2.3.2 Eunice Weaver e a presença do Estado............................................................116
Capítulo III: “Aqui Renasce a Esperança”: crise na profilaxia da Lepra no Brasil
3.1 A tríade isolacionista: asilos-colônias, preventórios e dispensários....................133
3.2 A falência do isolacionismo.................................................................................174
3.3 A indústria da lepra..............................................................................................191
Considerações finais..................................................................................................201
ANEXOS
l)Asilos-colônias do Brasil........................................................................................209
2)Preventórios do Brasil............................................................................................210
3)Dispensários do Brasil............................................................................................211
4)Congressos Internacionais de Hanseníase..............................................................214
FONTES
1)Documentais...........................................................................................................215
2)Bibliografia.............................................................................................................226
3)Vídeos, filmes e documentários.............................................................................230
Introdução
“...sequestrados os doentes, também sequestrada ficou a profilaxia da lepra
dos progressos da medicina preventiva...”
1
“Da perspectiva de uma história cultural, a doença, sobretudo as grandes
doenças, e sua memória revestem-se de um caráter ‘delirante’, no sentido de
que as linguagens que as instituem e representam descolam-se do seu
referente material e criam uma outra doença, uma espécie de ser simbiótico
que reúne os traços do fenômeno biológico juntamente com os da cultura. O
caracter instituinte da linguagem e do imaginário coletivo acaba por
converter a memória do passado em narrativas históricas, marcando o
presente e projetando o futuro dos chamados grandes males da história da
humanidade.”
2
A lepra, um dos males mais antigos a afligir a humanidade, sempre constituiu
alvo de inúmeras atenções específicas e destacadas. No ocidente, herdeiro da cultura
hebraica, o Levítico
3
desde cedo apontou os caminhos e atitudes para com aqueles
que se revelassem portadores desse mal.
Na atualidade conceitua-se lepra como uma doença crônica, bacteriana e
infecciosa, clinicamente definida e curável em todas as suas manifestações e estágios
de desenvolvimento, conforme esclarece reputado manual médico de hanseníase
4
:
“A hanseníase é uma doença infecciosa transmitida de pessoa ara pessoa
através do convívio com doentes das formas contagiantes (virchowiana ou
dimorfa), sem tratamento. Admite-se que o tempo médio de incubação seja
de 2 a 5 anos. O Morbus Hansen, apesar de não ser mortal, na maioria dos
casos, constitui sério problema de saúde pública em muitos países, de quase
todos os continentes.”
5
1
RABELLO, Eduardo. Apud: DINIZ, Orestes. Profilaxia da Lepra: evolução e aplicação no Brasil.
Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Medicina Militar, 1960(p.09).
2
TRONCA, Ítalo A. Foucault, a doença e a linguagem delirante da memória. In: BRESCIANI, Stella;
NAXARA, Márcia.(org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível.
Campinas, Editora da UNICAMP, 2001,pp.129-148(p.129).
3
Na Bíblia, terceiro livro do Pentateuco. Ver: Capítulos 13 e 14.
4
Em 1976 o nome da doença foi alterado no Brasil para “Hanseníase”, neologismo cunhado a partir do
nome do médico e botânico norueguês Gerhard Henrik Armauer Hansen (1841-1912) que em 1872
detectou a presença do bacilo, agente etiológico da doença, conhecido como Mycobacterium leprae
ou Morbus Hansen.
5
TALHARI, Sinésio e NEVES, René Garrido. Hanseníase. Manaus, Gráfica Tropical, 3.º edição,
1997(p.01).
II
Hoje os doentes fazem tratamento domiciliar que consiste em quimioterapia,
uso de comprimidos diários, inclusive, distribuídos gratuitamente
6
e quando ocorre
alguma seqüela da doença, por falta de tratamento ou diagnóstico tardio, reversível
por cirurgia plástica ou fisioterapia, esta é feita apenas com os transtornos habituais
que envolvem este tipo de procedimento; internação hospitalar por alguns dias,
repouso, restrições alimentares e atividades cotidianas adequadas àqueles que se
encontram num quadro pós-operatório. Mas, nem sempre foi assim. Adoecer de lepra
até muito recentemente no Brasil era um acontecimento marcante na vida, na
biografia, das pessoas. A confirmação deste diagnóstico resultaria em atribuladas e
radicais mudanças de vida não só do acometido, mas de toda a sua família e as vezes
de amigos e parentes. A lepra era um pesadelo.
Este estudo pretende abordar uma época em que o leproso, ou aquele que
estava acometido de lepra, era encarado e tratado de um modo muito diverso do
praticado na atualidade. A lepra recebia um tratamento diferenciado enquanto doença
transmissível e para este se concretizar fora instituída toda uma rede institucional
responsável pela “profilaxia da lepra” que, na época, consistia, grosso modo, no
recolhimento dos acometidos em locais dos quais, durante bom número de anos ou
mesmo pelo resto da vida, não mais poderiam sair, uma espécie de reclusão.
Recuperar a historicidade e algumas particularidades da qual se revestiu esta
reclusão é uma das preocupações deste trabalho. O contexto que tornou possível a
existência dessa prática no Brasil durante o período abordado, que aos olhos da
atualidade parece absurda, encontrava-se revestida de ampla significação social e de
inúmeros discursos que postulavam tal procedimento. Deseja-se, também, deslindar
como algumas “certezas” causaram o sofrimento de inúmeras pessoas que tiveram
suas vidas marcadas pela lepra. Os acometidos e aqueles que se encontravam à sua
volta foram submetidos a uma série de determinações cujos propósitos muitas vezes
esqueceram-se do lado humano dessas pessoas. O discurso “do combate a lepra”
converteram-nas em “infectos”, “contagiosos”, “reservatórios de bacilos”, perigo a
ser recolhido e contido longe da sociedade. Havia o “mundo da lepra”.
6
A Organização Mundial de Saúde (OMS), tem compromisso firmado com o Brasil, segundo país com
maior número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia, de fornecimento da medicação sem
III
Contudo, se o mal provocado pelo mycobacterium leprae é na atualidade,
acertadamente no Brasil, denominado de hanseníase com o objetivo de divorciar a
doença da triste herança do passado, apesar das recaídas que às vezes ainda se
assiste, neste trabalho adotou-se as velhas denominações. O motivo desta escolha é
simples. Lepra, Morféia, Mal de São Lázaro, Gafeira, Coteno, Macuteno,
Camunhengue e outros, são termos que aludem diretamente a uma época onde
dispensava-se um tratamento ao portador desse mal que não concilia com o que se
pratica na atualidade. O antigo leproso não equivale ao atual hanseniano. Com isso
não se está menosprezando aquelas pessoas remanescentes daquela época, apenas
procura-se estabelecer uma distância daquela postura com a da atualidade. Esses
termos referem-se diretamente a toda rejeição, exclusão, policiamento que foram
alvos os leprosos no passado, logo, contribuem para expressar em si a temática da
pesquisa.
Em algumas ocasiões utilizamos o termo hanseníase
7
para significar,
exclusivamente, a doença ocasionada pelo mycobacterium leprae. Desde
antigüidade até o século XIX, confundia-se, visto da perspectiva atual, inúmeras
doenças que eram abrigadas sob a denominação de lepra. Lepra era uma categoria
ampla na qual encontrava-se muitas doenças dermatológicas hoje não mais associadas
a hanseníase. A igreja, a medicina e a população em geral entendia por lepra e leproso
uma ampla gama de doenças hoje reconhecidamente distintas. No decorrer dos
séculos novos conhecimentos foram adquiridos e o termo foi sendo, então,
esvaziado, ficando no século XX conhecido por lepra apenas a atual hanseníase. Esta
pesquisa aborda justamente o século XX.
Assim, seguindo a proposição de Ítalo A. Tronca
8
quando alude a uma
doença cuja origem remonta ao mal biológico mas o ultrapassa e se transforma numa
outra coisa, numa enfermidade sócio-cultural, que no caso da lepra é seguramente
mais trágica e perversa do que o primeiro, temos, então, defrontadas duas situações
distintas. Primeiro a hanseníase, ou seja, simplesmente o mal biológico. Segundo a
lepra que, além do primeiro, agrega traços de “uma espécie de ser simbiótico que reúne
custos financeiros até o ano de 2005. Cf. Jornal do MORHAN(Movimento de Reintegração das
Pessoas Atingidas pela Hanseníase). Rio de janeiro. N.º33, Março/abril de 2000(p.01).
7
É o que ocorre no capitulo I e no texto 2.1 do capítulo II, além de outras ocasiões.
8
Ver a segunda citação que abre esta introdução.
IV
os traços do fenômeno biológico juntamente com os da cultura.” A atual hanseníase não
equivale à lepra, mas a lepra do século XX, entre outras coisas, era hanseníase.
Dessa forma, o primeiro capítulo, “Leprophobia social”: o imaginário da
lepra, situa a lepra no imaginário social e procura refletir sobre alguns conceitos e
temas considerados importantes e fundamentais para serem tratados simplesmente em
notas de rodapé no decorrer de todo o trabalho.
O segundo capítulo, “Chamarizes do Inferno”: o isolamento como profilaxia
da lepra no Brasil, e o terceiro, “Aqui renasce a esperança”: crise na profilaxia da
lepra no Brasil, procuram recuperar a história do isolamento dos leprosos no Brasil
do século XX com ênfase nos discursos sociais que implementaram tal prática e no
drama vivido pelos acometidos de lepra ao serem integrados ou colocados dentro da
rede institucional criada para eles com o objetivo de erradicar a endemia leprótica que
assolava o país.
Deste modo, espera-se que este trabalho, apesar de suas lacunas, imperfeições
e limitações, possa contribuir para a diminuição do estigma que ainda hoje cerca o
hanseniano e para auxiliar na compreensão daquele “mundo da lepra”, espaço
fechado, onde muitas vezes predominou posturas, normas e práticas injustas e
desumanas, arbitrárias e extremamente permeáveis ao medo.
CAPÍTULO I
“LEPROPHOBIA SOCIAL”: o imaginário da lepra
1
1.1 A Lepra e a Bíblia
“O senhor disse a Moisés: ‘ordena aos israelitas que expulsem do
acampamento todo leproso, todo homem atacado de gonorréia, todo o que
está imundo por ter tocado num cadáver. Homens e mulheres, lançai-os fora
da acampamento no meio do qual habito, para que não o manchem.’ Os
filhos de Israel fizeram assim e lançaram-nos fora do acampamento; como o
Senhor tinha ordenado a Moisés assim o fizeram.”
1
Adoecer sempre se constituiu num grave problema para os homens de todos
os tempos. Ao lado da velhice e da morte, esses acontecimentos constantemente
receberam um prisma de tragicidade, mais ou menos intenso de acordo com a
sociedade, cultura e até a situação econômica dos indivíduos acometidos por tais
aflições.
Dessa forma, todas as sociedades humanas desenvolveram maneiras de se
relacionar com tais acontecimentos, e especificamente, no caso da doença, quase
sempre compreendida como um comprometimento da plenitude das forças vitais do
organismo, verifica-se por toda parte múltiplos e diferenciados costumes e práticas
surgidos para guiar os comportamentos e ações tanto do doente como daqueles que o
cercam, orientando os procedimentos do agir perante um “mal” que poderia,
inclusive, em alguns casos resultar na supressão do membro “acometido” dentre seus
pares.
No caso específico da lepra, uma das doenças mais remotas da humanidade,
alvo de referências desde os povos mais antigos da região do atual Oriente Médio,
Ásia e África, sempre existiram lendas envolvendo-a, bem como, seus ditos aspectos
“hediondos”. Adágio exemplar é aquela segundo a qual Jesus Cristo teria dito ao
apóstolo Pedro: “Levanta- ti desta pedra porque aí, há muito tempo, havia sentado
um leproso”
2
.
Para se compreender o imaginário
3
da lepra a leitura da Bíblia torna-se
imprescindível por dois motivos: primeiro, os escritos bíblicos, notadamente os do
1
Números 05:01-04. In: Bíblia Sagrada. São Paulo, Editora Ave-maria, 141º ed., 2001. Todas as
citações referentes a Bíblia foram retiradas desta edição.
2
FERNANDES, Natividade Rubio et alli. Hanseníase: o que é, como diagnosticar, como medicar,
como prevenir e erradicar. In: Jornal do MORHAN. Rio de Janeiro, 1º/TRIMESTRE/1982(P.04).
3
O que se convencionou chamar de realidade e imaginário são constituintes inseparáveis do mundo
social no qual vivem os homens. Mais do que se distinguem, se integram e se interagem, e combinados
2
Antigo Testamento, apreenderam e compilaram muitos dos costumes dos povos
antigos do Oriente Médio, Ásia e África; segundo, pelo fato destes terem se
constituído em fonte de forte influência sobre o ocidente cristão, conforme observa-se
no livro de Jó, cuja autoria é de difícil precisão, onde o mais provável é tratar-se de
uma história que circulava no oriente
4
. Assim, os textos bíblicos além de refletirem os
costumes dos povos antigos e a figura do leproso, para esse notadamente o Levítico,
engendraram muitas das representações que a Idade Média européia iria consolidar.
A Bíblia, do ponto de vista cristão, foi escrita “sob inspiração direta do
próprio Deus,” que, no entanto, teria respeitado a personalidade dos redatores,
homens das mais variadas classes e profissões
5
. Escrita num período de tempo de
aproximadamente 1.500 anos dos quais apenas um século foi após a morte de Cristo,
nela encontramos inúmeras referências sobre lepra.
formam um composto único, indissolúvel. O mundo social, engendrado pelos homens em relação
direta com o mundo natural, é filtrado tanto individualmente quanto coletivamente através de
traduções mentais, processo de abstração que corresponde segundo Roger Chartier e Jacques Le Goff
às representações.
A representação torna-se possível, nesta acepção, somente dentro das relações indivíduo-
indivíduo, indivíduosocial , indivíduo-natural, social-natural, social-indivíduo, donde os elementos
que fundamentam estas traduções e interpretações ou os esquemas intelectuais interiorizados a que se
refere Chartier são, ente outros, a cultura e a memória.
O indivíduo percebe o mundo a sua volta através das representações pelas quais ele o traduz,
o interpreta e o torna inteligível e incorporado. O imaginário embora pertença ao campo da
representação, o ultrapassa (Cf. Le Goff., p.12). Ele interfere na representação, logo pode alterar a
percepção que os indivíduos têm acerca do mundo. Conforme François Laplatine e--------: “O
imaginário é um processo cognitivo no qual a afetividade está contida, traduzindo uma maneira
específica de perceber o mundo, de alterar a ordem da realidade”. (Cf. LAPLATINE., p.79). Sobre os
conceitos de imaginário e representação, ver: CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas
e representações. Lisboa, DIFEL/Bertrand, 1990( notadamente a introdução). LE GOFF, Jacques. O
imaginário medieval. Lisboa, Editorial Estampa, 1991(ver o prefácio). SWAIN, Tânia Navarro. Você
disse imaginário. In: LACERDA, Sônia. História no Plural. (Coleção Tempos), Brasília, Editora da
UNB, 1994(pp.43-67). BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. vol.V
(Antropos-Homen), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 19859pp.296-332). LAPLATINE,
François, et alli.O que é imaginário. São Paulo, Editora Brasiliense, 2000.
4
Acredita-se que o livro de Jó trata-se de um conto que imaginação popular teria ampliado e
poetizado. Seu autor é nominalmente desconhecido, no entanto, torna-se cada vez mais difícil
atribuí-lo a Moisés ou a Salomão. O período em que foi escrito é uma incógnita, no entanto, sabe-se
com segurança que situa-se após o exílio dos hebreus na Babilônia e antes do século III a. C...
Os críticos insistem na idéia de uma lenda, que circulava na região, baseando-se na confrontação com
outras histórias de povos vizinhos que apresentava características bastante semelhantes ao livro de Jó:
São Eles: O Justo Sofredor da babilônia: O diálogo do Desesperado e as Queixas de Aldeão do Egito;
Prometeu Encadeado de Ésquilo e Édipo Rei e Tarquínias de Sófocles na Grécia, Cf. CARDOSO,
Brito. Job. In: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura. Lisboa, Vol. 11, Editorial Verbo ( pp. 676-
678).
5
Ainda reside algumas dúvidas quanto a alguns autores dos livros bíblicos, bem como algumas datas e
locais em que foram escritos, mas quanto as profissões dos autores eram elas: reis, agricultores,
pastores, advogados, pescadores, um médico, um cobrador de impostos.
3
A ocorrência da doença nos escritos bíblicos tece relações entre esta e a noção
de pecado. Dor, sofrimento e penas físicas aparecem relacionados com as práticas de
ações indevidas, em suma, aciona-se o sentimento de culpa através da noção de
pecado.
Durante a antigüidade houve um deslocamento da causa das doenças nas
doutrinas que grassavam pela região do antigo Oriente Médio. Embora seja uma
constante que o estado de saúde e doença estivesse atrelado com o campo do sagrado,
a explicação da origem dos males sofridos variou no mundo antigo.
Na Mesopotâmia, por volta de 3.000 a.C. acreditava-se que as pessoas
adoeciam por vontade dos deuses, independente do fato de serem boas ou más. A
etiologia das doenças residiria na intempestividade dos deuses. No entanto, por volta
de 2.000 a. C. nota-se modificações nesta concepção. Retira-se a etiologia das
doenças dos deuses e passa a atribuí-las aos demônios. Aqui já poderia se admitir que
o doente tivesse descumprido algum preceito dos deuses, ou não, podendo estar sendo
perseguido pela maldade dos demônios. Neste caso, ainda não haveria a necessária
conexão entre faltas, desobediências e sofrimento. A importância do médico-
sacerdote residiria em recorrer aos astros procurando apaziguar os deuses na busca
da cura
6
.
Mais tarde, observa-se na mesma Mesopotâmia o entrelaçamento entre o
campo da consciência moral com o campo da saúde e da doença. A noção de pecado
aparece como culpada pela etiologia das doenças, ou seja, a responsabilidade pelo
adoecimento que inicialmente era dos deuses, depois dos demônios, agora recai sobre
o próprio enfermo. Na verdade, ele estaria expiando suas culpas. Suas faltas
acarretaram-lhe sofrimentos em forma de enfermidade
7
.
A mais significativa e importante referência bíblica sobre a lepra encontra-se
no Levítico; o livro das leis. Tudo indica terem sido as leis do Levítico inspiradas no
modelo babilônico, em decorrências do período em que os hebreus estiveram exilados
entre aquele povo.
A Bíblia não faz menção pormenorizada da sintomatologia das doenças, e em
geral são muito vagas as referências com relação aos estados de enfermidade. As
6
MONTEIRO, Yara Nogueira. Da Maldição Divina a Exclusão Social: um estudo da hanseníase
em São Paulo. São Paulo, ( Doutorado em História), USP, 1995(p.06).
7
Idem, p.07
4
denominações utilizadas contribuíram ao longo dos séculos para inúmeras confusões,
pois, quase sempre, comportavam as mais variadas interpretações, além dos
problemas das traduções que ocorreram posteriormente e que muito contribuíram
para cristalizar equívocos, prejudicando as futuras políticas públicas de saúde na área
de hanseníase.
A Bíblia herdava, assim, do antigo oriente, a noção de doença como fruto de
pecado, e a contraponto, estabelecia estreita relação entre santidade, sabedoria e
saúde opondo-se a pecado, ignorância e doença
8
. Dessa forma, a cura aparece como
sinal de graça divina, alcançada e possibilitada via de regra pelo arrependimento.
“ Poema composto por Ezequias, rei de Judá, quando esteve doente e se
restabeleceu.
Eu dizia: ‘É necessário, pois, que em me vá, no apogeu de minha
vida. Serei encerrado por detrás das portas da habitação dos mortos,
durante os anos que me restariam a viver.
Eu dizia: ‘Não verei mais o Senhor na terra dos viventes. Não verei
mais a luz entre os habitantes do mundo.
Arrancam as estacas do meu abrigo, arrebatam-me como uma tenda
de pastores.
Como um tecelão, enrolam a tela de minha vida, depois cortam-lhe o
laço. Dia e noite estou desamparado, e grito até o amanhecer. Como um
leão, quebram-me todos os ossos.
Como a andorinha, dou gritos agudos e gemo como a pomba .Meus
olhos se cansam de olhar para o alto. Senhor, estou em agonia, socorrei-me.
Para que falar assim? Que dizer-lhe, uma vez que é ele mesmo quem
assim o faz? O tempo que me resta eu arrasto, vivendo em amargura.
Restituí-me a saúde, fazei-me reviver.’
Eis que meu sofrimento se mudou em conforto; vós preservastes
minha vida do túmulo onde se apodrece, e lançastes para trás de vós todos
os meus pecados.
Com efeito, não é a morada dos mortos que vos louvará, nem a
morte que vos celebrará. O que desce à sepultura não espera mais em vossa
bondade.
Quem está vivo, somente quem está vivo pode louvar-vos, como eu
faço hoje. O pai dá a conhecer a seus filhos vossa fidelidade, diante da casa
do Senhor.
Senhor, dignai-vos a nos salvar, e nós faremos soar a corda de
nosso instrumentos todos os dias de nossa vida Isaías disse então: ‘Que
tragam um cataplasma de figos para aplicar sobre a úlcera, e Ezequias
sarará.’”
9
No Novo Testamento a noção de cura como algo miraculoso proveniente da
iniciativa divina permanece, inclusive com a Lepra. Nele, Cristo também relaciona a
8
Idem, ibidem.. p.08
9
Isaías 38:09-21. In: Bíblia Sagrada.
5
doença como sinal do pecado
10
e da presença demoníaca
11
. Ainda assim, no
Evangelho de João, uma das curas miraculosas realiza-se sem que a enfermidade seja
associada a noção de pecado.
O cego de nascença
Caminhando, viu Jesus um cego de nascença. Os seus discípulos indagaram
dele: ‘Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse
cego?Jesus respondeu: ‘Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário
que nele se manifestem as obras de Deus.’ Dito isso, cuspiu no chão, fez um
pouco de lodo com a saliva e com o lodo ungiu os olhos do cego. Depois lhe
disse: ‘Vai, lava-te na piscina de Siloé’ (esta palavra significa
emissário).O cego foi, lavou-se e voltou vendo.”
12
A leitura do Antigo Testamento evidencia que o princípio teocrático norteava
a medicina em Israel e que os sacerdotes posicionavam-se então, como legítimos
mediadores entre o doente e a vontade divina.
A lepra, no entanto, foi a única doença digna de menção específica por parte
da Bíblia. No Levítico, os capítulos treze e quatorze legislam especificamente sobre
ela, instruindo sacerdote a proceder a purificação, expulsão e possível reintegração
do doente na comunidade, caso obtivesse a cura.
“O sacerdote examinará o mal que houver na pele do corpo: se o cabelo se
tornou branco naquele lugar, e a chaga parecer mais funda que a pele, será
uma chaga de lepra. O sacerdote verificará o fato e declarará impuro o
homem.”
13
Mas, nem tudo que o Levítico aponta como lepra é o que hoje compreende-se
por hanseníase. No trecho acima, tais sintomas não correspondem aos da
hanseníase
14
. No Levítico a lepra não estaria apenas no corpo das pessoas, mas
também nos seus objetos de uso pessoal. No entanto, este livro bíblico pormenoriza
os procedimentos e “tipos de lepra”, demonstrando, por exemplo, como agir no caso
de lepra em tecidos e vestes.
A lepra nas vestes
“Quando a lepra aparecer numa veste de lã ou de linho, num tecido de tela
ou de trama, quer seja de lã quer de linho, numa pele ou num objeto
qualquer de pele, se a mancha na veste, na pele, no tecido de tela ou de
10
João 05:01-14. In: Bíblia Sagrada.
11
Lucas 13:10-17. In: Bíblia Sagrada.
12
João 09:01-03 e 06-07. In: Bíblia Sagrada.
13
Levítico 13:03. In: Bíblia Sagrada.
14
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op cit. p.10
6
trama ou no objeto de pele, for esverdeada ou avermelhada, é uma lepra:
será mostrada ao sacerdote. O sacerdote examinará a mancha e isolará
durante sete dias o objeto atingido pelo mal. No sétimo dia examinará a
chaga. Se ela se tiver espalhado pelo tecido de tela ou de trama, pela pele ou
pelo o objeto de pele, seja qual for, é uma lepra roedora; o objeto é impuro.
Queimará a veste, o tecido de tela ou de trama de linho ou de lã, o objeto de
pele, seja qual for, em que se encontre a mancha, porque é uma lepra
roedora; o objeto será queimado no fogo. Mas se o sacerdote verificar que a
mancha não se espalhou pela veste, pelo tecido de tela ou trama, ou pelo
objeto de pele, mandará lavar o objeto afetado e o isolará uma segunda
vez durante sete dias. Em seguida examinará a mancha, depois que ela tiver
sido lavada. Se não mudou de aspecto nem se espalhou, o objeto é impuro.
Tu o queimarás no fogo: a mancha roeu o objeto de um lado a outro. Mas se
o sacerdote verificar que a mancha lavada tomou uma cor pálida, arrancá-
la-à da veste, da pele ou do tecido de tela ou de trama. Se ela voltar
novamente à veste, ao tecido de tela ou de trama ou ao objeto de pele, é uma
erupção de lepra. Tu queimarás no fogo o objeto atingido pela mancha.
Mas a veste, o tecido de tela ou de trama, o objeto de pele, seja o que for,
que tiveres lavado e do qual a mancha tiver desaparecido, será lavado uma
segunda vez e será puro. Tal é a lei relativa à mancha de lepra que atacar
as vestes de lã ou de linho, os tecidos de tela ou de trama, ou qualquer objeto
de pele; é segundo ela que se declararão esses objetos puros ou impuros.”
15
A lepra também poderia incidir em casas e pedras, neste caso o procedimento
de verificação permanece, bem como a quarentena, onde depois destas procederia
então, caso persistisse a “lepra”, a expulsão do “ente ameaçador”:
A lepra nas casas
“O Senhor disse a Moisés e a Aarão: Quando estiverdes na terra de Canaã,
que eu vos darei em possessão, se eu ferir de lepra uma casa da terra de
vossa possessão, o dono da casa irá e informará ao sacerdote, dizendo:
parece-me que há como que uma mancha de lepra na minha casa. O
sacerdote, antes de entrar para examinar a mancha, mandará que tirem para
fora tudo que há na casa, a fim de que não se contamine nada do que houver
nela. E só então entrará para visitar a casa. Examinará a mancha, e se a
mancha que está nas paredes da casa estiver em cavidades esverdeadas ou
avermelhadas, parecendo profundas na parede, o sacerdote sairá da casa e,
tendo passado a soleira da porta, fechá-la-á por sete dias. E, voltando no
sétimo dia, se notar que a mancha se estendeu pelas paredes, mandará
arrancar as pedras atingidas pela mancha e jogá-las fora da cidade em um
lugar impuro. Mandará raspar todo o interior da casa, e a poeira que
houverem raspado será jogada fora da cidade em um lugar impuro. Novas
pedras serão colocadas no lugar das primeiras e com nova argamassa será
rebocada a casa.”
Se a mancha aparecer de novo na casa, depois que tiverem sido
arrancadas as pedras, raspadas e rebocadas as paredes, o sacerdote voltará.
Se ele verificar que a mancha cresceu, é uma lepra maligna, e a casa é
15
Levítico 13: 47-59. In: Bíblia Sagrada.
7
impura. Derrubar-se-ão a casa, as pedras, a madeira e toda a argamassa,
que se levarão para fora da cidade a um lugar impuro. Quem tiver entrado
na casa durante o tempo em que ela deveria estar fechada, será impuro até a
tarde, e o que nela tiver dormido lavará suas vestes. Também aquele que
nela tiver comido lavará suas vestes.
Mas, se o sacerdote, ao voltar, verificar que a mancha não se
estendeu depois que a casa foi rebocada, declarará a casa pura, porque o
mal está curado. Para purificar a casa, tomará duas aves, pau de cedro,
carmesim e hissopo: imolará uma das aves sobre um vaso de terra contendo
água de nascente. Tomará o pau de cedro, o hissopo, o carmesim e a ave
viva e os molhará no sangue do pássaro imolado e na água de nascente, e
aspergirá a casa sete vezes. Purificará a casa com o sangue do pássaro, a
água de nascente, o pássaro vivo, o pau de cedro, o hissopo e o carmesim.
Depois soltará o pássaro vivo fora da cidade, no campo. É assim que ele
fará a expiação pela casa; e ela será pura.
Tal é a lei relativa a toda espécie de lepra e de tinha
16
, assim como
à lepra das vestes e das casas, aos tumores, aos dartros e às manchas. Ela
indica quando uma coisa é impura e quando é pura. Tal é a lei sobre a
lepra.”
17
No caso das pessoas atacadas de lepra, que obtivessem a cura depois da
quarentena, o sacerdote reintegraria o ex-leproso; através de um ritual de
purificação, uma vez que, somente a cura seria insuficiente para ser novamente aceito
na comunidade:
“Será conduzido ao sacerdote, que sairá do acampamento para examiná-lo.
Se a chaga da lepra estiver sã, o sacerdote ordenará que se tomem, para o
que se vai purificar, duas aves vivas e puras, pau de cedro, carmesim e
hissopo.(...). O sacerdote que fez a purificação apresentará o homem que
há de ser purificado e todas essas coisas ao Senhor, à entrada da tenda de
reunião.(...) Degolará o cordeiro no lugar onde se imolam as vítimas pelo
pecado e o holocausto, no lugar santo, porque a vítima do sacrifício de
reparação, assim como a do sacrifício pelo pecado, pertencem ao sacerdote:
esta é uma coisa santíssima.(...) Oferecerá, em seguida, o sacrifício pelo
pecado e fará a expiação por aquele que se purifica de sua impureza.”
18
Assim, uma vez “sarado” e purificado ritualmente o ex-leproso se
reintegrava à comunidade. Mas, o fato de no Levítico conter instruções acerca do
leproso curado, confirma a tese segundo a qual o texto abrangeria uma serie de
16
Doença de pele causado por vários gêneros de cogumelos. Cristo utiliza a palvra para se referir as
traças. CF. VICENT, Mons. Albert. Dicionário Bíblico. São Paulo, Edições Paulinas, 1.969 (p.485) .
17
Levítico 14:33-57. In: Bíblia Sagrada.
18
Levítico 14:03,04,11,13,19. In: Bíblia Sagrada.
8
doenças de pele e também ampla gama de fungos. “Eis porque a lepra ‘lepra bíblica’
aparece como passível de cura”
19
.
Mas, além da parte específica no Levítico a lepra encontra-se referenciada em
outros livros constituintes da Bíblia, onde tanto o conceito de doença como de lepra
mesclam-se com a noção de pecado e punição divina.
O Senhor continuou: ‘Mete a tua mão no teu seio’. Ele meteu a
mão em seu seio e, quando a retirou, sua mão estava leprosa, tão
branca como a neve. O Senhor disse-lhe: ‘Mete de novo a mão em
teu seio’. Ele meteu de novo a mão em seu seio e retirando-a, eis que
ela se tornara como o restante de sua carne.”
20
O trecho acima é um diálogo entre Deus e Moisés, onde a incidência e cura
momentânea da lepra seria um sinal de que Deus estava com ele, apoiando-o na
retirada do povo hebreu do Egito.
A cólera do Senhor se acendeu contra eles. O Senhor partiu, e a
nuvem retirou-se de sobre a tenda. No mesmo instante, Miriã foi
ferida por uma lepra branca como a neve. Aarão, olhando para ela,
viu-a coberta de lepra. Aarão disse então a Moisés: ‘Rogo-te, meu
senhor, não nos faças levar o peso do pecado que cometemos num
momento de loucura, e do qual somos culpados. Que ela não fique
como um aborto que sai do ventre de sua mãe, com a carne já meio
consumida.”
21
Verifica-se que, a noção de lepra como fruto do pecado e da ira divina é
evidente no caso de Miriã
22
, acima citado, onde é vitimada, tornando-se “branca
como a neve”. Os cuidados indicados pelo Levítico eram confirmados pela própria
Bíblia que, no Deuteronômio
23
, inclusive, retornando ao caso de Miriã, postula-se
obediência às leis acerca da lepra e temência a Deus.
Israel é ameaçado com a lepra e os Egípcios são por ela atingidos
24
, assim
como Miriã também havia sido:
19
Idem p. 10
20
Êxodo 04:06-07. In: Bíblia Sagrada.
21
Números 12:09-11. IN: Bíblia Sagrada.
22
Deuteronômio 24:08-09. In: Bíblia Sagrada.
23
Deuteronômio 24:08. In: Bíblia Sagrada.
24
Deuteronômio 28: 27-28. In: Bíblia Sagrada. Cf. LËON-DUFOR, Xavier. Vocabulário de
Teologia Bíblica. Petrópolis, Editora Vozes, 5º ed., 1992 (p. 524). Deuteronômio 24: 08-09. In:
Bíblia Sagrada.
9
“(...)O Senhor te ferirá da úlcera do Egito, de hemorróidas, de sarna e de
dartros incuráveis. O Senhor te ferirá nos joelhos e nas coxas com uma
úlcera maligna e incurável, e que se estenderá da planta pés ao alto da
cabeça.”
25
“O
Senhor disse a Moisés e a Aarão: ‘Toma vossas duas mãos cheias de cinzas
do forno, e Moíses a lance para océu diante dos olhos do faraó. Ela tornar-
se-á uma poeira que se espalhará por todo o Egito, e haverá em todo o
Egito, sobre os homens e sobre os animais, tumores que se arrebentarão em
úlcera. Tomaram, pois, da cinza do forno e apresentaram-se diante do
faraó. Moisés atirou-a para o céu e produziram-se, sobre os homens e sobre
os animais, tumores que se arrebentavam em úlceras. Os mágicos não
puderam aparecer diante de Moisés por causa das úlceras, porque foram
atingidos como todos os egípcios.”
26
O pecado poderia então resultar em lepra pelo resto da vida, indo até a morte
do acometido, como ocorreu com o Rei Ozias:
Lepra e a morte do rei
Mas, apenas sentiu-se ele poderoso, seu coração encheu-se de orgulho,
para sua desgraça. Cometeu uma falta contra o Senhor, seu Deus, entrando
no templo do Senhor para queimar incenso no altar dos perfumes. O
sacerdote Azarias, com oitenta corajosos sacerdotes do senhor, seguiram-no.
Resistiram ao rei Ozias e lhe disseram: ‘Não compete a ti, Ozias queimar
incenso ao Senhor, mas aos sacerdotes da estirpe de Aarão, que foram
consagrados para esse fim. Sai do sanatório, porque prevaricaste, e isso não
será para ti honra diante do senhor Deus’. Então Ozias, tendo na mão o
tríbulo, encolerizou-se; mas, durante esse acesso de cólera, apareceu a lepra
em sua fronte, ali, no templo do Senhor, na presença dos sacerdotes, diante
do altar dos perfumes. O sumo sacerdote Azarias e todos os outros
sacerdotes, olhando-o, viram essa lepra que ele tinha na fronte.
Precipitadamente fizeram-no sair; aliás, ele próprio se apressou em sair,
sentindo-se ferido pelo Senhor. O rei Ozias ficou leproso até a morte. Como
tal, viveu numa casa isolada. Estava excluído do templo do senhor, e seu
filho Joatão governava o palácio e julgava o povo da terra. O profeta Isaías
relatou os outros atos de Ozias, desde os primeiros até os últimos. Ozias
adormeceu entre seus pais e foi sepultado perto deles, no campo da sepultura
dos reis, porque diziam: ‘Ele era leproso’. Seu filho Joatão sucedeu-lhe no
trono.”
27
Assim, a incidência de lepra poderia ser passageira, como a ocorrida com
Moisés
28
, ou ainda uma punição severa como a ocorrida com Ozias, que encerrou-se
25
Deuteronômio 28:27,35. In: Bíblia Sagrada.
26
Êxodo 09: 08-11. In: Bíblia Sagrada.
27
II Crônicas 26: 16-23. In: Bíblia Sagrada.
28
Êxodo 04:06-07. In: Bíblia Sagrada.
10
apenas com a morte, ou ainda mais severa, ultrapassando a própria existência e se
estendendo a descendência:
A cura de Naamã
“Naamã, general do exercito do rei da Síria, gozava de grande prestígio diante de
seu amo, e era muito considerado, porque, por meio dele, o Senhor salvou a Síria; era um
homem valente, mas leproso.Ora, tendo os sírios feito uma inclusão no território de Israel,
levaram consigo uma jovem, a qual ficou a serviço da mulher de Naamã. Ela disse à sua
senhora: ‘Ah, se meu amo fosse ter com o profeta que reside em Samaria, ele o curaria da
lepra!’ Ouvindo isso, Naamã foi e contou ao seu soberano o que dissera a jovem israelita.
O rei da Síria respondeu-lhe: ‘Vai, que eu enviarei uma carta ao rei de Israel.’ Naamã
partiu com dez talentos de prata, seis mil siclos de ouro e dez vestes de festa. Levou ao rei
de Israel uma carta concebida nestes termos: ‘Ao receberes esta carta, saberás que te mando
Naamã meu servo, para que o cures da lepra.’ Tendo lido a missiva, o rei de Israel rasgou as
vestes e exclamou: ‘Sou eu porventura um deus, que possa dar a morte ou a vida, para que
esse me mande dizer cure um homem da lepra? Vede bem que ele anda buscando pretextos
contra mim.’
Quando Eliseu, o homem de Deus soube que o rei tinha rasgado as vestes, mandou-
lhe dizer: ‘por que rasgaste as tuas vestes? Que ele venha a mim, e saberá que há um
profeta em Israel.’ Naamã veio com seu carro e seus cavalos e parou à porta de Eliseu. Este
mandou-lhe dizer por um mensageiro: 'Vai, lava-te sete vezes no Jordão e tua carne
ficará limpa. Naamã se foi, despeitado, dizendo: ‘Eu pensava que ele viria em pessoa, e,
diante de mim, invocaria o Senhor, seu Deus, poria a mão no lugar infectado e me
curaria da lepra. Porventura os rios de Damasco, o Abana e o Farfar, não são melhores que
todas as águas de Israel? Não me poderia eu lavar neles e ficar limpo?’ E, voltando-se
retirou-se encolerizado. Mas seus servos, aproximaram-se dele, disseram-lhe: ‘Meu pai,
mesmo que o profeta te tivesse ordenado algo difícil, não o deverias fazer? Quanto mais
agora que ele te disse: Lava-te e serás curado. Naamã desceu ao Jordão e banhou-se ali sete
vezes, como lhe ordenara o homem de Deus, e sua carne tornou-se como a de uma criança.
Voltando então para o homem de Deus, com toda a sua comitiva, entrou,
apresentou-se diante dele e disse: ‘Reconheço que não há outro Deus em toda a terra, senão
o de Israel. Aceita este presente do teu servo.’ ‘Pela vida do Senhor a quem sirvo,
replicou Eliseu, não aceitarei nada.’ E apesar da instância de Naamã, ele recusou.(...).
Punição de Giezi
Naamã estava já a certa distância quando Giezi, servo de Eliseu, disse
consigo: ‘Eis que meu amo poupou a esse sírio, Naamã, recusando aceitar de sua mão o que
ele tinha trazido. Pela vida de Deus! Vou correr atrás dele, e obterei dele alguma coisa.’ E
Giezi foi ao alcance de Naamã, o qual, vendo-o correr, desceu do carro e veio-lhe ao
encontro. E disse-lhe: ‘Tudo vai bem?’ ‘Sim, respondeu Giezi; meu senhor manda-me dizer-
te: Acabam de chegar à minha casa, da montanha de Efraim, dois jovens, filhos de profetas.
Rogo-te que me dês para eles um talento de prata e dois hábitos de festa. Naamã respondeu:
‘É melhor que leves dois talentos.’ Naamã insistiu e, atando dois talentos e dois hábitos de
festa em dois sacos, entregou-os a dois de seus escravos para que os levassem a Giezi.
Quando atingiram a colina, Giezi tomou os objetos de suas mãos e guardou-os na sua casa.
Depois disso, despediu os dois homens e estes se retiraram.
E, tendo entrado, apresentou-se ao seu amo. Eliseu disse-lhe: De onde vens,
Giezi? ‘Teu servo não foi a parte alguma’, respondeu ele: Mas Eliseu replicou: ‘Não estava
porventura presente o meu espírito, quando um homem saltou de seu carro ao teu encontro?
É este o momento de aceitar dinheiro, adquirir vestes, oliveiras e vinhas, ovelhas e bois,
11
servos e servas? A lepra de Naamã se pegará a ti e a toda a tua descendência para sempre.’
E Giezi saiu da presença de Eliseu coberto de uma lepra branca como a neve.”
29
Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu;
mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã.”
30
Aqui pode-se depreender a noção do pecado como transmissível às gerações
futuras, o que de certa forma colide com a posição de Jesus Cristo narrada em João
31
.
Assim, os cinco casos aqui analisados do Antigo Testamento: Moisés, Miriã,
Ozias, Naamã e Giezi possibilitam vislumbrar um painel diferenciado sobre a
incidência e cura da lepra. O primeiro teve incidência e cura imediata. O segundo,
Miriã, houve um intervalo de sete dias. O terceiro, o Rei Ozias, não foi curado, sendo
destronado por seu filho Joatão. Quanto a Naamã, obteve a cura junto do profeta
Eliseu. Já Giezi, além de não ser curado por causa de sua falta grave, ambição
material, teve sua punição estendida aos seus descendentes conforme havia
sentenciado o profeta Eliseu.
Contudo, um outro personagem do Antigo Testamento, também considerado
leproso, atravessou os tempos e inspirou muito o caminho da lepra, trata-se de Jó. O
livro de Jó das escrituras bíblicas hebraico - aramaicas narra a história desta figura
que teria vivido hipoteticamente na terra de Hus, na Transjordânia, nos confins da
Iduméia e da Arábia e que teria sido um típico filho do Oriente.
32
“Jó tornou-se símbolo da paciência, e também personagem
representativo, em todos os tempos, do portador da lepra.”
33
Embora não haja uma concordância a respeito de sua existência histórica, Jó
constitui-se no exemplo máximo do sofrimento resignado e notável firmeza de sua
crença em Deus. Mesmo bastante vitimado, ainda aguardava pacientemente que ele
cessasse suas aflições. Deus havia permitido a Satanás que o ferisse e o prejudicasse
livremente, excetuando tirar-lhe a vida, a fim de demonstrar para o “anjo mal” o quão
29
II Reis 05:01-16/20-27. In: Bíblia Sagrada.
30
Lucas 04:27. In: Bíblia Sagrada.
31
João 09: 01-03. In: Bíblia Sagrada.
32
CARDOSO, Brito. Op cit., p. 676.
12
aquele homem lhe era fiel. Jó perdeu suas riquezas, seus filhos foram chacinados,
seus amigos se afastaram e outros falsos tentavam-lhe fazer abandonar sua crença.
Sua própria esposa teria lhe dito:
“Persiste ainda em tua integridade ( a Deus)? Amaldiçoa a Deus, e
morre!”
34
Satanás retirou-se da presença do Senhor e feriu Jó com uma úlcera
maligna, desde a planta dos pés até o alto da cabeça. E Jó tomou um caco de
telha para se coçar, e assentou-se sobre a cinza.”
35
A associação da figura de Jó com a lepra se deu por um processo de
reapropriação cultural deste personagem, ao que tudo indica, pelos aspectos físicos
das doenças a que foi acometido, conforme observa Guidotti. Sua complacência com
o sofrimento das doenças que lhe foram colocadas pelo próprio satanás e sua
paciência em aguardar o socorro da providência divina, também inspiraram
comportamentos no Ocidente cristão.
“A interpretação errônea do texto bíblico criou o estigma. Como se
observa no texto bíblico, ‘lepra’ tinha significado totalmente diferente do que
é a hanseníase. A coceira de Jó não é um sintoma da doença que aflige
milhões de seres humanos”
36
O Novo Testamento também possui diversas referências sobre lepra, dispersas
nos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas. Em muitas delas não são conhecidos os
nomes dos doentes, sendo apenas identificados como leprosos. Nestes, Cristo aparece
executando curas miraculosas como prova de que seria realmente o enviado de Deus:
Mensagem de João Batista
“Tendo João, em sua prisão, ouvido falar das obras de Cristo, mandou-lhe
dizer pelos discípulos: ‘ Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar
33
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Órfãos de Pais Vivos” - A lepra e as instituições preventoriais
no Brasil: Estigmas, preconceitos e segregação. São Paulo, (Mestrado em História),USP,1991
(p.18).
34
Jó 02:09. In: Bíblia Sagrada.
35
Jó 02:07-08. In: Bíblia Sagrada.
36
GUIDOTTI, Pe. Humberto. Lepra, palavra incurável. In: Jornal do MORHAN. Rio de Janeiro,
1º/trimestre/1982 (p.09).
13
por outro?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Ide e contai a João o que ouvistes e o
que vistes: os cegos vêem os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres...”
37
A lepra continuava digna de menção especial ainda no tempo de Jesus Cristo e
também figurava em uma classificação própria, conforme verifica-se neste trecho:
Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os
demônios. Recebestes de graça, de graça dai!”
38
A citação anterior, extremamente rico de sentidos, permite observar que os
leprosos diferenciavam-se dos demais enfermos, isto é, não foram aí incluídos. Lepra
era sinônimo de impureza e sujeira e não especificamente de doença. Os enfermos
eram para serem curados e os leprosos limpos ou purificados.
Cura de um leproso
“Aproximou-se dele um leproso, suplicando-lhe de joelhos: ‘Se queres,
podes limpar-me’ Jesus compadeceu-se dele, estendeu a mão, tocou-o e lhe
disse: ‘Eu quero, sê limpo.’ E imediatamente desapareceu dele a lepra e foi
purificado.”
39
Cura de um leproso
“Estando ele numa cidade, apareceu um homem cheio de lepra .Vendo a
Jesus, lançou-se com o rosto por terra e lhe suplicou: ‘Senhor, se queres,
podes limpar-me.’ Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: ‘Eu quero; sê
purificado!’ No mesmo instante desapareceu dele a lepra. Ordenou-lhe
Jesus que o não contasse a ninguém, dizendo-lhe, porém: ‘Vai e mostra-te ao
sacerdote, e oferece pela tua purificação o que Moisés prescreveu, para lhes
servir de testemunho.’ Entretanto, espalhava-se mais e mais a sua fama e
concorriam grandes multidões para o ouvir e ser curadas das suas
enfermidades. Mas ele costumava retirar-se a lugares solitários para
orar.”
40
37
Mateus 11:02-05. In: Bíblia Sagrada.
38
Mateus 10:08. In: Bíblia Sagrada.
39
Marcos 01: 40-42. In: Bíblia Sagrada.
40
Lucas 05: 12-16. In: Bíblia Sagrada.
14
Respondeu-lhes ele: ‘Ide anunciar a João o que tendes visto e ouvido: os
cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam, aos pobres é anunciado o Evangelho; e bem- aventurado
é aquele para quem eu não for ocasião de queda!.’”
41
A idéia de que os leprosos são sujos ou impuros é uma constante, conforme
observa-se nesta outra passagem:
Cura de um leproso
Tendo Jesus descido da montanha, uma grande multidão o seguiu. Eis que
um leproso aproximou-se e prostou-se diante dele, dizendo: ‘Senhor, se
queres, podes curar-me.’ Jesus estendeu a mão, tocou-o e disse: ‘Eu quero,
sê curado.’ No mesmo instante, a lepra desapareceu. Jesus então lhe disse:’
Vê que não o digas a ninguém. Vai, porém, mostrar-te ao sacerdote e oferece
o dom prescrito por Moisés em testemunho de tua cura.”
42
No entanto, se Jesus Cristo limpava ou purificava todos os leprosos nem todos
agradeciam. Esta é a tônica desta passagem de Lucas; “o leproso agradecido”, que
entre um grupo de dez leprosos limpos um único retorna para agradecer:
O leproso agradecido
Sempre em caminho para Jerusalém, Jesus passava pelos confins da
Samaria e da Galiléia. Ao entrar numa aldeia, vieram-lhe ao encontro dez
leprosos, que pararam ao longe e elevaram a voz, clamando. ‘Jesus, Mestre,
tem compaixão de nós!’ Jesus viu-os e disse-lhes: ‘Ide, mostrai-vos ao
sacerdote.’ E quando eles iam andando, ficaram curados. Um deles, vendo-
se curado, voltou, glorificado a Deus em alta voz. Prostrou-se aos pés de
Jesus e lhe agradecia. E era um samaritano. Jesus lhe disse: ‘Não ficaram
curados todos os dez? Onde estão os outros nove? Não se achou senão este
estrangeiro que voltasse para agradecer a Deus?!’ E acrescentou: ‘Levanta-
te e vai, tua fé te salvou.”
43
Porém, os personagens bíblicos associados à lepra no Novo Testamento
merecem aqui discussão a parte; são eles: Lázaro e Simão.
Nenhum personagem se tornou mais simbólico e identificado com a lepra do
que Lázaro. No Brasil, seu nome figurava em importantes instituições como a
Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. São
inúmeras as referências onde os locais destinado aos leprosos eram denominados de
41
Lucas 07:22-23. In: Bíblia Sagrada.
42
Mateus 08:01-04. In: Bíblia Sagrada.
43
Lucas 17:11-19. In: Bíblia Sagrada.
15
Lazaretos
44
. O nome Lázaro está no imaginário popular extremamente associado a
lepra.
Lázaro, no entanto é o nome de dois personagens neotestamentários relatados
nos evangelistas Lucas e João. A leitura dos relatos dos dois evangelistas, evidencia
que nenhum dos dois eram leprosos:
Ressurreição de Lázaro
Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e sua irmã Marta.
Maria era quem ungira o Senhor com o óleo perfumado e lhe enxugara os
pés com os seus cabelos. E Lázaro, que estava enfermo, era seu irmão. Suas
irmãs mandaram, pois, dizer a Jesus: ‘Senhor, aquele que tu amas está
enfermo.’ A estas palavras, disse-lhes Jesus: ‘Esta enfermidade não causará
a morte, mas tem por finalidade a glória de Deus. Por ela será glorificado o
filho de Deus.’”
45
Jantar em Betânia
Seis dias antes da páscoa, foi Jesus a Betânia, onde vivia Lázaro, que
ressuscitara. Deram ali uma ceia em sua honra. Marta servia e Lázaro era
um dos convivas.”
46
Lázaro, morto por uma doença desconhecida, irmão de Marta e Maria,
ressuscitado dentre os mortos por Jesus Cristo era seu amigo pessoal. Tornou-se na
Idade Média o grande advogado de todos os doentes derivando de seu nome a
expressão Lazareto e a figura de São Lázaro.
47
Sua ressurreição, segundo o
evangelista João,
48
teria desencadeado os ódios entre os fariseus e os sacerdotes que
começaram a percebê-lo como influência concorrente, passando, a partir daquela
ocasião, a tramarem sua morte.
O segundo Lázaro nos escritos neotestamentários, é o da narração
paradigmática, “O rico e o Lázaro”, relatado por Lucas:
44
KIPPER, J. Balduíno. Lázaro. In: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura. Op cit. p. 1.569
45
João 11;01-04. In: Bíblia Sagrada.
46
João 12:01-02. In: Bíblia Sagrada.
47
OLIVEIRA, A de. Lazareto. Idem p. 1.566/1.567.
48
João 11:45-51. In: Bíblia Sagrada.
16
Parábola do rico e Lázaro
“Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que
todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por
nome de Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico.
Ele avidamente deseja matar a fome com as migalhas que caiam da mesa
do rico... Até os cães iam lamber-lhe as chagas. Ora, aconteceu morrer o
mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e
foi sepultado. ‘E estando ele nos tormentos do inferno, levantou os olhos e
viu, ao longe. Abraão e Lázaro no seu seio. Gritou, então: Pai Abraão,
compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em água a ponta de seu
dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado
nestas chamas. Abraão, porém, replicou: Filho, lembra-te de que recebeste
teus bens em vida, mas Lázaro, males; por isso ele agora aqui é consolado,
mas tu estás em tormento. Além de tudo, há entre nós e vós um grande
abismo, da maneira que, os que querem passar daqui para vós, não o
podem, nem os de lá passar para cá. o rico disse: rogo-te então, pai, que
mandes Lázaro à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para lhes
testemunhar, que não aconteça virem também eles parar neste lugar de
tormentos. Abraão respondeu: eles lá tem Moisés e os profetas: ouçam-nos!
O rico replicou: Não, pai Abraão; mas, se for a eles algum dos mortos,
arrepender-se-ão. Abraão respondeu-lhe: Se não ouviram a Moisés e os
profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite dos
mortos.”
49
Somente após a sua morte Lázaro livra-se de seu sofrimento. O contrário
ocorre com o rico epulão. É desta figura parabólica que deriva o sentido com o que se
emprega o nome Lázaro como Leproso. Novamente, assim como Jó, a tradição ao
longo dos anos aproximou, sintomas de doenças de pele, como pústulas, chagas,
feridas e outros à lepra. A hanseníase, que insiste em não querer o estatuto da lepra,
herdou todos estes significados e conteúdos que lhe foram impingidos pelo
imaginário popular durante pelo menos dois milênios.
50
O único personagem bíblico relatado como leproso é Simão de Betânia, cuja
tônica foi bem captada pelo Padre Vieira, neste trecho:
“Diz o evangelista São Marcos que veio Cristo Senhor nosso comer à casa
de Simão, o Leproso: chamava-se assim este homem que fora leproso
antigamente, e o mesmo Senhor o sarara, Não sei se reparais na dúvida. Se
este homem ainda tivera lepra e lhe chamassem leproso, muito justo; mas se
49
Lucas 16: 19-31. In: Bíblia Sagrada.
50
BARKIRTZIEF, Zoica. Conhecimento científico e Controle Social: a Institucionalização do
Campo Hanseníase (1897-2000).São Paulo, (Doutorado em Psicologia Social), PUC/SP, 2001( p.24).
17
ele estava são, por que lhe hão de chamar leproso? Porque esse é o juízo dos
homens. Fostes vós leproso algum dia? Pois ainda que Deus faça milagres
em vós, leproso haveis de ser todos os dias de vossa vida. Deus poder-vos-á
dar a saúde; mas o nome da enfermidade não vo-lo hão de perdoar os
homens. No juízo de Deus com a mudança dos procedimentos, mudam-se os
nomes; antigamente éreis Saulo. Hoje sois Paulo: no juízo dos homens, por
mais que os procedimentos se mudem, os nomes não se mudam jamais. Se
fostes leproso uma vez, leproso vos hão de chamar enquanto viverdes:
‘Simonis leprosi’. Poderá haver milagre para sarar o Simão, mas milagre
para tirar o leproso não é possível. Oh grande sem razão do juízo humano,
que da enfermidade vos hajam de fazer apelido! E vem a ser pior o apelido
que a mesma enfermidade. Porque a enfermidade, quando muito, chega até a
morte, o apelido passa à descendência. O juízo de Deus terrível é, mas posso
me livrar dele emendando-me. Porém o juízo dos homens, em que não vale a
emenda, quem poderá negar, é mais terrível.”
51
O estigma marcara eternamente Simão. Mesmo depois de restabelecida sua
saúde não perdeu seu “surrado cognome” imposto pelo estigma. Simão, o “leproso”
52
fora igualmente curado por Jesus Cristo, com exceção do nome da enfermidade, que
não teve cura, conforme bem observa o Padre Vieira. Por que Cristo podia limpar os
leprosos, mas não podia purificar as palavras.
Entretanto, para além dessas questões imanentes a respeito das referências
bíblicas sobre a lepra, outras considerações não podem ser omitidas, no tocante a
história e a composição desta complicação de livros, denominada de Bíblia. O mais
provável é que nenhuma das referências bíblicas sobre a lepra relacionem-se com a
atual hanseníase.
53
O evangelista Lucas, médico grego, autor de dois dos livros do Novo
Testamento, o Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos, de acordo com as
evidências conheceria a expressão utilizada na medicina helênica para designar a
atual hanseníase, ou seja; elephantiasis.
54
Eis aqui um ponto crucial. Este permite associar a palavra lepra, na Bíblia, a
uma série de doenças de pele, misturadas a algumas situações de impurezas rituais,
que em nada se relacionariam com a atual hanseníase, herdeira, por excelência, de
51
VIEIRA, Padre. Sermão do Segundo Domingo do Advento. Sermões, Lisboa, tomo I, Livraria
Chardron, 1907( pp.164-165).Apud: GUIDOTTI, Pe. Humberto. Hanseníase não é lepra. In: Revista
de Cultura. Petrópolis, Editora Vozes, Vol. 78, n.º 03, abril de 1984, pp.178/179(pp.18-19).Na Bíblia
ver: Marcos 14:03 e Mateus 26:06.
52
GUIDOTTI, Pe. Humberto. Hanseníase não é lepra. In: Revista de Cultura. Petrópolis, Editora
Vozes, Vol. 78, nº 03, abril de 1984(p.178/179).
53
BROWNE, Stanley G. Leprosy in the Bible. London: Christian Medical Fellowship Publication.
Apud: BARKIRTZIEF, Zoica. Op Cit. p.22/23.
18
toda essa carga de adjetivação bíblica. A sustentação dessa argumentação encontra-se
em estudos arqueológicos
55
e nos já citados textos de Lucas. A opção deste pelo uso
da palavra lepros ao invés de elephantiasis em vários dos episódios narrados, pode
relacionar-se com o fato de se estar aludindo a uma série de afecções cutâneas
marcadas pela aparência escamosa e esbranquiçada.
Assim, três pontos poderiam endossar a tese da inexistência de qualquer
referência bíblica tratar-se da atual hanseníase: Primeiro, o texto do Levítico, rico em
detalhes, não cita entre os sintomas da lepra a presença de anestesia no local da pele
“afligido” por tal doença. Segundo, a “lepra bíblica” era curável, em intervalos
variados, alguns relativamente curtos, como no caso de Miriã, sete dias, o que
certamente não era hanseníase. Terceiro, a incidência da Lepra poderia ocorrer
inusitadamente em paredes,
56
pedras
57
e vestes
58
o que não ocorre, sem dúvida
alguma, com a hanseníase.
Quanto ao fenômeno de estigmatização da lepra, se uma de suas causas é a
herança bíblica, poderíamos então localizar sua origem no automatismo operado no
momento das tradições bíblicas, ocorridas no final do primeiro milênio a. C e no
início do primeiro milênio d.C, quando a lepra bíblica e a elephantiasis foram
entendidas como sinônimos, o que possibilitou a translação das impurezas e sujeiras
rituais a que o povo Hebreu se refere em seus textos antigos, para os portadores de
hanseníase na Idade Média européia.
De qualquer forma, mesmo que Jó e Lázaro não tenham sido leprosos,
conforme os estudos dos textos bíblicos posteriormente demostraram, o que importa é
que figuraram na história como tal. Foram mencionados como sujeitos de lepra, e foi
assim que foram apreendidos e assimilados pelo Ocidente cristão.
O evangelho de Marcos, por exemplo, permite verificar que os procedimentos
descritos no Levítico, eram seguidos no tempo de Jesus Cristo:
54
Idem p. 22/23. Na Grécia não existia, naquele momento, o termo lepra e sim elefantíase. Assim, se
Lucas não utilizou o termo elefantíase provavelmente é por não estar se referindo a atual hanseníase.
55
Idem., ibidem., p. 22/23.
56
Levítico 14:33-47.In: Bíblia Sagrada .
57
Idem.
58
Levítico 13:47-59.In: Bíblia Sagrada.
19
Cura de um leproso
Aproximou-se dele um leproso, suplicando-lhe de joelhos: ‘Se queres, podes
limpar-me.’ Jesus compadeceu-se dele, estendeu a mão, tocou-o e lhe disse:
‘Eu quero, sê limpo’. E imediatamente desapareceu dele a lepra e foi
purificado. Jesus o despediu imediatamente com esta severa admoestação:’
Vê que não o digas a ninguém; mas vai, mostra-te ao sacerdote e apresenta,
pela tua purificação, a oferenda prescrita por Moisés para lhe servir
testemunho.’”
59
O Levítico instruía o sacramento a proceder a expansão,
60
para fora da
comunidade, de leproso não-sarado, que ficava condenado então a viver às suas
margens.
A Idade Média européia redimensionaria as leis bíblicas sobre a lepra. O
costume de expulsar o leproso permaneceria, agora procedido, com uma missa,
semelhante a que se realizava para os mortos, que antecipava a segregação do
doente.
Mas se foi agregado ao termo lepra tamanho assombro cultural, o momento
inicial em que este teria sido forjado, foi aquele no qual realizaram-se as grandes
traduções bíblicas da versão dos Setenta (ou LXX) ou Septuaginta e a Vulgata.
O termo utilizado nos textos do Antigo Testamento era “tsara’ath” que
aproximadamente significava sujeira e impurezas rituais. Este agrupava uma ampla
gama de situações que poderiam ser entendidas como tais. A menstruação, o contato
com os defuntos, alguns hábitos alimentares, desobediências aos sacerdotes e mesmo
alguns comportamentos poderiam ser aí incluídos. Havia doenças de pele que
figuravam neste termo como, a psoríase, vítiligo, impetigo e pênfigos.
61
Não há consenso sobre quando teria finalizado a Septuaginta, isto é, a versão
em grego dos textos do Antigo Testamento em hebraico e aramaico. Provavelmente
no século II. a. C. ela já estaria concluída.
62
De qualquer forma, para seus tradutores a
palavra lepra não sugeria o que hoje entendemos por hanseníase, mas sim uma
59
Marcos 01:40-44. In: Bíblia Sagrada.
60
Números 05:01-04. In: Bíblia Sagrada.
61
GUIDOTTI, Pe. Humberto. Op. Cit., p.183. BROWNE, Stanley G. Leprosy in the Biblie. In:
Barkirtzief, Zoica. Op Citp.22/23
62
Acredita-se que entre os anos de 145 a 129 a.C., a versão dos Setenta já se encontrava concluída. No
entanto, os especialistas argumentam que ela constitui a testemunha de um texto mais antigo e
provavelmente melhor do que os manuscritos hebreus. In: VICENT, Mons. Albert. Dicionário
Bíblico. São Paulo, Edições Paulinas, 1.969 (p.462) .
20
condição escamosa da pele e outras doenças de pele relacionáveis, que para eles
induziam a noção de sujeita e impureza do velho “tsara’ath”.
No século I a.C. Os nomes mais comuns que designariam a atual hanseníase
seria a elephantiasis ou elephantiasis-dos-gregos ( Elephantíasis Graecorum) e
Morbus Phenicius”.
63
Ocorre que estes nomes vão perder cada vez mais sua força
para se referir à doença, abrindo espaço para o uso do termo lepra, já colocado na
versão dos Setenta que, dessa forma, começava a compartilhar dos conteúdos do
antigo “tsara’ath
“Por razões difíceis de entender, o nome da doença, na Europa, mudou de
elefantíase para lepra ( variações como lebre, leprosie e leprosy) durante os
séculos seguintes, e o uso desastroso das mesmas palavras no Velho
Testamento, significando castigo para um pecado, teve efeito destruidor na
reação social à doença em qualquer lugar onde o Cristianismo predominou,
particularmente na Europa durante a Idade Média e posteriormente”
64
As razões da substituição do nome da atual hanseníase de elephantíasis para
lepra, na Europa, no período abrangido do século I a.C. ao I d.C., ainda são pouco
estudados. No entanto, todas as argumentações vão no sentido de destacar que, apesar
de diferente das outras doenças de pele, a hanseníase também se trata de uma doença
dermatológica, cujos aspectos físicos, numa época em que sintomatologia não era um
estudo dos mais sistematizados, terminou por fertilizar o terreno, tornando-o propício
para o enquadramento da hanseníase dentre os “males” normatizados pelo Levítico.
Certamente, o trabalho dos 72 anciões de Israel ao afunilarem todos os
significados do antigo testamento “tsara’ath” em uma única palavra; lepra, que
perdeu a variedade de significados do termo anterior, contribui para a aproximação da
hanseníase com o universo de significados expressos no Levítico e na Bíblia de um
modo geral.
Mas, se quem “traduz trai”, as manobras dos tradutores do Antigo
Testamento, ainda tiveram oportunidade de serem reafirmadas e endossadas. Quando
63
ORNELLAS, Cleuza Panisset. O Paciente Excluído: história e crítica das práticas médicas de
confinamento. Rio de Janeiro, Editora Revan, 1997 (p.59).
64
JOPLING, Willian H. Meditações sobre a Hanseníase. In: Jornal do MORHAN. Rio de Janeiro,
1º/trimestre/1983 (p.06).
21
no início do século V d.C.,
65
providenciou-se uma nova tradução do Antigo
Testamento, agora já a partir da versão dos Setenta e não mais os originais em
hebraico e aramaico, acrescidos dos textos pós-Cristo, que denominamos de Novo
Testamento, novamente a palavra lepra é eleita para representar a amplitude de
situações expressas desde os textos antigos, numa época em que cada vez mais
imperava a prática de referir-se a hanseníase como lepra. O resultado a história iria
mostrar: lepra se transformou em sinônimo de “tsara’ath”.
A Vulgata se tornará a Bíblia Oficial da Igreja Católica, a partir da dissolução
do Império Romano. E, se na época dos Setenta a elephantiasis não a eqüivalia a
“tsara’ath” ou lepra, como fora traduzida na Septuaginta, na época da Vulgata sim. O
imaginário popular já as havia aproximado e a incluído numa mesma categoria. A
ratificação indevida que fez os tradutores da Vulgata dessa aproximação desastrosa
permite a conclusão do processo de imigração dos conteúdos e significados do antigo
“tsara’ath” para a atual hanseníase, no início da Idade Média européia.
“Lepra, da versão dos Setenta, e leprosos da Vulgata tornou-se lepra nas
versões inglesas ( e naturalmente portuguesas) e, por causa deste significado
de pecado, e também porque os escritores desde os tempos de Shakespeare
usaram as palavras lepra e leproso para significarem algo odioso, tem
havido campanhas em anos recentes para mudar a doença de nome.”
66
“As doenças que mais estavam em sintonia com os sintomas relatados na
Bíblia ( psoríase, vítiligo, etc), hoje não são mais nem ‘lepras’, nem
‘bíblicas’. A ‘elefantíase’, cujos sintomas não se encontram na Bíblia é hoje
a única ‘lepra’ e a única doença bíblica.”
67
Assim, no intervalo entre as traduções do Antigo e Novo testamento, ou seja
da Septuaginta no século II. a.C. e a Vulgata no início do século V d.C. a hanseníase
mudou de nome na Europa e ganhou novos significados.
65
Nome dado à versão latina da Bíblia, empreendida de modo global por São Jerônimo, a pedido do
papa Damásio no século IV e publica no ano no ano de 404. O nome advém das característica do texto,
redigido sob forma literária comum, vulgar ( no sentido etimológico). Pouco a pouco a vulgata se
impôs no mundo ocidental, tornando-se a Bíblia Oficial da Igreja Católica. Não obstante, ela é
criticamente comparada à chamada Bíblia Sixto-clementina, editada no final do século XVI, base
oficial do ensino da Igreja até os tempos modernos. Por sua vez, os beneditinos vêm promovendo uma
revisão analítica da vulgata. In: AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de Nomes,
Termos e conceitos Históricos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2º ed., 1997 (p.422).
66
JOPLING, Willian H. Op. Cit., p.06.
67
GUIDOTTI, Pe. Humberto. Op. Cit., p. 183
22
Com a expansão do Cristianismo ou europeus tenderão, a partir daquele
momento, a reger-se cada vez mais por essa nova religião que surgia e a Bíblia
passou a ser o guia para uma nova vida.
O Padre Italiano Humberto Guidotti, assumindo a responsabilidade da Bíblia
no engedramento e consolidação da estigmatização dos hansenianos cita um exemplo
já consagrado na literatura internacional:
“A Assistente Social J. H. Kerr demonstrou como, em certos casos, o estigma
e o ostracismo foram introduzidos e criados pela própria Bíblia.
No interior montanhoso da Papua Nova Guiné não havia estigma
social relacionado com a doença ‘X’. Mas ‘influências ocidentais
conseguiram mudar muito do conceito tradicional da lepra, que não era
de condenação e de ostracismo enquanto o paciente pudesse cumprir suas
obrigações para com a sociedade.’
‘O conceito bíblico da lepra como ‘’repugnante’ e a ignorância de
muitos europeus quanto à natureza da doença concorreram para reforçar e
aumentar o estigma da lepra, que existe em numerosos outros países e
agora também na Papa Nova Guiné”
68
1.2 Lepra: doença física e enfermidade sócio-cultural
“Esquematicamente ela consiste(a missa dos leprosos na Idade Média) em
levar o doente à igreja em procissão, ao canto do Libera me Domine como
para um morto, na celebração de uma missa que o infeliz escuta dissimulado
sob um cadafalso, sendo depois acompanhado à sua nova morada. Ou neste
momento ou à saída da igreja tem lugar um simulacro de inumação:‘ o
padre deve ter uma pele na mão e com essa pele deve pegar terra do
cemitério, três vezes, e pô-lo na testa do leproso, dizendo o seguinte: Meu
amigo, é sinal de que estás morto para o mundo e por isso tem paciência e
louva em tudo a Deus.’ A leitura das proibições - entrar nos moinhos, tocar
nos alimentos no mercado, etc. - acompanha a entrega e benção das luvas,
da matraca e da caixa das esmolas.”
69
68
KERR, J.M “Social Fators operating against leprosy control in the highiands of Papua New
Guinea”.Papua Guinea Med.16(2):118-1120(1973).Apud: GUIDOTTI, Humberto .Op. Cit., p.184.
69
BÉNIAC, Francoise. O medo da lepra. In: LE GOFF , Jacques (apresentação). As doenças tem
História. Editora Terramar, Lisboa, 2º edição, 1997 ( pp. 139/140).
23
“Qual noviço ingressando numa ordem, o leproso recebia os indumentos de
seu irremediável estado, inclusive lenço ou capuz para cobrir a boca e sineta
ou matraca para afastar os transeuntes.”
70
Havia um medo
71
latente envolvendo a lepra. Visto como uma ameaça, o
doente dissolvia-se em sua nova condição tornando-se a partir do momento da
segregação um pária. Uma outra identidade lhe era imposta pela sociedade. Fruto de
sua enfermidade, diferenciação da qual não se livraria mais.
Conforme pode-se observar nas citações acima a cristandade apenas
reelaborou em alguns aspectos o antigo preceito do Levítico que legislava sobre o
“tsara’ath”, onde o impuro tornava-se excluído, expulso e notória sua condição. Com
a lepra foi o mesmo, a profilaxia, se for possível assim se referir a esta prática,
consistia na publicidade da doença. Esta deveria ser visual pelas roupas especiais
destinadas a eles e sonora, propiciado por algum instrumento emissor de ruído que
deveriam portar obrigatoriamente. Assim como a missa era anunciada pelos sinos, o
doente ou o “perigo” também se anunciava com um recurso sonoro.
“Aceite ou rejeitado, o leproso é separado do convívio das pessoas sãs,
expulso de casa. A este respeito, as sociedades da Europa Ocidental apenas
sistematizaram atitudes das do Oriente mediterrâneo. Herdam a tradição
judia, retomada pelo cristianismo”
72
Alguém poderia até compreender este aspecto como simplesmente prático. O
leproso se anuncia ou sinaliza sua chegada por que é um inconveniente, um
“indesejável” e para que não precisasse comprar comida. As pessoas ao soar de sua
matraca, já sabiam o papel que lhes cabiam, o de ter compaixão com aquele que
estava condenado.
Este tipo de conduta, herdeira direta da tradição hebraica, revela as mudanças
sofridas pela figura do leproso. Na Idade Média ele é um “ente ideal”, disponível para
o recebimento da devoção cristã, tornando-se mesmo, um ingrediente necessário à
70
LEPARGNEUR, Hubert. O doente, a doença e a morte. Papirus Editora, Campinas, 1987 ( p.18).
71
O medo da lepra sempre foi muito forte. Historicamente, esta sempre foi vista como um perigo para
a sociedade. Havia um medo coletivo, aqui entendido como hábito que têm os grupos sociais de
temerem determinadas ameaças existentes ou não. Alguns autores vêem os leprosos da Idade Média
como uma minoria social apartada pelo medo. Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no
Ocidente. Editora Companhia das Letras. São Paulo, 1989 .RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e
danação; as minorias na Idade Média. Rio de janeiro, jorge Zahar Editor, 1993(p.153-166).
72
BÉNIAC, Francoise. Op. Cit., p. 135.
24
manutenção e continuidade desta fé. A caridade beneficiava tanto quem recebia,
quanto quem a praticava. Para os últimos uma forma de salvação, que, no entanto,
perenizava a situação marginal do leproso, para o doente um meio de sobrevivência.
Mas o temor da lepra era diferente do medo da peste e de outras doenças.
Enquanto a peste representava uma ameaça funesta para com a vida das pessoas, a
lepra não. Morrer de peste, em períodos de surto era uma constante. Morrer de lepra
era algo bastante incomum. O leproso geralmente morria de outra moléstia que se
aproveitava dos danos à sua saúde causados pela doença.
“Eles fogem uns após os outros e mal se pode encontrar alguém para tratar
e consolar os doentes. Em minha opinião, esse medo, que o diabo põe no
coração dessas pobres pessoas, é a peste mais temível. Fogem, o medo
perturba sua cabeça, abandonam a família, o pai, os parentes; aí está sem
nenhuma dúvida o castigo por seu desprezo ao Evangelho e por sua horrível
cupidez”
73
“Mal enraizado, implacavelmente recorrente, a peste, em razão de seu
reaparecimentos repetidos, não podia deixar de criar nas populações ‘um
estado de nervosismo e de medo’. Na França, entre 1347 e 1536, J.N.
Biraben identificou 24 surtos principais, secundários ou anexos de peste em
189 anos, ou seja, mais ou menos a cada oito anos. Em segundo período, que
se estende de 1536 a 1670, não se contam senão doze surtos( um a cada 11,2
anos).”
74
A lepra não era temida por sua letalidade
75
, pois , já era conhecido na Idade
Média o longo período de vida de seu acometido. Porém, dadas às características da
doença, conduziu-se à formação de uma representação do leproso enquanto aquele
que estava deformado
76
. Desconhecia-se, naquela época, o que hoje chama-se de
período chamado de incubação, pois, o leproso só aparecia, só surgia, enquanto tal,
após o início das deformidades e das seqüelas da doença. As formas atualmente
conhecidas como tuberculoídes
77
dificilmente eram entendidas como leprosas,
restando apenas as hoje denominadas virchowianas
78
.
73
LUTERO, Martinho. Apud: DELUMEAU, Jean. Op. Cit., ( p. 133).
74
Idem p.108
75
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2001(pp.39-68).
76
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. A lepra: uma introdução ao estudo do fenômeno social
da estigmatização. ( doutorado em Antropologia), FAFICH/UFMG, Belo Horizonte, 1970.
77
A tuberculose e a hanseníase são doenças próximas, ambas causadas pela ação de bacilos que
mantêm entre si um parentesco de primos em primeiro grau. Hoje já se sabe que 90% da população
possui resposta natural eficaz contra o Mycobacterium leprae, agente etiológico da hanseníase,
portanto dificilmente adoecem. A hanseníase caracteriza-se como doença de alta infectividade, o que
não resulta em grande números de doentes, porque o bacilo é de baixa patogenicidade.
25
No entanto, boa parte do temor que se tinha em relação a lepra era oriundo do
enorme desconhecimento que se tinha da doença. Na Idade Média acredita-se ser a
lepra hereditária e contagiosa. Alguns costumes demostram que de alguma forma
temiam igualmente serem infectados por aquele mal. Neste período, excetuando-se
talvez a hanseníase virchowiana, que eles chamavam de “lepra elefantíaca” e que
hoje, sabe-se, atinge apenas 5% da população, os médicos medievais entendiam por
lepra uma série de doenças de pele
79
, reafirmando que as confusões da antigüidade
ainda não haviam sido esclarecidas.
“Os sábios são portanto da opinião de que a doença é simultaneamente
hereditária e contagiosa. Estas convicções são sem dúvida nenhuma
partilhadas pela população. Alguns textos do início do século XIV revelam
uma crença popular na hereditariedade da lepra, talvez devido aos sermões
que, desde o inicio da Idade Média, vaticinavam abortos leprosos ou
corcundas aos que não observassem os períodos de continência proscritos
pela Igreja.”
80
Conhecimentos mais delineados sobre a doença foram agregados aos poucos,
de forma bastante lenta. Para se ter uma idéia, a descoberta das áreas de
insensibilidade ocorreu entre os médicos árabes antes do século XIII. A verificação
do caracter polimorfo da doença é desvendado pelos médicos ocidentais entre os
séculos XIII e XIV. O isolamento do agente etiológico foi realizado em 1872. E o
primeiro remédio data de 1941.
No entanto, mesmo desconhecendo a doença e seus aspectos e a confundindo
com as outras dermatoses, nunca se deve esquecer que isso não constituiu obstáculo e
nem impedimento para se adotar procedimentos referentes à lepra que, pelo caracter
Entre os 10% que possuem maior propensão a adoecerem, estes podem sofrer a doença numa
escala que vai das formas sub-clínicas com cura espontânea até as formas graves, onde há a ocorrência
de incapacidades e comprometimentos físicos. Estes últimos ainda se sub-dividem em Virchowianos,
forma mais grave que apresentam poucas lesões e com raros bacilos, dado o fato de apresentarem
resposta ao agente etiológico mediada pelas células que liberam antígenos específicos.
78
O termo deriva do nome do médico sanitarista Rudolph Virchow ( 1821-1902) um dos primeiros a
se dedicar aos estudos de patologia celular na década de 60 do século XlX.
Esta é a forma mais grave que a hanseníase pode atingir. Nela há ausência de resposta imune
celular, enquanto que a imunidade humoral é bastante estimulada, não se constituindo, entretanto, em
proteção eficaz. Estes doentes apresentam lesões disseminadas, muitos bacilos e comprometimentos
físicos. As representações do doente de lepra que cristalizou-se no decorrer dos séculos referem-se a
esta forma da doença que, segundo estima-se, afetaria em torno de 5% da população. Para maiores
detalhes sobre os aspectos médicos e epidemiológicos da doença ver: BAKIRTZIEF, Zoica. Op. Cit., ;
PEREIRA, Gerson Fernando Mendes. Características da Hanseníase no Brasil: situação e
tendência no período 1985 a 1996. ( Mestrado em Epidemiologia) EPM/SP, 1999.
79
BÉNIAC, Françoise. Op. Cit., p. 130.
26
que assumiu de longa endemia na Europa, nem sempre caracterizou-se por medidas
de contingência. E se toda a sociedade, em determinado momento depara-se com uma
“Grande Doença”
81
, a que mais assustou ou a que mais desatinou por ser fatal, no
início da Era Cristã essa doença foi a lepra.
Contudo, o comportamento para a lepra se norteava pelas leis do Levítico do
início da Era Cristã até o século XIX. E se o Levítico refletia o que se fazia com os
leprosos na antigüidade, pode-se mesmo retroceder esta forma de agir mais uns mil e
quinhentos anos antes de Cristo.
“Que se esconda e viva isolado, numa cama de palha com os cães sarnosos e
os animais imundos, aquele cujo corpo se cobre de pústulas semelhantes a
bolhas de ar infecto que se elevam dos pântanos e rebentam à superfície.
Pois que ele ultraja a luz. Que seja expulso das aldeias as pedradas e
coberto de excrementos; que os rios sagrados vomitem seu cadáver.”
82
Este trecho de autoria anônima é atribuído a um poeta Indiano
83
que teria
vivido por volta do ano de 2500 a.C. e evidencia o quão é remota a prática da
segregação para com os hansenianos na história.
A concepção de que a etiologia da lepra era ao mesmo tempo contagiosa e
hereditária, sem dúvida nenhuma reforçava-se com as histórias que circulavam de que
o leproso era capaz de semear o mal em torno de si,
84
e que isto poderia lhe acarretar
sua cura. Gandra em suas entrevistas constata esta noção popular, de que o leproso
poderia se curar difundindo a doença. Quanto à idéia de hereditariedade, esta era
reforçada e sustentada com base em observações de diversos casos observados em
vários núcleos familiares.
“(...) a multiplicidade de caos verificada entre familiares que induz em erro.
Um exemplo entre outros, em Arras, Simon Huguet entra numa leprosaria
em 1505-1506; as suas duas filhas conhecem o mesmo destino em 1507-
1508. Os médicos inquiriram portanto suspeito acerca dos seus antecedentes
familiares, deles tirando conclusões”.
85
80
Idem., p.132/133.
81
Cf. LEPARGNERUR, Hubert. Op. Cit..
82
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.06.
83
Idem., p. 05
84
GANDA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p. 43.
85
BÉNIAC, Françoise. Op. Cit., p. 133.
27
“Mulheres da família do leproso que não tenham resguardado após o parto,
algum parente que não tenha contraído o mal-gálico (sífilis), mulher que
tenha mantido relações sexuais durante a menstruação - são todos elementos
do imaginário em torno das causas da lepra, ainda hoje muito vivo no
interior de certas regiões brasileiras.”
86
Mas, o medo proveniente da lepra era também cultural, isto é, forjou-se uma
milenar tradição de exclusão cujo peso sobre os indivíduos se dava através da
religião. Um conteúdo cultural tão solidificado como esse não era muito permeável à
indagações e críticas mesmo condizentes e bem fundamentadas. Basta lembrar que o
primeiro Congresso Internacional de Lepra a concluir com unanimidade sobre a
contagiosidade da doença foi o terceiro, realizado em Estrasburgo, na França, em
1923
87
.
O espetáculo do leproso em trânsito era um personagem marcante no cenário
da Idade Média. Muitos literatos irão utilizar soberbamente estas representações do
leproso, associando-o a algo odioso e marginal, dado o fato deste sempre encontrar-
se, naquele período, excluído da comunidade. William Shaskespeare, por exemplo,
foi um dentre muitos literatos que utilizou destas associações
88
.
A lepra quase sempre gozou de um estatuto de especificidade no Ocidente
Cristão. Inicialmente era entendida como a maldição divina, oriunda do pecado dos
indivíduos acometidos. Seu posterior entendimento como doença, retirando-o do
lugar que ocupava entre as maldições, representou um significativo avanço no bem-
estar do doente, abrindo caminhos para o início do ato de se inquirir sobre ela.
Entretanto a idéia de pecado no Ocidente, relacionando a doença, exibe uma pungente
vigorosidade. A perenidade da concepção de pecado associada a etiologia da doença
abre espaço para o sentimento de culpabilização e vitimização do doente que, caso
manifeste crença em tais associações, tem parte de seu potencial de reação
comprometido, tornando-se mais vulnerável diante das estigmatizações sofridas. O
cerne da questão residiria em conciliar sofrimento com penitência.
O mundo da lepra foi regido pela religião. A razão da importância de se
destacar este fato consiste em avaliar criteriosamente o papel desta e da Igreja
86
TRONCA, Ítalo A.. As máscaras de medo: lepra e aids. Ed. da UNICAMP, Campinas, 2000
(p.95).
87
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p. 43.
88
JOPLING, Willian. Op. Cit., p. 06.
28
Católica na formação da identidade ou identidades do Ocidente. A Europa, ameaçada
por vários inimigos, tornará o cristianismo como referencial para a formação de sua
identidade. Bárbaros, judeus, asiáticos e muçulmanos seriam, na verdade, inimigos
externos da cristandade, cumpriam o papel do outro no processo de formação
identitária. E se o cristianismo figurou como fator identitário do Ocidente, este
continha recomendações específicas para a lepra, ou seja, uma das ameaças internas
da cristandade. A religião cristã regeu a vida na Europa de forma significativamente
efetiva, tanto no âmbito do cotidiano quanto no social, instituições, leis, costumes até,
o século XVI, quando por ocasião da Reforma vive-se naquele continente o primeiro
grande repensar do Ocidente.
As doenças, a velhice e a morte foram normatizadas pela Igreja baseadas na
Bíblia, cujos costumes forjados ainda não se apagaram completamente da cultura
89
ocidental. O processo de colonização na América, até início do século XIX, iria
consolidar esta cultura em solo americano. No Brasil esta aportou, notadamente,
através dos portugueses.
O século XIX inicia um momento singular na história Ocidental, quando a
religião já bastante enfraquecida em seu poder de normatização social abre espaços
para outros saberes e grupos que chegavam ao poder a ali se alojavam. A Medicina
Social se impõe com uma nova proposta: a de implementar um saneamento social
com uma ação não só destinada àqueles que procuravam auxílio, mas também
englobar aqueles que se encontravam dispersos pelo social, intervindo em nome do
bem de todos, incluindo aqueles que terão restrições em nome da saúde pública.
Entre as inúmeras modificações que tiveram cursos no século XIX, com
relação ao fenômeno Lepra, destaca-se o processo de secularização, cujas
conseqüências e contornos mas nítidos, ainda encontram-se sendo delineados.
“A perda da fé religiosa e confessional parece vir numa segunda fase do
processo de secularização, detalhe que parece enganar o otimismo de certos
89
Adotamos o conceito de cultura de Clifford Geertz que a entende como uma “teia de significados”.
Em seu livro, sobretudo o capítulo I: “Por uma teoria interpretativa da cultura” na página 15, ele
define sua posição: “O conceito de cultura que eu defendo(...) é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado.” Na página 24 deste mesmo capítulo formula a idéia de cultura enquanto contexto. Cf.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989.
29
observadores da América Latina. O passo inicial e fundamental da
secularização é constituído pelo desvinculamento em relação a palavra de
ordem das hierarquias da Instituição Religiosa”
90
“Lembramos que a secularização significa notadamente o fim dos privilégios
da Igreja predominante em termos de regulação da sociedade civil.”
91
O fenômeno da secularização
92
, ou seja, do surgimento de uma vida
predominantemente laica, irá alterar significativamente a concepção ocidental diante
da doença e da morte. A autonomia individual frente à religião, uma das
características mais generalizadas deste fenômeno irá possibilitar mudanças
essenciais com relação à doença. A partir da Reforma, a cristandade passará a contar
com várias e não mais uma única opção religiosa, variedade de escolha que já
demostrava ser um sintoma de uma época secularizada.
“Junto com a secularização unificadora anda portanto
uma diversificação pluralista ( de religiões ) ”
93
No entanto, com a secularização, a Medicina obtém um espaço maior de
atuação. O médico com seu saber, antes subordinado à Igreja ou ao governo,
geralmente a realeza, começa agora a despontar como autoridade fundamentada e
legitimada pelo seu próprio saber, autônomo e suficiente para lhe sustentar nos postos
de poder que iria ocupar.
No Brasil, o Estado que inúmeras vezes se conciliou bem com a Igreja, irá
também fazê-lo com a Medicina Social. Esta parceria aumentaria muito o poder de
ambos, se legitimando mutuamente, e dela o Estado se utilizaria para aumentar sua
órbita de interferência junto à sociedade.
O Estado entre outras atribuições teria o poder de reter os enfermos e isolá-los
em nome do bem-estar comum, desconsiderando, inclusive, direitos básicos dos
cidadãos. Ele adquiriu a capacidade de encarcerar não somente os tradicionais
criminosos e delinqüentes, mas também, os loucos, leprosos, tuberculosos e outros
considerados infames. Exemplo dessa ampliação do poder estatal seria a polícia
90
LEPARGNEUR, Hubert. Op. Cit., p.23.
91
Idem., p.15.
92
Para LEPARGNEUR a secularização é a possibilidade de uma vida sem a forte presença dos dogmas
da igreja. Cf. LEPARGNEUR, Hubert. Op. Cit..
93
Idem., ibidem., p.16.
30
médica que daria ao Estado e seus aparatos a faculdade do uso da violência física para
impor tratamentos médicos aos indivíduos. Esse recurso à violência será muito
utilizado no início do século XX, chegando mesmo a substituir as tão solicitadas
campanhas educativas. Aliás, o sentido compreendido e aplicado do termo
“campanha” na área de saúde no Brasil do inicio deste século XX será aquele
aplicado na terminologia militar, de cruzadas e guerras contra as doenças, onde os
doentes ou “infectados” resistentes “à causa” seriam alienados e descompromissados
com a “salvação da raça brasileira”.
Quanto a área médica, conseguirá aos poucos alijar os outros grupos que
também exerciam alguma “arte de curar”. Este foi concretizado, entre outros
expedientes, através da normatização daquela prática junto ao Estado.
Mas o medo latente envolvendo a lepra não iria desaparecer com o advento da
Medicina Social e nem com a secularização. O temor da lepra permaneceria. Na
verdade, a antiga noção de pecado e punição divina aplicada à doença, onde
centralizava-se a explicação religiosa, foi substituída pela noção de contágio que,
vista a partir das metáforas de guerra, inclusive se utilizando da terminologia militar,
torna a doença um inimigo a ser combatido, capaz de liquidar com a sociedade,
causando um estado de alarde constante e um sentimento de desconforto para com a
figura dos leprosos, sobre os quais pesará a acusação de transportarem uma doença
“feia” e incurável; uma ameaça.
Certamente, as inúmeras indagações sem respostas condizentes que cercaram
a lepra durante vários séculos contribuíram para a perene mistificação que envolveu a
doença.
“Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é
ineficaz tende a ser sobrecarregada de significações”.
94
Eis aí um dos elementos chaves para compreensão do imaginário da lepra. O
“ar de mistério” que rondou a doença até o século XX. Dessa forma, junto com a
institucionalização do campo científico da hanseníase,
95
final do século XIX e início
do XX, reinstitucionalizam-se as práticas de exclusão e segregação. Porém, essas irão
diferenciar-se do que ocorria no período Medieval, na Europa, e Colonial, no Brasil,
94
SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Edições Graal, Rio de Janeiro, 1984 (p.76).
95
BAKIRTZIEF, Zoica. Op. Cit., p. 98.
31
quando apenas referendava-se o costume de colocar em trânsito o “indesejável”
leproso.
A prática de recolher os doentes em estabelecimentos é oriunda da Igreja no
período Medieval, mas a de isolar compulsoriamente pertence à Medicina Social,
ancorada pelas descobertas do agente etiológico da doença, o Mycobacterium
leprae, e da desistência de se encontrar um agente intermediário, um possível vetor
responsável pela transmissão da doença ao homem. Quando diminuíram as dúvidas a
respeito das formas de transmissão da doença, abandonando-se a possibilidade da
existência de um vetor, da mesma forma que ocorre com a febre amarela, firma-se o
ideal de isolamento como ideal de profilaxia da lepra.
O recolhimento dosa leprosos em instituições como os lazaretos, leprosarias e
gafarias na Idade Média e o confinamento obrigatório destes em instituições
concretizadas por novos saberes, como a Medicina, a Engenharia e outros no século
XX é uma continuação dos preceitos legislados no Levítico, onde indicava-se colocar
a margem os “indesejáveis” sociais.
Contudo, é possível observar uma mudança significativa, pois se na Idade
Média e Antigüidade o leproso deveria ser expulso, no início do século XX, só isso
não bastaria. O isolamento em instituições medievais obedecia preceitos religiosos de
caridade e consolação, por isso não era tão cercado de rigor. O mais importante era
colocar o leproso a margem social, conforme legislava o Levítico.
Com a Medicina Social a idéia de isolar adquire maior rigor e obedece a
princípios científicos, ou seja, envolve o temor do contágio; um mal invisível que
imigra de um homem para outro, difundindo na surdina a terrível doença. Assim,
justifica-se um isolamento mais amplo e exigente, a caça aos doentes e o esperado
consentimento, compreensão e até o auxílio da sociedade de uma forma geral e
mesmo dos dos pacientes, que deveriam perceber em sua doença uma ameaça carente
de ser controlada, para o bem de todos, inclusive o dele.
Na cidade de São Paulo, a busca dos suspeitos (os hansenianos) era
realizada em viaturas especiais, conhecidas como ambulâncias negras. Ao
contrário das ambulâncias de cor branca, utilizadas em todos os outros
serviços de saúde, o Serviço de Profilaxia da Lepra se utilizava dessa cor.
Esses veículos eram facilmente identificáveis, pois traziam grafados de
ambos os lados, e de forma bem visível, o nome de serviço e a palavra
“Lepra”. A parte traseira era inteiramente fechada e possuía apenas uma
32
porta, que era trancada pelo lado de fora, para evitar possíveis fugas dos
suspeitos.”
96
Pode-se observar que o ideal de isolamento, como forma de barrar o perigo do
contágio, foi mesmo levado a sério. As práticas médicas de confinamento causaram
uma falsa impressão de segurança, de que o mal estava no cerco das colônias,
vigiados e guardados dia e noite, “sã e salva” encontrava-se a população.
Deste modo, adoecer de Lepra era ser inscrito num “Índex Condenatório”. Era
a possibilidade do nome do indivíduo figurar na lista dos “indesejáveis”. Pois se com
as outras doenças a proximidade e afeição eram formas de melhorar o tratamento e
de se relacionar com o enfermo, com a lepra isto não ocorria.
“O mito de tuberculose constitui o episódio quase derradeiro na longa
carreira da antiga idéia de melancolia - que era a doença do artista, de
acordo com a teoria dos quatro humores. O caráter do melancólico - ou do
tuberculoso - era um caráter superior: sensível , criativo um ser à parte”.
97
“O lugar- comum que ligava a tuberculose e a criatividade era tão bem
estabelecido que, no fim do século, um crítico sugeriu que o progressivo
desaparecimento da tuberculose era responsável pelo declínio que então se
verificava na literatura e nas artes.”
98
Garantia de boa morte, doença mesmo de luxo, mal das paixões descontidas,
assim eram as associações estabelecidas em torno da tuberculose, diferentemente do
que acontecia com o câncer e a lepra. Câncer, doença, terrível. aniquiladora, pior do
que ela era o próprio tratamento. Lepra, doença “feia”, repulsiva, intimamente ligada
as concepções de sujeira e pecado, a qual se conferia pior estatuto.
“A lepra, em seu apogeu, suscitou um horror igualmente desproporcional.
Na Idade Média, o leproso era assunto social em que a corrupção vinha à
tona; um caso exemplar: um símbolo da decadência. Nada é mais punitivo
do que atribuir um significado a uma doença quando esse significado é
invariavelmente moralista.”
99
96
MONTEIRO,Yara Nogueira. Op. Cit., p.221.
97
SONTAG, Susan. Op. Cit., p.43/44.
98
Idem ., p.44.
99
Idem., ibidem., p. 76.
33
“Em matéria de tratamento, o leproso medieval levava a pior, ao passo que
o tuberculoso rico, séculos depois, podia usufruir viagens a países de
agradável impacto.”
100
O estatuto de especialidade e especificidade da lepra não desapareceu com o
advento da Medicina Social. Mesmo com o uso das práticas médicas de confinamento
se estendendo a outras doenças, como a loucura, a tuberculose e outras, a lepra
continuaria digna de menção especial. Dissolvê-la juntamente com outras doenças
não era um dos pontos colocados em discussão até meados da década de 60 do século
XX.
Entretanto, se a diminuição da epidemia de tuberculose foi até relacionada
com o declínio das artes e literatura, certamente um possível fim da endemia
hansênica não receberia tão ilustre associação. Ninguém deixaria de avisar às
autoridades a respeito da existência de um leproso nas proximidades. O que permeava
estas atitudes de “prompto agir” era a tônica do medo redimensionada nos diversos
costumes observáveis desde a Antigüidade. Com isso não se quer dizer que os
discursos e comportamentos eram idênticos aos antigos. Os momentos históricos
guardam suas singularidade e contextualizações próprias, no entanto, conceitos
solidamente arraigados, mesmo reelaborados, permanecem no imaginário ocidental a
respeito do doente de lepra.
No decorrer da história logrou-se produzir concepções ainda mais punitivas
sobre as doenças e suas relações com possíveis infortúnios entendidos como de
inteira responsabilidade do próprio enfermo. Na busca árdua de culpados pelas
doenças tornou-se mesmo mais fácil culpar o próprio doente, eximindo a sociedade
de qualquer responsabilidade.
Deixar de considerar a doença como um castigo adequado ao caráter
moral objetivo, dela fazendo uma expressão da individualidade interior,
poderia parecer menos moralista. Mas esses pontos de vista acabam por ser
tanto ou mais moralistas ou punitivos. Com as doenças modernas, a idéia
romântica de que a enfermidade exprime o caráter é invariavelmente
ampliada para afirmar que o caracter é a causa da doença - porque não se
exprime por si só. A paixão volta-se para dentro golpeando e destruindo os
mais profundos recessos do organismo.”
101
100
LEPARGNEUR, Hubert. Op. Cit., p. 137.
101
SONTAG, Susan. Op. Cit., p. 60/61.
34
Revendo, desta forma, o desenrolar de como procedeu-se com a lepra desde a
antigüidade, verifica-se alguns pontos relevantes numa análise que aqui se pretende
executar. Esta doença quase sempre figurou como oriunda de alguma mazela social e
mesmo individual. Historicamente a lepra esteve relacionada com as noções de
pecado e corrupção. “É o próprio homem enfermo que cria sua enfermidade.”
102
Contudo,
se o antigo “tsara’ath” não era a atual hanseníase e as prescrições do Levítico não se
referia a esta doença, essa é uma questão secundária para a história da lepra, pois no
decorrer dos séculos que se seguiram, a atual hanseníase e o “tsara’ath” se
convergiram até fundirem-se numa só; a lepra figurou impura e suja e assim chegou
até a atualidade.
Dos preceitos “levitiquianos” surgiram reelaborações que não se limitaram
exclusivamente a lepra, sendo mesmo estendidas a outras doenças
103
, a tuberculose, a
loucura, através das futuras práticas médicas de confinamento como forma de
controlar agentes patológicos, eximindo a sociedade de “ameaças” danosas.
Houve, porém, num período recente, a crença de que o imenso resíduo de
estigmatização da lepra residiria em torno do nome da doença. Estas concepções
ocasionaram um movimento no Brasil de substituição da nomenclatura da doença de
lepra para hanseníase que, em 1995
104
, foi objeto de lei específica, formalizando
através de documento legal essa alteração.
Embora seja extremamente válida tal opção e atitude, com a qual, sem dúvida
nenhuma, deve-se colaborar e endossar, verifica-se que uma possível remoção dos
preconceitos e acepções estigmatizatórias, que até hoje envolvem a doença,
necessitam mais do que a simples mudança de nome. O momento histórico dessa
alteração, década de 70 do século XX, reflete um período tenso na área da hanseníase,
quando pipocavam muitas críticas ao isolamento e reformulava-se a postura
governamental.
102
Idem., p. 60.
103
ORNELLAS, Cleuza Panisset. Op. Cit..
104
BRASIL - Lei Federal n.º 9.010 de 29 de março de 1995. Publicada no Diário Oficial da
União(DOU), coluna II, página 004509. Originou-se do projeto de lei n.º 1624 de 15/08/1991 da
Câmara dos Deputados (no Senado projeto n.º77 de 1994) de autoria do Deputado Elias Murad do
PSDB/MG.
35
“Nesse contexto, a alteração da nomenclatura oficial a essa enfermidade
também deve ser citada como detentora de dois sentidos: um explícito em
termos ideais e de difícil contabilização de resultados - reduzir o estigma
social associado a doença; e outro, não formulado, porém melhor
capitalizado pela rede de Saúde Pública - cooptar apoios e legitimar
sua intervenção social.”
105
Dessa forma, mesmo com o desejo do pensamento positivista em reduzir o
fenômeno do adoecimento a apenas seus aspectos físicos e biológicos, verifica-se que
com a hanseníase tal projeto ainda não conseguiu se efetivar. A lepra era importante
demais para ser diminuída, reduzida e dissolvida em meio as outras doenças.
Com relação ao estigma, a substituição do nome é uma medida que não
oferece dúvida nenhuma quanto ao seu alcance limitado. Para ilustrar tal fato
podemos lembrar do ocorrido com o senhor Francisco de Oliveira, de 61 anos,
residente no Estado do Ceará. No início do ano de 2000 ele foi até a Secretaria de
Segurança Pública daquele Estado, solicitar uma segunda via de seu documento de
identidade, que se encontrava em péssimo estado de conservação. Isto constituiu-se
no suficiente para a discriminação explícita deste ex-hanseniano, curado há mais de
40 anos. O funcionário do órgão recusou-se a tocar no senhor Francisco e
datilografou em seu novo documento, no local onde deveria constar suas impressões
digitais: “ausência total de impressão digital”, o que não é verdade. O caso ganhou a
imprensa e foi até noticiado pelo Jornal Nacional da Rede Globo de televisão, quando
então o Ministério da Justiça determinou a expedição imediata de novo documento do
senhor Francisco.
106
Certamente o que fez o funcionário agir desta forma, além de
desconhecimento a respeito da doença, foi o fato de ter-se reportado as velhas
associações ligadas a lepra.
Assim, o fenômeno lepra não pode ser abarcado e trabalhado satisfatoriamente
somente com o uso da conceituação de doença. Por doença tende-se a compreender,
recentemente, o conjunto de fatos e ocorrências que envolvem certas manifestações
de não-saúde, distúrbio biológico ou psicológico passível de tratamento com cura
105
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira et alli. Hanseníase: A lepra sob a mira da lei. In: Revista do
Instituto Adolfo Lutz, São Paulo, Vol 48, nº ( 1/2), 1988 ( p.35).
106
Jornal do MORHAN - A cidadania recuperada - ( editorial) . Março/abril, nº 03, 2000 ( p.03).
36
satisfatória, ou apenas atenuação dos sintomas considerados desagradáveis, podendo
ainda chegar até o falecimento.
107
Para a lepra, talvez o conceito mais adequado seria o de uma enfermidade
sócio-cultural, uma vez que os fenômenos físicos e biológicos ocasionados pelo
Mycobacterium leprae nunca estiveram, e ainda não estão, desacompanhados de
inúmeras representações e de um imaginário intensamente cultivado no Ocidente
cristão. No Brasil, pelo menos até a década de 70 do século XX, estes foram
reforçados e revitalizados durante o período em que se buscou centrar a profilaxia da
lepra no uso do isolamento. Essa companhia inseparável da doença era, por
excelência, fonte de legitimação das ações estatais, então, praticadas. A lepra, e
talvez a hanseníase, não seria passível de ser reduzida a uma doença e seus sintomas
físicos descoladas de seus sentidos estigmatizantes. É o que demonstra o ocorrido
com o senhor Francisco. Trata-se a lepra de uma enfermidade sócio-cultural. Alguns
autores a denominam de doença social
108
. No entanto, este conceito encontra-se
suficientemente abrangido e contemplado na diferenciação estabelecida entre
enfermidade e doença. Não se deve esquecer que os serviços de saúde no Brasil têm
encontrado dificuldades para lidar com a doença ainda na atualidade. Para os
acometidos desse mal, no decorrer da história, verifica-se ter sido mais cruel o
estigma do que a própria doença.
Essa dupla conceitual; enfermidade/doença, vem sendo utilizada também em
pesquisas que objetivam estudar a subjetividade ligada ao ato do adoecimento e as
relações estabelecidas pelas pessoas perante as ocorrências de desagravos à saúde.
Verifica-se que doenças como hanseníase, câncer e aids, amplamente revestidas de
significados negativos encontram mais obstáculos ao tratamento. Há estudos que
apontam preconceitos e atitudes estigmatizantes de ambos os lados, tanto por parte do
paciente quanto dos serviços de saúde.
O conceito de enfermidade englobaria o de doença, porém sem ele não se
sustentaria. Enfermidade seriam aqueles “males’; lepra, tuberculose, câncer, aids que,
por inúmeras razões, se revestiram de memórias e mitos norteadores das ações e
reações tanto individuais quanto sociais.
107
CLARO, Lenita B. Lorena. Hanseníase: representações sobre a doença. Editora Fiocruz, Rio de
Janeiro, 1995( p.17); TRONCA, Ítalo A. Op. Cit., Introdução; HEGENBERG, Leonidas. Doença: um
estudo filosófico. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 1998.
37
Todavia, se o objetivo maior da mudança do nome da doença, de lepra para
hanseníase, era retirar-lhe as representações da enfermidade, tão louvável pretensão,
ainda de difícil avaliação, aguarda por ser conhecida e melhor avaliado os seus
resultados. Até o presente ainda é possível colecionar casos de estigmatização e
mesmo dificuldade de procura e adesão ao tratamento da doença.
No caso específico da hanseníase, doença oriunda das perturbações causadas
pelo mycobacterium leprae, não tem conseguido efetivar seu divórcio com a velha
lepra, enfermidade proveniente das mais antigas tradições discriminatórias e
estigmatizantes adquiridas por herança de vários povos, entre eles os mais antigos da
região do Oriente Médio, Ásia e África. Esta, percebida socialmente como
indesejável, certamente se consolidou no tempo com o uso do recurso de despertar o
temor e o receio, em suma, de transitar disfarçada portanto as máscaras do medo
109
.
1.3 Leprofobia social: a memória mítica da lepra
Tenho uma vizinha que é leprosa, ela diz que já foi e sarou, mas eu não
acredito e nem tenho amizade com ela”
110
“A leprofobia atinge, imagine-se, até mesmo os médicos leprólogos. E, mais
do que isso, é entre êles comum.”
111
As narrações orais populares que envolvem a lepra, os sofrimentos dos
acometidos, notadamente no período em que se praticava o isolamento, a longa
tradição de incurabilidade só recentemente debelada, o insistente desprezo social
praticado com os hansenianos, a segregação e mesmo a expulsão simbólica realizadas
durante séculos, terminaram por compor um mosaico aterrorizante que ascende numa
escala que vai do simples receio, passando por um medo fugaz, ao terror social,
filtrado como possibilidade efetiva da instalação da doença, chegando mesmo às
fobias de lepra.
108
CLARO, Lenita B. Lorena. Op. Cit., p. 32.
109
( Cf. TRONCA, Ítalo A.. Op. Cit..).
110
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p.91.
111
DINIZ, Orestes. Nós também somos gente: trinta anos entre os leprosos. Rio de Janeiro, Livraria
São José,1961 (p.215).
38
A lepra constituí-se em uma doença fecunda para despertar tais sentimentos.
Compreendida como hedionda, antiga, incurável, desconhecida, ligada ao campo
religioso através das noções de pecado, impureza e sujeira logrou poder tecer extensa
e densa rede de significações, onde o medo, em suas variadas formas, encontra
estímulos para inúmeras manifestações:
“A origem dessa psicose, que às vêzes assume caráter de indissimulávell
gravidade, vem mais da concepção deformada acêrca do mal (da lepra) do
que mesmo do mêdo razoável que todos dela devem ter.”(sic)
112
Medo, religiosidade e repugnância foram elementos que quase sempre
estiveram associados à lepra. Uma dos males mais antigos da humanidade, teve a
oportunidade de transitar em diversos períodos e diferentes povos, sendo por isso a
ela acrescentado, no decorrer de todo este tempo e vivência em diversos lugares,
variadas interpretações que terminaram por lhe impregnar, dando-a uma consistência
diferenciada.
Mas a lepra também figura ou figurou entre as doenças infames
113
, ou
malditas, como a sífilis, a varíola, às quais se deveriam reservar tratamento não só
físico como também morais e religiosos. No caso da varíola, por exemplo, o culto
afro-brasileiro invocava a divindade Abalaú-aiê, correspondente a São Sebastião, para
afastar a doença.
Igualmente antiga, como mal conhecida e temida, a lepra no Ocidente
constituiu uma página da história reservada as possibilidades de construção de
comportamento diferenciados para aqueles indivíduos que viriam adoecer.
No entanto, assim como existem variadas doenças e variadas concepções
sobre estas, também existiu e existem diferenciados doentes. Todos os homens, assim
como todos os povos, conheceriam as amarguras provocadas pelo acontecimento da
doença. E se adoecer constitui um acontecimento na vida dos homens, assim como
dos povos, que geralmente procura-se esquecer, nem todos os doentes podem fazê-lo,
mesmo quando se esforçam para tal. As doenças são geralmente lembradas pelos
constrangimentos que causam, pelas restrições impostas ao doente e àqueles que o
cercam, das mudanças que provoca na vida das pessoas, desde os hábitos até as
112
Idem.p.209.
113
ORNELLAS, Cleuza Panisset. Op. Cit., p.29.
39
dificuldades financeiras, muitas vezes áridas para todos os envolvidos. Muito do
cerne que alimenta a venda de planos de saúde na atualidade consiste na concepção
de se estar prevenindo quanto a embaraçosas situações financeiras, quando da
ocorrência do adoecimento de algum dos membros da família. Uma espécie de
garantia de atendimento e resolução dos infortúnios nos momentos tensos e
emergenciais em que geralmente se desenrola a enfermidade.
Portanto, conforme a doença é que se dá a reação social, o conjunto de
significados acionados. Assim, a doença ocupa o lado “sombrio” da vida, conforme
Susan Sontag.
“A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais
onerosa. Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da
saúde e outra no reino da doença.”
114
Mas, se a certeza de adoecer é tão grande quanto a da morte, nem todos
sofrem com igual intensidade, inclusive quando acometidos da mesma doença. As
pessoas com melhores condições financeiras geralmente são menos expostas a
situações desagradáveis. No entanto, ricos e pobres não escapam das doenças
infames, lepra, sífilis e, recentemente, a aids, ainda que os sofrimentos ocasionados
por estas sejam mais presentes para as pessoas menos abastadas. Por outro lado,
Hubert Lepargneur fala do prazer em adoecer e da possibilidade de confortar-se com
sua doença sem masoquismo:
“Num sentido negativo e atenuado, a satisfação na doença significa o prazer
de receber ,atenções não costumeiras, de mandar sem esforço nem
resistência, em vez de executar ordens alheias ( de se ficar isento), de
receber visitas, de ser ouvido, atendido, poupado, minado, nunca
contradito.”
115
Mas, se a doença pode ser uma forma de poupar-se do trabalho para os
operários, de ir a escola para estudantes, ocasião em que se recebe tratamento especial
e diferenciado, no sentido confortante que o termo comporta, é obvio que doenças
como a lepra e a aids ou o Ébola, nos recentes surtos ocasionados na África,
igualmente se dispensa tratamento especial e diferenciando, no entanto, não no
sentido confortante do termo, mas impingindo ao doente motivos para segregá-lo e
isolá-lo. Mesmo assim, existiram situações no passado europeu em que outros
114
SONTAG, Susan. Op. Cit., p. 07.
40
marginalizados e infelizes, prejudicados pelas épocas de calamidade, não se
importaram de figurarem como leprosos, mesmo não o sendo, com o intuito de
socorrer às necessidades básicas da vida, ou escapar de tragédias:
Durante as crises de fome e peste que assolarem a Europa medieval,
pessoas procuravam passar por leprosas para obter o direito ao ingresso
num leprosário. Isto deve-se ao fato de muitas dessas instituições possuíam
suas próprias terras e rendas, o que garantiria o sustento de seus
internados.”
116
No entanto, uma situação que nos parece absurda na atualidade, preenche-se
de significado quando vista a partir do contexto em que ocorrerá. As pessoas acima
citadas preferiam morrer de “lepra, isto é, antes leproso do que morto de fome.
Em suma, havia e há doenças discretas, conforme relata Hubert Lepargneur, e
mesmo convenientes. Observa-se que até a lepra se revestirá de conveniências para
alguns grupos no decorrer da história. É o caso já citado da caridade para os leprosos,
que abrigava duplo sentido, de consolar os lazarentos na sua vida de aflição e para os
benévolos forjar um lugar ao céu, exercitando a bondade como forma de salvação.
Contudo, uma pessoa “sã”, entendida como doente, poderia igualmente
receber o tratamento adequado, isto é, aquele estabelecido socialmente para com os
doentes. É o que relata Orestes Diniz neste interessante flagrante:
Manuel Português
Foi em Rio Raso, minúscula cidade que dormitava na sua tranqüilidade
permanente, à margem de um pequeno rio sinuoso. O casario branco, de janelas pintadas de
azul, se dispunha pela rua principal, espremida entre a montanha e o rio, numa regularidade
monótona. Apenas cinco ou seis edifícios de dois pavimentos, dispostos a espaço, quebravam
a uniformidade, anunciando já ali a penetração do progresso, à custa da produção do café
que era a principal fonte de riqueza da região.
Desde que cheguei para desempenhar-me da missão de que estava investido,
fui recebendo repetidas denúncias de que Manuel Português, rico proprietário do único
bazar da localidade, era suspeito de lepra. Não saía de casa, certamente para não ser
observado. Apresentava lesões de lepra nos braços, tanto que nunca andava sem paletó.
Também no rosto, parecia que a doença já começava a se manifestar. De quando em vez ia à
capital, consultar conhecido especialista. Ao lado disso, falava de seu gênio irascível, da sua
violência, do perigo a que se expunha quem com elê tratasse do assunto. E, solícito
apresentava sugestões:
_ Se o senhor quiser examiná-lo, convém pedir o auxílio da polícia. Será
mesmo melhor mandar chamá-lo na delegacia.
115
LEPARGNEUR, Hubert. Op. Cit., p. 93.
116
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.23.
41
Eu ouvia tudo. Não acedia a nada. Não dava qualquer opinião e,
silenciosamente, ia traçando o meu plano de ação para resolver o caso.
Numa tarde, quando todos supunham ter eu renunciado ao objetivo de
examinar o Manuel Português, dirigi-me resoluto para sua residência.
Morava no último sobrado da rua principal, na parte mais baixa da cidade.
Aproveitei um momento propício em que parecia não haver mingúem nas proximidades, para
rápidamente penetrar pelo portão da casa. Subi a escada externa de acesso ao segundo
pavimento e bati palmas, chamando. Ouvi passos fortes e alguém, do lado de dentro, torcer a
maçanêta da porta, entreabrindo-a a seguir.
Deparou-se me, então, um tipo de homem robusto, fisionomia pálida, barbas por
fazer, sobrancelhas grossas, aspecto rude. Olhava-me fixamente, interrogativamente, sem
dizer uma palavra. Estremeci ante tal atitude. Pensei em recuar, em gritar pedindo auxílio.
Manuel Português continuava mudo, quieto, com a mão esquerda ainda segurando a
maçanêta e a direita apoiada fortemente ao portal. A mesma lividez da face, o mesmo olhar
penetrante, a mesma recepção acintosa. Disse -lhe então, timidamente o meu objetivo:
-O senhor é Manuel Português?
Não houve resposta alguma; apenas os seus olhos me mediram de alto a
baixo, numa expressão de desdém. Expliquei-me, então, ao que vinha;
-Sou médico de Saúde Pública. Estou visitando êste município. Já percorri
inúmeras casas da cidade e já fui a varias fazendas. Recebi ordens para êste trabalho. Aliás,
é um trabalho no qual ponho todo segrêdo. Tanto que estou só - e dos exames que faço não
dou conhecimento a ninguém. Vim a sua casa porque determinaram que eu o viesse visitar e,
se possível, examiná-lo.
-Entre!
Foi a palavra, ou melhor, o grito, a ordem de Manuel Português, enquanto
recuava ligeiramente, num gesto rápido, para me permitir passar. E, em, seguida, bateu a
porta com violência.
-Venha!
Assim chamou-me, caminhando estrepitosamente pelo longo corredor que
levava aos fundos. Entrou num quarto, à esquerda, e fechou a porta, estouvadamente,
trancando-a a chave. Eu o havia seguido com um autômato, sem dizer palavra. Procurava,
no entanto, observar o interior da residência, na esperança de encontrar alguém, algum
outro morador, qualquer pessoa da família dotada de ponderação e que me auxiliasse a
vencer a brutalidade daquele alucinado. Confiava, ainda, em que a minha boa estrêla havia
de surgir para impedir a agressão que me parecia iminente.
No meio do quarto, Manuel Português, com a mesma dureza no rosto,
começou a despir-se para o exame, ou melhor, começou a arrancar as peças do vestuário - o
paletó, a camisa, a calça, jogando-as desordenadamente numa cama.
Depois de completamente despido, virou -se para meu lado e, àsperamente,
exclamou:
-Examine!
Descansei, então, minha maleta numa cadeira e respondi-lhe,
tranqüilamente:
-Não. Não o examinarei. A minha missão é médica e como médico, exijo que
o senhor me respeite e me receba com a consideração a que tenho direito. O senhor está
sendo profundamente grosseiro. Precisa raciocinar e compreender que aqui estou como
delegado pacífico da Saúde Pública. Fui enviado em nome dos interêsses da coletividade e
do seu próprio, para elucidar uma denúncia. Eu poderia usar da faculdade concedida pelo
regulamento e providenciar o seu exame compulsório, à fôrça, se preciso fôsse. Mas não.
Preferi desempenhar-me da tarefa, sozinho, sem trazer um simples auxiliar. A sua recepção
não correspondeu `a minha atenção. Portanto, o seu exame fica para outra vez. Voltarei
quando mudar de atitude e, espontâneamente, me mandar pedir que venha vê-lo. Passe bem
até à vista!
42
Peguei a valise e disse-lhe ainda:
- Abra a porta. Vou retirar-me.
Houve então uma transmudação que foi a rendição definitiva. Manuel
Português humanizou-se e procurou explicar-se:
- Doutor, me perdoe. Nada tenho contra o senhor.
Estou cansado de sofrer perseguição dos meus inimigos. Eu sei que foram
eles que o mandaram aqui. Não é a primeira vez. Vieram me injuriando. Vivem tornando
atroz a minha vida. Invejam a minha prosperidade e temem a minha riqueza. Não toleram a
minha família. Quero que me examine e submeto-me a todas as provas. Peço-lhe, apenas,
que depois divulgue o resultado. Sei que isto não bastará para cessar a perseguição, mas é
possível que eles passem a usar novos métodos menos penosos.
Compadeci-me do Manuel Português que falava em tom de real sinceridade
e ao peso de grande sofrimento. Fui compassivo e paciente. Expliquei-lhe que me encontrava
estranho a qualquer trama. Ninguém saberia, ao menos, que eu ali estivera.
Uma hora durou o exame clínico, procedido com requintes de minúcia. Colhi
material para pesquisa de laboratório e fiz, com calma, a anamnese do paciente.
Antecipei-lhe a impressão de que não apresentava sintoma algum de lepra,
resultado que foi corroborado mais tarde pelas investigações de laboratório, o que me
permitiu enviar-lhe um atestado, visado pelo chefe de Serviço.
Quando deixei a casa de Manuel Português, convicto da maldade de seus
inimigos e da ousadia dos que envolveram no caso, eu havia perdoado as grosserias
recebidas e levava uma boa impressão daquele homem.
Ao chegar à rua se me deparou, com a revolta, na esquina, um grupo de
curiosos que me aguardavam.
Não sei como, alguém me viu subir as escadarias do sobrado. A notícia
correu e logo foi ajuntado gente que queria saber o resultado que tanto poderia ser a minha
descida aos pontapés, quanto a volta trazendo-lhes alguma notícia que lhes satisfizesse os
desejos malsãos.
117
Nada mais eficiente para arruinar a fortuna do inimigo de profissão
comerciante, do que rotulá-lo de leproso. Inscrever o seu nome no “Índex
Condenatório” da Lepra. Quem teria a coragem de fazer compras na mercearia ou
bazar do leproso? Quem se arriscaria para contagiar-se com hediondo mal?
Certamente os inimigos do Manuel Português sabiam que não conseguiriam provar
ser ele um leproso. Mas, talvez, nem isso fosse necessário, bastando apenas que ele
figurasse como tal. Pois, mais importante do que ser efetivamente um leproso era ser
assim considerado, este para seus inimigos satisfaziam suas expectativas, o fato de ter
ou não a doença era secundário. O objetivo maior era espantar-lhe a freguesia e
arruinar sua propriedade. Neste sentido, é que ele disse ao médico antevendo o que
estava sendo tramado: “submeto-me a todos os exames e provas contando que
divulgue os resultados.”
118
117
DINIZ, Orestes. Op. Cit., p. 26/29. O autor não esclarece mais detalhes.
118
Idem., p. 29.
43
Mas, se os discursos que rodeiam certas doenças são diferentes e mesmo
piores do que elas, alguns pontos de exploração aqui merecem comentários. Primeiro
nem todas as doenças mereceram tais discursos; segundo, algumas delas, ao
contrário, tiveram discursos e imaginário atenuadores dos seus males que eram,
muitas vezes, letais, como ocorria com a tuberculose. E outras, não foram alvos de
discursos, nem terríveis nem atenuadores. A tuberculose era mesmo terrível, no
entanto, pior era a lepra, que nunca conhecera nenhuma adjetivação positiva ou
atenuadora.
Desta forma, a lepra vem sendo regida por duas formas de percepção
delineáveis, que se acrescentaram e se reforçaram mutuamente. São as representações
de origem religiosa, estas oriundas da antigüidade, redimensionadas pela tradição
judaica-cristã e as representações de ordem secular, provenientes do século XIX,
ligadas ao campo da medicina. Muitas das concepções seculares de se ver e encarar o
mundo irão se contrapor as representações religiosas, outras irão se legitimar
mutuamente. É o caso citado por Susan Sontag, onde a idéia de que psicologicamente
o doente é responsável pela sua doença, possibilita analogias com a idéia do pecado
enquanto responsável pela etiologia das enfermidades, ou seja, um mesmo princípio
referendado por dois discursos.
119
Os leprosos seriam terríveis por que com sua
doença expiariam pelos seus pecados e por que contaminam, a todos com sua doença.
No entanto, com o intuito analítico é possível separar as representações de
origem religiosa e secular, o que socialmente não ocorria, operando-se uma mistura
das duas. Na lida com a lepra não houve um conflito entre as idéias provindas da
religiosidade com as da Medicina Social, para ambas ela permaneceria terrível e
carente de medidas drásticas frente a um mal que ainda hoje guarda mistérios.
É neste sentido que se tem procurado nesta pesquisa optar pelos conceitos de
estigmatização e segregação, ao invés de preconceito e discriminação. Esses últimos
estão intimamente ligados a idéia de se praticar alguma ação inadequada para com
pessoas compreendidas como não merecedoras de tal tratamento. A segregação dos
leprosos era uma prática entendida como correta, aceita normalmente e, inclusive,
normatizada, primeiro pela religião durante vários séculos e segundo pela medicina.
De medo dos pecadores castigados a doentes perigosos que contagiam, colocava-se
119
SONTAG,Susan. Op. Cit., p.61/71/73.
44
junto com essas práticas de interpretação os respectivos comportamentos de
estigmatização e segregação. Ninguém sofreria repreensão ou críticas por isolar um
leproso, ou por se recusar a tocá-lo por suprimir-lhes as ligações afetivas e familiares,
estes eram comportamentos “normais” que se inseriam socialmente de forma
normatizada e ali encontravam amplo apoio e sedimentação.
Preconceito e discriminação para com os hansenianos seriam atitudes
recentes, pois apenas há poucos anos o leproso emergiu como paciente com
personalidade digna de consideração, suas opiniões há bem pouco, em se tratando da
história, vêm sendo respeitadas, mudança esta que tem se dado com inúmeras e
graves retrocessos. A religião e a medicina foram os eixos clássicos para se pensar a
lepra. A questão do doente enquanto indivíduo portador de direito inalienáveis é bem
contemporânea. Em suma, só recentemente é que passou-se a enxergar no velho
leproso um ser humano.
Nesta acepção é que atualmente, quando um hanseniano recebe os tratamentos
antigos que lhe eram destinados, pode-se dizer que ele está sendo discriminado e
vítima de preconceito, o que também vem ocorrendo com os aidéticos. A percepção
destes enquanto preconceito/discriminação e não estigma/segregação só se torna-se
possível a partir do momento em que os conteúdos das antigas práticas começaram a
serem revistos, eclodindo nessas novas formas de agir: “Hanseníase: uma doença
igual as outras.”
120
Há uma diferença significativa entre esses dois momentos históricos. Da mais
remota antigüidade até meados da década de 60 do século XX, veiculava-se inúmeros
discursos instituidores da estigmatização e segregação dos leprosos. Na atualidade,
estes só ocorrem raramente e são frutos das iniciativas de agentes isolados,
desprovidos de conhecimentos sobre esta doença. Isto significa que os
comportamentos antigos praticados com os hansenianos nos dias de hoje,
demonstram a sobrevida do estigma e da segregação, onde encontram um ambiente
“hostil” com parcos apoios e são publicamente condenados, inclusive, pela Igreja e
Medicina; antigos fomentadores destas práticas. Só recentemente é que se forjou
subsídios para se pensar os indivíduos atingidos pela hanseníase como pessoas e não
reduzi-los à figura do velho e asqueroso leproso. Hoje sim, quem se recusa a se
120
Cf. LANA, Francisco Carlos Félix. Políticas Sanitárias em Hanseníase: história social e a
construção da cidadania. (Doutorado em Enfermagem), EERP/USP, Riberão Preto, 1997.
45
relacionar com um hanseniano está tendo para com ele uma atitude de preconceito e
discriminação.
Eis aqui uma grande diferença, a figura humana do doente emerge e passa a
ocupar lugar na profilaxia de lepra. Essa talvez tenha sido a grande mudança
observável com relação à doença, além das descobertas médicas de tratamento,
medicamentos e dos recentes avanços no conhecimentos da imunogenética; a grande
virada pelo menos desde o início da era cristã. Não se justificaria mais toda sorte de
expedientes, inclusive considerados inadequados a outras doenças, somente apelando-
se e legitimando-se no fato de ser o enfermo acometido de lepra. Estas mudança
localiza-se dentro de um quadro mais amplo, ocorrido em decorrência dos
movimentos sociais de lutas pelos diretos humanos. Do ente ameaçador e pecador da
antigüidade e medievalidade européia, ao perigo ameaçador de portar um mal
contagioso de século XlX e XX, chega-se a encará-lo na atualidade como pessoa
atingida pela hanseníase.
Quanto ao posicionamento do Estado Brasileiro, este engrossaria as fileiras
desta tendência, não em prol da defesa dos direitos dos hansenianos, mas pelo fato do
tratamento ambulatorial, em unidade de saúde geral, ser mais barato e permitir
significativa diminuição das despesas estatais através do desmonte das onerosas
instituições de isolamento
121
.
Contudo, um projeto historiográfico sobre a lepra é muito amplo e
heterogêneo. “A história da lepra” abrigaria os diversos aspectos relacionados com a
doença, ou seja, este vasto leque que esta pesquisa vem denominado de fenômeno
sócio-cultural. Atrás da palavra lepra todo um universo, um outro mundo,
identificado a partir deste termo ao longo de inúmeros séculos, geralmente
negligenciado, onde habitaria pessoas e situações historicamente entendidas como
“indesejáveis”.
Mas a lepra sempre esteve acompanhada. Há mesmo uma memória
122
e uma
vasta mitologia que lhe cortejaram e constituíram seu séquito inseparável. Estas
121
Este assunto será melhor abordado e pormenorizado no capítulo III.
122
Sobre memória ver: BURKE, Peter. História como memória social. In: Variedades de história
cultural. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2000(pp.69-89); SEIXAS, Jacy Alves de.
Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica. In: História:
questões e debates. Curitiba , Ed. da UFPR, Ano 17, n.º 32, Jan/jun de 2000(pp.75-95); NORA,
Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto história. PUC/São Paulo, n.º
10, dez/1993(pp.07-28); GANDON, Tânia Risério d’Almeida. Entre memória e história: tempos
46
foram forjadas tanto dentro do ambiente religioso quanto secular. No entanto,
convergiram-se e terminaram por caldear-se numa ampla significação para o
fenômeno : “lepra”, tornando-se uma só, a memória mítica da doença.
E pior do que os constrangimentos físicos impostos pela doença são as reações
dirigidas aos “leprosos”, cujas orientações são buscadas, referendadas e endossadas
por essa memória mítica. “Sãos”, “enfermos” e sociedade nela encontram respostas
paras as dúvidas de como proceder em se tratamento de lepra.
“Parto do principio de que, evidentemente, nem tudo é ‘construção’ ou
representações no reino dos fenômenos interpretados como doenças. Eles
existem independentemente do que pensamos ou imaginamos em torno deles.
O que não surge de nenhum modo como evidente, porém, é que, coabitando
com esses sintomas físicos percebidos por nós como doença, fazendo parte
de sua própria natureza, existe uma contraface cultural, simbólica, que
assume freqüentemente a forma de alegoria - que constrói e reconstrói as
imagens de doença, cujos desdobramentos mal podemos avaliar.”
123
Contudo, se a lepra não tem trafegado sozinha no decorrer da história,
conhecer as razões destas insistentes companhias permanecem um desafio. Dizer que
se trata apenas de uma questão estética, já que a aparência dos enfermos geralmente
foi compreendida como “desagradável” é somente uma parte da resposta. A questão
cultural, como longa e duradoura interpretação, extremamente urdida e arraigada no
ocidente seria uma outra explicação. Se estas duas hipóteses respondem
satisfatoriamente a questão, ainda persistem resquícios de dúvidas. Abra-se a
possibilidade das coletividades necessitarem de entes passíveis de serem
responsabilizados pelos acontecimentos considerados trágicos, entre eles as doenças.
De processos como esses é que seriam oriundos as memórias míticas européias a
respeito dos judeus, muçulmanos e leprosos onde estes figurariam como responsáveis
por pestes, períodos de fome, naufrágios e tempestades, ou seja, convertendo-os em
legítimos “bodes expiatórios”.
Ao se estudar a história dos grupos marginalizados, observa-se que, com
freqüência, os ‘leprosos’ eram acusados de algum mal, figurando como uma
espécie de bode expiatório.(...)A queima e perseguição de pessoas
identificadas como sendo portadoras de 'lepra' pode ser atribuída a uma
série de fatores, porém cabe assinalar que não se tem registro de queima de
múltiplos de um discurso a muitas vozes. In: Projeto História. PUC/São Paulo, n.º22,
jun/2001(pp.139-155).
123
TRONCA, Ítalo Arnaldo. Op. Cit., p. 16.
47
tuberculosos evidenciando, portanto, que a “lepra” não era vista apenas
como uma doença grave, temida ou fatal. Mais do que isso, ela prende-se a
toda uma herança milenariamente arraigada no inconsciente coletivo da
ocidentalidade cristã.”
124
Na Europa do século XIV, acreditava-se que as desgraças que afligiam a
população poderiam ter sido motivadas pelos leprosos. Estes realizariam pactos com
o demônio para se capacitarem na prática de sortilégios diversos e outros malefícios,
entre eles a propagação das doenças, inclusive a lepra e as epidemias de peste. Na
península Ibérica os leprosos foram acusados de conspirarem contra os reinos cristãos
aliando-se aos mouros de Granada e Túnis em troca de regalias após a invasão.
Em 1321, na França, uma série de boatos que circulavam com o endosso da
Igreja encontraram eco na população que, enfurecida e atemorizada, perseguiu e
queimou 600 leprosos em um só dia no Languedoc, região sul daquele país, mais 45
no período de um mês na jurisdição de Uzerche. Este ano ficou conhecido como
“Combustio leprosum”. Em 1322, Carlos IV, o Belo, rei da França, ordenou o
encarceramento em massa de leprosos e em 1371, Carlos V, o Sábio, os expulsou de
Paris.
Em Londres, no ano de 1326, a população enfurecida em um processo similar
ao ocorrido na França, perseguiu e vitimou centenas de leprosos, neles percebendo a
causa de ocorrências trágicas e em 1346 foi ordenada a prisão de todos os leprosos
errantes.
125
Assim, essas representações que acompanham a lepra, tornando-a uma
enfermidade social e cultural, vem ao longo dos séculos se perpetuando tanto em
forma de memória; viva, oral, dinâmica, constantemente reelaborada, quanto em
forma de uma mitologia, oferecem sentido e subsídios para que as pessoas possam
compreender os fenômenos e a realidade que as cercam, no caso o ato de adoecer de
lepra. Assim, a companhia inseparável da lepra não caracteriza-se apenas por uma
memória, nem apenas por uma mitologia, mas sim como uma memória mítica da
doença.
124
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., . p. 51/54.
125
Idem p.53/54.
48
“A explicação mítica não vai, evidentemente, desaparecer, continuando até
hoje em quase todas as manifestações culturais, não como a única forma de
explicação da realidade, mas paralela a outras, como a história.”
126
“Aqui o aspecto principal é que, embora o mito possa não ser a verdade, isto
não quer dizer que seja sem valor. A eficácia do mito e não a verdade é que
deve ser critério para pensá-lo. O mito pode ser efetivo e, portanto,
verdadeiro como estímulo forte para conduzir tanto o pensamento quanto o
comportamento do ser humano ao lidar com realidades existenciais
importantes”
127
.
Há, portanto, muito de memória nos mitos e aspectos míticos tanto na
memória quanto no tempo, pois o próprio mito pode ser apreendido de maneiras
diferentes por povos e culturas distintas em épocas diversas, assim como a memória
também sofre permanente reelaboração.
Dessa forma, o ato de adoecer de lepra socialmente e culturalmente visto, vem
sendo anteparado por essa memória mítica milenar da doença que, entre outros,
instaurou e consolidou a prática do isolamento dos hansenianos.
E se memória e mitos engendram representações, assim como o inverso; na
lepra, estas encontram-se instaladas nesta ampla memória mítica da doença, que a
cerca há vários séculos, demonstrando estar bastante cristalizadas.
Mas, decididamente essa memória mítica encontra-se povoada por
representações que tematizam inúmeras referências sobre o fenômeno lepra. Uma
vasta coleção de assuntos nela acham-se contemplados, desde aspectos físicos da
doença até as complexas tecituras e entrelaçamentos das concepções de pecado e
impureza, associados ao campo da moral e transplantados para a área da saúde.
Descrever o que habitaria essa memória mítica da lepra é empreendimento
sempre arriscado, passível de falhas e improvável de completude, No entanto, de uma
forma geral, sem pretensões de se alcançar toda vasta extensão por ela ocupada pode-
se elencar alguns dos “habitantes” mais conhecidos desta companhia fiel e
inseparável da lepra.
A começar pelas idéias e concepções sobre a etiologia da doença, é curioso
notar a crença do século XIX, segundo a qual a lepra seria a quarta etapa da sífilis, ou
a insistência até início do século XX, inclusive no Brasil, em se encontrar um vetor,
126
BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. Editora Brasiliense, Col. Primeiros Passos, 2ª edição,
São Paulo, 2000 ( p. 18).
127
ROCHA, Everardo. O que é Mito. Editora Brasiliense, Col. Primeiros Passos, São Paulo, 1999
49
um agente intermediário, que se pudesse responsabilizar pela transmissão da doença
ao homem. Sexo durante a gravidez ou menstruação, mulher que não teria cumprido
adequadamente resguardo pós-parto. Havia ainda algumas alusões da causa da doença
derivar do consumo de carne de porco, ou outras do gênero, ou seja, consideradas não
muito “santas”, em suma, fruto de uma dieta inadequada.
Quanto aos tratamentos e a cura predominou a idéia desta última ser somente
possível através de ocorrências milagrosas, como o alcance da cura através da
disseminação da doença, idéia esta bastante medieval também teve eco no Brasil.
Sugeria-se de tudo como tratamento, desde benzição, quando encontrava-se um
curandeiro ou benzedor disponível, até chás
128
e banhos em águas minerais como as
de Caldas Novas (GO)
129
.
Encontrar os remédios para a cura da lepra foi uma árdua história para todos
os envolvidos, tanto para o imaginário popular pipocante de sugestões, quanto na
medicina, inquieta pelo alcance da cura. Artequim, óleo de Chaulmoogra, “ponto de
fogo”
130
que consistia em aplicar choques elétricos com um estilete nas manchas e
tubérculos, e outros manifestações dermatológicas da doença.
Vários experimentos foram realizados, estes nem sempre contavam com
prévia autorização dos pacientes, acusação inclusive atribuída a Hansen. Antes da
descoberta das sulfonas em 1944, em geral, as tentativas causavam mais danos do que
benefícios para os pacientes:
“A maior parte dessas tentativas partia do pressuposto de que todas as
manifestações da doença, então conhecidas como lepra, que antes se
confundia com muitas outras patologias da pele, se unificaram a partir de
um denominador comum: o bacilo Mycobacterium leprae A cura passou a
ser uma questão de encontrar uma substância que pudesse matar o bacilo.
As tentativas foram preenchidas pela imaginação, muitas vezes delirante, de
médicos obcecados com alguma forma de tratamento. Umas dessas
tentativas foi a inoculação com o bacilo de outras doenças, como a erisipela;
outra , a mordida de cobras venenosas. Num desses experimentos, o paciente
foi submetido a uma mordida de cobra cascavel. Embora ele tivesse morrido
em 24 horas, o relato demonstra algum entusiasmo com a possibilidade da
cura ser obtida através deste meio, uma vez que houve depressão notável dos
tubérculos.”
131
( p. 14).
128
Cf. TRONCA, Ítalo A.. Op. Cit., capítulo I.
129
MAGALHÃES, José Lourenço de. A Morféa no Brasil. Typographia Nacional, 1882 ( p. 05/07).
130
LANA, Francisco Carlos Félix. Op. Cit., p. 88.
131
QUEIROZ, Marcos de Souza; PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma
perspectiva multidisciplinar. Editora Fiocruz, Rio de janeiro, 1997 ( p. 32).
50
Mas a memória mítica também ocupou-se dos enfermos famosos, desde
aqueles que efetivamente foram acometidos até aqueles apenas compreendidos como
tal. Aqui figuraria os personagens bíblicos do Antigo testamento como Giezi, Miriã,
Ozias e Moisés. Jó; Simão, o leproso; e Lázaro tiveram importância especial,
notoriamente o último que sob a denominação de São Lázaro converteu-se mesmo no
patrono dos doentes de lepra.
Contudo, os doentes ilustres não param por aí. Em Portugal a lepra teria
atingido pelo menos cinco reis
132
de Dom Afonso II (falecido em 25-03-1223) até
Dona Thereza D’Aragão. Mas nenhum doente medieval se tornou tão conhecido
como Balduíno IV( 1160-1185), o leproso, rei de Jerusalém no século XII. Outros
nomes foram coligidos e associados a lepra através das práticas benévolas para com
os enfermos, a caridade tão no período medieval. Entre eles estariam São Francisco
de Assis, santa Radegunda, santa Elizabeth de Hungria e São Luiz. No Brasil ex-
hansenianos como Aleijadinho, Jesus Gonçalves
133
e Bacurau
134
também tornaram-se
referência.
Mas a área médica também conquistou seu espaço na memória mítica da
lepra. Médicos se tornaram célebres como Rudolf Virchow, Danielsem e Boeck,
Hansen e Guy H. Faget. No Brasil nomes como José Lourenço de Magalhães, Orestes
Diniz, Abrahão Rothberg, Luiz Mariano Bechelli, Diltor Opromolla entre outros.
132
SOUZA- ARAÚJO, Heraclides- Cesar. História da lepra no Brasil: períodos colonial e
monárquico ( 1500- 1889). Imprensa Nacional, Vol I, Rio de Janeiro, 1946 ( p. 07/08).
133
Jesus Gonçalves foi interno nos asilos-colônias do estado de Sào Paulo. Líder dirigente de círculos
espíritas Kardecistas, escreveu vários livros onde atribuía a razão dos seus males ao fato de ser a
reencarnação de Alarico, o Godo. Seu nome tornou-se extremamente conhecido, inclusive fora dos
muros das instituições sem que ficou isolado.
134
Francisco Augusto Vieira Nunes (1939- 1997), o Bacurau, nascido em Manicoré/Am, aos seis anos
de idade contraiu hanseníase e aos quatorze anos foi internado na colônia de hansenianos de Porto
velho/RO. Permaneceu vinte e um anos em vários hospitais e leprosários, período este no qual realizou
inúmeras tentativas, sempre frustadas, de se reintegrar plenamente à sociedade.
Por causa da doença nunca foi aceito em escolas, tendo tornado-se um autodidata e
posteriormente professor primário da Secretaria Estadual do Acre. Escreveu três livros, compôs
algumas músicas, foi conferencista e palestrante, sempre abordando a temática da problemática social
da hanseníase.
Contribuiu na fundação da SORRI de São Paulo, Sociedade para a Reabilitação e
Reintegração do Incapacitado, e do MORHAN em 1981, Movimento de Reintegração das Pessoas
Atingidas pela Hanseníase, cujas atividades coordenou durante vários anos.
Recebeu em 1990 o prêmio nacional “Raoul Follereau” na cidade de Savana/ Itália e exerceu cargos de
acessoramento técnico na Secretaria Estadual de Saúde do Acre e no Ministério da Saúde.
Seu nome, assim como do MORHAN, tem sido associado a luta atual contra o preconceito e a
discriminação para com os hansenianos.
51
Congressos, revistas científicas ou não, lugares como Molocai no Havaí/EUA,
políticos como Conceição da Costa Neves e Francisco Salles Gomes Júnior, leis,
órgãos governamentais, damas ilustres como Alice Tibiriçá e Eunice Weaver, os
movimentos sociais como o MORHAN no Brasil, os religiosos como Basílio, bispo
de Cesaréa, Padre Damião de Veuster. No Brasil, clerícos como Frei Nicodemos
(n.1875), Frei Vicente Borgard (1888- 1977), Padre Bento(1819- 1911), Padre
Santiago Uchôa (f.1951) entre outros também tiveram seu lugar “ao sol” na memória
mítica da lepra.
Porém, não se limitando somente a isso, a doença transitou com as noções de
pecado, sujeira, impureza, marcada pela estigmatização e segregação que, em última
instância, guiaram inclusive a profilaxia da lepra no âmbito da medicina com a
institucionalização do isolamento dos hansenianos.
Em suma, a memória mítica do fenômeno lepra abriga desde personagens
bíblicos, reis, médicos, remédios, tratamentos, conceitos, concepções e idéias sobre
esta ampla gama de aspectos relacionáveis à palavra lepra.
A sobrevivência desta memória mítica da doença, remete à reflexão sobre o
quão valoroso e importante é para o indivíduo sua constituição subjetiva sobre a qual
ele se alicerça, usando para tal os códigos disponibilizados por sua cultura. Processo
este que lança luminosidade na formação de suas identidades, seu modo de agir e
entre outros; como portar-se quando alguém que lhe está próximo ou ele mesmo
adoecer, notoriamente de lepra.
Por último, um dos aspectos mais sutis e importantes a se perceber nesta
memória mítica é que ela, devida a sua densa tecitura e profundo arraigamento
cultural terminou por descolar-se do referente, que seria a doença em si, adquirindo
vida própria, uma espécie de segunda natureza, ou constituição peculiar,
independente da existência efetiva da doença. Os episódios do senhor Francisco
Rodrigues de Oliveira e do Manuel Português ilustram bem essa constatação. A
memória mítica da lepra não dependeu da hanseníase para prosseguir subsistindo.
52
1.4 O estigma da lepra
“O doloroso de uma estigmatização repentina, então, pode ser o
resultado não da confusão do indivíduo sobre a sua identidade, mas
do fato de ele conhecer suficientemente a sua nova situação”.
135
“Sim, é forçoso dizê-lo: os morféticos muito mais sofrem da sociedade
onde são constrangidos a viver, do que da sua enfermidade”. (sic)
136
Com exceção dos tempos contemporâneos, o leproso sempre foi alguém
distinto, ao qual, desde a Antigüidade, o Ocidente Cristão reservara-lhe um lugar
próprio entendido como adequado para instalar-lhe, após a publicidade dos sinais de
sua nova situação, sua outra condição, seu novo lugar na sociedade.
Acredita-se, porém, que esta forma de tratamento destinado aos leprosos não
foi uma exclusividade do Ocidente Cristão. Ásia, notadamente a Índia, China e Japão,
e África também lhes impunham medidas neste sentido e que foram efetivadas, assim
como no Ocidente, em todas as épocas com exceção da atualidade.
“Entretanto, a lepra é um fenômeno presente na maioria das sociedades
humanas, nos mais variados tempos. É igualmente sabido que, como
categoria, ela tem provocado reações similares em todas as sociedades, a
despeito da diversidade cultural.”
137
“Em todos os países, em todos os tempos, os leprosos têm uma tendência
natural e espontânea para agruparem-se, movidos pela atração singular que
impele os infelizes uns para os outros. (...)As aldeias de leprosos para
isolamento dos doente são muito espalhadas na Ásia e na África. Na China e
na Indochina os leprosos são excluídos da sociedade como se morressem e,
nem a êles e a seus descendentes, até a quarta geração, é permitido
casamento, a não ser entre si e no mesmo grau de descendência.”(sic)
138
Uma observação necessária para com o Ocidente é que seu modo de
relacionar-se com os leprosos instituiu-se a partir de seus vínculos culturais com o
Mundo Antigo, localizado na região do Oriente Médio, e que este influenciou, por
ocasião das colonizações empreendidas pelos países daquele continente, inúmeras
135
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de
Janeiro, Editora Guanabara, 4ª edição, 2000 (p.143).
136
MAGALHÃES, José Lourenço de. Op Cit. p.56.
137
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p. 112.
138
ROCHA, Raul. Da Lepra o Essencial. Rio de Janeiro, Livraria Ateneu, 1942. Apud: GANDRA
JÚNIOR, Domingos da Silva. Op Cit p.112.
53
regiões do globo, entre elas a América, Oceania, parte da África e Ásia. Este fato
pode ser bem demonstrado através da Bíblia, a qual já continha em suas linhas o
medo e as condutas acerca da lepra, e que, pelas mãos dos europeus, se difundiu para
diversas partes do mundo. O Ocidente, no entanto, não deu simples prosseguimento
àquilo que o Mundo Antigo receitava para a lepra, mas, conforme as circunstâncias e
singularidades de sua história, foi gerindo, a partir das condutas antigas, novas formas
de tratar os leprosos. Entre elas as instituições exclusivas para estes, cujas primeiras
datam do início do período medieval.
Mas, se a lepra afligiu diversos povos em quase todas as épocas, podendo-se
observar semelhanças nas atitudes desfechadas para com os doentes, objetivando
indiretamente com estas extirpar a doença do meio social, uma característica sempre
perceptível, inclusive, fortemente presente em todo o Ocidente foi a segregação. Os
leprosos eram pessoas entendidas como diferentes porque possuíam atributos ou
qualidades diferenciais
139
que exigiam tratamentos específicos. Os sinais de sua
doença adquiriam, assim, grande importância.
Estes sinais da doença funcionavam como advertência do que estava
ocorrendo com seu portador e para aqueles que o circundavam indicavam que, a
partir daquele momento, o indivíduo sinalizado deveria ser alvo de outras formas de
relacionamento, ou seja, aquelas destinadas à lepra.
Os sinais ou indicativos da doença não eram necessariamente físicos, como
marcas, mas poderiam ser impressões, vestígios, rumores que levassem à sociedade
mais ampla a identificar no seu portador um doente de lepra.
Uma vez entendido como detentor de marcas, sinais, indicativos de lepra, o
que independia do fato ser comprovado ou não, o indivíduo já podia começar a
receber o tratamento, veiculado pela cultura, destinado a esse grupo social, onde,
quase sempre a contragosto, ele era forçosamente incluído. Foi assim durante toda a
Idade Média, época em que um júri composto por clérigos, cirurgiões, autoridades e
até mesmo doentes eram responsáveis pelo diagnóstico e em caso afirmativo,
posterior inclusão do novo leproso ao seu respectivo grupo de marginalizados, já
existente que recebia, então, um novo membro não necessariamente doente de
139
GOFFMAN, Erving. Op. Cit., p.51. (para qualidade diferencial) e p. 92 (para atributo diferencial).
54
hanseníase, mas talvez de outra doença semelhante, entendida como lepra, o que
seguramente era o mais importante.
O mais triste em tudo isso, nesses enganos trágicos, é que as vezes uma
desconfiança infundada terminava por deixar no indivíduo um pecha infame que
dificilmente depois se conseguiria remediar. Orestes Diniz cita um desses casos de
inexistência num diagnóstico de lepra.
“Leprosos à força
Conheci indivíduos visados pela desconfiança popular e pela ignorância de certos
médicos, reiteradamente apontados como hansenianos. Essas infelizes criaturas, vítimas de
falsos diagnósticos, quando aportavam ao Leprosário, após exame, eram desenvolvidas às
localidades de onde provinham. Em lá chegando, porém, se viam compulsoriamente
incorporadas às levas de doentes e de novo mandadas para o Leprocômio. É que
observadores desatentos ou incompetentes teimavam em ver-lhes na pele lesões que
atribuíam à lepra quando na realidade, eram ocasionadas por males diferentes.
Lembro-me de certo jovem que por esse erro foi encaminhado ao Leprosário.
Devolvido imediatamente à sua cidade natal, retornou oito dias após. Mandei-o então para
outra zona, diametralmente oposta, onde eu lhe conseguira um emprego. Mas, de novo, a
suspeita surgiu e de novo deu entrada na Colônia. Já agora a sua volta não me irritava
porque estava sendo objeto de pesquisas. Tornei-o reagente experimental do meio social.
Mandei-o para outra zona diversa das anteriores e dois meses depois estava frustrada a
providência, com o seu retorno, mais uma vez, à minha presença. Finalmente resolvi enviá-lo
para outro Estado do país, de onde nunca mais regressou. Tenho, porém até hoje dúvida se
foi a distância que resolveu o problema ou se a ameaça insincera que lhe fiz de entregá-lo à
Polícia, se não desaparecesse definitivamente de minhas vistas. Só assim deixou de ser um
leproso à força ...”(sic).
140
Esses sinais, essas marcas da doença adquiriram um nome específico para
denomina-las: estigma. Atualmente este termo é aplicado a uma ampla série de
sinalizados” ou “marcados que vão desde acometidos por doenças infames como
lepra, o câncer e a aids, passando por aleijados, cegos, mancos, surdos, criminosos,
prostitutas e outros, que transitam pelo social portanto uma pecha, uma “mancha”, um
atributo ou uma qualidade diferencial, em suma, carregando o estigma.
Na Bíblia, amplamente associada a Lepra, não se encontra referências ao
estigma e sim a “marcas”, cujos significados, no entanto, são diferentes.
“Não fareis incisões na vossa carne por um morto, nem fareis figura alguma
no vosso corpo. Eu sou o Senhor.”
141
140
DINIZ, Orestes. Op. Cit., p. 66.
141
Levítico 19:28. In: Bíblia Sagrada.
55
“De ora em diante ninguém me moleste, porque trago em meu corpo as
marcas de Jesus”.
142
Na primeira citação bíblica acima, os hebreus eram proibidos de fazerem
incisões ou tatuagens no corpo, pois entendia-se que estas práticas poderiam ter
significado de idolatria. A segunda, onde Paulo anuncia que possui as marcas de
Jesus, observa-se uma considerável diferença. Para ele estas eram algo valorativo,
que o identificava com sua nova fé, vista e apregoada como redenção.
O uso do conceito estigma mesmo ausente da Bíblia para se referir a lepra já
se tornou clássico. De origem grega, Etimologicamente deriva de “stigme”
143
que
significava “mancha”.
Estigma na Grécia Antiga era uma marca, sinal, impressão que empregava-se
como indicativo de uma degenerescência: “Os estigmas da loucura, da doença”.
Também era utilizado para advertir quanto a posição social de quem o portava; um
criminoso, um escravo, uma prostituta já bem próximo do significado atual.
“Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram
o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se
procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status
moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no
corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor
uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada,
especialmente em lugares públicos.”
144
Houve uma convergência peculiar com relação ao estigma. Este, na época
medieval, foi tomado pelo cristianismo, que o aproximou da acepção utilizada pelo
apóstolo Paulo na Bíblia,
145
ou seja, como sinal da Graça Divina.
Na Europa Feudal, embora quase hegemônico, essa interpretação religiosa do
conceito deixou brechas para a coexistência dos antigos significados gregos, sendo a
medicina o baluarte desta preservação, através da alusão direta que realizava do
estigma com a existência de distúrbios físicos verificados.
146
Para o cristianismo, o estigma era um sinal ou evidência corporal que tornava
pública a fervorosidade religiosa de quem o portava. Uma espécie de “adepto
142
Gálatas 06:17. In Bíblia Sagrada.
143
BUENO, Francisco da Silveira. Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua
Portuguesa. Santos, Editora Brasília Limitada, 3º vol., 1974 (p.1267).
144
GOFFMAN, Erving. Op. Cit., p.11.
145
Refere-se a Gálatas 06:17. In: Bíblia Sagrada.
146
GOFFMAN, Erving. Op. Cit., p.11.
56
exemplar” o possuía, no qual havia se imprimido um sinal da grande intensidade de
sua fé.
“O aparecimento de estigmas ou chagas nas mãos, pés e lado, ou ao menos
numa dessas ou noutra partes do corpo, é fenômeno verificado em pessoas
dadas a intensa vida interior e singularmente devotas da Paixão de
Cristo”.
147
Estes estigmas religiosos teriam geralmente a aparência de feridas cicatrizadas
que “tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele”.
148
Periodicamente, durante
a Semana Santa ou às sextas-feiras poderiam sangrar e doerem abundantemente, sem
inflamação nem supuração e não podiam ser estancadas por nenhum cuidado médico.
Freqüentemente, tais manifestações físicas eram acompanhadas de visões, êxtase,
profecias, telepatias e outros.
Nesta acepção de estigma, enquanto fenômeno de alteração somática,
geralmente atribuído ao êxtase religioso, vários casos célebres são conhecidos. Dentre
eles: São Francisco de Assis que, em 1224, teria sido visitado no monte Alverne por
um Serafim, ao qual pediu para sentir na própria carne o amor de Jesus dedicado aos
homens. Este, então, gravou nas mãos, pés e outras partes do corpo de São Francisco
os estigmas de Cristo; o de Santa Gema Galgani; do franciscano capuchinho Pio
Petralcina; e Teresa Neumann, a estigmatizada de Konnersreuth. Entre casos
conhecidos e estudados pela Igreja Católica já enumeram-se mais de 360, dos quais
61 referem-se a santos canonizados. A Igreja faz a ressalva de que a santificação não
implica necessariamente o reconhecimento da sobrenaturalidade dos estigmas, uma
vez que a atuação divina geralmente se dá por meios naturais.
Na Idade Média a concepção de estigma da medicina enquanto distúrbio físico
aludia a essas manifestações religiosas anteriormente descritas. Atualmente, ela tem
considerado estes fenômenos de estigmatização como simulação ou decorrência de
histerias.
Ainda seria necessário aguardar alguns séculos para que o conceito de estigma
reacendesse com toda sua força e passasse a ter um uso mais amplo e bem delimitado.
Foi então, a partir do final do século XIX e início do XX, com os estudos de patologia
social que ele recobre sua vitalidade e recupera a sua antiga conotação de degradação,
147
SILVA, A. Pereira da. Estigma. In: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura. Lisboa, Vol. VII,
Editorial Verbo (pp.1523-1524).
57
voltando a indicar aqueles que deveriam ser colocados na lista dos banidos sociais,
reativando seu sentido condenatório.
Os leprosos sempre figuraram na lista daqueles que carregaram o estigma.
Junto com prostitutas e criminosos talvez sejam os mais antigos alvos desta
incessante reclassificação social. A definição do conceito pelos autores que a
seu exclusivo estudo se dedicam apontam para poucas variações:
“Um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre
atributo e estereótipo (...) um indivíduo que poderia ter sido facilmente
recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a
atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de
atenção para outros atributos seus (...) Por definição, é claro, acreditamos
que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base
nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais
efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida.
Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua
inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando
algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as
de classe social”.
149
“O Estigma é a propriedade que possuem certas categorias, culturais ou
sociais, de funcionarem como sinal desencadeador de uma emoção que se
manifesta numa conduta de afastamento imediato. As categorias, sociais ou
culturais, adquirem tal propriedade quando representam uma negação de
um ou mais valores básicos ou preponderantes.”
150
A primeira definição de Erving Goffman, abordada à luz da antropologia
social, desvencilhava as relações entre estigmatizados e estigmatizadores nos
chamados contatos mistos. Sob vários aspectos analisa estes acontecimentos no
decorrer do cotidiano. O olhar parte dos estigmatizadores ou “normais” como ele
mesmo se refere, objetivando descrever o terreno ocupado por esta relação tensa e em
que condições ela se desenrolaria.
A segunda definição de Gandra Júnior, aplicado ao estudo específico da lepra,
também à luz da antropologia, inclui a cultura de forma mais presente, entendendo o
estigma como um processo de categorização e recategorização sócio-cultural.
Embora, conforme já mencionado, os dois autores diferem pouco conceitualmente
falando.
148
GOFFMAN, Erving. Op. Cit., p.11.
149
Idem., p.13/14/15.
150
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p.126.
58
Revendo a história do próprio conceito, pode-se observar que o seu auge
refere-se mesmo aos séculos mais recentes, o XIX, XX e XXI. Atualmente seu uso se
aproxima do seu significado original, possibilitando delimitar, de forma, precisa esta
ampla gama de proscritos que a sociedade moderna logra produzir.
Estigma seria, então, sinais, marcas, cicatrizes, manchas físicas ou morais, em
suma, um atributo ou qualidade diferencial encontrados em certos indivíduos,
adquiríveis ou hereditários, que alertam ou indicam a todos que não as possuem para
estabelecerem uma relação social diferenciada com seus portadores. São sinais
físicos, morais ou sociais desencadeadores de relacionamentos diferentes,
comportamentos estes, às vezes hostis para com os estigmatizados.
Esses comportamentos já se encontram estabelecidos e formam um manancial,
onde tanto estigmatizados quanto estigmatizadores buscam respostas para suas
indagações sobre como proceder. Conforme diz Gandra Júnior, a “pauta de condutas
ou comportamentos”,
151
em suma, as reações já se acham convencionadas e
arraigadas na cultura, na memória mítica da doença.
“E o processo de estigmatização tem, como resultado, a sua alienação (dos
“anormais”) do grande corpo das pessoas normais. É evidente que, pelo
processo de estigmatização, a sociedade se proclama como padrão de
normalidade. E sendo ela constituída pelos muitos, o que lhe dá o monopólio
do uso do poder, a sua estigmatização dispõe de instrumentos que a tornam
eficaz.”
152
“As necessidades de ajustamento diante de fenômenos como a lepra são
muito anteriores à ciência como instituição cultural. A cultura já oferecia
respostas a tais necessidade, muito antes que a ciência surgisse na própria
cultura como uma alternativa.”
153
Para além da antiquíssima inclusão dos leprosos entre os “indesejáveis”
sociais, a origem do estigma dessa enfermidade também se vincula a outros aspectos.
Medo e repulsa são sentimentos muito atados a lepra e a seu estigma.
Não há dúvida de que a já abordada memória mítica
154
da lepra engendrou e
consolidou muito a estigmatização sobre os acometidos. Depois de vários séculos de
práticas e costumes de exclusão para com os leprosos, via estigmatização, estas
151
Idem., p.48.
152
ALVES, Rubem A . Religião e Enfermidade. In: MORAIS, J. F. De (org.). Construção Social da
Enfermidade. São Paulo, Editora Cortez & Moraes, 1978 (p.34).
153
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p.34.
154
Conforme abordado no item anterior: Leprofobia social: a memória mítica da lepra.
59
atitudes converteram-se numa rotina tal que se tornaram resistentes às críticas que
foram surgindo.
O antigo medo e estigma que ronda a lepra mostraram-se, muitas vezes,
contagioso ou transmissível. É o caso supracitado da contaminação pelos assentos;
bancos, cadeiras, poltronas e outros. Um lugar onde se sentou um leproso, um lenço,
uma fruta, um livro, talheres, corrimão, uma carta ou qualquer outro objeto em que o
doente tenha tocado poderia ser veículo da doença. Dessa forma, a mesma reação que
um “são” teria diante da presença de um enfermo poderia se estender a um “objeto
leproso”, isto é, aquele manuseado pelo doente, o qual acreditava-se estar infectado.
No asilo-colônia de Pirapitingui, localizado no município de Itu/SP, existia
um local específico para a desinfecção à vapor das cartas dos doentes, antes de serem
despachadas juntamente com a correspondência “sã” da administração da
instituição.
155
O medo do contágio se alastrava para aqueles que entravam em contato
com os acometidos. É bem conhecida a divisão tradicional das colônias em zonas
“sã”, “intermediária” e “doente”, que objetivava impedir a transmissão aos serviços
médicos e de enfermagem da instituição. Os enfermos encontravam-se na “zona
doente”, de onde não podiam sair e nem se misturar e transitar livremente por outras
áreas do estabelecimento. Também compartilhavam deste receio os profissionais
encarregados de cuidar dos doentes que, por sua vez, sofriam discriminação por parte
de seus colegas, não especialistas na área, e da sociedade mais ampla:
“O médico leprólogo é um exemplo disso: a sociedade e mesmo outros
médicos reagem diante dêle, às vêzes, como se fôra êle o doente. É
conhecida a dificuldade dêsses médicos em manter clínica particular, devido
à desconfiança da sociedade e, em certas circunstâncias, à pressões dos
próprios colegas.”(sic)
156
Um procedimento de segurança ao doar esmolas para leprosos, existente
desde a Idade Média, era manter uma distância de segurança adequada, uns três
metros. Optar geralmente por moedas em vez de cédulas, pois estas podem ser
arremessadas com mais facilidade, eliminando a necessidade de aproximação.
Havia o temor quanto aos ventos. Um grupo de leprosos mendigando era
“aconselhável” observar o “ruma dos ares” e se certificar de que estes não estavam
155
TRONCA, Ítalo A. Lepra: o espetáculo do medo. (Vídeo-documentário), Centro de Comunicação-
UNICAMP, 1987 (69min.).
156
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p.84.
60
soprando “contra”, ou seja, primeiro nos doentes e depois nos “sãos”. Os ventos
deveriam estar “a favor”, isto é, soprar primeiro nos “sãos” e depois nos doentes. Em
Manaus/AM a observância destes princípios eólicos foi responsável pela paralisação
da construção de um leprosário chamado “Paredão”. A problemática referia-se à sua
localização, subindo o rio Amazonas encontrava-se antes da cidade, passagem
obrigatória para todos que chegavam por via fluvial. Como na região há várias
correntes de vento que sopram do mar para o interior temia-se a possibilidade de
contaminação. Houve a suspensão das obras e outro local, depois da cidade, foi
escolhido para abrigar a colônia
157
.
No Estado de São Paulo, a definição do município onde deveria ser construído
asilos para abrigar os leprosos era assunto sempre desconcertante. Havia poucos
voluntários, quase ninguém queria ser o escolhido. Com freqüência os políticos locais
providenciavam abaixo-assinados para alterar os lugares selecionados.
“O intuito de abrigar os doentes da região, contudo, nem sempre era bem-
visto. A perspectiva de ter uma concentração de doentes, ainda que fora da
cidade, dificilmente era bem recebida. Tanto a população como o governo
municipal muitas vezes adotavam medidas para impedir a construção de
asilos na região, para que a cidade não ficasse marcada como sendo local
de alta endemicidade. Temia-se que o estigma, que reveste a doença e o
doente, pudesse ser de alguma forma partilhado pelo município”
158
.
A descendência, mesmo saudável, também poderia ser atingida pelo estigma.
Os filhos não-doentes nascidos nos asilos-colônias e aqueles que nesta situação se
encontravam no momento do isolamento dos pais, tinham da mesma forma suas vidas
marcadas. “Filhos de leprosos”. Colocados numa instituição exclusivamente a eles
destinadas: os preventórios, dava-se extraordinária evidência quanto a sua
procedência, impingindo-lhes forçosamente o mesmo estigma dos pais. Em tese
estavam sãos, mas talvez não estivessem salvos. Para onde o medo e a repulsa da
lepra se dirigiam, também se encaminhava o estigma. Conforme observa-se estes
eram mais prejudiciais e tão ou mais contagiantes do que a própria doença.
157
TRONCA, Ítalo A.. Amazônia doente. (Vídeo-documentário), Centro de Comunicação-UNICAMP,
1989 (40 min.).
158
MONTEIRO,Yara Nogueira. Op. Cit., p.93/94.
61
Todavia, além da influência que a memória mítica exerceu sobre o processo
de estigmatização há um outro aspecto correlato de suma importância para a
compreensão dessas condutas condicionadas ou práticas acerca da lepra: a estética.
“O mais grave não é tanto a incurabilidade e as lesões em todos os órgãos
do corpo, mas as alterações e a perda dos traços mais nobres do rosto (...).
Há quem objete que não é possível atuar seriamente contra a lepra porque,
na realidade, ignoramos os mecanismos através dos quais a doença se
difunde e porque o número de vítimas é sempre escasso, de modo que o medo
é sugerido muito mais pelas lembranças do passado e pelas especiais
disposições estéticas do espírito, do que pela existência efetiva de perigo
(...)”.
159
“(...) pelo desejo de que desapareça uma praga cuja impressão psicológica é
sem dúvida muito grave: é a tendência de nosso espírito à harmonia e à
beleza, é o terror de uma moléstia que mina os muais nobres traços divinos
da face e do corpo”.
160
A deterioração estética é um fator marcante com relação a lepra. Gandra
Júnior observa em seu trabalho que a maioria das descrições dadas pelas pessoas por
ele entrevistadas com relação a doença refere-se as deformidades físicas
ocasionadas.
161
Esta constatação é generalizada e pode, inclusive, ser flagrada no
depoimento de um doente da forma tuberculóide que já apresentava deformações nas
mãos e nos pés:
“Para mim, o verdadeiro doente de lepra é aquele que abre em chagas, a
minha não é”.
162
O leproso aparece associado a uma ampla gama de deformações que povoam
o imaginário e elaboram e reelaboram sua figura, relação estabelecida que não se
comprova, necessariamente, com as características clínicas da doença, onde apenas
uma pequena porcentagem dos acometidos, os virchowiano, atinge tal estado, ainda
assim, sem os exageros que lhe foram acrescidos, na ausência absoluta de tratamento.
Assim são descritos: boca carcomida, inchada, grossa e ferida; nariz desintegrado e
áspero, grosso, inchado, vermelho e achatado; orelhas feridas, grossas, roxas ou
avermelhadas; olhos alarmados, espantados, vidrados, desmantelados e vermelhos;
rosto danificado pela doença, corroído, enrugado, inchado, esburacado, mutilado,
159
TRONCA, Ítalo A.. História e doença: a partitura oculta. (A lepra em São Paulo, 1904-1940). In:
RIBEIRO, Renato Janine (org.). Recordar Foucault. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985 (p.140).
160
Idem., p.142.
161
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p.54-56.
162
Idem., p.81.
62
empipocado, grosso acinzentado ou avermelhado; pele áspera, com chagas a vista,
cascuda, grossa e escura ou branca intumescida; pés deteriorados, sem dedos,
inchados e feridos; mãos igualmente sem dedos e pele, com a carne a mostra, cheia de
feridas e lesões; dedos, quando existem, curvos, grossos e secos, podendo, inclusive,
serem arrancados do corpo, propositadamente ou não, e arremessados. Mal hábito,
mal cheiro e uma voz rouca e desagradável.
Essa descrição corresponde a representação que se fazia do leproso desde o
princípio da Idade Média. Tem pouco a ver com a doença propriamente dita e muito
com o medo e a repulsa que esta desfrutou no Ocidente. Mesmo bastante combatida,
ainda na atualidade, esporadicamente demonstra algum vigor. Mais do que o contágio
ou a transmissão da lepra temia-se o resultado que esta poderia ocasionar.
Face a face com a doença, esta revelou um dos seus aspectos que logrou-se
fixar com mais força em quase todas as épocas e culturas e nos mais variados lugares;
a repugnância para com a aparência dos enfermos. Lepra; doença “feia”, “hedionda”
que contraria a “beleza das formas” e a “integridade física”, em franco desacordo
com os cânones do código estético. A concepção em torno da enfermidade se ligava
culturalmente a esses fatores e a sensação de desagrado e ojeriza ocasionados por
estes, provinha, então, da desfiguração dos “mais nobres traços divinos da face e do
corpo”.
Neste contexto, explicaria-se o surgimento do vocábulo “morfético” como
sinônimo de lepra na Europa do século XI. Etimologicamente, este deriva da palavra
grega “morphé” que significaria forma. Este passou a referir-se a doença pela
alteração que esta provoca nos seus acometidos. Morféticos: aquele cujas formas,
mãos, pés e face descaracterizavam-se como resultante da doença. E as deformidades
físicas tornaram-se profundamente associadas às representações que se elaborou
sobre a lepra. Erving Goffman fornece um bom exemplo:
“Uma paciente um tanto sofisticada que tinha o rosto coberto de cicatrizes
devido a um tratamento de beleza achava eficaz dizer, de maneira
engraçada, ao entrar num lugar cheio de pessoas, ‘Desculpem, por favor,
este caso de lepra.’”
163
163
GOFFMAN, Erving. Op. Cit., p.129.
63
Em todos os povos, em todas as partes do mundo, as culturas geralmente se
alicerçam a partir das representações do “corpo perfeito”, belo, saudável e íntegro.
Embora possam existir exceções e as concepções de beleza variem muito no tempo e
espaço, quase sempre é a concepção de corpo funcional que predomina, dentro de
parâmetros de beleza socialmente conhecidos e compartilhados. Gandra Júnior
observa que a figura clássica que se cunhou do leproso contraria noções fundamentais
e universais em todas as culturas, explicando, assim, porque, por toda parte, forjaram-
se comportamentos específicos bastante semelhantes para ele, ou seja, a
estigmatização e a segregação social.
“Acreditamos, portanto, que o estigma, associado às categorias ‘lepra’ e
‘leprosos’ nas várias culturas de que se tem notícia, só poderia ser explicado
pela negação da integridade física; não só funcional, mas principalmente da
forma humana fatôres fundamentais, em qualquer sistema cultural, pois
nêles reside a identificação e a caracterização dos seres que compõem uma
dada sociedade.”
164
(sic)
Alguns autores especulam que as condutas mundialmente semelhantes
tomadas com relação a lepra, teriam uma só origem, isto é, surgido num único local,
um antigo centro de endemia e daí se difundido. Outros atribuem exclusivamente à
Bíblia e ao cristianismo
165
. A primeira hipótese parece controversa e a segunda
insuficiente. A origem estética, reforçada no caso do Ocidente pelo “peso” religioso,
inspira mais confiança.
Da Grécia antiga ao Brasil do século XIX e XX o pavor infundido pela figura
do leproso já é há muito conhecido. Um medo cultural mas também estético.
“A descrição mais antiga na Grécia de uma doença que indiscutivelmente
era hanseníase foi feita por um médico atuante por volta do ano 150 a. C..
Chamava-se Aretaeus e denominou a doença de elefantíase, talvez porque a
pele espessada dos afetados sugeria a pele de elefante, ou porque suas
feições inchadas e desfiguradas causavam medo nos outros da mesma forma
que os elefantes de Aníbal, general cartaginês, despertavam pavor nos
soldados inimigos cerca de 200 anos antes de Cristo. (...) Aretaeus escreveu
sobre seus pacientes que sofriam de elefantíase:-’ Sendo assim sua
condição, quem evita de fugir deles? Quem não fugirá, mesmo sendo seu pai
ou seu próprio irmão? Muitos, por esta razão, levam seus antes queridos à
solidão ou às montanhas. Alguns são mantidos sem fome durante algum
tempo, outros nem fazem isto, querendo a sua morte.”
166
164
GANDRA JÚNIOR, Domingos da Silva. Op. Cit., p.121.
165
Idem., p.68.
166
JOPLING, Willian H. Op. Cit., p.06.
64
“A physionomia do leproso infundia, com effeito, terror: encontravam nella
os traços de um animal terrível, o leão. Semelhante transfiguração do
homem dava logar a graves conjecturas sobre a origem, sobre a verdadeira
causa de tamanha desgraça. A imaginação apoderou-se do facto,
emprestou-lhes as mais feias côres, e deu-lhe uma interpretação
sinistra.”(sic)
167
“A figura andeja, passando em silêncio, aparentemente conformada aos
olhares furtivos e amedrontados dos adultos pelas venezianas e vidraças
entreabertas e à correria desabalada das crianças, fugindo à sua passagem,
povoou a mente de gerações, ora aterrorizando, ora infundindo rasgos de
piedade”.
168
Estigma e segregação social mostraram-se, então, duas faces da mesma moeda
na lida com a lepra. O medo foi o elemento que possibilitou o surgimento, a junção a
fundição dos comportamentos para com a doença. Estabelecido o estigma, por
extensão, instituía-se a segregação social. Estigmatizar e segregar, até bem pouco
tempo, constituiu-se na profilaxia da lepra.
167
MAGALHÃES, José Lourenço de. Op. Cit., p.53.
168
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Op. Cit., p.12/13.
CAPÍTULO II
“CHAMARIZES DO INFERNO”: o isolamento como
profilaxia da Lepra no Brasil
65
2.1 A Lepra no Brasil
Os conhecimentos atuais acerca do local e época em que teria surgido a
hanseníase são ainda muito precários e insuficientes. Se é natural da África, do Egito,
especificamente do Vale do Nilo, donde inclusive, alguns já especulam ser ela
importada da região central daquele continente, ou da Ásia, da Índia no Vale dos
Ganges, ou da China, são questões para as quais não se tem confirmação. No entanto,
a hipótese de que seria autóctone de várias localidades distintas, isto é, originária ou
natural de várias regiões diferentes, como, Ásia e África, é completamente
abandonada, pois se assim o fosse, haveria “agentes etiológicos” da doença, e estes
deveriam apresentar entre si significativas diferenças, o que não ocorre com a
hanseníase que apresenta apenas um, sempre com as mesmas características; o
Mycobacterium leprae. Logo, como microorganismo parasitário que é,
provavelmente originou-se em um único local, do qual teria se difundido, muito
provavelmente, acompanhando o próprio homem desde os mais antigos movimentos
migratórios
1
.
As referências documentais mais antigas sobre hanseníase remontam a Índia,
onde são encontrados no livro Susruth Samhita, que data de 600 a . C., descrições de
sinais, sintomas e formas da doença
2
. Da Índia a doença teria se estendido para a
China e Japão. O mais antigo tratado médico chinês, o Nei Ching, escrito por volta
de 300 a . C. já abordava a doença com mais propriedade, aprofundando-se nas
descrições de vários aspectos
3
.
Acredita-se ser o discípulo de Confúcio, de nome Pai-
niu, que viveu no século V a . C., o primeiro caso registrado da doença na história.
Nesta época, na China, a doença se chamava “Li”
4
.
As hipóteses de que múmias egípcias pudessem revelar indícios mais remotos
de hanseníase não se confirmaram. As escavações paleopatológicas encontraram
sinais da doença apenas em múmias do século II a. C.
5
.
1
JOPLING, William H. Meditações sobre Hanseníase. (Trad. Alicia Muller) In: Jornal do
MORHAN. 1.º Trimestre, 1983 (p.06).
2
CLARO, Lenita B. Lorena. Hanseníase: representações sobre a doença. Rio de Janeiro, Editor
Fiocruz, 1995 (p. 12).
3
Idem., p.12.
4
JOPLING, William. H. Op. Cit., p.06.
5
Idem., p.06.
66
Na Europa a doença chegou, provavelmente no século IV a.C., inicialmente na
Grécia, trazida por soldados dos conquistadores persas Darius e Xerxes ou
proveniente do regresso de tropas de Alexandre, o Grande, das guerras gregas de
conquistas na Ásia
6
.
Na Grécia a descrição mais antiga de uma doença que indiscutivelmente era
hanseníase data de 150 a. C.. Realizada por um médico atuante chamado Aretaeus,
nesta ele a teria denominado de elefantíase, talvez aludindo-se a pele espessada dos
acometidos que sugeria a dos elefantes, ou então, por causa das feições inchadas e
desfiguradas que despertavam nas pessoas um medo semelhante ao provocado pelos
elefantes do general cartaginês Aníbal em seus inimigos em guerras ocorridas 200 a .
C.. A partir da Grécia, a doença difundiu-se pela Europa tornando-se neste continente
conhecida como elefantíase-dos-gregos
7
.
Posteriormente as conquistas romanas sobre a Europa contribuiriam
decisivamente para a disseminação da doença que atingiu seu ápice nos séculos XI,
XII e XIII, época em que chegou a existir neste continente 19.000 leprosários
8
. Na
região das Gálias, a doença é, no mínimo, anterior ao século VI, época em que já se
registrava a construção das primeiras leprosarias ou leprosários. Na Espanha, ela era
endêmica nos séculos VIII e IX. Em Portugal, a doença é antiga remontando ao
período anterior a Formação do Estado Nacional (1139) sendo as mais antigas
referências documentais dos anos de 950, 968 e 1107
9
.
A hanseníase foi introduzida na América pelos colonizadores europeus.
Ingleses, franceses, holandeses, espanhóis e portugueses trouxeram inúmeras doenças
que provocaram diversos surtos epidêmicos responsáveis por chacinas que causaram
verdadeiras catástrofes demográficas. Um missionário alemão escreveu no final do
século XVII: “Os índios morrem tão facilmente que só a visão ou o cheiro de um
espanhol os fazem passar deste para o outro mundo”
10
. Sarampo, gripe, varíola, tifo,
6
CLARO, Lenita B. Lorena. Op. Cit., p.12.
7
JOPLING, William H. Op. Cit. p.06.
8
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo, Editora Perspectiva, 6º edição, 2000(p.03).
9
Em Portugal, os leprosários eram mais conhecidos como gafarias. Conforme já citado neste
trabalho(Capítulo I, item 1.3), a lepra não poupava nem mesmo a Casa Real Lusitana, onde teria
acometido cinco vitimas. Cf. PINA, Luís de. Gafarias. In: SEERÃO, Joel. (org.).Dicionário de
História de Portugal. Porto, Iniciativas Editoriais/Livraria Figueirinhas, Vol. II, 1963-1971(pp. 315-
317).
10
CROSBY Jr.; A. N. The Columbia exchange. Apud: FERRO, Marc. História das colonizações. São
Paulo, Cia das Letras, 1996(p.220).
67
malária e outras, eram doenças epidêmicas na Europa com as quais os índios não
estavam acostumados e para as quais não apresentavam reações de imunização
11
.
Mesmo constituindo-se mais um dos legados da colonização européia, é
preciso salientar que a hanseníase não é uma doença mortal. Dada esta característica,
milenarmente conhecida, dificilmente fala-se em epidemia de hanseníase, mais sim,
em endemia. A “conveniência” de servir como arma de extermínio numa espécie de
“guerra bacteriológica” a hanseníase não possui
12
.
No Brasil, a doença chegou através da colonização, notadamente a portuguesa.
Aleixo Guerra aponta o ano de 1496 como a data do desembarque literal da doença
no país. Literal porque foi o mar a via pela qual a doença aportou no continente
americano. Portanto, quatro anos antes da chegada ao Brasil da frota de Pedro
Álvares Cabral:
“Não resta hoje dúvida que os portugueses introduziram a lepra no Brasil
em 1496 como a tinham introduzido na Madeira...”
13
.
11
Idem., p.219-221.
12
Registra-se apenas a existência de um caso em que a doença chegou a tomar aspectos epidêmicos.
Refere-se a atual República de Nauru, uma das ilhas da Micronésia no oceano Pacífico, considerada a
menor república do mundo. A ilha possui uma superfície de 21,3 Km e uma população de 11 mil
habitantes (em 1998) e uma das maiores rendas per capita mundiais, proporcionadas pelas suas ricas
jazidas de fosfato, sendo assim, produtora de adubos de importância vital para a agricultura da
Austrália, Nova Zelândia e Japão.
A colonização européia em Nauru começou no início do século XIX após ser encontrada em 1798
pelo inglês John Fearn. Até sua independência da Austrália em 1968, consumada por mandato da
ONU, foi ainda anexada pela Alemanha em 1888 e tomada pela Austrália em 1914, invadida pelo
Japão em 1942 e em 1947, após a derrota japonesa na 2ª guerra mundial, ficou entregue ao domínio
conjunto da Inglaterra, Nova Zelândia e Austrália até 1968.
Em Nauru não havia nenhum caso registrado de hanseníase até 1912, quando ocorreu a primeira
notificação. Em 1920 já havia quatro casos conhecidos. Quatro anos depois 24% da população da ilha
encontrava-se infectada. A partir de 1927 a doença começou a declinar. Em 1952 registrava-se uma
incidência de 4% e em 1981 em apenas 1% da população C.F.MONTEIRO, Yara Nogueira. Da
maldição divi na a exclusão social: um estudo da hanseníase em São Paulo. (Doutorado em
História), São Paulo, FFLCH/USP, 1995 (p.122).
13
GUERRA, Aleixo. A Lepra em Portugal. Tese do Porto, 1900 (p.25). Apud: SOUZA-ARAÚJO,
Heraclides-Cesar de. História da Legislação Antileprosa da América do Sul no período colonial. In:
Revista Brasileira de Medicina. Vol.18, n.º 02, 1961 (pp. 199-126).
Provavelmente o autor está se referindo a expedição de Duarte Pacheco Pereira que estava no Brasil
por volta de 1498, por ordem do rei Dom Manuel I. Navegadores espanhóis percorreram o litoral da
América do Sul antes e depois de 1496. Entre os mais conhecidos pode-se citar: Alonso de Hojeda
(1499), Diego de Lepe (1499) e Vicent Pinzon (1499). Todos estes estiveram no litoral norte do Brasil.
Não foi possível localizar a referida expedição de 1496. para detalhes ver: REIS, Liana Maria et alli.
Descobrimento do Brasil. In: Dicionário Histórico do Brasil: Colônia e Império. Belo Horizonte,
Editora Dimensão, 1998 (pp.41-42).
68
Não se discute mais a possibilidade dos índios brasileiros já conhecerem a
hanseníase antes da chegada dos europeus. Definitivamente a doença não é de origem
americana. Portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e holandeses serviram como
elo de transmissão da hanseníase até o continente americano. O único ponto que
permanece controverso diz respeito à contribuição ou não dos africanos:
“Quando o Brasil foi descoberto os nossos aborígines não sofriam de lepra.
Este flagelo foi trazido pelos europeus e africanos. De 1500 as 1591 foram
importados 50.000 escravos negros (Nina Rodrigues) e a eles se deve a
disseminação do mal. Em 1798, dos 3,4 milhões de habitantes do País, 61%
eram africanos e durante mais de um século 70 a 75% dos leprosos
hospitalizados eram negros ou mulatos”
14
(sic)
Aqueles que defendem a idéia da não contribuição africana, como Juliano
Moreira e Flávio Maurano, argumentavam que a importação dos escravos era
precedida por exames tanto nos portos de partida da África quanto nos de chegada à
América Além disso, não se deve esquecer que embarcar “negros infectos” constituía
uma possibilidade significativa de não conseguir vendê-los na América. Prejuízo
quase certo, que os traficantes, seguramente, não desejavam arriscar. Assim, as
inspeções realizadas nos escravos, conjugadas com as restrições de mercado teriam
possuído o efeito inibidor de possibilitar a vinda de cativos doentes de hanseníase
para o Brasil.
“Porém o argumento mais poderoso, a nosso ver, que pode negar a
possibilidade da introdução da lepra pelos africanos em nosso território
(refere-se ao Brasil), é o da dificuldade de negociação de escravos
acometidos de lepra, moléstia que deforma a vítima e repugna pelo seu
aspecto. É de se crer que aqueles negociantes jamais adquirissem tão
perigosos serviçais, por mais baixos que fossem seus preços. Os escravos,
chegados aos pontos ficavam expostos à venda, eram geralmente examinados
cuidadosamente pelos interessados”
15
.
No entanto, longe dos extremismos dessas duas posições é preciso ater-se a
dois relevantes aspectos. Primeiro, dados as condições peculiares da hanseníase, isto
é, longo período de incubação, é possível que algum escravo já infectado e que ainda
não apresentasse sintomas inconfundíveis da doença não fosse barrado pelos exames
14
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. Op. Cit., p.119.
15
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. História da Lepra no Brasil: período colonial e
monárquico(1500-1889). Vol. I, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1946(p.11-12),
69
então realizados. A doença em estágio inicial não seria tão facilmente diagnosticada
na época, permitindo assim, o ingresso de escravos com hanseníase no país.
Segundo, atribuir unicamente aos africanos a responsabilidade pela
“disseminação do mal” no Brasil é uma atitude insensata. Sabe-se que a África do
norte é região endêmica desde a Antigüidade. Mas os africanos trazidos para o Brasil
com o objetivo de aqui constituírem mão-de-obra escrava não vieram para América
por livre e espontânea vontade, não sendo, inclusive, convidados. Capturados e
removidos a força, integravam a contragosto o plantel de cativos arrancados com
violência de sua terra e incluídos forçosamente numa outra sociedade que lhes
reservava de imediato, logo no desembarque, uma indesejável condição de
submissão.
Assim, mesmo que cada um dos bacilos de hansen, mycobacterium leprae,
aportados no Brasil fossem de origem africanos, aos europeus ainda deve-se continuar
atribuindo a responsabilidade pela chegada da doença no país, pois, neste caso,
haveria sido fruto de exames pouco rigorosos e inadequados, além da incompetência
de ofício dos traficantes e senhores que não entenderiam muito de “lepra”.
Por último, é necessário assinalar que exames e inspeções não eram
procedimentos aplicados a todos àqueles que chegavam à América. Enquanto os
africanos eram freqüentemente submetidos a revistas minuciosas o mesmo não
acontecia com os europeus que, dado essa dispensa, tornavam-se então candidatos
prováveis, “favoritos”, a serem responsabilizados pela introdução e disseminação da
doença no continente americano, principalmente pelo fato de procederem na época,
séculos XV a XVII, notadamente os portugueses e espanhóis, de uma região com alta
endemicidade.
Deste modo, os europeus desempenharam um duplo papel na expansão
mundial da hanseníase, com as viagens transoceânicas que realizaram a partir do
século XV, tornaram-se veículos de transmissão da doença para regiões em que esta
ainda não existia, como a América, da mesma forma que entraram em contato com
focos endêmicos já recrudescidos, como a Índia, Oriente Médio, China e Japão.
Juliano Moreira, defensor da proposição da não responsabilidade africana na
configuração do quadro endêmico brasileiro, baseando-se em autores que percorreram
a África, respondia a polêmica da seguinte forma:
70
“Por conseqüência de tudo isso que vejo, digo que o mais razoável de se
afirmar é que os portugueses e os Espanhóis foram os introdutores
principais da lepra no Brasil, e que os negros importados da África
constituíram-se em grande parte das vítimas deste terrível mal.”
16
A mesma opinião, pode ser encontrada recentemente em Jopling que faz a
seguinte afirmação:
“Na minha opinião, em termos análogos, é uma doença mais recente na
África, ao sul do deserto do Saara, tendo sido trazida por colonos
portugueses em Angola e Moçambique e provavelmente por comerciantes de
escravos árabes do norte da África.”
17
O motivo que torna necessário lembrar deste fato é simples. A maioria dos
escravos brasileiros de origem africana era proveniente da referida região sul do
continente, de lugares como Angola, Moçambique, Costa da Mina, Guiné e outras.
Porém, ainda mais recente do que a introdução da doença na América foi sua
chegada na Austrália e ilhas do Pacífico, onde acredita-se ter sido levada por
imigrantes chineses e europeus, estabelecendo-se e difundindo-se rapidamente na
segunda metade do século XIX
18
.
Uma vez no Brasil a hanseníase logo iria difundir-se acompanhando os
movimentos migratórios introduzidos pela colonização. As cidades litorâneas que
funcionavam como centros comerciais e portos de importância estratégica foram as
primeiras a registrar a preocupação com a doença. As carências documentais não
permitem reconstruir o caminho que a doença teria percorrido desde sua chegada até
o século XVII, quando se registram as primeiras queixas, pedidos de providência e
fundação de hospitais, ou asilos, para os leprosos.
Uma das iniciativas pioneiras foi o “Campo dos Lázaros”, já existente em
Salvador desde 1640, que se caracterizava como um lugarejo destinado a receber os
“morphéticos” sem nenhuma estrutura e mantido por particulares através da caridade,
semelhante ao “Vale dos Leprosos” do épico Bem-Hur.
No Rio de Janeiro existiam inúmeros doentes já no século XVII, chegando-se
a constituírem motivo de “preocupação” para as autoridades locais. Data de 1697 uma
tentativa sem êxito de se fundar um lazareto na cidade por parte do Senado da
16
MOREIRA, Juliano. Apud: Idem., p.11.
17
JOPLING, William H. Op. Cit., p.06.
18
Idem, p.06.
71
Câmara municipal e do governador e capitão general Artur de Sá e Menezes. O rei de
Portugal, D. Pedro II, o pacífico, terminou por inviabilizar o dito hospital ao impor
uma condição em troca da autorização real para sua abertura. A Câmara Municipal
deveria responsabilizar-se pelo custeio do estabelecimento, o que foi prontamente
recusado, apesar das inúmeras queixas enviadas a Lisboa reclamando sobre a situação
“tan inficcionada de Lázaros” de São Sebastião do Rio de Janeiro e da assinalada
urgência de um lazareto na cidade
19
.
Em Recife, porto estratégico, dado a maior proximidade da metrópole
portuguesa, a hanseníase já era bastante difundida desde o início do século XVIII,
sendo nesta cidade fundado por volta de 1714 o primeiro “Asylo para leprosos” do
Brasil, semelhante a uma casa de Expostos:
“(...) No Recife, em 1714, foi fundado o primeiro Asylo para leprosos. Esse
Asylo, que teve por criador o Padre Antonio Manoel e por sede a sua própria
casa, era situado na rua Nunes Machado, no local onde se acha hoje
(setembro de 1933) o colégio São José. Conta o prof. Octávio de Freitas, (...)
que o Padre Antonio Manoel ‘trouxe da povoação de Nossa Senhora do Ó
alguns pobres lázaros, que vira pelos campos como brutos e os recolhera em
sua casa no mesmo bairro’ ”.
20
(sic)
Quarenta e quatro anos depois da tentativa frustrada de se edificar na cidade
do Rio de Janeiro um lazareto, o rei de Portugal, Dom João V, autorizou o então
governador e capitão general Gomes Freire de Andrade, I Conde de Bobadela, através
da Carta Régia de 03/02/1741 a fundar o dito estabelecimento da forma que julgasse
mais conveniente. Este o mandou construir com recursos próprios em caráter de
emergência no lugar denominado Colina de São Cristóvão, um asilo para leprosos,
inaugurando-o no dia 07/08/1741.
Este asilo carioca constituía-se numa área afastada da cidade onde foram
edificadas algumas casinhas e choupanas paupérrimas para “abrigar” os leprosos
objetivando cessar o incômodo trânsito de “morféticos” no centro do Rio de Janeiro.
Em 1763, com a morte de Gomes Freire de Andrade, e quatro anos após a expulsão
dos jesuítas do Brasil, o Bispo Dom Antônio do Desterro (1964-1773) solicitou ao rei
de Portugal, Dom José I, a doação da Casa dos Jesuítas de São Cristóvão, antes
convento, para sedear o Hospital para os leprosos que se queira fundar. Com a
19
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. Op. Cit, pp.19-25.
20
Idem., p.109.
72
autorização do rei e a aceitação por parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento da
Candelária em administrar o estabelecimento, os 52 morféticos existentes no asilo do
Conde Bobadela foram transferidos para dentro do antigo convento dos jesuítas
dando origem ao Hospital dos Lázaros do Rio de janeiro. Este mesmo
estabelecimento ainda seria denominado posteriormente de: Imperial Hospital dos
Lázaros do Rio de Janeiro e Hospital Frei Antônio, a partir de 1941, em homenagem
ao Bispo Dom Antônio do Desterro
21
.
Em salvador, a 21/08/1787 inaugurou-se o Hospital São Cristóvão dos
Lázaros da Bahia na Quinta dos Jesuítas, para onde foram removidos os doentes que
se encontravam no “Campos dos Lázaros”. Em Pernambuco o Hospital dos Lázaros
de Recife foi inaugurado em novembro de 1789 para onde foram levados os doentes
do “Asylo de Leprosos” do Padre Antônio Manoel.
Em São Paulo, os primeiros hospitais para leprosos remontam ao início do
século XIX. Em 1802 o governo doou um terreno para Santa Casa de Misericórdia da
Capital, denominado Chácara da Olaria, onde se iniciou a construção do primeiro
hospital do gênero da então capitania. A conclusão das obras ocorreu em 1820,
ficando conhecido o estabelecimento como o Hospital da Luz, tendo funcionado em
precaríssimas condições até 1904 quando foi fechado
22
.
No interior de São Paulo, o mais antigo hospital é o da cidade de Itu. Erguido
em 1806 pelo padre Antônio Pacheco da Silva em uma chácara de sua propriedade.
Este hospital tornar-se-ia famoso pela atuação nele desenvolvida pelo seu diretor, a
partir de 1867, o padre Bento Dias Pacheco. Em Campinas foi criado um asilo para
doentes em 1863
23
.
Em Piracicaba a conclusão das obras do asilo postergaram-se demais. Quando
concluída em 1880 já não havia mais leprosos naquela cidade para serem “abrigados”
no recém-
construído estabelecimento. A população local, temerosa de ser
“inficcionnadas” pelo hediondo mal, encarregou-se de afugentar e expulsar os
morféticos que pelas ruas esmolavam. O asilo foi entregue a Câmara Municipal sem
internos, ou seja, um Asilo de Leprosos sem leprosos.
21
Para mais detalhes ver: Idem, p.32/Est04 e pp.58-94.
22
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.83-88.
23
Idem, p.94.
73
O primeiro hospital da região norte foi o de Belém do Pará inaugurado em
1815 no bairro Tocunduba, construído pela Santa Casa de Misericórdia daquela
cidade. Na capital do Maranhão providenciou-se um asilo para os leprosos que teve
seu funcionamento em 07/07/1833. Este ficava localizado atrás do antigo cemitério da
Irmandade da Misericórdia, na rua do Passeio:
“Finalmente, sendo estabelecido o mesmo hospital (refere-se ao asilo de São
Luís) com o número de 28 doentes como já disse, tem-se ali conservado esse
número com pequenas alterações para mais ou para menos em conseqüência
de falecimentos de uns e entradas de outros, existindo em 1880-33 e em
1881-35 doentes.”
24
Em Cuiabá, o primeiro leprosário de Mato Grosso e região data de 1816, com
o nome de Hospital de São João dos Lázaros, possibilitado e viabilizado graças a uma
herança deixada por Manoel Fernandes Guimarães que destinou para tal obra metade
de seus bens.
Em Minas Gerais, a introdução e disseminação da doença provavelmente
remonta ao início do Ciclo do Ouro, isto é, séculos XVII e XVIII. Antônio Francisco
Lisboa (1738-1814), o Aleijadinho, portador de hanseníase, já apresentava sintomas
da doença por volta de 1778 aos 40 anos de idade
25
. A iniciativa mais antiga para com
os leprosos na região data de 1771, quando por intermédio de particulares, através de
caridade, fundou-se na Serra da Caraça um asilo para abrigo dos doentes que ficou
conhecido como Hospital de Nossa Senhora da Mãe dos Homens.
No entanto, um estabelecimento maior foi construído em Sabará e inaugurado
em 31/03/1883. Este, similar ao que ocorrera em Cuiabá, também foi proporcionado e
viabilizado por uma herança particular, deixada para este fim. O Capitão português
Antônio de Abreu Guimarães, enriquecido durante o período que residiu na Capitania
de Minas Gerais, ao regressar para Portugal em 1787, doou tudo que possuía no
município de Sabará em “benefício da educação, assistência e saúde públicas”. A
herança ficou sob a administração do sobrinho do capitão que não conseguiu executar
24
MAGALHÃES, José Lourenço de. Op. Cit., p.75.
25
Sobre Aleijadinho ver: FURTADO. Tancredo A . O Aleijadinho e a Medicina. Belo Horizonte,
Centro de Estudos Mineiros/UFMG, 1970:, GUSMÃO, Marcos. O mal do mestre. In: Veja. Editora
Abril, São Paulo, nº 31, edição 1539, 25/03/1998 (p.68).; SOUZA-ARAÚJO, Heraclides César de. Op.
Cit., p.133/134.
74
até a sua morte em 05/04/1807, as vontades do tio expressas em testamento. O início
das obras ocorrera no ano de 1843 e a conclusão em 1883 quando foi inaugurado
26
.
Assim, até 1883 o Brasil já enumerava 12 cidades que possuíam asilo/hospital
para os leprosos, são elas: Salvador (1640/1787); Recife (1714/1798); Rio de Janeiro
(1741/1763); Santa Bárbara/MG (1771); São Paulo (1802); Itu (1806); Belém (1815);
Cuiabá (1816); São Luís (1833); Campinas (1863); Piracicaba (1880) e Sabará
(1883). Pode-se verificar através da fundação destas instituições como a endemia se
difundiu no país até finais do século XIX.
Embora se tenha utilizado neste texto a parelha asilo/Hospital é preciso
salientar que se procurou conservar a denominação original de época, isto é, aquela
pela qual os referidos estabelecimentos ficaram conhecidos e se encontra expressa nas
fontes. Em Minas Gerais, o Hospital de Nossa Senhora da Mãe dos Homens encontra-
se freqüentemente citado como Asilo da Serra da Caraça
27
. A “confusão” tem
fundamento. Não havia até o século XX, principalmente com relação a lepra, critérios
definidos para diferenciar as instituições. Asilo e Hospital figuravam com ampla
sinonímia. Os dois apresentavam diversas características em comum.
Souza-Araújo afirma em seu livro
1628
que o hospital dos lázaros do rio de
janeiro trata-se do primeiro do gênero dedicado aos leprosos no Brasil. Desta forma,
não considera como Hospital as iniciativas da Bahia de 1640, denominada “Campo
dos Lázaros”, e o “Asylo de Leprosos” do Padre Antônio Manoel em Recife de 1714.
Como não há, na sua obra anteriormente referida, explicitada nenhum critério
para tal distinção, fica subentendida uma predileção exacerbada pela iniciativa
carioca, principalmente, quando retroage 22 anos a data da fundação do Hospital do
26
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. Op. Cit., pp.133-134 e 532.
27
Segundo José Lourenço de Magalhães (p.67) esse asilo foi convertido em “Casa de Educação”.
Embora ele não faça menção, provavelmente está se referindo ao renomado Colégio do Caraça,
inaugurado em 1821, no município de Santa Bárbara/MG, administrado pelos padres “lazaristas”,
também conhecidos por “vicentinos”, clérigos regulares pertencentes à Congregação dos Padres da
Missão, fundada em 1625 por São Vicente de Paula.
Não é fácil precisar a data a partir da qual o Colégio do caraça teria adquirido seu renome.
Talvez a ausência de uma referência explícita ao colégio secundarista do Caraça se explique pelo fato
deste ainda não ser afamado na época em que Magalhães publicou o seu livro, isto é, em 1882.
Um último esclarecimento diz respeito ao termo “lazaristas”. Este não se relaciona a lepra.
Em 1632 a Congregação de São Vicente de Paula se estabeleceu no Colégio de São Lázaro de Paris, o
que terminou por dar origem ao termo.
28
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. Op. Cit., pp.35/49.
75
76
Rio de Janeiro, nela incluindo o período de duração do “Asylo do Conde
Babadela” na idade daquela instituição. Se este procedimento for aplicado aos demais
estabelecimentos, o primeiro do gênero no país seria o da Bahia, que recuaria até o
ano de 1640. Ele mesmo declara em seu livro que em documentos do próprio hospital
do Rio datava-se a fundação do estabelecimento em 1763 e não em 1741.
“O Vice-rei Conde de Babadela creou no bairro de São Christóvão, então
quasi deserto, um asylo para os infelizes morpheticos, não só para desvial-os
do centro da cidade e do contacto da população, como para prestar-lhes a
alimentação que a hediondez da enfermidade, lhes tornava de diffícil
acquisição. Este asylo, porém limitava-se a umas insignificantes choupanas,
que mal abrigavam os infelizes asylados das intempéries das estações, e era
dirigido por alguns donatos de convento dos religiosos Franciscanos, e
servido por alguns escravos e escravas condemnados, se retiravão da cadeia
para esse fim, sendo a manutenção de todo o pessoal feita a expensas do
bolsinho particular do mesmo vice-rei.”
29
(sic)
Conforme se pode observar no trecho acima, a iniciativa de Gomes Freire de
Andrade no Rio de Janeiro não se diferencia do que foi realizado na Bahia em 1640 e
em Recife em 1714. O critério utilizado por Souza-Araújo para eleger apenas a
iniciativa carioca como hospital não é por ele declarada.
“O Conde de Bobadella com grande caridade mandou pôr huma grande
parte destes lastimosos empestados no sitio de Sam Christóvão, distante este
meia Legua desta cidade, e alli lhe estabelece Enfermeiro, e com as suas
esmolas os Sustentava. (...) Pessoalmente fui examinar o sitio de Sam
Christóvão, que os cincoenta e dois Leprosos se acham, e alli vi que
ocupavão humas pobríssimas Cazinhas, ou choupanas, e estas arruinadas. Vi
que estavam assistidos por trez Enfermeiros Donatos dos Religiozos de Santo
Antônio, e que estes com grande amor de Deos lhe assistião, ajudados
somente de algumas Negras, que por crimes graves forão mandadas das
Cadeias para aquelle mistério. (...) Pelo que direi o remédio que se pode
aplicar para que todos estes Leprosos se separem da Cidade, afim de que se
não multiplique o mal, como prezentemente succede. No mesmo Destricto de
Sam Christovão, e pouco distante do Sitio aonde prezentemente estão os
Lázaros há huma Caza muito própria para Hospital delles. Foi esta Caza
dos Jesuítas, e he prezentemente de Sua Magestade; não rende, nem pode
render coiza alguma, e está desabitada, e por esta cauza arruinando-se; tem
bom commodo para cem Enfermos, e boa ordem para se lhe poderem fazer
divizões, e serventias diversas para homens, e mulheres: tem Capella no
centro do edifício, e está à borda d’agua para comodidade da sua Serventia;
tem hum rio d’agua doce pela porta para o remédio dos banhos; tem grande
chão para horta, o que também lhe he necessário; e muito bom território
para o pasto das vacas de leite; e está em hum alto lavado de todos os
29
Idem., pp.37/38.
77
ventos; não tem passagem alguma por nenhum dos seus lados e em fim
parece que foi esta Caza feita de propozito para o ministério, em que a
pretendo empregar.(sic)”
30
Essa discussão acerca da data de fundação do Hospital dos Lázaros do Rio de
Janeiro objetiva demonstrar que obras consideradas “clássicas” como a de Souza-
Araújo também encerram contradições e, da mesma forma que todo os outros textos,
são permeados pela subjetividade dos seus autores.
Se o início do estabelecimento do Rio data de 1741 ou 1763 é, neste caso, uma
questão secundária. Até porquê, conservando-se as denominações de época,
efetivamente é ele mesmo o primeiro a receber o qualificativo de “Hospital” em
1763, não necessitando, portanto, de retroagir sua idade 22 anos, isto é, até o início do
funcionamento do “Asylo do Conde Bobadela” em 1741, apesar de que, é sempre
bom reafirmar, ele em quase nada se diferenciava das suas iniciativas que lhe
precederam. Para José Lourenço de Magalhães o “Hospital da Corte” era o único em
1882 digno de tal reputação:
“Hospital de Lázaros da Corte Este hospital apresenta a quem o visita os
cuidados de rigoroso asseio. Dos hospitais para morféticos é o único que tal
qualificação merece. (...) Os doentes de um e outro sexo occupam
pavimentos differentes. A alimentação, si bem que não seja a mais
rigorosamente adaptada a semelhante moléstia, é contudo abundante e de
boa qualidade. Devido a consideráveis accrescimos feitos há sete annos, na
esperança de que o hospital viria a receber muito maior numero de doentes,
o que aliás não tem succedido, proporciona espaço para numero quatro ou
cinco vezes superior ao dos morféticos que habitualmente o freqüentam. Si se
tratasse de hospital para outras enfermidades, eu não opporia objecção
alguma; sendo, porém, para morféticos, penso que o imperial hospital de
Lázaros da Corte não satisfaz as verdadeiras condições hygienicas e
clinicas.”
31
(sic)
Contudo, faz-se necessário deslindar o caminho, as interpretações e análises
construídas pelo autor, sempre contextualizando-o de acordo com sua época e sua
biografia. Assim, o arranjo utilizado por Souza-Araújo, com relação ao Hospital do
Rio, deve ser explicitado para que nele não se agregue nenhuma acepção de “verdade
científica”. O mesmo pode-se dizer da questão dos cativos africanos, os quais
responsabiliza pela introdução e disseminação da hanseníase no Brasil. Neste trabalho
quer se discordar taxativamente desta proposição.
30
Idem., ibidem., p.55.
31
MAGALHÃES, José Lourenço de. Op. Cit., pp.65/66.
78
Desta forma, todas as iniciativas referidas neste texto, incluindo o “Asylo do
Conde Bobadela” de 1741
32
, apresentam as mesmas características, isto é, remontam
ao modelo do hospital existente desde a Idade Média até o século XVIII:
“Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de
assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de
reparação e exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e,
como doente, portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por
estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, quanto
para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do
hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre
que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e
espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último
sacramento. Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se correntemente,
nesta época, que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o
pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do
doente, mas a conseguir sua própria salvação. Era um pessoal caritativo-
religioso ou leigo que estava no hospital para fazer”. uma”. obra de
caridade que lhe assegurasse a salvação da alma do pobre no momento da
morte e a salvação do pessoal hospitalizar que cuidava dos pobres. Função
de transição entre a vida e a morte, de salvação espiritual mais do que
material, aliada a função de separação dos indivíduos perigosos para a
saúde geral da população.”
33
Neste trecho, Foucault penetrando pelo interior do hospital medieval e
renascentista descreve como estas instituições, que aparece aos olhos do século XX
tão imbricadamente imbuída de cunho profilático, revela-se, em sua origem, atrelada
a outras implicações nada médicas, mas sim religiosas, caritativas e objetivando
salvar os “sãos” do possível “contacto” com “entes perigosos” para o convívio social.
Desta forma, pelo que Foucault demonstra, a iniciativa carioca encontra-se
perfeitamente cabível dentro dos parâmetros habituais do que se praticava com os
leprosos até o século XVIII, isto é, o hospital excluidor. Portanto não se encontra
justificativa para a diferenciação estabelecida por Souza-Araújo. O único critério que
parece ser implicitamente utilizado para desqualificar os asilos anteriores ao do Rio
de Janeiro é o fato da não existência da figura do mantenedor, firmado em
compromisso, seja este religioso ou estatal, sendo apenas custeados de forma bastante
irregular através da caridade, aliás, o que também ocorria com o “Asylo do Conde
Bobadela”. A orientar-se pelo critério da existência definida e firmada em
32
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. Op. Cit., p.66.
33
FOUCAULT, Michel. O Nascimento do Hospital. In:----------.Microfísica do Poder. Rio de Janeiro,
Edições Graal, 15º edição, 2000 (pp.101/102).
79
compromisso da figura do mantenedor, o primeiro estabelecimento para leprosos no
Brasil seria o Asilo de Campinas/SP de 1863, custeado pela Câmara Municipal
daquela cidade
34
.
Assim, dada a carência documental, utiliza-se a construção dos primeiros para
leprosos como indicador da disseminação da doença pelo território brasileiro. Com
exceção de Minas Gerais e São Paulo observa-se que a doença primeiro instalou-se
nas regiões litorâneas e só depois difundiu-se pelo interior acompanhando o
movimento próprio da colonização e povoação do país.
Em São Paulo, durante o século XIX foram realizados quatro Censos de Lepra
demonstrando como a endemia se expandia e se consolidava naquela província. O
primeiro deles ocorreu em 1820 e os demais nos anos de 1851,1874 e 1886.
35
Em
Minas Gerais um censo realizado apenas na região sul aponta uma incidência de 1,11
por 1.000 habitantes que pode ser considerada bastante alta para aquela época cuja
credibilidade dos censos não é das maiores
36
.
No limiar do século XX o problema da lepra já era considerado bastante grave
no Brasil, aumentando o número de pessoas que com ele se preocupavam. Nesta
época, a grande ênfase dada a Saúde Pública era lago relativamente inédito na história
brasileira. Esta importância lhe atribuída ainda carecia de consolidar seu apoio social,
o que se tornou possível devido a existência de inúmeros surtos de doenças
epidêmicas, como a varíola, febre amarela, malária e outras que “aterrorizavam” as
elites da época e abriram brecha para a implantação de medidas de cunho
companhistas
37
, com caráter de ação pontual e emergencial objetivando a solução dos
problemas que então se apresentavam.
34
MAGALHÃES, José Lourenço de. Op. Cit., p.76.
35
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.72.
36
SOUZA-ARAÚJO, Heraclides-Cesar de. Op. Cit., p.530-532.
37
O que se convencionou chamar de “modelo campanhista” de intervenção estatal na área da saúde
obedece a princípios herdados do estilo militarista de polícia médica.
Adotando-se uma terminologia militar e objetivando-se criar um ambiente propício e
galvanizador de energias e esforços para a resolução dos problemas de saúde pública, tomava-se de
empréstimo a metáfora da “guerra” nas ações então praticadas. Buscava-se um clima de euforia,
parafraseando-se o ideal do “esforço de guerra”, onde atitudes não habituais encontravam apoio social
dado a anunciada situação de contingência.
“A honra da medicina brasileira está em jogo; agora é combater ou desonrar-se aos olhos do mundo
culto; é preciso mobilizar a medicina nacional como soldados em tempo de guerra, para a grande
batalha sanitária” (GOUVEIA, A . E. “A missão do médico e da mulher” In: I Congresso
Brasileiro Proteção à Infância. 6º Boletim. 1921-1922.pp290-314. Apud: MONTEIRO, Yara Nogueira.
Op. Cit., p.140.)
80
A lepra mesmo diferenciada das outras doenças, adquiria novos contornos no
início do século XX quando passou-se a exigir para seu controle a emergência e
interferência de outro tipo de saber na lida com tão antigo flagelo. Este saber, a
medicina, se autoproclamava capaz de debelar da nação tão hediondo e horrendo mal,
reivindicando para isso amplo apoio social e estatal, elaborando metas e planos
“profiláticos” que denominaram a cena e roubaram as atenções durante várias
décadas que se seguiram.
2.2 Lepra, caridade e filantropia
“(...) porque a caridade não é um favor e sim um dever social. Os que podem
devem dar aos que não podem. O sadio deve amparar o doente, porque,
assim, amparará a si próprio e defenderá a si mesmo.
17
A caridade cristã significa uma doação material ou espiritual, espontânea e
desinteressada. Na Bíblia, particularmente no Novo Testamento, ela é comparada
com o amor de Deus para com as criaturas e a humanidade. A generosidade divina
caracteriza-se como um movimento afetuoso que vai até as ultimas conseqüências.
Deus doa o seu único filho para morrer pelos homens e redimi-los de seus pecados.
Bondade gratuita e infinita
18
. E se Deus é definido como puro amor
19
, que se
No caso específico da lepra no Brasil têm-se, entre outros, os seguintes flagrantes desta
concepção: Revista de Combate a Lepra, Semana de Combate a Lepra, Fundação Paulista Contra a
Lepra, Campanha de Solidariedade e Defesa da Raça, Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa Contra a Lepra, Campanha Nacional contra a Lepra CNCL (CF. lei nº 3542 de
11/02/1959).
Esta concepção campanhista de intervenção na área de saúde, fundamenta, em geral, ações
pontuais e localizadas, quase sempre de caracter emergencial com objetivos bem delimitados e
específicos e com curtos períodos de duração. Ela não se expressa em forma de atenção permanente,
através da constituição de uma rede institucional dedicada exclusivamente, ou não, a determinadas
doenças.
Este modelo de ação se mostra até hoje bastante influente no Brasil. Entre alguns exemplos
pode-se citar o episódio ocorrido no Rio de Janeiro em 1904 que ficou conhecido como Revolta da
Vacina e as atuais “campanhas de vacinação”. Quanto as campanhas específicas de lepra ocorridas no
Brasil serão abordadas posteriormente neste trabalho. Para mais detalhes ver: sobre polícia médica:
ROSEN, George. Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1980
(notadamente o capítulo V.; sobre a concepção de campanha: MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit.,
p.149.; MOREIRA, Tadiana Maria Alves. As campanhas de Hanseníase no Brasil. (Mestrado em
Saúde Pública), ENSP/FOC/MS, 1997.
17
RAMOS, Nerêu. Discurso pronunciado pelo interventor Nerêu Ramos por ocasião da inauguração
do ‘Educandário’ Santa Catarina. In: Revista de Combate à Lepra. Ano VI, março de 1941(p.90).
18
João 3:16-21; 13:01-20; 15:09-11; Gálatas 02:15-20; Efésios 02:01-10.In: Bíblia Sagrada.
81
manifesta através da sua doação para com os homens, logo, ele é misericordioso e
caridoso. Os cristãos, nesta acepção, por extensão, “em tese”, também deveriam sê-lo.
“Se emprestai àqueles de quem esperais receber, que recompensa mereceis?
Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro
tanto. Pelo contrario, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai, sem
daí esperar nada. E grande será a vossa recompensa e sereis filhos do
Altíssimo, porque ele é bom para com os ingratos e maus. ‘Sede
misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. Não julgueis, e
não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e
sereis perdoado: daí, e dar-se-vos-á. (...).
20
Assim, o amor ao próximo, ao irmão, na perspectiva cristã, deve ser a
motivação de todas as caridades. Mas, é necessário tratar-se de um sentimento
espontâneo e desinteressado. O bem que se faz para os outros só será retribuído
diretamente por Deus quando, além de preencher as condições anteriormente
descritas, não se receba por ele nenhuma recompensa em vida. O ideal é a caridade
em segredo, pois os autênticos caridosos irão habitar no céu na casa do “Altíssimo”.
A caridade é ainda o sinal distintivo dos discípulos de Cristo
21
. Os cristãos
caridosos não ficariam sem sua recompensa nos céus. Dessa forma, ambos se
beneficiariam, tanto os que praticam quanto os que recebem à ação caritativa.
Com relação a caridade que envolveu a lepra durante séculos, e que de certa
forma ainda sobrevive, o Levítico
22
desde muito cedo legislou sobre esta apontando
os caminhos e atitudes para com aqueles que eram seus acometidos.
“A figura do leproso não tem um significado único para a comunidade: ele é
ao mesmo tempo portador de perigo e digno de caridade, compaixão. Sua
solidão aproxima-se da solidão da morte, desperta ou deve despertar a
mesma solidariedade que os mortos. Assim como não se deixam cadáveres
insepultos, não se deve deixar leprosos desamparados. É um dever de
caridade sepultar os mortos e amparar, dar abrigo àqueles que se acham
entre a vida e a morte. Sendo assim, o leproso é e pode ser qualquer um;
entre si distinguem-se pelo recurso à medicina e pela possibilidade de se
furtar à visão pública; para os sãos, possíveis futuros leprosos, ele é aquele
que os ameaça e por quem se deve ter compaixão.”
23
19
Primeira Epístola de São João 04:07-21.blia Sagrada.
20
Lucas 06:34-38. Bíblia Sagrada.
21
João 13:34-35. In: Bíblia Sagrada.
22
Levítico 13:40-45. In: Bíblia Sagrada.
23
MACHADO, Roberto, et alli. Danação da norma: a medicina social e constituição da
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1978(p.75).
82
Dessa forma, no Ocidente Cristão, a Bíblia e a Igreja Católica desempenharam
importante papel com relação a lepra. Ambas, simultaneamente, instituíram a
segregação, que mais tarde se converteria em isolamento, e a caridade para com os
leprosos. Esta benevolência e compaixão para com estes párias constituiu-se, de certa
forma, numa reparação oferecida em troca da imposição da exclusão que sobre eles
recaia a partir da publicidade dos sinais de sua lepra. A caridade era a contrapartida
da exclusão. O leproso era excluído, porém acolhido como merecedor das práticas
caritativas.
“A caridade nasceu com o cristianismo, que estimulou a fundação de obras
de assistência não somente para prestar socorro material e espiritual,
porém, sobretudo, visando a constituição de uma verdadeira legião de
repaganizadores da sociedade. Estes objetivos, favorecidos pela indistinção
entre o público e o privado, foram alcançados mediante a fundação,
desenvolvimento e funcionamento de associações que, embora organizadas
segundo os princípios da ação missionária cristã, exerceram funções
próprias ao Estado moderno: encarregaram-se do controle e circulação das
pessoas, recolheram das ruas aqueles indivíduos considerados ‘socialmente
perigosos’, promoveram a administração das Cadeias Públicas,
organizaram normas para o funcionamento dos hospitais e asilos, criaram
condições estatutárias para educação de meninas e meninos órfãos nos
educandários, além de operarem como polícia médica, denunciando surtos
epidêmicos e determinando o arresto de determinadas categorias de
enfermos.
24
As ações caritativas que cercaram a lepra, desde a antigüidade até o século
XIX, aproximadamente, revestiram-se de uma tônica predominantemente religiosa.
Auxiliar os leprosos era um dever de caridade cristã. A partir do final do século XIX
ocorreu uma mudança de fundamentação, deixando-se gradativamente a
preponderância religiosa até então existente e substituindo-a ao âmbito do discurso
que se veiculava, por conhecimentos médicos, higiênicos e eugênicos, sendo que este
último contou com notável repercussão. Surge então uma filantropia que desenvolvia
uma prática um pouco mais sistemática e que operava com uma base conceitual
medicalizada e secularizada, reatualizando o medo que sempre revestiu a lepra
através da noção de contagio, embasando-se para isso na teoria microbiana das
doenças. Em suma, zelar pelos lázaros era uma forma de se efetivar a “defesa da
raça”.
24
ABREU, Sérgio França Adorno, et alli. A arte de administrar a pobreza: assistência social
institucionalizada em São Paulo no século XIX. In: TRONCA, Ítalo A.(org.). Foucault Vivo.
Campinas, Editora Pontes, pp.101-109(p.102).
83
Outra mudança ocorrida nesta época foi com relação aos grupos que se
dedicavam e praticavam a caridade e a filantropia.
“O cristianismo foi pioneiro na promoção do atendimento humanitário
organizado aos leprosos. Aliás, o próprio Cristo já havia dado exemplo. O
nobre cristão Zótico construiu por primeiro um leprosário em Bizânico,
antes dos meados do século IV. S. Basílio seguiu-lhe os passos em Cesaréia
da Capadócia. O Imperador Justiniano esmerou-se nesse trabalho
assistencial e caritativo. Promoveu a construção de hospitais próprios para
os leprosos, mas que em nada se distinguiam dos demais nosocômios. Placila
e Sofia, esposas dos imperadores Teodósio e Justiniano, também se
distinguiram no atendimento a esse tipo de doentes. As maiores dioceses da
época recolhiam e tratavam em seus hospitais os portadores do mal. A
iniciativa particular, por sua vez, não deixou para menos. Surgiu até uma
ordem religiosa especializada para o atendimento dos leprosos, a Ordem de
São Lázaro. As Ordens Cavaleirescas e Hospitalares, muito numerosas e
ativas na Idade Média, dedicaram especial atenção aos leprosos. Esses
doentes, portanto, não estavam entregues, como muitos ainda hoje crêem à
execração de toda a sociedade. Se, de uma parte, sofriam limitações, de
outra, recebiam apoio. (...)
Tudo somado, o trato que a antiguidade cristã e a Idade Média
dispensaram aos leprosos não vai isento de limitações e de durezas
reprováveis, mas também não desmerece a caridade. Antes, a exalta.”
25
Até o limiar do século XX , este era um espaço de atuação dos religiosos.
Padre Damião de Veuster, Padre Bento, entre outros são nomes destacáveis do
século XIX. Estes religiosos tanto dirigiam e administravam as ações caritativas
quanto as exerciam na prática. Nota-se que todos os asilos/hospitais brasileiros para
leprosos do século XIX vinculavam-se de alguma forma, quando não completamente,
à Igreja Católica ou a uma Ordem, ou mesmo a um determinado religioso.
“A presença da Igreja a serviço dos hansenianos, no Brasil, teve e continua
tendo destaque. Todos os sanatórios de hansenianos, enquanto funcionavam,
tiveram serviço religioso regular, com a presença de padres que se
dedicavam a tempo integral. não se limitavam, porém, ao atendimento
religioso, mas faziam o papel de autênticos assistentes sociais, atendendo os
doentes e suas famílias de mil modos. E as religiosas? Em quantos
sanatórios desempenharam serviço generoso e diuturno, com dedicação que
só a caridade cristã conseguia justificar.”
26
No entanto, no decorrer do século XX, a filantropia que se relacionava com a
lepra iria se secularizar. A aproximação que ocorreu, neste século, entre filantropia e
25
ARMS, Cardeal.(Paulo Evaristo).Apresentação. In: SANTOS, Frei João Baptista Pereira dos. OP.
Hanseníase: doença física ou chaga social. São Paulo, Edições Paulinas, 1984(p.06/07).
26
Idem., p.09/10.
84
Medicina Social iria resultar num congraçamento onde os religiosos acabariam tendo
seus espaço ocupado por novos atores sociais. Quem emergiu nesse novo contexto
medicalizado e secularizado foram inúmeros beneméritos e beneméritos civis. As
primeiras décadas deste século lograram produzir associações de amparo e “damas
ilustres” com projeção nacional devotadas à causa da lepra.
No entanto, esses laicos caridosos não adotaram um conjunto de práticas
discursivas e não-discursivas
substancialmente
27
diferente daquilo que era realizado
pelos antigos religiosos. De uma forma geral, a filantropia que historicamente se
relacionou com a lepra tinha como objetivo maior viabilizar a exclusão e posterior
isolamento dos leprosos através da atenuação dos seus sofrimentos e angústias no
desterro a que eram submetidos; o que, em proporções imensamente menores,
constituiu-se no efetuado pelos religiosos desde a Idade Média.
“A sociedade, que tira a estes doentes a liberdade, tem o dever imperioso de
assegurar-lhes o bem estar material e tudo que possa atenuar a crueldade da
sua sorte.
28
”(sic)
Com essa perspectiva, caritativa/isolacionista, surge no Estado de São Paulo
em 1917 a Associação Protetora dos Morféticos. Esta, desde sua fundação
intencionava edificar o primeiro asilo-colônia modelo para leprosos do Estado, tendo
as seguintes finalidades principais, conforme seu estatuto:
“abrigar e amparar as famílias dos doentes hospitalizados; proporcionar
habitação modesta e confortável ao doente que por motivos respeitáveis não
quisesse ou não pudesse separar-se; asilar e educar os filhos dos
hansenianos de modo a preserva-los do contagio paterno; prestar assistência
judicial aos doentes, além de outros objetivos de alcance social.
29
27
Adotou-se neste trabalho essa classificação dicotômica: “discursivas” e “não-discursivas”, porque
ela permite distinguir, dentro da perspectiva foucaultiana, dois conjuntos de práticas que apesar de
possuírem origem comum, isto é, os discursos sociais, apresentam características suficientes para
admitir essa diferenciação.
O primeiro conjunto refere-se às práticas mais relacionadas a divulgação, disseminação e
difusão de saberes e conhecimentos propriamente ditos. O segundo está aludindo às práticas que
remontam mais a idéia de “atitudes”, vinculam-se portanto ao cotidiano, possuem um caráter mais
empírico, lembram um automatismo dada a ampla consolidação de que desfrutam na cultura. Esta
classificação foi parafraseada do seguinte texto:
ABREU, Sérgio França Adorno, et alli. A arte da administrar a pobreza: Assistência Social
Institucionalizada em São Paulo no século XIX. In: TRONCA, Ítalo A. Foucault Vivo. Campinas,
Editora Pontes, 1987 (p. 101).
28
RIBAS, Emilio. A Lepra: respostas ás indagações feita pela associação Protetora dos Morféticos
com o fim de obter os dados para a humanitária solução do urgente e problema do mal de S. Lazaro.
São Paulo, POCAI & COMP., 1917, 39p. (cópia xerox) (p.20).
29
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit. p.100.
85
Essa entidade destacou-se por sua ampla atuação em meio à sociedade paulista
obtendo o apoio da Igreja através do arcebispo de São Paulo Dom Duarte Leopoldo e
Silva, da Liga das Senhoras Católicas, entre outros nomes de relevo da época o que
teria possibilitado, em curto espaço de tempo, arrecadar dinheiro suficiente para o
inicio das obras.
O terreno para a construção do estabelecimento foi doado pela Ordem
Carmelita Fluminense em 1918. Este situa-se a cerca de 40 km de distancia de Mogi
das Cruzes/SP, no local denominado campo do Santo Ângelo, nome este que mais
tarde designaria a instituição ai edificada, e possuía uma área de 194 alqueires.
Os planos de construção do Santo Ângelo revelaram-se tão grandiosos que
este terreno recebido em doação foi considerado de tamanho insuficiente. Assim mais
154 alqueires de áreas vizinhas foram adquiridos perfazendo um total de 348
alqueires.
A interferência do governo do Estado de São Paulo no empreendimento do
Leprosário Modelo terminou por dividir opiniões entre os membros da Associação
Protetora dos Morféticos, que insatisfeita acabou por dissolver-se em 15/04/1919
30
.
Ainda em São Paulo, Estado que notabilizou-se pela atenção dispensada a
“luta contra a morféia” no século XX, surgiria uma outra associação e duas “damas
ilustres” que iriam compor o cenário nacional da lepra. São elas: a Sociedade de
Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra e as Senhoras: Alice de Toledo
Ribas Tibiriçá e Maria da Conceição Costa Neves. E na década de 1930, outro nome
feminino procedente de Minas Gerais à estes viria se somar; trata-se de Eunice de
Souza Gabbi Weaver. Todas elas traziam em comum o fato de se relacionarem com a
filantropia e o assistencialismo moderno que cercava a lepra, incluindo sua tônica
principal, isto é, sua perspectiva que centrava-se na busca da atenuação dos
sofrimentos ocasionados pelo isolamento.
Alice Tibiriçá e a Deputada Maria da Conceição da Costa Neves são figuras
típicas da filantropia que cercou a lepra no século XX. Suscetibilizadas com o
sofrimento dos leprosos, ambas fizeram de suas vidas uma luta em prol do chamado
isolamento humanitário
31
.
30
Idem., p.100-105.
31
Sobre Alice Tibiriçá e a Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a
Lepra será abordado nos itens 2.3, 2.3.1, 2.3.2, deste capítulo.
86
Maria da Conceição Costa Neves deputada estadual por São Paulo, reeleita
para cinco mandatos consecutivos, especializou-se em defender os leprosos
denunciando e criticando o Departamento de Profilaxia da Lepra/DPL daquele
Estado. Para isso, utilizava-se da imprensa escrita e falada, a última, principalmente o
rádio. Seu primeiro mandato em 1947 somente foi possível devido a votação dos
familiares de leprosos internados nos asilos-colônias paulistas.
Extremamente polêmica, defendia com vigor as causas dos leprosos tendo
criado a Associação Paulista de Assistência aos Doentes de Lepra. Em 1947 foi
encaminhado um pedido de licença a Assembléia Legislativa de São Paulo para
processa-la por calúnia e injúria tal era a veemência de seus protestos contra os maus-
tratos ocorridos nos asilos-colônias.
“Parlamentar atuante, destacou-se pela maneira como encaminhava os
debates no plenário, sendo temida por todos e respeitada por muitos. Sempre
se saia bem nas polêmicas, porém utilizava métodos bastante questionáveis,
como, por exemplo, guardar documentos comprometedores de boa parte dos
políticos paulistas e não hesitava em usa-los caso precisasse.
32
Procurou aprovar leis que beneficiasse os leprosos, como o seu projeto de
Lei n.º 109/1947 que dispunha sobre a criação de um Serviço de Assistência Social
aos Doentes de Lepra subordinado ao DPL. Em outra ocasião, propôs um projeto
onde se previa que 20% dos empregos existentes nos asilos-colônias de São Paulo
fossem reservados para os leprosos com alta hospitalar confirmada, inaugurando,
assim, o debate a respeito da criação de quotas em concursos públicos.
Tanto Alice Tibiriçá quanto Maria da Conceição Costa Neves, embora tenham
sempre se posicionado a favor dos leprosos com ou sem interesses individuais
entremeados, não chegaram a questionar intrinsecamente a prática do isolamento ou
remeter um outro olhar sobre este que não fosse o mais largamente compartilhado na
época.
Com isso, não se está aqui exigindo delas um comportamento condizente com
uma racionalidade futura. Embora os críticos do isolamento sempre tenham existido,
os atores históricos não podem ser deslocados de sua época nem de sua biografia.
Entretanto, constata-se que o trabalho filantrópico realizado por elas, ainda
que divergissem em alguns pontos, não se diferenciava substancialmente do que
87
habitualmente, na época, se praticava com os leprosos. Ao contrário, apesar de todos
as polêmicas, existia uma sintonia com a orientação predominante no período, à
saber: a busca da atenuação dos sofrimentos ocasionados pelo “inevitável”
isolamento.
32
SCHUMAHER, SCHUMA, et alli. Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000(p.376).
88
89
90
91
92
As seis primeiras estrofes deste poema revelam toda a aspereza que envolvia o
leproso no momento de sua exclusão, de seu isolamento. O fim dos projetos de vida,
a interrupção da carreira profissional, o desmembramento familiar e a difícil
adaptação necessária para prosseguir a existência na “Cidade dos Lázaros.” Já as
duas últimas estrofes, aludem à perspectiva predominante da caridade eda filantropia,
leiga ou religiosa, sobre a lepra. Amenizar o sofrimento do Lázaro através da
solidariedade e do envio de ajuda material. Socorrê-lo. Tornar a sua vida cheia de
amarguras mais serena e confortável. Humanizar o cárcere. Fazer do Lázaro um
excluído sim, mas um excluído resignado, conformado e satisfeito. Em suma, um
pária feliz, se é que isso é possível.
Para Oswaldo Cruz e Emilio Ribas, defensores do isolamento dos leprosos, o
êxito dessa medida dependeria imensamente do ambiente aprazível, semelhante a
uma “Estação de recreio” que os asilos-colônias deveriam apresentar. Nunca um ar de
prisão. Estes estabelecimentos deveriam atrair espontaneamente os leprosos para
isolar-se, oferecendo em troca uma nova vida, num local agradável, cheio de farturas,
entretenimento e onde os “morféticos” pudessem ter a certeza de que não estariam
contribuindo para disseminar o “mal” para os seus entes queridos.
“Incompletos e insufficientes são nossos conhecidos acerca da transmissão
da lepra. Importa isto em dizer que nos fallece base scientifica para
constituir a prophylaxia especifica da moléstia. Não é essa razão bastante,
entretanto, para que fiquemos á moda dos musulmanos: braços cruzados
diante do flagelo que, aos poucos, se expande e alastra. O que é positivo é
que a moléstia se transmite. O como, não o sabemos. Mas o leproso é, ao
menos, um dos depósitos de vírus. Isto está provado. Dahi a necessidade de
isolal-o da comunidade (...) A hospitalização do leproso não é coisa
exeqüível como medida prophilatica. (...) No hospital, o leproso fica entregue
á sua fatalidade, tratado como doente, improdutivo, tendo como
preocupação exclusiva a moléstia que o infelicita e os governos ver-se-iam
sobrecarregados de colossal despreza. (...) A sequestração do morphetico só
é prática quando feita nas colônias de leprosos. São instituições
perfeitamente adequadas e onde o enfermo pode exercer toda a actividade
que as suas forças permittem. A colônia é uma pequena cidade com sua
existência própria, onde se encontram os elementos de vida necessários,
onde cada qual pode exercer livremente sua profissão, onde não faltam
elementos de distrações, onde o leproso não vive perseguido pela idéia unica
do mal que o tortura.”(sic)
33
33
CRUZ, Oswaldo. Uma questão de Hygiene Social. In: “O Imparcial” (Jornal carioca/imprensa
escrita), n.º211, 03/07/1913. Apud: SOUZA-ARAUJO, Heraclides-Cesar. História da Lepra no
Brasil: período republicano. Rio de janeiro, Imprensa Nacional, 1956(p.117/118).
93
“Não ha, pois, outro caminho a seguir, cumprindo, porém, aos legisladores e
higyenistas o dever de executarem esta medida (o isolamento dos leprosos),
proporcionando aos doentes o maximo de conforto, empregando todos os
recursos capazes de attenuar a cruel sorte dos nossos semelhantes. Está
claro que o nosso actual estado de civilização não permitte mais as injustas
e bárbaras medidas empregadas em quasi todo o mundo para combater a
lepra e nem consente que, o titulo de prophylaxia social, sejam imitados
alguns países que continuam a fazer verdadeiros depositos de leprosos
inteiramente desagregados da sociedade e aos quaes falta toda a especie de
conforto.
Achando indispensável o isolamento, sou todavia de parecer que
essa medida só deve ser executada, compulsoriamente, depois de feitas
installações capazes de, pelo seu conforto, hygiene,, cuidados médicos e
direcção, serem procuradas espontaneamente pelos leprosos.”(sic)
34
No entanto, a historia do isolamento dos Leprosos no Brasil mostra que
ninguém se apresentava com satisfação para isolar-se nos asilos-colônias que foram
construídos. Aqueles que ingressavam nestes estabelecimentos e que não haviam sido
recolhidos com o uso de violência, isto é, “espontaneamente”, o faziam por outros
motivos que não se relacionavam com os aspectos “edênicos” destes estabelecimentos
tão divulgados pelos serviços oficiais. Estigmatização, fome, miséria, intercorrência
clínica de outras doenças, eram as razões mais freqüentes para esta apresentação
voluntária.
Ainda que os planos de Oswaldo Cruz fossem seguidos, as sugestões de
Emilio Ribas acatadas, e a filantropia contribuísse ativamente para o conforto dos
leprosos e propiciasse educação e proteção para seus filhos, as fugas dos asilos-
colônias e o ocultamento da lepra foram realidades sempre presentes no Brasil do
século XX durante os anos em que vigorou o isolamento compulsório.
Contudo, quando neste trabalho se critica o isolamento dos leprosos e a
caridade que o envolve não se está duvidando das intenções das pessoas que no
passado se dedicaram a estes. Houve e ainda continua a existir aqueles que procuram
na lepra apenas um meio de ascensão social, assim como aqueles que exerceram,
praticaram, discursaram, apregoaram e até militaram, numa terminologia mais
recente, na caridade e no isolamento por nestes verem uma solução adequada para um
antigo problema brasileiro. Assim, procura-se verificar quais as circunstâncias da
época que permitiram a existência dessas práticas discursivas e não-discursivas, isto
é, mapear suas “condições de possibilidade” no Brasil do século XX.
34
RIBAS, Emilio. Op. Cit., p.19.
94
Pois, se a lepra, desde a antigüidade hebraica, foi basicamente regida por esses
dois princípios, caridade e exclusão, que se conciliaram e se complementaram
redimensionando-se mutuamente no decorrer dos séculos, esta junção, no entanto,
não se deu no decorrer da história de forma paritária, onde cada um teria dado a
mesma contribuição, isto é, não era uma união entre iguais. Um deles influiu mais
sobre o outro. Um era dominante e outro recessivo. A caridade foi o braço direito da
exclusão. A filantropia foi parceria do isolamento dos leprosos. Neste histórico
ditongo crescente, encontro vocálico onde se confluía caridade/filantropia e
exclusão/isolamento, a primeira parelha era átona e a segunda tônica.
No Brasil, país onde o isolamento compulsório teve razoável sobrevida
verifica-se que sempre esteve acompanhado da filantropia, nele surgida no século
XIX, o que possibilita uma reflexão a respeito do quão arraigado ainda se encontrava
as recentes práticas sociais para com os leprosos na tradição milenar de exclusão e
estigmatização deste personagem tão marcante no ocidente.
2.3 A Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e
Defesa Contra a Lepra(FSAL e DCL)
“Quando me bati pela creação de isolamentos para doentes de lepra, não
reclamei regime de terror. Solicitava sanatórios amplos e arejados. Não
posso, pois, silenciar deante dos factos graves que nos asilos-colônia vêm
sendo registrados.
Si há revolta é porque a direção tem falhas.”(sic)
35
A caridade e a filantropia constituem um importante capítulo na história da
lepra no Brasil. Primeiro, porque só a partir do século XIX é que a lepra se tornou
objeto de atenção médica. Até então, eram os caridosos e religiosos aqueles que
35
TIBIRIÇÁ, Alice. Como eu vejo o problema da lepra: e como me vêem os que o querem
“manter”. São Paulo, Editado pela Sociedade de Assistência aos Lazaros e Defesa Contra a Lepra,
1934 ( p.279).
95
labutavam com a “morphéia.”
36
. Segundo, porque só no século XX o Estado
brasileiro tornou-se gestor efetivo da Saúde Pública aliando-se para isso com a
Medicina Social o que resultou na ocupação de espaços anteriormente filantrópicos
37
.
A FSAL e DCL é parte integrante, não negligenciável, dessa história.
A FSAL e DCL teve sua historia marcada pelas mudanças ocorridas no Brasil
e por aquelas observadas na historia da lepra no país. Esta entidade, contudo, já
nascera dentro da perspectiva secularizada/medicalizada/eugenizada que envolvia a
filantropia e cercava a lepra nas primeiras décadas do século XX.
Esta entidade, no entanto, foi precedida pela Sociedade de Assistência aos
Lázaros e Defesa Contra a Lepra da cidade de São Paulo, (SAL e DCL/SP), a
primeira do gênero, isto é, “das sociedades” que mais tarde iriam se reunir em
Federação.
2.3.1 Alice Tibiriçá e a ausência do Estado
A Sociedade de São Paulo foi criada por Alice de Toledo Ribas Tibiriçá em
26/02/1926, numa reunião realizada na casa de seu sogro, Jorge Tibiriçá
38
, na rua
Tamandaré, seu primeiro nome foi “Sociedade de Assistência às Crianças
Lázaras.”
39
Uma das primeiras iniciativas de Alice Tibiriçá, presidente recém-eleita
daquela entidade, foi alterar o nome para fazê-lo coincidir com o programa de ação
desejado, daí a denominação de Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa
Contra a Lepra.
36
CF. texto 2.2, deste capítulo.
37
Cf. MACHADO, Roberto, et alli. Op., Cit.
38
Político brasileiro (Paris 1855/São Paulo 1928).Participou da propaganda republicana e por duas
vezes governou são Paulo: como governador nomeado (1890-1891) e eleito (1904-1908).
39
MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Alice Tibiriçá: lutas e ideais. Rio de Janeiro, PLG-
Comnicação, 1980(p.31).
96
Esta Sociedade de São Paulo serviria de inspiração a todas as outras que foram
fundadas no país posteriormente. Entre seus integrantes predominavam as mulheres,
havendo ainda a participação de médicos, funcionários públicos de médio e alta
escalão, advogados, políticos e outras pessoas de “elevado prestigio social”.
As atividades desta sociedade eram diversificadas, sendo: coleta de bens
materiais para serem doados aos leprosos, confecção e publicação de panfletos
explicativos e outros impressos que veiculavam conselhos médicos e esclarecimentos
acerca da lepra, realização de festas e outros eventos cuja renda era revertida em prol
das obras assistenciais e do custeio das despesas da entidade, denúncia da gravidade
do problema da lepra através de artigos de jornais, conferências em rádio, ou não,
debates e outras atividades dedicadas à “Formação da Consciência Nacional”, até a
colaboração com o governo, no caso o paulista, na construção da rede de asilos-
colônias que na época encontrava-se em fase de implementação.
Dentre todas as atividades, Alice Tibiriçá destacava como de maior urgência a
necessidade de conscientizar as pessoas e o governo da gravidade do problema da
lepra e a necessidade de uma orientação “correta” para a solução deste mal.
“Em fevereiro de 1926, quando formei com um grupo de valores a Sociedade
de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a lepra, no meu culto pela terra
de São Paulo e pelo Brasil estudando com minúcias o problema da lepra,
dentro e fora do Estado, verifiquei, entre contristada e decepcionada, a
extensão dum mal.”(sic)
40
“Organizando essa agremiação (refere-se a SAL e DCL/SP), e eleita sua
Presidente, entrei no âmago da questão, verificando que a assistência aos
Lázaros tinha que ser subordinada a este impositivo: _ a defesa dos
sãos.”(sic)
41
Todavia, a SAL e DCL/SP não foi a primeira iniciativa laica e filantrópica
destinada à causa da lepra no Brasil. Antes desta, no mesmo Estado de São Paulo,
duas outras entidades já se dedicavam a atividades relacionadas “a luta” contra o “mal
de São Lázaro.” São elas: A Associação Protetora dos Morféticos e a Associação
Therezinha de Jesus.
40
TIBIRIÇÁ, Alice. Op. Cit., p.01.
41
Idem., p.02.
97
A Associação Protetora dos Morféticos teve sua trajetória marcada pela
construção do Asilo-colônia Santo Ângelo
42
. A Associação Therezinha de Jesus,
também conhecida como asilo-escola de dona Margarida Galvão, foi o primeiro
preventório
43
do Brasil construído em 1926 e inaugurado em 08/09/1927
44
,
localizado
no município de Carapicuíba a 25 km da capital paulista.
O trabalho de Alice Tibiriçá transcorria num clima favorável, inclusive,
conquistando o apoio do governo estadual, na época presidente de Estado Carlos de
Campos e o Inspetor de Lepra daquela gestão (1924-1927) José Maria Gomes.
Conseguiu junto ao governo de São Paulo uma coluna no jornal Correio Paulistano
onde se passou a veicular exclusivamente noticias relacionadas a lepra.
Com as eleições estaduais de 1927, Carlos de Campos foi substituído por Júlio
Prestes e José Maria Gomes pelo Dr. Aguiar Puppo. O novo governo reconhecia, com
reservas, o valor do trabalho realizado por Alice Tibiriçá, o que, no entanto, não foi
suficiente para impedir que certas medidas fossem tornadas objetivando colocar a
“profilaxia” da lepra no seu devido lugar, isto é, impedindo-a de prejudicar outros
interesses de maior relevância.
“Esta associação (SAL e DCL/SP) é constituída por senhoras da sociedade
paulista e desde 1926 vem prestando reais serviços a causa da profilaxia da
lepra. Realizando uma intensa e brilhante propaganda social para a solução
do problema no Estado e ao Paíz, tem divulgado numerosas publicações e
folhetos de incitamento e educação sanitária...”
45
(sic)
A resposta aos incitamentos da SAL e DCL/SP vieram logo. Foi o próprio
presidente de Estado, Júlio Prestes, que convidou Alice Tibiriçá para uma conversa
no Palácio Bandeirante:
“_ Dona Alice disse o Presidente de Estado sua campanha atingiu a tal
ponto que está perturbando a emigração para o Brasil, por ser considerado
um ‘país de lepra’. O Governo resolveu, assim, chamá-la para solicitar que
não prossiga na propaganda que vem realizando.
_ Mas, Sr. Presidente, há realmente, o problema da lepra, no Brasil,
respondeu-lhe. Alice Tibiriçá, e não será silenciando que o resolveremos.
42
CF. texto 2.2, deste capítulo.
43
Internato para crianças filhas de leprosos que eram criadas separadas dos pais para evitar o contágio.
No Brasil, funcionaram atendendo exclusivamente a este público até meados da década de 1970,
período em que vigorou o isolamento compulsório dos leprosos no pais.
44
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit. p.350.
45
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Op. Cit., p.77; TIBIRIÇÁ, Alice. Op. Cit., p.19.
98
Deixara de ser um ‘país de lepra’ no momento em que o povo e governo se
movimentarem para sua solução.”
46
Como Alice Tibiriçá mostrou-se irredutível em seus propósitos, o governo
acabou com a coluna que ela possuía no jornal “Correio paulistano” dedicada a causa
da lepra e procurou dificultar, através da restrição de verbas, a conclusão das obras
dos leprosários que se encontravam em construção. Deste episódio surgiu o lema que
Alice Tibiriçá posteriormente adotaria como divisa:
“Com o governo, se preciso; sem o governo, se possível; e até mesmo, contra
o governo, se assim for necessário.
47
Em resposta as dificuldades surgidas naquele conturbado período e ao pedido
de silêncio de Júlio Prestes, Alice Tibiriçá organizou um conjunto de medidas que
basicamente visavam a intensificação das atividades que vinham sendo desenvolvidas
pela SAL e DCL. Foram elas: Acirrar e aumentar a quantidade de panfletos e outros
impressos de esclarecimentos sobre a lepra a serem distribuídos; organizar inúmeras
“campanhas de solidariedade e defesa da raça”, cujo objetivo era arrecadar fundos
para auxiliar na construção de novos leprosários; criação de um Boletim mensal, em
substituição a coluna do jornal Correio Paulistano, para divulgação das atividades da
sociedade e antigos referentes a lepra; favorecer e estimular a fundação de outras
sociedades congêneres com o propósito de estabelecer-se futuramente uma federação
e objetivando com isso atingir dois fins específicos: primeiro, aumentar e expandir a
força política e social dessas entidades através do crescimento em número; segundo,
contribuir para a “formação da consciência nacional” através da divulgação do
problema da lepra à inúmeras pessoas que iriam compor os quadros das sociedades
que se pretendia fundar.
Alice Tibiriçá objetivava, naquele momento, fazer um grande estardalhaço
para impedir que o governo paulista colocasse no esquecimento o problema da lepra e
forçar o governo federal a iniciar uma ação efetiva.
Júlio Prestes foi forçado a recuar. Liberou as verbas necessárias para a
conclusão do asilo-colônia Santo Ângelo, que já se arrastava desde 1919, sendo este
46
MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Op. Cit., p.47/98.
47
Idem., p.11.
99
inaugurado em 1928
48
. Contudo, manteve sua posição de não-colaboração que
prevaleceu durante todo o seu governo.
Em âmbito nacional, Alice Tibiriçá, na qualidade de Presidente da SAL e
DCL/SP, enviou em 1929 um apelo, não correspondido, ao Presidente da República
Washington Luiz, no qual a presença da eugenia é perceptível, solicitando que
iniciasse a Era da Participação Estatal/Federal no “combate a lepra” no Brasil.
“A Vossa Excellencia, que ha sido o mais devotado dos nossos dirigentes,
cuja politica dominou paixões e estabeleceu o regimen da concordia, cujo
senso economico, na ultima mensagem, provocou um grito de applauso da
Nação inteira, a Vossa Excellencia, sinceramente devotado ao Brasil, a
Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a lepra entrega a mais
humilde das causas, mas em compensação a mais importante pelas
consequencias funestas que acarreta o descaso em que os Lazaros vivem.
Se agora ha difficuldade em resolver-se esse problema, que faremos
quando as terras ainda incultas estiverem povoadas? Vossa Excellencia
rasgou estradas e uma vida nova se estabelecceu acompanhando a facilidade
do transporte. Como uma sombra a lepra também um dia virá a todos esses
pontos e surdamente minará a vitalidade da raça. É o temor que temos! Não
havíamos ainda procurado o amparo do Governo por que esperávamos que
Vossa Excellencia houvesse resolvido outras questões para então
apresentarmos o nosso humilde pedido. Assim, pois, esperamos que Vossa
Excellencia possa com chave de ouro, encerrar o seu cyiclo proveitoso
abrindo com a acção official da Nação, horizontes que venham clarear o
futuro sombrio do Brasil maculado pelo mal de Hansen!”(sic)
49
Mas, os acontecimentos ocorridos em outubro de 1930, intitulados
“Revolução de 30”, iriam alterar substancialmente os rumos da política no Brasil, da
história da lepra no país e, por conseqüência, da SAL e DCL/SP. Quando foi
anunciada a candidatura de Júlio Prestes em 26/07/1929 à sucessão da presidência da
república, Alice Tibiriçá enviou um apelo ao então candidato que concorrendo por
São Paulo era o nome favorito ao Catete.
.
A Sociedade de Assistência aos Lázaros não se prende a nenhum partido
político. Todavia, como o problema da lepra, para ser solucionado, depende
em grande parte do interesse do Cattete, não podemos deixar de nos
manifestar neste instante.
48
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p. 200.
49
“Mensagem das Sociedades de Assistencias aos Lázaros e defesa contra a Lepra ao Presidente da
Republica: (Washington Luiz Pereira de Sousa).In: SOUZA-ARAUJO, Heraclides-Cesar. Op.
Cit.,p.490/491.
100
(...) Em 1927, para reger o destinos de São Paulo foi eleito
Presidente o Dr. Julio Prestes. Empossado, seu primeiro gesto foi ordenar a
conclusão do leprosario de Santo Angelo...
(...) Assim, pois, na candidatura de agora não é a politica que nos
interessa. É o valor de quem acima de todos os partidos, procurou o
interesse dos mais humildes de seus concidadãos, tão humildes e repudiados
que ninguém pensa sequer em alistal-os como eleitores!
(...) Fazemos votos para que a Nação inteira, reconhecendo o seu
valor pessoal de patriota, republicano de denodado valor, dirigente calmo e
trabalhador (...) o eleja para o supremo posto e dahí, certo, advirá uma
época em que todas as energias se manifestarão num regimen de
magnanimidade, justiça e progresso. A sociedade faz votos também, para
que o futuro Presidente da República, em seu programa de governo, tenha
presente a gravidade da situação do Brasil em relação á Lepra e trate desse
assumpto com o zelo de um apóstolo, devotamento civico e amor a seus
semelhantes!”
50
Com o golpe de 1930, o novo presidente da Republica, Getúlio Vargas,
destituiu os presidentes de Estado nomeando interventores para ocuparem seus
lugares.
As elites paulistas já bastante insatisfeitas com este ocorrido ainda seriam
novamente contrariadas com a nomeação do tenente pernambucano João Alberto para
ocupar a interventoria de seu Estado. O relacionamento político de Vargas com São
Paulo foi conturbado desde o início do governo provisório. Essa dificuldade pode ser
evidenciada pelo cargo de Interventor que passou rapidamente por várias mãos até
março de 1932, quando, finalmente, encontrou-se um nome que pudesse agradar aos
paulistas, Pedro de Toledo, este indicado pelas próprias elites daquele Estado.
O período inicial do mandato dos interventores, provavelmente, devido ao
conturbado momento político, prosseguiu com a habitual indiferença com relação a
lepra.
Assim, dado o sucesso de vendas e publicidade que vinha alcançando o
Boletim mensal da SAL e DCL/SP, o grande número de outras sociedades dispersas
pelo país que já haviam sido criadas até 1932 e as dificuldades em prosseguir com as
atividades rotineiras da entidade de São Paulo, Alice Tibiriçá resolveu, em fevereiro
daquele mesmo ano, concretizar os planos de criação de uma federação das entidades
reunidas. Com esta associação nacional ela objetivava aumentar sua influencia
política e contornar a crise que se vivia em São Paulo naquele momento.
101
“ANEXO 17
FEDERAÇÃO DAS SOCIEDADES DE ASSITENCIA AOS
LAZAROS E DEFEZA CONTRA A LEPRA SUA
ORGANIZAÇÃO DEFINITIVA.
Com as reuniões realizadas nos dias 23 e 27 de fevereiro p.p. de
20,30 às 24 horas, à rua Libero Badaró, n.º 10, 3º andar, foi
definitivamente organizada a Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra.
Foram ellas presididas por D. Alice de Toledo Tibiriçá e
secretariadas pela Profª. Noemy Silveira.
Representaram-se a Soc. De Assistência aos Lázaros de S.
Paulo, Liga de São Lázaro (Baurú), Sociedade de Assistência aos Lázaros
do Distrito Federal, Liga de S. Lazaro (São Simão), Fundação S. Lázaro
(Parnahyba-Piauhy), Instituto do Ensino “O Grambery” (Juiz de Fora),
Sociedade Mineira de Protecção os Lázaros e Defesa contra a Lepra, Soc.
de A. L. e Def. c. Lepra (Natal Rio Grande do Norte), A. C. M.
Associação Universal Humanitária, Soc. de A. Lázaros de Mococa e
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.
A Soc. Pernambucana de Assistência aos Lázaros, a Sociedade
Acadêmica de Proteção aos Lázaros (Bahia), Liga São Carlos (S. Carlos),
havendo adherido, não tiveram no entanto; representação.
Deixou de comparecer, excusando-se, o diretor do Mackenzie
College Dr. T. Stewart.
Na primeira reunião foi feita a leitura do projecto de estatutos,
sendo suggeridas várias modificações. Na segunda, essas modificações
introduzidas nos estatutos, fizeram com que estes fossem approvados.
Anunciada a eleição do corpo de direção provisório o voto dos
presentes consagrou para presidente, D. Alice de Toledo Tibiriçá; para
vice-presidente, prof. Eunice Weaver; para secretaria, prof. Noemy
Silveira, Thesoureira, D. Felicidade Perpetua de Macedo.”
51
Embora fosse desejo de Alice Tibiriçá que a sede da Federação se instalasse
na capital federal, as pessoas presentes nas reuniões de fundação foram contrárias a
tal proposição. Alegavam que essa decisão poderia comprometer, logo nos primeiros
anos, o bom funcionamento da entidade, causando inúmeros transtornos evitáveis e
inviabilizadores de uma ação mais efetiva. Ficou ainda acertado nas reuniões de
fundação que a SAL e DCL/SP doaria 10% de seus bens para a Federação constituir
seu patrimônio inicial e que Alice Tibiriçá acumularia as duas presidências.
Contudo, o ano de 1932 reservaria ainda inúmeras surpresas para Alice
Tibiriçá e a recém criada Federação. Quando, em maio deste ano, o interventor de
50
TIBIRIÇÁ, Alice. Um Homem para solucionar um grande problema. In: Boletim da Sociedade de
Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. São Paulo, Vol. I, n.º 05, agosto de 1929(p.01-03).
51
Publicado originalmente em: “A Platéia”, São Paulo, 07/03/1932. In: TIBIRIÇÁ, Alice. TIBIRIÇÁ,
Alice. Como eu vejo o problema da lepra: e como me vêem os que o querem “manter”. São Paulo,
Editado pela Sociedade de Assistência aos Lazaros e Defesa Contra a Lepra, 1934( p.299).
102
São Paulo nomeou Nicolau Rossette para a Secretaria Estadual de Educação e Saúde-
Pública, que por sua vez nomeou em junho, Francisco Sales Gomes Júnior para a
Inspetoria de Profilaxia da Lepra, logo depois, convertida em Departamento de
Profilaxia da Lepra/DPL, permanecendo ainda subordinado àquela secretaria de
governo
52
. A conjuntura que já não era favorável para Alice Tibiriçá e a SAL e
DCL/SP e a Federação piorou sensivelmente.
Sales Gomes assumiu a DPL com entusiasmo e energia. Este substituiu a
indiferença com relação a lepra dos governos anteriores por uma prática de
apropriação indébita dos méritos de tudo o que havia realizado até o momento. Entre
seus objetivos constava o de desarticular e desmoralizar a SAL e DCL/SP que passou
a ser encarada como um poder paralelo, concorrente, inconveniente e perigoso.
Embora fosse pública, naquele momento, a antipatia do governo de São Paulo
com relação à SAL e DCL/SP, a reorganização do Instituto de Profilaxia da
Lepra/IPL em Departamento de Profilaxia da Lepra/DPL, este último com maior
autonomia, quadro de funcionários permanentes, dotação orçamentária exclusiva,
elaboração de legislação especifica, constituiu-se numa resposta dada a sociedade
paulista grandemente forçada pelo barulho levantado por Alice Tibiriçá e sua
sociedade, conforme reconhecimento do próprio Sales Gomes Júnior.
“A necessidade de entendimentos rápidos com todas as autoridades
administrativas e judiciárias do Estado, a ligação imprescindível que deve
existir entre os institutos e associações de assistências privadas, a
necessidade do afastamento dos falsos philantropos dos hansenianos
levaram o governo do Estado a crear o Departamento de Profilaxia da
Lepra.
53
Mas apesar de alcançado o objetivo de se criar uma Federação das Sociedades,
do sucesso do crescimento em número e importância política que vinha
experimentando aquelas entidades, entre as quais poder-se-ia citar a de Juiz de Fora,
fundada por Eunice Weaver e que estava alcançando bons resultados
54
, novamente os
52
MAURANO, Flávio. História da Lepra em São Paulo. 3º Monografia dos Arquivos do Sanatorio
Padre Bento. São Paulo, empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, Vol. II, 1939(p.174).
53
SALLES GOMES JR., Francisco. “Um extenso programa de campanha prophylatica é o que
pretende realizar o Departamento de Prophylaxia da Lepra” In: Folha da Noite, São Paulo, 08/05/1935.
Apud: MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p. 183.
54
Nesta época, Eunice Weaver (1904-1969) era professora de Historia e Geografia no Instituto
Gambery e acumulava os cargos de Presidente da SAL e DCL de Juiz de Fora e vice-presidente da
FSAL. DCL com sede na cidade de São Paulo. Para maiores detalhes ver: PEREIRA, Antonio. A
103
acontecimentos políticos iriam atravancar os rumos que se desejava imprimir a
constituição de uma atenção sistemática à lepra no Brasil.
Com a eclosão da guerra civil de 1932, deflagrada em 9 de julho daquele ano,
e o envolvimento nesta de Alice Tibiriçá, comprometeu, ou pelo menos
redimensionou, a atitude do governo federal perante a FSAL e DCL e sua presidente.
Alice participou ativamente dos conflitos, excetuando-se o envolvimento em
batalhas, fez de tudo um pouco, contribuiu financeiramente, divulgou os motivos da
luta, “pela constituição e contra a ditadura”, auxiliou alguns batalhões a arrecadar
remédios e mantimentos. Foi convidada para ser madrinha do batalhão “Borba Gato”,
o que aceitou prontamente não medindo esforços para auxilia-lo até o momento de
embarque para os campos de batalha. Seu marido, o engenheiro João Tibiriçá Neto, e
seu filho, Jorge Tibiriçá Neto, na época estudante de medicina, alistaram-se no
batalhão “14 de julho” que operou na frente sul em Tararé. Em uma das patrulhas que
realizavam nas trincheiras daquela região, seu filho foi, inclusive, baleado em
10/08/1932 e, com isso, afastado do combate por algum tempo.
“Poucos dias depois, efetivamente, Jorge veio, como sempre jovial,
restabelecer-se em São Paulo. Uma semana antes do término da Revolução,
a sua unidade passou pela capital, e ele se reincorporou. Na volta, ao findar
da luta, foi imprensado por um caminhão. Sua saúde ressentiu, na ultima
semana de esforço, como não havia ocorrido no mês inicial de combate. O
trauma, então, foi também psíquico. Nunca mais voltou a ser o mesmo,
alegre e despreocupado.
Meu pai (João Tibiriçá Neto, marido de Alice) já não era jovem.
Com o rítimo violento dos combates e marchas, certa vez caiu, extenuado, na
estrada. Mas recobrou-se, e prosseguiu até o fim, voltando, então, com o
filho.”
55
Em São Paulo, após a chamada “Revolução Constitucionalista”, Sales Gomes
tomaria uma série de medidas objetivando o alijamento dos “falsos philantropos” no
Estado, assim como, livrar o governo dos percalços por estes ocasionados.
A idéia era desarticular a SAL e DCL/SP na atividade que desenvolvia com
maior sucesso, à saber: a arrecadação de fundos para as obras assistências destinadas
aos leprosos.
Campanha contra a lepra no Municipio de Juiz de Fóra(Tese apresentada as Jornadas Médicas
de Juiz de Fóra). Juiz de Fóra, Estabelecimento Gráphico Companhia Dias Cardoso. 1939.
55
MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Op. Cit., p.135.
104
Sales Gomes havia percebido que a sociedade respondia favoravelmente aos
apelos da SAL e DCL/SP e às outras do gênero existentes pelo país. Eunice Weaver,
por exemplo, com o dinheiro arrecadado em doações na cidade de Juiz de Fora
construíra um razoável pavilhão de diversões no asilo-colônia de Santa Isabel em
Betim.
“Era invegável a eficácia dos grupos filantrópicos na obtenção de fundos,
que eram utilizados de formas diversas dentro dos asilos-colônias. Algumas
vezes as verbas arrecadadas já chegavam com destinação certa, como por
exemplo a construção de pavilhões para moradia de doentes, salas de
costura, oficinas de trabalho, etc.
56
Seja qual fosse a medida adotada, ela deveria atender alguns requisitos
primordiais para o DPL. Primeiro, e mais importante, era não interromper as doações
dirigidas aos leprosos isolados nos asilos-colônias. Segundo, encontrar uma forma de
impedir que essas doações fossem direcionadas ou remetidas através da SAL e
DCL/SP. A solução encontrada para alijar os filantropos, foi a criação de uma “Caixa
Beneficente” em cada asilo-colônia e a instituição de uma comissão de “Assistência
Social” no DPL.
A invenção das Caixas Beneficentes é habitualmente atribuída à Lauro de
Souza Lima
57
. Estas constituíam-se em órgãos próprios e legalizados
58
, administrados
pelo diretor dos asilos-colônias e uma comissão formada por internos, sendo esta
obrigatoriamente nomeada pela direção. Este órgão poderia receber diretamente da
população as doações enviadas, sem atravessadores, e investi-las onde julgasse mais
conveniente, já que a referida comissão tinha, em tese, poderes para decidir
livremente o destino das arrecadações.
Entretanto, toda esta liberdade de escolha não se efetivava no cotidiano
daqueles estabelecimentos. A direção acabava por induzir os investimentos neste ou
naquele setor, imprimindo um destino aos donativos que chegavam. As doações
deveriam propiciar conforto e fartura para o “lázaro no seu longo calvário”, mas
acabavam sendo direcionados para suprir a falta de alimentos, sementes, ferramentas,
56
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p. 182.
57
Paira uma dúvida sobre o autor dessa idéia. Talvez a atribuição ao médico Lauro de Souza Lima se
explique pelo fato de ter sido no asilo-colônia administrado por ele, na época o Padre Bento, o
primeiro estabelecimento a contar com este órgão, o que não significa, necessariamente, ser de sua
autoria.
105
roupas e até remédios não fornecidos pelo DPL e o governo. Este passou a enxergar
nestas Caixas Beneficentes uma forma de barateamento dos custos por possibilitar um
avanço expressivo na conquista da auto-suficiência dos asilos-colônias, condição
considerada fundamental desde 1913 por Oswaldo Cruz.
“A Caixa Beneficente pagando funcionários doentes cria gado, faz
plantações e vende as mercadorias produzidas ao governo por preços mais
vantajosos. Essa instituição (...) poderá fazer com que aquella cidade tenha
vida propria bastando-se a si própria.”(sic)
59
Contudo, é preciso ressaltar um episódio ocorrido em 1932 que seguramente
contribuiu para essa formatação autoritária que adquiriu as Caixas Beneficentes
depois do decreto de 1933. No principio, a administração da “Caixa” do Padre Bento
era exercida pelos internos, escolhidos através de eleição sem interferências direta da
direção. Sucedeu-se que naquele ano a comissão administrativa escolheu para
patronesse daquele órgão Alice Tibiriçá. Este acontecimento foi o pretexto que
faltava para o DPL “moralizar” a Caixa.
Devidamente instituídos e “moralizadas”, as Caixas Beneficentes, era preciso
divulgá-las ao público, paralelamente a um processo de desqualificação da SAL e
DCL/SP.
“(...) a credulidade e a generosidade do nosso povo teem sido muitas vezes
explorada. Boa parte de seus donativos têm sido feita a sociedades de nomes
suggestivos, das quaes só se conhecem os programas, bem impressos e
espalhafatosos, porem cujas realizações são mínimas. Os internados nos
hospitaes não necessitam de intermediários para desse recebimento. Ha,
ainda, a elles possuem, Caixas Beneficentes legalizados, e por elles mesmos
dirigidas, que se incubem desse recebimento. Ha, ainda a ‘Assistência
Social’, sociedade cuja presidência é ocupada pelo proprio Dr. Salles
Gomes, e que se encarrega da distribuição desses donativos. Para que a
população de São Paulo tenha certeza do emprego consciente de seus
donativos que os faça directamente, ás ‘Caixas Beneficentes’ dos hospitaes
ou á ‘Comissão de Assistência Social’, deixando no abandono que merecem
as pseudas instituições de nomes compridos e realizações curtas.”(sic)
60
“Não temos necessidades de assistência particular. (...) organizadas como
estão os ‘Caixas Beneficentes’ dos sanatórios de hansenianos, não ha razão
58
No Estado de São Paulo foi elaborado um decreto que normatizava o assunto. (Dec. N.º 5965 de
30/06/1933)
59
“Visita ao Asylo Pirapitinguy por uma caravana de jornalistas desta capital” In: Folha da Manhã.
São Paulo, 27/05/1934. Apud: MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.296.
60
TIBIRIÇÁ, Alice. Op. Cit., p.122.
106
de existirem sociedades particulares, como a Sociedade de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra, cuja acção não corresponde ao que
arrecada. (...) Sobre a Campanha da Solidariedade felizmente a Comissão
Executiva tomou a si a tarefa de applicar directamente as quantias
arrecadadas durante a campanha”(sic)
61
Os artigos e entrevistas se seguiram na imprensa paulista, todos basicamente
com o mesmo teor. Primeiro, alertavam para a não necessidade de intermediários ao
se realizar doações para os leprosos internados nos asilos-colônias. Segundo,
solicitavam auxilio para o combate aos falsos filantropos, como a SAL e DCL/SP e
Alice Tibiriçá, inconsistentes, ludibriadores e exploradores da boa fé pública e do
espírito de caridade da população em geral.
Alice Tibiriçá, através da SAL e DCL/SP, moveu uma ação judicial contra
seus detratores. Estes, vendo-se acuados, alegaram em tribunal tratar-se os artigos de
fruto de “deturpação jornalística”, não sustentando em juízo as acusações que
veiculavam através da imprensa escrita.
Enquanto o clima permanecia tenso e infrutífero em São Paulo, Alice Tibiriçá,
através da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a
Lepra, atendendo as reivindicações de várias sociedades filiadas, inúmeros médicos e
outros interessados, organizou na cidade do Rio de Janeiro um evento de caráter
médico e assistencial objetivando criar um espaço nacional de debates onde pudesse
ser discutida a questão da lepra no Brasil e os rumos que se deveria adotar com
relação à sua profilaxia.
Este evento foi intitulado de “Conferencia para a Uniformização da
Campanha Contra a Lepra” e aconteceu de 24 de setembro a 02 de outubro de 1933.
Compareceram médicos, representantes de quase todos os Estados do país, inclusive,
do DPL de São Paulo
62
, institutos científicos como a American Mission to Lepers,
Fundação Oswaldo Cruz entre outros. O sucesso de público, apresentações de
trabalhos, números de participantes, repercussão na imprensa foi inesperado e
surpreendente. A conferência ultrapassou todas as expectativas dos organizadores e
adquiriu um importante valor histórico tornando-se um divisor de águas na historia da
lepra no Brasil.
61
Idem., p. 123.
62
Francisco Salles Gomes Júnior participou proferindo uma palestra sobre isolamento.
107
Naquele contexto, naquele momento, inicio da década de 1930, apenas a
FSAL e DCL reunia condições para organizar um evento desse porte que objetivava
discutir uma política em âmbito nacional com relação a lepra. Esta, até 1930, era vista
como competência exclusiva dos Estados isentando-se, dessa forma, a União do
envolvimento com esse “desagravo à saúde”. Somente a partir de 1930 com a
crescente centralização autoritária que ocorreu entorno do governo federal é que este
passou a ser munido de recursos e condições de engendrar uma ação nacional. Mas,
em 1933, essa centralização autoritária ainda não estava concluída. Nem mesmo São
Paulo, único estado que tinha condições de se manifestar sobre o assunto, não poderia
realizá-lo por vários motivos, entre eles, por não desejar. Mas não se deve esquecer
que o pioneirismo paulista se devia em grande parte ao trabalho da SAL e DCL/SP e
a Alice Tibiriçá.
Este evento, por suas dimensões, constituiu-se num momento em que um
grande número de profissionais da área se reuniram e se debruçaram sobre o
problema da lepra no Brasil com o objetivo de elaborar uma postura adequada que
pudesse ser adotada nacionalmente e que não resultasse no alisjamento de nenhum
dos envolvidos com o problema até aquele momento. A FSAL e DCL em 1933 era,
estrategicamente e socialmente, a mais indicada para organizar e conduzir o evento e
talvez a única que apresentava as condições necessárias para fazê-lo e ainda se
posicionar reivindicando dos governos estaduais e federal uma ação mais efetiva e
contínua com relação ao problema da lepra no país. A repercussão do evento pode ser
percebida desde o momento em que este acontecia na cidade do Rio de Janeiro:
“Como afirmamos, o Chefe do Governo Provisório Getúlio Vargas
mandou cientificar a promotora da Conferencia (FSAL e DCL) de que as
resoluções desta serviriam de normas para a atuação do Governo, no
setor.
63
Os temas debatidos na Conferência foram variados. Entre eles: esterilização
dos leprosos, proibição matrimonial, isolamento, separação compulsória dos filhos
indenes, cunhagem de moeda especifica para cada leprosário, aposentadoria por lepra,
expatriação interestadual dos leprosos (cada um deveria ser internado somente no
Estado de origem), padronização dos leprosários, censos de Lepra, criação da carteira
de saúde (que entre outras coisas, atestava que seu portador não era leproso) e a
108
instituição da obrigatoriedade de sua apresentação, publicação de uma revista
nacional periódica e regular sobre leprologia, legislação especifica (entre elas uma lei
que proibisse o livre transito dos leprosos), infra-estrutura dos leprosários,
contribuição policial no recolhimento dos leprosos para internamento em leprosários,
destino dos bens e imóveis dos leprosos isolados, pátrio-poder dos pais leprosos,
entre outros assuntos.
Pode-se observar que os temas relacionavam-se ao imperativo da época:
“defender os sãos”, através de um profilaxia que se resumia no isolamento dos
leprosos.
63
MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Op. Cit., p.78.
109
110
Estas fotos
64
mostram uma cena que se tornaria cada vez mais rara.
Filantropos, caridosos e médicos reunidos num evento, organizado pelos primeiros e
de importância social para ambos. Neste momento, os primeiros desfrutavam de
relativa importância que no decorrer do século XX iria gradualmente declinar.
Observe-se que os religiosos já não estão presentes.
Entre as diversas proposições debatidas na conferência já havia aquelas
convertidas em práticas no Brasil. O isolamento e a separação dos filhos indenes seria
um exemplo. Para essas sugeriam-se apenas algumas reformulações, mais rigor e
ampliação do atendimento até então existente. Outros temas, como a esterilização, , a
proibição matrimonial e a perda do pátrio-poder dos leprosos, apesar de contarem
com grande número de simpatizantes na época, para os quais tais medidas eram
consideradas relevantes, “desejáveis”, “tentadoras” e até “necessárias”, porém, não
eram aplicadas no país. Por último, certos assuntos, eram extremamente polêmicos,
de dificílima conciliação e estabelecimento de consenso entre os participantes do
evento, pois esbarravam numa série de empecilhos legais e constitucionais e
embaraçavam-se nos interesses econômicos dos envolvidos; eram eles: a expatriação
interestadual dos leprosos para fins de isolamento e o destino de suas propriedades e
bens depois do internamento.
Dessa forma, esta conferência alcançou um resultado de grande relevância ao
evidenciar de forma bastante enfática a gravidade do problema da lepra no Brasil. Até
1933 este não havia sido contemplado no pais com um evento exclusivo e
integralmente a ele dedicado. O “encontro da FSAL e DCL” reuniu grande número de
profissionais e pessoas interessadas, todos relacionados com a questão da lepra e que
encontraram nesta conferência um espaço para debate do qual há muito careciam.
As conclusões apresentadas ao final da conferência foram remetidas ao
governo federal acompanhadas de extenso parecer e possuíam um caráter de sugestão
acerca das melhores e mais acertadas indicações para lidar com o problema da lepra
no entendimento dos participantes do evento. Foram elas:
1)realização de censos de lepra
2)imposto especifico para combater a lepra
64
fotos extraídas de:
TIBIRIÇÁ, Alice. Op. Cit., p86.
111
3)padronização dos leprosários
4)cunhagem de moeda especifica e privativa dos leprosários
5)instituição da carteira de saúde e sua obrigatoriedade em âmbito nacional
65
Pode-se observar que as conclusões do evento foram razoavelmente tímidas,
tanto em número quanto em teor, em comparação com a variedade de temas
debatidos, o que demonstra a existência de inúmeras polêmicas, dissidências e
interesses envolvidos que impediram certas propostas de constarem no documento
final da conferência.
Deste modo, o “encontro da FSAL e DCL”, através de suas conclusões e
pareceres, apontou três princípios que deveriam orientar a profilaxia da lepra no
Brasil. Esses representavam, naquele momento, uma ampliação e o acirramento da
forma até então adotada. Isso, no entanto, não significa que a Conferência para a
Uniformização da Campanha Contra a Lepra ratificou simplesmente a ação estatal
desenvolvida até aquela ocasião.
Nenhum dos participantes mostrou-se satisfeito com as iniciativas e
realizações dos governos estaduais e federal. Embora o evento não tenha criticado os
fundamentos até então utilizados condenou a falta de rigor e zelo dos governos na
aplicação destes e responsabilizou este descuido pelo crescimento do número de
leprosos no país. O primeiro destes princípios referia-se ao “isolamento” do maior
número de leprosos em asilos-colônias aprazíveis, amplos, higiênicos, localizados
preferencialmente na zona rural, onde o internado ali pudesse reconstituir sua vida
sem oferecer risco a população ‘sadia’. O segundo era a instituição de uma forma
permanente de observação sobre os parentes próximos e outras pessoas que
conviveram com o leproso isolado, chamados de “comunicantes”, prováveis
“infectos” sobre os quais deveria se estabelecer um “controle e vigilância
ambulatorial por serem suspeitos”.
Por último, impedir o convívio do filho indene com o pai leproso,
necessitando-se para isso da “extensão da prática preventorial”.
A partir de 1935, esses princípios converteram-se numa postura estatal
apoiada pelas associações particulares ou não-governamentais, concretizada pela
65
TIBIRIÇÁ, Alice. Op. Cit., p.49.
112
constituição do tripé institucional: asilos-colônias, dispensários e preventórios. Que
correspondiam, respectivamente aos três princípios anteriormente citados, Isolar,
vigiar e orfanar.
Terminada a conferência Alice Tibiriçá retorna às atividades cotidianas da
FSAL e DCL em São Paulo. Em 1934, surge em Bauru uma oportunidade de se
experimentar uma ação inovadora com relação a assistência aos leprosos e sua
família.
Os asilos-colônias produziam inúmeros órfãos, viúvos e viúvas de lepra,
consternados pelo infortúnio que acometera suas famílias.
Apenas um único membro acometido de lepra poderia ser o suficiente para
provocar o desmembramento familiar integral. A vida de todos ficaria marcada e
estigmatizada. Filhos órfãos, pai ou mãe na viuvez com dificuldades no trabalho e no
convívio social e o ente “infectado” trancafiado em nome da preservação dos “sãos”.
Todos privados do ambiente familiar. Preventório, dispensários e asilos-colônias
eram, respectivamente, seus destinos. Arsenal profilático que deveria ter acabado com
a lepra no Brasil.
Objetivando evitar o desmembramento familiar a FSAL e DCL e a Liga de
São Lázaro e Defesa Contra a Lepra de Bauru elaboraram conjuntamente uma
proposta inovadora de assistência aos leprosos. Essa consistia num esforço para tentar
conciliar a profilaxia da época: o ‘isolamento’; com o menor sofrimento possível para
aqueles que deveriam ser submetidos a essa medida, procurando atingir dessa forma o
mais alto grau de eficiência que se esperava da filantropia com relação a lepra.
Planejava-se isolar toda família e não apenas o membro acometido de lepra.
Esperava-se que atuando dessa maneira o grupo familiar fosse preservado,
diminuindo o martírio dos filhos, cônjuges e até daqueles que deveriam ser isolados.
Além de evitar inúmeros tormentos, essa postura permitiria a continuidade das
atividades profissionais dos membros familiares tão necessárias para custear as
despesas do grupo e não onerar excessivamente o Estado. Por último, mas não menos
importante, ficava assegurado o cumprimento adequado da profilaxia da lepra,
condição inarredável, imprescindível até recentemente. Humanizar, baratear e
otimizar a profilaxia da Lepra eram os objetivos principais deste projeto.
Partindo para a execução, a FSAL e DCL e a Liga de São Lázaro e Defesa
Contra a Lepra de Bauru começaram a realizar inúmeras ‘Campanhas de
113
solidariedade’. Com o dinheiro arrecadado foi comprado um terreno próximo à
estação da Conceição no município de Bauru. Neste lugar planejava-se construir
granjas, algumas casas de morada, uma creche, um dispensário e um local para
internamento dos leprosos em estágios mais avançados. Era intenção equipar o
entorno dessas granjas com tudo aquilo que as famílias necessitassem para
transformar este espaço numa alternativa paralela às instituições dedicadas à lepra
existentes no Brasil até aquele momento.
As famílias que preferissem poderiam optar por residir nas granjas, todo o
grupo, inclusive os “sãos”, onde poderiam reconstruir suas vidas a partir do
diagnóstico de lepra de um dos seus membros, sem, contudo, resultar no
esfacelamento familiar.
“O que se impunha era dar assistência a toda a família. Mas como? Em
granjas, respondeu Alice Tibiriçá, onde pudessem viver, trabalhar e
produzir. Atender as crianças, apenas, seria insuficiente, e, até mais oneroso.
Nas granjas, três aspectos viriam a ser atendidas: o humanitário, o
econômico e o profilático. O que produzissem poderia ser vendido, inclusive,
para os Leprosários, ajudando a manutenção da obra. Seriam grupos de
familias de doentes nucleadas, facilitando-se, assim, exames periódicos. E a
família permaneceria reunida. Creches, somente para os que sem
alternativa, delas necessitassem.”(sic)
66
Essa proposta, no entanto, não chegou a se concretizar. O DPL e seu diretor, o
senhor Sales Gomes Jr., embargaram a granja de Bauru muito antes de iniciar seu
funcionamento, ainda na fase de construção, lembrando que este projeto havia
recebido, entre outros, a aprovação deste próprio departamento.
Não foram apresentadas razões para tal atitude o que provocou inúmeros
protestos e reclamações. Embora “implícito” o motivo para este procedimento é
facilmente reconhecível: perseguição política.
Contudo não é difícil compreender o porque que este projeto da FSAL e DCL
não recebeu na época amplo apoio social de forma que tivesse sua continuidade
assegurada. Ele era polêmico demais. Muitos acreditavam que ele era nocivo por
permitir o surgimento de mais casos de lepra ao prever um amparo à famílias inteiras,
onde ocorreria a “indesejável” convivência entre “sãos” e “infectos”. Ousado,
anojado, irresponsável ou não-profilático. O silêncio que se abateu sobre esta
66
MIRINDA, Maria Augusta Tibiriçá. Op. Cit. p.68/69.
114
iniciativa demonstra que ela incomodava e agredia a postura adotada e escolhida para
a época, inclusive, reafirmada na “Conferencia para a Uniformização da Campanha
Contra a Lepra”. Isolamento para os leprosos, preventórios para os filhos indenes,
dispensários para “comunicantes”.
O princípio que orientava essa iniciativa era o desejo de minorar a resistência
ao isolamento através da constituição de uma alternativa que permitisse a manutenção
da família unida pós-diagnóstico de lepra em um, ou mais, de seus membros.
Argumentava-se que as granjas poderiam contornar o problema das fugas e do
ocultamento dos leprosos. Esta proposta apesar de inovar dentro do mesmo quadro
utilizado na época acabava por evidenciar e explicitar o quão “draconiano” era o
isolamento para as pessoas atingidas por essa medida. Reconhecimento perigoso,
inconveniente e desaconselhável para um discurso que ambicionavas se impor de
forma imperiosa. O isolamento precisava ser entendido como necessário, impreterível
e adequado. Única alternativa existente de proteção dos “sãos” que não podia ser
contradita com uma atitude tão irrefletida. Urgia sua implantação em âmbito nacional
juntamente com todas as medidas complementares a sua plena eficiência, os
preventórios e dispensários, sob pena de não se conseguir atingir o objetivo
primordial: acabar com a lepra no Brasil.
Esse discurso precisava de uma suscetibilização da sociedade propiciada pelo
medo, que aludia ao perigo representado pelo leproso, e não podia conciliar com uma
atitude que colocava em foco, ainda que indiretamente e não propositadamente, os
sofrimentos ocasionados por esta medida àqueles para os quais se destinava.
Contudo, a experiência frustrada de Bauru ainda permite uma reflexão
comparativa com o que aconteceu no entorno de alguns asilos-colônias no Brasil. Nos
arredores destes estabelecimentos surgiram pequenos bairros habitados por parentes e
familiares dos leprosos isolados nestes locais, ou mesmo por ex-internos que eram
obrigados a abandonar a instituição caso recebessem alta por não oferecerem mais
perigo de contagio e para não onerarem o Estado desnecessariamente.
Em Betim, com o decorrer dos anos formou-se nos arredores do asilo-colônia
Santa Izabel um bairro chamado Citrolândia cujos moradores eram basicamente
familiares e parentes de leprosos que se encontravam isolados neste estabelecimento e
ex-internos que receberam alta. Inúmeras tentativas, sem sucesso, foram realizadas
objetivando desarticular Citrolândia. Todas as pessoas reunidas naquele local eram
115
marcadas pelo estigma que revestia a lepra. As inúmeras dificuldades ocasionadas
pela presença da lepra em suas vidas levaram-nas a se agruparem em volta dos muros
do asilo-colônia buscando a proximidade com o membro furtado do convívio, a
solidariedade mútua entre aqueles que padeciam do mesmo mal e a fuga do estigma
que os distinguia e oprimia, impondo obstáculos a continuidade de suas existências.
O caso de Citrolândia e da Granja de Bauru permite uma reflexão sobre a
tragicidade que envolvia o isolamento do leproso tanto para sua família quanto para o
próprio internado. Neste trabalho não se está afirmando que o projeto de Alice
Tibiriçá era a solução adequada para o problema da lepra no Brasil. Quer-se apenas
registrar que ele foi uma das alternativas alijadas no decorrer da luta. No entanto, ele
precisa ser estudado e problematizado. O simples fato do embargo da obra não
significa que ele era perfeita, redentora e isenta de contradições. A luz do contexto,
vista emergida na historicidade que a produziu, ela era uma das várias propostas,
então existentes que não vingou no decorrer da história.
Passado o episódio de Bauru e todo o desgaste que dele resultou, Alice
Tibiriçá resolveu transferir a sede da FSAL e DCL de São Paulo para o Rio de
Janeiro. Vários acontecimentos contribuíram para essa decisão. Em São Paulo
instalava-se e consolidava-se no DPL um regime autoritário, centralizado e às
avessas com as associações filantrópicas. No entanto, pela primeira vez na história,
dispunha-se de somas tão vultuosas e de recursos tão amplos para a execução da
profilaxia da lepra neste Estado. O governo paulista entendia que o êxito obtido pelas
“associações particulares” atuantes nesta área e o espaço que conseguiram conquistar
só fora possível devido a ausência do Estado neste setor até 1930.
Em âmbito federal, no entanto, o governo mostrava-se simpático à causa da
lepra e às conclusões da Conferencia para a Uniformização da Campanha Contra a
Lepra de 1933. Alguns autores atribuem esta inclinação do governo pós 1930, em
parte, ao fato de Getúlio Vargas ser membro integrante da Soberana Ordem de Malta.
Afirmação esta muito simplista, problemática e carente de estudos mais aprofundados
sobre a questão. Havia de fato uma grande preocupação com a lepra desde o final da
década de 1910. o momento revelava-se oportuno para transferir a sede da FSAL e
DCL para a capital da república, onde esta poderia conseguir mais frutos do que na
exaurida paulicéia.
116
Por último, Alice Tibiriçá encontrava-se às voltas com inúmeros problemas
pessoais que dela exigiam muitas energias e a impediam de executar uma
administração da FSAL e DCL conforme era seu desejo e abnegada habitual
dedicação. Doenças e mortes na família, dificuldades financeiras, problemas
conjugais, divórcio e em 1939 o falecimento do marido.
Dessa forma, se era melhor para a causa, ainda que doído para Alice Tibiriçá,
ela o fez. Solicitou uma reunião no Rio de Janeiro da SAL e DCL daquela cidade e de
todos os membros da FSAL e DCL e transmitiu o seu cargo à senhora Eunice Weaver
que ocupava a vice-presidência a seu convite desde 1932, e o acumulava com a
presidência da SAL e DCL de Juiz de Fora. Alice Tibiriçá faleceria em 1950 sem
retornar a militar na área da lepra.
2.3.2 Eunice Weaver e a presença do Estado
“Arbitro EM 500:000$000 (quinhentos contos de réis) a subvenção a ser
paga, em 1941, a todas as associações particulares de assistência aos
Lázaros e defesas contra a lepra. Esta importância deve ser entregue a
Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e defesas contra a
lepra, com sede no Distrito Federal, que a distribuirá pelas associação de
todo o país . Não mais devem ser concedidos auxílios a essas sociedade, se
não por intermédio da Federação que ficará responsável pela distribuição e
deverá justificá-la perante o Ministério da Educação e Saúde. Ficaram sem
efeito os despachos anteriores que atribuíram subvenção, isoladamente, a
associações desse gênero”.
Despacho (deferido) da Presidência da República de 09/12/1940. (a) Getúlio Vargas.
“A Sociedade Mineira de Proteção aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra
(Belo Horizonte), requer ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
isenção de contribuições.”
Despacho (indeferido) da Presidência da República de 21/01/1944. (a) Getúlio Vargas.
A Chegada de Eunice Weaver a presidência da FSAL a DCL representou o
coroamento de uma carreira meteórica no campo meteórica no campo do
assistencialismo moderno relacionado com a lepra.
Com a sede da Federação no Rio de Janeiro, sua nova presidente encontrava
se numa situação inédita e privilegiada com relação a gesto anterior. Era uma nova
117
época, muito diferente daquela em que os governos estatuais e Federal procuravam
se esquivar do problema da lepra.
Desde o término dos trabalhos da “Conferência para a Uniformização da
Campanha a Lepra” ficou acertado que a FSAL e DCL participaria ativamente do
esforço de “combate a lepra” no Brasil. Essa forma de colaboração, no entanto, ainda
não estava definida naquele momento. De qualquer forma nem o governo Federal
nem o paulista desejavam uma atuação “à Tibiriçá”.
Os asiloscolônias permaneciam na esfera de obrigações estaduais mas, agora,
isto é a partir de1933, deveriam ser mais bem amparados pela União que também se
encarregaria de auxiliar na construção de novos estabelecimentos nos Estados onde
estes ainda não existiam.
Havia um consenso de que os leprosos deveriam ser colocados dentro da
jurisdição de cuidados a serem oferecidos pelo Estado, cabendo a FSAL e DCL
auxiliar para que esta medida atingisse com eficiência o maior número de acometidos
possíveis. Em suma, apesar da importância política e social que adquiriu a
Federação, esta deveria assumir um papel submisso com relação ao Estado na obra da
profilaxia de lepra no Brasil
Eunice Weaver representaria a consolidação dessa submissão ao Estado.
Essa nova condição, resultante da influência estatal, teria seu nascimento no momento
que a FSAL e DCL deixou de prestar assistência diretamente aos leprosos, limitado-
se a cuidar de seus filhos indenes através dos preventórios . Aos especializarse na
ação preventorial, a Federação abandonou as práticas discursivas e não-discursivas
que haviam proporcionando o grande prestigio social e político do qual desfrutava em
meados da década de 1930. Gradualmente a FSAL e DCL foi perdendo sua
combatividade e a capacidade de enfrentamento e reivindicação social que possuía
perante o governo passando a viver às suas expressas.
O leproso e sua família tornaram se, então, a partir de 1935, alvo de intensa
intervenção normalizadora oriunda do Estado. Seus filhos indenes, revestidos do
estigma da lepra herdado dos pais, ficariam submetidos à prática preventorial
dirigida e organizada nacionalmente pela FSAL e DCL. Assim, as “crianças lázaras”
deveriam ser enviadas para asilos-colônias e aquelas que não fossem “infecto
contagiantes” poderiam ficar fora da órbita da ação estatal, porem, submetidas, dentro
118
dos preventórios, à mesma vigilância e controle exercido pelos dispensários sobre os
“comunicantes”.
A partir de 1935 observase que o envolvimento maciço do Estado com o
problema da lepra iria redimensionar a postura da FSAL e DCL, invertendo o que
vinha ocorrendo até aquele momento.
Sediada no Rio de Janeiro a FSA e DCL pode contar com amplo apoio
político e financeiro do governo federal. Além da prática preventorial na qual se
especializou, esporadicamente realizava-se campanhas de arrecadação de fundos para
auxiliar na melhoria das instalações físicas dos asilos-colônias. Este recursos eram
aplicados na construção da pavilhões residenciais, de diversões e ou outros que
julgassem ser mais necessários.
O processo de centralização autoritária em curso naquele momento no Brasil
encantava a FSAL e DCL que ambicionava fazer o mesmo com relação as ruas
filiadas. O governo federal a partir de 1935 reuniria cada vez mais em seu entorno
atribuições que antes de 1930 não eram de sua alçada. Reduzindo o poder do
legislativo e judiciário federal, repassando para a União algumas prerrogativas
outrora estatuais e municipais e imbuindose da função de fiscalizador e
normalizador, o governo Vargas obteve condições de possuir uma interferência
perceptível em vários setores da vida nacional.
No entanto, essa submissão correspondida a dois movimentos contrários e
complementares. O primeiro, a sujeição da FSAL e DCL ao governo federal equivalia
a uma forma eficaz de ter assegurado os recursos financeiros necessário para o
prosseguimento de suas atividades. O segundo, a subordinação das filiadas ao
comando da Federação, condição indispensável exigida para o recebimento de
recursos da União, constituiu uma forma de controle hierarquizado pelo qual se
transmitia ao mantenedor o poder de decisão final sobre o que se relacionasse com a
prática preventorial . A Federação passou a ocupar uma posição intermediária nesta
hierarquia. Encontravase acima das SAL e DCL locais espalhadas pelo país, as quais
dominava, e abaixo do Ministério da Educação e Saúde (MES), ao qual era
subordinada.
Para Federação sua própria submissão ao governo da União constituiu uma
estratégia importante para que obtivesse êxito no objetivo de submeter as demais
sociedades locais ao seu controle, o que foi concretizado através da restrição da
119
autonomia que estas possuíam. Com isso, todas as decisões passaram a emanar do
Rio de Janeiro.
O principal mecanismo de controle utilizado foi a intermediações burocrática ,
via FSAL e DCL, de todos os recursos financeiros
67
destinado aos preventórios.
Qualquer doação ou subvenção governamental deveria obrigatoriamente passa pela
sede no Rio de Janeiro, que retirava uma pequena porcentagem, “mínima”, “apenas o
estritamente necessário para a manutenção da causa”, e repassaria o restante a filiada
para qual se destinava originalmente o auxilio.
Este mecanismo, citado anteriormente, se encaixava dentro da “vontade
centralizadora e autoritária” que eclodiria mais tarde no âmbito do governo federal no
período chamado Estadonovista. O que o tornou possível foi um documento oficial,
um Despacho, que direcionava todas as subvenções governamentais para à FSAL e
DCL ao mesmo tempo que a submetia ao controle da União, impondo prestações de
conta e ditando, mesmo que implicitamente, o rumo que deveria tornar o dinheiro a
ela confiado. Um autêntico “toma lá da cá”. Trocou se a autonomia pela opulência.
No entanto, apesar desta mudança de orientação verificada entre a primeira e
a segunda presidente da FSAL e DCL, Eunice Weaver não omitia o trabalho de Alice
Tibiriçá.
“Ainda em 1926, em São Paulo, foi fundada a 1º Sociedade de Assistência
aos Lázaros, por D. Alice Tibiriçá, iniciando ativa propaganda no Estado,
em favor do combate a lepra. Fundou ainda muitas filiadas nesse estado, a
fim de trabalharem na assistência as famílias dos enfermos bem como dos
próprios doentes.
Mais tarde, foram fundadas Sociedade semelhante no Distrito
Federal e em mais 5 estados, que em 1932 se agruparam em Federação, com
sede em São Paulo. Em 1935, a Federação foi transferida para Rio”.
68
Carmencita Gibson Barbosa, continuadora de Weaver, considerava o trabalho
da primeira gestão da Federação insuficiente.
“Existia, em São Paulo, a Federação Sociedades de Assistencia aos Lázaros,
fundada em 23 de janeiro de 1932, pela Sra. Alice Ribas Tibiriçá, porem o
trabalho não vinha se desenvolvendo como era necessário, dado o vulto
67
Ver o famoso “Despacho de 1940” que abre este texto(item 2.3.2 )
68
WEAVER, Eunice. Assistência Social no combate à Lepra no Brasil. In: Separata da Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, Gráfica Milone,1943,55p.(p.07).
120
alarmante da doença, que requeria as mais enérgicas providencias dos
poderes políticos.”
69
Dessa forma, Eunice Weaver delineou três prioridades que foram
rigorosamente cumpridas durante todo o período em que esteve à frente da FSAL e
DCL ou seja, até a sua morte em 1969. Primeiro, a construção de novos preventórios,
através da realização das campanhas arrecadação de recursos financeiros e
estabelecimento de acordos com o MES. Segundo, aumentar o numero de Sociedades
filiadas pelo país. Terceiro, auxiliar na melhoria das instalações físicas dos asilos-
colônias. Pode-se observar que a FSAL e DCL tornou-se o braço direito do MES no
que se referia a profilaxia da lepra no Brasil
O crescimento do número de filiadas da FSAL e DCL foi uma estratégia
encontrada para se viabilizar a concretização da primeira prioridade. As sociedades
locais constituíam um meio eficaz de arregimentação de pessoas aptas para
contribuírem na construção, administração e amparo financeiro dos preventórios.
Esses recebiam auxilio em forma de apoio social as suas atividades e recursos
financeiros para custear as despesas que ultrapassassem a valor das subvenções
governamentais recebidas. O dinheiro era arrecadado nos municípios onde se
localizavam os preventórios, ou mas cidades vizinhas, através de campanhas de
doação, bailes, festas, loterias e outros eventos do gênero.
A receita utilizada para se fundar as sociedades locais era a mesma desde a
época da Alice Tibiriçá. A presidente da FSAL e DCL realizava uma visita à cidade
escolhida, durante a qual apresentava algumas palestras e encontros, nos quais fazia-
se o apelo pedindo auxílio para a “salvação de raça”. Algumas pessoas eram quase
sempre procuradas por serem consideradas de utilidade estratégica para o sucesso da
causa. Eram elas: a primeira dama municipal, médicos, autoridades municipais,
advogados, delegados, jornalistas, representantes de toda imprensa local, vereadores
entre outros. As “moças de família”, oriunda da classe média, da primeira metade do
século XX, encontraram nas atividades filantrópicas da SAL e DCL uma área de
atuação extra-doméstica que não representava uma afronta á sociedade machista da
época, por isso, bem aceita e recebida. Um espaço feminino socialmente consentido.
69
BARBOSOA, Carmencita Gibson. Eunice Weaver: um símbolo. Rio de Janeiro, Gráfica Milone,
1965(p.13).
121
“A função filantrópica da Sociedade de Assistência aos ao Lázaros e Defesa
contra a Lepra ( SAL e DCL ) foi amplamente acatada pela mulher brasileira
do inicio do século XX, que encontrou espaço nas atividades filantrópicas,
sociais e moralizadoras aliadas ao processo de promoção da mulher,
apregoadora pelo feminismo nascente. A partir do final do século XIX, a
mulher burguesa, através da revalorização das tarefas educativas,
estabeleceu uma nova continuidade entre suas atividades familiares e
atividades sociais, onde descobriu um domínio de missão e abriu um novo
campo profissional, na propagação das novas normas assistenciais e
educacionais.”
70
Uma vez formada a SAL e DCL local esta era colocada sob orientação direta
da FSAL e DCL, convertendo-se, assim, num “olho” desta naquela cidade. Além de
hierárquico e jurídico, o vínculo entre a Federação e suas filiadas eram financeiro,
pois era do Rio de Janeiro que vinham as subvenções governamentais para os
preventórios.
UBERLÂNDIA
Uberlândia, sempre fiel ao nome acertado que recebeu, é uma ter fértil para todas as boas
sementes que nela sejam lançadas.
Foi o que se confirmou mais uma vez quando em setembro de 1948 aqui veio D. Eunice
Weaver, essa mulher incomparável em abnegação e caridade, empenhada em propagar por toda parte
a sementeira da grande obra social a que ela tão abnegadamente se consagrou .
Ao apêlo por ela lançado em palestra realizada no salão de sessões de nossa Câmara
Municipal, a população uberlandense correspondeu logo com a fundação da Sociedade de Assistência
aos Lázaros e Defesa contra a Lepra efetivada a 20 de setembro de 1948.
Dentro da orientação que lhe imprimiu sua diligente promotora que continuou prestando-lhe
sua supervisão, esta entidade beneficente vem dando sua assistência aos hansenianos deste município
e as famílias dos mesmos.
Em complemento à sua atividade foi construído o Educandário Eunice Weaver no município
de Araguari, onde as crianças nascidas de famílias doentes encontram um lar que as preserva do
contágio e lhes proporciona carinhosa formação.
Por tão assinalados serviços resultantes da campanha humanitária de que fez campeã,
Eunice Weaver é credora das homenagens que lhe rende aqui a Sociedade de Assistência aos Lázaros,
pelos seus componentes e por aqueles a quem vem assistindo.
Deolinda Cupertino Marquez
José de O. Guimarães
71
No final da década de 1930, com o aumento do numero de filiados à FSAL e
DCL e preventórios existente no país, Eunice Weaver, amparada com amplos
recursos do governo federal, resolveu convocar um encontro objetivando aquilatar os
70
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Op. Cit., p.76/77.
71
BARBOSA, Carmencita Gibson. Op. Cit. p.63/64.
122
resultados até então obtidos e elaborar documentos para servirem de orientação,
consulta e fundamentação da prática preventorial no Brasil. Assim, de 12 a 19 de
novembro de 1939 aconteceu no Rio de Janeiro à Conferencia de Assistência Social
aos Leprosos. Este evento ratificou tudo que vinha sendo realizado e foi taxativo em
duas conclusões.
1º) Necessidade da criação de um órgão especifico em âmbito nacional,
vinculado ao Ministério de Educação e Saúde, munido de poder fiscalizador e
normatizador, e que funcionasse como instância máxima de decisão e consulta para
todos aqueles que trabalhassem com a lepra no país.
2º ) Abolir oficialmente a denominação de Preventório para se referir aos
internatos destinados aos filhos indenes dos leprosos e substituí-lo por Educandário,
pois entendia-se que o primeiro nome era inadequado por aludir diretamente e
explicitamente ao problema da lepra, sendo estigmatizante para as crianças que neste
se encontravam.
A primeira conclusão foi acatada pelo governo federal que criou em 1941 a
Serviço Nacional de Lepra (SNL)
72
. A segunda foi vigorosamente aplicada pela
FSAL e DCL, inclusive, bastante elogiada por Eunice Weaver, embora, não tenha se
concretizado na prática. Os internatos dedicados aos filhos indenes dos leprosos
continuaram sendo designados de Preventórios , termo este que não caiu em desuso
apesar de proscrito oficialmente. De qualquer forma, esta segunda conclusão
inaugurou a discussão acerca de termos e nomenclaturas inadequados com relação à
lepra, suas instituições, pacientes e profilaxia Debate este que até hoje ainda mantém
inúmeras polêmicas..
Este evento teve uma segunda edição em 1945. Desta vez ela foi intitulado de
II Confidencia Nacional de Assistência Social aos Lazaros e aconteceu no Rio de
Janeiro entre 10 a 16 de julho. Comparado ao primeiro, este o ultrapassou pelo
gigantismo. Reuniram-se perto de 150 filiadas, inúmeros médicos, autoridades
governamentais, o Serviço Nacional de Lepra, o ministro da Educação e Saúde e o
presidente da Republica, Getúlio Vargas. Este no seu encerramento do encontro
proferiu as seguintes palavras:
72
O Serviço Nacional de Lepra (SNL) subordinado ao Departamento Nacional de Saúde (DNS) do
Ministério da Educação e Saúde (MES) foi criado pelo Decreto Lei N.º 3171 de 02/04/1941.
(Publicado na Coleção de Leis do Brasil CLBR- VOL I, 1941, p 000.0007).
123
“A Federação e suas filiadas não deveriam agradecer a colaboração e o
apoio material que lhes tem sido dados pelo Govêrno Federal, pois êste é
que tem uma dívida de gratidão imperecível pelo muito que um entidade vem
fazendo em beneficio da gente brasileira.”(sic)
73
Os anais deste encontro transformaram-se em diretrizes nacionais e
ultrapassaram o âmbito da prática preventorial estendendose a toda área do
assistencialismo moderno relacionado com a lepra.
Terminado o Estado Novo e com a saída de Getúlio Vargas da presidente da
República, a FSAL e DCL não ficou desassistida do amparo federal, embora, não
voltasse mais a viver outra época como aquela, quando receberam tanto apoio e tão
pequeno numero de críticas. O governo Eurico Gaspar Dutra continuou, sem o
entusiasmo da gestão anterior, a repassar as subvenções governamentais à federação.
No último ano de seu mandato, Dutra liberou uma subvenção governamental para que
Eunice Weaver pudesse comprar um prédio próprio para abrigar dignamente a FSAL
e DCL.
“Depois do advento do Estado Novo, o Presidente Eunice Gaspar Dutra ,
também grande amigo de Eunice Weaver, dera incondicional apoio à obra
da federação e mandara-lhe proporcionar recursos para que fosse adquirida
uma séde condigna, onde melhor ela pudesse estender as suas atividades,
agora, grandemente, espalhadas. A Federação ainda tinha seu escritório na
sala cedida, por empréstimo, no Palace Hotel
74
. Assim, foi lhe concedida
uma verba de Cr$ 700.000, com que lhe foi possível adquirir a atual séde
onde se acha instalada a Federação. Com a garantia do seu marido, que
(Prof. Charles Anderson Weaver) afiançou o restante do pagamento, pode,
enfim, ela ter maior espaço para exercer as suas atividades.”(sic)
75
Outra antiga reivindicação da FSAL e DCL, inúmeras vezes protelada,
atendida durante o governo Dutra, foi a instituição de uma ajuda financeira anual
destinada à Federação para contribuir no custeio dos preventórios, complementando
as subvenções governamentais que já eram recebidos com este objetivo.
Os empecilhos surgidos na instituição dessa ajuda exigiram criatividade para
serem superados. Muitos foram os problemas que se apresentaram. Primeiro a FSAL
e DCL não era uma repartição estatal passível de ser diretamente contemplada com o
73
BARBOSA, Carmencita Gibson. Op. Cit., p.40.
74
Durante 15 anos a FSA e DCL encontrou-se instalada na sala Nº534 do Palace Hotel, cedida
gratuitamente com telefone, na Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro/RJ, onde funcionário a sede
administrativa e a redação da Revista de Combate a Lepra órgão oficial de publicação da federação.
Em 1950 ela mudou-se para o novo prédio adquirido, localizado na Avenida Calogeras Nº15 no centro
do Rio de Janeiro, onde permanece até hoje.
75
BARBOSA, Carmencita Gibson. Op. Cit. p.41.
124
produto de algum imposto especifico. Segundo, como Associação Beneficente não-
governamental recebedora de subvenções, igual a inúmeras outras existente no país, a
criação de impostos ou taxa exclusivamente destinada a Federação poderia revelar-se
um sinal de predileção e ilegalidade.
A solução encontrada foi transferir a conta para ser paga por toda população
brasileira. Criou-se uma lei autorizando o poder executivo a emitir selos postais cujo
valor arrecadado com sua comercialização deveria receber escrituração à parte pelos
Correios, e por estes ser diretamente repassados à FSAL e DCL. O selo funcionaria
como sobretaxa obrigatória a ser cobrada em todas correspondências brasileiras
postada na última semana de novembro de cada ano, que passou a ser denominada de
“Semana de Combate a Lepra”. Esta, apesar de programada para iniciar em 1950,
teve sua primeira edição com dois anos de atraso.
Estados Unidos do Brasil
DIÁRIO OFICIAL
SEÇÃO I
Ano LXXXVIII - N.º265 Capital Federal Quinta Feira, 17 de Novembro de 1949
Lei N.º 909 de 08 de Novembrode 1949
76
Autoriza a emissão especial de selos em benefício dos filhos sadios dos lázaros.
O Presidente da República:
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º E’ o Poder Executivo autorizado a realizar, anualmente, por intermédio do Ministério
da Viação e Obras Públicas, a partir de 1950, durante uma semana, que se denominarás Semana do
Combate à Lepra, emissão de selos da taxa adicional de 10 (dez) centavos para serem aplicados à
correspondência que transita pelo território nacional.
Parágrafo único. O produto da venda dos selos, a que se refere esta Lei. Será entregue à
Federação das sociedades de Assistência ao Lázaro, integrada na Campanha Nacional Contra a Lepra,
em virtude do Decreto lei n.º 4.827, de 12 de outubro de1942. em beneficio dos filhos sadios dos
lázaros.
Art. 2º Esta Lei entrará em vigor na data da sua publicação.
Art. 3º Revogam- se as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1949: 128º da Independência e 61ºda Republica.
Eurico G. Dutra
Clóvis Pestana.
Guilherme da Silvéria.
Clemente Mariani.
76
No DOU coluna I, p.016081.
125
Os selos da Semana de Combate à Lepra /Hanseníase
77
circularam no Brasil
de 1952 a 1994. Em alguns anos não houve emissão, dada a quantidade em estoque
do ano anterior, que foi reaproveitada para comercialização. Nos anos de 1967 e 1972
não foi cobrada a taxa adicional
78
. O primeiro selo da serie emitido em 24/11/1952
em homenagens ao Padre Damião de Veuster e o último foi dedicado ao padre
Santiago Uchôa.
Mesmo submetido diretamente aos ditames do governo federal, os Correios
constituem uma empresa estatal, portando, não impedida, naquele momento, de
realizar tal “campanha de arrecadação”, ainda que fosse o cidadão comum, o
consumidor final, o responsável pelo pagamento da conta. De qualquer forma, até a
sua morte em 1969, Eunice Weaver pode contar com os recursos oriundos dos selos
postais para auxiliar no custeio dos “Preventórios do Brazil”
79
.
Os preventórios proliferavam no Brasil, ultrapassando o número de 30
instituições espalhadas pelo país. Com o crescimento das despesas a FSAL e DCL
terminou por abandonar as outras poucas atividades que realizava, dedicando-se
exclusivamente a eles. Encargo pesado que consumia inteiramente os esforços de
todas as pessoas que trabalham na Federação:
“A responsabilidade para manter em funcionamento tão grande número de
Educandários, 29 ao todo, onde se encontram abrigadas cerca de 5000
crianças, já pelos idos de 1950, (...) era muito grande , notadamente em um
77
A partir de 1976 com alteração de nome realizada pelo Ministério da Saúde (PORTARIA 165/BSB
de 14/05/1976), de Lepra para Hanseníase, os Correios modificaram a nomenclatura dos Selos portais
que passaram a serem Semana se Combate á Hanseníase.
78
MEYER, Rolf Harald. Catálogo de Selos do Brasil-1900/91. São Paulo, Vol. II 48.ª Edição.
Editora RHM LTDA, anuário 1990/91(p.27-29).
79
A partir da outorga da constituição de 1967 e da promulgação da de 1988, os Correios ficaram
“impedidos” da cobrança da sobretaxa da “Semana de Combate à Lepra /Hanseníase” . Essa
interpretação foi reforçada com a Lei nº6538 de 22/06/1978 (Dispõe sobre os Serviços Portais ) . No
entanto, apenas em 1995 os Correios suspenderam a emissão deste selos por decisão judicial. Com
base numa Ação Ordinais ajuizada em 1992, o juiz da 12º Vara Federal do Rio de Janeiro, em 11 de
junho de 1995, prolatou sentença no sentido de desobrigar os Correios da emissão do referido selo de
taxa adicional, considerando, inclusive, ilícita a cobrança dos usuários do Serviço Postal dessa
sobretarifa obrigatória para fins assistenciais por mais meritórios que fossem os objetivos a que se
destinassem. Cf. Lei n.º 6538 de 22/06/1978; PERON, Luís. Filatelia. Modulo 06(Apostila interna dos
Correios), 64p.(p.58-60); MEYER, Rolf Harald. Catálogo de Selos do Brasil (simplificado): de 1843
a 1997. São Paulo, 51
ª
edição, Editora RHM LTDA, anuário 1998.
126
127
país como o nosso, em que de ano para ano, sobe assustadoramente o custo
de todas as utilidades.
As previsões feitas anualmente para manter o equilíbrio do
orçamento com as dotações fornecidas pelo Governo eram sempre de muito
ultrapassadas e então, terminadas as construções dos Educandários,
começou uma outra luta muito mais violenta para mantê-los em
funcionamento, dentro das normas e dos padrões da vida, de higiene,
salubridade e conforto.
Começou a batalha de Eunice Weaver pela obtenção de maiores
recursos junto aos poderes federais, estatuais e municipais, pois das
despesas reais efetuadas com a manutenção das crianças internas, apenas
1/3 eram supridos com as verbas federais ou estatuais, sendo 2/3 restantes
arrecadados da contribuição particular, com a promoção de festividades,
renda de sócios, donativos de firmas importantes ou particulares, tômbolas,
sorteios e todas espécies de promoção em que se pudesse auferir lucro
imediato.
Mesmo assim não era bastante. A inflação tudo devorava e com a
demora do pagamento das verbas, que geralmente levava muitos meses para
serem pagas, já encontrava exauridas e desanimadas todas aquelas pessoas
encarregadas de presidir e dirigir os destinos das Educandários.”
80
Para Maria Augusta Tibiriçá Miranda, filha de Alice Tibiriçá e biografia da
mãe, essa dedicação exclusiva foi um erro.
“Dona Eunice permaneceu na Presidência da Federação, e, a ela, sem
dúvida dedicou-se anos a fio. Mais lhe concentrou a atuação erradamente,
nas creches e preventórios para os filhas de hansenianos.”
81
No decorrer dos anos, a colossal despesa dos preventórios terminou por
fazer da FSAL e DCL refém das intempéries governamentais. Dado a vultuosidade
dos compromissos assumidos e o ônus a ser sustentado, que crescia vertiginosamente,
nem sempre correspondido com o apoio habitualmente destinados pelos governos,
chegou-se a viver na Federação situação de grandes dificuldades financeiras.
O segundo governo Vargas deu continuidade ao auxilio e amparo concedido
desde 1935 à FSAL e DCL. No entanto, o suicídio de Getúlio foi um acontecimento
que repercutiu na Federação. O ano de 1954 marcaria o fim do período “áureo” da
tutela estatal, um “divisor de águas”. A partir do final da década de 1950 começavam
a surgir severas críticas ao isolamento dos leprosos e a prática preventorial. Somado a
isso, os governos federais que se sucederiam, cada vez mais entediam ser os asilos -
colônias e os preventórios oneroso preso morto, desnecessário aos cofres públicos.
Paralelamente a crise do isolamento, os medicamentos que iam surgindo apontavam
uma outra alternativa para a profilaxia da lepra. Começava-se a postular uma
80
BARBOSA, Carmencita Gibson. Op. Cit. p.50.
128
profilaxia baseada em tratamento domiciliar, ausência do confinamento e dos
preventórios e o barateamento dos custos.
A partir da década de 1960 começou-se a questionar o valor profilático da
tríade asiloscolônias/dispensários/preventórios. O interesse do Estado pela FSAL e
DCL e sua “obra patriótica” foi decaindo a medida que as criticas ao isolamento, e
indiretamente aos preventório, foram se acentuando e avolumando. Questionava-se a
função anti-leprótica dos preventórios, se este efetivamente “preveniam” alguma
coisa ou apenas contribuíam para perpetuação do estigma da lepra.
Até 1969, ano de sua morte. Eunice Weaver usara as migalhas restante de seu
antigo prestigio social e político para assegurar a continuidade do atendimento
prestado pela FSAL e DCL, embora, tenha sido obrigada a aumentar cada vez mais a
dosagem de súplica e apelação que acompanha seus pedidos para que fossem obtidos
os mesmos recursos outrora concedidos num clima bem mais favorável e menos
custoso. Elogios presidenciais nunca mais aconteceram, e se ocorreram, não foram
acompanhados do equivalente em auxilio financeiro para os preventórios.
“Com a mudança da capital para Brasília, então, tudo ficou mais
complicado e confuso. Os processos levaram mais tempo para serem
localizados, a exigência das repartições eram cada vez maiores, o trabalho
requeria mais esfôrço, mais concentração, mais energia.
E embora encontre boa vontade e compreensão em toda parte as
dificuldades venham sedo superadas, todos os obstáculos vencidos e tudo
venha sendo feito rigorosamente dentro da rotina burocrática, os pedidos
encaminhados dentro do prazo, as prestações de contas apresentadas sem
falhas, todas as exigência por mais absurdas venham sedo cumpridas, ainda
assim, com toda essa atividade e sacrifício, muitas das verbas destinadas ao
seu trabalho são cortadas, algumas não são pagas, outras pagas pela
metade ou no ultimo dia do ano, quando ela já extenuada cansaço, fica pelas
repartições até altas horas da madrugada, para que não caia em Exercícios
Findos ou Restos a Pagar o precioso dinheiro destinado aos seus meninos.
E isso já vem se repetindo há vários anos.
Ainda em 1964, com sua saúde já seriamente abalada, quando se ela
atendesse a conselhos médicos estaria invalidada, guardando o leito, ficou
ela na 2º Pagadoria do Ministério da Fazenda até quase de madrugada no
dia 30 de dezembro e ao receber o cheque pelo qual tanto ansiara, o seu
cansaço e mal-estar eram tão grandes que, acometida de uma sincope, na
via pública, foi socorrida por estranhos e levada até à séde da Federação,
onde estabeleceu sua moradia, desde a morte do seu marido (ocorrida em
81
MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Op. Cit., p.80/81.
129
10/01/1955) e onde vem trabalhando neste últimos anos de 10 a 20 horas por
dia.
Gostaria que os Sr. Presidente da República, Marechal Castello
Branco, que no seu governo vem dando substancial ajuda à Federação,
através do Sr. Ministro da Saúde, Dr. Raimundo de Brito, que pelo Serviço
Nacional de Lepra, tem consignado valiosas subvenções ás sociedades
mantenedoras dos Educandários e que já vem dispensando algumas das
formalidades exigidas para o pagamento das verbas, pudesse dar um pouco
de atenção regimento da matéria que determina o pagamento das subvenções
a entidades assistenciais que comprovados serviços venham prestando à
causa pública, suprimindo o intrincado e prolongado processamento, que
leva ao desespero pessoas como Eunice Weaver , que há 30 anos vem
trabalhando pela grandeza do Brasil, tendo sido por 15 vezes consecutivas
eleita para o lugar que com patriotismo, invulgar capacidade e dedicação
vem dando toda sua vida à causa que abraçou.”(sic)
82
Com a morte de Eunice Weaver, assumiu a presidência da FSAL e DCL sua
amiga, companheira e biógrafa, senhora Carmencita Gibson Barbosa. A morte de
Weaver representou a queda do último baluarte de sustentação da prática preventorial.
Depois de 1969 uma crise generalizada, tanto econômica como política, se abateu
sobre os preventórios. Faltava apoio às atividades e dinheiro para custeá-las. Os
novos rumos políticos que se tomavam com relação a lepra e o descontentamento da
Federação ficam evidentes nesta correspondência de Gibson a diretora do
preventório do Triângulo Mineiro, Educandário Eunice Weaver de Araguari:
“Gostaríamos muito que a senhora estivesse aqui a fim de tomar
conhecimento das medidas que seremos forçadas a tomar para que possamos
continuar a dar assistência as crianças que temos sob nossa
responsabilidade; o aumento da manutenção dos nossos Educandários que
estão sofrendo uma forte pressão das autoridades federais com as medidas
tomadas pelo Governo de não deixar mais nenhuma interferência de
deputados e senadores com as subvenções que eles sempre destinavam aos
nossos serviços.
(...) Estamos pois em vias de entrarmos em entendimento com prof.
Mario Haltenfeld, presidente da Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor, pois ele poderá nos fornecer os meios para que possamos prosseguir
os nossos trabalhos.
Acreditamos entretanto que para conseguirmos êxito neste setor,
teremos que fazer uma reformulação na nossa norma de trabalho, desde que
há muito vem sofrendo os Educandários forte pressão das autoridades
sanitárias .
Não acreditamos que possamos sair vitoriosas se persistimos em nos
apor a uma política que não poupou a própria D. Eunice, cujos últimos dias
foram amargurados pela oposição que vinha sendo vitima.”
83
82
BARBOSA, Carmencita Gibson. Op. Cit., p.52.
83
Correspondência da presidente da FSDCL, Carmencita Gibson Barbosa, à Diretora da preventório de
Triângulo Mineiro, Rio de Janeiro, 09/04/1970. Apud: GOMIDE, Leila Regina Scalia. Op. Cit.,
p.250/251.
130
Em agosto de 1970, Gibson apresentou uma “tese” na I Reunião Leprológica
Del Como Sul, realizada em Buenos Aires, intitulada; “Considerações sobre os
efeitos da leprose nos filhos dos hansenianos” onde sugeria medidas de controle de
natalidade a serem urgentemente adotadas nos asilos-colônias para impedir a
proliferação de uma prole “nefasta”. Sua Argumentação central era a seguinte:
“Da longa vivencia com a educação e manutenção da criança nascida de
pais hansenianos, encaminhada logo após o nascimento aos cuidados da
Federação das Sociedades de Defesa Contra a Lepra, foi nos dado observar
alguns sintomas e características de retardamento mental, que pelo alto
índice apresentado, estão a merecer um melhor estudo pelas autoridades
médicas .
(...)
Em todos os nossos estabelecimentos é considerável o número de
retardados mentais, sendo que o mais destacado foi o caso de um
Educandário situado na região Nordeste do Brasil, onde todas as crianças
submetidas teste psicológico pela Fundação Pestalozzi, em numero de 65
tôdas sem exceção, apresentaram características de debilidade mental,
cretinice ou inteligência sub-normal.”(sic)
84
Esta atitude da presidente da federação mostrou-se tendenciosa em inúmeros
aspectos. Após anos de trabalho com os filhos dos leprosos somente em 1970 ela teria
lembrado de divulgar a “debilidade mental” ou “cretinice”, se é que elas existiam,
dessas crianças. Momento tão oportuno que mal esconde a voluntária amnésia da qual
fora acometido durante anos. O controle de natalidade nos asilos-colônias também
lembrado em 1970. A falta de dinheiro na Federação serviu de estimulo para a
memória de Gibson que disparou a recordar-se, elencar e enumerar problemas antigos
sobre os quais encrustava-se um sórdido esquecimento. Enquanto havia recursos
financeiros nem a “cretinice” e o excessivo número de criança eram preocupantes
mas, minguada as subvenções afloravam inúmeras lembranças acobertadas.
Temendo fechar as portas e terminar desprovida de qualquer tipo de ajuda
governamental a Federação viu-se obrigada a modificar as diretrizes com as quais
venha norteando o seu trabalho até aquele momento. Primeiro mudou de nome para
Federação das Sociedades de Defesa Contra a Lepra(FSDCL) e depois para
Federação das sociedades Eunice Weaver(FSEW) com o qual permanece até hoje.
Segundo, deixou de atender exclusivamente as filhos indenes de pais leprosos e
131
tornou-se uma rede de orfanato geral permitindo o ingresso de outras crianças que
não fossem os “órfãos de pais vivos”. Esta mudança de postura já vinha sendo
preconizada por Gibson desde 1970:
“Os Educandários Especializados no Brasil estão passando por uma
reformulação, a fim de que possam transformar-se em estabelecimento
mistos, entretanto, apesar das restrições que eles sofrem, por não ter sido
ainda encontrada uma solução pelas dificuldades sócio-econômicas do País,
eles continuam existindo e para ali são encaminhadas as crianças nascidas
nos leprosários, numa proporção alarmante.”
85
Numa outra correspondência de Gibson a Diretora do preventório do
Triângulo Mineiro, ela comunica as novas diretrizes nacionais com relação à
profilaxia da lepra e expressa sua inconformidade e descontentamento com a situação
que vivia a Federação naquele momento.
“Apreciamos e louvamos o esforço que a senhora vem fazendo assim como
assim como as demais companheiras, porém como sabe a culpa não é nossa
que a Federação tenha chegado a situação que chegou. A própria Da.
Eunice, não conseguiu evitar a crise tremenda do corte de todas as verbas
(...).
(...) Quanto a situação dos doentes, sabemos que é de verdadeira
calamidade pública o estado em que êles se encontram e voltaremos para
êles nossa atenção quando tivermos verbas para os nossos meninos.
Infelizmente o que ficou acertado nos Congressos são normas que os
leprólogos seguem e contra as quais nós, leigas, não podemos nos insurgir
abertamente. Não estamos de acordo absolutamente que os doentes não
devam ser internados nem que as crianças devam ficar em companhia dos
pais, mas é isso que os leprólogos pregam a querem, inclusive fazendo com
nos tirem as verbas para que o nosso trabalho acabe. Por outro lado nunca
fizeram nenhuma pesquisa sobre as conseqüência do tratamento na mulher
gestante e muitos ficaram contra nós por abordamos o problema controle da
natalidade (...).Já que êles são frontalmente contra os nossos Educandários,
a primeira coisa que deviam fazer era controlar o nascimento de tantas
crianças, e levar consideração as nossas observações sobre o atrazo no
desenvolvimento mental dos mesmos...”
86
O convênio da FSDCL com a FUNABEM foi assinado em 1978. A demora
foi devido a necessidade de adaptação dos regulamentos de ambas instituições
87
. O
84
BARBOSA. Carmencita Gibson. Considerações sôbre os efeitos da Leprose nos filhos dos
hansenianos. Apresentados na I Reunião Leprológica Del Cone Sul (Comissão social), Bueno Aires,
agosto de 1970 (p. f 1-1, f1-4)6p. (cópia xerox).
85
Idem., p.f1-2.
86
Correspondência da presidente da FSDCL, Carmencita Gibson Barbosa, à Diretora do preventório
do Triângulo Mineiro, Rio de Janeiro, 22/09/1970. Apud: GOMIDE, Leila Regina Scalia. Op. Cit.
p.252/253.
87
Idem., p. 251.
132
Educandário Eunice Weaver em Araguari, por exemplo, abrigava, 70 crianças entre 2
a 16 anos em 1990, das quais apenas 5% eram oriundas dos asilos-colônias e as
demais provenientes de uma triagem realizada pela FUNABEM
88
.
No decorrer de sua história a Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa Contra a Lepra foi tendo suas práticas discursivas e não-discursivas
redimensionadas conforme o comportamento do Estado até deixar o mundo da lepra.
A nova conjuntura das décadas de 1960 e 70 reclamava novas e posturas, no entanto,
não foram dessa forma compreendidas pela Federação.
“A incompreensão diante dos novos métodos propostos conduziu à analise
distorcida da presidente da Federação, que “enxergou”, na nova medida,
um complô por parte dos Serviços de Saúde em relação aos trabalhos já
cristalizados, desenvolvidos pela Federação, impedindo, inclusive a
possibilidade de ser criar, a partir daí, uma inovadora e moderna forma de
enfrentamento da questão da hanseníase.”
89
Converter os preventórios num estabelecimento geral de amparo a infância foi
a maneira encontrada pela Federação para continuar sobrevivendo com a ajuda
governamental, numa época em que a lepra já não era justificativa suficiente para
auferir os recursos de que necessitava.
88
Idem., Ibidem., p.255.
89
Idem., ibidem., p.254.
133
CAPÍTULO III
“AQUI RENASCE A ESPERANÇA”: crise na
profilaxia da Lepra no Brasil
133
3.1. A tríade isolacionista: asilos-colônias, preventórios e
dispensários
A seqüestração dos “morféticos” em asilos-colônias rurais, afastados das áreas
urbanas, foi a maneira mais econômica, aprazível e “profilaticamente correta” que se
encontrou para alijar da sociedade os indesejáveis leprosos.
No entanto, logo constatou-se que o isolamento necessitava de outras medidas
complementares que assegurassem o cumprimento eficaz de seu objetivo principal; à
saber: acabar com a endemia de lepra no Brasil.
O perigo não se encontrava apenas no leproso e no seu corpo, repositório de
inúmeros bacilos, que ameaçava os “sãos” por ser o veículo de condução da lepra
para outras plagas ainda intactas. Mas os isolados ou confinados possuíam filhos,
irmãos, pais, amigos e outras pessoas com as quais conviviam, que, em tese, eram
portadoras irreveladas do mesmo mal. Para estas foram providenciados os
preventórios e os dispensários.
Os asilos-colônias
Em 1880 foi inaugurado no “Imperial Hospital dos Lázaros do Rio de
Janeiro” os retratos de Dom Frei Antônio do Desterro e do Vice-rei Conde da
Cunha
1
. Nessa ocasião discursou o Escrivão da Administração daquele
estabelecimento, Luiz Augusto de Magalhães, que sugeriu que fosse gravado no
pórtico daquele edifício, no vitral, com letras de fogo, a sentença da porta do inferno
de Dante Alighieri
2
: Deixe fora toda a esperança
3
. A sugestão foi acatada, porém,
quando Dom Pedro II, imperador do Brasil, realizava uma de suas habituais visitas
àquela instituição, provavelmente em janeiro de 1881, desaprovou categoricamente
1
Sobre a relação desses dois personagens com a história do Imperial Hospital dos Lázaros do Rio de
Janeiro ver o texto 2.1, do capítulo II, deste trabalho.
2
Poeta e escrito italiano(Florença 1265 - Ravena 1321), autor da Divina Comédia.
3
Dante Alighieri Canto III: 9
134
esta escolha e determinou sua substituição por uma outra frase mais humanitária;
alterando-a para: Aqui renasce a esperança
4
. Este episódio tornou-se célebre e tem
sido geralmente utilizado para demonstrar a visão aguçada do monarca brasileiro com
relação a inúmeros assuntos, entre eles, a lepra. Em l9l9 Arthur Neiva
5
colocou essa
mesma inscrição no frontispício do asilo-colônia Santo Ângelo, no município de
Mogi das Cruzes/SP, pois esta, se adequava como lema para as tendências que
tomavam vulto na leprologia nacional e paulista naqueles idos anos da década de
1910. O isolamento ressurgia encarnando as esperanças de conter a procissão
macabra da lepra sobre o país. Daí a justificava para inserir a divisa imperial no
primeiro grande estabelecimento de isolamento renovado do Estado de São Paulo,
isto é, uma seqüestração médica e não mais religiosa.
Este acontecimento, no entanto, se presta a outras inúmeras análises, pois
revela características da época em que vivia seus envolvidos. Dom Pedro II espantou-
se com uma frase adotada num leprosário brasileiro no final do século XIX, o que
provavelmente não teria ocorrido com seu pai ou seu avô, afinal está na bíblia que o
leproso é mesmo um condenado e por ele pouco se podia fazer. Mas, o estranhamento
daquela frase para a imperador remontava algo desumano. Ele reinava num país onde,
assim como em todo o ocidente, a Medicina Social se firmava e consolidava seu
espaço de atuação reivindicando redutos outrora eminentemente religiosos. A lepra
era um objeto do discurso médico que se definia naquele momento. Arthur Neiva
considerou adequada a divisa porque vivia na mesma epistéme
6
que se encontrava o
monarca brasileiro. A retirada da lepra da esfera religiosa e sua imersão no saber
médico coincide com a mudança ocorrida no hospital que, no final do século XIX,
começa a adquirir seu estatuto de estabelecimento onde se processa a cura e a
recuperação dos males humanos.
No entanto, se Arthur Neiva considerou válida a frase imperial gravada no
Hospital dos Lázaros do Rio de Janeiro, ele certamente não aprovaria os métodos de
4
Este episódio encontra-se narrado em: SOUZA-ARAUJO, Heraclides-Cesar de. História da lepra
no Brasil: período republicano. Volume III, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1956(p.384/Est.26).
5
Diretor do Departamento de Saúde Pública do Estado de São Paulo em 1917 e autor do código
sanitário de 1918.
6
Para Michel Foucault, este termo significa um conjunto de regras e princípios, predominantes num
determinado período histórico, que possibilitam que certas coisas sejam ditas e outras não, cofigurando
campos particulares de saberes, geralmente avessos a novas colocações que não utilizam o conjunto já
definido dentro da área. Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.7º edição, Edições Loyola,
São Paulo,20001.
135
trabalhos adotados neste estabelecimento até início do século XX. Neste, isolava-se
apenas aqueles que batiam voluntariamente à sua porta, alguns mendigos que não
dispunham de meios para se furtarem a visão pública ou ocultarem sua lepra e
algumas pessoas cujas famílias não desejam mais a companhia do ente “infectado”. A
“collectividade” permanecia da mesma forma ameaçada, pois estes estabelecimentos
realizavam um trabalho cujo valor profilático era inócuo. Para Ernami Agricola eram
estabelecimentos assistenciais e não profiláticos:
“a instalação de asilos, enfermarias e hospitais em vários Estados como o
Umirsal, em Manaus, no Amazonas, inaugurado em 1908 e que funcionou
até 1930, decorreu da presença de portadores do mal de Hansen, sendo
mais de caráter de assistencial. Por certo bela obra de caridade, mas sem
qualquer influência como medida de combate à doença que continuou a se
expandir de vez que a aparelhagem sôbre ser deficiente, não dispunha de
recursos técnicos e organizações necessárias ao desenvolvimento de uma
campanha eficiente de sentido profilático”(sic)
7
O procedimento adotado no Hospital do Rio de Janeiro era o mesmo de todos
os outros congêneres existentes no país
8
. Era um isolamento que remontava a herança
medieval, mediado pelas concepções bíblicas acerca da lepra, que não se estendia a
todos os acometidos, concretizando-se através de uma prática altamente seletiva que
terminava funcionando mais como asilo para aqueles que se encontravam em estado
avançado ou tinham sua sobrevivência comprometida por causa da lepra.
O século XX iria requerer um outro tipo de isolamento diferente daquele
religioso, seletivo, brando, não rigoroso, descontínuo e incapaz de deter o doente
dentro de um espaço cerceado pelos cuidados considerados necessários para
salvaguardar a população “sã” do perigo da lepra. A teoria microbiana das doenças de
início levou a um aperfeiçoamento destas instituições de seqüestro no sentido de
restringir a um controle burocrático a circulação dos “indesejáveis” leprosos.
O ideal higienista era o de conter a lepra em um espaço físico controlável,
sujeito a uma fiscalização médica rigorosa, que objetivava resguardar a população
“saudável” do convívio daqueles que consideravam como portadores da terrível
moléstia. Combater a lepra era o mesmo que combater os leprosos. Privá-los do
7
AGRICOLA, Ernani .A Lepra no Brasil. In: Manual de Leprologia. Rio de Janeiro,
MS/DNS/SNL,p.15.
8
Ver mapa no capítulo II, item 2.1.
136
convívio social e retirar-lhes vários de seus direitos foi a forma encontrada para
impedir que os “bacilos que lhe devoravam as carnes” prosseguissem sua escalada e
continuasse a vitimar outros ainda indenes.
“A Lepra, molestia repugnante, que devora as carnes do individuo,
tornando-o repellente, é tanto mais cruel, quanto, poupando a vida da sua
victima, expõe-n’a a execração publica, durante a sua longa existencia.
Ninguem morre de Lepra. O leproso morre de qualquer outra
molestia intercorrente, ou de velhice. E com a sua transmissão se dá por
contagio, imagine-se o numero de victimas que cada leproso pode produzir,
durante os largos annos que vive carregado de tão lugubre fardo. Além
disso, a lepra não tem cura, não se conseguiu até hoje a cultura do seu
bacilo, nem tão pouco descobrir o processo da sua transmissão. Hypotheses
sobre hypotheses, theorias sobre theorias, desde todos os tempos têm
orientado as pesquizas scientificas, sem resultados satisfactorios.
Desde Moysés, segundo nos conta a Bíblia, existe a lepra sobre a
terra. Sendo a mais repelente de todas as molestias que têm affligido a
humanidade serviu sempre de campo de investigações para legiões de
scientistas. Apezar disso, chegamos ao seculo XX da nossa era, em condições
mais ou menos identicas ás do seculos anteriores a Christo. A idéia da
segregação do leproso, circunscrevendo o mal aos proprios individuos
atacados, para com elles desapparecer, quando lhes vier a morte, já era
executada nos tempos biblicos e tem sido até o único meio efficaz, de que os
povos civilisados têm lançado mão.
Todas as chalmoogras e seus derivados, como todas as panacéas
applicadas no decorrer dos seculos, para a cura da lepra, têm produzido
resultados efficazes em alguns casos e falhado desoladoramente em muitos
outros. Como a lepra é um mal mundial, todos os povos do globo têm sido
por ella atacados. E todos lhe deram combate, usando processos nem sempre
iguaes, que produziram resultados tambem diversos.
A observação dos differentes processos applicados é o guia mais
seguro de que podemos lançar mão para o nosso caso, e o mellhor, dentre
elles, já está verificado, é o da segregação.”(sic)
9
No entanto, quando se pensou em isolar todos os leprosos no Brasil
logo defrontou-se com um primeiro e grave problema: o financeiro. De imediato
constatou-se que não ficaria barato o custo de um empreendimento que visasse
confinar sob a tutela estatal todos os acometidos de lepra do país. Começaram então a
surgir inúmeras sugestões para adequar os módicos recursos disponíveis à “urgência”
e “grandeza” da causa. A imaginação de médicos, arquitetos e políticos passaram,
então, a buscar uma saída economicamente viável para superar o obstáculo que se
apresentava como o maior entrave à realização de uma profilaxia da lepra em todo
9
CAIUBY, Abelardo Soares. O Problema da Lepra no Brazil: analyse e tentativas de solução.
1931. 31p, (p.4/5).
137
o território nacional. O arquiteto Abelardo Soares Caiuby apresentava as seguintes
estatísticas para o Brasil até 1930
10
:
Ano Números
1890 4.000
1900 8.000
1910 16.000
1920 32.000
1930 64.000
Segundo Caiuby o Brasil apresentava em 1930 um índice de prevalência de
1,99
11
por mil habitantes, para uma população brasileira estimada em 40 milhões de
pessoas. Naquele momento essa taxa ultrapassava a japonesa e indiana em valores
percentuais, conhecidos países por sua alta endemicidade de lepra. Para Belisario
Penna o números de leprosos no Brasil em 1920 era de 35.000 e para Benigno
Ribeiro 36.000. Pode-se observar, na tabela acima apresentada, que Caiuby projetava
uma duplicação do número de casos de lepra a cada dez anos, caso nenhuma medida
fosse tomada, portanto urgia reter o crescimento desta desastrosa endemia através da
implantação do isolamento compulsório.
Esse isolamento compulsório, no entanto, deveria, no entendimento da
década de 1930, apresentar algumas características, que, inclusive, foram debatidas
na Conferência para Uniformização da Campanha Contra a Lepra de 1933. Apesar
de obrigatório ele deveria estabelecer diferenciações no interior dos estabelecimentos
onde seriam confinados os leprosos. Embora todos fossem acometidos do mesmo
mal, aquele que os impeliu para dentro dos asilos-colônias, nem todos deveriam
receber o mesmo tratamento, nem todos deveriam ser convertidos no mesmo leproso.
Em suma, clamava-se pela implantação de, privilégios e regalias que pudessem ser
usufruídas apenas por aqueles internos de situação financeira mais favorável.
Essas vantagens especiais, prerrogativas que apenas alguns internos mais
abastados possuíam condições de usufruir, existiram em todos os estabelecimentos
edificados no Brasil sob orientação médica, e foram entendidas como imprescindíveis
para o sucesso destes asilos-colônias no “combate a lepra” no país e defendidas por
10
Idem,p.07.
11
Idem,ibidem,p.4.
138
leprólogos renomados como Orestes Diniz
12
. Alegavam que a inexistência dessas
comodidades poderia repelir os leprosos de situação financeiramente melhor e
comprometer o ideal de circunscrever o mal a todos aqueles que o possuíam indo
desaparecer com a morte de todos os seus acometidos. Eram os seguintes benefícios
disponíveis para os internos mais afortunados: permissão para construção de casa de
morada própria, separada dos demais, o que, no entanto, não lhes dava o direito de
reaverem este patrimônio caso deixassem o estabelecimento, nem a família, em caso
de falecimento do interno. Não havia a possibilidade de indenizações nem de
reaproveitamento dos materiais utilizados na construção. Se por algum motivo o
interno não pudesse usufruir do que construiu, este bem era integralizado ao conjunto
do patrimônio do asilo-colônia que poderia utilizá-lo como bem entendesse;
atendimento médico prioritário mediante pagamento extra aos médicos e demais
integrantes do corpo clínico; restaurante particular; isenção da obrigatoriedade da
realização de certas tarefas designadas a todos os internos; possibilidade de fazer
outros tratamentos paralelo ao do asilo-colônia, quando este existia, arcando
integralmente com todas as despesas deste decorrentes.
Mas a concessão de vantagens especiais para os leprosos mais ricos era uma
forma de abrangir com isolamento todos os leprosos do país. A discussão acera da
inviabilidade econômica desta medida permanecia. Em 1926, Belisario Penna
13
sugeria a construção de dois municípios autônomos especificamente dedicados aos
leprosos, um no norte do país e outro no sul. Todos os acometidos de lepra deveriam
ser enviados para esses municípios, desejando-o ou não. O governo federal e os
estaduais deveriam auxiliar estas “cidades leprosas” somente naquilo que elas não
conseguissem produzir para sua sobrevivência. Estes municípios deveriam ter o seu
entorno militarizado e guarnecido por um batalhão do exército especialmente
constituído para este fim. A construção de fossos, trincheiras, guaritas eram
12
Foi diretor do asilo-colônia Santa Izabel em Betim/MG, professor da Faculdade de Medicina em
Belo Horizonte, diretor do Serviço de Lepra de Minas Gerais em 1946 e do Serviço Nacional de Lepra
em 1958. Sobre este assunto ver o texto que apresentou na Conferência para Uniformização da
Campanha Contra a Lepra intitulado: Do isolamento na Lepra: algumas considerações para a sua
eficiência. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1933, 42p.(p.41), onde sugere que seja incluído entre as
conclusões do evento o criação de concessões especiais autorizadas pelos governos estaduais e federal
que possibilitariam à determinados doentes de “melhor condição social” desfrutarem de
melhoramentos não extensivos a todos os internos.
13
Entrevista concedida ao jornal Gazeta de São Paulo em 1926.Apud:CAIUBY, Abelardo Soares.
Op. Cit.,p.24/25.
139
aconselháveis, pois permitiriam uma vigilância melhor e mais qualitativa. Essas
localidades deveriam almejar a maior independência possível, constituindo seus
próprios governos e auto-gerenciamento. Cogitava-se que em pouco tempo todo ônus
do governo com estes municípios seria desnecessário dado ao auto-custeamento que
se tornaria realidade logo passassem a contar com uma população numericamente
razoável e estável.
“Em principio de 1923, em uma série de artigos publicados no ‘O Jornal’,
discuti o assumpto e aventei a fundação de dois municípios, um no norte e
outro no sul do paiz, para nelles serem segregados todos os leprosos, onde
viveriam em liberdade como nós outros nos nossos.
Há Estados, onde os leprosos não passam de algumas centenas e que
poderiam resolver a situação por uma simples colonia, mas o problema é
nacional, e o mais grave de todos os da alçada da Saúde Pública, devendo
ser solucionado pela União. Direi apenas a minha convicção, de que
leprosarios aqui e alli, asylos e hospitaes espalhados por toda a parte,
poderão atenuar ligeiramente o progresso do mal, mas não resolverão
absolutamente o problema, dado o numero consideravel de doentes, não só
entre os pobres, como entre os remediados e abastados da sociedade, que se
não sujeitarão a esses estabelecimentos.”(sic)
14
O arquiteto Abelardo Soares Caiuby se declarava um continuador e
“aprimorador” das idéias do “grande mestre” Belisario Penna. Para ele o mais
adequado seria a criação de zonas de concentração em número superior ao
proposto pelo seu catedrático mentor. Embora ele mesmo se refira a suas zonas de
concentração como municípios, no geral, ele não modifica substancialmente as idéias
do seu guru, apenas lhe imprime uma urgência maior, quase frenética, esmiuça
inúmeros detalhes e lhe empresta aspectos de uma “cruzada” de “luta do bem contra o
mal”.
“Milhões de brasileiros accorrerão, sem duvida, ao appello da guerra
santa, que se desferirá contra o inimigo da patria(refere-se a lepra), inimigo
commum de todos os habitantes deste vasto paiz. Nem haverá um só
individuo, nacional ou estrangeiro, capaz de negar o seu obulo a essa
redemptora cruzada.”
15
(sic)
O texto de Caiuby data de 1931.Ele o redigiu para apresentá-lo ao novo
“governo revolucionario” como sugestão para resolver o problema da endemia de
14
Idem., p.24/25.
15
Idem., ibidem., p.30/31.
140
lepra no Brasil. Sua estrutura lembra o texto de Jeremy Bentham, o “Panóptico”
16
,
fazendo a própria defesa de sua idéia e justificando seus planos basicamente na
economia que este iria proporcionar e na eficiência superior as outras medidas que
naquela momento eram cogitadas. O diretor do Departamento de Saúde Pública
naquele momento era o próprio Belisario Penna. Pessoa de confiança de Getúlio
Vargas, ocupava um dos mais elevados cargos na área de saúde no país. Foi ele
quem, em tese, deve ter recebido o texto do colega de convicções e admirador.
“Eliminados assim, por impraticaveis, todos os processos de que os outros
povos se têm servido(o autor refere-se ao isolamento domiciliar, em
hospitais, em colônias ou asilos e em ilhas), chegamos finalmente á
conclusão de que, só um gesto violento do Governo Federal, amparado na
força e na dictadura, instituindo em varios pontos do Brasil zonas de
concentração de leprosos, guarnecidas por um cordão sanitario, nas quaes
os doentes vivam em liberdade, cuidando da sua vida como nós cuidamos da
nossa, poderá resolver o caso. (...)
Basta-lhe o gesto violento de um decreto e tudo estará resolvido.
(...)
Belisario Penna fallou em dois municpios, um no norte, outro no sul
do Brasil, para localização dos leprosos. Julgamos indispensavel ampliar o
seu numero.
(...)
Outro ponto imprtantissimo, é a creação de uma lei organica, que
regule a vida desses municipios, em moldes inteiramene diversos de tudo
quanto até hoje se tem feito em materia de legislação.
(...)as extensões territoriaes, fóra das zonas destinadas aos doentes,
deverão permanecer absolutamente varridas dos portadores dessa molestia,
para que toda a população que nella transite chegue a se convencer de que
não existe lepra no Brasil. (...)
Pois bem, em taes municipios de leprosos, uma legislação especial
seria adoptada, para que a vida de cada um pudesse seguir, com a
normalidade, que se observa no resto do Brasil. Um prefeito, com
attribuições de governador geral, seria nomeado para cada um. Delegacias
de policia, força publica, cartorios de registros e tudo o mais que seja mister
á vida das collectividades, alli se instituirá com elementos escolhidos entre
os proprios doentes. Nenhum imposto pesaria sobre elles. E o governo
federal, atravez das commissões de inspecção que para esse fim fossem
nomeadas, prestaria aos municipios a assistencia de que cada um
necessitasse. Os productos animaes, agricolas, ou indstriaes que nas zonas
fossem produzidos, quando excedessem as necessidades do seu proprio
16
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O Panóptico. Belo Horizonte.
Editora Autêntica, 2000. Foucault trabalha com o texto de Bentham, em Vigiar e Punir(Terceira Parte,
capítulo III)onde engendra o conceito de panoptismo. Para ele, forma de controle e poder que,
metaforicamente, segue o princípio do panóptico, dispositivo penitenciário concebido pelo filósofo
utilitarista inglês Bentham, constituído de um edifício circular, no qual os prisioneiros ficavam
permanentemente expostos à vigilância a partir de uma torre central, sendo fundamental o fato de que,
por não poderem verificar a presença real dos vigilantes, eles nunca sabiam se estavam efetivamente
sendo vigiados ou não, isto é, estavam permanentemente sobre o olho do poder.
141
consumo, o Governo adquiriria para supprimento de outras(zonas), ou para
eleminar, se assim o entendesse.
(...)
Além do acto humanitario, que isso representa, haveria esse dique
intransponivel ao augmento de taes populações. O decrescimento dellas
seria fatal e rapido. Circumscripta a molestia aos unicos individuos que as
possuissem, extinguir-se-ia dentro em pouco com a desapparição natural dos
seus portadores.”
17
(sic)
Contudo, apesar do esforço de inúmeros grupos em desaconselhar essas
soluções excêntricas alegando ferirem os direitos dos leprosos, forçoso é reconhecer
que estas propostas de criação de municípios e zonas de exclusão não proliferaram
por outros motivos não relacionados ao imenso constrangimento e inúmeros
transtornos que estas medidas poderiam causar aos segregados e suas famílias. O que
mais pesou contra essas propostas, apesar de toda simpatia que possuíam, foi o temor
de um perigo ainda maior. Reunir todos os leprosos num único local poderia ter o
efeito inverso ao programado ao permitir a eclosão de gigantescas e arrepiantes
revoltas.
“O Brasil...possue cerca de 30.000 leprosos. Reunil-os num só grupo seria
emprestar-lhes uma força capaz de supplantar com vantagem a belicosidade
dos exércitos seriamente arregimentados.”
18
(sic)
A idéia de toda uma “população leprosa” se revoltando e marchando rumo às
outras cidades, cujos habitantes apavorados teriam inúmeras dificuldades em se
defender, pois, possivelmente, escasseariam-se os voluntários, figuras tão importantes
nestes momentos de “guerra”, ocorreriam grande número de deserções nos batalhões
que fossem designados para auxiliar e prestar socorro a estas cidades indenes,
comprometendo seriamente suas defesas. Além disso, outras possibilidades
assustavam as pessoas e políticos, que devido a essas razões e outras do gênero
desistiram da idéia de se criar as cidades lázaras” do Brasil. Ainda que fosse
abafado com sucesso tal “revolta leprótica”, não seria menor o desgaste político,
pois as famílias dos insurretos ficariam magoadas e transtornadas com o acontecido e
não cessariam facilmente as pressões sociais e políticas em busca da “verdade”. O
medo de perder o controle sobre os “indesejáveis” foi muito mais forte que as razões
17
CAIUBY, Abelardo Soares. Op. Cit., pp.23/24/26/29/30.O grifo é do original.
18
FERNANDES, R. “A lepra e a revolução”. In: Jornal de Syphilis e Urologia. Rio de Janeiro.
1930, Ano I, nº10, p.475.
142
“humanitárias” alegadas na época. Outro grave problema que se apresentava era a
escolha do local para instalar essas urbes leprosum”. Os governos estaduais,
seguramente, procurariam se esquivar de vê-las implantadas em seu território.
Haveria protestos e desgastes políticos. A definição do lugar para instalar os asilos-
colônias era sempre acompanhada de extensas polêmicas, o que se podia esperar,
então, da escolha do local para implantar essas “morféticas cidadelas”?. Alguns
sugeriam que o governo federal oferecesse prêmios em dinheiro para o município que
aceitasse conceder parte de seu espaço territorial para instalar essas cidades, outros
acreditavam ser mais adequado a garantia de verbas especiais repassadas durante
determinado número de anos, outros argumentavam que esses recursos extras
deveriam ser repassados até que os “lazarentos municípios” desaparecessem. Por
último, haviam aqueles que acreditavam ser este bônus nocivo ao plano, pois,
realçaria o tamanho do problema que seus administradores e políticos estavam
colocando em suas vizinhanças.Com tantos e tão graves problemas, terminaram
desistindo dessas idéias “tão econômicas e interessantes” do ponto de vista
“profilático”.
Mas, excetuando-se essas medidas citadas anteriormente, de uma forma geral
observar-se que as propostas de isolamento concentraram-se entorno de três vertentes
que variavam basicamente quanto a dosagem de suas preocupações com relação a
dois elementos. Primeiro; proteger os “sãos” do contato com os leprosos. Este
“imperativo” encontrava-se presente em todas as correntes, embora, às vezes, variasse
a forma dessa referida proteção. Caiuby e Penna indicavam a varredura do país de
todos os acometidos de lepra e a colocação destes em localidades extremamente
convenientes para os indenes como única medida eficaz que se podia adotar.
Segundo; consolar os lázaros. Este item não fazia parte de todas as propostas que
apregoavam a necessidade de isolamento dos leprosos no Brasil. A preocupação com
a vida do leproso no isolamento, seu conforto, bem-estar e o respeito a alguns de
seus direitos diferenciava-se daquelas propostas que objetivavam empreender
medidas “humanizadoras” com vistas a prevenção das fugas e a facilitação da
implantação de esquemas disciplinares necessários àquela exclusão. Eram cuidados
tomados que coincidiam-se, embora seus patrocinadores tivessem perspectivas
diferentes. Geralmente eram medidas que propiciavam melhor alimentação, mais
visitas, construção de pavilhão de diversões, entre outras melhorias que eram
143
concedidas, para alguns, sob a alegação de constituírem uma forma preventiva de se
evitar as fugas e para outros uma justa caridade e “correcto sentido philantropico”. A
Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra
sempre definiu sua missão como a de “defender os sãos e consolar os Lázaros
19
”.
No entendimento da época, década de 1920 e 1930, devia-se combinar nas
proporções adequadas esses dois elementos para se chegar a uma mistura ideal que
terminasse na apresentação de uma proposta viável para o país. Mas a irredutibilidade
do primeiro sempre prejudicou e comprometeu o segundo. Ocorreu, no entanto, que
as propostas sempre reservavam mais espaço e atenção ao primeiro elemento. Até
porque era evidente que havia uma hierarquia de importância entre eles, isto é, o
primeiro era imprescindível e o segundo facultativo.
Para Yara Nogueira Monteiro
20
estas três correntes podem ser denominadas
de: postura humanitária, isolacionistas compulsório e os isolacionistas radicais. O
primeiro grupo, cujo grande baluarte foi Emílio Ribas,
21
defendia o isolamento
institucional paralelo ao isolamento domiciliar, sendo este facultado apenas àqueles
que possuíam condições financeiras e higiênicas de executá-lo com segurança em
suas residências. Os que não tivessem condições de custear tais despesas deveriam ser
isolados compulsoriamente nos asilos-colônias. O segundo grupo batia-se pela
compulsoriedade do isolamento extensivo a todos os acometidos, independente do
estágio de desenvolvimento em que se encontrava sua lepra e de qual tipo eram
portadores. Os mais ricos poderiam construir casas próprias, custear refeições em
separado e outras regalias que julgassem necessárias, mas sempre, no interior dos
asilos-colônias, que deveriam ser construídos em número suficiente para abrigar
todos os leprosos do país. Estes alegavam que no Brasil era inviável o isolamento
domiciliar pois a “mentalidade” dos brasileiros não se adequava as necessidades que
este exigia.
“...Taes leprosos não têm domicilio próprio, não tem o menor habito
higiênico e sua mentalidade não comporta outra medida de defesa coletiva,
senão a de uma radical e obrigatória internação em leprosário.”(sic)
22
19
Cf. GOMIDE, Leila Regina Scalia. p.75.
20
MONTEIRO, Yara Nogueira. Hanseníase e poder no Estado de São Paulo. In: Hanseníase
Internationalis. Vol.II, nº01, 1987,pp.01-07(p.05).
21
A posição de Emílio Ribas sobre assunto ver neste trabalho texto 2.2 do capítulo II.
22
MEDEIROS, Mauricio “Leprosos e Leprosários” In: Diário de Medicina. Rio de Janeiro, 1924,
Ano I, nº15. Apud: Monteiro, Yara Nogueira Monteiro p.144.
144
Havia ainda um terceiro grupo que postulava medidas de isolamento em
ilhas, cidades especialmente dedicadas para este fim e zonas de exclusão. Além de
Ribas outros nomes poderiam ser colocados no primeiro grupo, foram eles: Eduardo
Rabello, Carlos Chagas, Otavio Felix Pedroso, Oscar Silva Araujo, José Vieira Filho,
José Maria Gomes, Alice Tibiriçá e Floriano Lemos. No segundo grupo, maioria no
Brasil, tanto em número quanto em força social, pode-se citar: Heraclides-Cesar
Souza-Araujo, Flávio Maurano, Francisco Salles Gomes Júnior, Orestes Diniz, José
Mariano, Ernani Argicola, Aguiar Puppo, Eunice Weaver, Nelson de Souza Campos,
Luiz Mariano Bechelli e Abrahão Rotberg. O terceiro grupo figuravam nomes como
Belisario Penna, Abelardo Soares Caiuby, Oswaldo Cruz e Arthur Neiva. Essas
categorias reúnem indivíduos por aproximação das posições que defendiam nas
primeiras décadas até meados do século XX. Não são classificações homogêneas em
seus interiores e além disso muitos deles mudaram suas opiniões a respeito do
isolamento compulsório no decorrer dos anos. Estas divisões vem elucidar que, de
uma forma geral, dois pontos estavam claros desde início daquele século. Primeiro
que o isolamento era solução. Segundo que os leprosos deveriam se submeterem a
este regime com vistas a erradicação da lepra no Brasil. Evidencia-se que as
divergências gravitavam em torno de aspectos secundários, entre eles, qual a
formatação que deveria ser dada ao isolamento. Alguns acreditavam que deveria ser
em ilhas, como sugeriam Oswaldo Cruz e Arthur Neiva, outros em “cidades
lázaras”, como sugeriam Caiuby e Penna e a maioria em asilos-colônias. Por último
discutia-se se esta medida devia ou não ser obrigatória a todos os acometidos, ou
apenas seletivo, isto é, se os leprosos mais abastados poderiam se esquivar do
internamento compulsório ou não.
O segundo grupo acabou prevalecendo. Contudo, para que o isolamento
compulsório fosse efetivado fazia-se necessário a construção imediata de asilos-
colônias em número e tamanho suficientes para abrigar toda a “população leprosa
do Brasil” . Para tanto, seria indispensável que a escolha médica da profilaxia a ser
implantada obtivesse aval irrestrito do Estado, que deveria custear a construção destas
instituições, principalmente dado o grande volume de recursos que seriam precisos
para edificar todos estes estabelecimentos. O apoio governamental foi concedido e
floresceram pelo Brasil inúmeros asilos-colônias destinados a deter a perversa
circulação da “hedionda morpheía”.
145
Havendo uma posição hegemônica, já que os consensos demonstravam-se
inantigíveis, fazia-se necessário, então, começar a construir os “leprosários” e nele
alojar os leprosos, objetivando com isso reter e impedir o crescimento do mal que
assolava o Brasil. Embora o isolamento insular nunca tenha sido efetivado, conforme
ansiava Oswaldo Cruz
23
e Arthur Neiva, alternativa econômica onde o mar
constituiria uma barreira que impediria as fugas e economizaria as despesas com
vigilância, degredo marítimo que desagradou até aqueles que pouco se importavam
com os leprosos, e as propostas de Penna e Caiuby tenham sido recusadas, os asilos-
colônias, conforme já indicava Oswaldo Cruz em 1913
24
, foram construídos
basicamente com as mesmas características de um município comum, a mesma
estrutura, ainda que numa escala menor que a desejada por Caiuby e Penna. Era uma
cidadezinha interiorana, um povoado onde se vivia uma vida cercada, num local
aparentemente livre, porém, onde se estava detido para reter o hediondo mal portado
por seus moradores. Gozavam de livre trânsito dentro daquele espaço, fora dele, não.
Em suma, uma variedade do modelo de reclusão.
Estes asilos-colônias, dado as características que assumiram, podem ser
classificados dentro da tipologia estabelecida por Erving Goffman. Para ele, as
instituições que possuem em comum o fato de encerrar certos indivíduos, ainda que
por motivos diferentes, dentro de limites físicos determinados, podem ser definidas
como uma instituição total.
“Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e
trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante,
separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada.”
25
Ainda segundo Goffman, as instituições totais podem ser divididas em cinco
categorias que variam conforme as características dos seus internos e o fim a que se
destinam.
“as instituições totais de nossa sociedade podem ser, grosso modo,
enumeradas em cinco agrupamentos. Em primeiro lugar, há instituições
criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa , são incapazes e
inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos, e
23
CRUZ, Oswaldo. Uma questão de Hygiene Social. In: O Imparcial.(imprensa escrita), Rio de
Janeiro, nº211, 03/07/1913. Apud: SOUZA-ARAUJO, Heraclides-Cesar. Op. Cit., p.117/118.
24
Idem., p.118.
25
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Editora Perspectiva, coleção
debates 7ºedição,2001(p.11).
146
indigentes. Em segundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de
pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também
uma ameaça à comunidade, embora de maneira não-intencional; sanatórios
para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceiro
tipo de instituição total é organizado para proteger a comunidade contra
perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui
o problema imediato: cadeias, penitenciárias, campos de concentração. Em
quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de
modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas
através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas
internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões( do ponto de vista
dos que vivem nas moradias de empregados). Finalmente, há os
estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas
vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre
exemplos de tais instituições, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e
outros claustros.”
26
Mas, a análise de Goffman parte das instituições como um dado imutável,
uma vez que sua investigação não se interessa pela forma que adquiriu estas
instituições nem da legitimação social que adquiriam junto a sociedade, nem dos
discursos que foram veiculados para garantir as “condições de possibilidades” de sua
existência. Em suma, trata-se de uma investigação psicológica e não histórica.
Para Michel Foucault estas instituições de reclusão reúnem as características
propícias para o exercício de um poder pleno, puro, uma vez que os indivíduos ali
colocados foram expatriados de seus direitos no momento que ingressaram nesses
estabelecimentos, voluntariamente ou não:
“a prisão é o único lugar onde o poder pode se manifestar em estado puro
em suas dimensões mais excessivas e se justificar como um poder moral.
27
Os leprosos isolados nos asilos-colônias eram emergidos no cotidiano e
disciplina destas instituições, independente de sua concordância, e não encontravam
fora destes estabelecimentos baluartes que pudessem criticar os princípios dessa
prática discursiva e não-discursiva que fundamentavam a arquitetação destes espaços
segregadores
28
. As verdades científicas conduziam e apontavam o isolamento como a
alternativa viável e mais adequada para enfrentar a endemia leprótica.
26
Idem, p.16/17.
27
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro. Edições Graal, 15ºedição,2000(p.73).
28
Maria da Conceição Costa Neves, Alice de Toledo Ribas Tibiriçá e Floriano Lemos ficaram
nacionalmente conhecidos por suas discordâncias quanto a política adotada nos estabelecimentos
brasileiros. Alice Tibiriçá chamava o regime adotado nos asilos-colônias paulistas de “draconianos”,
no entanto, não postulava sua abolição. Floriano Lemos, médico carioca, autor de inúmeros artigos
147
Articulando-se poder e saber, produzindo verdades sobre a lepra, o leproso e
seu corpo, sede de seus males, estabeleceu-se em torno do isolamento aquilo que
Foucault chama de dispositivo, o qual concorreu para a formação do discurso de
exclusão institucional dos leprosos.
“(...)existe, e tentei fazê-la aparecer, uma perpétua articulação do poder com
o saber e do saber com o poder. Não podemos nos contentar em dizer que o
poder tem necessidade de tal ou tal descoberta, desta ou daquela forma de
saber, mas que exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir,
acumula informações e as utiliza. Não se pode compreender nada sobre o
saber econômico se não se sabe como exercia, quotidianamente, o poder, e o
poder econômico. O exercício do poder cria perpetuamente saber e,
inversamente, os saber acarreta efeitos de poder.(...)Não é possível que o
poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre
poder.”
29
Para Foucault o poder é concebido como descentralizado, horizontal e difuso,
isto é, encontra-se esparso pelo social não podendo ser localizado em instituições
específicas. Sua ênfase em articular “poder-saber” deve-se ao fato de ter percebido
no decorrer de suas pesquisas que para cada poder socialmente constituído,
desenvolvia-se um saber correlato e o inverso, de forma que ambos concorrem para a
legitimação recíproca dos mesmos e para a formação de discursos socialmente
verdadeiros.
“Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a
produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos
enunciados.
A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a
produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem.
‘Regime’ da verdade.”
30
“Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso como a psicanálise
nos mostrou não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo;
sobre o assunto, defendia o isolamento domiciliar para a maioria dos leprosos e uma revisão do “rigor
desnecessário” que envolvia aqueles que não possuíam condições de permanecerem em suas casas. A
deputada paulista Maria da Conceição Costa Neves radicalizou suas críticas ao isolamento na década
de 1960 quando esta medida já demonstrava sinais de caduquice, inclusive internacionais. Esta
consagrou-se por advogar sempre a favor dos internos os representando contra eventuais maus tratos e
outras humilhações que viessem a sofrer por parte da direção do estabelecimento. A tônica de todos,
que jamais deve ser desvalorizada, era reivindicar melhorias e conforto para todos os internos e
conceder-lhes conforto, recreação e respeito dentro das instituições destinadas ao isolamento dos
leprosos no Brasil.
29
FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 141-142.
30
FOUCAULT, Michel. Op. cit.,p.14.
148
e visto que isto a história não cessa de nos ensinar o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
31
O dispositivo
32
instalado para o isolamento da lepra no Brasil terminou por
consolidar seu discurso e reutilizá-lo como veículo de legitimação da segregação dos
leprosos. A produção de qualquer proposição verdadeira sobre o assunto passou a
depender do reconhecimento deste dispositivo, que a partir do momento que reuniu
condições de ditar o válido e não-válido com relação a lepra, fechou as possibilidades
de renovação dentro da área que sedimentou todas suas ações entorno do isolamento.
Reter a circulação dos leprosos, incumbência onerosa para o Estado, era uma prática
que possibilitava o surgimento no entorno deste imperativo de um amplo campo de
atuação e intervenção sobre a sociedade do qual careciam o Estado e a Medicina
Social.
Dessa forma, se até o século XIX o leproso expiava suas culpas através do
seu mal no hospital cujo modelo remontava a época renascentista, no século XX a
idéia de punição abandona o leproso, agora ele será vigiado e administrado dentro de
um espaço esquadrinhado em que foi confinado, sujeito a um poder disciplinar
33
e
uma normalização que perpassaria minúcias de sua vida dentro dessas instituições.
Este dispositivo construído entorno da lepra, encontra sua força não no rigor das
imposições que fazia, como a de isolar todos os leprosos que alcançassem pela
repressão que a lei permitia, mas pela sugestão de preceitos que, pela sua
concordância com a racionalidade científica da época, persuadiam os indivíduos,
31
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso .São Paulo, Edições Loyola, 7ºedição, 2001(p.10).
32
Para Michel Foucault este termo significa um conjunto das práticas, discursivas e não-discursivas,
consideradas em sua conexão com as relações de poder. Ele mesmo explicita seu entendimento sobre o
termo e enumera os elementos que são constituintes: “Através deste termo tento demarcar, em primeiro
lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis , medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais , filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.” Cf. FOUCAULT,
Michel . Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 15º edição, 2000(p.244).
33
Para Foucault o poder disciplinar no hospital moderno se concretizou via acirramento da prática da
observação sistemática através do “olhar”: “A disciplina é uma técnica de poder que implica uma
vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-lo às vezes ou ver se o que fizeram é
conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua
pirâmide de olhares.”(Microfísica do Poder, p.106). “A disciplina fabrica corpos submissos e
adestrados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de
utilidade e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência.” (Vigiar e punir,
p.119).
149
inclusive alguns leprosos, a aceitá-los e acatá-los. Em suma, sua força residia na
positividade do poder.
“Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma
concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a
uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio
ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que
curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se
não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria
obedecido! O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é
simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo
o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir. Em Vigiar e Punir o que eu quis mostrar foi como a partir dos
séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da
produtividade do poder.”
34
“Mas, nos séculos XVII e XVIII, ocorre um fenômeno importante: o
aparecimento, ou melhor, a invenção de uma nova mecânica de poder, com
procedimentos específicos, instrumentos totalmente novos e aparelhos
bastante diferentes, o que é absolutamente incompatível com as relações de
soberania.
Este novo mecanismo de poder apóia-se mais nos corpos e seus atos
do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos
corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que
se exerce continuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações
distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções
materiais do que a existência física de um soberano. Finalmente, ele se apóia
no princípio, que representa uma nova economia do poder, segundo o qual
se deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o
aumento da força e da eficácia de quem as domina.
(...)
Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos
da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi
um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e
do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano,
alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar.”
35
O poder exercido no interior dos asilos-colônias sobre o leproso e seu corpo
encontrava ressonância e aceitação também entre os próprios excluídos, o que não
significava tratar-se de pessoas alienadas ou traidoras e sim, que a força dos discursos
acerca da lepra oriundos do dispositivo implantado no Brasil se faziam presentes na
compreensão dos próprios acometidos sobre o mal do qual eram portadores. Na
perspectiva foucaultiana o poder é uma relação social, isto é, o mando e a exclusão
34
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 15ºedição, 2000(p.7/8).
150
encontravam lugares assentados e consolidados no conjunto das relações
estabelecidas no interior dessas instituições. Isso, no entanto, não significa a
postulação de uma ausência de resistência por parte dos excluídos, pois, as mais
consolidadas e sedimentadas relações de poder são permeáveis e apresentam brechas
para a recusa e a continuidade da luta, isto é, “onde existe poder, existe resistência”
36
.
“Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se
encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem
sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo
que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma
maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar
privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não
é um objeto, uma coisa, mas uma relação.”
37
A construção da rede de asilos-colônias do Brasil custou vultuosas somas aos
cofres públicos estaduais e federais. No entanto, pode-se dizer que os recursos
empregados foram sempre providenciados sem grandes dificuldades. Havia boa
aceitação para as solicitações de verbas para a edificação destes estabelecimentos,
mesmo nos períodos em que o orçamento encontrava-se arrochado. As críticas,
quando existiam, contestavam algum aspecto arquitetônico adotado, o local, ou o tipo
de construção escolhido. Em São Paulo existia um grupo de médicos que pregavam
ser a opção por pequenos asilos regionais uma medida mais acertada do que os
grandes estabelecimentos estaduais.
“As verbas applicadas aos serviços de prophylaxia da lepra, em São Paulo,
equivalem por si só a todos os orçamentos completos de algumas unidade da
Federação.
38
“A trajetória do Departamento de Profilaxia da Lepra(DPL) de São Paulo
constituiu-se em exemplo totalmente atípico dos serviços de saúde, mesmo se
comparada com outros serviços encarregados de combate às moléstias
infecto-contagiosas e que demandavam, à época, algum tipo de isolamento,
como era o caso da tuberculose. Enquanto estes se mantiveram dentro da
Divisão de Moléstias Infecciosas, o DPL se situava ao mesmo nível do
Departamento de Saúde. Dessa forma na Secretaria de Estado, havia dois
grandes serviços relacionados com a saúde: um destinado apenas para a
35
Idem., p.187/188.
36
Idem, ibidem., p.240.
37
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 15ºedição, p. XIV.
38
“O problema da lepra resolvido pela actual administração” In: Diário de São Paulo, 15/05/0934.
Apud: MONTEIRO, Yara Nogueira. P.382.
151
‘lepra’ e outro que se encarregaria de todas as demais doenças.(...)O DPL
gozava de grande prestígio junto ao governo estadual, que endossava as
medidas isolacionistas propostas através de grandes dotações
orçamentarias.(...)Francisco Salles Gomes Júnior(diretor do DPL) pretendia
transformar o que já era fato em situação de direito, ou seja, transformar o
DPL em Secretaria de Estado, diretamente ligada ao governador, à
semelhança do que já havia acontecido na Colômbia. Não obteve sucesso
devido aos problemas que ocasionaram seu afastamento da direção do
DPL.”
39
No entanto, apesar do amplo apoio de que usufruía a profilaxia da lepra no
Brasil, as dificuldades econômicas existiram e representaram em alguns momentos
impecilhos a urgência que se desejava imprimir a solução do problema. Ainda assim,
mesmo com os elevados custos que implicavam a prática do isolamento compulsório
foram construídos aproximadamente quarenta e quatro asilos-colônias no Brasil.
Nestas instituições colocava-se em funcionamento uma das únicas formas
“profiláticas” conhecidas, sugeridas e prescritas pelos leprólogos da época que, para
além de todas polêmicas, concordavam ser esta a medida mais acertada para deter a
lepra e impedir sua disseminação pelo país. Mediante dispendiosas somas tornaram-
se realidade no Brasil a construção dos “leprosários”, todos bastante conhecidos nas
regiões onde se localizavam, outros nacionalmente e alguns internacionalmente. O
formato preferencialmente adotado foi o de colônia agrícola, embora existisse
exceções, pois atendia à inúmeros aspectos apregoados por várias correntes e
indicados como necessários para o sucesso destas instituições. O campo, espaço
rural, lugar tranqüilo, arejado, livre de poluição, altamente salutar. Ao mesmo tempo,
longe dos centro urbanos o suficiente para afastar dos olhos da maioria das pessoas à
exibição das mazelas dos leprosos, espetáculo público desagradável desde a época
colonial. Por último, ele comportava a possibilidade de economia para os cofres
públicos, era um espaço terapêutico adequado para uma dita profilaxia com a qual se
objetivava banir do Brasil um dos mais antigos e horrendos males humanos.
39
Idem., p.168/169.
152
Os preventórios
No Leprosário do Amazonas, Vila Belisário Pena, vive en-
tre os internados um moço poeta. Como moço, embora atin-
gido pela mais cruel das enfermidades ele é entusiasta
dinamico e lutador incansavel, coração e energias postos a
serviço dos seus irmãos de infortunio. Como poeta e
le sonha
horas inteiras à beira do belo Rio Negro, em cuja margem
está situado aquele velho Leprosário. Sonha e sofre porque se
encontrou a mulher amada entre seus companheiros de
sofrimento, o filho querido tão desejado veio para deixá-
lo
ainda mais amarg
urado. Junto ao corpo sadio do filhinho
querido que foi levado para o Preventório de Manaus logo
após o nascimento, ele o poeta sofredor
enviou esta
comovente poesia:
MEU FILHO
Há bem pouco nascestes e já te vais...
Nem eu nem tua mãe te deu um beijo
Como é triste o destino que praguejo:
Ter um filho e vê-lo órfão tendo os pais.
Não nos verás...não te veremos mais.
E na dôr não verá o teu gracejo
Quem te
esperava no maior festejo
Entre alegrias que se tornam em ais.
Meu pobre filho, p´ra maior tormento
Nem se quer repousaste um só momento
No teu bercinho que enfeitei de flores.
Ó dôr que desespera e dá vertigem!
Tua mãe, vejo-
a louca como a virgem
Quando a Jesus buscava entre os doutores.”
(Revista de Combate à Lepra, Ano VII, março de 1942, p.42.)
153
A beleza e tristeza que envolvem estes versos aludem a um sentimento misto
de consternação e concordância com o destino prescrito pelo “combate a lepra no
Brasil”. Este poema exprime uma dor intensa de uma separação não desejada, porém,
dizia-se na época, necessária. Um sacrifício, uma aflição em nome de um objetivo
maior, nobre. Em suma, para contribuir na luta contra a lepra, um mal que corroía a
nação e comprometia o futuro do país.
Contudo, além da nação, a própria criança se beneficiaria da orfandade na
qual se vira emergida logo após o nascimento. Estava livre do convívio com os pais.
Não seria o leproso do futuro, seria um cidadão útil e “são” para o país. Eis o maior
prêmio que poderia ser concedido aos povos que tivessem a coragem de praticar este
afastamento cruel, mas justo, severo, porém legítimo. Crianças indenes oriundas de
um “lar leprótico”. Apesar de todo o desalento vivido, pais e filhos estavam
consolados, pois, a melhor alternativa, mesmo envolvida em tantas lágrimas, fora
escolhida. Pranto que expressava o reclame de uma vida normal, convencional. A
família leprosa deveria desaparecer, dissipar-se, não proliferar. Este foi o sonho
eugênico e higiênico tão influentes nas primeiras décadas do século XX no Brasil. O
leproso era uma pessoa com a qual as relações deveriam ser cortadas, interrompidas,
aquele cujos esforços médicos, higiênicos e políticos objetivavam extinguir. Alguém
cuja companhia não era recomendável, nem para o seu próprio filho, pois seu corpo
portava um terrível mal. Em suma, ele era um autêntico “indesejável”.
Estas foram as falas que povoaram os discursos referentes à prática
preventorial no Brasil. O preventório reunia as características das instituições
filantrópicas, assistenciais e profiláticas. Sua inclusão na tríade institucional adotada
para combater a lepra deve-se à esta última característica. Meio de impedir o
aumento do número de leprosos no país através da desarticulação dos lares “infectos”.
Esta instituição representou a radicalização do discurso isolacionista levado as
últimas conseqüências.
As funções dispensariais também eram executadas no interior dos
preventórios, pois, os internos destas instituições poderiam revelar-se, a qualquer
momento, igualmente, um leproso. As crianças eram, então, submetidas a uma
154
permanente vigilância através do espaço esquadrinhado dos estabelecimentos que
foram construídos no país.
“Em 1936, por sugestão do mui devotado conselheiro da Federação, Dr.
Edgard Teixeira Leite, iniciamos um novo sistema, quer na construção, quer
nas organizações dos preventórios. Por sua comissão de técnicos e de
membros de seu Conselho, organizou então uma planta e um programa , que
deveriam ser seguidos nas novas construções dos preventórios no Brasil e,
assim, em lugar do monobloco de linhas rígidas e de difícil organização em
sua disciplina, pela promiscuidade de sexo e idade, surgiram os preventórios
de sistema pavilonar, tendo desde os berçários até a escola profissional.
Dentro desse programa, apareceram os novos preventórios
modelos, sendo que o primeiro deles, nessa nova política preventorial, foi o
de Pernambuco, onde a Federação, já em plena atividade, para pôr em
execução seu programa, fez a sua 1.º grande campanha popular em favor da
construção de preventórios, e que tanto êxito alcançou.”(sic)
40
Dessa forma, enquanto os pais leprosos internados nos “leprosários do Brasil”
se interessavam mais pelos cuidados que seus filhos recebiam nos preventórios, a
sociedade mais ampla, através da presença governamental, reivindicava destas
instituições sua contribuição profilática para deter o mal que assolava o Brasil desde a
época colonial. Freqüentemente era citado por Eunice Weaver a contribuição
generosa para o crescimento da endemia que representava o fato dos filhos sadios
permanecerem na companhia dos pais “infectos”. Essa era a dor necessária pela qual
essas crianças e seus pais deviam passar, pois o afastamento, esta separação forjada,
correspondia a um meio eficaz de deter o avanço da lepra no Brasil.
“Sobre estas paredes, colocamos algumas fotografias dos muitos bebês que
nesta hora vivem, sadios, nos berços que as Sociedades de Assistência aos
Lázaros lhes oferecem nos 21 preventórios hoje em funcionamento no país.
São os berços que se abrem para recolher as criancinhas nascidas nos
leprosários, essas criancinhas sadias que ali vão crescer, não apenas pela
graça de deus, mas também pela solidariedade humana encontrada no
coração daqueles que compreendem a caridade, não como uma virtude
somente, mas, sobretudo, como um dever.
(...)
Temos, no Brasil, neste momento, 2097 crianças internadas; 2097
crianças roubadas ao contágio da lepra. Todos aqueles que estudam
estatística poderão facilmente avaliar o que isso representa par o futuro de
um país que sente a necessidade absoluta de ser povoado por gente sadia.
Nós, que temos a necessidade imprescindivel de povoar a grande terra que
Deus nos deu por herança, e que já fomos buscar, lá fora, braços
provenientes de nações distantes e que aqui vinham se abrigar, sob a nossa
40
WEAVER, Eunice. Assistência Social no Combate à Lepra no Brasil. In: Op. Cit. p.09.
155
bandeira, alguns para nos trair no primeiro momento que se lhes
apresentasse; nós, que nisso consentimos, ainda encontramos uma grande
corrente de pessôas entendendo que os leprosos devem ser esterilisados
41
,
para que deles não nasçam filhos doentes.
No entanto, se o filho do leproso nasce hígido, que direito temos nós
de evitar que venha ao mundo essa criança, que amanhã poderá ser um
leader da nacionalidade, desde que nós, cristãos, tenhamos cumprido com o
nosso dever?”(sic)
42
As palavras citadas anteriormente evidenciam como Eunice Weaver utilizava
elementos do discurso médico, religioso, filantrópico e nacionalista para justificar a
obra da Federação. Várias intenções confluíam no cotidiano preventorial. Nele se
encontravam desde os médicos e políticos que lutavam contra a lepra, até os
religiosos, filantrópicos, caridosos e nacionalistas que tencionavam impedir a
degradação da raça, auxiliar no crescimento do país e amparar aqueles que sofrem. O
preventório reunia todos estes. Eles se encontravam, sem discórdias, em seus
corredores, auxiliando, cada qual a seu modo, e por razões diferentes, para assegurar
que as crianças ali mantidas estivessem salvas da lepra.
Contudo, mesmo com tantos envolvidos, a vida nos “Educandários”, como
preferia denominá-los Eunice Weaver, não era das mais aprazíveis. O estigma da
lepra também rondava os preventórios. As crianças ali internadas, além da orfandade,
tinham que conviver com mais este constrangimento social. Árdua dificuldade que os
internos encontravam durante a infância e adolescência. Cenas que a memória oscila,
se esforça, mas não conseguia esquecer.
“Aí, eu ia trabalhar para ajudar meu pai... eu fui trabalhar numa casa. Acho
que a vizinha contou pra mulher sobre o meu pai(que ele era um ex-interno
de um asilo-colônia) e ela não quis que eu trabalhasse lá...
, a gente ficou mais velhaco, né? Se a gente é sadio, porque se a
gente tivesse algum problema, claro que a gente não ia. Mas a gente sabia
41
Na Argentina, a Lei n.º11.359 de 21/09/1926, no seu artigo 17, proibia o matrimônio entre leprosos e
destes com pessoas “sãs”, objetivando com esta medida, diminuir o números de crianças à serem
enviadas para os internatos nacionais. REPÚBLICA ARGENTINA- Ministerio del Interior
Departamento Nacional de Hygiene. Ley 11.359; Profilaxis y tratamiento de la lepra. Talleres Graficos
“EL FARO”, Buenos Aires, 1927.
42
Idem., ibidem., p.08-10.(Pode-se observar que a fala de Eunice Weaver neste texto não coincide com
a posição de sua continuadora, senhora Carmencita Gibson Barbosa, em 1970, quando defendia a
“tese” da “cretinice” ou “idiotice” predominante nas crianças internadas nos preventórios. Cf.
BARBOSA, Carmencita Giboson. Considerações sôbre os efeitos da leprose nos filhos dos
hansenianos. I Reunião Leprológica Del Cone sul(Comissão Social), Buenos Aires, 1970.)
156
que era sadia, que meu pai estava sadio, todos nós sadio, né? Aí, a gente ia
trabalhar calada, a gente passou a trabalhar sem falar nada.”
43
“Uma egressa, que esteve internada por seis anos no Preventório do
Triângulo Mineiro, e que foi de lá retirada por seu pai, juntamente com seus
irmãos, relatou a experiência: ‘A saída nossa foi difícil. Meu pai já tinha
sido liberado lá da colônia e a minha mãe já estava desinganada... Ela
estava grávida e o médico tinha proibido ela de criar. E ela sabia disso.
Então minha mãe deu de cima do meu pai para ir pegar a gente lá, que ela
não queria morrer e deixar a gente lá... e ela já tava perto de ter o filho e fez
tudo para o meu pai ir pegar a gente. Mas a Diretora não queria deixar,
porque era trabalho perdido, que a gente ia voltar proque minha mãe tava
desinganada... que ela ia morrer e a gente ia ficar sozinho no mundo,
sofrendo com meu pai, e que era melhor a gente ficar lá...Mas, com todo
custo, meu pai conseguiu tirar a gente. Aí, minha mãe só aturou quatro
meses...a menina nasceu e minha mãe só aturou vinte e um dias...Aí começou
a gerar muitos problemas... a gente, todos pequenos, sem experiência
nenhuma do mundo aqui de fora, né e meu pai, devido ao problema dele,
da...da...eu não gosto nem de falar, né, assim desta doença... o povo tinha
orgulho, preconceito, foi tão difícil dele conseguir serviço...não sei se eles
não davam serviço porque a pessoa teve esse problema, mas tratou,
paralisou a doença porque a doença do meu pai começou e foi paralisada,
não teve problema nenhum com ele...Mas, naquela época, como meu pai
sofreu, como nós sofremos...
(...) a gente comia assim mas era para não morrer de fome... porque
naquela época de 60, 62, 63, foi uma época muito difícil prá todo mundo.
Meu pai bem que lutava, coitadinho, porque ele era trabalhador, ele,
inclusive, ganhou um salão da Dona Eunice Weaver, um salão de barbeiro
completo, prá ele trabalhar... mas não aparecia gente pra cortar... ele era
um ótimo profissional, mas não aparecia ninguém. Aí ele teve que ir para a
roça...
44
Uma barbearia montada, devidamente equipada, instalada, um ótimo
profissional disponível para atender a clientela, todos os ingredientes necessários a
prosperidade do negócio estavam ali reunidos. No entanto, quem iria se barbear ou
cortar o cabelo no salão do leproso? O estigma arruinou o negócio. Dificuldades
econômicas e sociais que impossibilitavam o egresso de continuar sua vida da forma
que desejasse. Era preciso ocultar o passado “leprótico” para não ser atingido pelo
estigma. Uma empregada doméstica filha de um egresso da colônia, não importando
se é leproso ou ex-leproso, de qualquer forma era arriscado adquirir o hediondo mal.
43
Depoimento de egressa do Educandário Eunice Weaver, preventório de Araguari/MG, recolhido por
Leila Scalia em 17/04/1989, p.241.
44
Depoimento de egressa recolhido em 17/04/1989 por Leila Scalia, p.240/241.
157
Todos eram alcançados pela lepra, mesmo aqueles que já haviam conseguido livrar-se
dos bacilos que povoavam o seu corpo. Mesmo curado eles permaneciam leprosos
45
.
O rigor e disciplina excessivos impostos nos preventórios, sua relação com a
lepra e inevitavelmente com o estigma de seus acometidos, tornaram extremamente
sofridas a existência das pessoas que se encontravam nestes estabelecimentos. Vários
eram os problemas que se acumulavam. Faltavam perspectivas para o futuro, pois os
internos dos Educandários além de órfãos eram conviventes de leprosos, estigma que
pesava na infância e se estendia até a fase adulta, agravantes que comprometeram a
vida de todos aqueles que passaram por estas instituições.
“E as outras meninas todas queriam sair. Porque era um regime
assim...muito rígido. Muito rígido mesmo. Eles puseram uma governanta,
nossa! que parecia uma governante da GESTAPO. O vigilante dos meninos
era terrível. E as crianças lá não eram crianças assim... Eram crianças que
vinham da roça. Eram humildes, assim... até bobinhas, não havia
necessidade desse regime bravo, desse regime duro.”
46
“O Preventório pelo qual lutamos, não é um ‘asilo fechado’, se bem que em
meu país, entre os nossos 24 Educandários, haja alguns que não sem razão,
têm deixados aos visitantes esta impressão. Mas , com referencia à maioria
de nossos Preventórios, se constitue sempre num grande lar feliz e numa
Escola Ativa, comprovando a plena acepção da palavra com hoje são
definidos em tôda parte Educandário -, onde tôdas as atividades sociais,
recreativas e culturais são postas em prática, ao lado e em beneficios de seus
internados, como seu objetivo e sua finalidade.
47
“As visitas aos educandários, quer de parentes sadios quer de pessoas
estranhas, deverão ser sempre efetuadas em dias e horas previamente
fixados, sendo obrigatória, para os comunicantes, a apresentação da
respectiva carteira...
48
“compreende-se que o estigma acarretado pela lepra constitui o elemento
numero um para o ajuste dos menores; seus parentes recusam-se muitas
vezes a recebê-los com receio de que eles também venham a adoecer,
constituindo fonte de contágio para si mesmos e para seus próprios filhos”
49
.
45
Os leprosos podem até serem curados, o que não significa a remoção do terrível estatuto da lepra.
Esta é uma constatação milenar. Ver no texto 1.1 do capítulo I deste trabalho a citação que fala de
Simão, o Leproso.
46
Depoimento de egressa, Sra. Ana, recolhido em 05/06/1992, por Yara Nogueira Monteiro, p.353.
47
WEAVER, Eunice. Aspectos sociologicos do problema de lepra. In: Memoria del V CONGRESO
INTERNACIONAL DE LA LEPRA, Havana/Cuba, 03 a 11 de abril de 1948, pp. 794-808(p.798).
48
Idem., ibidem., p.355.
49
CAMPOS, Nelson de S. & BECHELLI, L. Organização e funcionamento de Preventórios. Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, 1948,p.29.
158
A violência contida no momento do ingresso no preventório e as privações
vividas naqueles estabelecimentos não eram assuntos abordados pelos discursos
médicos e da federação. Havia uma política de ocultamento das mazelas vividas nos
Educandários espalhados pelo país. Os motivos para esta atitude encontravam-se
todos ligados à luta contra a lepra no Brasil. Desmerecer ou desqualificar a prática
preventorial era uma forma perigosa de embaraçar o esforço de desarticulação dos
“lares lepróticos”, tarefa esta, dita necessária e eficiente para impedir o crescimento
da lepra no país.
“Até então nós não tinhamos sido examinados. Daí eles foram nos buscar,
viemos para Avenida Dr. Arnaldo. Foi constado que minha mãe também
estava doente, mas ela era forma tuberculoíde, enquanto meu pai era
Lepramontosa. Minha mãe foi internada com meu pai no Departamento, e
nós passamos uma noite lá no Departamento, depois é que nos levaram para
o Preventório. Ficamos lá sozinhos, meu irmão tinha só um ano e meio e
chorava, chorou a noite toda chamando a mãe, deu um trabalho... . Era nem
sei! Tem coisas que a gente não quer guardar. Eu tinha só 5 anos.
50
“Lá era muito pobre, a alimentação era muito pobre. (...) Nós não tinhamos
esporte, recreação nada. Depois que eu saí é que começou a melhorar um
pouco, mas enquanto eu estive lá não tinha nada. (...) As crianças do Jacareí
queriam ficar doente, a gente era tão bobinho... sabe porque? Para ir para o
Padre Bento, porque as crianças eram bem tratadas. Ele tinha um carinho
pelas crianças... (se referindo à Lauro de Souza Lima). Eles tinham esporte,
eles tinham piscina, eles tinham comida boa, eles tinham carinho. Daí então
todas as crianças ali de Jacareí, queriam ficar doente. A gente não
imaginava o que era a doença. (...) No Natal a gente ganhava brinquedo. E a
gente comia frango. Também era só no Natal. Ia um pessoal de São Paulo,
umas senhoras, acho que alguma associação, e eles levavam brinquedos
para nós... Todo ano.
51
“E, naquela época, devido à disciplina, parece que a gente se tornou, assim,
uma pessoa medrosa, sabe? Meu não sei se por causa da disciplina que eu
tinha lá. Se eu converso com uma pessoa ou ela grita comigo, eu até hoje, eu
sinto assim...eu assusto... eu sou tímida...eu... você pode perceber que eu não
converso direito... não tenho o Dom da palavra, eu acho que devido muita
repreensão, muita repreensão, muita coisa a gente engole, sabe? Quando
você é pequena, não pode conversar...não sei se foi devido a muita
repreensão lá...(esta se referindo ao preventório) ou se foi depois, quando a
50
No momento narrado pela depoente seu pai já estava internado. A expressão Departamento se refere
ao Departamento de Profilaxia da Lepra de São Paulo. Quando um leproso era capturado, recolhido ou
diagnosticado no período vespertino, quando já não havia mais ambulâncias disponíveis para removê-
lo para um dos asilos-colônias, estes eram enviados para um abrigo provisório, localizado no endereço
apontado no depoimento, onde permaneciam até o dia seguinte, quando se providenciava a remoção
para a instituição devida. Neste caso foram as crianças que lá aguardaram o dia seguinte. (Depoimento
recolhido por Yara Nogueira Monteiro, p.354)
51
Idem., p.363.
159
gente saiu de lá e passou muitos, muitos problema s devido meu pai Ter tido
esse problema..”
52
Mas, o poema que abre este texto, intitulado “Meu Filho”, ainda permite
refletir sobre o conjunto das práticas discursivas e não-discursivas engendradas pela
Federação. Foi a própria Eunice Weaver que cuidou de sua divulgação. Ela o
publicou na Revista de Combate à Lepra e também o citava em inúmeras palestras
que proferia no Brasil e no exterior
53
. Este poema, assim como outros textos e
depoimentos, poderiam ser utilizados para fundamentar críticas ao trabalho
preventorial. A sua veiculação nos meios disponíveis pela federação é um fato que
merece comentários. Embora represente com singularidade a “dor do lázaro” privado
da companhia do filho, ele exemplifica com toda força a dor necessária para que se
tenha um futuro sem lepra, um amanhã salvo da “hedionda morféia”. Ele
demonstrava com toda sensibilidade nele presente a “grandiosidade” do trabalho dos
Educandários espalhados pelo Brasil. Ele evidenciava que muitos estavam
sacrificando-se para que a sociedade e a nação se livrassem da lepra. Apesar do
aparente paradoxo ele enquadrava-se dentro do discurso isolacionista de “proteção
dos sãos”, sobre o qual não se deve aplicar nenhuma racionalidade futura. Naquele
momento ele representava o que havia de mais arrojado. Havia bons motivos, tanto
para as crianças quanto para a sociedade e os pais, para justificar e preservar a prática
preventorial. Crianças “sãs”subtraídas das estatísticas da endemia no país. Orgulho de
todos, derrota drástica impingida à lepra.
O sofrimento das crianças internadas nos preventórios ultrapassava, porém, o
âmbito da rejeição das pessoas que procuravam delas esquivar-se, temendo o
contágio por tratarem-se de “filhas de leprosos”. O medo do contágio também
inspirava nas pessoas receio da companhia dessas crianças. Nos preventórios havia
escolas fundamentais. Os internos do preventório tinham que matricular-se nas
escolas públicas secundaristas convencionais caso desejassem prosseguir os estudos.
Nestas escolas viveram muitos dissabores, muitas recusas que demonstravam ser o
estigma tão contagioso, ou mais, do que a própria lepra. Mais nocivo certamente
54
.
52
Depoimento recolhido por Leila Scalia p.233/234.
53
Ver: WEAVER, Eunice. Assistência Social no Combate à Lepra no Brasil. Op. Cit., p.11.
54
Alguns leprólogos defendiam que os preventórios não deviam possuir escolas internas, que todas as
crianças deveriam estudar fora do estabelecimento, com o objetivo de permitir uma socialização mais
ampla do interno desde os primeiros momentos que se encontrava na instituição.
160
“No começo do funcionamento dos preventórios, as pessôas que se atreviam
a visitá-los não se sentavam nas suas cadeiras: não aceitavam, nem siquer,
um copo de água, e não consentiam que qualquer das crianças internadas
lhes apertasse a mão.”
55
No entanto, os preventórios destacavam-se mais por sua função de internato
do que como escola fundamental ou profissionalizante. Basicamente eram dois seus
objetivos fundamentais dentro do esforço de luta contra a lepra: acolher e vigiar os
filhos nascidos sadios dos leprosos e outras crianças que originavam-se de meio
familiar “infecto”, conforme definia o regulamento dos Preventórios do Brasil.
Regulamento dos Preventórios para filhos sadios de lázaros instalados no Brasil
DOS SEUS OBJETIVOS
Art. 1.º - os Preventórios são destinados a acolher, manter, educar e
instruir menores sadios, filhos e conviventes de doentes de lepra, desde que
não tenham parentes idoneos que queiram assumir esse encargo e que
disponham de recursos para educa-los e mante-los sob a vigilancia das
autoridades sanitarias competentes.
§ único Para atender à sua finalidade primordial, os internados
deverão permanecer nos Preventórios, no mínimo , seis anos, salvo nos
casos da alínea e do artigo 6.º.”
56
As crianças deveriam permanecer no mínimo seis anos sob vigilância e
disponibilidade das autoridades sanitárias nos preventórios, prazo considerado
necessário para que se verifique e confirme não se tratar de um leproso. Caso a
criança apresentasse algum sintoma de lepra era logo removida para os asilos-
colônias
57
. A enfática insistência de vigilância, os seis anos de acompanhamento,
eram características que ligavam o preventório à sua função dispensarial, ou seja,
patrulhar e controlar uma determinada população, no caso os próprios internos,
através de uma inspeção permanente para assegurar a mais incisiva proteção
55
WEAVER, Eunice. Aspectos sociologicos do problema de lepra. Op. Cit., p.801.
56
Regulamento dos Preventórios Para Filhos de Lazaros instalados no Brasil, aprovado em
27/01/1941 e publicados no Diário Oficial da União em 13/03/1941 na página 5-320. A alínea “e” do
artigo 6.º(sexto) diz o seguinte: “Artigo 6.º ‘Os internados darão baixa ou sairão dos preventórios pelos
seguintes motivos: e) existencia de parentes ou solicitação de pessoas extranhas reconhecidamente
sadios e de idoneidade moral e capacidade financeira para mante-los e educa-los e ainda com o
compromisso de sujeita-los à vigilancia das autoridades sanitarias competentes;”(sic)
57
Conforme artigo sexto, alínea “b”, do regulamento dos Preventórios do Brasil.
161
disponível na época à população e ao Estado, ambos mantenedores dos preventórios e
da federação, à saber: a garantia de que a lepra estava sendo combatida.
Embora constasse no regulamento a possibilidade de adoção das crianças
nascidas nos asilos-colônias pelos parentes ou mesmo por outras pessoas não-
familiares, isto raramente ocorria. Era uma pré-condição para a adoção a sujeição do
menor, durante seis anos, a um exame periódico e regular realizado num preventório
ou dispensário, cujo objetivo era garantir não se tratar, aquele que ia ser adotado, de
uma “criança lázara”. Não havia dispensários nem preventórios em número suficiente
em todo o país. Pessoas que residiam no interior, distantes destes estabelecimentos,
teriam dificuldades em cumprir tal imposição. Tal exigência inviabilizava um maior
mero de adoções que poderiam ter ocorrido. Além do estigma, do ônus econômico,
da burocracia clássica existente entorno dos processos de adoção, no caso, dos guris
dos “leprosários do Brasil” havia ainda, mais essa dificuldade.
Mas, o modelo preventorial, assim como o modelo de segregação dos leprosos
tem uma origem religiosa. Os preventórios derivavam dos orfanatos religiosos
existentes em todo o ocidente cristão cuja premissa central não perpassava pelos
discursos médicos de valorização da criança e da educação, muito em voga no início
do século XX, e sim pela perspectiva caritativa do cuidado a ser dispensado aos
enjeitados. A educação e a infância ganharam notoriedade no início deste século nos
discursos higiênicos, eugênicos e educacionais. A preocupação com as crianças
extrapolava o âmbito exclusivo de cuidados a serem oferecidos pela família e pela
igreja e passava a ser alvo também da ação estatal e médica com vistas a construção
de uma grande nação. Até o século XIX a educação primária ou elementar no Brasil
esteve, na sua quase totalidade, entregue aos religiosos e escolas confessionais.
Verificou-se que as crianças não deviam ser deixadas integralmente aos cuidados da
família e da Igreja que, de repente, começaram a receber inúmeras críticas quanto à
eficiência da preparação destas crianças para um futuro melhor, mais seguro e mais
grandioso para a nação. A onda de secularização daqueles idos anos atingiu a
infância que deveria, então, receber cuidados complementares ao da família e da
igreja. As práticas do cuidar das crianças foram aos poucos medicalizada.
“Um rápido retrospecto histórico permite observar que a partir de fins do
século XIX a infância começara a ser alvo de maiores atenções, e objeto de
estudo, por parte da ciência. Essa tendência foi se acentuando durante as
162
primeiras décadas de nosso século, quando se organizaram os primeiros
eventos científicos internacionais sobre o tema. Em 1913 realizou-se o I
Congresso Internacional de Proteção à Infância na Europa, que foi sediado
na Bélgica; na América o I Congresso Americano da Criança foi organizado
em 1916, na Argentina. Estes eventos constituíram-se em marcos
precursores, tendo sido, sucedidos por uma série de outros.
No Brasil assiste-se ao reflexo desse movimento, como por exemplo o I
Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, realizado no rio de janeiro em
1922, que contou com a participação nomes da área médica e dos círculos
governamentais, e cujo discurso de abertura foi realizado pelo Ministro do
Interior. Esse evento foi organizado como parte das comemorações do
centenário da independência. O estudo das publicações dos congressos
médicos da época demonstra que a temática da infância testava adquirindo
novos contornos no Brasil, sendo apresentada dentro de perspectivas mais
amplas, A criança deixava de ser vista como um problema familiar para ser
vista como uma questão de ordem social.”
58
A leitura do Regulamento
59
, no entanto, demonstra a presença da
medicalização no interior da instituição preventorial, o que inexistia nos orfanatos
religiosos dos séculos anteriores. O médico aparece dotado de amplos poderes de
decisão semelhantes àqueles concedidos a administração, o que evidencia a
medicalização dos preventórios apesar de sua origem religiosa.
“Art. 12. Cumprirá ao médico - clínico pediatra examinar semanalmente
os internados, orientando o seu desenvolvimento físico dentro das normas
eugenicas e registrando o respectivo aproveitamento individual.
Art. 13. Competirá ao medico dermatologista leprologo manter uma
vigilancia rigorosa, levando em conta o grau de contagiosidade no fóco de
onde proveiu a criança, a natureza e o tempo de convivencia, examinando-a
mensalmente nos tres primeiros anos de internamento, efetuando as provas
de laboratorio necessarias a esse fim e organizando as respectivas
fichas.”
60
(sic)
Costuma-se atribuir ao padre Damião de Veuster
61
a invenção do preventório
durante os inúmeros anos que permaneceu no leprosário de Molocai no Havaí. O
58
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.337/338.
59
Regulamento dos Preventórios Para Filhos de Lazaros instalados no Brasil, Op. Cit.
60
Idem, artigos 12 e 13.
61
Jozef Damien de Veuster. Nasceu em 03/01/1840, em Tremelo, na Bélgica e faleceu em 15/04/1889,
em Molocai no Havaí. Com 20 anos de idade ingressou na Congregação dos Padres dos Sagrados
Corações de Jesus e de Maria(Picupus). Em 1863 partiu para as missões das ilhas do Havaí, em lugar
de seu irmão que havia adoecido. Chegou em Molocai em 1873 onde permaneceu até a morte.
Adquiriu lepra, provavelmente por volta de 1885 e morreu em estágio bastante adiantado da doença.
Embora não contestasse a prática do isolamento ficou famoso pelas denúncias que fazia da
precariedade do leprosário existente na ilha de Molocai, e dos insistentes e incessantes pedidos de
melhorias para o lugar. Em 1936 seus restos mortais foram transladados para sua terra natal. Em
163
primeiro Congresso Internacional de Lepra (CIL) a tratar sobre o assunto foi o de
1909 ocorrido em Bergen na Noruega.
“Foi lá para o ano de l87l que o Padre Damião, coitado, ingressou , com 31
anos de idade, no leprosário de Molokai, chegado havia poucos anos da
Bélgica. Êle sabia que havia naquela ilha centenas de leprosos,
abandonados como animais selvagens, sem terem quem os assistisse, foi
então, para Molokai, distante de Honolulu dias de viagem e onde eu tambem
fui ter, mas já agora em moderno vapor. Lá permaneceu durante 16 anos,
como padre, como médico, como engenheiro, como coveiro. Depois de um
ano de assistência aos enfermos, conhecia a lepra. Assistiu à cohabitação e
às ligações sexuais livres dos enfermos. Presenciou muitos nascimentos.
Naturalmente, foi também parteiro. O Padre Damião era tudo alí.
Mas viu que as crianças nascidas no leprosário nasciam limpas do
mal, sadias, rosadas. Imaginou, então, o preventório.
(...)
Mas o Padre Damião, vendo aqueles bebês sadios e rosados,
inventou o preventório, lá pelo ano de 1880.
(...)
A rainha kapiolani
62
, chegando a ilha, viu aquelas crianças, de
ambos os sexos, aparentando a mais perfeita saúde: de dias de vida, a mêses
e até seis e sete anos. Admirou-se e disse ao padre Damião que ia ajudá-lo e
tomar conta das meninas. Voltou para Honolulu e fundou, em 1885, o
primeiro preventório para meninas, que se chama ‘Kapiolani Girl’s
Home’”
63
(sic)
“Constitue assunto resolvido, em Leprologia, que a creança possúe grande
receptividade para o mal de hansen, revelando as estatísticas de todos os
autores e de todos os países, uma grande proporção de contágios, quando é
a mesma deixada por muito tempo em meio infetante. Desta verdade já se
haviam apercebido, no seculo passado, os que lutavam contra a propagação
da lepra, cabendo ao celebre Padre Damião, na colônia de Molokay, a
prioridade em resolver tal problema pelo isolamento dos filhos dos leprosos,
em estabelecimentos a eles destinados. Na Índia, pouco depois, fundavam-se
numerosos asilos para isolar tambem os filhos sadios dos lazaros, sendo o
exemplo seguido por numerosos países.
Finalmente, foi a segregação dos filhos dos lazaros tornada oficial,
como medida integrante da campanha profilatica, na
2ºConferênciaInternacional de Lepra, reunida em Bergen, Moruega, em
1909.
Na época atual , tal medida constitue ponto basico da profilaxia da
lepra. Si, no começo a iniciativa teve carater sobretudo humanitário,
15/05/1994 foi beatificado pelo papa João Paulo II. Para mais detalhes ver; DEBROEY, Steven. Nós,
os leprosos. São Paulo, Edições Loyola,1994.
62
Durante o período que Padre Damião esteve em Molocai, o Havaí era um país independente
governado por uma monarquia. Esta foi derrubada em 1893 pelos agricultores favoráveis aos EUA,
tornando-se inicialmente um república e depois, em 12/08/1898, foram anexados, por pedido próprio,
aos EUA. Em 1959, o arquipélago, constituído por oito ilhas, tornou-se o 50º Estado dos EUA.
63
SOUZA-ARAUJO, Heraclides-Cesar. Comentários do prof. Heraclides de Souza Araujo. In:
WEAVER, Eunice. Assistência Social no Combate à Lepra no Brasil. Op. Cit., p.25/26.
164
presentemente, além dessa finalidade, constitúe condição sine qua non para
que seja levada a bom termo a campanha de erradicação da lepra”
64
.
O preventório anti-leproso foi a área de atuação que permaneceu reservada, na
sua quase totalidade, para os agentes filantrópicos e assistencialistas relacionados
com a lepra. Estes, por sua vez, cada vez mais assumiam um lugar outrora
inteiramente ocupado pelos religiosos, que a partir do final do século XIX começaram
a perder esse espaço para as ações caritativas leigas, filantrópicas e
predominantemente femininas que se consolidavam nas primeiras décadas do século
XX. Contudo, apesar de presentes na lida com a lepra desde o início do século XX,
esses agentes filantrópicos, juntamente com os religiosos, foram alijados a partir da
década de 1930 pela presença maciça do Estado e da Medicina Social. Perderam o
pioneirismo e o poder de decisão que possuíam, inclusive, sobre o campo que
passaram a atuar, isto é, a prática preventorial. Foram despojados do poder de decisão
e da legitimidade social que usufruíam, através de um conjunto de medidas adotados
no pós-1930, uma estratégia, desencadeada pelo Estado aliado à Medicina Social, que
juntos assumiram o posto de liderança e o comando do que se devia fazer para
combater a endemia de lepra no Brasil.
O preventório, herdeiro dos orfanatos religiosos do século XIX, já encontrava-
se suficientemente medicalizado e integrado no esforço de combate a lepra no Brasil
do século XX, sendo por esta razão auxiliado pelo Estado que, após 1930, tomou para
si o ônus da organização e coordenação dos esforços de erradicação da endemia.
O modelo preventorial idealizado para contribuir no combate a lepra tinha
dois objetivos básicos que se complementavam. Primeiro, concorrer para a
diminuição do número de leprosos no país. Segundo, preservar as crianças do
contágio e do mal através do alijamento destas do meio infectante no qual se
encontravam, o que iria colaborar para a diminuição das estatísticas de lepra.
“Prevenir e preservar” dizia-se na época, esse era o papel destas instituições
65
.
No entanto, os preventórios eram também uma medida complementar ao
isolamento dos leprosos. Sem estes Educandários muitos acometidos do mal
64
THIAGO, Polydoro Ernani de S.(Assitente Técnico). Do preventorio anti-leproso. Sua
organisação e funcionamento. 3.º tema da Conferência. Trabalho apresentado à Conferência de
Assitencia Social aos Leprosos.(Anais), Estado de Santa Catarina/DSP/SPL. Rio de janeiro, 12/19 de
novembro de 1939, pp.01/15(P.03).
65
Alguns dos Selo Postais dos Correios vinham com os seguintes dizeres: “Preservação da Criança
Contra o Mal de Hansen”.
165
poderiam recusar-se ao internamento compulsório ou mesmo dele procurarem se
esquivar. Além de um ato de “caridade” para com os “órfãos de pais vivos”, a prática
preventorial era também uma saída estratégica dentro da tríade isolacionista
institucionalizada naqueles idos anos. Amparada a criança, filha de internos dos
asilos-colônias, dentro destes estabelecimentos estava assegurada uma forma eficiente
de patrulhamento destas pelos agentes médicos inseridos no interior da instituição
preventorial. Desta forma, o imperativo de proteger os sãos encontrou nestes
Educandários uma das sua formas mais puras e radicais. O fato dos preventórios
terem ficado fora da alçada direta dos cuidados a serem oferecidos pelo Estado,
explica-se: primeiro; pela necessidade de se legitimar socialmente a prática
isolacionista. O governo federal não poderia recusar aliados, nem desconsiderar, na
década de 1930, a importância política da FSAL e DCL. Segundo, o Estado subjugou
indiretamente a federação
66
.
“A construção e a manutenção dos preventórios, no Brasil, estão a cargo da
cooperação privada, ficando a questão definitivamente estabelecida na
conferência para Uniformização da Campanha Contra a Lepra, reunida no
Rio de Janeiro em 1933. As Associações de Assistência aos Lazaros e defesa
contra a Lepra do País, reunidas na Federação promotora dêste conclave, e
que consubstancia a maior organização brasileira no genero, instalaram
inumeros preventórios em grande parte dos estados da União, havendo
vários em construção e outros em projéto.
(...)
O preventório deve ser complemento obrigatório do leprosário, sem
o que será grandemente prejudicada a medida soberana da campanha
contra a lepra, que é o isolamento nosocomial dos casos abertos de lepra.”
67
No entanto, os preventórios proliferaram no Brasil. Foram construídos 35
estabelecimentos em quase todos os Estados. Rede institucional onerosa que foi
custeada pelos governos federal, estaduais, municipais e pela sociedade que auxiliou
apoiando socialmente o trabalho preventorial e dele tomando parte através das
filiadas da federação espalhadas pelo país, também financeiramente, através de
inúmeras “Campanhas de Solidariedade” realizadas tanto para custear a manutenção
destas instituições quanto para construir outras novas.
Com exceção do Estado de São Paulo, onde seus dois estabelecimentos, o
Jacareí e o Asilo Santa Terezinha; o primeiro diretamente subordinado ao DPL e o
66
Ver texto 3.1 do capítulo II.
67
THIAGO, Polydoro Ernani de S. (Assistente técnico). Op. Cit., p.12/15.
166
segundo, primeiro preventório criado no Brasil, uma instituição filantrópica autônoma
ainda que submetida ao regulamento da Federação e pela fiscalização direta do DPL,
todas os demais preventórios vinculavam-se diretamente FSAL e DCL.
O ocaso das instituições preventoriais no Brasil ocorreu juntamente e
simultaneamente ao do isolamento. Quando o conjunto de práticas edificadas sobre o
isolamento ruiu , não só os asilos-colônias, mas também os preventórios vieram
abaixo. As mazelas produzidas durante os anos em que funcionaram ficaram de
herança. Legado do medo da lepra.
Alice Tibiriçá e o médico Floriano Lemos eram contrários aos preventórios.
Pregavam o isolamento de todo o grupo familiar em Granjas, onde pudessem
permanecer unidos, trabalhando e convivendo, livres de todos os agravos sociais
ocasionados pelo isolamento exclusivo dos acometidos. Floriano Lemos, num de
seus vários artigos de jornais onde criticava a política oficial de profilaxia da lepra no
Brasil, conseguiu formular com perspicácia as conseqüências que se podia esperar da
prática preventorial e advertia que caso essas crianças conseguissem esquivar-se da
lepra não escapariam do estigma. Teriam uma vida infeliz, marcada. Intenção
institucional frustada. Entretanto, o maior objetivo do preventório, assim como dos
asilos-colônias, não era consolar os lázaros, seus filhos e sua família das privações e
angústias ocasionadas pela lepra, mas proteger os sãos.
“(...) não acreditamos que essas criancinhas (...) amanhã quando adultas
tenham fácil acesso em nossos lares, em nossa sociedade. Estarão
condenadas a constituir um grupo à parte e, como párias, terão que viver à
margem da nossa sociedade. Serão ex-pensionitas do Asylo Santa Terezinha!
Senão no physico, pelo menos moralmente carregarão para sempre
a herança paterna.
Se em face das leis da eugenia não são elementos recomendáveis
sel-o-ão como factores econômicos positivos?
(...)Maldirão por certo a nossa falsa caridade que permitiu a sua
existência(...)”
68
167
Os dispensários
O dispensário de lepra, terceiro componente do arsenal antileprótico,
introduzido na década de 1930 no Brasil, era hierarquicamente menos “importante” e
menos renomado do que os asilos-colônias e os preventórios.
O dispensário também originou-se no século XIX, embora não seja vinculado
a tradição religiosa como ocorreu com os preventórios e os asilos-colônias. Havia
alguns destes estabelecimentos que eram custeados por instituições beneficentes, o
que não significa que sua organização e objetivos fossem substancialmente
modificados conforme as características do mantenedor.
Dos três órgãos constituintes do clássico “tripé”, da tríade isolacionista;
Asilos-colônias - preventórios - dispensários, esse último era a peça mais
fraca, mais frágil, e a única que não dispunha de grupos que lhe assumissem a defesa
de forma tão imperativa e combativa como aconteceu no caso dos dois primeiros. O
resultado é que suas mazelas não demoraram a aparecer, embora, constituísse a única
alternativa para uma profilaxia da lepra livre da prática do isolamento.
Durante o período em que vigorou o isolamento compulsório, o dispensário
tinha como função primordial auxiliar para que esta medida atingisse paulatinamente
o maior número de acometidos de lepra e garantisse uma cobertura de fiscalização e
patrulhamento sobre todos os parentes, amigos e conviventes de leprosos, os
chamados, “comunicantes”, isto é, vigiar e controlar todos os suspeitos.
Mas os dispensários não eram uma exclusividade do combate a lepra. Havia
dispensários de impaludismo, tuberculose, tracoma. O dispensário especializado era
entendido, até bem recentemente, como uma forma eficiente de disponibilizar o
tratamento existente na época para determinados males à população em geral através
de um grupo de médicos, enfermeiros e outros profissionais igualmente
especializados que dessa forma poderiam repassar para a sociedade tratamentos
complexos, atendendo plenamente a necessidade de enfrentamento de determinadas
endemias e epidemias no país.
O dispensário pode ser definido como um estabelecimento de diagnóstico,
profilaxia ou tratamento de determinados males cujos serviços prestados à população
68
LEMOS, Floriano. “Um problema de eugenia”. In: Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 de
168
devem ser acessíveis, de fácil utilização e menos custosos do que o oferecido em
hospitais e pelos profissionais de saúde que atendem, exclusivamente, mediante
onerosa remuneração. Dessa forma, seu objetivo era viabilizar e disponibilizar os
recursos existentes ao conjunto da sociedade, livre dos embaraços econômicos,
burocráticos e da inoperância perante os problemas de saúde vividos através da
constituição de um órgão de grande capacidade resolutiva, por essa razão
especializados, dos males atendidos neste local.
No caso da lepra, durante o período em que vigorou a prática do isolamento
compulsório no Brasil, o dispensário especializado neste mal além de atender àqueles
que o procuravam voluntariamente, deveria ter uma função ativa, isto é, sair à campo
em busca de novos casos, novos contagiantes, animadores das constrangedoras
estatísticas nacionais. Daí, geralmente, definir o dispensário por oposição ao
ambulatório. Enquanto esse seria receptivo e passivo aquele deveria ser dinâmico e
ativo.
Encarregado de vigiar e controlar os parentes dos leprosos isolados,
“morféticos em potencial”, os dispensários sujeitava-os a um vasto inquérito
permanente ao qual eram obrigados a se submeterem, pois, acreditava-se que, de
repente, algum deles poderia revelar-se “infecto-contagiantes” e necessitar ser
removido para os asilos-colônias, o fato de terem convivido com um leproso era um
fator de risco que não podia ser desconsiderado. Além destes a população em geral
também foi colocada sob suspeita, posta ao alcance dos olhares e da ação dispensarial
que deveria revelar casos ocultos no meio social.
Recensear os leprosos, providenciar isolamento dos acometidos, enviar as
crianças sadias para os preventórios, submeter o cônjuge “são”, demais familiares,
amigos e conviventes à exames periódicos e regulares eram também funções dos
dispensários. Para os médicos e outros profissionais envolvidos no trabalho dentro da
tríade isolacionista este órgão era um autêntico chamarizes de enfermos. No entanto,
aqueles que tiveram suas vidas marcadas pela lepra, e nas suas biografias constam a
experiência dispensarial, atribuíram-lhe o cognome de “chamarizes do inferno”
69
.
novembro de 1939. Apud: MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.343.
69
LANA, Francisco Carlos Félix. Políticas Sanitárias em hanseníase: história social e a construção da
cidadania.(Doutorado em enfermagem), EERP/USP, Ribeirão Preto, 1997(p.92).
169
O trabalho dos dispensários mesclava as perspectivas de Polícia Médica
70
e
Saúde Pública. Seu cotidiano era, quase sempre, tomado pela apuração de denúncias
sobre acometidos que deveriam ser recolhidos e isolados. Essas delações eram
responsáveis por quase todos os apresamentos de leprosos realizados, o que
comprometia a perspectiva de Saúde Pública deste órgão, à saber: realização de
inquéritos epidemiológicos, realização de censos mais arrojados e satisfatórios, busca
ativa de casos precoces, entre outras.
A segunda atividade que mais preenchia o cotidiano deste estabelecimento era
o atendimento aqueles que o procuravam voluntariamente. No entanto, no decorrer
dos anos este órgão burocratizou-se, perdendo gradualmente sua pujança e afastando-
se dos seus objetivos. Inúmeros funcionários foram repassados para os serviços
administrativos internos, não relacionados com o atendimento ao público,
comprometendo o cumprimento de suas funções adequadamente.
Ernani Agricola, em 1945, elencava as seguintes finalidades que deveriam ser
atendidas por todos os dispensários de lepra existentes no país:
a) descobrir novos casos de lepra precocemente;
b)fazer a vigilância e o tratamento dos casos não contagiantes;
c)fiscalizar eficazmente os contagiantes isolados em domicílio;
d)controlar todos os comunicantes e examiná-los pelo menos uma vez por ano;
e)fazer a vigilância dos egressos dos leprosários até a alta definitiva;
f)auxiliar a educação sanitária do povo, especialmente na parte referente à lepra e
mais intensamente junto às famílias conviventes e comunicantes de lepra;
g)fazer a propaganda para que se generalize a prática do exame periódico.
71
Os dispensários também realizavam uma triagem das famílias com
acometidos de lepra que deveriam receber auxílio financeiro ou ajuda material das
Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. O tipo de ajuda e
70
A “polícia médica” significou uma forma de atuação do Estado sobre a questão da saúde das
populações, estabelecendo-se como um programa abrangente que consistia num sistema de informação
amplo que incluía, além das taxas de natalidade e mortalidade, os registros de fenômenos epidêmicos e
endêmicos; uma normalização do saber e da prática médica. Normalização que acontece antes com a
medicina e o médico do que com o doente; a subordinação da prática médica a um poder
administrativo e a criação de uma organização estatal médica hierárquica. A ‘polícia médica’ surge na
Alemanha como uma estratégia de fortalecimento e de unificação do Estado alemão.” Cf. ROSEN,
Georges. Op. Cit. e FOUCAULT, Michel. História de la medicalización. Educ. Méd. Salud. Vol.11,
n.º01, 1977.
71
AGRICOLA, Ernani. Conferência proferida através do PRA-2 em 04/01/1945.Apud: GOMIDE,
Leila Regina Scalia. Op. Cit. p., 118/119.
170
quantidade a ser concedida pelas filiadas da Federação era muito diversificado,
variando, inclusive, conforme os recursos disponíveis em caixa para prestar tal
assistência. Essa podia ser desde uma pensão mensal até donativos de alimentos e
roupas.
O dispensário de lepra criou uma das figuras mais temidas pelos leprosos e
suas famílias: “ o fiscal de lepra”. Quando o dispensário era dinâmico, isto é,
dispunha de visitadores e ambulâncias , o fiscal encarnava o papel do guardião da
saúde pública que palmilhava a jurisdição dos respectivos estabelecimentos
objetivando dar cumprimento da primeira finalidade dos dispensários: a) descobrir
novos casos de lepra precocemente. A fim de intimidar os acometidos e minorar as
resistências ao correto desempenho de suas funções, este fiscal, esporadicamente,
utilizava-se do auxílio de contigentes da polícia civil ou militar.
A localização dos dispensários de lepra era um capítulo importante a ser
discutido dentro dos quadros profissionais constituintes da tríade isolacionista. Havia
um consenso que deveriam ser inseridos em regiões que constituíam foco razoável de
lepra. Acreditava-se que o ideal era que fossem instalados em prédios próprios,
exclusivamente destinados para esse fim.
No entanto, as limitações financeiras não permitiram que todos os
dispensários fossem equipados e montados dentro dos mais altos padrões
recomendados na época, isto é, fixo, em prédio próprio inteiramente a ele dedicado,
com infra-estrutura e pessoal suficiente para cuidar do trabalho interno e externo da
unidade. Foram providenciados, então, os dispensários fixos, porém em salas cedidas
por outras unidades de saúde ou outros dispensários não-especializados em lepra, e os
itinerantes. Quando fixos, porém, em salas cedidas, sua entrada era sempre
diferenciada e a sala especial na qual se encontravam era identificada pelos seguintes
dizeres: “Serviço Especial de Lepra”
72
. Quando itinerante seu funcionamento era de
caráter emergencial e pontual, sendo que, para tanto funcionava em locais igualmente
cedidos, por um breve período de tempo, e em localidades onde não havia nenhum
dispensário de lepra ou então, apenas no fim-de-semana.
Contudo, apesar de planejados e sofrerem intervenções revitalizadoras, na
década de 1960, os dispensários continuaram incapazes de cumprir com eficiência
72
GOMIDE, Leila Regina Scalia. Op. Cit.,p.118.
171
seu primeiro objetivo. Estes viviam às voltas com as mesmas pessoas e famílias com
acometidos já detectados pelos esforços isolacionistas. O trabalho de campo, a
descoberta de novos casos continuava insignificante , demonstrando, já na época, a
necessidade de revisão dos parâmetros utilizados como profilaxia da lepra.
“De 1962 em diante, buscou-se a dinamização da rêde dispensarial do
Estado de São Paulo. Trata-se do maior dispositivo de que se tem notícia,
com 52 unidades no interior e 14 na capital, com 17 Delegacias Regionais,
ocupando um total de 554 funcionários. O gigantesco organismo foi objeto
de estudos e pesquisas, objetivos de trabalho foram fixados, indicadores de
produtividade foram adotados e pouco a pouco as unidades estáticas do
interior, que se limitavam ao atendimento de doentes que se decidiam a
procurá-las, deram lugar a unidades dinâmicas com um coeficiente de
penetração na zona superior a 1,00, indicando que a maioria das atividades
se desenvolvia fora da sede. Foi feita uma seleção de contatos domiciliares a
controlar e em seguida intensificou-se o seu contrôle. O rendimento passou a
ser avaliado mensalmente e os resultados da avaliação foram distribuídos
cada mês a tôdas as unidades. A percentagem de doentes em dia com as suas
revisões subiu de 78,2 a 87,4% e a percentagem de comunicantes
controlados aumentou de 46,7 para 69,7%. Todavia, a incidência não se
alterou e a percentagem de formas lepromatosas entre os casos novos
fichados continuou elevada.”(sic)
73
Muito cedo ficou evidenciado que os dispensários eram inócuos para atender
seu primeiro objetivo e que algum fator afastava e repelia os leprosos das portas
destes “chamarizes do inferno”. Em São Paulo procurou-se otimizá-los e torná-los
eficientes, o que não foi conseguido. As pesquisas realizadas apontavam para a
necessidade de se extinguir a exclusividade do tratamento da lepra pelos dispensários
especializados, reivindicando que todos os outros dispensários, bem como os demais
serviços de saúde geral também fossem autorizados a realizar a busca ativa de novos
casos irrevelados, ou seja, reivindicava-se a desmonopolização dos cuidados da
lepra.
“Chegamos então à conclusão de que embora o dispensário especializado
possa vir a ser peça eficiente do armamento profilático, a montagem de uma
rêde quantitativamente eficiente atinge um custo incompatível com uma
administração saudável e exige um número inexistente de especialistas.
Depois de nos aplicarmos com entusiasmo à tarefa de aprimorar
dispensários e melhorar o seu rendimento durante oito longos anos,
chegamos à conclusão de que a necessidade de numeroso pessoal estático
impõe um custo unitário que proíbe a multiplicação das unidades de forma a
conseguir uma rêde quantitativamente suficiente.
73
MACHADO, Paulo de Almeida. Dispensários especializados e suas limitações na profilaxia da
hanseníase. In: Boletim do Serviço Nacional de Lepra, Ano XXVIII, n.º3, setembro de 1969, pp.36-
46(p.36/37).
172
A expansão da rêde ainda multiplicaria os problemas de
ajustamento dos esquemas de trabalho às múltiplas circunstâncias locais e
criaria dificuldades quiçá insuperáveis para a supervisão ou encareceria
ainda mais o trabalho de programação, avaliação e supervisão.
Assim sendo, parece-nos que devemos reconhecer a inexeqüibilidade
da adequação do potencial ao encargo da rede dispensarial.”(sic)
74
“Sem tempo para ir procurar os doentes, sem tempo para programar , sem
pessoal para-médico qualificado para executar visitação domiciliar, os
médicos ficaram à disposição dos que procurassem o dispensário. Aconteceu
o inevitável: assiduidade dos postulantes das facilidades assistenciais, na
maioria casos já sem significação epidemiológica e absenteísmo dos que não
fazem jus àqueles benefícios: formas incipientes e contatos, todos de grande
interêsse profilático.
(...)...descentralização do atendimento levando-o mais perto do
domicílio dos doentes, utilizando a rêde de unidades não especializadas que
tem maior penetração.”(sic)
75
O autor conclui pela necessidade de se estender a busca de novos casos aos
demais serviços de saúde, pois era financeiramente e tecnicamente impossível
edificar uma rede dispensarial capaz de palmilhar São Paulo em busca de todos os
leprosos do Estado. Essa mesma constatação pode ser estendida para o restante do
país, onde, apesar do número menor de dispensários reclamava-se igualmente de sua
inoperância e timidez no descobrimento de novos casos.
O estigma e o medo dos acometidos e de suas famílias impediam que esses
órgãos obtivessem sucesso e eficiência. Outras pesquisas foram realizadas para
verificar o motivo do grande número de comunicantes já conhecidos e ausentes aos
exames dispensariais. O mesmo autor narra a experiência e enumera as conclusões.
“Durante o planejamento da Campanha da Zona Leste, realizada na região
metropolitana de São Paulo, outubro/novembro, 1968, o Departamento de
Dermatologia Sanitária (antigo DPL) realizou uma pesquisa entre contatos
em atraso com suas revisões procurado conhecer as razões do absenteísmo.
Por ordem de freqüência, foram apontadas as seguintes razões:
1 Coincidência entre o horário de expediente do dispensário e o horário de
trabalho.
2 - Estigmatização resultante da identificação como freqüentador de um
dispensário especializado.
3 Custo do transporte e tempo gasto nos deslocamentos até o dispensário.
74
Idem., p.41.
75
Idem., ibidem., p.43/45.
173
4 Inconvenientes da apresentação de um atestado de comparecimento ao
dispensário para justificar ausência ao trabalho ou à escola.
5 Incredulidade quanto às vantagens do exame periódico.
6 Oposição radical ao exame periódico.
As razões de 1 a 4 foram alegadas pela imensa maioria dos contatos
ouvidos. Oposição radical foi encontrada em raros casos.”(sic)
76
Pode-se observar que a atitude dos faltosos demonstra confiança com relação
aos serviços dos dispensários, justificando-se a ausência em razão de deficiências
destes estabelecimentos de modo específico, e de forma geral nas conseqüências
sociais resultantes da prática do isolamento e do estigma que envolve a lepra.
Prosseguindo com a pesquisa o dispensário foi aberto aos domingos e
verificou-se que um grande número de pessoas o procurou neste dia. Aumento da
demanda que comprovava a validade da pesquisa e do primeiro item apontado como
motivo da ausência dos comunicantes aos exames periódicos que deveriam se
submeter regularmente nos dispensários.
“O Dispensário da Zona Leste ficou reservado para elucidação de
diagnóstico. Em todos os domingos foram atendidos mais contatos do que em
tôda semana. E, em um único Domingo foram atendidos tanto comunicantes
quantos atendeu o dispensário da zona leste durante todo um trimestre de
1968. São dados que comprovam as limitações do dispensário
especializado.”
77
Os resultados obtidos demonstram que o funcionamento nos domingos
constituía boa estratégia de adequação para funcionamento dos dispensários com
vistas ao pleno atendimento dos comunicantes. Contudo, esta conclusão não alude a
continuidade da inoperância deste órgão frente à necessidade de se descobrir novos
casos de lepra precocemente. Esta função os dispensários especializados de lepra não
conseguiram cumprir, a despeito das volumosas quantias desembolsadas pelos cofres
públicos e da violência que muitas vezes foi utilizada.
No entanto, a rede dispensarial brasileira especializada em lepra constituiu-se
em inúmeras unidades, que mesmo não proporcionando um sucesso correspondente
aos recursos empregados, continuou funcionando basicamente com as mesmas
76
Idem., ibidem., p.43.
77
Idem., ibidem., p.44.
174
características, apenas com algumas modificações de nomenclatura nestes
estabelecimentos, até final da década de 1970.
3.2 A falência do isolacionismo
“Iniciamos nossas palavras na afirmação de que os Hospitais
Especializados para tratamento exclusivo da Hanseníase não devem
mais existir. Os existentes devem dirigir o seu programa assistencial
para o tratamento das dermatoses de interesse sanitário ou
modificar radicalmente suas estruturas, buscando atender outras
doenças que atinjem as comunidades...
78
No limiar da década de 1960 constatou-se que a endemia de lepra no Brasil
não demonstrava sinais de decrescimento. As estatísticas continuavam apontando a
manutenção do país no segundo lugar do podium dos países mais endêmicos do
globo, atrás apenas da Índia. Vice-campeonato
79
desconcertante, posição
constrangedora e propícia à reflexões sobre o isolamento, seu custo social e
financeiro e a “triste” constatação de que ele não estava resolvendo o problema.
O caminho percorrido para se chegar a esta conclusão foi dolorido, polêmico
e marcado por inúmeras disputas entre médicos e outros profissionais e grupos
relacionados com a lepra. Aqueles que eram favoráveis às medidas isolacionistas
argumentavam que o problema residia na concessão do isolamento domiciliar e na
falta de seriedade do governo que nunca teria se esforçado para isolar todos os
acometidos. Para estes, “em tese”, o princípio segregacionista, seqüestração de todo o
“reservatório de bacilos”, isto é, os leprosos, em local de onde nunca sairiam, nem
após a morte, se cumprida fielmente, à risca, com rigor, resolveria o problema
contendo a endemia inicialmente e abrindo caminho para sua erradicação.
78
CRUZ, Oswado. Padrões mínimos de organização e assistência nos hospitais especializados para
hanseníase. ( Trabalho apresentado no Seminário sobre o Papel dos Hospitais no Combate da
hanseníase e Problemas Administrativos Bauru, São Paulo, junho de 1973). In: Boletim da Divisão
Nacional de Lepra. Ano XXXII. N.º1, 1973.p.43.
79
Ainda hoje o Brasil permanece como segundo país mais endêmico do mundo. Em 2000 eram
119.068 casos registrados. Número inexato, pois, existe uma porcentagem de desconhecidos. A
verdadeira incidência é sempre maior do que o número de casos conhecidos. Cf. ROTBERG, Abrahão.
Hanseníase no Brasil. In: O Estado de São Paulo. São Paulo, n.º 39, ano CXXII, 24/09/2001.
175
Estes discursos que primavam pelo isolamento dos leprosos, utilizavam
sempre a velha e batida justificativa norueguesa para subsidiar suas proposições; à
saber: a Noruega reduziu a endemia à níveis baixíssimos, antes do advento de
qualquer medicação eficaz na terapêutica de lepra, utilizando-se do isolamento.
O fim da endemia na Noruega tornou-se célebre e foi apropriado pelos
favoráveis ao isolamento que atribuíam ao confinamento dos acometidos a
responsabilidade pela vertiginosa queda do número de leprosos naquele país. Leitura
simplista e distorcida do que lá aconteceu. No final do século XIX e início do XX
foram adotadas um conjunto de medidas higiênicas e educativas naquele país, bem
como, em quase toda Europa ocidental, cujo objetivo era acabar com as endemias e
epidemias que assolavam aquela região. A teoria miasmática
80
levou a adoção de um
grande número de procedimentos que indiretamente contribuíram para a redução da
incidência de lepra. A melhoria no padrão de vida e habitacional modificaram as
“condições de possibilidade” da endemia.
“Durante o século XVIII e início do XIX houve uma grande melhora da
saúde pública. É curioso notar que ela não foi produzida por nenhum
conhecimento novo: ela se deu por medidas sanitárias inspiradas nas velhas
idéias sobre os miasmas.
Desde o fim do Império Romano, as preocupações com limpeza, na
Europa, haviam se reduzido muito. A água era obtida de qualquer tipo de
fonte, de rios, de chafarizes públicos, de poços sujos. Praticamente não
existia água encanada. Também era rara a existência de esgotos; quando
existiam, a água suja misturava-se à água utilizada para todos os fins
domésticos.
Em algumas cidades, os excrementos eram coletados e transportados
para longe, em carroças, mas o mais comum era que fossem simplesmente
lançados à rua. O próprio chão das casas de terra ou de madeira ficava
impregnado de urina de cães e de pessoas, cerveja e outras substâncias.
Somente quando ocorriam a pestes surgiam hábitos de limpeza, como varrer
as casas e as ruas.
Até mesmos os médicos podiam ser contrários às medidas sanitárias
. Em 1760 não existiam privadas em Madri. Os excrementos eram jogados
pelas janelas das casas à noite, sendo removidos no dia seguinte. O rei
ordenou que se construísse uma privada em cada casa, mas o povo se opôs
violentamente à medida. Os médicos também protestaram, dizendo que a
80
Teoria segundo a qual as doenças derivariam dos miasmas, no sentido lato do termo, isto é, mau
cheiro. Plantas e animais em decomposição, pântanos, excrementos e tudo o mais que ocasiona-se mau
cheiro deveria ser eliminado por sua potencialidade em causar doenças. Esta teoria foi bem aceita até
finais do século XIX quando surge a teoria microbiana das doenças. Cf. MARTINS, Roberto de
Andrade. Contágio: historia da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo, Editora
Moderna, 1997.Ver, notadamente, o capítulo 8.
176
sujeira das ruas era útil, pois absorvia as partículas insalubres do ar. Se as
ruas não fossem sujas, essas partículas atacariam as pessoas.
A limpeza corporal e das roupas era rara e precária. Os perfumes,
utilizados pelos ricos, substituíam os banhos.(...)
A idéia de que as doenças eram causadas pelo mau cheiro havia se
generalizado.(...) No século XVIII, tornou-se popular a teoria dos miasmas,
para explicar não apenas as enfermidades dos pântanos , mas todas as
doenças produzidas por cheiros de coisas estragadas e podres, A limpeza
não era um problema estético e sim uma questão de saúde, ou seja, de
higiene ( no sentido do original da palavra). E o melhor guia para fugir das
doenças seria seguir a orientação do nariz.
(...)
A importância de afastar os excrementos e o lixo das casas era
apenas devido a seu cheiro.
(...)
Passou-se a dar grande importância `a ventilação das residências,
para que o ar fosse renovado e purificado.
(...)
No início da Idade moderna, a situação de sujeira era terrível nas
residências, e pior ainda em lugares com aglomerações, como prisões,
hospitais e instalações militares. No fim do século XVII, mais de um quarto
dos pacientes dos hospitais de Paris e Londres morriam. Ser levado para um
hospital era semelhante a ser executado. O filósofo alemão Gottfried Leibniz
chamava os hospitais de ‘sementeiras da morte’.
Graças a idéias sobre limpeza e miasmas, a situação começou a
mudar.(...). Esse amplo movimento higienista, que continuou durante o
século XIX, não dispunha de nenhum conhecimento novo. A teoria básica era
a dos miasmas. Havia apenas um interesse real em utilizar os conhecimentos
disponíveis na melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças. (...)
Todas as medidas do movimento sanitarista (limpeza, água, esgoto)
reduziram muito a mortalidade, na época. Mesmo sem que se compreende-se
a causa da peste bubônica, da lepra e do cólera, essas doenças
desapareceram dos países mais desenvolvidos. (...)
A teoria dos miasmas foi uma das mais importantes e úteis de toda a
história da Medicina. Em muitas ocasiões, levou a importantes cuidados de
higiene e a uma redução da mortalidade.”
81
As medidas apontadas pelo autor tiveram como conseqüência indireta, já que
não era a pretendida, a redução da endemia de lepra e o declínio de outras epidemias
que assolavam a Europa naquele momento. Na Noruega, país onde nasceu Gerhard
Henrik Armauer Hansen
82
, o isolamento foi adotado como medida seletiva e
81
Idem., p. 109/110/111/145.
82
Médico e botânico norueguês (Bergen, 1841 idem. 1912). Em 1874 demostrou pelo simples exame
a fresco, nas chamadas células leprosas de Virchow, encontradas nos nódulos cutâneos apresentados
pelos pacientes, a presença de bastonetes, agentes causais, responsáveis pela infecção. Hansen já havia
verificado a presença do microorganismo em 1872, tendo o mencionado em um informe de 1873 e
apenas o divulgado internacionalmente em 1874. Essa constatação deveria encerrar as exaustivas e
antigas discussões acerca da hereditariedade ou contagiosidade da lepra. No entanto, esta polêmica se
estendeu até 1923, no III Congresso Internacional de Lepra(CIL), ocorrido em Estrasburgo/França. Até
hoje, não se conseguiu cultivar este bacilo “in vitro” o que tem impossibilitado a produção de uma
vacina específica. Hansen era favorável ao isolamento compulsório de todos os doentes em leprosários,
177
facultativa, não se impingindo aos acometidos nenhum dos constrangimentos que se
fizeram pressentes na profilaxia de outros países. Ademais a incidência de lepra na
Noruega já estava se tornando embaraçosa, vergonhosa para aquela nação que
começava a tornar-se internacionalmente conhecida como “país de lepra”
83
. Essa
situação indigna, requeria a adoção de providências que interpelassem o curso da
endemia que se alastrava e levou o governo da Noruega a criar em 1855 os “Comitês
de Saúde” para impedir a continuação daquele indesejável quadro endêmico.
“Uma vez comprovado ser o próprio doente a via da transmissão,
fortaleceu-se a teoria do isolamento; acreditava-se que, se todas as pessoas
já infectadas fossem segregadas, a endemia se extinguira a devido a
ausência do agente causal. Essa postura, defendida por Hansen, daria
origem ao chamado “Modelo Norueguês”, que por muito tempo foi
apresentado como sendo o responsável pelo declínio da endemia de
hanseníase na Noruega.
Entretanto, ao se estudar a história da hanseníase na Noruega,
verifica-se que declínio da endemia foi resultante de um outro tipo de
atuação profilática, baseada na adoção de medidas educativas e na
internação voluntária do doente, ou seja, um modelo diametralmente oposto
ao “Norueguês”.
Em 1855, o governo norueguês já havia instituído os chamados
“Comitês de Saúde”, que foram responsáveis pela implantação de uma
estratégia de combate á hanseníase alicerçada no trabalho educativo. Os
“comitês” possuíam equipes que realizavam visitas domiciliares e que
atuavam como educadores em saúde pública. Toda vez que as equipes
encontravam um portador de hanseníase, realizavam trabalho de
esclarecimento que envolvia o doente e sua família, eram-lhes esclarecidas
as medidas higiênicas a serem tomadas, tais como separação de talheres, de
pratos, de roupas e de camas; lhes era solicitado que, se possível, o doente
tivesse um quarto em separado. Nos casos mais graves, ou naqueles onde as
condições familiares não permitissem a permanecia do doente, eram
oferecidas ‘as comodidades hospitalares com franca liberdade de entrar e
sair’.
O resultado das medidas educativas adotadas na Noruega pode ser
facilmente comprovado através da análise de seus dados epidemiológicos,
que demonstram o acentuado declínio da endemia naquele país, ocorrido a
partir da atuação dos ‘Comitês’. Verifica-se que, até o ano de 1855, quando
da adoção das medidas educativas, surgiam cerca de 200 casos novos por
ano. Trinta anos depois, em 1885, esse número havia baixado para 60, uma
queda de 70% na incidência da doença. Isto ocorria sem que se desse o
medida que incluiu nas conclusões dos dois primeiros CIL, ocorridos respectivamente em
Berlim(1897) e Bergen(1909), ambos organizados, e o primeiro presidido, por ele próprio. Sua defesa
do isolamento lhe valeu muitos inimigos, inclusive em sua terra natal, onde a medida nunca foi
implantada com o rigor que desejava. Cf. MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit. p., 120-123.;
BAKIRTZIEF, Zoica. Op. Cit.; QUEIROZ, Marcos de Souza e PUNTEL, Maria Angélica. Op. Cit.
p.32.
83
Noruega, Brasil, Índia e Japão são países que se destacaram pelos vultuosas somas empregadas com
o objetivo de liquidar com a endemia de lepra que atingiam suas populações.
178
isolamento forçado do doente e mesmo sem que houvesse qualquer
tratamento eficaz.”
84
Conforme pode-se observar o declínio da endemia de lepra na Noruega, em
específico, e na Europa de uma forma geral, foi o resultado de uma série de medidas
que alteraram as “condições de possibilidade” de existência “do quadro leprótico
nacional”
85
. Mesmo ignorando-se as medidas indiretas e “involuntárias” que
contribuíram para a queda da endemia, observa-se naquelas que foram tomadas com
este objetivo explícito, de contê-la e erradicá-la, o quanto se diferenciava da postura
adotada no Brasil. Aqui, o isolamento sempre foi a medida principal, senão a única
durante vários anos efetivamente praticada. Na Noruega o isolamento era apenas uma
opção entre várias. Aqui o leproso sempre foi um indesejável, “reservatório de
bacilos”, lá ele era uma pessoa que não adquiria o status de banido social.
No Brasil, depois de inúmeros debates, a profilaxia da lepra foi finalmente
definida em forma de lei. Trata-se da lei n.º 610 de 1949
86
, que em seus artigos previa
basicamente quatro medidas a serem tomadas com relação a lepra. isolamento
compulsório de todos os acometidos; vigilância e controle de todos os suspeitos;
notificação compulsória de todos os casos encontrados; afastamento dos menores
indenes das fontes de contágio. O isolamento compulsório poderia ser realizado em
estabelecimentos particulares ou oficiais, os asilos-colônias, e em domicílio
87
. A
leitura dessa lei revela um texto “moderado” sem os radicalismos tão presentes nas
cadas de 1920 e 1930, prevê até o isolamento domiciliar e faculta, em alguns casos,
o isolamento compulsório em asilos-colônias dos acometidos mais graves. No
entanto, essa mesma legislação possuía fissuras pelas quais os isolacionistas
84
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.122/123.
85
A Noruega, constituiu um importante núcleo de pesquisas sobre lepra de meados do século XIX até
inicio do século XX. Naquele país o nome lepra foi alterado para: “Spedalskhed, conforme haviam
sugerido Danielssen e Boeck, eminentes cientista noruegueses que realizaram compilação dos
conhecimentos sobre lepra em meados do século XIX. Eles publicaram em 1847 um trabalho
intitulado: “Om Spedalskhed” onde defendiam a teoria da hereditariedade para explicar a causa da
lepra. Este livro foi posteriormente traduzido para o francês, em 1848, com o título: “Traité de la
Spedalskhed ou Éléphantiasis des Grecs”, o que permitiu a divulgação mais ampla da teoria da
hereditariedade. Em norueguês(1847) o trabalho tinha 516 páginas e 24 ilustrações. Em francês(1848)
ele possuía 535 páginas e continha as mesmas ilustrações, só que foram coloridas. Este livro tornou-se
um clássico e orientou toda uma geração de leprólogos até por volta da década de 1910. Para mais
detalhes, ver: BAKIRTZIEF, Zoica. Op. Cit. p.86/120.
86
Lei n.º 610 de 13/01/1949, publicada no Diário Oficial da União(DOU) dia 02/02/1949, Coluna I,
página 1513. Revogada integralmente pela lei n.º5.511 de 15/01/1968.
87
Idem. Cf. Artigo 10.
179
terminavam detendo o poder de decisão final sobre o leproso que dificilmente
conseguia esquivar-se do isolamento leprocomial.
“Artigo 13º. O isolamento domiciliário só será permitido pela autoridade
competente a título precário e no caso de haver inteira segurança sôbre o
cumprimento das medidas sanitárias exigidas.”
88
O isolamento domiciliar deveria ser concedido unicamente mediante
autorização da autoridade sanitária. Apesar de incluído na “profilaxia da lepra no
Brasil” este era raramente concedido.
Quanto à possibilidade das exceções previstas em lei facultar aos acometidos
mais graves a permissão para o isolamento domiciliar, esta não era desvinculada da
autorização da autoridade sanitária. Todos deveriam ser isolados, seja em suas casas,
num quarto separado, ou em asilos-colônias.
“Artigo 7º. É obrigatório o isolamento dos casos contagiantes assim
compreendidos:
a)todos os de lepra lepromatose;
b) todos os não lepromatos os, que, em virtude dos exames clínicos e
de laboratório e a juízo da autoridade sanitária, tornem provável a
hipótese do contágio.
Artigo 8º. É também obrigatório o isolamento dos casos não lepromatosos,
que, pelas condições e hábitos de vida do doente ou pela sua insubmissão às
medidas sanitárias, constituam ameaça, a critério da autoridade sanitárias,
para a saúde da coletividade.”
89
Assim, ainda que algum dos acometidos preenchessem todos os requisitos
necessários para usufruir do isolamento domiciliar, este para ser concedido
permanecia dependente do “critério da autoridade sanitária”, cuja autorização era
penosa de ser conseguida, principalmente quando esta fosse favorável às medidas
isolacionistas. A referida lei de 1949 oferecia ampla margem para isolar todos os
leprosos que surgissem, pois terminava depositando o poder de decisão final nesta
autoridade competente
90
. Mas os poderes dessa autoridade não paravam por aí. Essa
mesma lei ainda dava maior abertura para o isolacionismo no seu artigo nove:
88
Idem., ibidem. Cf. Artigo 13.
89
Idem., ibidem. Cf. Artigos 7 e 8.
90
Idem., ibidem. Cf. Artigo 13.
180
“Artigo 9º. Além dêsses, poderão também ser internados em leprosários, a
juízo da autoridade sanitária , quaisquer casos quando os doentes não
puderem obter os recursos necessários à própria subsistência, ou forem
portadores de estigmas impressionantes de lepra.”
91
Não se escapava facilmente do isolamento no Brasil, seja pelo estigma que
empurrava para os asilos-colônias os leprosos, seja pela legislação que retirava do
acometido quase todas as suas prerrogativas e lhe reservava pequena margem para
contornar a sua possível exclusão. A saída mais eficaz, principalmente para os mais
pobres, era ocultar-se, furtar-se da visão pública. Evitar que outros tomassem
conhecimento de sua lepra. Esquivar-se da notificação compulsória. Fugir da
exclusão social.
No Brasil, o reconhecimento da ineficácia do isolamento demorou a ser
conhecida e reconhecida. Talvez o reconhecimento tenha sido mais demorado dado
aos interesses em jogo envolvidos, principalmente na rede institucional montada
desde a década de 1930 para prover o “combate da Lepra” no país.
Nossas cabeças eram feitas pelo principio isolacionista, não
raciocinávamos: apenas seguíamos o que o chefe mandava(referindo-se a
Salles Gomes) e achávamos todo resto heresia. José Maria Gomes, Alice
Tibiriçá e outros, eram inimigos do nosso governo, da nossa orientação...Só
depois é que fomos amadurecendo..”
92
“...Eu evolui lentamente, não comecei assim, mas reagi. Achava duvidoso o
resultado do isolamento, mas me comportava apaticamente. Só depois,
estudando melhor, é que vi que aquilo não tinha fundamento. Mas passei
muito tempo... Naquele momento eu era do grupo principal, da oficialidade
de são Paulo, fiel ao nosso chefe.”
93
Em São Paulo, a confiança no isolamento era tão grande que Salles Gomes
Júnior já havia datado o fim da endemia paulista de lepra.
“Os médicos que trabalhavam no DPL, acreditavam realmente nas idéias e
nas diretrizes pregadas pelo Serviço Oficial, que prometia acabar com a
hanseníase em são Paulo no período de uma geração. Salles Gomes
prometia ‘varrer a lepra’ do Estado de são Paulo em apenas vinte anos.
Essa promessa se refletia, concretamente, na sala da direção do DPL, onde
um quadro de grandes proporções ilustrava o histórico da endemia e, a
91
Idem., ibidem.
92
Depoimento de Abrahão Rotberg concedido à Yara Nogueira Monteiro em 20/06/1992.Apud:
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.173. O grifo é do original.
93
Depoimento de Abrahão Rotberg concedido à Yara Nogueira Monteiro em 20/06/1992.Apud:
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.174.
181
partir de dados epidemiológicos projetados, apresentava o desenho de uma
curva que entrava em declínio na década de 40 e que apontava para a
extinção da doença em meados da década de 50.”
94
Quando as críticas começaram a avolumarem-se e a despencarem sobre os
serviços oficiais responsáveis pela profilaxia da lepra em âmbito nacional e estadual,
o embaraço desses foi geral. Enquanto estes argumentavam que o raciocínio
isolacionista tinha fundamentação e o problema residia no fato de não se ter
alcançado com o isolamento todos os acometidos, os críticos apresentavam
estatísticas do crescimento da endemia no país e dados sobre os altos custos
empregados pelos governos estaduais e federal, sem resultados, desde a década de
1930 com a lepra.
“A lepra, no Brasil, apresenta características de grave endemicidade, sem
que hajam focos, geográfica ou socialmente, bem delimitados. A população
leprosa distribue-se por todo o território nacional, com pequenas variantes
entre uma ou outra região fisiográfica.
A situação geográfica do país, em faixa de condições climáticas
favoráveis à disseminação da enfermidade, e o baixo padrão de vida da sua
população, são fatores que, entre outros, concorrem para agravar a
endemia. Consequentemente avulta o encargo de assistir milhares de
portadores de uma moléstia estigmatisante e inutilizadora do indivíduo na
ocasião em que êle mais poderia produzir para si e para a coletividade.
(...)
A Seção de Epidemiologia do Serviço Nacional de Lepra,
analizando os dados estatístico-epidemiológicos referentes ao decênio 1946-
1955, apurou, dentro das precariedades bem conhecidas quanto ás
respectivas coletas, o seguinte: nêsse período foram registrados, em todo o
país, 48.718 doentes novos, o que representa uma incidência média anual em
tôrno de 9 casos por 100.000 habitantes.(...). Êsse coeficiente variou de
Estado para Estado como se pode verificar (...), sendo o mais elevado o
Território do Acre (56,45 p/100.000 habs.) daí decrescendo até atingir o
valor de 0,32 para o Estado de Alagoas.
(...)
Quanto à distribuição das formas clínicas que apresentava os
doentes na ocasião do fichamento, constatou-se, que no decênio em
tela(1946-1955), predominou, sensivelmente, a forma lepromatosa, tanto no
cômputo geral de tôdas as Unidades Federadas como em cada uma de per
si(...), numa evidente demonstração de diagnóstico tardio.
(...)
O aumento da população leprosa de quase 5.000 doentes por ano,
aliado à baixa letalidade da moléstia, faz crescer , de ano para ano, o
coeficiente de prevalência, que de 0,96 em 1946 atingiu o valor de 1,47 por
mil habitantes em 31 de dezembro de 1956(...).
(...)
94
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit. p.,173.
182
Tôdas essas observações, como é óbvio deduzir, levam-nos a prever
maior expansão da lepra nos próximos anos, caso não ocorram fatores
novos que interrompam, com segurança, a cadeia de transmissão da
enfermidade.”(sic)
95
“A lepra sendo uma doença contagiosa de evolução crônica, tem sido, desde
a mais alta antigüidade, combatida por meio do isolamento dos doentes, a
mingua de outros recursos capazes de uma eficiente ação.
A segregação obrigatória dos doentes de lepra era executada de
modo vexatório e desumano, mesmo quando ainda não se conhecia o agente
causador da doença. No Levítico, terceiro livro da Bíblia, encontram-se
preceitos, entre os quais o que se refere ao isolamento do leproso.(...)
Com o correr dos tempos e melhor conhecimento da doença em seus
vários aspecto, o isolamento obrigatório foi sendo humanizado e incidindo
sómente sôbre os casos considerados contagiantes.
Procurou-se também a adoção do isolamento selecionado ou
mitigado, dada a impossibilidade de internamento de todos os casos por
falta de leitos.
Durante muitos anos foi o isolamento praticado, conforme solução e
recomendações de numerosos congressos internacionais de leprologia,
sendo entretanto prescritas outras medidas d grande importância, na
profilaxia do mal de Hansen.
Usado como a mais importante arma de combate à lepra, não
demonstrou em tão largo período de sua aplicação ser realmente um meio
capaz de extinguir a doença em curto espaço de tempo como se verificou,
por exemplo, na Noruega: com cêrca de 3.000 doentes de lepra levou 70
anos para eliminar o mal.
O isolamento obrigatório não apresentou até hoje resultados
uniformes como medida profilática e os leprólogo dêsde muito já o vinham
considerando falho como arma principal na campanha contra a lepra.
Alguns chegaram mesmo a proclamar a sua ineficácia e desumanidade.
Chaussinand, por exemplo, diz que a luta antileprosa, tal como está
regulamentada na maior parte dos países leprógenos, é não só ilógica e
ineficaz, o que é mais grave, perigosa.
(...)
O receio da segregação obrigatória incita os doentes a ocultar sua
condição tanto tempo quanto posam, e isto precisamente durante o período
em que a infecção é mais curável. Em conseqüência, só o isolamento em
instituições não tem podido dar os resultados que dêle se esperava e não se
mostrou um meio eficiente de luta contra a doença, mesmo quando era
praticado com rigor e em grande escala.”
96
95
FONTE, Joir. Informe sôbre a lepra no Brasil. In: Seminário Pan-Americano sôbre profilaxia da
lepra. Belo Horizonte, Serviço Nacional de Lepra, 30 de junho a 7 de julho de 1958,pp. 03-12.
(pp.03/04/05). Este evento foi organizado e idealizado por Orestes Diniz na ocasião em que dirigia o
Serviço Nacional de Lepra. Seu objetivo era reunir todos anti-isolacionistas e divulgar as experiências
novas que vinham sendo realizadas. A colaboração da Organização Pan-americana de Saúde foi
solicitada para auxiliar na tarefa de convencer os resistentes leprólogos brasileiros da inutilidade do
uso do isolamento na profilaxia da lepra.
96
AGRICOLA, Ernani. O isolamento na profilaxia da lepra. In: Seminário Pan-Americano sôbre
profilaxia da lepra. Belo Horizonte, Serviço Nacional de Lepra, 30 de junho a 7 de julho de 1958,pp.
13-20. (pp.13/15).
183
A primeira estratégia utilizada foi o contra-discurso da ausência da
aplicabilidade severa, rigorosa e plena do isolamento, daí sua ineficácia. No entanto,
o governo esclarecia que os custos financeiros de um eventual isolamento de todos
os acometidos eram impagáveis. Depois veio o discurso de que o isolamento seria
uma medida complementar, mas ainda necessária, pois muitos doentes não possuíam
condições de conduzirem com eficiência, disciplina e o rigor necessário o tratamento
em seus domicílios, condição imprescindível para garantir a segurança das
coletividades. Portanto fazia-se necessário o isolamento seletivo, afinal havia ainda
aqueles leprosos que procuravam voluntariamente os leprosários para se internar.
Argumentavam, que era preciso aboli-lo, porém gradualmente, o que terminou
acontecendo no Brasil e se estendendo até 1976.
“Entretanto ainda há vozes discordantes quanto à questão do isolamento. Na
V Reunião dos Leprólogos Brasileiros(1957), em Cambuquira(MG), o Dr.
Bechelli assim se manifestou: ‘Ouvi que no plano em execução os doentes
lepromatosos, contagiantes, não são isolados, continuando a viver junto aos
seus e desempenhando suas funções habituais. Não julgamos acertada essa
medida, a menos, é obvio, que não existam locais para efetuar o isolamento.
Penso que este ainda deva ser realizado, de modo seletivo, conforme os
leprólogos vem propugnando e como o ratificam a ‘declaração de princípios
dos leprólogos brasileiros’.”
97
Isolamento
A segregação do reservatório é medida profilática de valor limitado,
no controle das doenças transmissíveis. Na profilaxia da lepra
(hanseníase)não tem indicação para os doentes não contagiantes
(indeterminados e tuberculóides) e em relação aos casos contagiantes
(lepromatosos) [lepromatosos] e dimorfos) ocasiona as seguintes
conseqüências:
a)não impede a ocorrência de novos casos, porque, de regra, até
ser diagnosticado, o doentes lepromatoso (virchowiano) ou dimorfo teria
tido oportunidade de infectar pessoas de seu convívio mais intimo. Por ser
longo o período de incubação da lepra ( hanseníase), em prazos variáveis,
mesmo após o isolamento do doente em hospital especializado, poderão
surgir novos casos entre seus conviventes, infectados anteriormente;
b) muito mais oneroso que o tratamento ambulatorial;
c) dificulta a vigilância dos comunicantes porque a ausência do
doente ( fonte de contágio) aparenta a seus familiares a idéia
falsa da extinção do foco;
97
BECHELLI, Luiz Mariano. Apud: AGRICOLA, Ernani. O Isolamento na Profilaxia da Lepra. In:
Seminário Pan-Americano sôbre profilaxia da lepra. Belo Horizonte, Serviço Nacional de Lepra,
30 de junho a 7 de julho de 1958,pp. 13-20.(p.18).
184
d) agrava a estigmatização;
e) leva ao desajuste social.
No início, o hospital especializado foi usado para o isolamento compulsório
de doentes, considerado na época, uma medida profilática de grande
eficácia. O hospital especializado era, então , um órgão fundamental da
profilaxia da lepra(hanseníase).
Com a evolução das idéias sobre a profilaxia da doença, o
‘isolamento compulsório’ foi substituído pela ‘hospitalização seletiva’,
finalidades atual do hospital especializado.”
98
As críticas contrárias ao isolamento foram ficando cada vez mais afiadas e
contundentes no decorrer da década de 1960. Acusavam a tríade isolacionista de
ineficiente, estigmatizadora e onerosa. Deste modo, pode-se elencar cinco
argumentos, apontados na época, que silenciaram os isolacionistas. Esses, acuados,
tentaram reativar o discurso de proteção da coletividade através da profilaxia direta,
isto é, seqüestração do “repositório de bacilos”, dos leprosos. São eles:
a)Crescimento da endemia de lepra no Brasil
b)Ocultamento dos leprosos
c)Acirramento do estigma
d)Elevados custos financeiros
e)Existência de iniciativas paralelas, sem o uso do isolamento,
com resultados melhores
O ocultamento refere-se a esquiva dos leprosos ao “tratamento” da época, ou
seja, do isolamento. A tríade isolacionista, ou tripé profilático, era uma estrutura
institucional altamente estigmatizante, principalmente, ao evidenciar de forma tão
aviltante o destino ao qual devia se submeter os acometidos de lepra. “ Como é triste
o destino que praguejo”, poetizava o pai internado no asilo-colônia Belisario Penna,
no Amazonas, ao ter o filho arrancado e levado para viver à salvo da lepra num
preventório em Manaus.
99
No entanto, o último item, a letra “e”, refere-se as medidas paralelas
engendradas na época que obtiveram êxito no “combate a lepra” sem utilizar da
98
SILVEIRA, Ademyr Rodrigues da. Papel dos Hospitais Especializados no Controle da Hanseníase.
In: Boletim da Divisão Nacional de Lepra. Vol. XXXII, n.º2,3, e 4. Rio de Janeiro , 1973, pp.37-
42(p.39). Os parênteses e colchetes são do original.
99
Ver neste capítulo o item 3.1: os preventórios.
185
prática do isolamento. Trata-se das campanhas que foram realizadas no Brasil. Essas
eram estratégias de intervenção na área de saúde que não prescindem da
conscientização da sociedade e que, ao contrário da rede institucional que aguardava
ser procurada, ou acionada, para prover atendimento, sai à campo em busca dos
acometidos e necessita da colaboração ativa da população em geral.
No Brasil ocorreram quatro campanhas em âmbito nacional, sendo duas
durante a época do isolamento e outras duas mais recentemente, fora do contexto
daqueles idos anos. Foram elas:
As Campanhas da Solidariedade: Termo introduzido por Alice Tibiriçá no
final da década de 1920. Ocorreram várias campanhas da solidariedade” em
regiões isoladas, ou mesmo simultaneamente. Inúmeras foram realizadas na década
de 1930 em diversas partes do país, sempre sob fiscalização da FSAL e DCL. Estas
iniciativas eram sempre coordenadas pelas Sociedades de Assistência aos Lázaros e
Defesa Contra a Lepra/SAL e DCL locais e tinham como objetivo arrecadar recursos
financeiros para construção ou manutenção dos preventórios ou providenciar
melhorias nos asilos-colônias. Quando a presidência da Federação foi entregue à
Eunice Weaver esta forma de atuação continuou sendo utilizada, sempre com a maior
proximidade possível dos governos municipais e estaduais. Este tipo de campanha,
no entanto, não se liga diretamente a nenhuma questão da área de saúde, apenas
indiretamente, uma vez que objetivava expandir e consolidar a rede institucional de
atenção a lepra no Brasil, principalmente, a preventorial. O preceito primordial que
orientava estas práticas era a perspectiva da caridade e da filantropia que envolvia a
lepra desde o início do século. Essas ações encontravam-se coerentemente alicerçadas
na intenção de auxiliar na tarefa profilática de extinguir a endemia no país através do
isolamento, auxiliando através do “consolo dos lázaros”, da conscientização popular
e da “preservação da criança contra o mal de hansen”.
Campanha de Luta Contra a Lepra de 1956: Esta campanha foi idealizada
por Orestes Diniz e previa a redução da endemia nos diversos focos distribuídos pelo
território nacional através da descentralização do programa de controle e
atendimento as unidades sanitárias não especializadas do país. O objetivo era
favorecer o diagnóstico precoce ao disponibilizar atendimento mais próximo de
186
todos os acometidos. Outra meta era realizar uma cobertura vacinal com o BCG
100
em
todos os comunicantes e procurar estendê-la a todos os outros conviventes
objetivando com isso desacelerar a cadeia de transmissão da lepra. Apesar de
realizada à sombra do isolamento, prática que repelia muitos acometidos, numa época
em que seus partidários além de numerosos eram politicamente influentes, os
resultados obtidos foram razoáveis
101
e levaram os leprologistas da época a
promoverem inúmeras reformas na rede dispensarial, que “em tese” deveria encontrar
e localizar os acometidos ocultos na população em geral. Esta iniciativa evidenciou a
patente necessidade de desmonopolização dos cuidados da lepra no Brasil. Orestes
Diniz a definia da seguinte forma:
“A campanha adotou como principio, alcançar, na escala mais elevada
possível, o diagnóstico precoce da moléstia, o tratamento profilático de
todos os casos infectantes e a aplicação de recursos capazes de elevar a
resistência das pessoas expostas ao contagio, sem descurar, contudo, dos
demais aspectos do problema. Em sua execução, baseia-se na doutrina de
que o contrôle da lepra, como todo problema de saúde pública, deve ficar a
cargo das organizações médico-sanitárias não especializadas, de âmbito
local, em obediência aos mais modernos princípios de administração e
organização sanitárias.
O sistema representa uma feliz associação de esforços entre o
leprologista e o médico sanitarista ou clínico geral. Aquêle, como elemento
orientador e coordenador do trabalho da equipe, exerce ao mesmo tempo
funções de alta importância epidemiológica e profilática. Os últimos, isto é,
os médicos não especializados, realizam as tarefas simples e rotineiras de
tratamento dos doentes e vigilância sanitária dos focos.
Êsse conjunto, formado de um leprologista e determinado número
de unidades médicas, selecionadas segundo a importância epidemiológica
das áreas onde se acham sediadas, constitui o que denominamos grupo de
trabalho (G.T.).
Uma unidade médica (U.M.) pode ser o dermatologista de um
Centro de saúde, de um ambulatório ou de um hospital geral; o sanitarista
de um pôsto de higiene; os médicos de institutos de previdência ou órgãos
para-estatais, de corporações civis ou militares encarregados da assistência
médico-sanitárias aos seus elementos fixos ou recrutados; o médico clínico
em seu consultório particular; enfim, qualquer elemento bastante
credenciado e dedicado que se proponha a colaborar na campanha.
Essas unidades médicas, devidamente orientadas e preparadas, têm
a incumbência de tratar os casos de lepra conhecidos e residentes nos locais
100
Abreviatura de Bacilo de Calmette e Guérin. Vacina utilizada para a prevenção da tuberculose.
Albert Calmette e Camile Guérin a pesquisaram de 1906 a 1923sendo em 1928 a vacina confirmada
em Paris. Apesar de enfrentar acirradas críticas e sofrer inúmeras tentativas de descrédito logo
confirmou-se a eficiência da vacina. Dado a proximidade do agente etiológico da tuberculose e da
hanseníase esta vacina oferece uma resistência cruzada contra esta última de aproximadamente 60%.
101
Cf. MOREIRA, Tadiana Maria Alves. As Campanhas de Hanseníase no Brasil. (Mestrado em
Saúde Pública). ENSP/FOC/MS, 1997(pp.73-78).
187
de sue âmbito de ação ou aqueles que funcionalmente lhes competem
assistir: reexaminar periodicamente os respectivos comunicantes;
encaminhar ao leprologista, encarregado grupo, os casos que julgarem
duvidosos ou difíceis de diagnosticar. Instruindo-se elas próprias a respeito
dos aspectos clínicos e sanitários da lepra, poderão, ainda mais, realizar a
educação sanitárias dos doentes e da população em geral.”
102
Nesta campanha de 1956
103
foi difícil conciliar a questão da perspectiva de
Saúde Pública com a prática do isolamento que, seguramente, comprometeu os
resultados finais.
De qualquer forma, esta iniciativa passou a ser utilizada pelos anti-
isolacionistas que estabeleciam comparações entre os números de atendimentos
realizados pelo “tripé profilático”, asilos-colônias, preventórios e dispensários, a
tríade que exercia o monopólio dos cuidados da lepra, e as campanhas. Estas, apesar
da curta duração e de serem efetuadas por não especialistas na área, obtinham mais
êxito, encontravam mais casos precoces e realizavam melhor a vigilância dos
comunicantes, a despeito de todas as resistências enfrentadas e ausência de uma
efetiva colaboração de boa parte da rede de saúde geral que, naquela época,
enxergava a lepra como assunto específico de uma grande rede institucionalizada,
complexa, consolidada.
Ocorreram no Brasil mais duas campanhas extremamente interessantes, ainda
que fora do período abordado por este estudo. Portanto serão apenas citadas, uma vez
que se desenvolveram numa época posterior ao isolamento. São elas:
Campanha de Divulgação de Massa: Realizada em 1988, durante o governo
José Sarney, tinha como divisa a seguinte frase: “Hanseníase, vamos acabar com
esta mancha no Brasil”. O objetivo era levar a própria população a identificar os
sintomas da doença e procurar voluntariamente os serviços de saúde.. Foram
divulgados cartazes, folhetos, cartilhas, propagandas em rádio e na televisão.
Argumentava-se que o Brasil era um dos cinco países mais endêmicos do globo e
102
DINIZ, Orestes. Apud: AGRICOLA, Ernani. A Lepra no Brasil: resumo histórico. In: Manual de
Leprologia. Rio de Janeiro, MS/DNS/SNL, 1960, pp-11-29(p.22).
103
Foi realizado no Estado do Rio de Janeiro um projeto piloto em 1954 cuja experiência norteou a
campanha de 1956 em âmbito nacional. Em 1959 esta descentralização implantada pela “Moderna
Campanha Nacional Contra a Lepra” foi regulamentada pela lei n.º 3.542 de 11/02/1959, publicada no
DOU dia 11/02/1959, coluna I, p.002513. Em 1968 ela foi modificada pela lei n.º 5511 de 16/10/1968.
Encontra-se em vigor.
188
ocupava o primeiro na América Latina As emissoras de rádio receberam discos de
vinil com mensagens para serem veiculadas no decorrer de suas programações.
Porém, nada superou o alcance das vinhetas veiculadas pela televisão, entre
elas, a que ficou mais celebre
104
foi a dona-de-casa que no cotidiano das suas tarefas
domésticas, ao preparar a refeição da família não percebe a chama que provoca uma
queimadura acidental no braço. A imagem chocava, sintoma da insensibilidade
localizada, mancha dormente no braço sobre o fogo. Esta vinheta ficou gravada na
memória dos brasileiros que até hoje lembram-se daquelas imagens penetrando nos
lares no horário nobre da TV.
Esta campanha teve bons resultados apesar da curta duração de três meses
105
.
Contudo, a inexpressiva participação da Rede Globo
106
, maior canal brasileiro de
televisão desde a década de 1970, restringiu o alcance da mensagem que poderia ter
sido levada a um maior contigente de pessoas no país.
Esta campanha é até hoje alvo de inúmeros estudos, sendo um dos aspectos
negativos apontados a escolha da divisa; “Hanseníase, vamos acabar com esta
mancha no Brasil”. Esta frase ainda remonta a uma certa acepção estigmatizadora
pelo uso da expressão “mancha”, que em sentido figurado significa mácula, sujeira,
descrédito na reputação. Escolha infeliz deste termo ou da frase, método acertado e
válido como estratégia de intervenção na área da saúde.
Campanha de Eliminação da Hanseníase(LEC
107
): Proposta pela
Organização Mundial de Saúde como estratégia para a eliminação da hanseníase
como problema de saúde. Emprega o conceito de campanha como uma ação pontual,
contando como o apoio de recursos humanos e institucionais de outras áreas e da
comunidade. O objetivo específico era eliminar as fontes de infecção por meio do
diagnóstico e tratamento dos casos multibacilares, transmissores da doença e
mantenedores das fonte de infecção, isto é, estancar a cadeia de transmissão. Para isso
objetivava mobilizar a comunidade na participação do programa de controle da
104
Foram elaborados pela Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária e a Imprensa Oficial no ano que
antecedeu ao lançamento da Campanha de 1988, todo o material de divulgação utilizado, composto de
três vinhetas para a televisão, um disco para as emissoras de rádio, um milhão e trezentos mil cartazes.
Em 1989 foram preparados mais duas vinhetas para a televisão adotando-se a seguinte divisa: “Quanto
mais cedo a procura mais cedo é a cura”. Cf. MOREIRA, Tadiana Maria Alves. Op. Cit., p.84.
105
Idem., p.86.
106
Idem., ibidem., p.121.
189
hanseníase nas atividades básicas de saúde. Esta ocorreu em 1996 e teve resultados
bastante variáveis. Esta também utilizou a estratégia de divulgação de sintomas da
doença em canais de televisão e rádio.
Contudo, a Campanha de Luta Contra a Lepra de 1956, mesmo com os
resultados aquém dos esperados e pretendidos, instrumentalizou o discurso anti-
isolacionista que recebeu mais munição a partir desta iniciativa. Na década de 1970
este modelo de descentralização foi adotado nacionalmente de forma permanente e
não apenas durante a realização de campanhas.
Outro acontecimento que começou a pesar sobre os isolacionistas foi a
postura internacional expressa através dos Congressos Internacionais de Hanseníase
(CIL), notadamente, o de Madri de 1953, que sugeria o isolamento seletivo, e o de
Tóquio de 1958, que condenava o isolamento, inclusive o seletivo, e aplicação de leis
de exceção como medidas anacrônicas.
No entanto, a lei n.º 610 de 1949, que instituía o isolamento compulsório dos
leprosos no Brasil, foi “revogada” em 1962, pelo decreto n.º 968
108
, assinado pelo
primeiro-ministro da época, Tancredo Neves, durante a breve experiência do
parlamentarismo vivida naqueles tumultuados anos. Este, no seu artigo 5.º § 1. e no
artigo 8.º concediam , ainda em regime de exceção, a possibilidade de tratamento
fora do isolamento. O internamento em asilos-colônias foi tornado seletivo a juízo da
autoridade sanitária. Este decreto não se diferencia substancialmente da lei n.º 610 de
1949, no entanto, suas fissuras representam uma demanda social ativa e consolidada
já existente na época que clamava pela possibilidade de uma profilaxia da lepra livre
do isolamento. Curiosamente, este mesmo decreto, preservava a prática preventorial,
nos seus artigos 9º e 10º, sendo que no artigo 1º, inciso II, diz o seguinte:
“II Através de medias gerais preventivas de caráter sanitário ou extra-
sanitário executadas pela administração publica, visando a elevação do
nível de saúde das populações Parágrafo único No combate à endemia
leprótica será, sempre que possível, evitada aplicação de medidas que
impliquem na quebra da unidade familiar, no desajustamento ocupacional e
na criação de outros problemas sociais.
109
107
Em inglês, no original: Leprosy Elimination Campaing, LEC.
108
Decreto n.º 968 de 07/05/1962. Publicado no DOU dia 09/05/1962, Seção I, Parte I, p.5113-5114.
Foi revogado em 1976 pelo decreto n.º 77.513 de 29/04/1976.
109
Decreto nº968 de 07/05/1962. Artigo 1.º, inciso II. Grifo nosso.
190
Juridicamente este decreto não poderia “revogar” a lei de 1949 que, segundo
a hierarquia legislativa, necessitava de uma outra lei para revogá-la
110
. Embora, este
decreto ainda fosse semelhante à lei de 1949 ele fornecia algumas brechas que foram
bastante utilizadas na época. Sobre o decreto 968, “do Tancredo”, de 1962, Abrahão
Rotberg presta este interessante relato:
“Era preciso que o congresso votasse uma lei revogando aquela(refere-se a
lei n.º 610 de 13/01/1949). E quem é que faria isso? Para convencer
deputados e senadores que deveriam liberar o doente, com esse estigma que
havia, com todas as superstições existentes , era coisa humanamente
impossível. O Serviço Nacional de Lepra fez o impossível, mas conseguiu só
alguns votos. Passou o governo do Jânio, a renúncia, o Jango (...) e o
Parlamentarismo. Como primeiro Ministro outro mineiro, o Tancredo Neves
(...) Este, muito inteligente, viu tudo aquilo e fez uma nova ‘norma’ para a
prevenção da lepra, que naquela ocasião tomou o numero 968 de 1962,que
liberou o doente. Acabou o isolamento.”
111
No entanto, devido a essas particularidades, decreto que não revoga lei, nem
todos utilizavam as brechas oferecidas. Foi o que ocorreu no Estado de São Paulo que
permaneceu isolando todos os acometidos alcançados pelos serviços oficiais até 1967.
“O Estado de São Paulo simplesmente não ouvia o Serviço federal, ponto de
vista da legislação. Não atendeu à tal norma 968 e continuava isolando a
todo o vapor, violentamente. Nem o isolamento seletivo era observado. O
diretor (...) do Serviço fazia o que queria (...). O decreto normativo 968 do
Tancredo foi aplicado no Brasil todo, menos em são Paulo, que não tomava
conhecimento. Ernani Agricola vinha aqui em São Paulo, sondava, falava,
(...) ninguém dava bola para ele. Eles não conseguiam fazer com que São
Paulo obedecesse.”
112
Em 1976, foi a vez deste decreto 968
113
ser revogado, sendo a matéria,
naquele momento, já intitulada de “política de controle da hanseníase” e
regulamentada pela portaria n.º 165/BSB de 14/05/1976
114
. Naquela ocasião a lei n.º
610 de 1949 já encontrava-se revogada. Com esta nova legislação o isolamento
110
A lei de 1949, n.º610, foi revogada em 1968 pela lei n.º 5.511.
111
Depoimento de Abrahão Rotberg concedido à Yara Nogueira Monteiro em 18/05/1992.Apud:
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.415.
112
Idem., p.415.
113
Revogado pelo decreto n.º 77513 de 29/07/1976.
114
Portaria n.º 165/BSB de 14/05/1976. (Estabelece Política de Controle da hanseníase ). Publicada no
DOU dia 11/06/1976, Seção I, página 8301. Revogada integralmente pela Portaria n.º 498 de
09/10/1987.
191
seletivo foi abandonado e todo o atendimento aos acometidos passou a ser
ambulatorial.
Uma das novidades introduzida pela década de 1960 foi a modificação do
nome de lepra para hanseníase. Particularidade brasileira recentemente adotada em
Cabo Verde. Essa mudança foi uma tentativa de esquivar os acometidos do estigma
da lepra.
Mas, a abolição do isolamento compulsório em 1962 e o abandono do
isolamento como medida profilática em 1976 foram medidas que incidiram sobre os
novos casos surgidos depois destas datas. Os antigos internos dos asilos-colônias não
quiseram e não podiam deixar o espaço asilar no qual foram retidos durante vários
anos.
Não havia, para a maioria, a possibilidade de vida fora daquelas instituições,
as opções no exterior inexistia para uma boa parte dos antigos internos. Não tinham
famílias para as quais pudessem retornar. Foi preciso arquitetar um processo de
liberalização e abertura destas instituições, sem expulsar as pessoas que para ali
foram removidas em nome da “proteção dos sãos”. O processo de abertura dos
asilos-colônias, instituições nas quais concretizaram-se à prática do isolamento
compulsório dos leprosos no Brasil, têm-se constituído num processo lento, cheio de
retrocessos e surpresas, onde faz-se necessário e fundamental respeitar aqueles que
tiveram suas vidas de tal forma alterada que não conseguem mais ajustar-se a uma
socialização fora dos muros daquela instituição.
3.3 A indústria da lepra
A partir da década de 1930 ficou acertado que o esforço de “combate a lepra”
no Brasil seria realizado através da constituição de uma rede institucional tríplice e
exclusiva. O leproso era objeto de intervenção de uma rede específica não
constituindo alvo de todos os profissionais de saúde, mas apenas daqueles que
labutavam nas instituições desta tríade, o famoso “tripé profilático”. O atendimento
era altamente verticalizado e disponível apenas, por força de lei inclusive, nesta rede
institucional que constituiu um conjunto à parte, diferenciado com relação aos outros
192
mecanismos instituídos para cuidar dos demais agravos a saúde que afligiam a
população brasileira. Havia a monopolização dos cuidados da lepra.
A institucionalização do isolamento compulsório dos leprosos no país foi
viabilizada pela constituição desta rede institucional anteriormente citada: tríade
isolacionista, asilos-colônias preventórios - dispensários, que integrados
representavam o esforço sinergético de deter a endemia através da profilaxia direta,
ou seja, do seqüestro dos indivíduos acometidos em locais onde não pudessem dar
continuidade ao contágio dos “sãos”, preservando a coletividade de um dos males
mais antigos da humanidade.
Tomando-se como referência o texto de Oswaldo Cruz de 1913, onde o
isolamento era colocado como prática imprescindível para o sucesso do combate a
lepra no Brasil, o que se fez no pós-1930 encontra-se dentro da coerência disponível
na época, a profilaxia tratava da proteção dos “sãos”, o imperativo indispensável do
qual falava Alice Tibiriçá
115
.
“É uma idéa a estudar que poderá ser modificada , melhorada e mesmo
alterada, desde que o seu susbstractum ‘o isolamento dos leprosos em
colonias’ permaneça de pé.”(sic)
116
Apesar de todas as verbas investidas e de todo o dinheiro gasto o anunciado
sucesso dessa medida logo frustrou-se, requerendo novo posicionamento e novas
medidas perante a endemia de lepra que permanecia crescente no país.
Todavia, no entorno dessas práticas discursivas e não-discursivas que
ensejaram o isolamento consolidou-se um conjunto de instituições criadas para
efetivá-lo que terminaram delimitando seu próprio discurso, não sensibilizando-se
perante as novas constatações que foram sendo realizadas e que, entre outras
implicações, dispensavam este procedimento tão cruel para com os acometidos que
tinham suas vidas completamente alteradas depois de um diagnóstico de lepra: a
segregação.
115
TIBIRIÇÁ, Alice. TIBIRIÇÁ, Alice. Como eu vejo o problema da lepra: e como me vêem os que
o querem “manter”. São Paulo, Editado pela Sociedade de Assistência aos Lazaros e Defesa Contra a
Lepra, 1934( p.02).
116
CRUZ, Oswaldo. Uma questão de Hygiene Social. In: “O Imparcial”(Jornal carioca/imprensa
escrita), n.º211, 03/07/1913. Apud: SOUZA-ARAUJO, Heraclides-Cesar. História da Lepra no
Brasil: período republicano. Rio de janeiro, Imprensa Nacional, 1956(p.117/118).
193
No Brasil, o fechamento em torno de si, a estagnação interna da área
comumente denominada de leprologia ou hansenologia, em torno de uma das
correntes então existentes, foi bastante expressiva e pode ser percebido no
descompasso entre as medidas nacionais e as novas sugestões dos Congressos
Internacionais de Hanseníase(CIL) e outros eventos, que logo cedo, início da década
de 1950, trataram de contra-indicar essa prática isolacionista, nela percebendo um
meio eficaz de repelir os acometidos dos tratamentos disponíveis da época.
Os leprólogos brasileiros insistiam que o isolamento era uma medida segura e
eficaz . Para estes, deixar o leproso em sua casa, em seus afazeres habituais, era uma
atitude desacertada e perigosa. Fonte de contágio que circula e reprojeta o mal.
Conforme Foucault, essa proposição, a da abolição do isolamento, era “verdadeira”,
o que não significava, entretanto, estar “no verdadeiro” para a leprologia brasílica.
“Muitas vezes se perguntou como os botânicos ou os biólogos do século XIX
puderam não ver que o que Mendel dizia era verdade. Acontece que Mendel
falava de objetos, empregava métodos, situava-se num horizonte teórico
estranhos à biologia de sua época. Sem dúvida Naudin, antes dele,
sustentara a tese de que os traços hereditários eram descontínuos;
entretanto, embora esse princípio fosse novo ou estranho, podia fazer parte
ao menos a título de enigma do discurso biológico absolutamente. Mendel,
entretanto, constitui o traço hereditário como objeto biológico
absolutamente novo, graças a uma filtragem que jamais havia sido utilizada
até então: ele o destaca da espécie e também do sexo que o transmite; e o
domínio onde o observa é a serie indefinidamente aberta das gerações na
qual o traço hereditário aparece segundo regularidades estatísticas. Novo
objeto que pede novos instrumentos conceituais e novos fundamentos
teóricos, Mendel dizia a verdade, mas não estava ‘no verdadeiro’ do
discurso biológico de sua época; não era segundo tais regras que se
constituíam objetos e conceitos biológicos; foi preciso toda uma mudança de
escala, o desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia para
que Mendel entrasse ‘no verdadeiro’ e suas proposições aparecessem, então,
(em boa parte) exatas. Mendel era um monstro verdadeiro, o que fazia com
que a ciência não pudesse falar nele; enquanto Scheiden, por exemplo, uns
trinta anos antes, negando, em pleno século XIX, a sexualidade vegetal, mas
conforme as regras do discurso biológico, não formulava senão um erro
disciplinado.
É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma
exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão
obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em
cada um de nossos discursos.”
117
117
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 7.ºedição, 2001(p.34/35).
194
Observa-se que mesmo evidenciando-se o efeito colateral desastroso do
isolamento, à saber; o afastamento dos acometidos que permaneceriam ocultos
evitando a tragédia de uma notificação compulsória e da posterior reclusão num asilo-
colônia, o medo social que envolvia a lepra aliada às conveniências daqueles que se
encontravam alojados dentro da rede institucional constituída para cuidar desse mal,
não conseguiram “enxergar” o dano de suas práticas, pois como diria Foucault, mais
do que ser “verdadeira” era preciso que as proposições internacionais, anacronismo
do isolacionismo, estivessem “no verdadeiro” para a leprologia brasileira, não
contrariando discursos consolidados e predominantes no cenário nacional.
Tornou-se lugar comum na década de 1950 argumentar que o tratamento
sulfonoterápico prolongava-se por vários anos, daí a necessidade do isolamento, pois
se não fossem executadas as prescrições médicas com exatidão, o acometido
prosseguiria contagiando e contribuindo para o recrudescimento da endemia.
Internado no asilo-colônia ele dificilmente escaparia do rigoroso cumprimento do
tratamento quimioterápico. Orestes Diniz faz os seguintes cálculos entorno do
tratamento na década de 1950 que conjugava isolamento e quimioterapia.
Doença em câmara lenta
A técnica fotográfica consegue fazer fotografias em série, tiradas em frações de
segundo, de tal maneira que é capaz de nos apresentar pormenores de movimentos, que nos
fazem supor extremamente lentos, o salto de um atleta, a corrida de um cavalo e até mesmo o
trajeto de um projétil. Com a lentidão mostrada pelas câmaras lentas é que a lepra atua.
Solertemente se instala, se desenvolve e progride no organismo humano a infecção leprótica,
impedindo freqüentemente que um mesmo observador possa registrar, em um mesmo
indivíduo, a totalidade das várias fases, pois para tal careceria de muitos anos de espera. De
fato, atente-se, em primeiro lugar, para as condições em que habitualmente se verificam os
contágios da doença. Há, segundo os autores que tratam da matéria, necessidade de estreito
e longo convívio com a fonte infectante A promiscuidade dentro do lar, promiscuidade de
cama e de mesa, levada a efeito durante dilatada espaço, determina as inoculações do
germe e as conseqüentes infecções. Mas para que essas infecções se transformarem em
doença é exigido que decorra um espaço de tempo que dura, em média, de 3 a 5anos (mas
que pode atingir limites mais extensos, de dez, quinze, vinte ou mais anos). É o que se
denomina tempo de incubação. Depois se vão instalando, aos poucos, os primeiros sinais da
doença que prossegue evoluindo vagarosamente, quase que imperceptivelmente, durante
anos. Feito o diagnóstico e instituído o tratamento adequado, começa então a regressão dos
sintomas clínicos, sempre de modo discreto, gastando-se em média três anos para que
desapareçam e para que se verifique a negativação dos exames de laboratório. Os
leprólogos, em se habitual cepticismo, exigem então que os doentes e permaneçam ainda em
observação ainda em observação durante doze meses submetidos a reexames clínicos e
laboratoriais mensais. Após êsse prazo concede-se ao paciente licença para sair do
195
Leprocômio e continuar o tratamento em dispensário. Aí permanece pelo longo espaço de
três anos de observação mitigada vão permitir a concessão da alta definitiva. Em resumo, a
‘via-crucis’ seguida pelos pacientes é a seguinte:
1 a 3 anos para a inoculação;
3 a 5 anos para a incubação;
3 a 5 anos para a evolução;
3 a 5 anos para o internamento em Leprocômio;
3 anos para a obtenção de alta provisória;
3 anos para a obtenção da alta definitiva.
Significa que cêrca de dois decênios são necessários, em média, para que se
solucione cada caso! Uma existência perdida! Enquanto isso o organismo e o ânimo dos
doentes recebem impactos que lhes transtornam os planos e lhes geram as maiores
desventuras e as maiores desilusões. Isso é bem a fotografia de uma tragédia que se
desenvolve em câmara lenta, de seu intróito à apoteose final que pode ser a cura, como pode
ser a morte.”
118
Orestes Diniz conclui: “Uma existência perdida!”. Ainda que existindo a
cura os leprosos continuavam privados de muitas prerrogativas e obrigados a se
submeterem a uma série de procedimentos desnecessários, tudo em nome dos “sãos”,
da garantia de que a segurança da coletividade estava sendo cuidada e zelada pela
rede institucional instalada. Nas décadas anteriores a de 1950, situação era um pouco
mais trágica, visto que, após o diagnóstico vinha o isolamento, decisão para o resto da
vida, condenação perpétua. Contudo, mesmo na década de 1950, os mais pobres
continuavam com enormes dificuldades adicionais para um tratamento livre do
isolamento.
“Na década de cinqüenta e cinco a sessenta, já foi na época da eleição do
J.K., aí ele lançou o Programa Rosa da Esperança onde o tratamento era
domiciliar. Quando a pessoa internava ficava poucos dias, depois
voltava...logo quando houve a revogação do internamento compulsório,
então o doente passou a ter mais liberdade não só dentro da Colônia, como
fora também. De J.K. pra cá já não internou mais engenheiro, filho de
político, pessoa de alta sociedade não internou mais.”
119
118
DINIZ, Orestes. Nós também somos gente: trinta anos entre os leprosos. Rio de Janeiro, Livraria
São José,1961 (p.45/46).
119
Depoimento recolhido por Francisco Carlos Félix Lana (Entrevistado n.º 01). Interno do asilo-
colônia Santa Izabel no período de 1948 a 1972. Dos 17 anos aos 41 anos de vida dentro daquela
instituição. Elegeu-se vereador para a Câmara Municipal de Betim em 1976 com o voto do demais
internos do asilo-colônia Santa Izabel e de Citrolândia, com a plataforma política de reintegração
social do hanseniano na sociedade de Betim. Cf. LANA, Francisco Carlos Félix. Op. Cit., p.144/284.
196
Essa rede institucional, hospitalar-assistencialista, engendrada no Brasil por
causa da lepra, especializada e inteiramente dedicada aos cuidados desse mal, tinha
sua sobrevivência diretamente atrelada a manutenção da prática isolacionista e
indiretamente do quadro endêmico nacional, uma autêntica “indústria da lepra”.
Dessa forma, a FSAL e DCL resistiu ao desmonte da rede preventorial
120
, assim
como inúmeros profissionais que se beneficiavam diretamente do isolamento,
envolvidos no trabalho nos asilos-colônias e dispensários impuseram pressão para
que a abolição desta medida não ocorresse na brevidade com que se deu em alguns
países. Entre aqueles que se beneficiavam da institucionalização do isolamento havia
alguns acometidos, não-acometidos e ex-acometidos que se utilizavam de estratégias
para lucrar com a sua condição de enfermo, o que, a despeito de algumas críticas
extremamente distorcidas e tendenciosas, mesmo exageradas, correspondia a um
pequeno número no universo de todos os acometidos de lepra isolados nos asilos-
colônias do país.
Entre todas estratégias utilizadas a que se tornou mais conhecida foi o “bate-
gato”. Este termo corresponde a uma prática que se resumia em esmolar através dos
Correios. O procedimento consistia em enviar cartas a diversas pessoas, cujos
endereços eram conseguidos geralmente em listas telefônicas, solicitando donativos
em dinheiro ou em alimentos e roupas, quando as correspondências eram locais.
Afim de garantir o retorno caridoso, aqueles que praticavam o “bategato” apelavam
para toda a memória mítica da lepra e do estigma que cercava o mal. Entretanto,
ocorreu que outras pessoas em nada relacionadas com a lepra, fazendo-se passar por
leprosos, utilizaram-se deste mesmo procedimento para angariar dinheiro com fins
puramente lucrativos explorando a boa fé da população em geral, que atendiam as
solicitações. Havia o “bate-gato” autêntico, daqueles relacionados com a lepra, e o de
golpistas, unicamente interessado em lucratividade
121
.
120
Conforme pode ser observado nos textos 2..3.1 e 2.3.2 do capítulo II.
121
O MORHAN (Movimento de Reintegração das Pessoas atingidas pela hanseníase) tem combatido o
“bate-gato”, tanto praticado por internos e ex-internos dos asilos-colônias e principalmente aquele
provindo de falsários. Cf. NUNES, Francisco Augusto Vieira.(o Bacurau). Não à ajuda sem
compromisso. Jornal do MORHAN. Fevereiro de 1990.
197
Para alguns autores, o “bate-gato”, aquele praticado pelos internos dos asilos-
colônias, era uma estratégia de resistência e uma forma de se obter certa autonomia
dos internos perante a administração do estabelecimento.,
“A Caixa Beneficente, primeira organização coletiva dos doentes na
Colônia Santa Izabel, foi criada sob a tutela do Diretor, a quem
cabia indicar seu Presidente, e tinha como finalidade responder a
demandas que o Estado não cumpria.(..)
A solicitação de donativos por carta pela Caixa foi a
primeira expressão do ‘bate-gato’ na Colônia com a finalidade de
suprir uma necessidade que o Estado não atendia. A atividade do
‘bate-gato’ era ganho secundário dos doentes e foi, durante um bom
tempo, habilmente aproveitada por eles, consistindo numa estratégia
de resistência importante.
No auge da política de isolamento, a lepra tinha uma
visibilidade social como poucas doenças da época, visibilidade
amplificada pela ação das sociedades de Proteção e Defesa Contra a
Lepra. A sociedade clamava pelo isolamento do leproso mas ao
mesmo tempo havia um reconhecimento de sua for e sofrimento pela
separação da família, era um discurso ambíguo. Os doentes se
aproveitavam da situação de carência em que viviam e faziam uma
interpelação à sociedade, ‘bolino’ com uma possível crise de
consciência e responsabilidade pela situação de miséria física e
social que estavam vivendo, alguns chegando a superdimensionar a
situação, com forma de angariar mais recursos.”
122
Mas, este meio de arrecadação de recursos inviabilizou-se a partir da década
de 1960 com a revogação do isolamento compulsório. Falsários ou não, o “bate-
gato” era uma forma de acirramento do estigma que envolvia a lepra e uma forma de
lucrar, ou mesmo sobreviver, que dependia da existência daquela relação de exclusão
representada pelo isolamento.
Em São Paulo houve resistência em abolir o isolamento por parte da rede
instalada, o que também refletia o medo, endosso popular ao confinamento, da
sociedade com relação à lepra, doença feia e temida. Essa preocupação com a reação
social perante a abolição do isolamento encontra-se bem evidenciada neste
depoimento de Abrahão Rotberg..
“Procurei o Leser (...) ele achou que eu precisava falar com o Governador.
Ele me levou ao Palácio, mostrei aqueles quadros todos , as críticas dos
congressos e seminários(ao isolamento), o decreto 968. O Sodré ficou muito
interessado e perguntou se existia mesmo o Decreto 968. Tem sim, e mostrei.
Ele disse: ‘Pois é, sou advogado e não sabia nada disso: pode acabar com o
122
LANA, Francisco Carlos Félix. Op. Cit., p.104/105.
198
isolamento, mas... tem que ir devagar porque o público vai reagir muito,
precisa fazer uma campanha de esclarecimento prévio.”
123
Esse depoimento permite constatar o receio que causava a idéia de liberar os
leprosos da prática do isolamento. O secretário estadual de saúde, o senhor Walter
Leser, achou por bem consultar o governador, na ocasião Abreu Sodré, a respeito de
uma decisão tão delicada. A sociedade continuava temerosa e crente na
periculosidade do leproso considerando seu tratamento livre da reclusão nos asilos-
colônias uma medida insensata.
Assim, tanto a rede asilar como a preventorial e dispensarial viram-se em
apuros no final da década de 1950 e início da década de 1960 quando a endemia
crescente, demonstrada através das estatísticas, e os discursos contrários ganhavam
força e começaram a conquistar espaço social perante o Estado. Este sedento por
economizar, principalmente depois de 1964 com o novo regime ditatorial que se
instalava, utilizou todos os discursos que ganhavam projeção naquele momento e
embargaram a medida isolacionista. As razões do governo eram outras, aliviar os
cofres públicos de uma despesa perdida cujo retorno não existia, as estatísticas
comprovavam.
Novamente na história, os marginalizados foram esquecidos e
desconsiderados. A discussão polarizava-se na décadas de 1960 e 1970 em torno de
profilaxia, economia para o Estado e estatísticas. Na melhor das hipóteses falava-se
no fim de uma estrutura altamente estigmatizante e na mudança do nome do mal de
lepra para hanseníase. Primava-se pelo fim de novos excluídos trancafiados nos
asilos-colônias, esquecia-se daqueles que já haviam sido colocados a margem. Na
margem acidentada reservada para a lepra.
“Neste dia(30/01/2000)
124
, convido todos a fazermos, juntos, aquilo que é
necessário: lutar para que tenhamos uma vida melhor. O Estado se propôs a
ampara os hansenianos, construiu 33 hospitais ou leprosários no Brasil. No
Amazonas a História registra quatro: Umirzal, Linha de tiro, Colônia
Antônio Aleixo e Paricatuba. Nessa época nos pegavam à força, a laço,
como os moços das carrocinhas pegam os cães vadios. De repente dentro
123
Depoimento de Abrahão Rotberg concedido à Yara Nogueira Monteiro em 18/05/1992.Apud:
MONTEIRO, Yara Nogueira. Op. Cit., p.417.
124
No último domingo de janeiro comemora-se o Dia Mundial do Hanseniano, criado em 1954, pelo
jornalista francês Raoul Follereau (Paris 17/08/1903 idem 06/12/1977). Sobre ele ver: SANTOS,
Ailton Antonio. Raoul Follereau. São Paulo, Editora Salesiana,, s/d, 39p.
199
dos gabinetes decidiram desativar as ‘Colônias’. Aqui no Amazonas criaram
um projeto que propunha tirar os hansenianos do ‘inferno’ e colocá-los no
‘céu’, todos nós vivíamos naquela tormenta éramos discriminados pelas leis
e pelos sadios, não sabíamos se éramos pessoas ou animais nocivos. O certo
é que não podíamos viver com as pessoas comuns, éramos cerceados nos
nossos direitos fundamentais. Pois bem, veio a desativação; nós pulamos de
alegria, passamos a nos sentir iguais aos sadios. Muitos diziam ‘a liberdade
já veio tarde’. Só que não houve preparação, nem para nós nem para a
população. Mesmo assim não devemos desejar que volte pois de fato a
desativação veio tarde, só não entendíamos que o objetivo principal do
Estado era diminuir os gastos com os hansenianos. Como diz o ditado
popular: ‘quando se quer pegar uma galinha não se diz xô’ não nos foi
mostrado o verso da moeda.”
125
Contudo, a exclusão ou isolamento dos leprosos não trata-se de um privilégio
ou exclusividade brasileira ou ocidental. O que também não ameniza a gravidade e
teor do que foi praticado. O oriente também dispensava similar tratamento aos seus
acometidos. Em 1953, ano em que o isolamento compulsório foi contra-indicado pelo
VI Congresso Internacional de Hanseníase (CIL), realizado em Madri/Espanha, o
Japão referendou uma lei que instituía o isolamento forçado de todos os seus
acometidos. Cinco anos depois este país sediou o VII Congresso Internacional de
Hanseníase (CIL) cuja conclusão sobre o uso do isolamento como profilaxia da lepra
foi a sua total desrecomendação dado seu anacronismo.
No entanto, o governo japonês não acatou as conclusões de nenhum dos
eventos e continuou isolando todos os acometidos alcançados pelo seu sistema de
confinamento. Somente em 1996 o congresso daquele país concordou em revogar a
lei de 1953. Uma comissão de saúde reconheceu a gravidade da situação o que
culminou num pedido de desculpa público por parte do ministro de saúde daquele
país.
“São 6.000 hansenianos japoneses que agora estarão livres para ir e vir. A
grande maioria é de idosos. Eles não têm parentes, ninguém que os receba.
Para onde irão com seus estigmas? Quase todos decidiram permanecer nos
leprosários onde foram internados muito tempo atrás, ouvindo como
despedida a terrível recomendação: ‘não volte nunca mais’.”
126
125
BARROCAS, Edgilson Torres. A liberdade já veio tarde no Amazonas. In: Jornal do MORHAN.
Rio de janeiro, n.º 33, março/abril de 2000(p.4).
126
PONS, Philippe. Ministro da saúde japonês foi a público desculpar-se pelo isolamento dos
hansenianos. In: Folha de São Paulo. 11/02/1996, pp.01-24. Em 2001 um grupo de mais de 100(cem)
ex.-internos dos centros de isolamento japoneses ganharam na justiça o direito de receberem do
governo japonês uma indenização milionária. A decisão saiu dia 11/05/2001. O governo declarou não
200
Terminado o isolamento, revogada esta medida, colocava-se em xeque uma
das práticas mais antigas para com os leprosos. Comportamento bíblico no século
XX.. Historicamente a profilaxia da lepra caracterizou-se pela negação de inúmeros
direitos aos seus acometidos, impondo-lhes restrições legais, encarceramento
coercitivo, supressão da cidadania e outras privações.
Ainda que não tenha sido a recuperação dos direitos dos acometidos o tema
que animou a abolição do isolamento, hoje as pessoas atingidas por esse mal,
encontram-se livres do trágico destino de irem presas, recolhidas, proibidas de
criarem seus filhos, impedidas de conviver com suas famílias por causa de uma bacilo
que involuntariamente adquiriram. Crime que não cometeram, mas do qual eram
culpados. A supressão do estigma e muitas outras mazelas herdadas do isolamento
compulsório encontram-se ainda acesas e desafiando a atualidade.
saber ainda como irá lidar com a questão. Alguns dos querelantes acreditam que o governo irá recorrer
até que todos os beneficiados pela sentença estejam mortos. Cf. REUTERS. Tribunal manda Japão
indenizar hansenianos que foram confinados. In: Folha de São Paulo. 12/05/2001,p.A18.
Considerações finais
“Aqui estou para levantar uma bandeira de salvação contra o flagelo da
lepra que tanto fustiga a nação. Essa bandeira ou êsse programa, como
quiserem, consiste na declaração da necessidade do internamento
obrigatório e irrecorrível de todos os casos de lepra, sejam êles contagiantes
ou não, homens ou mulheres, brancos ou pretos, de quaisquer condições
sociais e econômicas. Só essa modalidade de isolamento, sem exceções, sem
considerações particularistas, feito sem solução de continuidade, será capaz
de ter efeito na debelação da endemia!(...)
Não há salvação, em matéria de profilaxia da lepra, fora do
isolamento indiscriminado e total de todos os doentes, pertençam êles a
qualquer dos tipos clínicos da doença. O meu voto é para que se internem os
lepromatosos porque são eliminadores de germes, os nervosos porque
representam perigo em potencial, ou seja uma ameaça permanente à saúde
coletiva.(...)
Reafirmo as minhas opiniões, fruto de observação e estudo e ainda
mais, declaro solenemente que sou pelo isolamento até mesmo dos suspeitos.
A salvação contra a endemia leprótica está no recolhimento indiscriminado
de doentes e suspeitos nos Leprocômios. Ampliem-se êsses estabelecimentos
e faça-se como na Idade Média, já que não se dispõe ainda de terapêutica
eficiente e de outros meios mais seguros de combate.”(sic)
1
“O tratamento sulfônico e as definições clínicas estabelecidas em poucos
anos já possibilitavam a mudança nos conceitos de internação( confinação e
internação obrigatória de todos os doentes). Somente no final da década de
50 esta mudança começou a se constituir de fato.
Até este período, entre outras atitudes restritivas, o doente da forma
lepromatosa, embora muitas vezes negativado, para ter alta e habitar fora do
hospital deveria ter em torno de sua casa um muro de cinco metros de
altura.”
2
“No início do século, quando uma pessoa tinha febre amarela, as
autoridades eram notificadas e ela era literalmente presa em um quarto,
totalmente fechado com tela, para não passar a doença a outras pessoas.
Ninguém discutia se isso violava ou não os direitos da pessoa. Atualmente,
ninguém pode propor que os doentes de aids sejam isolados ou sequer
identificados, pois isso não seria politicamente correto. Será correto que
uma pessoa saiba que está com aids e oculte esse fato daqueles que estão à
sua volta, em situações de risco (contato sexual, por exemplo)?”
3
1
PENNA, Belisário. Apud: DINIZ, Orestes. Nós também somos gente: trinta anos entre os
leprosos. Rio de Janeiro, Livraria São José,1961 (p.199-200).
2
CRUZ, Osvaldo. Colônias: fruto da desinformação. In: Jornal do Morhan. 1.ºtrimestre/1983(P.04).
MARTINS, Roberto de Andrade. Contágio: historia da prevenção das doenças transmissíveis. São
Paulo, Editora Moderna, 1997(p.196).O grifo é do original.
202
As três citações que abrem este texto, respectivamente, datadas das décadas de
1920, 1980 e 1990 demonstram o quão encontrava-se consolidado na sociedade
brasileira o discurso isolacionista no decorrer do século XX..
A primeira aclamava pelo isolamento de todos os acometidos de lepra,
inclusive os suspeitos, futuros leprosos em potencial, vendo nessa prática de exclusão
uma medida profilática ideal de enfrentamento da endemia leprótica que assolava, na
época, o Brasil. Ampliem-se êsses estabelecimentos e faça-se como na Idade
Média”, prescrevia o doutor Penna.
A segunda citação, década de 1980, período em que ocorria a desativação dos
asilos-colônias no Brasil, alude a inutilidade do isolamento dado a existência do
tratamento quimioterápico. A “mudança nos conceitos de internação” referia-se ao
surgimento de outro meio mais eficiente, menos estigmatizante e oneroso
economicamente para o Estado.
A terceira citação é repleta de saudosismo. Apesar de não tratar
especificamente da lepra, embora no conjunto do livro esta não se encontre alijada,
aborda sobre as doenças transmissíveis de forma geral. O autor entende que o
isolamento é ainda hoje uma medida praticável e eficiente. Clama pela identificação
obrigatória dos aidéticos, apela para a o discurso da proteção dos “sãos”
4
.
Entretanto, a derrocada do isolamento no Brasil foi ocasionada pela supressão
por parte de seu mantenedor, o Estado, dos recursos, não apenas financeiros, que
eram imprescindíveis para que este se concretiza-se enquanto prática social. Esse, no
entanto, foi o último golpe no isolacionismo, antes, vários foram os acontecimentos
que compuseram o cenário ou o contexto que tornou possível revogar, livre de
grandes desembaraços para o governo perante a sociedade, tão antigo, milenar,
procedimento. Dessa forma, o discurso encabeçado pela chamada nova leprologia, da
qual o médico Orestes Diniz era um dos expoentes brasileiros, foi utilizado pelo
Estado com vistas a abolição do isolamento.
No entanto, com relação ao isolamento algumas observações devem ser
tecidas a título de considerações finais. Primeiro, e talvez uma das mais importantes
observações a serem feitas; o isolamento frustrou-se por si próprio. As estatísticas
203
foram bastante utilizadas na década de 1960 para evidenciar que a endemia crescia a
despeito do número de acometidos isolados. Não foi preciso a invenção dos primeiros
medicamentos para que este fosse abolido.
Quando Guy H. Faget, em 1941, anunciou a constatação do poder terapêutico
das sulfonas sobre a lepra, esta foi uma das muitas descobertas curativas anunciadas
desde o final do século XIX.. Poderia ser mais uma falácia, entre outras tantas já
divulgadas. No início, a sulfunoterapia
5
, mesmo tendo comprovada sua eficácia
contra lepra, ainda comportava dúvidas entorno de seu funcionamento e
comportamento no acometido após longo tratamento. Foram precisos alguns anos
para serem esclarecidas essas questões. Embora a notícia do uso das sulfas na
terapêutica da lepra tenha se difundido muito rápido, acreditar que este medicamento
desde o primeiro instante em que foi divulgado obteve uma aceitação irrestrita e
entusiástica, livre de precauções e de muita cautela tanto por médicos quanto pelos
acometidos, é uma proposição descontextualizada e que não confere com a história.
Em 1956, o médico mineiro José Mariano analisou o resultado da utilização
da sulfunoterapia em Minas Gerais no período de 1946 a 1956 e concluiu que: “não
houve o êxito que se esperava”. Os resultados não foram compatíveis com o efeito
terapêutico da droga. Para o autor, faltaram estudos mais aprofundados acerca da
dosagem a ser ministrada em cada caso, tipos de derivados sulfônicos utilizados e
situação clínica, além de aspectos operacionais. Afirma que até a receptividade dos
acometidos ao medicamento variava conforme o laboratório fabricante da droga.
Segundo este mesmo autor a forma clínica tuberculoíde foi considerada
“seguramente tratável”, a lepromatosa era “tratável” nos casos incipientes, recentes
e indeterminados, já os lepromatosos antigos com manifestações cutâneas
4
Este livro é uma edição paradidática (coleção polêmica), dedicada aos alunos do ensino médio(2.º
grau) e se encontra dentro da área comumente intitulada de história das ciências. O autor refere-se a
lepra nas seguintes páginas 26,27,54,55,65,75,415,170,189.
5
O efeito terapêutico das sulfonas sobre a lepra foi verificado pioneiramente pelo médico norte-
americano Guy H. Faget(1891-1947) em 1941 no Leprosário Nacional de Carville, Louisiana, Estados
Unidos.Em 1908 foi sintetizada a 4,4’ diaminodifenil-sulfona, droga inicialmente utilizada em
trabalhos experimentais em animais inoculados com estafilacocos e bacilos de Koch (da tuberculose),
utilizada a partir dos experimentos de Faget na terapêutica da lepra. Por ocasião da Segunda Guerra
Mundial houve grandes aperfeiçoamentos dessa droga, utilizadas inclusive em prestação de socorro
nos campos de batalha. A sulfona ainda é utilizada até hoje na terapêutica da hanseníase. No Brasil ela
foi utilizada pela primeira vez, em 1944, no asilo-colônia Padre Bento em Guarulhos/SP. Cf. SOUZA-
ARAUJO, Heraclides-Cesar.Op. Cit., p.639; TALHARI, Sinésio e NEVES, René Garrido.
Hanseníase. Manaus, Gráfica Tropical, 3.º edição, 1997(p.113). DINIZ, Orestes. Profilaxia da
204
exuberantes e com manifestações viscerais eram considerados “dificilmente
tratáveis”
6
.
Os Congressos Internacionais de Hanseníase (CIL), bastante inovadores,
foram desaconselhar o isolamento em 1958, ou seja, 17 anos depois do advento das
sulfonas, e o motivo alegado nas conclusões do evento era o anacronismo desta
medida. Prática antiquada e inadequada, sem resultados positivos, que não estava
auxiliando e ao contrário agravava a situação dos países endêmicos.
A década de 1960 iria introduzir outras drogas potentes, cuja valor terapêutico
foram somados ao da sulfona para se conseguir a cura mais rápida e com mais
eficiência da lepra
7
. A medida que os medicamentos foram se aperfeiçoando
avolumava-se as críticas acerca da inutilidade do isolamento. Uma argumentação
tornou-se logo corrente dentro de todos os meios que lidavam com o problema: “A
lepra tem cura logo não é mais necessário isolar seus acometidos”. No entanto, o
isolamento já demonstrava sinais de fragilidade e ineficiência já no final da década de
1950 e inicio da década de 1960.
Segundo, a disponibilidade da cura foi o elemento utilizado para conseguir
apoio social e legitimidade para abolir o isolamento, uma vez que a população em
geral continuava temendo a lepra, “leprofobia social”, e mantinha-se confiante no
trabalho desenvolvido nos asilos-colônias. Convencer a população de que o
isolamento não funcionava era tarefa árdua demais, dizer que ele deveria ser
substituído pelo tratamento quimioterápico era mais fácil e menos complexo. O medo
da lepra sempre foi muito forte e foi bastante estimulado e utilizado pelos agentes de
saúde pública durante todo o período em que vigorou o isolamento compulsório no
país. Este sentimento foi facilmente despertado, uma vez que constituiu um
componente sempre presente no imaginário da lepra em todos os tempos
8
. Todavia,
Lepra: evolução e aplicação no Brasil. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Medicina Militar,
1960(p.56).
6
MARIANO, José. Dez anos de experiência de sulfonoterapia. In: Arquivos Mineiros de Leprologia.
Vol. XVI,n.º02, 1956(pp. 93-107).
7
Hoje utiliza-se um medicamento composto de três drogas para a cura da hanseníase, conhecido como
poliquimioterapia(PQT/OMS): Rifampicina, clofazimina e dapsona. Conforme o tipo e o estágio da
doença utiliza-se apenas duas drogas. Cf. ANDRADE, Vera Lúcia Gomes de & PELLEGRINI,
Bárbara. O que mudou na hanseníase com o NOAS( Norma Operacional de Assistência à Saúde).
Rio de Janeiro, SES/RJ, 80p.(p.64/67).
8
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. Editora Companhia das Letras. São Paulo,
1989 ( pp.107-138).
205
verifica-se que, se o isolamento tivesse cumprido suas promessas não haveria na
década de 1960 no Brasil tão grave endemia de lepra para ser equacionada.
O discurso de que somente a disponibilidade da cura poderia suprimir o
isolamento é politicamente perigoso, pois abre precedentes para que novas ou velhas
medidas coercitivas sejam novamente utilizadas, talvez não mais com a lepra, mas
com outras doenças
9
. Esta estratégia que evoca, através do medo, a perspectiva do
isolamento enquanto proteção eficiente para os “sãos”, admite, implicitamente, que
caso a cura não tivesse sido alcançada justificada estaria o isolamento dos leprosos
até os dias atuais. Entretanto, constata-se que nem o isolamento nem o advento da
quimioterapia conseguiram, até o momento, debelar a endemia hansênica existente no
Brasil. O isolamento logo demostrou-se caduco e insuficiente. E quanto aos
melhoramentos introduzidos pela medicina, este trecho oferece uma razoável
elucidação.
“Sejamos nós profissionais (de medicina) ou leigos, não costumamos
atribuir à Medicina a rápida elevação da média de vida 20 anos na época
de Cristo, 29 em 1750, 45 em 1900 e 70 anos hoje? Não costumamos atribuir
a Pasteur e a Koch, ás vacinas, à quimioterapia e aos antibióticos a
regressão das doenças infecciosas e a progressão da longevidade? Não é
para nós uma evidência que o estado de saúde de um povo depende do
número de médicos e de leitos de hospital de que dispõe, da quantidade de
cuidados e de remédios que consome? Pois bem: tudo isso é mentira. A
eficácia da medicina é e sempre foi reduzida! Já é hora de considerá-la em
suas devidas proporções. Um estudo de Winkelstein e French mostrou que a
tuberculose matava 700 pessoas em cada 100.000 habitantes na Europa e na
América no começo do século passado. Em 1882, ano em que Koch
descobriu o bacilo, a tuberculose já regredira em 50 por cento. Em 1910,
quando foram criados os primeiros sanatórios, a tuberculose regredira em
75 por cento. E, em seguida, nem a técnica do peneumotórax, introduzida em
1930 nem a quimioterapia, adotada depois de 1945, nem os antibióticos,
aplicados com sucesso por volta de 1950 tiveram efeitos sensíveis na queda
da curva.
Enfim, a regressão da tuberculose não se deve à Medicina (e
consequentemente aos conhecimentos de sues fundamentos, isto é, à
patologia). Apesar de contarem com a mesma observação e os mesmos
cuidados médicos, os pobres continuam a contrair a tuberculose quatro
vezes mais do que os ricos. De fato, a Medicina aperfeiçoou tratamentos
9
Cf. a citação n.º03 que abre este texto. “O líder da direita francesa Le Pen preconizava, durante suas
recentes campanhas eleitorais, a construção de sidatoriums destinados à reclusão de aidéticos. Medidas
semelhantes foram propostas pelo governo cubano como forma de bloquear o contágio da aids no
país”. Cf. TRONCA, Ítalo A .As máscaras de medo: lepra e AIDS. Ed. da UNICAMP, Campinas,
2000 (p. 64/nota29).
206
cada vez mais eficazes; mas a batalha foi essencialmente ganha fora de sua
área.”
10
O isolamento revelou-se um conjunto de práticas discursivas e não-
discursivas, alicerçado no medo, na memória mítica da lepra, na cultura e na religião.
Dispositivo que revelou-se contraproducente na mais pura acepção da palavra.
Enquanto se conseguia reter alguns acometidos nas malhas finas do poder disciplinar
das instituições da tríade isolacionista, ocultava-se inúmeros que esquivavam-se do
destino trágico imposto pela lepra. Efeito inverso ao pretendido, “o tiro saiu pela
culatra”. Essa desumanização do acometido de lepra foi a estratégia discursiva
encontrada para fundamentar, justificar e fornecer subsídios para sua exclusão.
Portanto, a proposição de que o isolamento iria resultar numa forma de proteção dos
“sãos” revelou-se um equivoco sanitário. À salvo daqueles que se encontravam
confinados nos asilos-colônias, mas às voltas com todos aqueles que habilmente
contornaram a profilaxia da lepra na época, fugidios de todo uma série de transtornos
familiares que cercavam as vidas marcadas por esse terrível mal.
Por último, o isolamento dos leprosos em locais administrados, organizados e
disciplinados sob orientação médica constituiu uma continuidade renovada da prática
de exclusão e expulsão existente desde o início da era Cristã. Com a Medicina Social
no comando das decisões acerca da lepra em substituição à Igreja e aos filantrópicos e
caridosos do século XIX, primou-se por estender esta medida a todos os acometidos,
que deveriam ser confinados num local higienizado, disciplinado e até eugenizado,
onde deveria inexistir a permissão de entrar e sair, conforme desejo dos internos. Um
lugar que deveria reter o mal no seu interior, uma prática que mesclava em seus
fundamentos e que reunia em seu discurso o medo, os preceitos levitiquianos e a
teoria microbiana das doenças. Aquilo que o século XIX, os religiosos e os caridosos,
sempre fez só que com um rigor renovado e inédito.
Além de excluído o leproso deveria ser trancafiado, confinado, pois sua
circulação depois da teoria microbiana das doenças passou a ser entendida como
nociva, por isso, carecia de intensa normalização e restrição por parte do Estado e da
Medicina Social. O isolamento dos leprosos no Brasil do século XX foi uma prática
10
UBRACH, Sully. Medicina e Patologia. In: MORAIS, J.F. Regis de. (org.). Construção Social da
enfermidade. São Paulo, Editora Cortez & Moraes LTDA, 1978(p.147).
207
que continha resíduos medievais, que mesmo fora da jurisdição da Igreja, mesmo
secularizada, ainda se ligava ao modelo levitiquiano. Indivíduo que dado o mal do
qual era portador não poderia conviver e residir entre os seus. Conforme Foucault, do
contato a ser interrompido, cortado:
“No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as
confusões e desordens, assim como a imagem da lepra, do contato a ser
cortado, está no fundo do esquema de exclusão”
11
A hanseníase
12
como é hoje denominada no Brasil a doença provocada pelo
mycobacterium leprae, permanece um desafio. Para a medicina seria encontrar o
fator imunogenético que facilita o adoecimento em algumas pessoas e uma vacina
específica que muito iria auxiliar na erradicação desse mal; para a área de Saúde
Pública, encontrar uma forma de implementar estratégias de intervenção que
obtenham êxito na debelação da endemia, não mais a qualquer preço, não mais as
custas da desvalorização de inúmeros seres humanos, estratégia infeliz e ineficiente;
para as Ciências Humanas e a História, compreender os inúmeros acontecimentos,
mitos, memórias e tragédias que envolveram e lamentavelmente ainda envolvem os
acometidos por esse mal. Hoje uma doença, outrora uma categoria que combinava
exclusão social, perigo infectante e indivíduos indesejáveis. Hoje hanseníase, ontem
lepra.
11
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Editora Vozes,
2000(p.165).
12
Uma das novidades introduzida pela década de 1960 foi modificação do nome de lepra para
hanseníase. Particularidade brasileira recentemente adotada na República de Cabo Verde. Essa
mudança foi uma tentativa de esquivar os acometidos do estigma da lepra. A nova nomenclatura, foi
criada em 1967, na Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo e foi acatada em âmbito nacional em
1976 através da Portaria n.º165/BSB de 14/05/1976 (publicada no DOU em 11/06/1976, na página
8301, seção I) em seu item n.º6.1.. Essa alteração de nomenclatura foi merecedora em 1995 de uma lei
específica, a de n.º 9.010 de 29/023/1995 (publicada no DOU em 30/03/1995, na página n.º004509,
coluna II). Convém lembrar que o arquipélago africano de Cabo Verde é membro integrante das
comunidades dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), isto significando que a nova nomenclatura, não
obteve adesão irrestrita nem dos outros países de mesmo idioma. Internacionalmente a doença
continua sendo designada pelo termo lepra, leprosy em inglês e lepre em francês, sendo a última,
versão adotada pela Organização Mundial de Saúde. Cf. ROTBERG, Abrahão. Hanseníase no Brasil.
In: O Estado de São Paulo. São Paulo, n.º 39, ano CXXII, 24/09/2001. MARTINS, Rui. Ou seja,
lepra. In: Revista Isto É. 27/07/1994(p.41).
208
Contudo, parafraseando Michel Foucault, enquanto as “condições de
possibilidade” da endemia hansênica, à saber: baixo padrão de vida e habitacional,
miséria, desnutrição, fome, falta de perspectiva de vida, em suma, baixa qualidade de
vida, não forem alteradas, o Brasil permanecerá assombrado por doenças como
hanseníase, dengue, febre amarela e outras que tem persistentemente assolado o país
desde o final do século XIX..
1
Asilos-colônias do Brasil
Nome Cidade Estado
Souza Araujo Rio Branco Acre
Cruzeiro do Sul/Ernani
Agrícola
Cruzeiro do Sul Acre
Belisario Penna Paricatuba/Manaus Amazonas
Antônio Aleixo Manaus Amazonas
Colônia do Prata Prata/Igarapé Açu Pará
Frei Gil Vilanova Cametá/Conceição do
Araguaia
Pará
Marituba Marituba/Belém/Anamindeu
a
Pará
Bonfim/Aquiles Lisboa São Luís Maranhão
Carpina Parnaíba Piauí
Antônio Diogo Canafistula/Redenção Ceará
Antônio Justa São Bento/Maracanaú Ceará
São Francisco de Assis Natal Rio Grande do Norte
Getúlio Vargas João Pessoa Paraíba
Mirueira Recife Pernambuco
Eduardo Rabelo Taboleiro João
Martins/Maceió
Alagoas
Jardim/Lourenço Magalhães Aracaju/Nossa Senhora do
Socorro
Sergipe
Dom Rodrigo de Menezes Salvador Bahia
Itanhenga/Dr. Pedro Fontes Vitória/Cariacica Espirito Santo
Tavares de Macedo Itaboraí/Iguá Rio de Janeiro
Curupaiti Jacarepaguá/Rio de Janeiro Rio de Janeiro
Frei Antônio Frei Antônio/Rio de Janeiro Rio de Janeiro
Santo Ângelo Mogi das Cruzes São Paulo 1928
Aimorés Bauru São Paulo 1933
Cocais Bauru/Casa Branca São Paulo 1932
Pirapitingui Itu São Paulo 1931
Padre Bento Guarulhos/Gopouva São Paulo 1931
São Roque Piraquara/Deodoro Paraná
Santa Tereza São José Santa Catarina
Itapoã Viamão Rio Grande do Sul
Ernani Agrícola Sabará Minas Gerais 1883
Cristiano Machado/Roça
Grande
Sabará Minas Gerais 1944
Santa Izabel Betim Minas Gerais 23/12/1931
Santa fé Três Corações Minas Gerais 1942
Padre Damião Ubá Minas Gerais 1945
São Francisco de Assis Bambuí Minas Gerais 1945
Helena Bernard Catalão Goiás
Bananal Ilha do Bananal Goiás
Anápolis Anápolis Goiás
Santa Marta Goiânia Goiás
São João dos Lázaros Cuiabá Mato Grosso
São Julião Campo Grande Mato Grosso
Águas Claras Salvador Bahia
Abem-Athar Porto Velho Rondônia
Padre Antônio Manoel Paulista Pernambuco
209
Asilos-colônias do Brasil
N.º
Estado
Nome Cidade
01 AC Cruzeiro do Sul/Ernani Agricola Cruzeiro do Sul
02 AC Souza Araujo Rio Branco
03 AL Eduardo Rabelo Taboleiro João Martins(Maceió)
04 AM Belisario Penna Paricatuba(Manaus)
05 AM Antônio Aleixo Manaus
06 BA Águas Claras Salvador
07 BA Dom Rodrigo de Menezes Salvador
08 CE São Bento/Antônio Justa Maracanaú
09 CE Antônio Diogo Redenção
10 ES Itanhenga/Dr. Pedro Fontes Cariacica
11 GO Anápolis Anápolis
12 GO Helena Bernard Catalão
13 GO Santa Marta Goiânia
14 MA Bonfim/Aquiles Lisboa São Luís
15 MT São João dos Lázaros Cuiabá
16 MS São Julião Campo Grande
17 MG São Francisco de Assis Bambuí
18 MG Santa Izabel Betim
19 MG Ernani Agrícola Sabará
20 MG Cristiano Machado/Roça Grande Sabará
21 MG Santa fé Três Corações
22 MG Padre Damião Ubá
23 PA Frei Gil Vilanova Conceição do Araguaia
24 PA Colônia do Prata Igarapé Açu
25 PA Marituba Marituba (Belém)
26 PB Getúlio Vargas João Pessoa
27 PR São Roque Piraquara
28 PE Padre Antônio Manoel Paulista
29 PE Mirueira Recife
30 PI Carpina Parnaíba
31 RJ Tavares de Macedo Itaboraí
32 RJ Curupaiti Jacarepaguá (Rio de Janeiro)
33 RJ Frei Antônio São Cristóvão (Rio de Janeiro)
34 RN São Francisco de Assis Natal
35 RS Itapoã Viamão
36 RO Abem-Athar Porto Velho
37 SC Santa Tereza São José
38 SP Aimorés Bauru
39 SP Cocais Casa Branca
40 SP Padre Bento Guarulhos
41 SP Pirapitingui Itu
42 SP Santo Ângelo Mogi das Cruzes
43 SE Jardim/Lourenço Magalhães N.S. do Socorro (Aracaju)
44 TO Bananal Ilha do Bananal
210
Preventórios do Brasil
N.º
Estado Nome Cidade
01 AC Cruzeiro do Sul Cruzeiro do Sul
02 AC Santa Margarida Rio Branco
03 AL Educandário Eunice Weaver Maceió
04 AM Educandário Gustavo Capanema Manaus
05 BA Educandário Eunice Weaver Salvador
06 CE Educandário Eunice Weaver Fortaleza
07 CE Creche Silva Araújo(provisório) Redenção
08 ES Granja Eunice Weaver Vitória
09 ES Preventório Alzyra Bley Vitória
10 GO Educandário Afrânio de Azevedo Goiânia
11 MA Educandário Santo Antônio São Luís
12 MS Educandário Getúlio Vargas Campo Grande
13 MG Educandário Eunice Weaver Araguari
14 MG Aprendizado Técnico Profissional Belo Horizonte
15 MG Educandário São Tarcísio Belo Horizonte
16 MG Pupileira Ernani Agricola Belo Horizonte
17 MG Educandário Carlos Chagas Juiz de Fora
18 MG Educandário Olegário Maciel Varginha
19 PA Asilo Santa Terezinha Belém
20 PA Educandário Eunice Weaver Belém
21 PB Educandário Eunice Weaver João Pessoa
22 PB Educandário Curitiba Curitiba
23 PE Instituto Guararapes Recife
24 PI Educandário Padre Damião Parnaíba
25 RJ Educandário Vista Alegre São Gonçalo (Niterói)
26 RJ Preventório Recanto Feliz Catumbi (Rio de Janeiro)
27 RJ Educandário Santa Maria Jacarepaguá (Rio de Janeiro)
28 RN Educandário Oswaldo Cruz Natal
29 RS Amparo Santa Cruz Porto Alegre
30 RO Educandário Belisario Penna Porto Velho
31 SC Educandário Santa Catarina São José
32 SP Educandário Santa Terezinha Carapicuíba
33 SP Educandário Jacareí Jacareí
34 SP Berçário Carolina Mota e Silva São Paulo
35 SE Educandário São José Aracaju
211
Dispensários do Brasil
N.º ESTADO
NOME CIDADE
01 RO Disp. Oscar da Silva Araujo Porto Velho
02 AC Disp. de Cruzeiro do Sul Cruzeiro do Sul
03 AC Disp. de Rio Branco Rio Branco
04 AP Disp. de Macapá Macapá
05 RO Disp. de Boa Vista Boa Vista
06 AM Disp. Alfredo da Mata Manaus
07 PA Disp. Henrique Rocha Belém
08 PA Disp. Souza Araujo Belém
09 MA Disp. Frei Querubim São Luís
10 PI Disp. de Parnaíba Parnaíba
11 PI Disp. de Teresina Teresina
12 CE Disp. de Fortaleza Fortaleza
13 RN Disp. de Natal Natal
14 PB Disp. de João Pessoa João Pessoa
15 PE Disp. Agamenon Magalhães Recife
16 PE Disp. Amaurí de Medeiros Recife
17 PE Disp. de Madalena Recife
18 PE Disp. de Olinda Olinda
19 PE Disp. Gouveia de Barros Recife
20 AL Disp. de Maceió Macéio
21 SE Disp. de Aracaju Aracaju
22 SE Disp. Simão Dias Simão Dias
23 BA Disp. de Salvador Salvador
24 MG Disp. Central Belo Horizonte
25 MG Disp. de Bambuí Bambuí
26 MG Disp. de Ubá Ubá
27 MG Disp. de Juiz de Fora Juiz de Fora
28 MG Disp. de Três Corações Três Corações
29 MG Disp. de Uberaba Uberaba
30 RJ Disp. de Barra Mansa Barra Mansa
31 RJ Disp. de Campos Campos
32 RJ Disp. de Itaperuna Itaperuna
33 RJ Disp. de Nova Iguaçu Nova Iguaçu
34 RJ Disp. de Niterói Niterói
35 RJ Disp. de Petrópolis Petrópolis
36 RJ Disp. de São Gonçalo São Gonçalo
37 RJ Disp. de Lepra n.º 1 Rio de Janeiro
38 RJ Disp. de Lepra n.º 2 Rio de Janeiro
39 RJ Disp. de Lepra n.º 3 Rio de Janeiro
40 RJ Disp. de Lepra n.º 4 Rio de Janeiro
41 RJ Disp. de Lepra n.º 5 Rio de Janeiro
212
42 RJ Disp. de Lepra n.º 6 Rio de Janeiro
43 SP Disp. da Sede São Paulo
44 SP Disp. Emilio Ribas São Paulo
45 SP Disp. do Bom Retiro São Paulo
46 SP Disp. da Lapa São Paulo
47 SP Disp. de Osasco São Paulo
48 SP Disp. da Penha São Paulo
49 SP Disp. de Pinheiros São Paulo
50 SP Disp. de Santo Amaro São Paulo
51 SP Disp. de Santo André São Paulo
52 SP Disp. de Santana São Paulo
53 SP Disp. de Vila Maria São Paulo
54 SP Disp. de Vila Mariana São Paulo
55 SP Disp. de Araçatuba Araçatuba
56 SP Disp. de Lins Lins
57 SP Disp. de Valparaíso Valparaíso
58 SP Disp. de Araraquara Araraquara
59 SP Disp. de Barretos Barretos
60 SP Disp. de Bebedouro Bebedouro
61 SP Disp. de Bauru Bauru
62 SP Disp. de Adamantina Adamantina
63 SP Disp. de Jaú Jaú
64 SP Disp. de Marília Marília
65 SP Disp. de Botucatu Botacatu
66 SP Disp. de Ourinhos Ourinhos
67 SP Disp. de Campinas Campinas
68 SP Disp. de Amparo Amparo
69 SP Disp. de Jundiaí Jundiaí
70 SP Disp. de Piracicaba Piracicaba
71 SP Disp. de Rio Claro Rio Claro
72 SP Disp. de Presidente Prudente Presidente Prudente
73 SP Disp. de Assis Assis
74 SP Disp. de Ribeirão Preto Ribeirão Preto
75 SP Disp. de Casa Branca Casa Branca
76 SP Disp. de Franca Franca
77 SP Disp. de São Joaquim da Barra São Joaquim da Barra
78 SP Disp. de São José do Rio Preto São José do Rio Preto
79 SP Disp. de Catanduva Catanduva
80 SP Disp. de Votuporanga Votuporanga
81 SP Disp. de Sorocaba Sorocaba
82 SP Disp. de Itapetinga Itapetinga
83 SP Disp. de Itararé Itararé
84 SP Disp. de Salto Salto
85 SP Disp. de Tatuí Tatuí
86 SP Disp. de Taubaté Taubaté
87 SP Disp. de Jacareí Jacareí
88 SP Disp. de Guaratinguetá Guaratinguetá
89 PR Disp. de Curitiba Curitiba
213
90 PR Disp. de Londrina Londrina
91 SC Disp. Central Florianópolis
92 SC Disp. de Laguna Laguna
93 RS Disp. de Porto Alegre Porto Alegre
94 MT Disp. de Cuiabá Cuiabá
95 MS Disp. de Campo Grande Campo Grande
96 MS Disp. de Corumbá Corumbá
97 GO Disp. de Ipamerí Ipamerí
98 GO Disp. de Goiânia Goiânia
99 GO Disp. de Rio Verde Rio Verde
100 GO Disp. Ernani Agricola Anápolis
101 GO Disp. Alfredo Bluth Goiás
102 GO Disp. de Jataí Jataí
214
Congressos Internacionais de Hanseníase
1
Ano Nome do Evento Período País Cidade
1897
Conferência Internacional de
Lepra de Berlim
11 a 16 de
outubro
Alemanha Berlim
1909
ConferênciaCientífica
Internacional sobre Lepra
16 a 19 de
agosto
Noruega Bergen
1923
III Conferência Internacional
de Lepra
28 a 31 de
julho
França Estrasburgo
1938
IV Conferência Internacional
de Lepra
21 a 27 de
março
Egito Cairo
1948
V Congresso Internacional de
Lepra
03 a 11 de
abril
Cuba Havana
1953
VI Congresso Internacional de
Lepra
03 a 10 de
abril
Espanha Madri
1958
VII Congresso Internacional de
Lepra
12 a 19 de
novembro
Japão Tóquio
1963
VII Congresso Internacional de
Lepra
12 a 20 de
setembro
Brasil Rio de
Janeiro
1968
IX Congresso Internacional de
Lepra
16 a 20 de
setembro
Inglaterra Londres
1973
X Congresso Internacional de
Lepra
13 a 18 de
agosto
Noruega Bergen
1978
XI Congresso Internacional de
Lepra
13 a 18 de
novembro
México Cidade de
México
1984
XII Congresso Internacional de
Lepra
20 a 25 de
fevereiro
Índia Nova Deli
1988
XIII Congresso Internacional
de Lepra
11 a 17 de
setembro
Holanda Haia
1993
XIV Congresso Internacional
de Lepra
29 de agosto a
04 de setembro
Estados
Unidos
Orlando
1998
XV Congresso Internacional de
Lepra
07 a 12 de
setembro
China Beijing
1
Em original no inglês: International Leprosy Congress. A tradução para o português seria: Congresso
Internacional de Lepra(CIL). Atualizando a nomenclatura temos: Congresso Internacional de
Hanseníase.Os anais completos de todos os Congressos Internacionais de Hanseníase(CIL) encontram-se
à disposição para consulta na biblioteca “Luiza Keffer” do Instituto Lauro de Souza Lima, localizado na
cidade de Bauru/SP. O XVI Congresso Internacional de Lepra já se encontra com data e local definidos.
O evento será realizado me Salvador/Brasil nos dias de 12 a 17 de agosto de 2002.
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