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Rosa Maria Spinoso de Montandon
DONA BEJA:
Desfazendo as Teias do Mito
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal de
Uberlândia, como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre
em História.
Orientadora: Profº. Drº. Vera Lúcia
Puga de Sousa.
Uberlândia MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLANDIA
2002
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M764d Montandon, Rosa Maria Spinoso de.
Dona Beja : desfazendo as teias do mito / Rosa Maria
Spinoso de. Uberlândia, 2002.
204f. : il.
Orientador: Vera Lúcia Puga de Sousa.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em História.
Inclui bibliografia.
1. História social -Teses. 2. Araxá (MG) Séc. XIX
História Teses. 3. Mulheres - Brasil - História - Teses. 4.
Mito - Teses. I. Sousa, Vera Lúcia Puga de. II. Universidade
Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em
História. III. Título.
981.51(041.3)
CDU: 930.2:316(041.3)
396(81)(091)(041.3)
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Dissertação defendida e aprovada, em _____ de _______________ de ________, pela
banca examinadora:
_________________________________________________________________________
Profª Drª Vera Lúcia Puga de Sousa
Orientadora
_________________________________________________________________________
Profª Drª Rachel Sohiet
_________________________________________________________________________
Profª Drª Rachel Sohiet
_________________________________________________________________________
A meus filhos.....
AGRADECIMENTOS
Há fatores intangíveis, mas determinantes, que subjazem a realização de qualquer
trabalho, seja ele físico ou intelectual. Por urna questão de “Justiça histórica" devo começar
por lembrar as sucessivas gerações de ancestrais meus, no "Velho" e no "Novo" mundo,
que precisaram e conseguiram sobreviver para que um dia me fosse possível entrar (ou
sair?) de cabeça fiesta vida. Concedo esse "crooito" a meus pais, Rafael e Blanca, assim
como 0 da fomlac;:ao que deram a mim e meus irmaos: Luis Rolando -que perdi ainda
jovem-, e Blanca Isabel. Eles constituem a familia que recebi. Fazem parte da minha
"bagagem de vida", que me equipou para a "experiência de viver". A eles se juntaram,
depois, José Augusto, meu companheiro de "viagem" e cúmplice por trinta anos e nossos
filhos Rossina, Rafael e Melissa. Eles são a família que formei e pela qual viviré para
siempre. Todos, são parte de mim, assim como sou parte deles. Além de agradecê-Ios,
reitero-lhes meu amor.
Muitos outros foram importantes nesta caminhada que empreendi rumo a superação
intelectual, acadêmica e profissional. Lembro com carinho as pessoas e as instituições que
me auxiliaram direta ou indiretamente:
As professoras Drª Maria Clara Thomas Machado, Coordenadora do Curso de
Mestrado e Drª Vera Lúcia Puga de Sousa, Pró-reitora de Graduação e minha orientadora,
que me acenaram pela primeira vez com a possibilidade de realização de um mestrado.
Os professores, doutores e mestres dos cursos de Especialização em História do
Brasil Republicano e do Mestrado em História da UFU: Alcides Freire Ramos, Antonio de
Almeida, Gizelda da Costa Silva Simonini, Heloísa Helena Pacheco Cardoso, Hermetes
Reis de Araújo, Jacy Alves Seixas, Jane de Fátima Rodrigues, Leila Regina Scalia Gomide,
Paulo Roberto de Almeida, Rosa Maria Ferreira, Wenceslau Gonçalves Neto, que me
possibilitaram dar o passo inicial e, depois, me franquearam o acesso aos recursos teóricos
e metodológicos que deram fundamento a meu trabalho.
Maria Helena, na secretaria do Curso de Mestrado e Magna, na Pró-reitoria de
Graduação da UFU; os professores Gislene Neder, da UFF e João Cristeli, da UFMG, pela
presteza com que me atenderam.
Ana Cristina Luiz que toma conta de minha família e de minha casa, liberando-me
dessas responsabilidades e possibilitando-me orientar meu tempo e atenção para a execução
do trabalho acadêmico.
Minha cunhada Marcilia Gontijo Montandon e minha amiga Vera Pedras, que me
brindaram sua hospedagem em Uberlândia e Belo Horizonte. Dona Julia Santos, que
respondeu a me u pedido no Rio de Janeiro. Eliane e dona Celia, que me acolheram com
carinho e pacientemente responderam a minhas indagações em Estrela do SuI. 0 professor
Oliveira Mello, que me abriu as portas de sua biblioteca em Patos de Minas. Eunice e Maria
Silvia, pela atenção que me dispensaram no "Museu e Ordem Geral Plfnio Travassos dos
Santos", em Ribeirão Preto.
Os colegas e amigos Luisa Helena de Castro Rios e Luciano Marcos Curi,
companhias constantes e valiosas nas idas e vindas da estrada. As pessoas que gentilmente
me concederam entrevistas confiando-me suas memórias e experiências pessoais.
A Universidade Federal de Uberlandia, instituição que me recebeu como aluna e o
Centro Universitario do Planalto de Araxa, onde atuo profissionalmente, representado pela
reitora professora Maria Auxiliadora Ribeiro, por terem-me proporcionado a oportunidade
e os recursos para a realização deste mestrado. A todos doy las gracias e repito com o
poeta:
... Gracias a la vida que me ha dado tanto
me ha dado el sonido y el abecedario
con e'l las palabras que pienso y declaro
madre, amigo, hermano y luz alumbrando...
SUMARIO
LISTA DE ABREVIATURAS
RESUMO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................
9
1 “MITOGÊNESE”: O Mito, a Mulher e o Tempo................................................
14
1.1 O relato do Mito......................................................................................................
15
1.2 Anna Jacintha de São José: o Tempo e a Mulher...................................................
20
1.3 Mitogênese..............................................................................................................
43
2 A HISTORICIDADE DO MITO..........................................................................
64
2.1 Letrados X Coronéis...............................................................................................
67
2.2 As Estratégias do Mito, o Fator Identitário Regional e os Tempos Modernos.......
74
2.3 Uma Figura “Colunável”........................................................................................
93
2.4 Ambíguas Relações................................................................................................
97
2.5 “O Museu da Perene Criatura”...............................................................................
103
2.6 Apropriações do Mito: na Passarela e na Telinha..................................................
108
3 AS VESTES DO MITO: Imagens e Representações.......................................... 115
3.1 Dona Beja em Preto e Branco: o Fator Racial na Estética do Mito....................... 117
3.2 Cores e Formas do Mito.........................................................................................
125
3.3 Sob a Lente das Câmeras........................................................................................
131
3.4 Dona Beja em Prosa e Verso..................................................................................
135
4 CONJECTURAS SOBRE O MITO: Diálogo com a Documentação................
157
4.1 Apropriações.......................................................................................................... 162
4.2 Transferências.........................................................................................................
166
4.3 Idicios.....................................................................................................................
178
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................
189
6 FONTES ................................................................................................................
194
RESUMO
A historicidade do mito. Com essa frase pode ser resumida a proposta deste trabalho
que tem como objeto a construção do mito em torno da figura de Anna Jacintha de São
José, Dona Beja, “cortesã” de Minas Gerais, que viveu em Araxá e Estrela do Sul, no
século XIX.
É um processo duplo e simultâneo através do qual, ao mesmo tempo em que se
reconstitui a história da construção do mito, se promove a sua “desconstrução”. A mesma
desconstrução que traz a tona a “tridimensionalidade” do mito: o relato, a personagem e o
discurso.
Pelo seu amplo leque de possibilidades temáticas e metodológicas, a autora adotou
os caminhos apontados pela História Cultural, através da linha de pesquisa História e
Cultura. Apoiando-se em fontes documentais primárias, em sua maioria oriunda dos
arquivos locais, em uma diversificada coleção de fontes provenientes da literatura, a
iconografia, a mídia, e fundamentada teoricamente em uma farta e variada bibliografia,
promove um diálogo entre essas fontes, a partir das quais discute os diferentes fatores que,
combinados, deram lugar ao mito e tornaram possível sua sobrevivência.
Faz uma análise de Anna Jacinta de São José, a personagem que inspirou o mito,
discutindo os motivos que a teriam tornado uma figura “mitogênica” ou passível de ser
mitificada através da memória e do imaginário social. Recupera o contexto histórico, desde
uma perspectiva política e sócio-cultural, em que se deu a “criação” do mito e sua
utilização para os mais diferentes fins, de políticos e econômicos, até identitários.
Discute os diversos meios de comunicação e as linguagens utilizadas para a
divulgação do mito, com a conseqüente apropriação popular através da imprensa, a
literatura, a pintura, a televisão e o carnaval.
Ao longo do trabalho, concede espaço ao “Pigmalião” de Dona Beja, apontando o
racismo presente na construção de suas imagens. Analisa o relacionamento que a sociedade
de Araxá manteve com seu mito, enfatizando o caráter ambíguo e contraditório que
permeou esse relacionamento.
Finalmente, em relação à metodologia, e tratando de um objeto com alta carga de
subjetividade, quando o tratamento convencional não permite ir além, apela para a
conjectura e para método indicial, a fim de dar conta dos cabos que ainda permanecem
soltos na história de Anna Jacinta e na construção do mito Dona Beja, destacando a
longevidade, a versatilidade das roupagens que lhe vestiram e dos discursos que o
apropriaram.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
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O visitante que chega a Araxá certamente será surpreendido pela a presença
constante de Dona Beja como marca de uma ampla gama de produtos e serviços que
começa a encontrar desde que escolhe o lugar onde se hospedar até o primeiro café do dia.
Essa presença aumentou consideravelmente nas ultimas três décadas, a partir de
1972, quando também ali cheguei, procedente do México, meu país natal e fui surpreendida
pela sua figura, que encontrei nos romances que lia tentando preencher meu tempo vago de
recém-casada. Tentava arduamente desvendar os “mistérios” da língua portuguesa e
percorrer os caminhos que me conduzissem até um povo e um país praticamente
desconhecidos.
Após vinte e cinco morando em Araxá, com a informação e experiências adquiridas
em anos de pesquisa e observação, desde minha “atalaia” particular, localizada no seio de
uma típica família local, meu reencontro com Dona Beja deu-se na escolha de seu mito
como tema desta dissertação.
Uma escolha que não foi minha; eu também fui escolhida. Contratada pela direção
do, então, Museu Municipal Dona Beja para localizar nos arquivos da cidade evidências
documentais para fundamentar os conhecimentos sobre ela, a fim de melhorar o
atendimento aos visitantes, sua figura e sua dimensão histórica foram se impondo
paulatinamente à medida que essas evidências iam surgindo das pilhas de documentos
consultados e espalhados, sem organização e condições ideais de conservação, nas
instituições laicas e religiosas locais.
Como seus homens eu também me vi presa à sua teia, embora não fosse
pessoalmente ela a me seduzir, mas os motivos da aparição de seu mito em Araxá. Quando,
como e porque, se deu a construção de seu mito, e por que uma sociedade de tradicionais
valores masculinos criou uma figura feminina “inadequada” para se fazer representar.
Este trabalho propõe desfazer as teias ou a (des)construção do mito em torno de
Dona Beja, apelido de Anna Jacintha de São José, figura do século XIX, incorporada à
Rosa Maria Spinoso de Montandon
10
história pela memória local, como heroína dos mais diversos discursos que vão desde os
políticos e identitários até os feministas do século XX.
Não é nosso objetivo fazer uma biografia, embora não possamos descartar a
necessidade de traçar um perfil biográfico com base na precária documentação disponível.
Tampouco tencionamos estabelecer os graus de “verdade” ou “mentira” que cercam sua
“invenção” mas, principalmente, refazer seu processo de mitificação partindo da convicção
de que reconstituir esse processo significará também desvelar uma parcela praticamente
intocada do passado de Araxá e dar um passo adiante no conhecimento de seus processos
históricos.
O que aqui chamamos mito é o relato que organiza e combina livremente elementos
históricos e fictícios; fatos, nomes e elementos biográficos retirados da tradição oral e da
documentação oficial em torno de uma pessoa real. É tanto a personagem, o que se tem dito
sobre ela e os discursos gerados a sua volta desde 1915, quando foi “introduzida” na
história de Araxá por um memorialista, e adotada como realidade histórica, adquirindo
repercussão nacional a partir da década de 1940.
Diante do desconhecimento e da falta de pesquisas sistematizadas, não é estranho
encontrar relatos de lendas e mitos preenchendo as lacunas deixadas pela necessidade de
explicar, significar ou representar o passado. Isso não significa que uma pesquisa
acadêmica sistematizada, dentro das normas técnicas sancionadas possa, necessariamente,
vir a contribuir para o desaparecimento dessas formas de representação. Os mitos, como
parte do imaginário e memória socialmente construída, não desaparecem à medida que vão
sendo desvelados ou revelados os “mistérios” que cercaram sua criação. Como pudemos
conferir durante a realização de nosso trabalho, as tentativas explícitas nesse sentido não
deram resultado. Em geral, e sob certas circunstâncias, os povos “constroem” e
reconstroem seu passado munidos dos melhores recursos com que podem contar: sua
memória -individual ou coletiva- e sua imaginação.
O nosso trabalho de reconstituição histórica focaliza o mito, considerando que os
mitos são elementos de grande significado na composição do inventário cultural de um
povo, incorporados pelo viés cultural da história, dando-lhes um tratamento proporcional e
adequado a sua importância como fenômenos que contribuem para a compreensão da
experiência histórica.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
11
Partimos da certeza de que os mitos não contem graus maiores ou menores de
verdade ou realidade, mas formas diferentes de expressá-la e, por tanto, são passíveis de
serem abordados de um ponto de vista histórico.
Devido a versatilidade de nosso tema, o trabalho foi estruturado em quatro capítulos
diretamente relacionados com a origem, a natureza e a variedade das fontes, utilizadas
conforme sua pertinência e oportunidade para o resultado final. Essa mesma versatilidade
nos obrigou, às vezes, a adotar abordagens e atitudes tradicionais e outras apoiadas nas
novas correntes historiográficas, tentando enfatizar não somente as limitações que as
próprias fontes impõem aos historiadores como uma ausência de pretensões de onipotência
em nossa busca por respostas.
Ao mesmo tempo, a amplitude de nosso recorte cronológico nos levou a uma
abordagem em que constantes recuos e avanços temporais foram necessários para
estabelecer as dimensões míticas e históricas de nosso objeto.
Em primeiro lugar, seguindo o modelo tradicional, cronológico e linear discutimos a
“Mitogênese”: O Mito, a Mulher e o Tempo, estabelecendo a historicidade da
personagem que deu origem ao mito, assim como os fatores que contribuíram para torná-la
mitogênica”, possibilitando sua construção. Essa abordagem nos permitiu, ao mesmo
tempo, evidenciar as limitações e os escassos resultados provenientes desse tipo de
pesquisa, servindo de contraponto e justificativa para aquela que empreendemos nos
capítulos seguintes.
Depois nos ocupamos da Historicidade do Mito, tendo como pano de fundo o
contexto político econômico e social de Araxá; questões de legitimidade e preocupações
“identitárias” regionais, nas primeiras décadas do século XX, subjacentes a sua construção.
Discutimos a “invenção” do mito após ter sido “capturado” pela linguagem escrita, a
trajetória que seguiu desde sua apropriação pelo Estado Novo, o papel da imprensa para
tornar Dona Beja “garota propaganda” do complexo hidrotermal do Barreiro, as relações
ambíguas que Araxá manteve com seu mito, até lhe ser permitido “debutar” na sociedade
local em 1965 tornando-o seu símbolo
1
.
1
O jornal Correio de Araxá noticiou, no dia oito de dezembro de 2001, o concurso “Valorização do Mito
Dona Beja”, realizado pelas Secretarias Municipais de Educação, Turismo e Desenvolvimento Econômico,
entre alunos da 5ª à 8ª série da rede municipal e particular de ensino.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
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Na terceira parte inventariamos As Vestes do Mito: Imagens e Representações
analisando as formas adotadas para se “exibir” através das diversas linguagens da literatura,
a iconografia, a festa e a TV, que ao explorá-lo, contribuíram de forma decisiva para sua
cristalização no imaginário social. Os paradigmas que inspiraram a figura da moderna Dona
Beja, os fatores culturais e psicológicos subjacentes ao processo de criação, dando-se um
certo destaque a Sebastião de Afonseca e Silva, o seu “Pigmalião”.
Segundo Henri Moniot deve-se dar maior atenção à origem social, ao estatuto e ao
papel dos responsáveis pelas tradições, assim como às condições de sua manutenção e uso
já que deles emanam seus caracteres formais, literários e de valor documental
2
.
Encerramos nosso trabalho levantando uma série de Conjecturas sobre o Mito:
Diálogo com a Documentação. Um exercício a partir de fontes primárias, principalmente
documentos oficiais do século XIX, em torno das Apropriações, Transferências e Indícios
que encontramos ao procurar o grau de historicidade que elas apresentam. Sua leitura está
amparada na metodologia indiciária proposta por Ginzburg, assim como na sua discussão
sobre o tratamento e a prática conjectural na emissão de conclusões.
São analisadas referências isoladas, periféricas e aparentemente descontextualizadas
da personagem que, mais do que esclarecimentos, muitas vezes levantam outros enigmas
que nem sempre nos foi possível esclarecer. Embora não nos dessem respostas, partimos do
princípio de que se estão ali é por algum motivo, indicando alguma relação direta ou
indireta com a personagem, não podendo, por isso mesmo, ser desprezadas.
Sendo esta uma pesquisa sobre um mito de forte apelo popular, em torno de uma
figura feminina, procuramos o arcabouço teórico e metodológico na História Cultural que
em sua aproximação com a sociologia, a antropologia, a psicologia e a literatura,
incorporou uma série de utensílios importante para sortearmos as dificuldades que surgem
ao se tentar uma abordagem histórica de objetos que, como os mitos, constituem
manifestações culturais intimamente ligadas à subjetividade ou que mantém em sua
estrutura uma forte carga subjetiva.
Campos como os do Mito, Memória, Cultura Popular, Relações de Gênero e de
Poder; História das Mulheres, Cotidiano e Vida Privada; Literatura, Carnaval e Mídia,
2
MONIOT, Henri. “A história dos povos sem história”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. (org.)
História: novos problemas. 4ª ed. Tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995,
p.103
Rosa Maria Spinoso de Montandon
13
“tocados” ou alcançados pelo amplo abraço de nosso objeto, são considerados neste
trabalho que, por isso mesmo, amparou-se sob o amplo guarda-chuva da linha de pesquisa
História e Cultura, sem que essa amplitude sugira uma atitude leviana ou banal em relação
aos objetos de estudo que se acolhem sob sua égide.
Uma das críticas mais freqüentes endereçadas à História Cultural, refere-se aos
excessos cometidos e às licenças tomadas em seu nome, o que tem produzido trabalhos
recheados de teoria, longas citações e discussões generalizantes, mas de minguada
historicidade. Atentas para esse risco e considerando também a versatilidade e riqueza de
nossas fontes bibliográficas, assim como os vieses que poderiam ser adotados na
interrogação ou na abordagem de nosso objeto, experimentamos uma economia de citações,
limitando-as a curtas referências, indispensáveis para avalizar teoricamente nossa proposta
historiográfica.
Para as fontes primarias, olhamos com especial atenção os arquivos dos poderes
Legislativo e Judiciário locais; os arquivos dos Cartórios de 1º e (antigo) 2º Ofício de
Notas, os quais catalogamos com os títulos “Coleção Augusto Eduardo Montandon”e
“Coleção Joaquim de Paula Machado”, respectivamente, assim como a coleção particular
que pertenceu a Sebastião de Afonseca e Silva, doada à Fundação Cultural Calmon Barreto
de Araxá pela família e recolhida sob a denominação de “Arquivo do Museu Dona Beja”.
Finalmente, não podemos deixar de mencionar as informações e dados recolhidos
através de recursos tecnológicos como os documentos eletrônicos, vídeos e discos;
entrevistas gravadas e filmadas e os depoimentos de pessoas de diferentes faixas etárias.
Eles nos permitiram, entre outras coisas, estabelecermos o papel e o poder das imagens na
escrita, na oralidade e na mídia como veículos fundamentais para a divulgação do mito e
sua cristalização no imaginário social. Através deles é possível analisarmos as
representações que foram construídas do mito, sua longevidade e sua assimilação pela
sociedade contemporânea.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
14
Mulheres, brancas, puras não há;
a Mãe de Deus não só simboliza
a mulher desejada e perfeita,
como, sem dúvida, seria a figura
mais ouvida pelo Filho de Deus'
3
.
Seria difícil compreender um mito como o que se construiu em torno de Dona Beja,
incorporado à crônica que se adotou como expressão da realidade histórica de uma cidade,
sem conhecer, previamente, o caráter memorialista que apresenta a história dessa cidade.
Em Araxá, esse memorialismo possibilitou não só o nascimento, como a manutenção do
mito, ponte legítima entre a cidade e seu passado. Assim, o Mito Dona Beja foi apropriado
e constituído, não precisamente como esclarecimento do passado, mas como uma
representação simbólica dele.
Em 1915 a história de Araxá surgiu entremeada por uma coleção de eventos em
seqüência, onde a realidade histórica coexiste pacificamente e em harmonia confundindo-se
com lendas, mitos e poemas, os quais tem uma função auto-explicativa para a sociedade
que os criou e adotou, preenchendo as lacunas e iluminando os lapsos de uma história
carente de fontes catalogadas, de pesquisas sistematizadas e de bases metodológicas, que se
apoia na memória.
Dessa forma e cobrindo o período anterior à presença do colonizador branco, a
população indígena foi representada pela lenda de Catuíra, a princesa filha do cacique da
tribo dos Araxás e pivô das disputas entre dois guerreiros que acabaram por facilitar a
destruição de seu povo. Do mesmo período, para representar a população negra, resgatou-se
3
VASCONCELLOS, Sylvio de. Mineiridade. Ensaio de Caracterização. Belo Horizonte, 1968. p. 144.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
15
a figura lendária do Ambrósio, fundador do quilombo do Tengo-Tengo, incorporado ao
elenco de personagens históricos de Araxá
4
. O século XIX aparece dominado pela figura de
Dona Beja, incorporada à história como a heroína responsável pela integridade territorial do
estado responsável pela reincorporação do antigo Sertão da farinha Podre (atualmente
regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba) a Minas Gerais, sendo mais tarde,
associada também com a Revolução de 1842.
Para o antropólogo Ovídio de Abreu Filho, a história de Araxá tal e como é
descrita, é importante por produzir uma visão da cidade que oferece os elementos para se
pensar sua identidade
5
. Assim, história e mito estariam inseridos dentro de um mesmo
discurso que junto com as águas minerais e o Grande Hotel do Barreiro formariam o tripé a
partir do qual seria possível analisar a construção dessa identidade.
O Relato do Mito
Sendo o processo de (des)construção do mito a problemática que moveu este
trabalho, é necessário apresentar um relato sucinto do mesmo, contendo os elementos
básicos e constantes mantidos nos romances sobre Dona Beja, que possa servir-nos de
apoio às reflexões seguintes. Esses romances, por sua vez, estão inspirados no relato
“original” ou “fundador” de 1915. O critério para a “originalidade” desse relato se
fundamenta em ser o primeiro e o único recolhido, segundo seus autores, diretamente da
tradição oral através da memória de pessoas idosas, parentes e descendentes dos
protagonistas, entre eles o Dr. Eduardo Augusto Montandon, Dona Gabriela Franco
Carneiro e Antônio Machado de Morais e Castro.
Como ilustração do relato inserimos trechos da canção-tema da telenovela “Dona
Beija”. Uma versão alternativa e paralela da história dessa personagem, que já foi contada e
cantada em prosa e verso pelos artistas da música e da palavra: cantores, escritores e poetas.
Eis, pois, sua história:
4
A Revista do Arquivo Público Mineiro publicou, em 1904, o relato “Os Perseguidos”, de Carmo Gama
supostamente recolhida da tradição oral, sobre a história do Ambrósio e a formação do quilombo.
5
Cf. ABREU FILHO, Ovídio de. Raça, sangue e luta: identidade e parentesco em uma cidade do
interior. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social.) Rio de Janeiro: Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1980. p. 50.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
16
A princípios do século XIX, chegaram a São Domingos de Araxá, procedentes de
Formiga MG, Anna Jacintha de São José, ainda criança, e sua mãe, Maria Bernarda dos
Santos. Em algumas versões, elas aparecem acompanhadas por um terceiro personagem,
que pode ser o pai de Maria Bernarda ou um tio da menina, responsável por ela após a
morte prematura de sua mãe.
Filha de mãe solteira, nunca se soube quem foi o pai. Tal segredo foi preenchido por
diversas versões, como a de que teria sido filha de um nobre português. Como filha de pai
português, também imaginaram uma mãe índia, versão pouco conhecida e que, parece, não
teve muita repercussão.
Beija Flor Beja menina
Quem a fez assim tão divina...
No Arraial de São Domingos, Anna Jacintha cresceu como qualquer criança normal,
mas já se destacava pela sua extraordinária beleza, comparada com o “beijo” nome popular
de uma flor silvestre e muito comum na região, ou com o “beija-flor”, pássaro ágil e
delicado, de plumagem furta-cor que teriam inspirado o apelido que recebera de seu
primeiro namorado ou do povo de Araxá: Beija ou Beja. Esse primeiro amor o conheceu
ainda criança, chamava-se Antônio ou Manoel Fernandes de Sampaio, de quem foi
separada por um capricho do destino que apareceu disfarçado na figura de um ouvidor.
Joaquim Ignácio Silveira da Mota chegou a São Domingos de Araxá para exercer
suas funções como ouvidor, procedente da Vila Boa capital da Província de Goiás, à qual
pertencia, então, o Sertão de Farinha Podre. Foi recebido pelo povo, com a devida
consideração que seu alto e importante cargo requeria. Em uma das comemorações em sua
homenagem conheceu a jovem, de 14 ou 15 anos, que o cativou com sua beleza. Tomado
de arrebatadora paixão, nessa mesma noite mandou os homens de sua guarda pessoal raptá-
la. Beja foi então arrancada violentamente de seu leito, enquanto seu avô era assassinado ao
tentar, inutilmente, impedir o rapto.
O ouvidor fugiu com a ela para a vila de Paracatu do Príncipe, onde estariam a salvo
da ira do povo e da perseguição do governador de Goiás, seu inimigo, que não cessaria
enquanto não conseguisse levá-lo à justiça pelo crime cometido em sua jurisdição.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
17
Em Paracatu, o ouvidor instalou Beja como sua amante, em um luxuoso palacete
mobiliado especialmente para ela. Cobriu-a de jóias, de sedas e veludos; educou-a como
uma dama e a treinou conforme os costumes da corte, da qual era freqüentador assíduo e
onde tinha importantes amizades, inclusive membros da Família Real.
A fim de livrar-se da constante ameaça da justiça de Goiás e seguindo os conselhos
de Beja, o ouvidor usou de suas influências na corte para obter a reintegração do Sertão da
Farinha Podre a seus antigos limites, sob a jurisdição de Minas Gerais, de onde havia sido
separado em 1766. Dessa forma, o ouvidor ficaria definitivamente livre da justiça e das
autoridades de Goiás.
Mas o ouvidor, um homem casado, teve que voltar à corte e considerou
inconveniente a presença de Beja junto a ele. Por decisão própria ou do ouvidor, ela
retornou para seu lar em Araxá, pensando que seria bem recebida e onde teria acolhida.
Após dois anos, voltou rica e refinada, carregada de presentes e com os modos que lhe
proporcionou o ouvidor, como recompensa ou compensação pelo tempo que a manteve a
seu lado.
...Quem a fez tão bela e tão fera
Chuva e sol de primavera...
Porém, ao contrario do que esperava não foi bem recebida. Foi vítima da
incompreensão e intolerância do povo, fato que marcou profundamente seu caráter e
determinou o rumo que sua vida iria tomar a partir de então. Construiu um palacete na
Praça da Matriz, semelhante àquele em que vivia em Paracatu, mobiliou-o com luxo, e nele
se instalou como uma rainha, levando uma vida de escândalos e aventuras, para deleite dos
homens e desespero das mulheres, fossem senhoras respeitáveis ou mundanas, como suas
vizinhas Josefa Pereira, Candinha da Serra e as Candinhas, que lhe declararam guerra.
Umas, porque a viam como rival, perigosa para a paz de seus lares, e outras, como uma
poderosa concorrente que lhes tomaria a melhor clientela.
...Senhora de tantos amores
a dona de Araxá
por ela sonham os homens
que a Beja beijará...
.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
18
Essas hostilidades inspiraram algumas das anedotas mais conhecidas e repetidas
constantemente pelo povo. Em uma ocasião, com o intuito de humilhá-la, as senhoras de
São Domingos de Araxá lhe enviaram esterco embrulhado para presente e acompanhado de
um cartão com os dizeres “para a rapariga do ouvidor”. Beja respondeu com um belo buquê
de rosas, cultivadas em seu jardim, com um cartão que dizia “cada um dá o que tem”. Em
outra ocasião, sabendo que suas invejosas concorrentes tinham mandado espioná-la para
copiar a roupa que usaria na missa de domingo, teria enganado-as fazendo-as comprar o
mesmo tecido com que vestiu as escravas que sempre a acompanhavam.
Ainda assim, sua casa tornou-se o centro da vida social, ponto obrigatório onde se
reuniam os homens brancos mais importantes da vila. Os negros, ainda que fossem
abonados, ela os desprezava .
Senhora também das dores
do povo de Araxá
por ela sonham os homens
que a Beja vai desprezar.
Dona Beja teve duas filhas que nasceram em Araxá. A primeira Thereza Tomazia de
Jesus, fruto de seus amores com Antonio ou Manoel Fernandes de Sampaio, seu namorado
de infância, com quem retomou o relacionamento, embora ele já estivesse casado com outra
moça, Aninha Felizarda. A segunda foi Joana de Deus de São José, filha de João José
Carneiro de Mendonça, seu novo amante, membro de uma distinta família e recém chegado
da corte onde se formara em direito.
Diz a tradição que anos depois, cansada dos ciúmes de Sampaio e querendo encerrar
essa convivência, Beja foi violentamente surrada por ele, ficando à beira da morte, quando,
enfurecido pela rejeição, o amante a emboscou no caminho das fontes, por onde ela passava
diariamente para tomar seu banho. Quando um ano depois o ex-amante foi assassinado, foi
acusada como mandante do crime. Levada a julgamento, foi absolvida por falta de provas.
Perto de Araxá, Beja tinha uma propriedade, a “Chácara do Jatobá”, célebre por ser
o lugar onde oferecia festas e saraus para recepcionar os clientes ilustres e convidados
especiais, a quem tratava como súditos e de quem recebia tratamento de rainha. Lá, além de
pagar um ingresso fixo, independente dos “serviços” que viessem a receber, os clientes
Rosa Maria Spinoso de Montandon
19
deveriam submeter-se às condições impostas pela senhora, que cada noite escolhia a dedo
apenas um deles para passar a noite em sua companhia.
Que mistério tem
essa tal mulher
Ela vai-nos enfeitiçando
Todo homem
perde o rumo
E se entrega a seu domínio...
Após casar Thereza com um rico fazendeiro, membro de uma importante família
local e desejando levar uma vida respeitável, Beja mudou-se para Bagagem, centro
diamantífero onde, na época, tinham encontrado um dos maiores diamantes do mundo
batizado como Estrela do Sul. Lá empreendeu a reconstrução de uma ponte destruída pelas
últimas enchentes do rio Bagagem, para que a procissão da padroeira do lugar, Nossa
Senhora Mãe dos Homens, pudesse passar em frente à sua casa. Além disso, desviou o
mesmo rio para procurar os diamantes depositados em seu leito.
Em Bagagem casou Joana com um fazendeiro do lugar e construiu para eles uma
casa perto da sua, ambas vizinhas da mesma ponte. A regeneração chegou-lhe com a idade
e com os netos. A partir de então levou uma vida exemplar conquistando o respeito e a
admiração de todos. De vez em quando, aparecia um ou outro admirador atraído, ainda,
pela fama de sua lendária beleza, que após confirmá-la, ia-se surpreso com seu recato e
amabilidade. Morreu no seio da Santa Madre Igreja, rodeada pela sua família. Foi
sepultada, conforme sua vontade, no cemitério da Igreja Matriz, vestida com o hábito de
Nossa Senhora do Carmo, encomendando sua alma a São Francisco de Assis, de quem fora
“indigna irmã”.
Ela ama ela odeia
mas não sei se ela é feliz”
6
.
6
TISO, Wagner; BRANT, Fernando; Viva Voz. Trilha Sonora da Novela Dona Beija. São Paulo: RCA,
Rosa Maria Spinoso de Montandon
20
Anna Jacintha de São José: uma mulher do seu tempo.
É muito tênue a fronteira que separa o mito da realidade histórica, não apenas no
caso de Araxá como no caso de Dona Beja, o que, por vezes, torna difícil evitar cruzá-la.
Ao realizarmos este trabalho constatamos que ao referir-nos ao Mito Dona Beja, tanto
podíamos estar aludindo à figura feminina, o relato de suas peripécias, colocado em
circulação desde 1915 ou aos discursos que se construíram em torno dela. A personagem, o
relato e tudo que se criou e se disse a seu respeito tornaram-se dessa forma únicos e
indissolúveis.
Mas essa constatação também nos alertou para outros desdobramentos relacionados
ao objeto da pesquisa: o sujeito histórico e o tempo. Embora Anna Jacintha de São José
tenha transcendido como o mito Dona Beja, como objeto de pesquisa seria preciso separar
o sujeito histórico, que deu lugar ao mito, e o próprio mito originado daquele, e situar cada
um em seu respectivo tempo, evitando cair na armadilha de avaliar e discutir a personagem
histórica, e supostos traços de sua personalidade, com base na figura popularizada pela
literatura produzida no século XX, a partir do relato fundador, reforçada pelo discurso
7
.
A Dona Beja histórica é a que viveu em Araxá e morreu em Estrela do Sul, no
século XIX, instalando-se na memória pela suas práticas sociais desviantes; a Dona Beja
mito é tudo isso e, ainda, a cortesã de beleza ímpar, da recuperação do Triângulo, que foi
raptada e amante do ouvidor. Finalmente, uma outra Dona Beja sobrevive, apropriada pelos
discursos atuais como a “mulher à frente de seu tempo”, a feminista precoce que se dava o
luxo de escolher sem esperar ser escolhida
8
.
1986. Disco de vinil, 33rpm. Acervo Rádio Imbiara. Araxá, MG
7
Exemplo de: FREITAS, Wilcebanda de Oliveira. Nas Sombras do Poder: estratégias femininas nas
Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Dissertação. (Mestrado em História). Niterói: Universidade
Federal Fluminense, 2000. A autora ilustra sua discussão com a figura de Bárbara Heliodora e as
personagens literárias Chica da Silva e Dona Beja, de Agripa Vasconcelos.
8
Maneira, Ana Lúcia Meneses. Entrevista. Araxá: 09/09/2001. Em inúmeras conversas e na entrevista
gravada em sua casa, “Lucinha” sempre se declarou “fã” incondicional de Dona Beja, cuja telenovela
assistiu as duas vezes em que passou na TV. O que mais a impressionava era, precisamente, a autonomia
de suas decisões que lhe permitia a livre escolha, inclusive, de seus parceiros amorosos.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
21
Ainda em relação ao tempo, sabemos que os mitos são intemporais, pertencem aos
domínios da memória e, portanto, a um tempo “virtual” que resiste em submeter-se ao
“imperialismo” do tempo histórico convencional
9
. Por isso que quase sempre os mitos
dispensam datas exatas ou marcos cronológicos. Mas uma reconstituição histórica como a
que aqui se pretende, requer uma análise de acordo com esse tempo convencional, sendo
necessário, em conseqüência, estabelecermos o tempo em que viveu a personagem que
gerou o mito e o tempo em que se tornou mito, com tudo aquilo que se passou a dizer sobre
ela. Tempo histórico para a personagem histórica, o relato do mito e seus discursos.
O século XX, então, é o tempo do nascimento do mito, quando Dona Beja foi
“resgatada” da tradição oral pela linguagem escrita, modelada física e moralmente e
introduzida com riqueza de detalhes como protagonista em um relato que combina ficção e
realidade sendo aceita como verdadeira. O relato anterior pertence a esse tempo.
O século XIX corresponde ao tempo da personagem Anna Jacintha de São José,
Dona Beja, em torno de quem se teceu o mito. Tempo em que viveu, morreu e se fixou na
memória, passando a circular oralmente ficando presa no imaginário. A esta categoria
pertence o perfil biográfico que faremos a seguir, com base na reduzida documentação
localizada. Tarefa que parece não ter precedente, motivo pelo qual não se localizou
nenhuma biografia.
Lembrando que não é nosso objetivo biografar Dona Beja, mas dar a conhecer
alguns dados básicos de sua vida que servirão de apoio para nossa análise, o relato que
fazemos não apresenta um exercício crítico com a densidade requerida e própria de uma
biografia. Consiste em uma leitura linear e plana das informações extraídas dos documentos
oficiais, organizadas cronologicamente e complementadas, quando necessário, pela
historiografia. Esse exercício crítico deverá ser realizado no final do capítulo ao
analisarmos as possíveis causas de sua “mitogênese”
10
.
9
Na perspectiva de Pierre Nora, que estabelece uma dicotomia entre memória e história e para quem a
memória teria sucumbido sob a ditadura imposta pela história. NORA, Pierre. Entre Memória e História. A
problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. In: Projeto História, Nº 10. São Paulo: EDUC,
dez. 1993. pp. 7-28. Ver também: SEIXAS, Jacy A. Percursos de memória em terras de história:
problemáticas atuais. In:------. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível.
Campinas: Edunicamp, 2002.
10
De “mitogênica” ou passível de tornar-se mito por incorporar os estereótipos de vilão ou herói vigentes na
sociedade à qual pertence. In: BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000. pp. 79-80.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
22
Consideramos que, para empreendermos essa análise, seria necessário conhecer
primeiro e minimamente a personagem que gerou o mito. Para assinalar sua historicidade
mantivemos a grafia dos nomes próprios segundo constam, salvo raras exceções, na maioria
dos documentos.
...o quadro em que tais mães e filhas passeavam suas misérias...
11
,
A frase de Mary del Priore aludindo à condição de extrema penúria e abandono que
quase sempre rondava as mulheres sós, empurradas para a prostituição durante o período
colonial, serve de inspiração para dar início ao nosso relato, ilustrando a possível chegada
de Maria Bernarda dos Santos e sua filha, Anna Jacintha de São José, ao Arraial de São
Domigos de Araxá, ocorrida em algum momento das primeiras décadas do século XIX.
O quadro é completado por Luciano Figueiredo que se refere ao caráter itinerante
da população mineira
12
,
ao analisar a dispersão populacional para novas áreas após o
declínio da mineração em Minas Gerais, assim como por Laura de Mello e Souza
13
, que
discute a falsa riqueza atribuída à capitania e a real pobreza que afligia a maioria de sua
população.
Essa dispersão era, certamente, acompanhada pelas mulheres, viúvas, solteiras ou
abandonadas que, igual a tantos miseráveis e “desclassificados”,
iam e vinham no lastro
das caravanas de tropeiros, “pegando carona” e recolhendo os farelos de uma vida marcada
pela incerteza e a aventura. E gravitando sempre em torno delas, circulavam, onipresentes,
as meretrizes, mulheres pobres a quem a necessidade de prover o sustento para si e seus
dependentes e a falta de oportunidade de inserção nas atividades produtivas impeliam para
a prostituição.
Assim, para Laura de Mello e Souza, muitos devem ter sido os casos de mulheres
sozinhas, mães solteiras que tinham que sustentar os filhos e a casa com o produto de seu
11
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. p. 84.
12
FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da Memória. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. pp. 79-80.
13
Cf. MELLO e SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Graal, 1986. Sobre o mesmo tema, ver também: ------ Opulência e Miséria das Minas Gerais.
São Paulo: Brasiliense, 1997.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
23
trabalho, exercendo esporadicamente a prostituição para complementarem a receita
doméstica...
14
Mãe e filha, de que falamos aqui, saíram provavelmente de Formiga, MG, onde
tinha nascido Anna Jacintha, segundo registrou em seu testamento, o mesmo em que
menciona um irmão, Antônio Rodrigues, sem que possamos precisar se ele já as
acompanhava em sua chegada ou se nasceu depois em Araxá. Antônio desapareceu no
silêncio dos documentos junto com sua mãe, contribuindo para aumentar a escuridão que
cerca a maior parte da vida de nossa personagem.
É bem possível que Anna Jacintha e sua mãe fizessem parte de alguma das levas de
novos povoadores que chegavam atraídos pelas possibilidades que o recente Julgado de São
Domingos de Araxá oferecia, graças às boas pastagens e às recém descobertas fontes de
águas minerais, elementos que possibilitaram o desenvolvimento da agricultura e da
pecuária. A sesmaria do Barreiro, em cujas terras surgiu o arraial e cujo “marco pião” havia
sido plantado no meio dessas fontes, tinha sido medida e demarcada em 1785,
incrementando, desde então, a ocupação e a concessão de sesmarias nas áreas de seu
entorno
15
.
Quando, em 1821, o sistema de sesmarias cessou no Brasil, a região já se destacava
como produtora de gado, a única riqueza da região, na avaliação de Saint-Hilaire, sendo
percorrida pelas caravanas de tropeiros que abasteciam os maiores centros com seus
produtos. Saint-Hilaire mesmo cruzou com uma delas em 1819, após deixar Araxá
16
, e
seguindo essas caravanas, levas de homens, mulheres e crianças, chegavam e se assentavam
no arraial.
O fato é que por essa época, Anna Jacintha já se encontrava ali e batizava sua filha
“natural”, Thereza Thomazia de Jesus, nascida em 15 de fevereiro de 1819
17
. De acordo
14
MELLO e SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro. op. cit. p. 180.
15
Nos arquivos do Poder Judiciário de Araxá localizamos e transcrevemos parcialmente 109 sesmarias,
concedidas nos Julgados de Araxá e Desemboque entre 1772 e 1821. Estão catalogadas em um trabalho
ainda inédito, segundo o ano de sua concessão, donatário e localização geográfica; acrescidas de notas
complementares.
16
SAINT-HILAIRE, August. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Tradução de Regina Régis
Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975. pp. 101-132.
17
Registro de batismo. 24 de fev. de 1819. Pasta nº 6, folha 54v. Arquivos da Igreja Matriz de São Domingos.
Fundação Cultural Calmon Barreto. Araxá, MG. Doravante: AIMSD e FCCB, respectivamente.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
24
com o registro de batismo, foram os padrinhos da menina o quartel-mestre Jerônimo José
da Silva e D. Thereza Thomazia de Jesus, mãe do padre batizante, Francisco José da Silva
que, anos depois, em 1833, reconheceu e legitimou sua paternidade através de um
documento cartorário
18
.
Não foi possível estabelecer quando se iniciaram as relações de Anna Jacintha com
o padre nem quanto tempo duraram, mas tudo indica que contavam com a cumplicidade
familiar, sancionada pela presença da mãe dele, atuando como madrinha no batizado da
neta. Por outro lado, e ao que parece, tais relações não incomodavam o resto da família já
que, em 1826, a própria Anna Jacintha foi madrinha de batismo de Antônio, filho de Thomé
Francisco da Silva Botelho, parente de seu amante
19
.
Nada existe de concreto sobre a vida e as atividades desempenhadas por Maria
Bernarda e sua filha nos tempos de sua chegada e nas duas décadas seguintes. Fossem elas
ilícitas ou não, tudo que se poderia dizer estaria fundado em “evidências circunstanciais”,
apoiadas na documentação indireta e na historiografia produzida sobre essa época.
O certo é que por volta de 1832 Anna Jacintha já se encontrava perfeitamente
instalada na vila, no sobrado por ela edificado na Praça da Matriz
20
e se dispunha a
aumentar suas propriedades, adquirindo algumas casas vizinhas, entre a sua residência e a
do vigário, em um dos becos laterais da praça, o que permitiria que fossem emendadas com
o quintal de seu sobrado, formando um L
21
.
Nessa ocasião, Anna Jacintha solicitou e foi atendida pela Câmara Municipal com a
indicação de um alinhador, que conferisse o alinhamento dessas propriedades, em função
de uma queixa apresentada às autoridades por um vizinho recém-chegado à vila, o suíço
18
Escritura de perfilhamento. 16 de maio de 1831. Livro nº 4, folha 40. Cartório do 1º Ofício de Notas.
Araxá, MG.
19
Registro de batismo de Antônio, filho legítimo de Thomé Francisco da Silva e Anna Thereza da Rocha.
Batizado “a princípios de 1826”. Padrinhos: Anna Jacintha de São José e Antônio Machado de Moraes. O
registro foi feito em 25 de fev. de 1854. .Pasta nº 6, folha 50. AIMSD/FCCB. Araxá, MG.
20
Escritura de compra-venda. 25 de jul. de 1864. Livro nº 1, folha 48v. Cartório do 2º Ofício de Notas. Araxá,
MG.
21
Digo eu abaixo asignada (sic) que entre os bens que possuo (...) huma morada de casas neste arraial d. S.
Dom.ºs de Araxa (...) sendo por hum lado com o Ajud. Antº. José de Ar. e por outro o Rdo. Vigrº. Francº.
José da Sª. cujas casas (...) as vendo (...) para todo e sempre a Srª D. Anna Jacintha de S. Je (...) 26 de
Fevereiro de 1832... Documento avulso. Arquivo do Museu Dona Beja. Doravante: AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
25
Frederico Augusto Montandon, que reclamava dos prejuízos que sua residência sofreria
com o estreitamento do beco, justo no local dos imóveis recém adquiridos por ela
22
. Tudo
indica que à raiz desse conflito de interesses iniciou-se uma longa relação de amizade entre
os membros de ambas famílias, fortalecida depois pelo parentesco, a julgar pelos
casamentos realizados e os batizados em que aparecem juntos como padrinhos.
Voltando às atividades de Anna Jacintha, uma boa pista nos é oferecida, mais uma
vez, por Figueiredo que estudou a participação feminina no comércio varejista de Minas
Gerais durante a colônia, constatando o domínio das mulheres nesse setor. Ele ainda
informa que esse fenômeno foi observado também por outros historiadores como Luis Mott
que fornece amplo panorama do pequeno comércio nos principais núcleos urbanos da
América Portuguesa no qual evidencia-se a maciça ocupação feminina, sejam (as
mulheres) livres, forras, escravas de qualquer cor, inclusive brancas, em atividades
comerciais
23
.
Assim, sua suposta “fortuna”, embora sem o gla mour com que sempre esteve
rodeada, se realmente existiu, teve uma origem bem mais prosaica, possivelmente derivada
das atividades comerciais, das relações amorosas -ou não-, decorrentes daquelas, e da
habilidade com que parece havê-las manejado.
A arquitetura de seu sobrado, com cinco portas no térreo, sua localização num local
nobre da praça, ao lado da Igreja Matriz de São Domingos, e o nome de Anna Jacintha
encabeçando uma relação de 31 moradores estabelecidos com “negócios”, registrados no
município, em 1834, dos quais 9 eram mulheres, nos autorizam a considerar o comércio
varejista como uma de suas possíveis atividades.
A idéia de que essa Anna Jacintha fosse nossa a personagem é reforçada pelo fato
de que nas outras listas de moradores em que encontramos seu nome, ele aparece sempre
entre os primeiros, junto com os de vizinhos que, sabidamente, moravam, como ela, na
Praça da Matriz. Isso nos permitiu concluir que essas listas deviam começar sempre pelos
moradores do quadrilátero central, avançando em direção aos da periferia.
22
Atas da Câmara Municipal. 1833. Livro nº 1, folha 139. Arquivos da Câmara Municipal, doravante
ACM/FCCB. Araxá, MG.
23
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit. p. 34.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
26
Mas não se pode omitir que em 1863 esse mesmo nome ainda constava na relação
de pessoas registradas com “negócios” na vila, embora por essa época ela já não morasse
em Araxá. Ainda assim, existe a possibilidade de, mesmo ausente, haver mantido o negocio
em seu nome, porém traspassado ou administrado por terceiros, já que a venda do imóvel
somente ocorreu um ano depois, em 1864. Outra possibilidade seria que essa Anna Jacintha
fosse uma homônima embora no mapa populacional da província, realizado em 1832, ela
fosse a única mulher registrada com esse nome, sem constar, porém, sua ocupação.
Ainda de acordo com Luciano Figueiredo
24
, o comércio de varejo realizado em
vendas e pequenos estabelecimentos, praticamente dominado por mulheres nas Minas
Gerais até o fim da colônia, gerava uma série de atividades paralelas e ilícitas, como o
contrabando e a prostituição, que se articulavam a sua volta, motivo que nos autoriza a
pensar na última como outra das possíveis atividades praticadas não somente por Anna
Jacintha, como por sua mãe.
Não seria descabido pensar em mãe e filha se prostituindo para sobreviverem até
serem “resgatadas” pelo padre, trampolim para “subir na vida”, fazendo um “pé de meia”
com um negocio que a jovem faria prosperar com seu talento e determinação e, quem sabe,
com uma ajudazinha dos cavalheiros abonados. Há um longo histórico de prostituição
familiar na tradição colonial mineira, segundo a historiografia desse período.
Referências documentais indicam que, além das propriedades na vila, Anna Jacintha
pode haver tido outras na zona rural, embora destas não se localizaram escrituras ou
documentos em que seu nome e apelido estivessem associados diretamente, como parte
interessada. São citadas apenas como referência para se estabelecer a localização daquelas
que estavam sendo referidas ou negociadas.
Nos autos do processo movido contra os envolvidos na Revolução de 1842, um dos
acusados mencionou um retiro de Dona Anna Jacintha de São José
25
, para onde teria ido
acompanhando as forças rebeldes. Lembrando da famosa “Chácara do Jatobá”, propriedade
que sempre lhe foi atribuída, situada próxima à vila, “na Sesmaria do Barreiro”, pensamos
24
FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. pp. 141-187. Também em: Mello e Souza, Laura de.
Desclassificados do Ouro. op. cit. p. 184.
25
Autos do Processo da Revolução de 1842. Arquivos da Fundação Cultural Calmon Barreto, doravante
AFCCB. Depoimento de Antônio Joaquim de Campos Maranhão. folha 322.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
27
se tal “retiro” não poderia corresponder a essa chácara, ainda que não eliminemos a
possib ilidade de tratar-se de outra propriedade diferente, como oportunamente se verá.
Um “retiro da Beija” também consta em um documento cartorário onde aparece
situado na sesmaria do Barreiro
26
. É possível que também se trate daquela mesma chácara
nas redondezas de Araxá, que foi batizada de “Jatobá” por ser esse o nome que se dá, ainda
hoje, à região em que estava localizada.
A célebre chácara somente foi encontrada em uma escritura de compra-venda de
1874, mas sem estar relacionada diretamente com Dona Beja; somente o fato de constar
como “Chácara da Beija, no lugar denominado Jatobá”, sugere que lhe tenha pertencido.
Pensamos ser a mesma que os vendedores, Joaquim Eulálio Vieira de Sousa e sua mulher,
Maria Paula Rodrigues Tavares, herdaram de Joaquim Gregório Rodrigues Tavares, seu
sogro e pai, respectivamente. No inventário deste, e entre os bens que couberam a esse
casal, constava uma propriedade rural que obedecia à mesma descrição e que recebeu uma
avaliação aproximada à soma pela qual estava sendo vendida, embora não constasse sua
denominação
27
.
No documento de venda é denominada “Chácara da Beija” e é descrita como sendo
formada por um sobrado, equipada com monjolo, cercada por mil e duzentas braças, de
“vallas” e situada nas “cabeceiras do Córrego do Retiro”, logo, bem próxima de Araxá
28
.
Entre 1888 e 1889, Sancho de Freitas Mourão e sua esposa Ana Augusta
Montandon Mourão, realizaram duas transações imobiliárias: a primeira permutando uma
casa que tinham na cidade pela “Chácara da Beija”, situada no lugar denominado “Jatobá”
e a segunda, um ano depois, permutando somente a casa da chácara por outra na cidade
29
.
26
Escritura de compra-venda. Livro nº 13, folha 57. Cartório do 1º Ofício de Notas. Araxá, MG.
27
Inventario de Joaquim Gregório Rodrigues Tavares. 1873. Caixa nº 115. Arquivo do Fórum Tito Fulgêncio.
Doravante: AFTF. Araxá, MG.
28
Registro. 1873. Livro nº 3 1º folha 2. Cartório de Registro de Imóveis. Araxá, MG. Registro. 25 de jul. de
1874. Livro nº 3 folha 3. Cartório de Registro de Imóveis. Araxá, MG.
Considerando que uma braça equivalia a dez palmos de comprimento ou 2.2 m. as “vallas” que cercavam a
propriedade podem ser calculadas em 26,000 m. aproximadamente. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 280.
29
Escritura de compra-venda. 1888. Livro nº 19, folha 21v. Cartório do 1º Ofício de Notas. Araxá, MG.
Escritura de compra-venda. 1889. Livro nº 20, folha 3v. Cartório de 1º Ofício de Notas. Araxá, MG.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
28
Neste documento foi estabelecido que a casa da chácara poderia ser “desmanchada” e
reconstruída no local desejado pelo seu novo dono, segundo a prática comum, ainda hoje,
de reaproveitar o material de demolição. Neste caso, o fato do negócio envolver apenas a
casa, sem os terrenos, e a possibilidade de ser aproveitado seu material de construção,
indicam que o mesmo devia ser, no mínimo, de boa qualidade, a ponto de ser objeto de
permuta em um negócio imobiliário.
Esses detalhes são necessários pela importância e o espaço que a chácara ocupa no
mito Dona Beja, reforçado pela ausência de vestígios materiais e o desconhecimento
público da documentação relacionada com a propriedade, o que tem gerado diferentes
versões sobre a localização, assim como questionamentos sobre sua existência, tornando-se
quase um mito paralelo ao de sua dona.
Acidentes geográficos e lugares situados na zona rural, nas redondezas de Araxá,
também aparecem relacionados com seu nome e apelido em outros documentos cartorários:
O “Espigão da Beija” e a “Capoeira de Dona Anna Jacintha de São José” são mencionados
em algumas escrituras como referências para estabelecer-se a localização exata de parcelas
de terra que foram vendidas em fazendas vizinhas
30
.
Como chefe de família, papel que desempenhava como mulher só, descasada e mãe
solteira, no censo provincial de 1832, Anna Jacintha foi relacionada à frente de seu “fogo”,
como branca, solteira, de 32 anos e dona de oito escravos. Junto com ela, Maria Bernarda
dos Santos, sua mãe, também branca, de 56 anos
31
. Nota-se no documento a ausência de
Thereza, que tampouco consta na relação de dependentes do vigário, onde deveria estar, se
considerarmos verídicas as afirmações feitas posteriormente em um processo judicial,
segundo as quais a filha mais velha não teria sido criada por ela, mas pelo pai. É bem
possível que nessa época, Thereza estivesse prestes a casar, ou já casada e vivendo com seu
30
Escritura de compra-venda. Livro nº 42, folha 5v. Cartório do 1º Ofício de Notas. Araxá, MG
Escritura de compra-venda. Livro nº 11, folha 5. Cartório do 1º Ofício de Notas. Araxá, MG.
31
“Mappa da Populacao deste Distrito da Villa Viçosa d’ Sam Domingos do Arachá”. 1832. Sessão Colonial,
caixa 13, Arquivo Público Mineiro, doravante: APM. Belo Horizonte MG.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
29
marido, Joaquim Ribeiro da Silva Botelho, na fazenda do casal, motivo pelo qual nenhum
deles consta, neste censo, entre os moradores da vila
32
.
O marido de Thereza pertencia ao “grupo da Mandioca”, clã formado por diversas
famílias aparentadas entre si, cujo parentesco consangüíneo era reforçado pelos freqüentes
casamentos entre seus membros. O nome derivava de uma das propriedades familiares, a
Fazenda da Mandioca, centro de operações do grupo. Era um dos 18 irmãos do coronel
Fortunato José da Silva Botelho, chefe político local a quem anos depois Anna Jacintha iria
enfrentar judicialmente.
Quaisquer que tivessem sido as práticas profissionais ou de caráter particular e
pessoal de Anna Jacintha, como mulher, aos 38 anos, ela continuava plena e ativa,
exercitando seus atributos femininos, ao mesmo tempo que se iniciava como avó. Assim o
indica o nascimento de sua segunda filha, Joana de Deus de São José, nascida e batizada em
1838, mesmo ano em que nasceu e foi batizado também seu neto Joaquim, segundo filho de
Thereza que já tinha uma filha, Theodora Jacintha Fortunata, nascida dois anos antes.
Joana não teve nenhum pai que a assumisse oficialmente, mas consta como seu
padrinho no registro de batismo o coronel João José Carneiro de Mendonça a quem se
poderia atribuir um parentesco com a afilhada ou, ainda, a paternidade, possibilidade
extensiva a algum de seus filhos, entre eles o doutor João Carneiro de Mendonça arrolado,
no mito, como um dos amantes de Dona Beja.
Tomando-se como exemplo o caso de Thereza, cuja madrinha foi a avó paterna,
essa atribuição seria procedente e estaria justificada pela prática comum observada na
documentação eclesiástica, cartorária e judicial do século XIX, de se apadrinhar os parentes
ou filhos ilegítimos que por motivos diversos não podiam ser assumidos publica e
ostensivamente, mas com os quais se desejava manter algum vínculo.
Eni Mesquita de Samara observou a falta de preconceito no caso dos filhos de
padres, tão comum na sociedade brasileira, e ao analisar as estratégias utilizadas pelos pais
ou parentes para proteger as crianças nascidas fora do matrimônio, fossem ou não
reconhecidas, informa sobre o processo, quase natural, de adequação dos filhos ilegítimos,
32
De acordo com a cópia da certidão de casamento de Thereza, anexada ao Processo de Reclamação de
Herança movido contra o coronel Fortunato José da Silva Botelho, o casamento ocorreu a 16 de janeiro de
1833. Processo de Reclamação de Herança. 1865. Caixa nº 78. AFTF. Araxá MG.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
30
que lhes permitia uma melhor integração social: Enquanto uns disfarçavam seus rebentos
sob o título de 'afilhados', outros criavam-nos às claras, em sua companhia
33
.
Gilberto Freyre já tinha observado que no período colonial era mais forte o
preconceito de cor que o da ilegitimidade, possibilitando a ascensão social e bons
casamentos para os filhos naturais, quando brancos ou mulatos claros
34
. Isso viria a
explicar, em parte, que tanto Thereza como Joana, ainda que ilegítimas, filhas de mãe
solteira e de conduta “duvidosa” puderam realizar “bons casamentos”, confirmando a
crendice popular segundo a qual não há nenhum filho ilegítimo, particularmente filho de
padre, que não seja feliz
35
O manejo daquela mesma documentação também nos permitiu perceber que nomes
de caráter religioso como de São José, de Deus ou de Jesus, anexados aos de Anna Jacintha,
Joana e Thereza Tomazia, funcionavam não como sobrenomes de família, mas justamente
como o que eram, nomes complementares do(s) primeiro(s) que os pais davam a suas filhas
movidos por um costume que se inspirava na religiosidade. Quando as mulheres recebiam
um sobrenome, este provinha, freqüentemente, da mãe, cabendo aos filhos varões o
sobrenome paterno. É importante conhecer esses costumes religiosos, inseridos nas relações
familiares e de parentesco, para compreender algumas das confusões que envolveram a
localização da casa de Anna Jacintha e o uso de alguns nomes reais ou fictícios que
aparecem no relato do mito e que serão analisados oportunamente.
Seguindo-se estrita cronologia na análise da documentação relacionada com ela, no
ano de 1840 vamos encontrar Anna Jacintha mencionada, desta vez, nas atas da Câmara
Municipal, como partícipe da “sedição”
36
ocorrida nesse ano na Vila de São Domingos de
Araxá, como proprietária da casa onde as “cabeças” da mesma se reuniam para planejar
suas ações
37
.
33
SAMARA, Eni de Mesquita. As Mulheres, o Poder e a Família. São Paulo, século XIX. São Paulo:
Marco Zero e Secretaria de Estado de Cultura, 1989. p. 63.
34
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da
Economia Patriarcal. 35ª ed. São Paulo: Record, 1999. P. 447.
35
Idem. Idem.
36
Perturbação da ordem pública, agitação ou revolta. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit. p.
1561.
37
Atas da Câmara Municipal. 1840. Livro s/n. Folhas 1v, 2 e 12. ACM.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
31
Para Waldemar de Almeida Barbosa, esses conflitos não tiveram conotação política,
teriam sido desordens provocadas pela tentativa de impedir-se o julgamento de um dos
homens protegidos pela família Carneiro de Mendonça que, junto com os da Silva Botelho,
formava um dos grupos detentores do poder local. Naquela ocasião, ameaçaram o juiz que
presidiria o julgamento, obrigando-o a fugir para o vizinho julgado de Desemboque, onde
se instalou com a câmara em sessão permanente, enviando relatórios e solicitando reforços
militares das autoridades provinciais, contribuindo para dar aos fatos uma dimensão maior
da que na realidade tiveram
38
.
Com relação à sua participação na Revolução de 1842, movimento ocorrido dois
anos depois, opondo liberais e conservadores em diversos municípios paulistas e mineiros,
a reduzida documentação em que Anna Jacintha é mencionada não permite determinar de
forma conclusiva o caráter e a dimensão da mesma.
Já sabemos de sua estreita relação com os Carneiro de Mendonça e com os Botelho,
que encabeçavam os rebeldes em Araxá. Mas só isso não é suficiente para definir sua
posição, que nos desperta algumas dúvidas, reforçadas pela mesma documentação: ao
responder às autoridades legais, vencedoras no conflito, sobre a quantia com que havia
contribuído para o movimento, ela declara haver contribuído com cem mil réis que foram
entregues às autoridades dominantes
39
, sem que isso ajude a esclarecer se apoiou as forças
legalistas ou se os rebeldes, que foram derrotados, chegaram a ser em algum momento a
força dominante no município.
Em uma transcrição da relação dos cidadãos que ajudaram com dinheiro e com
mantimentos, com motivo do movimento político de 1842, enviada para responder ao
inquérito das autoridades, seu nome e a qua ntia são confirmados junto com o de outras
pessoas como Ignácio Carneiro de Mendonça, o Tenente Coronel Silvestre Ribeiro
Barbosa, entre outros que, sabidamente, faziam parte das fileiras rebeldes. Antônio
38
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1995. pp. 31-34.
39
Ilmo. Snrº. Recibi a participação de V.SS. na qual se exige de mim o qto dei as Auturidades Duminantes
(sic) em 1842 no tempo do movimento Pulitico (sic): declaro a V.SS. que foi a quantia de cem mil réis em
moeda corrente de cujos tenho a declaração em meu poder das m.mas Auturidade (sic). (...) Villa do Araxá.
24 de Agosto de 1846 (...). Por Anna Jacintha de S. José. Joaquim Ribeiro da Silva Botelho. Documento
avulso. (Cópia) AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
32
Joaquim de Menezes, um dos relacionados no docume nto, declara haver entregado tudo,
com ordem do Sr. Cel. Juiz de Direito de receber...
40
, o que bem poderia significar uma
ajuda forçada ou um possível confisco dos bens dos liberais que, no final, foram
derrotados
41
.
Para confundir ainda mais, em uma das atas da Câmara Municipal, em 1844,
novamente se faz referência à ajuda que as “forças da legalidade” teriam recebido durante
os acontecimentos de dois anos antes e novamente o nome de dona Anna Jacintha de São
José é mencionado
42
. É possível também que, havendo-se passados dois anos, na
documentação oficial do Município, o confisco sofrido tivesse se transformado em ajuda
voluntária à legalidade, como forma de “limpar o nome” dos envolvidos através de um
desses “passes de mágica”, tão comuns quando se trata de política ou de (in)justiça em
registros oficiais.
Nos autos do processo que se instaurou contra os poucos rebeldes capturados, entre
os quais figuravam Josefa Roquete Franco Carneiro de Mendonça, esposa e mãe,
respectivamente, do Coronel João José, e Joaquim Carneiro de Mendonça, presa junto com
seu genro, o português Antônio Pestana, uma das testemunhas menciona um “retiro” de
Dona Anna Jacintha de São José como um dos lugares para onde ele teria ido quando
acompanhava os rebeldes que se dirigiam a Araxá
43
. Isto tampouco esclarece a participação
de Anna Jacintha e a favor de quem atuou no movimento. O lugar foi citado como
referência para se estabelecer o trajeto que a testemunha fez quando seguiu com os rebeldes
para, supostamente, retirar de suas fileiras um de seus filhos, separando-se deles no
40
Copia do Registro de documentos em resposta dada à Câmara da Vila de Araxá, da coadjuvação prestada
por motivos dos movimentos políticos de 1842... Documento avulso. (Cópia) AMDB.
41
Autos do Processo da Revolução de 1842. Algumas testemunhas se referiram à apreensão dos bens das
pessoas “comprometidas com a rebelião”. Depoimentos de Floro Gonçalves Ramos e José Damaceno
Machado. Folhas S/N. AFCCB.
42
Atas da Câmara Municipal. Livro s/n de 1844, folha 119v. ACM.
43
Autos do Processo da Revolução de 1842. Foi-lhe mais perguntado com quem viera elle respondente
daquelle distrito da Conceição. Respondeu que estando elle em casa de Francisco Machado de Morais, e
passando por esta aquella força rebelde com a mesma viera athé o retiro de Dona Anna Jacintha de São
José, e que daqui retirandosse para a casa de Antônio José de Araújo desta viera entam tirar seu dito filho
como já disse (sic). Depoimento de Antônio Joaquim de Campos Maranhão. folha 322. AFCCB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
33
“retiro”, o que não significa e nada indica que os rebeldes tivessem permanecido ou
recebido acolhida nesse lugar.
A favor de quem ou contra quem Dona Beja ficou naquele episódio não sabemos. O
fato é que no ano seguinte seu nome constava numa relação feita pela Câmara Municipal
das pessoas que se beneficiavam das águas do córrego “da servidão pública”, destinado ao
abastecimento de água potável para a população, onde ela possuía vários canais para seu
uso particular
44
. Isso indica que ela levava uma vida sem problemas com as autoridades, ao
contrário de outras mulheres como a própria Josefa Roquete Franco Carneiro de Mendonça,
Thomazia Neto Carneiro, Maria Jª Emerenciana Neto Carneiro, Silveria Maria de Jesus e
outras mais, que permaneceram presas acusadas de envolvimento direto ou de seus maridos
no movimento de 1842
45
.
Neste documento a encontramos, pela primeira vez, com seu apelido “Beija”,
“Dona Anna Beija”, o que nos autoriza a pensar que o mesmo já devia ter-lhe sido atribuído
há tempos, o suficiente para tornar-se do domínio público e de uso corrente, a ponto de ser
registrada com ele em um documento oficial, de nível municipal.
O apelido Beija, ou Beja, não tem explicação em bases documentais. Elas fazem
parte do relato do mito alimentado pela literatura, onde se encontram as diversas versões
sobre sua origem e que serão discutidas oportunamente. Fica, por enquanto, o significado
literal da palavra: “ato ou cerimônia de beijar”, mesma palavra que se encontra em “beija-
flor”, nome popular do colibri, ave conhecida por sua voracidade, no “hibisco” ou “beijo”,
flor conhecida por atrair o beija-flor e em uma planta perene, também chamada “beijo” e
conhecida popularmente como“beijo-de-frade”e “maria-sem-vergonha” pela facilidade e a
abundância com que brota e se espalha. Em Portugal existe a cidade de Beja na região do
Alentejo.
Em 1845 morreu o vigário Francisco José da Silva, figura polêmica que, a julgar
pela documentação que se pode manusear, esteve sempre envolvido em disputas políticas
44
O documento é oriundo do Poder Legislativo Municipal, encontra-se nos arquivos da Fundação Cultural
Calmon Barreto. Até o momento não se encontram organizados nem catalogados, motivo pelos qual não é
possível indicar sua localização exata.
45
Atas da Câmara Municipal. 1842. Livro s/n. folha. 75. ACM. As outras mulheres foram: Silveria Maria de
Jesus, mulher de Benedito Quirino; Rita Maria de Jesus, mulher de Silvestre Quirino; Maria do Carmo,
mulher de José Quirino; Francisca Mendes dos Santos, viúva e Anna de tal, mulher de Elias Silva Paz.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
34
locais além de atividades escusas que lhe valeram uma série de denúncias. Isto sem falar
nas relações “sacrílegas” que, sabidamente, e “por fragilidade da carne” manteve com Anna
Jacintha e com outras mulheres que, além de Thereza, renderam-lhe pelo menos outros dois
filhos, também reconhecidos em cartório: Pedro Amado de São Paulo e Placidina Maria de
Jesus
46
.
A pesar da legislação colonial estabelecer uma série de limitações para a sucessão
dos filhos tidos fora do casamento, a legitimação em testamentos ou através de escrituras
era a forma que os pais, inclusive clérigos, tinham para garantir o futuro de seus filhos
naturais, possibilitando-lhes o acesso aos bens e ao patrimônio familiar.
Os três foram seus herdeiros nomeados em testamento
47
, embora nele não se
esquecesse de Anna Jacintha a quem deixou uma boa soma de dinheiro, em consideração
aos bons “serviços” que lhe teria prestado.
Considerando-se a permissividade reinante nos postos avançados de fronteira, não
deve estranhar a desenvoltura com que o vigário de Araxá parecia tratar seus assuntos
domésticos, incluindo suas relações amorosas e sua descendência. Para Ronaldo Vainfas, o
clero não permaneceu imune ao ambiente social que o rodeava. Por isso, em Minas, foi
classificado de 'licencioso e turbulento', mas considerado 'ao natural' com a sociedade de
seu tempo
48
.
O vigário era filho do tenente Gregório José da Silva e de Dona Thereza Thomazia
de Jesus, da mesma família e parente próximo dos irmãos Fortunato e Joaquim, este último
também genro de Anna Jacintha.
Como se pode perceber, era estreita a ligação que ela mantinha com essa família,
uma relação que não se limitava às atividades políticas ou ao terreno estritamente
econômico, penetrava no universo doméstico e familiar podendo ser medida, não apenas
pela origem paterna de sua filha e o casamento desta com um de seus parentes, mas
46
A expressão entre aspas é comum nesse tipo de documentos. Usada na escritura de “perfilhamento” dos
filhos Thereza Thomazia de Jesús, Pedro Amado de São Paulo e Placidina Maria de Jesus. 1833. Livro nº4,
folha 40v. Cartório do 1º Ofício de Notas de Araxá.
47
Inventário do Pe. Francisco José da Silva. 1845. Caixa nº 43. AFTF. Araxá, MG.
48
VAINFAS, Ronaldo. “A Condenação e o Adultério”. In: LIMA, Lana Lage da Gama. (org.). Mulheres,
Adúlteros e Padres. História e Moral na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. p. 58.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
35
também pelo batismo de outros membros e escravos da mesma família, onde Anna Jacintha
atuou como madrinha
49
.
O apadrinhamento de parentes e até de escravos também fazia parte das estratégias
usadas para ampliar e estreitar as relações familiares, consolidar as alianças políticas e as
parcerias comerciais. No caso de Anna Jacintha, essas relações com as famílias importantes
do lugar poderiam explicar, em parte, seu aparente sucesso financeiro, atribuído comum e
de forma simplista apenas à prostituição, embora esta, como se viu, não estivesse
totalmente ausente no rol de suas possíveis atividades.
Sobre sua partida para Bagagem, é difícil precisar quando ocorreu, mas, em 1848,
ainda se encontrava em Araxá, segundo se pode concluir por uma ata da Igreja Matriz de
São Domingos em que Virginia, escrava de Dona Anna Jacintha de São José, aparece
participando da eleição para rei e rainha nas festas de Nossa Senhora do Rosário. Assim, o
prestígio da senhora parecia extensivo também para sua escrava.
A mudança pode ter ocorrido após 1852 quando morreram Thereza e Joaquim, no
pequeno intervalo de quatro meses, deixando seis filhos menores, a mais velha com apenas
14 anos
50
. Por outro lado, Bagagem acenava com a promessa da fortuna, representada pelo
peso e brilho dos 254.5 quilates do diamante “Estrela do Sul”, retirado do rio em 1853.
Na impossibilidade de avaliarmos o que significou para ela a morte da filha mais
velha e de estabelecermos se sua partida esteve relacionada diretamente com ela, a saída
mais fácil seria concluir que, igual a um bom número de araxaenses, certamente Anna
Jacintha também partiu “na corrida aos diamantes” e na esperança de se enriquecer
rapidamente.
A reconstituição aproximada de seu dia a dia, tanto em Araxá como em Bagagem,
somente seria possível através de uma pesquisa paralela sobre o universo doméstico,
familiar e do cotidiano desses lugares, na documentação disponível nos arquivos locais,
49
Registro de batismo de Maria. 19 de out. de 1836. Livro nº 17, folha 68v. A batizada era filha de Fausta
Cabra, escrava de Dona Anna Jacintha de São José. Foram padrinhos: Joaquim Ribeiro da Silva e Anna
Jacintha. Registro de batismo de Jerônima. 7 de ago. de 1836. Foram padrinhos, Dona Anna Jacintha de
São José e o Pe. batizante. AIMSD. Araxá, MG.
50
Os outros filhos eram: Joaquim, Francisco, Saturnino, José e Antônio. Inventario de Joaquim Ribeiro da
Silva Botelho e Thereza Thomazia de Jesus. 1852. Caixa nº 53. AFTF. Araxá, MG.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
36
apoiada na historiografia brasileira sobre o século XIX, o que, embora tentador, nos
afastaria de nosso objeto.
Por isso, com base unicamente na documentação e especificamente em seu
testamento nos limitaremos a apontar que em Bagagem teve vários imóveis, entre eles uma
casa em que vivia na rua da ladeira, próxima à que deu a sua filha Joana, casada com
Clementino Martins Borges. Estes eram pais de Haideé sua neta predileta de quem foi
madrinha de batismo, em 1856, junto com Augusto Montandon.
É possível que a afeição especial demonstrada por esta neta fosse motivada não só
pela convivência diária, mas também pela perda, aquele mesmo ano, da outra neta,
Theodora Jacintha Fortunata, filha de Thereza, de quem recebera um tratamento respeitoso
e cordial. O relacionamento entre elas parece haver-se reforçado durante os períodos,
ansiosamente esperados, que Theodora passava em Bagagem para participar das Missões,
como se pode conferir na correspondência que a moça mantinha com sua tia Joana
51
.
A predileção de Anna Jacintha por Haideé pode ser percebida em seu testamento
onde a contempla com um legado específico, comum nesse tipo de documentos quando se
queria que os agraciados recebessem algo mais que o que lhes corresponderia por lei na
partilha
52
. Entretanto, do mesmo documento desprende-se que, pelos “empréstimos” e pela
somas que lhe deviam, não deixou de prestar assistência financeira a seus outros netos,
também filhos de Thereza e Joaquim, quem, ao que tudo indica, ficaram sob a guarda da
família paterna após a morte de seus pais. Não podemos precisar, contudo, quão estritas
foram as relações que eles mantiveram com a avó e qual a posição adotada mais tarde,
quando se deu a batalha judicial que opôs Anna Jacintha e o viúvo de sua neta.
51
Minha prezada Tia. Mandioca, primeiro de outubro de mil oitocentos e cincoenta e seis. Respondendo a
sua estimadíssima carta (...). Sobre o dizer que já me esqueci de Vossa Mercê não é possível me esquecer
de uma tia a quem tanto amo, se tem havido alguma falta de minha parte a de revela-la,(sic) pois he
involuntária. Se eu poder hir (sic) às Missões terei o gosto de estar com Vossa Mercê, e minha avó, e assim
satisfarei meus ardentes desejos. Muito me recomendo a minha avó e tio Clementino (...). Disponha com
franqueza de quem tem a honra de assignar-se sua sobrinha e Amiga obrigadíssima. Theodora Jacintha
Fortunata da Silva. Processo de Reclamação de Herança. 21 de nov. de 1862. Caixa nº 78. folha 43v.
AFTF. Araxá, MG.
52
Sobre os procedimentos adotados nas partilhas e legados ver: SAMARA, Eni de Mesquita. As estratégias
Familiares na Transmissão do Legado. In: -------- As Mulheres, o Poder e a Família. op. cit. pp. 146-163.
DA SILVA, Maria Beatriz Niza. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 1978.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
37
Chegada à idade do casamento, Theodora Jacintha Fortunata, a mais velha e a única
mulher entre os seis irmãos, casou-se, em 1855, com seu tio Fortunato, morrendo de parto
no ano seguinte. Pese a obrigatoriedade da prévia autorização da igreja, os casamentos
entre parentes próximos eram freqüentes, sendo realizados para atender aos mais diversos
interesses, dentre os que pareciam prevalecer os puramente financeiros. Como na Europa,
no Brasil, colônia de uma metrópole européia, o casamento não consagrava uma relação
amorosa sendo apenas (...) um contrato entre dois patrimônios ou duas misérias
53
.
Contratos que incluíam mesmo as pessoas já ligadas por parentesco.
Diversas genealogias realizadas nas famílias de Araxá confirmam uma alta
incidência de casamentos entre parentes, o que pode ser explicado pelo isolamento em que
viviam as pessoas, principalmente no meio rural -que era dominante-, onde os contatos e as
relações sociais se limitavam ao círculo familiar. Por outro lado, em uma sociedade em que
a propriedade da terra tinha um significado que ia além do interesse puramente econômico
e do prestigio social, ampliando e consolidando também o poder político, os casamentos
entre parentes eram estratégias que, como no caso de Theodora, poderiam combinar tanto
desejos genuínos de proteção como interesse pela manutenção das propriedades familiares.
Geradoras de poder e representatividade política, a terra devia permanecer sob o controle da
família, que ficaria ameaçado pelo o casamento exogâmico de seus membros.
O fato é que o casamento de Theodora, órfã de pais e morta sem ter deixado
descendentes, conferiu direitos hereditários à avó, como a única parenta ascendente em
linha direta. O processo de reclamação de herança que Anna Jacintha moveu contra o
coronel, viúvo de sua neta, foi motivado pela aplicação arbitrária que este pretendia dar à
lei de sucessão e pela oportunidade com que ela a aproveitou. Esse processo parece haver
comprometido seriamente o “consorcio” que por tanto tempo mantiveram ambas famílias.
Na divisão da herança, o viúvo, que já era abonado antes do casamento, pretendia
dividir com ela somente os bens que sua esposa aportou como dote. Mas, Anna Jacintha
reclamava direitos sobre o total deles, incluídos ali os que ele havia amealhado desde
solteiro, de acordo com a lei que estabelecia o princípio do regime de comunhão universal
53
VINCENT, Gerard. “Uma História do segredo?”. In: PROST, Antoine; ------ (org). História da Vida
Privada, 5: da Primeira Guerra a nossos dias. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992. p. 357.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
38
para todos as formas de casamento, na ausência de qualquer contrato ou cláusula
específicos.
Tentando driblar a lei de sucessão, Fortunato alegou a existência de um testamento
“nuncupativo” ou feito “de viva voz”, diante de testemunhas, através do qual sua esposa, no
leito de morte, o teria nomeado seu herdeiro universal. Mas esse alegado testamento foi
considerado nulo por não ter-se realizado dentro das condições mínimas exigidas pela lei
nesses casos. Além disso, mesmo que sua validade fosse aceita, de forma alguma poderia
excluir a avó da partilha.
Pelo modo e pelo tom da correspondência que Theodora dirigira a sua tia Joana,
Anna Jacintha tentava provar, por sua vez, que dado o bom relacionamento que ambas
mantinham, sua neta não a excluiria deliberadamente do seu legado, motivo pelo qual,
cópia dessa correspondência foi anexada ao processo.
Entretanto, no relatório do Dr. Raymundo Dês Genettes, chamado à Fazenda da
Mandioca para atender à parturiente em seu leito de morte, nota-se a ausência da avó ou da
tia entre as pessoas mencionadas, em flagrante contraste com a maciça presença dos
membros da família paterna, a mesma do marido, rodeando-a até o final.
Para a melho r compreensão dessa presença familiar durante o parto é importante
considerar que, apesar da solidão da mulher ao dar à luz, porquanto era essa uma tarefa
individual, da qual somente ela podia desincumbir-se, o parto se revestia de um significado
coletivo, requerendo a atenção de todos para com a mãe e da participação daqueles que a
cercavam. A atenção da parturiente com o que ocorria com seu corpo reverberava numa
participação comunitária cuja carga era tão mais coletiva quanto o ato era dramático
54
.
Por esse motivo, a ausência da avó, como mulher, ficava ainda mais assinalada,
sendo agravada pela orfandade de Theodora que, naqueles momentos, pôde contar apenas
com a solidariedade e companhia de seus tios e tias, parentes do marido. A distância, ou a
idade, teria impedido Anna Jacintha de acompanhar sua neta durante o parto que lhe custou
a vida?
O detalhado relatório do Dr. Dês Genettes, solicitado pela parte de Anna Jacintha,
tinha como objetivo provar a falta de condições físicas e psicológicas da enferma nos
54
PRIORE, Mary del. Ao Sul do Corpo. op. cit. 255.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
39
momentos em que supostamente teria ditado sua última vontade e constitui, hoje, um
testemunho valioso, não só do aparato social e familiar que cercava o parto, como do drama
vivido pelas mulheres em sua batalha para colocar os filhos no mundo
55
.
Embora esse tipo de documento não o registre, é possível entender a dor, a angústia
e o medo, que devia tomar conta das mulheres ante a iminente batalha que deveriam travar
sozinhas, ainda que rodeadas da família. Luta solitária, intransferível e freqüentemente fatal
que, nos partos difíceis, como o de Theodora, culminava, invariavelmente, com a morte de
mãe e filho, transformando em trágico fim o que deveria ser o início de uma nova vida.
Maus ou difíceis tais partos dão a medida da confrontação entre a vida e a morte em que
viviam as parturientes de nosso passado
56
.
A descrição do médico segue um tom objetivo e profissional
57
embora não se possa
deixar de considerar um possível comprometimento pessoal com a família, motivado pelo
seu casamento com D. Maria Porfírio Alvarez Machado, que tinha um filho natural de
55
Certifico que em oito de novembro de mil oito centos e cincoenta e seis cheguei ao meio dia na Fazenda da
Mandioca, para onde tinha sido chamado a peditório do Senhor Coronel Furtunato da Silva Bothelho,
cuja ordem me foi transmitida (sic) pelo Senhor tenente Coronel Francisco José da Silva Botelho, que ao
chegar fui recebido pelo Senhor Antônio Theodoro, que me comunicou ao apearme o estado da
Parturiente, dizendo-me que se esperava a cada hora o momento funesto que levaria a parturiente da vida,
e que ao vel-a (sic) melhor ajuizaria. Entrando no quarto da enferma achei-a exausta de força,(sic) e
custou algum pouco em conhecer-me, só o pulso faltava, o ventre estava extraordinariamente crescido, e
denotava huma hemorragia interna, havia ausência de colichas, (sic) que segundo me informarão as
Parteiras, cessaram de correr na noite da quarta feira digo de quarta para quinta feira anterior. A criança
não existia mais, e declarei a família que qualquer tentativa para extrahi-la (sic) (...) por meio de fórceps,
ou da operação Cesaria seria seguida da morte rápida da Enferma, porem que era do meu dever tentar a
dilatação do collo uterino e a extração do feto. O senhor Antônio José da Silva declarou-me em nome
delle e da família que se oppunha (sic) a qualquer operação. Pratiquei então a tentativa para obter a
dilatação (...) na terceira tentativa hum desmaio profundo fez temer pelos dias da enferma (...) e as oito e
meia falleceu (sic) a enferma com o feto no ventre (...) As pessoas presentes eram tantas quanto me posso
lembrar, o dito Vigário, Eduardo Bernardes, os ditos Antônio José da Silva Sobrinho, e Antônio Theodoro,
cunhados da Enferma; José da Costa, Francisco de Salles, João de Tal Mattos, e as mais pessoas cujos
nomes não me posso recordar; duas parteiras, Joanna e Anna, a viúva do fallecido José Jacintho e a
mulher do Senhor Antônio Theodoro. Durante as horas de minha estadia vieram algumas visitas, entre
elas...”. Processo de Reclamação de Herança. p. 29-30.AFTF.
56
Idem. p. 261.
57
Idem. A autora adverte para a insensibilidade desses relatos médicos que, no entanto, constituem valiosas
fontes que permitem “capturar” os comportamentos individuais e do grupo, assim como as estruturas
mentais, o imaginário e as práticas sobre o nascimento. Embora pareçam protagonistas silenciosas, as
mulheres deixaram marcas nas falas dos doutores que um dia se debruçaram sobre os mecanismos do
parto, e a despeito do testemunho indireto que significa o saber médico, ele apoiava-se em realidades
femininas. p. 256.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
40
Joaquim Ribeiro da Silva Botelho, irmão e sogro do coronel Fortunato, pai de Teodora e
genro de Anna Jacintha.
Esse filho, José Porfírio Alvarez Machado, foi criado, aparentemente, sob proteção
da família paterna, embora o pai não o tenha legitimado nem conferido o sobrenome. Tudo
indica que foi um dos homens de confiança de seu tio Fortunato, como se desprende dos
documentos em que figura como procurador do mesmo
58
. Em 1865 conduziu, como
capitão, o grupo de “voluntários” que o município de Araxá enviou à Guerra do Paraguai.
Seu padrasto, Dês Genettes, encontraremos, anos depois, liderando um movimento
separatista que pretendia anexar a região do Triângulo Mineiro a São Paulo.
Em seu conjunto, os autos desse processo iniciado junto com a década de 1860 e
que se prolongou por mais de seis anos, tendo percorrido todas as instâncias judiciais até as
da Corte do Rio de Janeiro, constituem os documentos mais consistentes para se tentar
traçar o perfil de Anna Jacintha e, principalmente, para se estabelecer o seu caráter
transgressor, o que nos levará a analisá-los novamente mais tarde.
Embora a decisão da justiça lhe tivesse sido favorável, não se encontraram
documentos que permitam estabelecer se chegou a receber, de fato, sua parte na herança de
sua neta e, em 1871, a encontramos às voltas com novas cobranças desta vez dirigidas à
Câmara Municipal de Bagagem para requerer o pagamento da quantia que havia investido
na reconstrução de uma ponte próxima a sua morada, destruída pelas enchentes do rio que
cruza a localidade e que a divide em duas.
De acordo com o documento, sendo essa ponte:
...de mais freqüente transito, tomou (Anna Jacintha) a deliberação
de reconstruí-la, a cujo fim empregou os seus maiores esforços e
diligências. Com efeito está concluída a obra; e já a extensa e solemne
procissão do Mez de Maria poude passar por ella (sic) com toda a
segurança”
59
.
58
Sobre as estratégias familiares adotadas para com os filhos naturais, ver, novamente: SAMARA, Eni de
Mesquita. op. cit. p. 70.
59
Documento Nº 56. (Cópia.). AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
41
E agrega que embora a obra tivesse sido orçada em 1 conto e 500 mil réis
60
, ela
conseguira reali-la por apenas 677mil 880 réis, arrecadando em uma subscrição popular
apenas 182 mil e duzentos réis, pelo que teve que inteirar do próprio bolso a soma de 495
mil 680 réis que ela desejaria, porém não pode oferecer ao bem público
61
. No documento
consta a chancela do representante da Câmara Municipal autorizando o pagamento da
quantia por ela reclamada.
Na cidade de Estrela do Sul, nome atual da antiga Bagagem, rebatizada em memória
do famoso diamante, os vizinhos ainda chamam de Ponte da Beija à que substitui aquela
que ela reconstruiu e falam na “Virada da Beija” um desvio que teria provocado no curso
do rio para garimpar os diamantes em seu leito. Essa operação, ainda utilizada nos rios
menores durante a seca, sobrevive na tradição popular como uma de suas façanhas, a prova
da mulher empreendedora e dinâmica que era, mas, ao contrário da ponte reconstruída, não
se encontraram sinais concretos de sua realização.
Ao morrer, em 1873, seus bens somavam, de acordo com o inventário realizado
em fevereiro do ano seguinte, oito contos de réis entre escravos, animais domésticos,
móveis e imóveis, utensílios e objetos de cobre, ferro, ouro, prata e roupas. No seu
testamento deixou expressa sua última vontade e manifestou seu desejo de ser amortalhada
com o hábito de Nossa Senhora do Carmo e enterrada, se for possível, na Igreja Matriz
sendo acompanhada pelos sacerdotes que estivessem no local, os quais lhe rezariam uma
missa de corpo presente e um oitavário seguido
62
.
O testamento
63
, dado a conhecer na década de 1960, segue à risca o padrão
encontrado nesse tipo de documentos através dos quais as pessoas, além de expressar sua
última vontade sobre seu corpo e propriedades, tentavam acertar as contas com os vivos e,
principalmente, negociar a salvação. Assim, vestir-se de santo, diz João José Reis,
60
Equivalente a um milhar de “mil-réis”. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit. pp. 464-465.
61
Idem. Idem.
62
De “oitava” ou espaço de oito dias consagrados a uma festa religiosa. O “oitavário” referia-se à celebração
de uma missa diária durante os oito dias seguintes após a morte. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque. op. cit.
p. 1218.
63
O testamento foi transferido do Cartório de Estrela do Sul para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais onde
faz parte do acervo da Memória do Judiciário Mineiro.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
42
representava desejo de graça, imaginar-se mais perto de Deus, antecipando a participação
na Corte Divina. A roupa mortuária protegia os mortos e promovia uma integração ditosa
no mundo deles, mesmo que lá o endereço nem sempre fosse o mesmo
64
. Ter uma cova
dentro da igreja era uma forma de os mortos manterem contato mais amiúde com os
vivos
65
, mas representava também um privilégio que refletia e estendia até os terrenos do
além as hierarquias e as diversas formas de segmentação social.
Essas mostras de religiosidade e fé, no testamento de Anna Jacintha, interpretadas
comumente como as provas de sua “regeneração”, em Bagagem, eram praxe, fazendo parte
das formalidades testamentárias. As missas pelas almas do purgatório, dos pais, das pessoas
a quem “involuntariamente” pudesse haver ofendido; o dinheiro deixado para esmolas, as
mortalhas com hábitos das irmandades, às quais pertencia, eram motivados pelo desejo de
acertar as contas com Deus, quando a chegada iminente da morte colocava as pessoas face
a face com o mais antigo dos medos cristãos: a condenação eterna ao fogo dos infernos.
Capaz de abalar até o mais inveterado pecador, a morte levava os penitentes até os altares à
procura do perdão. A morte era também uma forma de reparação moral (...). Fazer justiça
aos que ficavam significava limpar-se para enfrentar a justiça divina. Velhos pecados da
carne eram corrigidos na hora da morte
66
.
Não que se ponha dúvida na fé de Anna Jacintha; fé e religiosidade estavam
incluídas na estratégia de normatização da conduta feminina, mesmo entre aquelas
mulheres consideradas transgressoras ou transviadas. Mas, certamente, ela não pode ser
justificada apenas pelas manifestações de piedade que se encontraram em seu testamento.
Contrariamente ao discurso recente, segundo o qual Anna Jacintha foi uma mulher à
frente de seu tempo, o testamento é um bom exemplo de que ela foi, antes de tudo, uma
mulher de seu tempo, enquadrada nos valores de seu tempo, cujas atitudes, que alguns
querem contestatórias, foram ditadas, em primeiro lugar, pela necessidade de sobrevivência
durante a vida terrena e, depois, pela “regeneração”, com vistas à vida eterna.
64
REIS, João José. O Cotidiano da Morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (org).
História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.114.
65
Idem. p. 125.
66
Idem. p. 110.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
43
Essa “regeneração”, que todos viram em sua conduta, representada pela vida devota
e tranqüila que teria levado ao final de seus dias, significava, certamente, um
arrependimento pela vida pregressa com vistas a obter o perdão de Deus, mas, e antes de
tudo, uma fórmula conveniente para expressar o perdão que a própria sociedade ansiava por
conceder-lhe. Era necessário regenerá-la para poder perdoá-la. Como veremos mais
adiante, foi precisamente, na década de 1960, quando o testamento foi publicado nas
páginas de um jornal local, que foi permitido a Dona Beja entrar nos lares, fazendo seu
“debut” na sociedade de Araxá
67
.
Mitogênese
Após conhecermos o relato do mito assim como o relato historicizado de sua vida
será possível proceder à análise dos diversos fatores que podem haver-se conjugado para
fazer de Anna Jacintha de São José uma figura “mitogênica”, pelo que será necessário
continuar no tempo histórico da personagem quando, ainda em vida, teria começado a
forjar-se o mito no imaginário social
68
.
A morte sabemos-, não constitui um fator indispensável para a mitificação; a
gestação do mito pode iniciar-se ainda em vida da pessoa, que pode muito bem contribuir,
voluntária ou involuntariamente, nesse processo. É evidente que a morte gera uma forte
carga emotiva sendo um acontecimento que, por si só, é suficiente para desencadear toda
uma série de discursos e comentários, negativos e, mais freqüentemente, positivos, em
torno de quem morre.
É difícil falar mal dos mortos. Diz a voz popular que os que morrem sempre se
tornam bons na memória dos vivos. O fato é que, se isso não chega a ocorrer, a morte torna
os defeitos mais toleráveis e até perdoáveis. Mas, bem ou mal, sempre se fala dos mortos; a
67
Em entrevista realizada em sua casa, a escritora araxaense Maria Santos Teixeira, (1915-2001), confiou-nos
que, quando criança, ao perguntar a seu pai quem era Dona Beja, ele a teria mandado calar a boca por não
ser esse um assunto próprio para crianças.
68
Conjunto de imagens e representações simbólicas socialmente construídas e aceitas que canalizam desejos,
esperanças, afetos, emoções, paixões... através do qual se torna possível a realidade instituída, sendo, ao
mesmo tempo, seu instrumento de transformação Ver: LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval.
Lisboa: Estampa, 1994. BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. V
Anthropos-Homem. Imprensa Oficial-Casa da Moeda, pp. 296-331.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
44
diferença é que de alguns se fala mais e por mais tempo do que de outros, fenômeno para o
qual o mesmo falecido pode haver contribuído ainda em vida, fornecendo os elementos
para um possível mito
69
.
O historiador Peter Burke chama de “histórias de livre flutuação” aquelas
alimentadas pela imaginação popular em torno de figuras “mitogênicas”, assim
consideradas por serem mais susceptíveis de se tornarem mitos, ao ajustar-se consciente ou
inconscientemente aos estereótipos, como os do herói ou vilão, vigentes na sociedade que
os desenvolve. Ele recorre a Freud e a processos como os de “condensação” ou
“nivelamento”, estudados pelos psicólogos, para explicar a assimilação por parte de certas
pessoas de um determinado estereótipo que já se encontraria presente no repertório da
memória coletiva
70
.
Desta forma, é possível procurar e verificar em Anna Jacintha de São José as
condições de sua mitogênese, assim como os estereótipos que teria incorporado voluntária
ou involuntariamente.
Tradicionalmente se estabeleceu uma tipologia de caráter maniqueísta para
classificar as mulheres em boas ou más, anjos ou demônios, heroínas ou vilãs; fechando-se
o espaço para outras possibilidades que não implicassem qualidades negativas ou positivas.
Por isso entendemos que, para efeitos metodológicos, a classificação de Anne Higonnet
71
com suas categorias de musa, madona e sedutora para as imagens femininas presentes em
todos os registros da cultura ocidental, deixa um lugar para aquelas mulheres que, boas ou
más ou, nem boas nem más “antes muito pelo contrário”, são fontes de inspiração,
independentemente da moral ou religião. Esses serão os “arquétipos”
72
segundo os quais
69
Cf. NUÑES Becerra, Fernanda. La Malinche. De la História al Mito. México, DF: INBAH, 1998. p. 22.
A autora analisa o mito em torno da amante indígena de Hernán Cortés e os diversos discursos que se
criaram sobre ela através dos séculos.
70
Cf. BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. op. cit. pp. 79-80.
71
HIGONNET, Anne. Mulheres e imagens: aparência, lazer e subsistência. In: DUBY, Geoges; PERROT,
Michelle. (org) História das Mulheres. O século XIX . Porto Portugal: Afrontamento, 1991. pp. 297-
349.
72
Estamos cientes do determinismo implícito no conceito junguiano de arquétipo, contrário à concepção
histórica de “representação”. O mantivemos por entendermos que foi usado segundo a forma convencional,
como modelo ou paradigma. Para Jung, o conceito de ´archetypus` só se aplicava indiretamente às
´représentations colletives', na medida em que designam apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda
não foram submetidos a qualquer elaboração consciente.(...) Nesse sentido, o arquétipo difere
Rosa Maria Spinoso de Montandon
45
tentaremos identificar em nossa personagem as causas de sua mitogênese, para o que será
preciso tipificar cada um.
Para a autora citada, a musa, a madona e a sedutora eram as imagens femininas que,
pelo menos até o século XIX, dominavam a imaginação popular no ocidente. Essas
imagens eram recorrentes em todos os registros culturais e refletiam não somente os
padrões estéticos de perfeição e beleza como também os de conduta. Em termos gerais, a
musa seguia sendo a inspiradora, mais uma figura alegórica ou a materialização de uma
idéia do que uma pessoa específica. As imagens da madona e da sedutora organizaram a
feminilidade em torno de dois pólos opostos: um normal, ordenado, tranqüilizador, e o
outro desviante, perigoso, sedutor
73
. À primeira correspondia o modelo de vida familiar,
ordeira e tranqüila e à segunda a profissional, ativista e prostituta; definitivamente a
transgressora.
Ao traçarmos o perfil biográfico de Anna Jacintha, tentamos estabelecer as bases
que nos permitissem identificá-la de acordo com os modelos incorporados pelos discursos
misóginos que o ocidente construiu sobre a mulher ao longo dos séculos. Dessa forma, é
possível enquadrá-la perfeita ou imperfeitamente dentro dos três, embora o seu papel de
maior destaque tenha sido sempre o da sedutora.
Como musa, Dona Beja perpassa todos os outros papéis. Representa o receptáculo,
ideal dos sonhos, fantasias, desejos e temores de homens e mulheres, artistas e leigos que,
desde o século XIX, vêm atuando sob a inspiração de sua figura, cristalizada no século XX.
Como madona, “rainha do lar” ou “santa mãezinha”
74
, inspirada em Nossa Senhora
e modelo perfeito ao que deveria aspirar toda mulher, dificilmente Dona Beja ou mesmo
Anna Jacintha se identificariam plenamente. Mas não se pode negar que, embora mãe
imperfeita, segundo os padrões da época, desempenhou satisfatoriamente seu papel de
chefe de família ao proporcionar a suas filhas um dote e um casamento digno com
membros respeitáveis da comunidade, dando-lhes a oportunidade de desempenhar, elas
sensivelmente da formula historicamente construída. JUNG, Carl G. Os Arquétipos e o inconsciente
coletivo. Tradução de Maria Luiza Appy; Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis RJ: Vozes, 2000.
p. 17.
73
HIGONNET, Anne. op. cit. p. 299.
74
Expressão usada por Mary del Priore em Ao Sul do Corpo. op. cit. p. 105.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
46
sim, o papel de esposas e mães exemplares que se esperava das mulheres “honestas”. E se
Anna Jacintha não foi precisamente uma “santa mãezinha”, foi a maternidade que, com a
piedade, lhe possibilitou a redenção final, como se pode verificar na literatura produzida
sobre ela.
Como sedutora, Dona Beja é a mundana, a meretriz, a cortesã, seja qual for o
eufemismo empregado ou o título que se lhe queira dar. Se o papel de madona lhe cai
imperfeitamente, o de sedutora, seu contraponto, lhe serve à perfeição. Nele representa a
transgressão: é a mulher proibida, a tentação, o pecado, o descaminho, a perdição. Nele se
encontra, certamente, a causa de sua mitogênese, sendo necessário percorrer os caminhos
que a conduziram até ele.
Em primeiro lugar estava o fato de ser mulher e, por tanto, da linhagem de Eva, o
que já traz implícito sua perversidade natural e a ameaça à paz terrena. O discurso misógino
empregado desde a antiguidade pelos mais diversos pensadores e adotado
preferencialmente pela igreja católica desde as origens
75
, já vinha prevenindo a sociedade
contra as mulheres e o perigo que podiam acarretar para a salvação eterna, ao mesmo tempo
em que desenvolvia as estratégias para neutralizá-las.
Essa mentalidade, transportada para o Brasil por figuras do porte do padre Vieira,
encontrou na colônia um campo fértil e o momento certo como parte dos mecanismos para
a normatização da população feminina. Dizia ele: Considerai os prejuízos que no mundo
tem provocado o pecado e a desonestidade e encontrareis que as mulheres foram a
origem'
76
. Como nos informa Del Priore, nesse discurso eclesiástico que se encontrava
infiltrado por todos os recantos da cultura desde a literatura até os ditados populares, pode-
se perceber o caráter androcêntrico da sociedade européia transplantada para a colônia,
75
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1986. pp.
38-39.
76
Vieira. Apud DEL PRIORE, Mary. op. cit. p. 133. Em sua “Carta Atenagórica”, Sor Juana Inês de la Cruz
envolveu-se numa polêmica em torno de um dos “Sermões” de Vieira, provocando o fim de sua carreira
intelectual, ao angariar a antipatia de Aguiar e Seixas, então bispo de Michoacan e depois arcebispo de
México, a quem o autor os tinha dedicado. Sob pressão de seus superiores a “Fênix Mexicana” teve que
abandonar as letras. Cf . PAZ, Octávio. Sor Juana Inês de la Cruz o las trampas de la fé. Barcelona -
Espanha: Seix Barral, 1982. pp. 508-533. A poeta “novo hispana” foi autora das célebres “redondillas”
com as que admoesta os homens pela sua indefinição sobre o que desejam ou esperam das mulheres:
Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón/sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis. Si
con ansia sin igual solicitáis su desdén/ ¿por qué queréis que obren bien si las incitáis al mal? Combatís
su resistencia/ y luego con gravedad decís que fue liviandad lo que hizo la diligencia...
Rosa Maria Spinoso de Montandon
47
trazendo em seu conjunto a mentalidade de uma desigualdade entre os sexos, antídoto
contra uma possível insurreição feminina
77
.
Mas esse temor era legítimo e perfeitamente justificado. Era a palavra de Deus,
verdade absoluta sancionada pelas sagradas escrituras. Ali estavam para prová-lo, desde o
início dos tempos, Lilith, a “Lua negra”, a primeira companheira de Adão
78
e Eva, a
primeira de uma linhagem de fêmeas bíblicas que povoaram a mente ocidental de figuras
femininas nefastas. Ali estavam, também, Salomé e a própria Madalena somente perdoada
por “arrependida”. Seguiram-se as bruxas, feiticeiras e sibilas que transformaram a Idade
Média numa grande fogueira, cujo combustível eram as mulheres, alvos fáceis para ação do
demônio. Como suas sócias e mensageiras, a incineração das bruxas visava apagar os traços
do mal na terra
79
. Como mulher, era dessa linhagem que Anna Jacintha descendia.
Mas não era só. Vivia também em “estado de solteira” no qual se manteve até sua
morte, o que por si só já representava uma ostensiva e flagrante transgressão, agravada pelo
fato de ser, aparentemente, voluntário e não motivado por circunstâncias adversas. No
projeto de cristianização e colonização da igreja e do estado durante a colônia, o casamento
era um dos mecanismos de domesticação das mulheres. A partir e por meio dele,
estabeleciam-se os modelos de comportamento, reorganizando-se as funções do corpo, os
gestos, os hábitos e as condutas individuais. Adestrar a mulher fazia parte do processo
civilizatório
80
que limitava seu campo de ação àquele representado pelo universo
puramente familiar onde, sob os auspícios da igreja, se reproduziria o modelo implícito no
sistema escravista: a relação senhor-escravo, correspondendo ao marido o primeiro papel e
.
77
DEL PRIORE, Mary. op. cit. p. 130.
78
Ver: SICUTERI, Roberto. Lilith a Lua Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
79
A historiografia sobre a construção das imagens femininas tem uma ampla lista de títulos. Entre os
consultados estão: MICHELET, Jules. A Feiticeira, 500 anos de transformações na figura da mulher.
Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 3ª ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1992; DELUMEAU,
Jean. História do Medo no Ocidente. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989; DUBY, Gerges. Eva e os Padres. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001; além dos citados em notas anteriores que, em maior ou menor grau, se
ocupam do tema.
80
DEL PRIORE, Mary. op. cit. p. 27.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
48
à esposa, o segundo
81
. Modelo dentro do qual, de nenhuma forma se enquadraria Anna
Jacintha.
Mas não terminava ali sua lista das transgressões. Em “estado de solteira” era,
ainda, mãe, o que implicava que, além de não ter nenhuma legitimidade ante a sociedade,
sancionada por um estado civil sacramentado pela igreja, não a teria para legar a sua prole.
Significava que deveria assumir as rédeas de seu lar, como “cabeça” e à frente de uma
família matrifocal, sem uma figura masculina para impor a ordem e o respeito, requisitos
exigidos pela sociedade para os lares decentes.
No mundo colonial, mulheres sem marido viviam nos limites da desclassificação
social já que o casamento era um sinal de respeitabilidade. Qualquer mulher normal e
honesta deveria sonhar com o casamento e esperar por um marido que a legitimasse e lhe
desse não apenas credibilidade, mas visibilidade ante a sociedade. Condições que já
haviam sido negadas a Ana Jacintha, como filha, também, de mãe solteira, legado negativo
de Maria Bernarda à sua prole.
Assim, sem pai, sem marido e sem importar-se em corrigir, pelo menos, o último,
diante da sociedade somente poderia ser classificada, ou melhor, desclassificada como
prostituta. Não esqueçamos das irmãs Cândidas, prostituídas pela voz popular quando,
como mulheres, seu pecado foi o de haver ficado, aparentemente, solteiras.
Na ausência de um marido, Anna Jacintha tornava-se “desfrutável”, perfeitamente
disponível para relacionamentos amorosos. Alguns até podiam ser apontados, como os
“sacrílegos”que manteve com o vigário mas, quanto aos outros, a principal evidência é a
existência de uma segunda filha natural. Havia também outros relacionamentos com
homens, considerados ilícitos diante dos costumes, incomuns para uma mulher, mas
perfeitamente lógicos e necessários para alguém que como ela, era analfabeta e precisava
ser representada “a rogo”
82
, por não saber ler nem escrever, na assinatura de documentos ou
transações comerciais. Aparentemente nem sempre essa função era feita por procuradores
legalmente constituídos, mas por amigos que deviam gozar de sua confiança.
81
Idem. p. 29.
82
“A pedido”. Expressão usada em documentos cartorários. Antecede à assinatura de quem firma no lugar do
analfabeto.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
49
O analfabetismo não diferenciava Anna Jacintha da maioria das mulheres que,
tradicionalmente destinadas ao casamento, não precisavam adquirir maior instrução que
aquela necessária para cuidar do lar, do marido e dos filhos.
Contudo, não podemos inclinar-nos diante a idéia de que o título de “cortesã”, o
eufemismo da prostituta de luxo com que se tornou célebre, lhe tivesse sido atribuído
apenas por meras especulações ou fantasias populares. Como mulheres sós, independentes
e mães solteiras, ela e sua mãe caíam automaticamente dentro dessa classificação, mas não
se pode desconsiderar a prostituição como uma de suas atividades reais já que, aquelas
eram as condições que normalmente levavam as mulheres a buscar essa forma de
sobrevivência.
Para del Priore, uma definição da prostituição no Brasil da época, certamente teria
que levar em conta as estruturas demográficas, matrimoniais, de normalidade ou desvio
sexual, os valores culturais e a mentalidade
83
. Somente o casamento e os votos religiosos
poderiam oferecer o amparo legal e social para a mulher. Sem eles todas caberiam dentro
de uma classificação genérica como vadias ou prostitutas.
Essa definição parece ser a mais plausível para mãe e filha no período anterior a
1819, quando teriam chegado a Araxá, embora nada de concreto se saiba sobre elas. São
considerações apoiadas nos relatos dos viajantes e na historiografia sobre mulheres e
gênero especialmente de Minas Gerais, uma vez que, como sabemos, não dispomos de
referências documentais específicas.
Quando o naturalista francês August de Sain-Hilaire passou por Araxá, naquele ano,
chamou-lhe a atenção o grande número de prostitutas que encontrou ali
84
. Esse não era um
fenômeno exclusivo de Araxá nem muito menos de Minas Gerais, era um traço comum no
Brasil e principalmente nos centros situados nas fronteiras do mundo civilizado e do “sertão
inculto” para onde a ação colonizadora, pouco a pouco, avançava. Caio Prado Jr. já
apontava a prostituição como o mais alarmante sintoma da geral indisciplina de costumes
que reinava na sociedade colonial, constituindo, sem dúvida, um dos traços mais pungentes
da presença da mulher na História do Brasil, entre escravas, livres e pobres. Não havia
83
Cf. DEL PRIORE, Mary. op. cit. p. 83.
84
SAINT-HILAIRE, August. op. cit. pp. 101-132.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
50
canto na colônia em que a prostituição não tivesse penetrado, desde os grandes ou médios
conglomerados, até os menores e mais insignificantes arraiais
85
.
Araxá, evidentemente, não era uma exceção. A concentração de prostitutas que
chamou a atenção do viajante francês estava certamente relacionada com a constante
afluência de tropeiros e novos moradores que, como mencionamos oportunamente,
movimentavam o arraial após a descoberta das fontes do Barreiro.
Embora seus estudos não tivessem contemplado Araxá, as palavras de Figueiredo
vêm sob medida para confirmar as observações de Saint-Hilaire:
A pesar da prostituição estar presente, indistintamente, em qualquer vilarejo da
capitania, algumas vilas mereciam posição de destaque pela grande concentração de
prostitutas que nelas se verificava
86
.
Além da afluência de forasteiros, um outro aspecto, apontado por Saint-Hilaire,
deve ser considerado ao analisar essa concentração de prostitutas em Araxá. Notou, ele, que
a maioria das casas permaneciam fechadas durante a semana sendo abertas apenas quando
as famílias iam para assistir à missa de domingo. A maioria dos habitantes vivia nas
fazendas, ficando no arraial apenas os artesãos e comerciantes. Eram contadas as vezes que
as famílias inteiras se deslocavam até ali, o que ocorria quase sempre na época das
festividades religiosas.
Mas os homens precisavam cumprir com suas funções políticas e tratar de seus
negócios particulares, o que os fazia ir ao povoado em freqüentes e longos períodos. Dessa
forma, a ausência das famílias no povoado e o constante deslocamento dos senhores onde
permaneciam sós, deve ter sido um estímulo a mais para a ação das prostitutas ou para o
estabelecimento de uma segunda casa. O próprio caráter imposto pela igreja às relações
conjugais, carentes de afeto e onde se impunha o discurso contra o amor, a paixão e a
sensualidade, inteiramente asséptico
87
, impelia os homens para as relações menos
85
PRADO JR. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 7º ed. São Paulo: Brasiliense, 1963, p. 353.
86
FIGUEIREDO, Luciano. op. cit. p. 79.
87
DEL PRIORE, Mary. op. cit. p. 131.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
51
comprometidas com os manuais do confessionário. O amor que se desejava em casa se
deslocava para a rua, para a outra
88
.
Como já dissemos, a prostituição estava quase sempre associada às atividades
comerciais em pequena escala, o que nos autoriza a considerar também essa possibilidade
para nossa personagem feminina. Conforme Figueiredo, o ambiente das vendas e dos
pequenos estabelecimentos, controlado em sua maioria por mulheres em vilas e cidades,
assemelhava-se ao das tavernas onde os homens se reuniam para beber, divertir-se e até
brigar. A pobreza desses estabelecimentos, os minguados recursos que geravam e que mal
davam para o sustento das famílias obrigavam a suas donas ou responsáveis a
complementá-los com os advindos das atividades ilegais, como o contrabando e a
prostituição, atuando diretamente ou como intermediárias facilitando as habitações para a
prática
89
.
Embora o autor tenha fundamentado seu estudo em processos judiciais de mulheres
predominantemente negras, escravas ou libertas, não se podem excluir as brancas, cuja
situação social e econômica era determinada, como já se viu, pelo casamento, e cuja
extrema pobreza levava à prostituição, envolvendo muitas vezes viúvas, filhas, irmãs ou
casadas abandonadas pelos maridos.
Esse quadro nos permite imaginar Maria Bernarda e sua filha até o momento em
que esta iniciou suas relações com o padre e ele a tomasse sob sua “proteção”, algo que não
nos deve estranhar embora envolvesse um cidadão comprometido com a igreja e sujeito a
votos como o da castidade.
As atividades ilícitas, o “comércio carnal” ou o relaxamento do baixo clero para
com certas práticas condenadas pela igreja, como a idolatria, prostituição, concubinato,
adultério, entre outras, possui já uma boa produção historiográfica
90
. Luis Mott nos informa
88
Idem. p. 132.
89
Cf. FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres
no Brasil. op. cit. pp. 141-188.
90
Ver, entre outros, o capítulo Casamento pela lei da natureza”. In : DA SILVA, Maria Beatriz Nizza. op. cit.
LEWCOWICZ, Ida. A Fragilidade do Celibato. In: LIMA, Lana Lage da Gama. op. cit;
MOTT, Luis. Cotidiano e vivência religiosa: entre a Capela e o Calundu. In: MELLO e SOUZA, Laura de.
(org) História da Vida Privada no Brasil I. São Paulo: Companhia das Letras, 1990;
VAINFAS, Ronaldo. Tropico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Campus, 1987; ------Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. op. cit;
SAMARA, Eni de Mesquita. op. cit.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
52
ainda sobre o grande volume de processos conservados nos arquivos da Torre do Tombo
dando conta dos detalhes e das investidas através das quais padres e religiosos praticavam o
assédio sexual aproveitando-se do confessionário, tribunal de penitência desenvolvido
pelos arquitetos do catolicismo para ser, ao mesmo tempo, o mais público e o mais privado
dos espaços religiosos
91
.
Mas, a julgar pelo sobrado que já possuía nos inícios da década de 1830 e pelas
demais propriedades que seguia adquirindo, a extrema pobreza, nessa época, parecia não
ser mais o problema de Anna Jacintha, embora isso não exclua o comércio e a prostituição
entre suas possíveis atividades. Deve-se considerar também o consorcio mantido com o
padre como a causa de sua florescente posição financeira, pelo que convém fazer algumas
reflexiones ao respeito.
É difícil imaginar Anna Jacintha construindo um belo sobrado na Praça da Matriz,
apenas com o produto de suas atividades comerciais, lícitas ou ilícitas, por mais
“diversificadas” que elas fossem. Seria justo, então, pensar que contava com algum tipo de
proteção “fixa”, o que nos autorizaria a considerar a vizinhança de sua residência com a do
vigário e a aquisição das novas propriedades que possibilitavam a comunicação direta e
discreta dos amantes através de seus respectivos quintais, como uma evidência a mais de
que essa “proteção” advinha dele
92
. (Figura 1)
Desde essa perspectiva, a filha que ambos tiveram não seria apenas resultado de um
simples “comércio carnal”, “fornicário vago”, “concubinato simples” ou como quer que
fossem chamados os relacionamentos amorosos eventuais e esporádicos, tolerados pela lei
eclesiástica e ignorados pela civil. A prova está em que Anna Jacintha deu à luz a sua
primeira filha na fazenda do vigário, onde permaneceu durante o resguardo.
91
MOTT, Luiz. op. cit. p. 218
92
A reconstrução histórica e documental do sobrado que fizemos a partir de 1864, ano da escritura de
compra-venda, nos permitiu concluir que este corresponde ao casarão onde hoje funciona a “Pensão
Tormin”. O ano 1907, que consta no medalhão da platibanda refere-se, certamente, à data em que foi
reformado pelo então proprietário, o imigrante italiano Guilherme Scarpellini, que deve ter-lhe
incorporados os elementos arquitetônicos que descaracterizaram a fachada original. Na primeira década do
século XX, funcionou no local o Colégio Nossa Senhora do Carmo e na década de 20, o Colégio Santa
Filomena, de Hildebrando Pontes. Os Casarões de Araxá. Séc. XIX. O Trem da História. Ano 6, nº 20.
abr/mai/jun, 1996. pp. 4-6.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
53
Deve-se considerar que era necessário se guardar por envolver um homem da igreja.
Mesmo tratando-se de uma prostituta e além da simples preocupação com as aparências, era
importante manter as relações sob controle desde o ponto de vista legal e, tanto quanto
possível, ao abrigo dos olhares indiscretos; destituídas do caráter de “concubinato
qualificado”, mantido entre mulher (...) solteira com clérigo (...) teúda, e mantéuda na
própria casa
93
; crime passível de punição, não só pela Igreja como pela lei civil, mantendo-
se os amantes, à vista de todos, em casas separadas.
Para a Igreja, mais interessada em defender o sacramento matrimonial, a castidade
de seus clérigos não merecia igual atenção, preocupando-se não tanto com sua conduta,
mas com a publicidade que seus atos pudessem receber. Em São Paulo, Maria Beatriz
Nizza, pôde perceber o cuidado dos clérigos em manterem suas concubinas em casa de
parentes ou de outras pessoas, onde pudessem visitá-las sem comprometimento, tendo em
vista a diferença que a Igreja fazia entre o clérigo que tivesse uma manceba portas adentro
e aquele outro que era apenas incontinente e 'fornicário vago'
94
.
De acordo com a lei civil e na interpretação dos juristas pode-se concluir que a
coabitação era condição fundamental para a caracterização de concubinato, mesmo que as
relações ilícitas tivessem continuidade. Diziam eles:
O simples comércio carnal de um homem com uma mulher não constitui
concubinato; e não se chamam concubinas as mulheres públicas, ou prostitutas, nem
aquelas que admitem clandestinamente algum homem extranho...
95
.
Sendo reforçado pela historiadora, que acrescenta:
Mesmo que para a Igreja, tais mulheres fossem concubinas de algum homem,
perante o direito civil o fato de não haver coabitação não configurava o crime de
concubinato
96
.
Essa exigência de coabitação, como prova do crime, explicaria a quantidade de
mães solteiras, morando sozinhas em suas casas -situação de Anna Jacintha-, que a mesma
93
DA SILVA, Maria Beatriz Nizza. op. cit. p. 44.
94
Idem. p. 42.
95
SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira de. Apud DA SILVA, Maria Beatriz Nizza. O Concubinato no
Direito Português. In: ------ Sistema de Casamento no Brasil colonial. op. cit. p. 44.
96
Idem. Idem.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
54
autora encontrou nas listas de população da capitania de São Paulo. Para nós, explicaria
também que o vigário, sendo homem abonado e visando mantê-la próxima, tivesse-lhe
proporcionado os meios de construir uma boa casa vizinha à dele. E explicaria ainda, que
anos depois, pudesse ser feita a afirmação de que a filha de ambos teria sido criada ao lado
do pai e não da mãe. Morando em casas separadas, mas vizinhas, se salvaguardavam todas
as normas e interesses, fossem legais ou pessoais, eclesiásticos ou civis.
Mas, a condição de Anna Jacintha como “barregã de clérigo”; “mula-sem-cabeça”
ou “mula-de-padre”, expressões usadas na linguagem jurídica e popular, para caracterizar
as mulheres que mantinham relações amorosas com religiosos
97
, certamente constituía
outro ingrediente “picante” no “prato cheio” que devia ser sua vida, para a imaginação
popular. E embora, como já vimos, essa condição não fosse isolada nem inédita no passado,
pelo contrário, bastante comum, não deixava de representar uma séria transgressão às
normas.
Aliando-se a tudo isso, um outro fator a considerar, no processo de mitificação de
Anna Jacintha é sua partida para Bagagem, local para onde apontavam, na época, as
esperanças de riqueza de boa parte dos moradores da região, principalmente, diante do
clima que se teria instalado naquele momento e à raiz da descoberta do famoso diamante.
Em lugares como Bagagem, o garimpo, o brilho dos diamantes, a expectativa e o
espetáculo de seu encontro, certamente faziam aflorar o lúdico entre seus moradores. Tanto
no universo doméstico como no público, instalava-se um clima propício para o exercício da
fantasia, alimentado pela pesada rotina da incerteza diária que se manifestava, como ainda
hoje, em histórias e lendas
98
.
97
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit. p. 1168.
98
Nas visitas que fizemos a Estrela do Sul onde, ainda hoje, o garimpo faz parte do cotidiano, foi possível
conhecer algumas dessas histórias que cercam sempre os achados mais importantes. São histórias
exemplares ou sobrenaturais de avisos do além, sonhos e pressentimentos, que acompanham sempre o
aparecimento do diamante. Nesse sentido, o capítulo que Michelet dedica às feiticeiras bascas é bastante
esclarecedor. O autor aponta para a incerteza que cercava certas atividades, como as dos marinheiros -e,
por que não as dos garimpeiros de Bagagem? - como uma das causas para o apelo ao sobrenatural que se
manifestou como feitiçaria entre as mulheres bascas do século XVII. Levadas pela necessidade do
sobrenatural para garantir o sucesso ou o retorno dos maridos filhas do mar e da ilusão, a natureza as fez
feiticeiras. MICHELET, Jules. A Feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. pp.161-163.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
55
Embora a promessa de riqueza e ouro a faça aflorar de forma mais intensa ou
freqüente, essa predisposição para o maravilhoso não é exclusiva das áreas de mineração; é
um dos patrimônios mais ricos do imaginário latino-americano, campo fértil para seu
cultivo, onde o fantástico se torna real por seu encontro a cada passo en las vidas de los
hombres (e mulheres) que inscribieron fechas em la historia del Continente
99
. Para o
escritor cubano Alejo Carpentier, o insólito na América Latina é e sempre foi cotidiano e
sua história não é outra coisa senão uma crônica de lo real-maravilloso
100
.
Por outro lado, e como já o dissemos sobre a morte, a ausência, mesmo em vida,
provoca o surgimento de boatos e falatórios, sobre quem se ausenta. Principalmente se o
ausente deixa para trás uma “longa cauda para pisar”. Dessa forma, o clima lúdico e o
espaço aberto por sua partida teriam sido propícios para que os conhecidos e até os
desconhecidos tecessem suas histórias sobre Anna Jacintha, as repetissem, as enfeitassem e,
por fim, aumentadas ou diminuídas as colocassem em “livre circulação”.
Mas, admitindo-se que Anna Jacintha tornou-se um mito no papel de sedutora, o
que significa dizer transgressora, uma transgressão maior, além da representada pela sua
condição de mulher, solteira, mãe, e prostituta, pode ser considerada como fator dominante
na sua mitogênese. Afinal de contas, mulheres nessas condições abundavam, fazendo parte
da paisagem cotidiana.
Consideramos o processo judicial de reclamação de herança que moveu contra o
coronel Fortunato José da Silva Botelho, seu antigo aliado e marido de sua neta, a peça
chave no processo que a levou da boca do povo até a memória e o imaginário social.
Numa sociedade capitalista, eminentemente masculina e de bases agropecuárias, um
processo contra um de seus membros mais destacados, envolvendo a propriedade e ainda
por cima dirigido por uma mulher, deve ter significado uma transgressão das normas maior
99
CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. México DF: Siglo Veintiuno, 1993, p. 16. A semelhança
de outros escritores hispano-americanos como o argentino Julio Cortazar e o guatemalteco e prêmio Nobel
de literatura, Miguel Angel Astúrias, o contato com os surrealistas franceses revelou ao escritor cubano a
compreensão do maravilhoso cotidiano na América Latina, cultivando em sua literatura o que ficou
conhecido como “realismo mágico”. O escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez é um de seus
representantes mais conhecidos na atualidade. Para o próprio André Breton, um dos criadores do
surrealismo, a América estava enferma de surrealismo, segundo observou após sua visita ao México em
1938. Ver também: JARAMILLO, Ivan Dario Toro. El Imaginário Europeo y América. In: BESSONE,
Tânia Maria Tavares; QUEIROZ, Tereza Aline P. (org) América Latina: Imagens, Imaginação e
Imaginário. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1997, pp. 689-699
100
Idem. p. 18.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
56
do que o desafio aos códigos morais diga-se de passagem-, atropelados constantemente,
inclusive por pessoas das quais se esperaria apenas bom exemplo. Significava uma
alteração perigosa nas relações de poder que, representadas pelo coronel, foram desafiadas
publicamente e vencidas legalmente.
Essa transgressão às normas quebrou, sim, uma ordem vigente, mexendo nas
estruturas sociais que se fundavam na família e na propriedade. A moral contava, mas
acima da moral estava a propriedade. Se os amores “sacrílegos” com o vigário, não importa
quão públicos e notórios tivessem sido, foram consentidos no passado, foi, justamente,
porque não ameaçavam essas estruturas. A ausência de ameaça contra a propriedade
permitia à sociedade ser mais tolerante com os deslizes de seus membros e os arranhões à
moral.
Prova de que os interesses econômicos familiares foram atingidos desde o principio,
são os documentos anexados aos autos do processo que dão conta do encerramento de uma
sociedade que Fortunato mantinha, desde 1835, com seu irmão Francisco José da Silva
Botelho e desfeita, em 1859, quase no início do processo. Ao que tudo indica, a intenção
era desvincular as propriedades que ambos tinham em comum e livrar parte dos bens de
serem incluídos no montante sobre o qual Anna Jacintha pleiteava sua herança
101
.
Também tudo indica que o processo transcendeu os espaços puramente jurídicos
alcançando ao povo que devia acompanhar os lances dados por cada uma das partes.
Envolvendo a um político e, portanto, um homem público e a uma mulher que já havia sido
considerada pública, em uma comunidade reduzida onde quase todo mundo era parente,
amigo ou vizinho, a opinião dos outros era importante. Em 1861, Fortunato se dizia
sofrendo em sua reputação pelas argüições que lhe fez Dona Anna Jacintha de São
José, pelo seu advogado João de Souza da Silveira Palhares, em um processo neste
juízo e que corre impresso no Jornal do Comercio de 13 de agosto deste ano...
102
.
As “argüições” se referiam a supostas dívidas que Fortunato teria contraído com seu
irmão, declaradas por ele no processo, mas qualificadas publicamente como “dolosas”
101
Cópia de uma escritura de dissolução de sociedade. Processo de Reclamação de Herança. 1859. Caixa nº
78. AFTF.
102
Processo de Reclamação de Herança. 15 de outubro de 1864. Caixa nº 93. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
57
pelos autores do mesmo porque visavam, segundo eles, subtrair essa quantia do monto da
herança.
Em 1864 foi a vez de Anna Jacintha aludir às “más línguas” que corriam soltas e
segundo as quais o sexto vereador, que estava incumbido das funções de juiz municipal,
estava sendo pressionado para protelar a execução da sentença favorável a ela. Os cinco
vereadores anteriores, a quem caberiam essa função, tinham-se declarado impedidos ou sob
suspeição por serem amigos ou parentes do réu
103
. Assim, dizia ela:
muitos porem acreditam, talvez com razão, que a demora do despacho de VSª é
causada pela influência atual do executado, que segundo dizem as mas línguas,
exigira de VSª que não despachasse os autos em quanto certas medidas e planos se
não realizarem (sic)
104
.
Significativamente, o sétimo vereador em turno escalado para despachar como juiz
seria, precisamente, o Coronel Comandante Superior Fortunato José da Silva Botelho.
Para encerrar nossos comentários sobre a publicidade que envolveu o processo, é
necessário considerar também a impressão que deve haver causado no povo uma briga
desse quilate envolvendo um homem poderoso e uma avó de quem se esperaria, no mínimo,
que estivesse “inconsolável” diante da morte de uma neta, tão jovem e em condições tão
dramática; atitude mais condizente com a generalizada imagem maternal associada a essas
parentas. Em vez disso, o que se via era um homem sendo acuado por uma mulher, que
lutava com unhas e dentes pelos seus direitos, tentando arrancar dele o máximo que a lei
lhe permitia de uma herança.
Dada a importância que atribuímos a esse processo como peça chave no caminho
que levou a Anna Jacintha a instalar-se, ainda em vida, no imaginário popular, acreditamos
ser importante dar a conhecer alguns detalhes sobre ele.
O processo de reclamação de herança parece haver-se desdobrado em torno de dois
objetivos em etapas sucessivas. Na primeira, levada até o Tribunal Superior de Apelação,
no Rio de Janeiro, que deu ganho de causa à autora, após percorrer todas as instâncias
103
Cópia do documento em que se informa o impedimento dos vereadores que deveriam exercer as funções
de juiz. Processo de Reclamação de Herança. 26 de fevereiro de 1864. Caixa nº 78. AFTF.
104
Processo de Reclamação de Herança. 6 de fev. de 1864. Caixa nº 78. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
58
competentes, discutiam-se a legitimidade dos direitos da autora, como herdeira de sua neta
e a ilegitimidade de um testamento “nuncupativo” ou de palavra, que o réu apresentou em
seu favor. Na segunda, resolvida com um acordo assinado entre ambas partes, discutia-se o
montante dos bens dos quais se deduziria a parte a que ela tinha direito.
Em termos gerais, na primeira fase, Anna Jacintha apoiava suas pretensões como
herdeira natural e necessária de sua neta Theodora Jacintha Fortunata da Silva, na qualidade
de única parente ascendente em linha direta, uma vez que os pais e avós paternos também
eram falecidos e, como se sabe, ela morrera de parto, sem deixar descendência. Ao mesmo
tempo contestava a validade do testamento “nuncupativo”, supostamente feito por
Theodora em seu leito de morte, beneficiando exclusivamente a seu marido.
A defesa do réu fundava seus argumentos na lei que impedia aos pais de filhos
sacrílegos, produtos “de danado e punível coito”, herdar a seus filhos e vice-versa. Dessa
forma
...punindo a mãe, autora do sacrilégio com a deserdação da filha
ficava quebrada a cadeia sucessória que beneficiaria a avó, já que tal cadeia sucessória
podia ser estendida a ela, de acordo, ainda, com o caráter de reciprocidade da lei. Segundo
os advogados do réu
sendo considerados sacrílegos os filhos de Padre, e não podendo os pais os
succederem à Ordenação do Livro quarto, título noventa e três, Regimento do
Desembargo do Paço (...), Ley de sete de janeiro de mil setecentos e cinqüenta (...)
por ser Dona Theodora filha de uma filha do Reverendíssimo Vigário desta
Freguesia Francisco José da Silva, reconhecida em testamento, por ser já falecido
o dito vigário, é claro que se Anna Jacintha de São José não pode succeder (sic) a
Dona Theresa, muito menos à sua neta pois já se tinha quebrado a cadeia de
sucessão....
105
.
Lançando dúvidas sobre a maternidade da autora, alegavam ainda, em favor do
suposto testamento feito pela falecida que
nem a supplicante pode assim chamar de filha a Dona Theresa, sogra do
supplicado, pois que não a tendo criado em sua companhia antes em casa em poder
105
Sentença cível no gráo de appelação... (sic.). Processo de Reclamação de Herança. 21 de nov. de 1862.
Caixa nº 78, folha 15v. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
59
do referido Vigário no caso de exposta, não tem succesorio (...) e estando assim
Dona Theodora desembaraçada de herdeiros necessários podia, como fez, em
testamento solemne (sic) instituir a quem bem lhe parecer
106
.
Por sua parte, Anna Jacintha não negava nada, “confessava” ser solteira, sim, e
Thereza filha “espúria e sacrílega de danado e punível coito”. Entre os vinte e dois itens em
que sustenta sua argumentação, confirmava nunca haver ocultado sua gravidez, fato
“público e notório”, comprovado pelo nascimento de sua filha na Fazenda do Campo
Aberto, propriedade do vigário onde ela teria recebido
sem exceção, todas as pessoas que então a procuravam para visitá-la e a nenhuma
ocultou a verdadeira causa que a retinha reclusa e de cama durante a necessaria
dieta (sic)
107
.
Em relação às dúvidas lançadas sobre seu desempenho como mãe, que jogava com a
suspeita de ter ela abandonada sua filha como “exposta” na casa do vigário, declarava havê-
la mantido sempre
publicamente em sua companhia (...) criando-a, educando-a, zelando-a, e
finalmente casando-a com Joaquim Ribeiro da Silva Botelho, conferindo-lhe por
essa ocasião hum dote proporcionado às forças de sua fortuna (sic)
108
.
Para finalizar a defesa, não precisamente dela, mas de seus direitos, seus advogados
argumentavam que se as ordenações citadas pelas partes do réu negavam ao filho sacrílego
o direito de suceder a seus pais, dava-lhes, contudo, faculdades para suceder aos avós
maternos e a todos os parentes por trás parte da mãe. Amparando-se nas palavras: 'Assim
poderá suceder a quaisquer outros parentes de e devidos por parte de sua mãe conjuntos',
constantes em Coelho da Rocha, Direito Civil, paragrapho trezentos e quarenta (sic)
provava-se que os netos, filhos de filhos sacrílegos tinham faculdades de sucederem seus
avós o que não excluía à autora,
106
Idem. Idem.
107
Idem. Folhas 18v -21v.
108
Idem. Idem.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
60
que é avó e não mãe, porque a seu favor prevalece o principio de reciprocidade de
sucessão (e) assim como os nettos espúrios filhos de filha legítima, ou os nettos
legítimos filhos de filha de danado coito sucedem a seus avós maternos, também
estes sucedem àqueles nettos
(sic)
109
.
Assim o entenderam também os juizes que falharam a favor de Anna Jacintha
considerando-a habilitada herdeira de sua finada netta. Julgando nulo o testamento
nuncupativo, a justiça condenava o réu a
entregar por inventario à referida autora a herança de sua supradita netta (...) com
todos os accessorios, fructos e rendimentos desde a morte da mesma, e a pagar as
custas da excausa (sic)
110
.
Essa sentença foi confirmada pelo Superior Tribunal de Apelação ao qual recorreu
Fortunato por não aceitar o resultado do julgamento municipal.
A segunda parte do processo desenvolveu-se em torno da disputa sobre o monto dos
bens da falecida que deveriam entrar no inventário, prévio à partilha. Fortunato alegava que
deveriam ser apenas os bens que sua finada esposa já possuía de solteira, como herança de
seus pais e que aportou ao casamento como dote. Mas Anna Jacintha respondia que, tendo
sido realizado o casamento sob o regime de comunhão universal de bens, todos os que o
casal possuía tinham que ser incluídos no inventario, inclusive aqueles que Fortunato havia
amealhado antes de casar-se.
No meio da fala jurídica pode-se perceber em Anna Jacintha uma mulher que
aceitava assumir seus “pecados” em prol de seus direitos e que, pese seu analfabetismo, ou
era bem informada sobre eles, ou estava muito bem assessorada, ou ambas coisas, o que a
habilitava como uma opoente à altura da força e do poder de um coronel.
Pelo resultado, o processo significou uma vitória para ela, que mesmo não
conseguindo toda a soma que pretendia, levou bem mais do que aquela que receberia se
fossem distribuídos os bens segundo desejava Fortunato.
No princípio, a causa foi avaliada em trinta contos de réis. Anna Jacintha, por sua
parte, pleiteava vinte e cinco, o que considerava ser uma quarta parte do total dos bens do
109
Idem. Folha 29v.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
61
casal. Ao final, esgotados certamente pela longa disputa, os dois se compuseram por
dezesseis contos de réis em um acordo assinado por Fortunato e por Clementino Martins
Borges, genro e procurador de Anna Jacintha. De acordo com o documento, esse arranjo foi
proposto por dois devedores de Fortunato que assumiram o compromisso de transferir para
ela a quantia que deviam a ele, saldando dessa forma a suas dívidas
111
.
Entendemos que, além da pressão da lei, tal arranjo só foi possível porque propunha
uma fórmula que, pelo menos na aparência e na visão machista, livrava Fortunato de ter
que ceder pessoalmente diante de um oponente do sexo aposto. Dessa forma, transferia para
seus devedores, junto com a dívida financeira, o ônus do compromisso de entender-se com
Anna Jacintha. Porquanto favorecidos pelo empréstimo que lhes tinha concedido, além de
acertar suas dívidas, seus devedores poderiam retribuir-lhe livrando-o dessa situação
humilhante.
Durante todo o processo, nos chama a atenção que em nenhum momento se fez
alusão à (in)moralidade de Anna Jacintha, a outras relações ou possíveis atividades ilícitas
do passado exceto às que manteve com o vigário-, embora ambos estivessem firmemente
empenhados em vencer, como provam os quase sete anos que durou a disputa. Apesar das
tentativas de desqualificação como herdeira e ainda como mãe, empreendidas contra ela por
parte do coronel, nenhuma acusação mais série lhe fez, ainda que nos autos do processo se
empregassem expressões como “espúrios”, “sacrílegos” ou “danado e punível coito”,
termos utilizados nos textos e no “jargão” jurídico para as relações amorosas e os filhos
havidos com padres.
E, principalmente, tampouco se fez referência a nenhum crime ou suposto
assassinato em que figurasse como acusada e tivesse sido julgada no passado. Acreditamos
que se realmente tivesse ocorrido, e mesmo sendo inocentada, essa incursão pelos anais do
crime não deixaria de ser usada contra ela, ainda que de forma indireta, pelos advogados de
Fortunato; a não ser que existisse a possibilidade de, com isso, envolver outras pessoas,
inclusive ele e sua família com quem, como sabemos, Anna Jacintha manteve estreitas
relações no passado.
110
Idem. Folha 47.
111
“Termo de Composiçam” (sic). Processo de Reclamação de Herança. 10 de maio de 1867. Caixa nº 93. Os
devedores eram Pedro Affonso de Almeida e o Capitão Antonio Pedro da Cunha. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
62
Outro aspecto que merece ser destacado nas argumentações de ambos lados, é o
tratamento diferenciado que fazia recair sobre Anna Jacintha todo o ônus da ilegalidade e
da culpa nas relações “sacrílegas” mantidas com o vigário, a quem sempre se reservou um
tratamento devotado como “reverendíssimo”. Era como se em toda essa história que
envolvia um homem e uma mulher adultos, às voltas com sua sexualidade, somente um
fosse o responsável: a mulher. Ela mesma, ao admitir e “confessar” essas relações, parecia
participar implicitamente da mentalidade vigente que insistia em fazer recair a
exclusividade da culpa sobre o sexo feminino.
De fato, sabe-se que tanto as leis civis como as eclesiásticas nem sempre se
aplicavam na colônia, mas, de acordo com as segundas, as penas aplicadas às concubinas
de padres eram maiores do que contra as amancebadas com leigos, sendo a lei civil
encarregada da respectiva execução. Em termos gerais, a sexualidade dos padres, como
homens, não estava sujeita às penalidades da lei comum, sendo seus excessos ou desvios
julgados, quando o eram, pelos tribunais eclesiásticos o que significava colocá-los sob a
proteção do abraço maternal e amoroso da Santa Madre Igreja, sempre pronta a ignorar ou
perdoar as faltas dos filhos mais favorecidos.
Assim indica a desenvoltura, com que pareceu agir o vigário de São Domingos de
Araxá, fazendo jus à tradicional (má) fama do clero secular em Minas Gerais. Para Laura
de Mello e Souza, embora os religiosos mineiros não se identificassem com os
desclassificados propriamente ditos (...) apresentavam certa tendência a serem assimilados
pelo mundo das infrações
112
. Palavras reforçadas pelos diversos documentos encontrados
nos arquivos locais, endereçadas às autoridades municipais e provinciais, contendo
denúncias e acusações vagas contra nosso vigário, embora nada de concreto e nem de
caráter moral fosse mencionado.
Tudo indica que tais acusações eram movidas pelas atividades políticas e “extra-
religiosas” em que o vigário andava envolvido e ignoramos se medidas foram tomadas para
apurá-las. Entendemos que dificilmente teriam alguma conseqüência podendo ser
neutralizadas pelas vinculações familiares do acusado com os donos do poder.
112
MELLO e SOUZA, Laura de. op. cit. p. 174.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
63
O apelido Beija ou Beja, constitui outro elemento importante na mitogênese de
Anna Jacintha de São José, mas deixaremos para comentar seus possíveis significados no
capítulo dedicado aos aspectos conjecturais do mito, já que todos os que figuram até hoje
foram sugeridos pela literatura. Como Araxá ou Arachá no passado, a ausência de um
consenso para a grafia do apelido de Anna Jacintha nos documentos antigos, também é
motivo de especulações que, como sabemos, alimentam o mito.
Nesses documentos aparece escrito, indistintamente, como Beija ou Beja, o que
pode ser explicado pela alfabetização precária dos funcionários que com freqüência
desempenhavam as funções de escrivão
113
e pela tendência comum de transformar os
ditongos das sílabas tônicas, que antecedem à última sílaba -como brasileiro, cruzeiro ou
beijo-, em monotongos, sendo escritas, freqüentemente, tal e como são pronunciadas. Dessa
forma a palavra Beija seria pronunciada Beja e escrita dessa maneira.
Essa é, pois, a “saga” de Anna Jacintha de São José, Dona Beja, a “cortesã” que
ficou lembrada pelo escândalo que instalou na sociedade araxaense de seu tempo. Não só
pelos seus amores ilícitos, mas antes e principalmente, por introduzir a desordem; por
cometer a “audácia” de levar um coronel ante os tribunais, por haver-lhe “tomado os
cobres”
114
e pelos “estragos” que causou na fortuna dos “lascivos capitalistas”
115
.
Acreditamos que essas expressões são ecos daquele antigo processo; fôrmulas
familiares e populares com que foram filtradas as impressões sobre seu desfecho e que,
como sugere a “lascívia” incorporada na última frase, passaram a ser pintadas com as cores
do erotismo, marca registrada do mito no século XX
116
.
113
Na palestra inaugural proferida na Universidade Federal de Uberlândia, em 2001, a historiadora Janaina
Amado referiu-se a suas pesquisas sobre os degredados no Brasil que apontaram, entre outras coisas, para
o alto grau de analfabetismo reinante na colônia. Isso permitia a atuação de gente das mais diversas
origens, inclusive os degredados que soubessem ler e escrever, em cargos públicos como os de escrivão.
114
Montandon, Elizena Carvalho. Entrevista. Araxá, 11 de julho de 2001. Após diversas conversas e na
entrevista gravada em sua casa, Dona Elizena, tataraneta do coronel Fortunato José da Silva Botelho, nos
disse que sua avó, Áurea de Castro Botelho, não gostava de falar em Dona Beja, mas que quando o fazia
referia-se a ela como “a mulher à toa que tomou os cobres de seu avô”.
115
Sebastião de Afonseca e Silva diz em suas notas pessoais que, embora nos primeiros capítulos da
“História de Araxá” falasse em Dona Beja como a heroína da volta do Triângulo Mineiro a Minas Gerais,
evitou citar seu nome, deixando para fazê-lo mais tarde, quando ela já estivesse na idade madura e, quando
segundo ele, andava causando verdadeiros estragos nas fortunas dos lascivos capitalistas. AMDB.
116
Na “biografia” escrita por Hildebrando Pontes, provavelmente na década de 1920, o processo e seus
protagonistas adquiriram a seguinte versão: O coronel Fortunato enviuvara-se ao primeiro parto de sua
Rosa Maria Spinoso de Montandon
64
O Mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
é o mytho brilhante e mudo o
corpo morto de Deus vivo e
desnudo
117
.
Os historiadores têm mantido uma tradicional resistência ou uma “prudente”
distância com relação aos mitos, justificada pela busca de uma verdade que se pensava
única e objetiva enquanto meta final da disciplina. Pensava-se nos mitos como “ficções”,
“mentiras”, “invenções”, produtos da imaginação, sem consistência histórica e por tanto
alheios aos interesses desta. Essa resistência vem sendo parcialmente quebrada pela
abordagem cultural das pesquisas históricas que, em função de seu diálogo com a
antropologia, tem permitido a entrada de mitos, lendas e tradições culturais no processo de
reconstrução histórica, embora ainda persista uma certa carência historiográfica relacionada
a essa temática.
formosa esposa, a quem sobreviveu algumas horas apenas, o recém nascido. Por lei, a avó D. Beija,
torna-se herdeira do neto. Mas o coronel Fortunato, firmado na sua grande prepotência e mandonismo,
pretendeu de “revogar” a lei e sustentar por muitos anos a ação que perdera em todas as instancias e
apelações e por fim, obstinadamente, não cumpriu a sentença, isto é, entregar a ex-sogra o que de direito
lhe pertencia como herdeira do neto. (...) Decorridos alguns anos lá por 1870- graças à benévola
intervenção de Clementino Borges, concunhado do coronel Fortunato, foi que o capitalista Pedro Afonso
de Almeida, sem ter previamente consultado aquele coronel, pagou a D. Beija, 20 contos de réis pela sua
desistência d’aquela herança, com contrato lavrado em cartório. Ciente desse acordo, o coronel
Fortunato ficou satisfeitíssimo...PONTES, Hildebrando. “Dona Beija”. 1800 - 1890. Araxá, Estado de
Minas Gerais. S/D. pp. 6-7 .
117
PESSOA, Fernando. Os Castellos. In: GALHOZ, Maria Aliete. (org). Fernando Pessoa. Obra Poética.
Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. p. 72.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
65
Um dos mais respeitados estudiosos dos mitos, que defende o aproveitamento da
mitologia na produção do conhecimento histórico, é Lévi-Strauss. Ele advoga para que o
muro que existe entre ambos seja derrubado, sendo os estudos históricos e mitológicos
concebidos não mais separados e sim complementares. Quando tentamos fazer História
científica, diz, fazemos por acaso algo científico ou estamos adotando também nossa
própria mitologia na tentativa de fazer uma História pura?
118
.
No campo da história, Girardet também se propôs justificar o estudo e a utilidade da
mitologia, embora não deixe de nos alertar para a estranheza e desconfiança que esses
procedimentos podem causar especialmente entre os historiadores
119
. Mas essa carência
historiográfica pode ser suprida pelos trabalhos realizados em outros campos do
conhecimento, que se tem ocupado sistematicamente do estudo dos mitos. Ouvindo-os é
possível estabelecer as causas de seu aparecimento em determinados momentos da história,
sua longevidade, vigência e seus significados para a sociedade.
Os mitos são definidos e explicados de diversas formas segundo o campo em que
operam os interessados em seu estudo, entretanto, a maioria coincide em atrelar seu
significado à sua função, eliminando a gratuidade de sua existência e tornando palpável sua
funcionalidade. Os mitos, segundo estudiosos, são eminentemente funcionais e essa
funcionalidade se encontra implícita no seu significado para a sociedade que os cria e
cultiva.
Etimologicamente, mito significa “palavra”, daí serem eles apresentados como
narrativas ou relatos que podem ser orais ou escritos em torno de fenômenos naturais ou
sobrenaturais, pessoas e objetos que contêm mensagens ou discursos codificados, que se
instalam no imaginário fazendo parte da memória coletiva e do patrimônio comum no
inventário cultural dos povos.
É difícil separar o significado e as funções do mito, sendo estas, também,
determinadas e expostas segundo as nomenclaturas próprias de cada campo do
conhecimento em que são estudados.
118
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Tradução de Antônio Márquez Bessa. Lisboa: Edições 70,
1978, pp. 62-63.
119
Cf. GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologia Política. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. p. 82.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
66
A existência dos mitos nas sociedades contemporâneas significaria a sobrevivência
ou “interferência” do sagrado entre elas, assim como a necessidade que os humanos ainda
conservam dessa sacralidade. A função dos mitos seria, então, a de “exorcizar” os
fantasmas, servir como pontes, “mediatizadores” ou “sublimadores” das mudanças ou das
rupturas no equilíbrio social, nos campos políticos, culturais, técnico ou econômico, sendo
indispensáveis como instrumentos de controle social, radicando também ali sua utilidade
nas sociedades, mesmo aquelas consideradas modernas e progressistas.
Entre as condições que podem atribuir estatuto de mito a um determinado
fenômeno, personagem, ou evento, está a de não ter origem ou autoria definida. Mesmo
quando fosse possível identificar o autor do relato, este seria apenas o escrivão ou porta-voz
de uma verdade que já circula e da qual o mito é, ao mesmo tempo, condutor e
conduzido
120
.
Numa sociedade de consumo, o mito é apropriado por diferentes segmentos e
vertentes de interesse, sendo, pois, o seu significado modificado tantas vezes quantas for
apropriado, adotando múltiplas formas de representação. Nesse sentido, fica implícita no
mito uma historicidade que pressupõe movimento, mudança, processo.
Assim considerado, podemos identificar em Dona Beja e sua história, praticamente
todas as condições que a justificariam como um mito, sua origem popular, a longevidade,
sua capacidade de transformação e incorporação de diversos discursos, transmitindo
diferentes mensagens, atendendo à sociedade não apenas no âmbito local e regional, como
também nacional e internacional.
Na análise antropológica que Abreu Filho faz de Dona Beja, segundo os códigos
políticos e sexuais, no primeiro representaria a oposição entre o poder local e supra-local e
120
Entre os estudiosos dos diferentes campos que se ocuparam dos mitos foram particularmente úteis para
este trabalho: BARTHES, Roland. Mitologias. 9ª ed. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993; BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. 25ª ed.
Tradução de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1991; CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito.
3ª ed. Tradução de J. Guinsburg e Miriam Schnaider-man. São Paulo: Perspectiva, 1992; DEVEREUX,
Georges. Mulher e Mito. Tradução de Beatriz Sidou. Campinas, SP: Papirus, 1990; ELIADE, Mircea.
Mito e Realidade; 5ª ed. São Paulo: Perspectiva 1998; FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro.
Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982; GIRARDET, Raoul. Mitos e
Mitologia Política. op. cit; LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. op. cit; LUCCIONI, Gennie;
BARTHES, Roland, et alii. Atualidade do Mito. Tradução de Carlos Arthur R do Nascimento. São
Paulo: Duas Cidades, 1977; MORAIS, Regis de. (org.) As Razões do Mito. Campinas SP: Papirus, 1988.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
67
no segundo, as contradições implícitas nas relações sexistas da sociedade
121
. Deriva daí sua
capacidade de assimilação em diversos tempos e lugares, segundo discursos variados em
que atua simultânea ou separadamente como vítima, heroína, revolucionária ou sinônimo
de desvio.
Em Araxá o mito falaria diretamente ao povo e por ele, o povo falaria
inconscientemente de sua identidade, relacionada diretamente com as águas minerais.
Falaria de seus conflitos provenientes das lutas pelo poder entre grupos locais e falaria das
relações contraditórias que, em geral, a sociedade mantém com as mulheres, debatendo-se
entre aceitá-las ou rejeitá-las como representantes de um duplo papel: a mãe ou a amante.
Segundo os códigos masculinos, a primeira seria o ideal de toda mulher honesta, a
mulher de dentro de casa, a esposa que, mesmo assim, é invariavelmente rejeitada, ainda
que nem sempre de forma explícita, em favor da segunda, a “outra”, a mulher da rua, de
fora de casa, a vadia que, e em última instância, acabava tornando-se um “mal
necessário”
122
.
“Letrados” X “Coronéis”
No aspecto político, o período entre 1913-1915 é um momento altamente
significativo para o surgimento de Dona Beja como mito, segundo as reflexões que fizemos
anteriormente sobre as condições em que se produzem esses fenômenos. Nele surgiu o
relato e começou a desenhar-se sua figura em um veículo de comunicação. A memória pela
via oral cedia lugar à história que a incorporou com o status de heroína num relato
histórico, onde se encontravam já os ingredientes básicos da personalidade que a tornaria
um mito: a beleza, a vitimação e a transgressão.
Seu aparecimento naquele momento, assim como o do relato histórico de que fazia
parte podem ser analisados historicamente a partir de duas perspectivas: a primeira,
relacionada com a necessidade de legitimação por parte de um setor da classe média urbana
121
Cf. ABREU Filho, Ovídio. Dona Beija: Análise de um Mito. In: FRANCHETO, Bruna et alii..
Perspectivas Antropológicas da Mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. pp. 73-108.
122
Cf. SOUSA, Vera Lúcia Puga de. Paixão, Sedução e Violência. 1960-1980.. São Paulo: USP. 1998. (Tese
de doutorado). Ver Também: RAGO, Margareth. Do cabaré ao Lar. A Utopia da Cidade Disciplinar.
Brasil 1980-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
68
que lutava por um espaço dentro de um sistema apoiado nas oligarquias agrárias; a outra,
com o fortalecimento de uma identidade regional que aflorava com os preparativos para as
comemorações, em 1916, do centenário da reincorporação da região do Triângulo Mineiro
a Minas Gerais.
Analisando a crise de identidade social e da ação política, presentes na pretensão de
instaurar-se a modernidade no Brasil, nos anos 20, Milton Lahuerta se refere ao
deslocamento paulatino dessa preocupação em direção ao tema do nacional como uma das
conseqüências dos preparativos para a comemoração dos 100 anos da independência, que
colocava a descoberto o sentimento de atraso que nutria a sociedade quando comparava o
país com a Europa, usando os tradicionais critérios hegemônicos
123
. Transportando essa
problemática para o âmbito e a realidade regional, vamos descobrir em Araxá ecos dessas
preocupações, que tinham na imprensa local um veículo natural e legítimo de expressão.
Uma leitura cuidadosa dos jornais locais e principalmente “O Correio de Araxá”,
“Semanário independente dedicado aos interesses do povo” -como se auto-intitulava-, o
principal instrumento de comunicação de um certo setor da classe média urbana, permite
detectar uma parcela desse universo político, econômico e social, assim como certos
aspectos conjunturais que refletiam, também em Araxá, o debate geral instalado na
sociedade brasileira. Aspectos em que se podem encontrar, em nossa opinião, as causas da
irrupção do mito Dona Beja no cenário local e regional e dos quais analisaremos, não suas
estruturas internas ou seu processo histórico, mas seus efeitos como fatores determinantes
para o nascimento desse mito.
Em primeiro lugar, existia em Araxá um confronto aberto e ostensivo entre dois
grupos locais, que poderia ser analisado, naquele momento, segundo o tradicional discurso
do embate que opunha civilização e barbárie na América Latina, condição a ser superada
por qualquer país que, como o Brasil, se dispusesse a entrar para a modernidade
124
. Esse
embate era protagonizado por representante de uma classe média urbana, com veleidades
123
LAHUERTA, Milton. A Década de 1920 e as Origens do Brasil Moderno. In ------ Os Intelectuais e os
anos 20: Moderno, Modernista, Modernização. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1997. p. 96.
124
Cf. DA SILVA, Janice Theodoro. Descobrimentos e Colonização. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1998. No
“vocabulário crítico” que a autora apresenta ao final de seu livro, o discurso é definido como texto, fala,
gesto ou imagem construído por uma sujeito ou instituição. Envolve um conteúdo simbólico cujo
significado deve ser decodificado pelo pesquisador. p.67.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
69
civilizatórias, necessidade de legitimação e justificativa histórica, em um meio impregnado
de valores rurais, dominado, tradicionalmente, pelos seus representantes, os coronéis
125
.
Analisando a situação segundo a perspectiva dos historiadores que vêem na história
uma função eminentemente legitimadora
126
, ao buscar legitimidade no passado acionam-se
mecanismos que criam condições propícias e possibilitam o surgimento de figuras
exemplares, heróis ou anti-heróis de suas causas. O exemplo é o legado dos heróis e os
conflitos terreno fértil para que apareçam, de acordo com Girardet, para quem: nesses
períodos intermitentes da legitimidade, nos momentos de desequilíbrio, de incerteza ou de
conflito estão cronologicamente situados os apelos mais veementes à intervenção do herói
salvador
127
.
Por outro lado, na concepção positivista dominante
128
, a condição de herói era uma
das poucas que permitiria a entrada para a história de figuras humanas que não estivessem
enquadradas nas categorias que, tradicionalmente, se encontravam no foco de atenção dos
historiadores: homens, políticos e dirigentes militares, cientistas ou artistas e nobres.
Categorias nas quais, evidentemente, não haveria um lugar para Dona Beja.
Mas, naquele momento, existia um grupo social que requeria uma imagem onde
espelhar ao mesmo tempo seu inconformismo e suas contradições, mesmas que se
encontravam em pauta no amplo debate social. Uma figura fora da ortodoxia e das normas
125
Cf. SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo. Civilização e Barbárie no Pampa Argentino. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1996. Ver também: PRADO, Maria Lígia Coelho. Para Ler o Facundo de Sarmiento
In: ------ América Latina no Século XIX. Tramas Telas e Textos. Bauru: EDUSC; São Paulo: EDUSP,
1999. A dicotomia “civilização” e “barbárie” foi uma das imagens mais presentes no pensamento político
latino-americano, que encontrou na obra do argentino Domingo Faustino Sarmiento, publicada em 1845,
sua melhor expressão. A primeira edição brasileira foi publicada somente em 1923, pela editora de
Monteiro Lobato e a segunda pela Biblioteca do Exército, mas teve admiradores entre os intelectuais
brasileiros. No afã de entender Argentina, (Sarmiento) construiu uma interpretação carregada de idéias,
imagens e símbolos, compartilhados, na mesma época, por contemporâneos brasileiros, ocupados com
idêntica tarefa de compreender o próprio país. Assim, ao propor a dualidade civilização e barbárie,
Facundo ultrapassou os limites da Argentina para se estender pelo território latino-americano(...). Creio
que o texto de Sarmiento pode contribuir também para uma reflexão sobre a posição do Brasil na
América Latina.p. 152.
126
Ver: FONTANA, Joseph. História: Análise do passado e projeto social. Tradução de Luiz Roncardi.
Bauru, SP: Edusc, 1998.
127
GIRARDET, Raoul. op. cit. p. 89.
128
Alguns historiadores chamam “positivista” a história tradicional, factual, política e narrativa...
Rosa Maria Spinoso de Montandon
70
que constituíam o cerne da tradição e dos costumes em que se fundava o poder daqueles a
quem combatiam. Isso não significava que eles mesmos estivessem empenhados na ruptura
com as normas, tratava-se, na verdade, de forjar uma “criatura” que o fizesse sem que isso
implicasse num compromisso maior para seus criadores.
Como bem observou Angel Rama, invocar figuras marginalizadas da história como
bandeiras de reivindicação face processos incompletos da construção da independência e
cidadania política e cultural
129
não é um fenômeno estranho na América Latina, onde
constituía uma estratégia das camadas médias intelectualizadas, para habilitar-se no jogo
do poder
130
.
Por isso foi, acreditamos, uma mulher e não um homem que surgiu para substituir o
herói, ainda que se tratasse de uma sociedade eminentemente masculina e impregnada de
religiosidade. Naquele momento, uma mulher inadequada seria mais condizente (ou
convincente?) do que a ordeira e certinha, demasiado identificada com a ordem que se
pretendia derrubar. Além disso, as figuras masculinas do passado, ou pelo menos aquelas
mais conhecidas, estavam também excessivamente identificadas com a figura do coronel,
representante da oligarquia rural hegemônica em um sistema em que a classe média tentava
encontrar seu espaço. Porque, afinal de contas, era uma época em que o depoimento oral
conferia veracidade e dimensão real à história e Dona Beja estava, como sempre,
“disponível”; viva na memória do povo e dos informantes que poderiam avalizá-la com
toda idoneidade: o Dr Eduardo Augusto Montandon, Dona Gabriela Franco Carneiro,
Antônio Machado de Morais e Castro. Eles a conheceram e “testemunhavam” em favor de
sua veracidade e dos personagens que a rodeavam, também protagonistas de seu próprio
histórico familiar
131
. Era, por tanto, real e popular, encontrava-se firmemente instalada na
129
AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (org) Para Além de Tordesilhas: O Conceito de
América Latina e a obra de Angel Rama. In: ------ Angel Rama: Literatura e Cultura na América
Latina. Tradução de Rachel La Corte dos Santos e Elza Gasparotto. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 20.
130
Idem. Idem.
131
Registro de batismo de Haidee. 20 de agosto de 1856. Padrinhos: Augusto Montandon e D. Anna Jacintha
de São José. Arquivo Paroquial de Estrela do Sul, MG. Doravante APES.
Registro de casamento de Eduardo Augusto Montandon e Brasilina Gonçalves Barbosa. 1 de mar. de
1862. Padrinhos: Coronel Fortunato José da Silva Botelho e Coronel Silvestre Ribeiro Barbosa. Arquivo
Paroquial de Carmo do Parnaíba. MG. Doravante: APCP.
Dona Gabriela pertencia à família de João José Carneiro de Mendonça, mencionado no primeiro capítulo
como possível pai de Joana, segunda filha de Anna Jacintha. Antônio era descendente de Placidina Maria
Rosa Maria Spinoso de Montandon
71
memória do povo, fazendo parte da tradição oral como portadora e transmissora de um
discurso público. Bastava dar-lhe o tratamento adequado, uma certa “higienização” ou
“heroificação” para torná-la apta aos propósitos legitimadores.
Segundo aponta Lévi-Strauss, seguido por Girardet, um só mito pode ter diferente
ressonância e múltiplos significados em uma sociedade, características que podem ser com
freqüência opostas, mas também complementares; o que caracterizaria a fluidez dos
contornos com que se nos apresentam
132
.
Assim, o caráter ambivalente e polimorfo dos mitos permitiria a aparente
contradição que representava o surgimento de uma figura feminina forte e corajosa,
características primordiais dos heróis, mas incompatíveis com as da mulher modelar, no
seio de uma sociedade masculina. Permitiria que a transgressão que ela encarnava e que a
estigmatizava, a tornasse, ao mesmo tempo, vítima e algoz, vilã e heroína, passível de ser
identificada e apropriada por diversas causas políticas e sociais, ou capaz de inspirar artistas
e escritores que também “sucumbiram” inspirados pela sua beleza.
Quando se fala em tornar a figura de Dona Beja “apta aos propósitos legitimadores”
não se pensa em um plano consciente e definido, previamente pensado e determinado,
como, veremos, ocorreu depois no Estado Novo, mas em um desejo genérico de união e
aceitação, em um espírito de renovação e atualização de uma classe em conflito com a
ordem vigente. Mais do que contar os fatos, com sua figura e sua história seria possível
conferir-lhes sentido. Além do que, construir heróis torna-se uma tarefa menos difícil
quando se tem a favor e se conta, de antemão, com a memória e a imaginação popular.
Visto dessa forma, o Mito Dona Beja foi um produto do século XX, nasceu na
cidade, no seio de uma classe média em busca de seu reconhecimento e seu espaço, em uma
região que vivia um processo de afirmação de sua identidade.
O cenário histórico de Araxá, naquele momento, pode ser tipificado através da
imprensa local e inserido dentro do sistema e da ordem vigente no panorama geral do
Brasil. Politicamente, o país vivia na chamada República Velha, caracterizada pelo
predomínio incontestado dos grupos agrários que tinham articulado a chegada do regime
de Jesus, outra das filhas reconhecidas em cartório pelo vigário Francisco José da Silva, que reconheceu
também um filho: Pedro Amado de São Paulo.
132
GIRARDET, Raoul. op. cit. pp. 15-16.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
72
republicano, mais em consonância com seus interesses, já bastante prejudicados pela
centralização da monarquia.
Esses interesses se traduziam na ampliação, ao máximo, do poder das oligarquias
estatais, apoiadas no “coronelismo” e “localismo”, institucionalizados pela criação dos
partidos republicanos estatais. Ao mesmo tempo, esses partidos representavam um sério
problema para um sistema republicano que via no fortalecimento do poder central uma
condição indispensável para a governabilidade, mesmo centralismo que as oligarquias
rurais tentavam combater quando ajudaram a derrubar a monarquia, apoiando a república.
Para Sônia Regina de Mendonça, nesse cenário, no período anterior a 1920, quando
se começou a sentir os efeitos das transformações que se processavam no interior da
sociedade e na divisão social do trabalho, essa política fundada no localismo não deixava
espaço para o surgimento de uma oposição organizada. O coronelismo mostrava-se
particularmente violento quando não conseguia impedir o surgimento das oposições locais
que, ainda assim, começavam a surgir entre alguns setores da classe média, menos
comprometidos com os setores agrários.
Segundo a autora, essas parcelas da sociedade eram formadas por descendentes de
latifundiários empobrecidos, profissionais liberais e funcionários nas áreas de serviços que
viriam a ser os agentes articuladores da outra frente de oposição ao regime oligárquico
133
,
que criticavam o regime, mas cujas críticas e conteúdo continuavam dentro do universo
liberal do qual faziam parte, não significando, de forma nenhuma, um desejo nem a
possibilidade de aliança com as camadas baixas
134
.
Tomando-se como referencial teórico esses estudos historiográficos, ainda que
centrados nos grandes centros como Rio e São Paulo, pode-se perceber que nas cidades do
interior se reproduziam algumas das condições e contradições políticas e sociais presentes
naqueles. Embora sem a intensidade dos centros maiores, pode-se detectar em Araxá a
existência e mobilização de setores trabalhadores. Eram operários, sapateiros, costureiras,
alfaiates, balconistas, motoristas, etc. que, já na década de 1920, se organizavam e
133
MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e Sociedade: A consolidação da república oligárquica. In:
LINHARES, Maria Yedda. (org.) História Geral do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990. p. 318.
134
Idem. p 330.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
73
congregavam em torno de entidades como a “Associação Operária Araxaense” o “Salão
Operário” e tinham no jornal “Minas Brasil”, seu principal veículo de expressão
135
.
Ao mesmo tempo, um setor da classe média que não se identificava totalmente com
a oligarquia rural, embora nem por isso fosse alheia a ela, e nem com os trabalhadores,
também fazia sentir seu descontentamento e veiculava sua oposição através da imprensa,
defendendo causas que, com freqüência, mais do que ideologias conflitantes, encerravam
interesses pessoais, prosaicos e definidos.
A oligarquia rural era localmente representada pelo coronel Adolpho Ferreira de
Aguiar e, depois de sua morte em 1911, pelo seu filho, o coronel José Adolpho de Aguiar,
prestigioso e querido chefe da Política Municipal dominante e illustre presidente do
pujante antigo PRM de Araxá
136
. Tinha seu centro de operações na Fazenda São Mateus,
propriedade familiar desde onde comandava seu eleitorado. Seu foco principal era o distrito
de São Pedro de Alcântara, hoje Ibiá, ao qual pertencia a fazenda. Em Araxá, onde tinha
sua residência, um dos principais “palacetes” da cidade, seus principais agentes eram os
comerciantes.
Se o caráter do coronel era oriundo da própria genealogia, a nobreza, o espírito
prestativo e generoso de seus maiores
137
, seu poder derivava, principalmente, de seu
latifúndio, legitimado por títulos de sesmarias pertencentes à família desde finais do século
XVIII. Assim como da profunda relação que sua família guardava com a terra desbravada
pelos seus antepassados, em torno da qual o coronel organizou sua vida e articulou os
mecanismos de poder, em um processo que incluía, entre outras coisas, as conhecidas
alianças e consórcios familiares, já mencionados.
138
.
Seus opositores, em Araxá, eram encabeçados pelo Dr. Eduardo Augusto
Montandon e, principalmente, pelo seu filho, João Jacques Henri Montandon, eleito
senador em 1923
139
. O pai havia-se formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
135
O Trem da História. Ano 4, nº 13. abr/mai/jun. de 1994.
136
Jornal de Araxá. 27 de nov. de 1927, p. 1.
137
Idem. Idem.
138
Sobre a Origem das Famílias. In: O Trem da História. Ano 2, nº 9, abr/mai/jun, 1993. Araxá, MG.
139
Cf. TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais. 3ª ed. Belo Horizonte: Lemi; Brasília:
INL, 1980.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
74
em 1859 e militado na política como deputado provincial, em Minas Gerais, e como
presidente da Província, em Goiás, cargo que desempenhava e perdeu quando a República
foi proclamada.
Os Montandon apoiavam-se em sua formação universitária, complementada, às
vezes na Europa
140
, o que lhes conferia um verniz intelectual e cosmopolita, como
presumidos “agentes da civilização”, embora pelo lado materno fossem genuínos
descendentes daquelas oligarquias rurais que, se não completamente empobrecidas, haviam
perdido paulatinamente, junto com a terra, o poder que ela conferia.
Embora sua presença em Araxá não tivesse nem um século, a família sentia-se
legitimada por descender de uma das mais antigas do cantão suíço de Neuchâtel, cuja
origem perdia-se em la nuit du temps
141
, como faziam questão de informar em seu jornal,
onde publicaram, em 1914, a transcrição em francês!- da reportagem de um jornal de
Lausanne que noticiava o lançamento do livro histórico e genealógico da família
142
.
Eram os “coronéis” e os “letrados” transformados depois e popularmente nos
partidos dos “Ferreiristas” e “Jacquistas”. Mas os coronéis também tinham seus “letrados”,
jovens profissionais, incorporados às suas fileiras por alianças matrimonias, recém
chegavam à Araxá. E ambos grupos tinham seus jornais, “O Jornal de Araxá” e “O Correio
de Araxá”, respectivamente, dos quais nos ocuparemos especialmente do segundo, por
haver sido ali onde se publicou pela primeira vez, o relato histórico de Araxá e inserido
nele a heroína principal: Dona Beja.
As Estratégias do Mito: o Fator Identitário Regional e os Tempos Modernos.
“O Correio de Araxá” foi fundado, em 1913, pelos jovens Montandon, rebentos
vigorosos desse tronco glorioso que é o velho Eduardo Montandon, como eram chamados
140
Partida do Dr Heitor Montandon. O jornal noticiou a viagem a bordo do “paquete” Aragon, onde o
médico recepcionou com uma taça de champagne os amigos e parentes que foram se despedir. O Correio
de Araxá. 26 de abr. de 1914. p. 1.
141
MONTANDON, Frédéric. Lê Montandon; Origine - Histoire - Géneálogie. Genéve, 1913.
142
O Correio de Araxá. 18 de jan. de 1914. p. 1
Rosa Maria Spinoso de Montandon
75
em um jornal de Uberaba
143
. Através de seu semanário passaram a fazer oposição à
administração municipal a cargo da Câmara, cujo presidente pertencia às fileiras do
coronel. A situação, por sua vez, respondia e atacava desde seu jornal, gerando um intenso
debate com críticas, denúncias e respostas de conteúdo político que se sucediam em artigos
inflamados e que, freqüentemente, escorregavam para o terreno pessoal.
Ao mesmo tempo, por suas páginas transcorria, semanalmente, a vida do município:
a primeira página era dedicada normalmente aos assuntos políticos e críticas à
administração municipal; a temas médicos ou relacionados com a saúde,
compreensivelmente, à “crenotherapia” (tratamento pelas águas minerais) e a temas
relacionados com a pecuária, atividade econômica que vinha sendo reforçada, desde finais
do século XIX, com a importação de matrizes e reprodutores zebuínos que futuramente
tornariam a região berço da raça “indubrasil”, um dos pilares do desenvolvimento
econômico e da identidade regional.
Eram esses os assuntos preferenciais dos leitores masculinos, embora, às vezes, ali
fossem publicados também poemas que normalmente ocupariam as páginas internas. Um
lugar destacado era dado às notas sociais, nascimentos, batizados, casamentos, recuperação
das doenças, falecimentos e toda semana era possível para os leitores acompanhar as
constantes idas e vindas das famílias entre a cidade e as fazendas, assim como as viagens
que os amigos realizavam para as cidades maiores ou vizinhas.
Nas páginas internas, o rodapé era dedicado à publicação de histórias “edificantes”
de amor ou aventura, de autores conhecidos como Eça de Queiroz, Mark Twain e Charles
Dickens, leituras que, decerto, eram dirigidas ao público feminino. Marlyse Meyer aponta a
ficção no rodapé, visando a contumaz frivolidade da gentil leitora, como uma das
estratégias indispensáveis para garantir o sucesso de qualquer nova empreitada
jornalística
144
.
Uma coluna, “Notas de um Errante”, começou a ser publicada nas páginas
interiores, mas acabou conquistando espaço na primeira, espaço que só perdia quando
assuntos mais importantes ou de destaque nacional o reclamavam, por exemplo: os
143
O artigo foi publicado pela Gazeta do Triângulo, de Uberaba, MG. a 07 de fev. de 1915. Foi reproduzido
em O Correio de Araxá, em 14 de fev. de 1915.
144
MEYER, Marlyse. Folhetim. Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.298.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
76
programas políticos dos candidatos, os editais convocando os votantes para eleger os
colégios e comitês eleitorais e os resultados das eleições.
É possível notar em O Correio de Araxá uma particular atenção para os assuntos
relacionados com a saúde pública, o que não deixa de ser compreensível, já que entre seus
diretores se encontravam dois médicos e dois farmacêuticos. Mas, em geral, artigos contra a
administração, com denúncias e críticas aos estabelecimentos e serviços públicos, como a
segurança, o abastecimento de água, a (in)salubridade, a mortalidade infantil, eram as
formas preferidas da oposição política.
A “História de Araxá” tem seus antecedentes nas “Notas de um Errante”, do
jornalista Clodion Cardoso, fiel colaborador do jornal que combinava nelas histórias
variadas, notícias e dados gerais sobre os diferentes distritos do município, aproveitando
para apontar, também, suas críticas à administração.
Chamam nossa atenção as notas sobre São Pedro de Alcântara, reduto dos
“Ferreiristas” onde, segundo o jornalista, o crime e a desordem era constante, provocada
sempre pelos “jagunços” que se impunham pelas “Winchester”e pelo “Smith” e onde
também a faca e o cacete pululavam estando em constante ação
145
. De uma promessa de
escrever uma história de Araxá, que fez em sua coluna, surgiu o relato histórico que passou
a ocupar o espaço antes destinado aos contos e crônicas já mencionadas.
O clima geral era de insatisfação provocado pelo colapso dos municípios desde
finais do império, cuja crise financeira esmagava e oprimia o povo de Araxá fazendo-se
sentir especialmente no incipiente comercio, segundo se denunciava no jornal
146
. Ao
mesmo tempo, em 1913, começava a ventilar-se publicamente a necessidade de se fazer um
acordo com o governo do estado, através do qual lhe fosse cedido o controle sobre as fontes
de águas minerais, como única saída para se por fim aos antigos litígios que transcorriam na
justiça em torno dos terrenos adjacentes e os direitos sobre eles.
Nesse ponto todos concordavam; a oposição defendia também essa solução e assim
se deixou saber em seu jornal, onde foi publicada a lei 248 de 22 de setembro de 1910 que
145
O Correio de Araxá. 18 de mai. De 1913. Notas de um Errante. Idem. 25 de mai. De 1913. Mais um
Crime. Sobre a agressão sofrida por um cidadão, depois de fazer seu passeio noturno, tendo a Winchester
por companheira, o que é de costume aqui. p. 3. Idem. 06 de jun. de 1913. Mais crimes. p. 1
146
Idem. 21 de dez. de 1913. p. 1
Rosa Maria Spinoso de Montandon
77
autorizava ao presidente da Câmara ceder as águas minerais de Araxá e os terrenos
desapropriados, ao governo do Estado de Minas Gerais. A lei previa, entre outras
condições, que o Estado criasse uma prefeitura em Araxá, uma linha de trólebus entre a
cidade e o Barreiro, se responsabilizasse pelo beneficiamento das águas e, principalmente,
por pagar a quem de direito, o que fora devido pela desapropriação
147
.
Sem poupar críticas ao abandono em que a incúria da Câmara Municipal tem
deixado as águas e responsabilizando o governo do Estado que só recentemente havia
voltado os olhos para as coisas do Triângulo, os opositores também defendiam como
“inadiável” a criação de uma prefeitura. Alegavam que as fontes não poderiam continuar
abandonadas pelos poderes públicos, ainda que o povo, em sua ignorante simplicidade,
continuasse recorrendo a elas, desde as mais remotas paragens à procura de remédio para
seus males
148
. Nos meses seguintes, anunciavam para “breve” a publicação da História de
Araxá
149
.
Os donos do jornal concordavam porque tinham interesses ligados às fontes ou a
seus terrenos vizinhos, sem que isso significasse uma trégua em suas rivalidades. O Dr.
Eduardo tinha sido concessionário diversas vezes para a exploração terapêutica das águas, e
João Jacques era dono de terras vizinhas das mesmas, que deveriam ser desapropriadas.
Politicamente, o debate nacional girava em torno das eleições presidenciais e da
candidatura de Rui Barbosa, do Partido Republicano Liberal que tinha o mesmo Dr.
Eduardo como representante do Comitê Civilista em Araxá
150
.
Mas o apoio momentâneo às medidas municipais transformou-se em férrea oposição
ao conhecerem o conteúdo final da escritura que legalizou, em 1915, a transferência das
águas para o Estado. De acordo com o documento, caberia ao Estado como única
responsabilidade, criar a prefeitura, recaindo sobre o município a responsabilidade pelas
indenizações e pelo eventual descumprimento das cláusulas estabelecidas no contrato.
147
Idem. 29 de jun. de 1913. p. 1
148
Idem. 22 de jun. de 1913. p. 1
149
Idem. 14 de set. de 1913. p. 1
150
Idem. 24 de ago. de 1913. p. 1
Rosa Maria Spinoso de Montandon
78
De fato, de acordo com o teor da escritura, publicada pelo jornal, o negócio era
desvantajoso e considerado uma extorsão inqualificável, principalmente para os
proprietários dos terrenos anexos às fontes, que dificilmente receberiam as indenizações de
um município que se encontrava à beira da falência
151
. A tão defendida criação de uma
Prefeitura passou, então, a ser considerada um verdadeiro presente de grego, mais
prejudicial e calamitoso que um obus alemão explodindo no centro da cidade
152
.
Um dos redatores do jornal, Clodion Cardoso, declarava seu apoio aos que
pensavam ser necessário inutilizar os efeitos perniciosos da caveira de burro que parecia
haver sido lançada em Araxá por seus inimigos políticos, que haviam colocado tantos
obstáculos ao progresso da cidade, mais preocupados com seus interesses particulares do
que com os da comunidade
153
.
Nesse clima, em março de 1915, começou a ser publicada A História de Araxá,
atendendo a um compromisso “irrefletidamente” assumido com os leitores por Cardoso que
se responsabilizou pela redação, delegando os créditos pela pesquisa a Sebastião de
Afonseca e Silva.
Naquele momento, o relato histórico tinha a função de orientar a opinião, convencer
o público e conquistar seu apoio, apelando para um “patriotismo” justificado e
legitimamente fortalecido pelo conhecimento de seu passado, capaz de lhe proporcionar os
motivos de orgulho e a satisfação necessária ao fortalecimento de sua identidade, mesmo
que para isso fosse necessário “construir” alguns heróis ou heroínas e “criar” um ou outro
mito. Assim, confirmava-se a idéia segundo a qual o imaginário social, enquanto um dos
dispositivos do exercício do poder, precisa, para sobreviver, inventar ou imaginar a
legitimidade sobre a qual sustentar-se
154
.
As respostas dos leitores que supostamente se manifestaram com suas cartas -
devidamente publicadas-, felicitando a iniciativa e qualificando-a de exemplo de
151
Idem. 19 de set. de 1915. p. 1
152
Idem. 05 de nov. de 1915. p 1.
153
Idem. 28 de mar. de 1915. p. 1.
154
Cf. NEIBURG, Federico. Peronismo e Mitologias Nacionais. In: ------ Os Intelectuais e a Invenção do
Peronismo. São Paulo: EDUSP, 1997. pp. 86-87.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
79
patriotismo e amor ao trabalho
155
, pareciam indicar que os objetivos estavam sendo
atingidos. Girardet lembra que, como relato de caráter explicativo, o mito é também uma
potência mobilizadora. À função de reestruturação mental do imaginário político
corresponde, também, uma outra que é a de reestruturação social
156
.
Alguns aspectos devem ser apontados como evidências da intencionalidade do
relato histórico a partir do qual o mito foi criado. São estratégias utilizadas para fixá-lo na
memória dos leitores, fazendo dele a expressão permanente da realidade histórica local.
Em primeiro lugar estavam as fontes orais, provenientes de pessoas de reconhecida
confiabilidade, que se identificavam como testemunhas dos fatos, parentes ou amigos dos
protagonistas, o que conferia credibilidade e “status” histórico ao relato. Este era assinado
por um jornalista e por um historiador que garantiam sua seriedade e veracidade com seus
nomes e sobrenomes completos, quando o usual era esconder-se por trás de pseudônimos
nos artigos dos jornais
157
.
Outro dado interessante é a omissão deliberada do nome da heroína logo no início
da história que contava o retorno do Triângulo Mineiro a Minas Gerais, sendo mencionado
somente nos capítulos subseqüentes, com o objetivo, confessado por Sebastião de Afonseca
em suas notas pessoais, de prender a atenção do leitor e induzi-lo a continuar comprando o
jornal. Seu nome somente foi mencionado na segunda parte do relato histórico quando,
segundo ele, na história, já se encontrava na idade madura e promovendo a ruína dos
fazendeiros abastados. Poder-se-ia dizer que, em 1915, o autor já aplicava em Dona Beja a
lei atual que impede a divulgação na imprensa do nome de menores infratores ou vítimas de
crimes.
Outro aspecto a ser destacado é o espaço e a formatação que se deu ao relato no
jornal, onde se percebem estratégias para facilitar sua permanência. Seguindo o sistema de
fascículos, era publicado sempre no rodapé, com as folhas numeradas alternadamente na
frente e no verso e largas margens, que permitiriam que o leitor o recortasse e
encadernasse.
155
O Correio de Araxá. 28 de mar. de 1915.
156
GIRARDET, Raoul. op. cit. p. 183.
157
Os mais freqüentes em O Correio de Araxá eram: Justus, Ninus, Pollux, D’Ólfa, Molière e Mineiro .
Rosa Maria Spinoso de Montandon
80
A esse respeito, novamente Marlyse Meyer nos informa que, como método de
publicação, o sistema de fascículos ou “entregas” prestava-se a toda série de combinações
editoriais, já que as histórias ou romances poderiam ser inseridos, indistintamente, em
revistas ou jornais, podendo ser encadernados e publicados num só volume, caso as
subscrições fossem interrompidas ou não tivessem sido escoados todos os números
158
.
Nascia dessa forma “Subsídios para a História de Araxá e duas palavras sobre o
Triângulo Mineiro”, que resgatou Dona Beja como heroína principal. As personalidades
ilustres ou políticas do século XIX foram mencionadas rapidamente. Apenas o vigário
Cassiano Barbosa de Afonseca e Silva e, de um período mais recente, o próprio Dr.
Eduardo mereceram destaque. Um certo presidente da Câmara foi lembrado mais por uma
história que o ridicularizava do que por sua ilustre figura.
No capítulo “Apparecimento da Hydra”, relativo ao confronto local entre
conservadores e liberais, era especialmente lembrado o coronel Fortunato, cuja gestão à
frente da Câmara Municipal entre 1843 e 1854, era qualificada como uma fatalidade.
Referiam-se a ele como tyranete e arbitrário; megalômano incorrigibel (sic), cujos sonhos
de grandeza o teriam levado a aspirar a um título de barão, que lhe foi negado por Dom
Pedro ao tomar conhecimento de seus defeitos.
Na visão dos autores, o precário desenvolvimento que Araxá tinha conseguido até
aquele momento seria resultado desse confronto, que tal qual uma hydra horrível, teria
dado lugar a uma política esquálida que continuava sendo o principal elemento
desorganizador de nosso progresso e nossa ruína...
159
.
Ainda que não mencionado, a “demonização” de Fortunato era, certamente,
reforçada pelo fato de ter sido maçom, fundador, em 1875, do “Asilo da Caridade”, a
primeira loja maçônica da cidade, cuja sede abrigava em sua própria casa; um sobrado que
disputava o mesmo quarteirão com a Igreja Matriz, presidindo a praça do mesmo nome
160
.
158
MEYER, Marlyse. op. cit. p. 321.
159
CARDOSO, Clodion; AFONSECA e SILVA, Sebastião de. Subsídios para a História de Araxá e duas
palavras sobre o Triângulo Mineiro: publicação até 1890. São Paulo: Typographia. 1914. pp. 42-46.
160
Procuração. 6 de jun. de 1875. Livro nº. 13, folha. 114. Cartório do 1º Ofício de Notas. Araxá, MG.
Através desse documento, os assinantes nomeavam procurador o Conselheiro Dr. Joaquim Saldanha
Marinho para representá-los na Corte, na defesa de seus interesses que estavam sendo “usurpados” pelas
autoridades eclesiásticas. A pressão da igreja católica ainda se fazia sentir em 1945, quando foi criada a
“Loja Maçônica Ação e Silêncio”, que retomou as atividades da maçonaria em Araxá, interrompidas com
Rosa Maria Spinoso de Montandon
81
Dessa forma, o coronel também era responsável por que Deus e o Diabo fossem vizinhos
em Araxá,
Se a conhecida religiosidade do memorialista, co-autor do relato, certamente
orientou o perfil que criaram do coronel Fortunato, as posições partidárias do redator,
francamente a favor do grupo representado pelos donos de O Correio de Araxá, fazem
pensar que em suas opiniões sobre ele estivessem implícitos, embora disfarçados, os
sentimentos que nutria pelas figuras do inimigo político que tão arduamente combatiam no
jornal. Poder-se-ia dizer o mesmo da linguagem usada para descrever o ouvidor, raptor de
Dona Beja, tratado como uma figura repulsiva, monstro horripilante, comparado a uma
cobra asquerosa e à gosma imunda das lesmas
161
.
Na já mencionada análise que Abreu Filho faz do mito Dona Beja, o ouvidor estaria
relacionado com o poder do Estado, incontrolável, sem regras, ameaçador e usurpador. No
rapto estaria a representação de uma oposição entre o local e o supra-local, relação em que,
segundo o autor, se negaria ao Estado o direito e a influência no estabelecimento das regras
que deveriam reger as relações
162
.
Com base nessa interpretação, no momento em que se produzia o relato, o poder
supra-local estaria representado pelo poder estadual que, aliado às oligarquias rurais, se
fazia representar pelos coronéis na política local. Dona Beja seria identificada com as águas
minerais, o maior tesouro de Araxá, às quais se devia sua origem e a vida de seu povo.
Tesouro que o Estado lhes seqüestrou, não sem antes enfrentar a luta da oposição.
No relato, essa luta era revestida de traços épicos; ao mesmo tempo eloqüente e
abundante, salpicado de adjetivos e juízos de valor, onde os índios Araxás eram invencíveis,
mas ferozes; o Quilombo do Ambrósio era temível e pernicioso, os bandeirantes que os
destruíram foram autores de uma brilhante façanha, a natureza da região era
generossíssima, as águas de Araxá eram virtuosas e a fauna e a flora exuberantes
163
.
a extinção da primeira loja. De acordo com as informações fornecidas em entrevista pelo Sr. Seme
Abdala, um dos fundadores, gravada em sua casa, em Contagem, MG, em julho de 1996.
161
CARDOSO, Clodion; AFONSECA e SILVA, Sebastião de. op. cit. p. 11.
162
ABREU FILHO, Ovídio de. Raça, sangue e luta: identidade e parentesco em uma cidade do interior.
op. cit. p. 85.
163
CARDOSO, Clodion; AFONSECA e SILVA, Sebastião de. op. cit. p. 12 et passim.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
82
Se entre tantos adjetivos, os vilões, o ouvidor e Fortunato, representantes da figura
do coronel, passaram por um processo inquisitorial que os condenou, Dona Beja foi
submetida, a sua vez, a um processo purificador que a “higienizou”, tornando-a uma
heroína, mais condizente com o papel que, a partir daí, deveria desempenhar.
Dois aspectos podem ser destacados nesse processo. Primeiro é a vitimação de Dona
Beja, apresentada como “A vítima de 1816”, título do capítulo em que se justifica sua
condição de “cocotte”, à que teria sido empurrada depois do rapto, relatado na primeira
parte da história. Depois, sua marginalização involuntária. Diziam os autores:
a que fora um anjo tornara-se um demônio (...) pobre flor condenada a chafurdar
na lama pútrida dos alcouces
164
, ainda que, de seus amores voluntários com o padre e de
seu confronto aberto com o coronel nada se dissesse.
Em uma sociedade católica e patriarcal, como vítima, não convinha falar das
relações de uma mulher com um religioso e nem do confronto e a derrota que infringiu a
um coronel. Não era essa uma luta espiritual do bem contra o mal e nem Dona Beja o
melhor exemplo para encabeçá-la. Para a mentalidade dominante, ainda que
conjunturalmente se identificasse no coronel o representasse do poder temporal que se
combatia, expor sua derrota significaria fragilizar valores maiores e indiscutidos, que
deveriam ser preservados, como a tão defendida superioridade masculina.
Estava, assim, criada a matriz de uma heroína, inspirada em uma figura real do
passado que, se bem não era totalmente perfeita, era o mais próximo e útil que se havia
achado. Como mulher poderia ser facilmente alegorizada. A final não eram mulheres a
Liberdade, a Justiça e a própria República?
Incorporada ao imaginário popular poderia ser, ainda, a imagem mesma da beleza,
glamourizada para vender, primeiro, jornais e depois as benesses das “águas virtuosas”,
produtos de beleza, ou cachaça. Como vítima e heroína poderia ser identificada com as
inquietudes presentes no seio da sociedade, que podiam ser ao mesmo tempo políticas e
identitárias -como as que se discutiam no momento-, ou as feministas, que passariam a ser
debatidas mais tarde, nos cenários nacional e internacional.
O fortalecimento da identidade regional é outro dos aspectos fundamentais que
devem ser considerados no surgimento do mito. É nítida a preocupação com a identidade
164
Idem. p. 28
Rosa Maria Spinoso de Montandon
83
que se percebe na pauta dos debates em torno da iminente comemoração dos cem anos da
reincorporação do Triângulo Mineiro a Minas Gerais. Para tal ocasião, projetava-se uma
“magna” Exposição Regional a ser realizada em 1916, na vizinha cidade de Uberaba, com a
presença de todos os municípios da região.
As exposições regionais ou províncias tinham-se tornado uma tradição a partir do
século XIX, quando eram organizadas como parte dos preparativos para a participação do
Brasil nas grandes exposições internacionais, vitrine onde exporia sua fachada, através da
qual queria ser visto e poderia ser avaliado. Nesse sentido e nas palavras de Sandra
Pesavento, as exposições constituíam o momento privilegiado da representação de uma
auto-imagem,(...) o espaço por excelência para a apresentação de uma identidade
nacional
165
.
Em termos gerais, as exposições, como seu nome já indicava, eram os veículos para
a demonstração e a difusão dos ideais, as imagens e as crenças de uma sociedade que
acalentava o sonho da modernização. Ser moderno era a palavra de ordem no país e as
exposições universais, tanto quanto as locais ou regionais, funcionavam como o local de
celebração da utopia
166
.
Sebastião de Afonseca e Silva, como sabemos, um dos autores do relato histórico de
Araxá e de Dona Beja, escreveu um extenso artigo publicado na primeira página de O
Correio de Araxá, em 1914, onde reivindicava para sua cidade o direito “histórico” de
sediar o evento. Fundamentava seus argumentos no fato de haver sido iniciativa dos
araxaenses as gestões que levaram o Triângulo de volta até os mineiros e de ser de Araxá a
jovem que, com seu “sacrifício”, havia motivado a interseção do ouvidor na corte,
influenciando na decisão final. Para ilustrar seu artigo e reforçar seus argumentos, solicitou
aos donos do jornal a permissão para alterar a ordem dos capítulos da História de Araxá,
que estava para ser publicada, ficando decidido que começariam a partir daquele em que se
falava da participação de Dona Beja naquele episódio, ainda que sem mencionar seu nome.
165
PESAVENTO, Sandra. Nós e os Outros: As Exposições Universais e o Imaginário Europeu sobre a
América. In: BESSONE, Tânia Maria; QUEIROZ, Tereza, Aline P. (org). América Latina: Imagens,
Imaginação e Imaginário. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1997, pp.559.
166
Idem. p. 558.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
84
Ele reconhecia que o atraso e a falta de meios de comunicação impediam a cidade
de Araxá de ostentar o orgulho de ser a sede da Exposição, mas esse orgulho estaria
plenamente justificado pela história, e invocava o direito de, pelo menos, apresentar um
projeto detalhado do modelo que deveria seguir o evento.
Na longa explanação de seu projeto, que ocupou as três primeiras páginas do jornal,
sobressai a preocupação pela identidade de cada município que deveria ser preservada e
ressaltada através de algumas medidas, como a que previa que cada “stand” da feira
recebesse o formato do município que o patrocinava de maneira que, embora formando um
mapa da região onde estivessem unidos, se mantivessem perfeitamente diferenciados.
Segundo suas indicações, cada “stand” deveria ser ornamentado com amostras da
mata virgem, arbustos, capoeiras e outras riquezas quer vegetais quer minerais (...)
fazendo assim em confronto, uma franca exhibição de sua riqueza (sic). O projeto previa
um torreão no meio do campo da exposição, desde onde o visitante tivesse uma visão
completa e pudesse admirar o traçado do mapa da região. Exaltado, o autor acreditava que
tal visão...não deixaria por certo de fazer vibrar as fibras sensíveis do patriotismo, em um
brado intimo e talvez altivo, dizendo: Bello! Estupendo! Viva o Triangulo Mineiro!...
(sic)
167
.
Ao mesmo tempo, Clodión Cardoso também externava suas preocupações
identitárias e seguia anunciando a futura publicação da história local, tão necessária ao
município que, até então, somente havia recebido atenção numa pequena obra escrita por
Otaviano de Toledo, ainda no século XIX
168
.
Nessa mesma linha, desde os números anteriores abundavam os ataques às
autoridades, responsabilizando-as pelo pouco desenvolvimento de Araxá nesses cem anos,
em comparação com a de outros municípios do estado. Essa discussão, aparentemente
localista, era na verdade um dos desdobramentos da insatisfação que se fazia sentir em toda
a região e que se encontrava no âmago do movimento separatista do Triângulo, um
sentimento de abandono e frustração diante da pouca atenção que se acreditava estar
recebendo do Estado.
167
O Correio de Araxá. 05 de jul. de 1914. pp. 1-3.
168
Notícia Histórica e Geográfica do Município de Araxá. In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Bello
Horizonte MG: Imprensa Oficial, Ano VIII, fascículos I-II. Janeiro e Junho de 1903.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
85
Segundo Hildebrando Pontes
169
, o movimento pela separação do Triângulo Mineiro
teve seu início no município de Prata, por volta de 1857, mas foi formalizado em 1875 pelo
médico e político de origem francesa, o nosso já conhecido Raymundo Dês Genettes,
através de uma série de palestras proferidas na região e publicadas pelo jornal “O Eco do
Sertão”. Dês Genettes foi o criador da denominação Região do Triângulo e defendia,
novamente, a separação da região e sua anexação a São Paulo, com quem guardava mais
afinidade e de quem esperava receber maior atenção.
Em 1907, o movimento estava sendo revitalizado em Uberaba com a criação do
“Clube Separatista” e do jornal “A Separação”, mas já não se pensava em anexação a outro
estado e sim na criação de um novo que se chamaria “Entre Rios”, nome que depois mudou
para “Estado do Paranaíba” e, finalmente, para “Estado do Triângulo”.
Os argumentos apresentados eram de caráter histórico e cultural, mas os motivos
eram principalmente econômicos, entre eles o tradicional descaso do governo estadual para
com a região, uma das mais ricas do estado, mas da qual somente se lembrava para recolher
o produto dos impostos enquanto lhe tirava uma série de benefícios. Alegava-se também a
fragilidade do vínculo com a capital do estado em contraste com sua identificação cultural e
sua proximidade geográfica com São Paulo, facilitada, inclusive, pelo sistema ferroviário
através do qual podiam comunicar-se de forma mais rápida e eficiente
170
.
O texto de Afonseca, no jornal, aponta para o vínculo entre o surgimento do Mito
Dona Beja e o antigo sentimento secessionista comprometido com a imagem de
modernidade nacional, que se queria nas primeiras décadas do século XX. Pretendendo
articular a exposição regional de Uberaba com uma nacional, que estaria sendo projetada
em São Paulo para comemorar o centenário da Independência, dizia:
Nos campos próximos ao monumento do Ypiranga (...) quão bello ficaria o
triangulo dentro da área de Minas, e com esto tornar-se-a conhecido e saliente perante o
mundo civilizado dando a nítida prova de que esta porção de território já constituira a
gloria de uma província e representa atualmente a jóia de Minas (sic)
171
.
169
PONTES, Hildebrando de Araújo. História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central. 2ª ed.
Uberaba, MG: Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1978. pp. 108-109.
170
Idem. pp. 149-150.
171
O Correio de Araxá . 05 de jul. 1914. p. 2.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
86
Com o objetivo de financiar a exposição, propunha a criação de um “Banco
Regional Triangulo”, tendo como sócios os dezessete municípios da região. Seria esse um
dos primeiros passos para tornar realidade algo que no futuro se apresentava como
inevitável, a criação de um estado, aspiração da maioria dos habitantes do Triângulo.
... com sua constituição e seu governo autônomo, medida esta que, se na atualidade
nos parece uma arriscada e perniciosa aventura, não podemos negar que às 'gerações
futuras', este será um acontecimento fatal, que avolumando e enraizando com o correr do
tempo, será transformado em realidade porque a natureza (...) já tem esta região
delimitada e facilmente destacável”
172
.
A década de 1920 representou um período de latência para a figura de Dona Beja
que parece haver permanecido num “casulo” até atingir a forma ideal e sair à luz na década
seguinte, motivo pelo qual não se detectaram grandes sinais de sua presença na imprensa ou
na literatura. A isso, uniu-se o fato das rivalidades políticas locais terem “contaminado”
também Clodion Cardoso e Sebastião de Afonseca, seus “mentores intelectuais”, que
entraram em conflito em 1915, não com relação à co-autoria da obra, mas pela
interpretação política e partidária que o jornalista dava aos fatos contemporâneos, quando
os dois começaram a elaboração da segunda parte da História de Araxá, tornando
necessário, aos donos do jornal, anunciar a suspensão da publicação
173
.
Pretendendo manter-se o mais fielmente possível ao que considerava a “verdade”
histórica, o memorialista discordava do partidarismo do jornalista, a quem chegou a
qualificar de “injusto”, provocando a ruptura. Em 1916, Cardoso publicou a mesma história
em livro embora não com esta data, mas com a do ano em que foi feita a pesquisa, 1914, o
que lhe conferiu precedência em relação à publicação feita no jornal, ainda que tivesse
mantido os créditos pela pesquisa para seu ex-companheiro.
No contexto geral, a década de 1920 representou, culturalmente, a entrada do país
na modernidade tendo como marco a Semana de Arte Moderna que estabeleceu os critérios
172
Idem. p. 3. O movimento é recorrente, vai e vem dependendo para isso do grau de contentamento ou
descontentamento de seus simpatizantes com os programas dos governos estaduais ou federais. O último
“surto” ocorreu durante a Assembléia Nacional Constituinte em 1988. Na ocasião, o projeto de criação do
novo estado foi derrotado.
173
O Correio de Araxá. 20 de jun. de 1915. p. 1.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
87
para se ver e pensar o Brasil. Surgia na sociedade uma preocupação genericamente
renovadora, uma necessidade de unificação cultural que diminuísse a distância entre o
popular e o erudito. Essa “ida ao povo”, de forma alguma significava que entre os
intelectuais não seguisse persistindo um certo “culto à erudição” e um sentimento
intelectual elitista. Essa ambigüidade é analisada por Milton Lahuerta, para quem:
O movimento modernista considerado pela crítica um marco ou uma ruptura- é
um exemplo de como uma intelectualidade viajada, apoiada por uma aristocracia ilustrada
vai ao encontro do povo como se este fosse uma objeto exótico, quase uma massa à que era
necessário dar forma, flertando à distância com ela, mas sem estabelecer relações de
aproximação
174
.
Essa proposta de modernidade encerrava, ao mesmo tempo, uma inquietude
provocada pela contradição entre os padrões da burguesia e a realidade que derivava de um
regime patriarcal assentado na oligarquia rural, que se pensavam característicos de uma
república “velha”, que não havia conseguido atender às expectativas e ao vigor de uma
classe média em ascensão.
Ao mesmo tempo, o país vivia a aceleração do processo de fragmentação territorial
iniciado desde o final da monarquia. Esse processo afetou também Araxá, onde surgiram
novos municípios desmembrados de seu território, cujas sedes municipais correspondiam às
de seus antigos distritos. Essa fragmentação era encarada pelo povo como conseqüência das
rivalidades internas, que teriam debilitado a representatividade política do município,
responsabilidade que cada grupo atribuía a seu contrário.
Contudo, a presença direta do Estado, com a expectativa de grandes investimentos
no Barreiro, prometia um fortalecimento econômico que permitiria ao município prescindir
de uma grande extensão territorial. Essa redução territorial só resultou útil, mas não
precisamente para Araxá, quando, durante o regime militar, foram aplicadas medidas
políticas próprias das áreas de segurança nacional às estâncias hidrominerais.
Na década de 1930, em Araxá, o imaginário político articulava seu localismo em
torno de dois grupos, os já conhecidos e popularmente denominados “Jacquistas” e
“Ferreiristas”, em alusão aos seus dirigentes e também representantes dos grandes partidos
174
LAHUERTA, Milton. A Década de 1920 e as origens do Brasil Moderno. In: ------ Os Intelectuais e os
anos 20: Moderno, Modernista e Modernização. São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1997. pp. 96-98
Rosa Maria Spinoso de Montandon
88
estaduais: o Partido Progressista (PP), representado por João Jacques Montandon e o
Partido Republicano Mineiro (PRM) representado pelo coronel José Adolpho de Aguiar.
Em geral, a polarização política, percebida como perniciosa para o desenvolvimento
do município, era vista como a continuação das velhas disputas que desde o século XIX
vinha opondo liberais e conservadores posicionados, na Revolução de 1842, como
“rebeldes” e “legalistas”, também chamados popularmente de “ximangos” e “caramurus”,
respectivamente
175
. No imaginário social das primeiras décadas do século XX, ambos os
grupos haviam adquirido estatuto de partidos, sendo chamados partidos de “Baixo”, os
liberais e de “C ima”, os conservadores, em alusão ao lugar na cidade onde se localizavam
as residências de seus chefes. Fortunato José da Silva Botelho, representante dos liberais,
morava na parte baixa da cidade, enquanto Mariano Joaquim de Ávila, representante dos
conservadores, morava na parte alta.
Para os setores médios da sociedade que, nas primeiras décadas do século XX, se
projetavam como as forças capazes de romper as ataduras que ainda mantinham o país
preso às estruturas do passado, a filiação partidária, legal e ideologicamente constituída,
supria a necessidade de legitimação política. O partido respondia por eles e os unia sob uma
mesma consigna.
Contudo, ou por isso mesmo, as rivalidades entre os dois grupos locais também se
“oficializaram”, tornando-se mais agudas e envolvendo a sociedade que, em geral, se
dividia levantando a bandeira de um ou outro. Essa situação era particularmente dolorosa
pelo perfil eminentemente familiar da sociedade em Araxá, onde todo mundo era parente,
em maior ou menor grau, o que deixou seqüelas ainda não completamente superadas
176
.
Embora os propósitos originais agora não mais precisassem de Dona Beja, ela já
existia como personalidade “historicamente” sancionada e não mais como “folclore”,
transmitido unicamente pela tradição oral. De novo foi incorporada em uma obra
175
Autos do Processo da Revolução de 1842. AFCCB.
176
Ao levar para corrigir um texto, a professora de português reclamou enfaticamente de um erro de digitação
que fez aparecer “Ferreiristas” com minúscula enquanto “Jacquistas” aparecia com maiúscula. Em uma
das entrevistas realizadas, uma senhora de Araxá nos comunicou ainda seu rancor por haver sido preterida,
quando jovem, em sua nomeação para professora estadual, por sua família ser Ferreirista. Recentemente,
ao levantar os dados biográficos de algumas pessoas com cujos nomes foram batizadas algumas ruas da
cidade, o genro de um dos biografados solicitou expressamente que não se mencionasse a que grupo havia
pertencido seu sogro, por temer melindrar a família de sua própria nora.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
89
patrocinada por uma administração municipal, a “História de Uberaba e a Civilização do
Brasil Central”, de Hildebrando de Araújo Pontes, em 1930. No capítulo que trata da
reincorporação do Trângulo Mineiro ao Estado, o autor reproduziu o relato publicado
quinze anos atrás em Araxá e o atribuiu a Sebastião de Afonseca e Silva.
Significativamente, Pontes foi um dos que assinaram a ata de criação do “Clube
Separatista”, em 1907, e um ardente defensor dessa causa. Como Dês Genettes, o fundador
do movimento, ele também havia morado em Araxá onde fundou, na década de 1920, uma
escola no antigo casarão que pertenceu à heroína, mantendo também uma estreita relação
com Sebastião de Afonseca, com quem fundou a “Sociedade de Geografia e História do
Brasil Central”. Certamente por isso, na década de 1940, a reportagem de um jornal de Belo
Horizonte atribuía a ele a responsabilidade por haver “resgatado” a história de Dona Beja, o
que indica a pequena divulgação que, além da região, a heroína e seu mentor haviam
recebido
177
.
O sentimento geral de renovação cultural foi apropriado pelo Estado Novo com a
proposta de criação de uma nova nação que, culturalmente, representava uma
desapropriação dos “sonhos utópicos” de renovação que eram cultivados pelos intelectuais
desde a década anterior.
O Estado Novo e a década de 1940 foram regime e época em que Dona Beja foi re-
descoberta, passando a ser divulgada intensamente pela imprensa, superando as fronteiras
regionais e alcançando o resto do país. Iniciava sua cristalização no imaginário brasileiro,
obedecendo aos desígnios oficiais e à nova ordem estabelecida, para cujos planos
nacionalistas sua figura e significado foram ajustados. Sua função legitimadora original
passou a fazer parte de um projeto maior e de uma estratégia nacional de governo que, entre
outras coisas, previa a penetração e uma maior presença do governo federal no interior do
país, como estratégia para acelerar a integração nacional.
Essa integração e a unificação política-administrativa que o Estado Novo idealizou
para suas diferentes frentes incluía e seria completada com a criação de órgãos
177
DORNAS FILHO, João. Dona Beija de Araxá. In: Serões de um Alfarrabista. Folha de Minas. 15 de
mar. de 1942. (Recorte) AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
90
encarregados da tutela e da construção da própria nacionalidade
178
, a partir de onde se
deveria modelar uma opinião favorável ao novo regime.
O braço principal do estado, para essa função, era o Departamento de Imprensa e
Propaganda, DIP, órgão com status de ministério entre cujas funções se encontravam a
centralização e o controle da propaganda nacional, a censura e as manifestações artísticas e
de informação; o controle dos meios de comunicação e a edição de obras destinadas à
divulgação da imagem do presidente perante a juventude.
Uma das conseqüências dessa política foi a apropriação, por parte do Estado, de
manifestações culturais de caráter popular e “espontâneo” ou folclórico, numa tentativa de
elaboração de um conceito de cultura brasileira. No campo cultural, essa centralização se
traduziu através de duas tendências básicas: a definição da cultura como 'matéria' oficial e
o esboço de um projeto da nacionalização paternalista que promovesse a elevação cultural
do povo
179
.
Alegando uma ausência de integração nacional, propiciada pelas práticas
degenerantes da República Velha, o novo regime procurava uniformizar e homogeneizar
idioma, costumes, comportamento e idéias, por meio da intervenção estatal em todos os
domínios da produção e preservação dos bens culturais
180
. Incorporou em suas fileiras,
voluntária ou involuntariamente, as “cabeças pensantes” do país, criando uma elite
intelectual e burocrática, procedente das mais diversas correntes, cujo prestígio científico
lhe conferiria legitimidade social.
No âmbito local e de acordo com a estratégia do governo federal, em Araxá, em
1934, o prefeito fez chegar às mãos de Sebastião de Afonseca e Silva, um convite do
Ministério da Educação e Saúde, dirigido por Gustavo Capanema, para ser o “informante
oficial do município”
181
. A gestão de Capanema caracterizou-se pela implantação de um
novo padrão de relacionamento com os intelectuais, transformando o Ministério num
178
MENDONÇA, Sônia Regina de. op. cit. p. 340. Também os capítulos 4 e 5 de: GOMES, Ângela de
Castro. História e Historiadores...
179
Idem. p. 344.
180
Idem. Idem.
181
Documento. AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
91
território livre para a produção de uma cultura oficial que abrigavam correntes ideológicas
das mais diversas, desde modernistas de esquerda até militantes da Ação Católica
182
.
O “intelectual” araxaense certamente se encaixaria na última categoria, como chefe
de uma numerosa e religiosa família, que contava entre seus treze filhos uma freira e um
sacerdote, Dom José Gaspar de Afonseca e Silva, futuro arcebispo de São Paulo. O convite
oficial conferia legitimidade àquilo que de sua cabeça e punho saísse, principalmente com
respeito às informações históricas locais.
Dentro dessa mesma proposta política pode se inscrever, também, a iniciativa oficial
do governo do Estado de construir, entre finais da década de 1930 e meados da de 1940, o
Grande Hotel, complexo turístico que visava a exploração do potencial hidrotermal do
Barreiro e do jogo de seu cassino, legal naquela época.
Desde a década de 1920, o governo estadual havia começado seus investimentos
para melhorar a infra-estrutura do local que, contudo, continuava sendo precária. Chegou-se
a projetar um balneário que embora tivesse recebido a “pedra fundamental” não foi
construído, o que não impedia a afluência de “aquáticos”, como eram chamados os
visitantes que recorriam a Araxá para as temporadas de banhos. A Crenotherapia ou a
utilização terapêutica das águas minerais gozava de grande prestígio, levando as elites a
procurar regularmente as estâncias hidrominerais onde, além dos banhos, poderia praticar o
jogo nos cassinos dos hotéis.
A inauguração, em 1926, da estação ferroviária da empresa Oeste de Minas,
conectou regularmente Araxá com Belo Horizonte e outras capitais e cidades de maior
porte, facilitando a chegada dos turistas. Por volta de 1928, com uma população estimada
entre cinco a seis mil habitantes
183
, havia na cidade em torno de vinte estabelecimentos
hoteleiros incluindo desde os de maior porte até as modestas pensões familiares
184
.
Na mesma época, começou a surgir uma incipiente indústria cosmética utilizando
como matéria-prima a la ma e os sais sulfurosos, mas nunca passou de uma atividade de
182
Cf. MENDONÇA, Sônia Regina de. op. cit. p. 345. Ver, ainda, especialmente as 2ª e 3ª parte: Tempo de
Ação e Tempo de Reforma. In: SCHWARTZMAN et alii. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e
Terra; São Paulo: EDUSP, 1984, pp. 79-254.
183
SILVEIRA, Victor. (org.) Minas Gerais em 1925. Bello Horizonte: Imprensa Official, 1926. p. 788.
184
CARVALHO, Horacio. (org.) Álbum de Araxá 1928. São Paulo: Typographia Gutemberg, 1928.
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92
caráter artesanal, embora existisse o projeto de tornar Araxá um grande centro estético
185
.
Sintomaticamente, também nessa época, Dona Beja inicia sua trajetória como “garota
propaganda”, vendendo saúde e beleza ao passar a se chamar com seu nome uma das fontes
de águas minerais.
A construção do Grande Hotel do Barreiro começou oficialmente em 1938, durante
a gestão do governador Benedito Valadares, e sob o empenho pessoal de seu secretário de
agricultura Israel Pinheiro
186
. Os trabalhos se prolongaram por mais de seis anos,
empregando nos períodos de maior atividade, até oitocentas pessoas, simultaneamente.
Deles tomaram parte técnicos e especialistas dos mais variados setores da construção civil,
assim como artistas e comunicadores filiados às mais diversas correntes estéticas e
ideológicas, de acordo com a política, já mencionada, de cooptação das elites intelectuais
do país.
O projeto arquitetônico do Grande Hotel, das Termas e da Fonte Dona Beja foi co-
autoria dos arquitetos Luiz Signorelli e seu amigo e sócio Rafaello Berti, embora somente
fosse assinado pelo primeiro, em virtude das limitações impostas pelo Estado Novo para a
atuação de técnicos e artistas estrangeiros
187
. Seu estilo eclético combina uma série de
elementos tradicionais reunidos sob a “devotada” denominação de estilo “missões”, que
alguns mais irreverentes já chamaram “eclético de fantasia”. (Figura 2))
A fonte de águas sulfurosas “Andrade Júnior” foi projetada pelo arquiteto José
Carlos Bologna, em um estilo leve e ondulado que contrasta com a aparência pesada dos
edifícios acima mencionados. O projeto paisagístico do Barreiro foi obra de Roberto Burle
Marx, que revolucionou o conceito de jardins e fez escola ao liberá-los da rigidez
geométrica dos modelos europeus, introduzindo e combinando espécimes da flora nativa
185
O resultado mais importante dessa indústria em Araxá não se deu nos campos econômico ou da cosmética,
mas na poesia. Em 1931 Manuel Bandeira escreveu seu poema “Balada das três mulheres do sabonete
Araxá”, inspirado na embalagem de um sabonete de tocador ali fabricado. O poema é citado por Gentil de
Faria entre os exemplos da influência da “Belle Époque” francesa na literatura brasileira. Ver. FARIA,
Gentil de. A Presença de Oscar Wilde na “Belle Époque literária brasileira”. São Paulo: Pannartz,
1988. p. 173.
186
Israel Pinheiro ganhou as eleições para governador do Estado em 1965, mas e pese o “slogam” “o homem
que projetou Araxá”, que lhe creditava entre suas realizações a construção do Grande Hotel do Barreiro,
não foi o candidato mais votado na cidade.
187
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. IEPHA/MG. Dicionário
Biográfico de Construtores e Artistas de Belo Horizonte 1894/1940. Belo Horizonte, MG. pp. 242-244.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
93
em traçados aparentemente livres e soltos que conferem a seus jardins uma aparência
espontânea e natural.
A ornamentação interna ficou a cargo de artistas acadêmicos dentre os quais
destacamos Joaquim Rocha Ferreira, ex-aluno da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de
Janeiro
188
, onde foi colega do artista araxaense Calmon Barreto e como ele, ganhador de
diversos prêmios, medalhas e menções de honra em sucessivas edições do Salão Nacional
de Belas Artes. Ao que tudo indica, a escolha de Rocha Ferreira teria sido influenciada por
sua amizade com o hidrólogo José Ferreira de Andrade Jr, um dos engenheiros encarregado
das obras.
Foi ele que, por volta de 1942, introduziu Dona Beja na iconografia, retratando-a
em três murais: no interior da rotunda das Termas, em um dos painéis inspirados em
episódios da História de Araxá; em um mural de azulejos localizado em um recanto dos
longos corredores térreos, na ala esquerda do Grande Hotel e em um mural, também de
azulejos, no interior da Fonte Dona Beja.
Dessa forma, a legitimidade histórica de Dona Beja, conferida pelos memorialistas,
foi confirmada pelos artistas e pelo Estado que se apropriou dela e a escolheu para
representar as benesses das “águas miraculosas” do Barreiro. A partir de então se
reforçaram os detalhes de sua aparência física que se tornou oficial: branca, loura e de olhos
claros, segundo o modelo que vinha sendo desenhado desde décadas anteriores por
Afonseca e Silva.
Uma figura “colunável”
Dona Beja surgiu nas páginas de um jornal local e por elas foi transportada para
além das fronteiras regionais. Ao mesmo tempo em que sua figura se materializava
plasticamente na iconografia través da pintura, a imprensa se encarregava de divulgá-la. É
difícil não perceber a intenção oficial de transformar Dona Beja na “garota propaganda” do
projeto turístico do Barreiro, utilizando à imprensa, uma das cinco seções que compunham
o DIP e lócus de produção dos elementos do discurso que deveriam ser trabalhados e
188
AYALA, Walmir. Dicionário dos Pintores Brasileiros. Rio de Janeiro: Spala, 1986. Vol. I p. 307.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
94
transmitidos poir todos os demais meios de comunicação
189
. A estratégia publicitária
incluía tanto reportagens em revistas e jornais não só de alcance regional, mas também dos
que circulavam nas capitais estadual e federal, como uma peça teatral inspirada nela, que
deveria ser encenada como parte do programa da inauguração das Termas.
Durante o período de construção, uma série de reportagens veiculadas na imprensa
noticiavam o avanço das obras, chamando a atenção dos leitores para o magno
empreendimento que o governo do Estado realizava em nome do progresso e da
modernidade do país. Nessas reportagens era incluída, impreterivelmente, a figura de Dona
Beja, cuja “biografia”, ou a história de suas aventuras, era contada e recontada
exaustivamente. Em 1942, sua figura confirmou a versatilidade que a caracterizou como
mito, capaz de portar e suportar as mais diversas roupagens e bandeiras de causas próprias e
alheias. Por ocasião do centenário da Revolução de 1842, na qual participaram São Paulo e
Minas Gerais, recebeu em um jornal o título de “Heroína da Revolução de 1842”, em
“homenagem” à sua suposta atuação naquele movimento
190
.
Exaltando-se sempre sua beleza e seu caráter transgressor, em outros artigos era
chamada de “Mundana de Alto Coturno”
191
ou “Pompadour Mirim”
192
, era eleita como a
figura exponencial de Araxá e se repetia, exaustivamente, a mesma história, que para essa
época era atribuída a Hildebrando Pontes, a quem se considerava responsável por sua
exumação. Na coluna “Terra Mineira”, em março de 1944, o autor recupera a Sebastião de
Afonseca como “mentor” legítimo e a principal fonte sobre Dona Beja e sugere que,
havendo chegado ao fim a construção das suntuosas obras e diante da iminente inauguração
189
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. p. 126.
190
GONÇAGA, Olympio. Uma heroína da Revolução de 1842. In: O Diário. 14 de abr. de 1942. Paracatu,
MG. (Recorte) AMDB. A Revolução de 1842 teve como cenário as então províncias de Minas Gerais e
São Paulo, onde numerosos municípios se levantaram em armas contra as reformas do Código do
Processo. Realizadas pelo gabinete de D. Pedro II, dominado pelos conservadores, essas reformas, entre
outras medidas, limitavam a autonomia dos municípios.
191
SILVA, Emil. Dona Beija. Correio da Manhã. 11 de mai. de 1943. Rio de Janeiro. (Recorte) AMDB.
192
DORNAS Filho, João. Dona Beija de Araxá. In: ------ Serões de um Alfarrabista. Folha de Minas. 10 de
mar. de 1942 e 15 de mar. de 1942. Belo Horizonte, MG. (Recorte) AMDB.
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95
do Balneário de Araxá, seria interessante que se desse maior ênfase à romântica figura que
emprestava seu nome a uma das fontes
193
.
Após a queda de Vargas, em que sua figura entrou num curto período de recesso,
Dona Beja seguiu sendo assunto recorrente na imprensa. Em citações casuais ou
reportagens exclusivas, atuava por vezes como pivô involuntário em torno de quem se
desenrolavam debates e disputas de cunho ideológico e político, que mencionaremos alguns
dos mais representativos.
Athayde Martins, articulista de um jornal de Uberaba, criticava o artigo “D. Beija e
a separação do Triângulo de Goiaz”, em que o autor, José Mendonça, lamentava que ainda
não tivesse surgido um escritor de primeira categoria para escrever o romance ou uma peça
teatral sobre a vida da heroína. Martins dizia-se surpreso de que o mesmo nunca tivesse
ouvido falar na peça teatral que o ditador Benedito Valadares havia encomendado e pagado
ao escritor Viriato Correia, estranhando também que uma obra tão interessante nunca
tivesse sido mostrada ao público.
Anos depois, a um outro jornalista que o instava a oferecer essa obra a alguma
companhia teatral para sua encenação, o escritor pessoalmente responderia que se sentia
sem direito para fazê-lo já que, de fato, a obra pertencia ao governo do Estado, que a havia
encomendada quando pretendia promover Dona Beja como a figura mais comentada do
Triângulo pois, embora (considerasse que) sua história não fosse mais verdadeira, o povo já
lhe havia dado coloração de lenda. Ainda, de acordo com ele, a companhia de teatro de
Dulcina de Morais teria chegado a iniciar os ensaios para sua apresentação durante a
inauguração do balneário, marcada para janeiro ou fevereiro de 1945, mas a conjuntura
política teria obrigado ao presidente Vargas a antecipar o acontecimento, o que teria
impedido a encenação. A estas alturas -dizia-, a obra deveria encontrar-se dormindo no
fundo da escrivaninha de alguma secretaria, pois os governos (reconheçamos) têm que
cuidar de coisas muito sérias, não podem perder tempo com insignificâncias do tipo de
Dona Beja
194
.
193
Idem. 23 de mar. de 1944 (Recorte). AMDB.
194
CONDE, José. Escritores e Livros. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 1959. (Recorte) AMDB.
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96
Mas, e apesar de sua “insignificância”, Dona Beja seguia freqüentando a imprensa,
como uma das figuras mais “colunáveis” quando se tratava de vender jornais ou revistas.
Mesmo que o tratamento que se lhe dispensasse nem sempre fosse cordial, continua sendo
útil por mostrar-nos a dimensão que sua figura adquiria e a insistência com que era
explorada. Em 1949, um jornalista da “Folha de Minas” dizia-se entojado, após sua estadia
em Araxá, com a excessiva projeção que recebia e transcrevia as palavras de um certo
embaixador que, ao visitar também a estância, e sentindo Dona Beja em tudo quanto o
rodeava, lamentava que o mesmo não ocorresse com outras heroínas mais ilustres
195
.
O retorno de Vargas ao poder não significou a reabertura dos cassinos, cujo
funcionamento havia sido proibido durante o governo Dutra. O destino turístico do Grande
Hotel, como produto de luxo, ponto de encontro exclusivo para as elites ficou seriamente
comprometido, embora isso não fosse totalmente percebido pelo público de classe média
que o procurava atraído pelo glamour que ainda mantinha e para o qual a figura de Dona
Beja seguia colaborando. Os artigos na imprensa continuavam, às vezes ilustrados por
poemas e desenhos
196
, intensificando-se por volta de 1957, ano em que foram publicados os
primeiros romances sobre ela.
Nas décadas seguintes, importantes reportagens sobre a cidade sempre destacaram s
Dona Beja, fosse em revistas informativas e de caráter cultural ou de moda, ilustradas e em
cores
197
. Sua figura seguiu o caminho inverso ao do Grande Hotel; enquanto este definhava
lento, mas paulatinamente até ser fechado para sua restauração, em 1994, ela era
“incorporada e “atualizada”pelos novos meios de comunicação, como a televisão, e se
instalava no inventário cultural do país, como indica sua inclusão em dicionários de figuras
e personalidades femininas, publicados nas décadas de 1980 e 1990
198
.
195
SALES, Franklin de. Dona Beija. Folha de Minas.04 de já. de 1949. Belo Horizonte, MG. (Recorte)
AMDB.
196
FRIEIRO, Eduardo. A Respeitosa do Araxá. Estado de Minas. 18 de nov. de 1951. Belo Horizonte, MG.
(Recorte) AMDB. O artigo foi incluído no livro do mesmo autor O Diabo na Livraria do Cônego,
publicado pela editora Itatiaia, em 1981. pp. 175-184. DORNAS Filho, João. Episódios e Vultos da
História Mineira. Folha de Minas. 08 de nov. de 1951, Belo Horizonte, MG. (Recorte) AMDB. O artigo
inclui desenhos de Washington Júnior e um poema de Olegário Mariano dedicado à Fonte Dona Beja.
197
PAIVA, Antônio Callado de; SOUZA, Juvenil. Histórias dos Sertões dos Araxás. Revista Geográfica
Universal. Nº 68. Rio de Janeiro: Bloch Editores, jul. de 1980.
198
BITENCOURT, Adalzira. Dicionário Biobibliográfico de mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do
Rosa Maria Spinoso de Montandon
97
Ambíguas relações
O complexo hidrotermal do Barreiro, com seu Grande Hotel, suas fontes e suas
Termas significaram a saída ao mundo não somente para Dona Beja, também para Araxá,
cujos setores médios e altos da sociedade foram adotando um perfil calcado no que
supunham ser o modelo social desses mesmos setores nos principais centros urbanos.
A imagem urbana e cosmopolita que se desejava para o Brasil nas décadas de 1950
e 1960, acentuada durante o governo de Juscelino Kubitschek, chegava a Araxá através do
Grande Hotel do Barreiro que hospedava e recebia em seus salões a elite econômica e
política do país, assim como os grandes shows e espetáculos artísticos nacionais e
internacionais.
O ideal norte-americano, que naquele momento vigorava como modelo para
equiparar o país à modernidade das potências industrializadas, no terreno cultural se
traduzia em tendências cosmopolitistas, em lugar do regionalismo e do folclore; na
renovação da linguagem jornalística, em lugar das matérias literárias nacionalistas e no
crescimento do cinema industrial aliado à introdução da televisão
199
.
Em Araxá tomava forma a idéia de sua diferença com relação às cidades vizinhas,
como ela, nascidas e criadas no campo em torno das atividades agropecuárias. A diferença
estava no turismo, a janela por onde a cidade podia ver o mundo, ao mesmo tempo em que
era vista por ele. O contato com o mundo deu aos araxaenses a sensação de fazer parte
desse cosmopolitismo que o Brasil pretendia, passando a reproduzir localmente eventos e
práticas sociais em voga nas grandes capitais
200
.
Brasil, citado em SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil op.
cit.
199
Cf. MENDONÇA, Sônia Regina de. “As bases do desenvolvimento capitalista dependente: Da
Industrialização restringida à Internacionalização”. In: LINHARES, Maria Yedda. op. cit. pp. 346-347.
200
Uma das histórias mais conhecidas em Araxá e que freqüentemente ouvimos dos entrevistados mais idosos
refere-se à liberdade com que as personalidades célebres e famosas podiam circular pela cidade, sem
serem incomodados pela população, que praticamente os ignorava, graças à familiaridade com que se
relacionava com as elites, em virtude de seu constante convívio com elas.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
98
Foram os áureos tempos dos “inesquecíveis” concursos de “miss”, dos bailes de
debutantes, presentes também em outras cidades, mas os realizados no Grande Hotel, para
os araxaenses, tinham um “glamour” especial. Alguns deles sobreviveram até a década de
1990
201
.
No ano de 1965 comemoraram os cem anos de Araxá como cidade. As festas do
Centenário representaram também o início de novas relações entre os araxaenses e Dona
Beja e o marco de seu “debut” na sociedade, redefinindo-se, a partir de então, o caráter
ambíguo que as havia caracterizado.
Essa ambigüidade manifestava-se em atitudes aparentemente contraditórias que os
habitantes de Araxá adotavam para com ela. Se por um lado, domesticamente, sua figura
era tratada com um certo desdém que freqüentemente se manifestava em dúvidas sobre sua
existência, por outro, a cidade se aproveitava de bom grau dela para, junto com o Barreiro,
pegar carona em sua projeção nacional.
Uma das intenções declaradas por Sebastião de Afonseca e Silva ao planejar uma
obra “histórica” exclusiva sobre Dona Beja e tentar insistentemente fazê-la chegar a
escritores e autoridades para sua publicação, teria sido, precisamente, acabar com as
dúvidas e críticas que pessoas de Araxá manifestavam com relação à veracidade de sua
heroína. Ao mesmo tempo, o caráter dúbio de sua imagem, que a situava como a heroína
das causas públicas e a vilã das causas privadas, certamente, estimulava essas reações
contraditórias.
Diz-se, em uma ocasião, que, em finais da década de 1950, um candidato à
presidência da República, em campanha oficial, dirigiu seu discurso ao povo da terra de
Dona Beja, sendo interrompido pelas vaias dos araxaenses. Aparentemente, as vaias não
significavam uma rejeição ao candidato, mas à personagem e, principalmente, uma
resistência popular em identificar-se e ver identificada a cidade com a sua figura
202
.
201
Somente em 1965, Araxá teve sete “misses” e “rainhas”, simultaneamente: Miss Araxá, Miss Congresso,
Miss Elegante Bangu, Miss Simpatia, Rainha da Exposição, Rainha dos Estudantes e Rainha do
Centenário. Alguns desses eventos sobreviveram até a década de 1990 e outros, como a tradicional lista
das “dez mais”, que relaciona anualmente as dez senhoras mais elegantes da sociedade local,
desdobraram-se em versões semelhantes como os “momentos” e os “destaques” e continuam premiando
todo ano os acontecimentos e personalidades sociais e empresariais, apresentando versões locais das festas
“hollywoodianas” como a da entrega do “Oscar”, dando suporte financeiro aos três semanários que
circulam na cidade.
202
Cf. ABREU, Filho Ovídio. Dona Beija: Análise de um Mito. op. cit. p. 80.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
99
Essa atitude contrasta com aquela observação do jornalista, que anos antes se havia
sentido “entojado” de tanto ouvir falar de Dona Beja, em Araxá. Mas a contradição é
compreensível; enquanto o candidato falava para os araxaenses, em sua cidade e em seu
ambiente doméstico, o jornalista estaria escrevendo para um público externo, para o
mundo. Se para o consumo interno Dona Beja era desdenhada, como fachada externa podia
ser útil e até bem-vinda. O próprio Estado assim o havia decretado ao adotá-la na
publicidade de seu empreendimento turístico no Grande Hotel do Barreiro e este, associado
justamente a essa figura feminina, havia colocado a cidade no mapa, dando-lhe visibilidade.
O ano de 1965 foi, sem dúvida, marcado pelo “debut” de Dona Beja na sociedade de
Araxá. Como nas comemorações dos cem anos da volta do Triângulo a Minas, novamente o
espírito cívico aflorava tendo como marco, desta vez, o debate em torno da cassação da
autonomia política das Estâncias, proposta pelo governo federal e que retiraria aos
araxaenses o direito de elegerem seus representantes. Novamente buscavam-se na história
os alicerces da cidadania e de novo a figura de Dona Beja era coroada de louros e erguida
ao pedestal dos heróis sem que, contudo, isso significasse uma aceitação unânime por parte
do público.
A professora Leonilda Montandon omitiu a personagem no seu livro “Vamos
Conhecer Araxa”
203
que, em homenagem ao centenário, passou a ser publicado em
capítulos no semanário local. Por outro lado, o mesmo jornal noticiava o lançamento do
romance “O Solar de Dona Beja”, que com o mesmo motivo foi publicado pela escritora
araxaense Maria Santos Teixeira, ao mesmo tempo em que, fazendo prevalecer a boa
vontade para com Dona Beja, passava a veicular, regularmente, notícias relacionadas com
ela.
Mereceram notícia a descoberta de seu testamento em um cartório de Estrela do
Sul, cuja transcrição foi publicada na íntegra
204
; entrevistas com seus descendentes, que se
declaravam orgulhosos de sua ancestral
205
; a transcrição de reportagens de jornais ou
revistas da capital, como a do jornalista José Roberto Pena, que escreveu “Escravos da Bêja
203
MONTANDON, Leonilda Scarpellini. Vamos Conhecer Araxá. Araxá, MG: Prefeitura Municipal, 1987.
204
Correio Localiza testamento da Bêja. Correio de Araxá. 03/ 01/ 1965. p. 1
205
Idem. Sou bisneta da Bêja: Correio de Araxá localiza e ouve a filha de Aydee. 28/ 03/ 1965. pp. 1e 6.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
100
Regavam a Rua com Vinho para a Imagem de Bento Antônio passar”, afirmando que
enquanto a imagem passava, Dona Beja, de braço dado com o ouvidor, acompanhava a
procissão. E, atiçando o fogo em que se forjava o mito, descrevia a decoração de sua casa,
as grades fundidas na Bélgica; as cortinas de renda importada de Lisboa; os lustres de
cristal da Boêmia e os tapetes orientais sobre o assoalho de bálsamo
206
.
Até o ouvidor, desta vez, foi homenageado com o título de “Dom Juan Histórico”
que, no entusiasmo da festa, lhe foi outorgado por um escritor que levantou também sua
genealogia
207
. Foi composto um hino oficial, mas o que “pegou” foi uma canção com a
música de “Luar do Sertão” que, exaltando Araxá, não deixava de louvar a heroína:
... a Dona Bêja, essa mulher de encanto e glória
transformou a nossa história
com seus dengues, seu amor.
E todo o povo do Brasil conhece
a saga desta luz que não se apaga
dessa 'môça do Ouvidor'...
208
.
A publicidade e a atenção despertada entre os meios empresariais e da comunicação,
certamente, reforçaram a aceitação de Dona Beja como figura local, embora persistissem,
ainda, alguns “focos” da antiga resistência como se desprende da crônica que escreveu um
dos colaboradores semanais do jornal, sobre o “Baile Fantástico” com que se encerraram as
festas do centenário.
Com a irreverência que lhe era peculiar, o cronista araxaense Ronan Soares foi
revivendo, um a um, as personagens locais e ilustres do passado, relembrando as famílias
tradicionais que se encontravam representadas na festa de fantasia. O ponto alto foi
marcado pela eleição de Dona Beja como “Miss Centenário” que, nas palavras do autor,
ganhou por esmagadora maioria, para desespero das trezentas e cinqüenta matronas (que)
reúnem-se clandestinamente e tentam impugnar o resultado. Encerrava a crônica com a
206
Idem. Refere-se às imagens da Igreja Matriz de São Sebastião, atribuídas a Bento Antônio da Boa Morte,
escultor de quem pouco se sabe. Na Semana Santa, as imagens são retiradas da igreja e levadas em
procissão pelas ruas. 07/ 02/ 1965. pp. 5 e 6.
207
Idem. 28 de set. de 1965. p. 6.
208
Idem. 31 de out. de 1965. p. 4.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
101
citação da “sentença” “Dulce lex, sed lex”, trocadilho de uma frase jurídica em latim, que
corou com uma observação pessoal: Ganhou a mulher do sobrado e da chácara
209
.
Três anos após o “Centenário”, em 1968, os ecos da rejeição ainda se deixavam
ouvir nas páginas do mesmo jornal, onde uma de suas colunistas denunciava o pesadelo
que representava para os araxaenses o “slogam” “Terra de D. Beja” e lamentava os frutos
amargos que se começavam a colher graças ao clima psicológico (...) que acaba exercendo
influência decisiva, dominadora, não deixando ninguém a salvo ou completamente imune
a essa influência que imprudentemente se instalava em Araxá. Lembrava, ainda, que,
durante as festas do Centenário, já havia escrito que estátuas e flores deviam ser dedicadas
aos heróis e aos santos, pois estimulavam à juventude com seu exemplo muito mais elevado
do que o de uma pobre decaída. Por isso, levantando a bandeira de uma outra figura que, a
seu juízo, era mais digna de representar sua cidade, quando alguém lhe perguntava se era da
Terra de Dona Beja respondia não senhor, sou da terra de Dom José Gaspar
210
.
Na mesma época, também um dos membros mais jovens da Academia Araxaense de
Letras, movido por preocupações cívicas e morais, mostrava seu repúdio provocado pela
leitura de uma redação, que teve oportunidade de corrigir, onde uma aluna do 5º ano
primário dizia ser Dona Beja uma grande heroína de Araxá.
Araxá dizia ele-, não necessita buscar numa individuação medíocre, o ideal de seu
reflexo externo (...) os homens responsáveis pela glorificação do mito não pensaram,
certamente, que o lema 'Araxá terra de Dona Beija' traduzia-se por 'Araxá, terra da
prostituta'. O autor propunha destruir, não a verdade, digna do silêncio, mas o mito, já que
este havia-se transformado em fato histórico, relevante, porém falso. Para ele, heroínas
tinham sido as mulheres cujos maridos haviam caído nos alvos leitos das paixões obscuras
e terminava manifestando sua preocupação com o desvirtuamento progressivo da história
real de Araxá, soberbamente limpa, elevada e, conseqüentemente, dignificante
211
.
209
Idem. 17 de out. de 1965. p. 2. A citação correta seria “Dura lex, sed lex”: a lei é dura, mas é lei. (deve
ser observada). Cf. LUIZ, Antônio Filardi. Dicionário de Expressões Latinas. 2ª ed. São Paulo: Atlas,
2002. p. 101
210
Correio de Araxá. 25 de fev. de 1968. pp. 3 e 6.
211
Idem. 24 de mar. de 1968. p. 3.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
102
Ainda que três anos antes a cidade já lhe tivesse concedido sua carta de cidadania,
essas manifestações contrárias a Dona Beja, vindas de pessoas formadoras de opinião que
tinham acesso às páginas do jornal, onde podiam fazê-las chegar a um público leitor,
afloravam naquele momento como conseqüência da projeção que novamente recebera, ao
ser escolhida como enredo para o desfile de uma das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Mas, voltando às festas do Centenário, a cadeia de eventos que marcaram as
comemorações foi iniciada pela abertura da 4ª Exposição Agropecuária e Industrial do Alto
Paranaíba, quando se anunciava:
Os homens do campo, unidos num só ideal, farão vibrar a gente de Araxá e
de toda a Região. Números inéditos, rememorando outras épocas e outros costumes
desta terra serão apresentados ao vivo por uma equipe cheia de ardor e vibrante de
entusiasmo, que se propôs, pelo amor que devota ao seu torrão natal, berço de seus
ancestrais e dos seus futuros descendentes, a mostrar que um Século não
representa apenas 100 anos, mais um marco de glorias e de realizações...
212
.
O roteiro dessa festa cívico-histórica incluía a rememoração de capítulos e
personagens da história local, com índios, quilombolas e bandeirantes, sendo encenados
por alunos das escolas da rede de ensino pública e particular. Destacando-se sobre todos
eles, a beleza escultural e lendária de Dona Beja, (...) em seu fogoso corcel branco
213
foi
representada por uma moça loira, de olhos claros, estudante em um colégio religioso.
Dessa forma, uma sociedade assentada em bases patriarcais que, pese seus pendores
cosmopolitas, ainda parecia dominada pelo tradicional poder masculino dos homens do
campo, sancionava uma figura feminina e socialmente “inadequada” como parte de sua
história, para onde se voltava procurando, mais uma vez, os elementos de legitimação da
sua identidade. Assim, a cidade conferiu a Dona Beja a cidadania araxaense, oficializando-
a como seu mito de apresentação, com credenciais diplomáticas para representá-la,
convencionando-se escolher, desde então, sem concurso ou eleição, uma jovem loira para
caracterizá-la como sua embaixadora em eventos e situações que o requeressem. (Figura 3)
“O Museu da Perene Criatura”
212
Idem. 04 de abr. de 1965. p. 2
213
Idem. Idem.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
103
Com esse título
214
, iniciava-se uma das reportagens da imprensa local que noticiava
a inauguração do “Museu Regional Dona Beja”, e homenageava a iniciativa de Assis
Chateubriand,
seu predestinado idealizador
215
. O papel desempenhado pelo “todo-
poderoso” dono dos Diários e Emissoras Associados na consolidação da personagem como
heroína da cidade, nos remete novamente àquele poder supra-local referido no, já
mencionado, estudo antropológico. Como o ouvidor que a raptou no passado e o Estado
Novo que dela se apropriou, novamente um poder superior interveio em sua valorização.
Parecera como se na trajetória deste mito contemporâneo ainda repercutissem as
ações dos antigos deuses gregos, que transformados em fenômenos naturais ou
sobrenaturais e disfarçados de seres mortais, orientavam e desorientavam o destino dos
humanos, fazendo nascer em suas vidas a tragédia.
Essa “divindade” caprichosa ou esse poder supra-local chegou, desta vez,
transfigurado na figura polêmica do dono das empresas de comunicação que dominavam a
imprensa escrita e falada, orientando ou desorientando a opinião pública e que, em 1950,
introduziu a televisão no país.
Os mesmos fatos pareciam confirmar, ainda, as palavras de Darcy Ribeiro no
prefácio de uma edição brasileira do “Ramo Dourado”, de Sir James George Frazer. Para
ele, o trabalho antropológico e o compêndio de fontes mitológicas da obra que prefaciava
viriam mostrar:
através da multiplicidade infinita de suas manifestações, a unidade essencial do
espírito humano, expressa na espantosa continuidade dos mesmos arquétipos de
pensamento se reiterando ao longo de milênios em povos de toda a terra”
216
.
Dando continuidade às comemorações e como um dos pontos altos do ano do
centenário de Araxá, o Museu Regional Dona Beja foi inaugurado em setembro, “doado” à
comunidade por Assis Chateubriand que, acometido por um “surto” museológico, fundou
214
Idem. 05 de set. de 1965. p. 3. Expressão usada pelo acadêmico araxaense Heitor Gentil Montandon.
215
Idem. Idem.
216
RIBEIRO, Darcy. Prefácio. In: FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Tradução de Waltensir
Dutra. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
104
diversos museus regionais pelo país. Retribuía dessa forma sua estadia de vários meses no
Barreiro quando, ao fim e ao cabo ser mortal, havia tentado, sem sucesso, reverter as
seqüelas dos derrames cerebrais sofridos alguns anos antes
217
.
Contando com os recursos captados entre a iniciativa privada e a colaboração de
Sebastião Paes de Almeida, presidente do Banco do Brasil, arrolado para o
empreendimento como filho de Estrela do Sul, cidade que poderia compartilhar com Araxá
o título de “Terra de Dona Beja”, os Diários e Emissoras Associados adquiriram o antigo
sobrado que havia pertencido às irmãs Herculana Cândida e Cândida Antônia de São José,
que por essa época, já era identificado como a casa de Dona Beja.
O sobrado foi reformado sob a responsabilidade da Hidrominas, empresa estatal
encarregada das estâncias hidrominerais, e ambientado com objetos e mobiliário do século
XIX, incluindo uma “charrete”, adquirida em Cravinhos, SP e noticiada como carruagem
importada por Dom Pedro. O Museu foi dotado com um acervo pictórico avaliado,
segundo se noticiava, em 200 milhões de cruzeiros. Ainda se anunciava, para a abertura, a
exposição de obras de Murillo e Van Gogh, adquiridas na Europa pelo seu fundador
218
.
Como de costume, Chateubriand “fez a (sua) festa” durante a inauguração do
museu. Fazendo jus à irreverência, sua marca registrada, e a um poder que ainda lhe
permitia desafiar a ditadura militar, mandou hastear a bandeira da União Soviética, cujo
embaixador e amigo pessoal André Formim, era convidado de honra entre uma lista de
personalidades políticas e da alta sociedade de Brasília, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de
Janeiro, que compareceram convocadas pelo anfitrião. Como anfitriã e madrinha do museu,
contou com a presença de Dona Yolanda Penteado, também sua amiga pessoal e figura
constante nas colunas sociais e nos eventos por ele patrocinados.
217
Cf. MORAIS, Fernado. Chatô o rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 655-657.
218
Correio de Araxá. 18 de abr. de 1965. p. 1. Na realidade, o acervo reúne obras de artistas brasileiros
representantes das diversas escolas pictóricas que vigoravam no país. Entre eles Bonadei, Herculano
Campos, Clovis Graciano, Marcelo Grassman, Celso Renato, Petrônio Bax, Álvaro Apocalypse, Yara
Tupinambá, Raimundo de Oliveira... O acervo foi restaurado no período de 1999-2000, pelo professor
João Augusto Cristeli da “Oficina de Arte Aplicada”, com recursos do Ministério da Cultura, de acordo
com um projeto de nossa autoria, como responsáveis pelo Setor de Patrimônio Histórico da FCCB Araxá,
durante a gestão do prefeito Olavo Drummond. Ainda na década de 1990, foram incorporados ao acervo, o
vestido usado pela atriz Maitê Proença, que representou Dona Beja em 1997 durante a festa da re-abertura
das Termas, após vários anos fechadas para restauração e duas pequenas peças: uma medalha de ouro e
uma balança de pesar diamantes que, supostamente, lhe teriam pertencido. Ambas peças foram vendidas
para o museu por alguns de seus descendentes, moradores em Araxá.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
105
O povo de Araxá, a quem se destinava a obra, teve uma participação mínima. Para
agradecer em seu nome foi convidada dona Silvéria de Aguiar, esposa do Coronel José
Adolfo de Aguiar, representantes da antiga oligarquia rural e, finalmente, personificando a
Dona Beja, heroína em cuja homenagem tinha-se criado o museu, compareceu em trajes de
veludo vermelho, a miss Araxá daquele ano.
Era preciso agradecer pela instituição que, além de um centro regional de cultura,
representaria o marco da imorredoura gratidão do povo de Araxá ao Embaixador
Chateubriand, seu predestinado idealizador
219
.
Como era de se esperar, o evento recebeu grande cobertura por parte da imprensa e
“O Cruzeiro”, uma das revistas de circulação nacional, propriedade do anfitrião, ilustrou
sua capa com a fotografia colorida da caracterização da heroína, reservando suas páginas
centrais para uma extensa reportagem que repetia sua história e aventuras
220
.
Chateubriand deu a Dona Beja um poder de imagens e palavras que Araxá não
poderia ignorar. Na década seguinte, o título de cidadania lhe foi confirmado pela cidade
com um folder turístico que a Prefeitura Municipal pôs em circulação, através da Secretaria
de Turismo, entre 1976 e 1977. O folder foi ilustrado com um quadro de Dona Beja pintado
pelo artista araxaense Calmon Barreto e “carimbando” com o brasão da cidade. Na contra-
capa, junto à foto do museu, trazia o seguinte texto:
Araxá, cidade que por sua gente e por seus próprios méritos sabe crescer, e
crescendo não deixa de ser ao mesmo tempo humilde na grandeza, cristã em suas
conquistas e imperturbável (sic.) quando incompreendida e se às vezes açoitada
por eventuais revezes, responde magnânima e altiva para eliminar os obstáculos.
Berço de nossos antepassados e filhos, Araxá é um hino de esperanças no futuro,
cujas primeiras notas dormem no passado...
221
.
Como fórmulas mágicas e (con)sagradas, novamente a história e Dona Beja eram
invocadas para “exorcizar” o presente. O debate que desde 1965 discutia a questão dos
219
Idem. 05 de set. de 1965. p. 3.
220
MARISE, Júnia e LUIZ, Alfredo. A Vida Fabulosa de Dona Bêja: Romance e Aventura numa História
Real. In: O Cruzeiro. Rio de janeiro, 13 de nov. de 1965. pp. 50-60.
221
Araxá a favorita do Sol. (Folder). Prefeitura Municipal de Araxá, 1976 / 1977.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
106
direitos políticos das estâncias hidrominerais
222
, havia terminado com uma decisão contra a
cidadania, cassando aos araxaenses o direito de eleger seus representantes, que passaram a
ser nomeados pelo governo do Estado.
Mais uma vez, o mito vinha para cauterizar as feridas que as amputações políticas
infringiam à cidade. A imagem alegórica de Dona Beja representando o brio e a coragem
com que os araxaenses enfrentavam os “revezes” que lhe impunham os poderes superiores,
a convertia em embaixadora de suas queixas e reivindicações. (Figura 4)
Finalmente, e ainda a propósito das ambíguas relações de Araxá com seu mito, cabe
observar que em Estrela do Sul, para onde Dona Beja se transferiu em sua velhice e onde
acabaram seus dias, os moradores sempre mantiveram com ela um relacionamento de
caráter afetivo, ressentindo-se, ainda, pela exclusividade com que ficou associada com
Araxá, marcadamente, após a telenovela, que ignorou o período em que a personagem
morou em sua cidade
223
.
Os araxaenses, por sua vez, tradicionalmente mantiveram com ela um
relacionamento simbiótico, que se pautava no interesse mútuo: enquanto alimentavam o
turismo com o mito, este era alimentado pelo turismo. Lembram uma anfitriã que exibe a
prata da casa”, em ocasiões especiais, quando quer impressionar seus convidados, ainda
que nem sempre esteja convencida da “pureza” de seu material.
Por outro lado, Estrela do Sul evoca Dona Beja sem compromisso, como uma
personagem ilustre que, igual que os diamantes, abrilhanta seu passado. Colabora para isso
o fato de corresponder a essa cidade o período em que tendo abandonado o “mau caminho”,
enveredou para a regeneração.
Assim, em 1965, seus descendentes moradores em Estrela do Sul não se furtavam a
expor plenamente seu parentesco e a responder às perguntas que lhes fizerem sobre sua
ancestral. Ao ser entrevistada, Dona Zita -Amazilis de Souza Braga-, bisneta da Beja,
fornecia sua filiação como filha de Aydée Clementina do Amor Divino e de José Gonçalves
de Souza, revelando ter recebido seu nome em homenagem a uma tia materna.
222
Araxaenses não querem prefeito nomeado. A propósito da propalada cassação da autonomia política
nas Estâncias. Correio de Araxá. 21 de mar. de 1965. p. 1.
223
DOS SANTOS, Mário Lúcio. Entrevista. Araxá: 17 de abr. de 2002. A entrevista nos foi concedida
quando, o professor e atual Secretário de Cultura de Estrela do Sul, participava do “Primeiro Encontro
Estadual do Mito Dona Beja”.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
107
Dona Zita, de 72 anos, estatura media e olhos azuis
224
, dava notícia de tudo: nomes
e idade das outras tias que ainda eram vivas: Mercedes, Ester e Amazilis, assim como de
sua irmã, Joana de Souza Aguiar, de 70 anos, que morava em Coromandel. Tampouco
deixava de manifestar seu orgulho pela bisavó, de quem apenas parecia lamentar que não
soubesse ler nem escrever, pois apesar de ter seus pecados tinha uma personalidade
marcante e inteligência acima do comum, a ponto de mudar o curso da história, pese sua
condição de analfabeta
225
.
Hoje, Estrela do Sul convive com ela de forma casual, sem cerimônias, faz parte de
seu cotidiano. Cordial vizinha e sem ser “Dona”, a “Ponte da Beija” é nomeada e cruzada
diariamente, toda vez que seus moradores se referem a algum determinado ponto em suas
imediações ou são obrigados a atravessá-la para ir de um lado ao outro do rio que corta a
meio a cidade.
Com o “Dona”, tratamento que deram a “Beja”, os araxaenses por sua vez,
batizaram lugares, produtos e serviços, tais como um bairro, hotéis, alimentos industriais
e artesanais-, bebidas, lojas, entre outros. Uma pesquisa realizada na década de 1990,
encomendada pela administração municipal, empenhada em traçar as estratégias para
incrementar o turismo, concluiu que junto ao Grande Hotel do Barreiro, ela seguia sendo o
produto que mais vendia turisticamente Araxá. (Figura 5)
Atualmente, a administração municipal realiza uma campanha de revalorização do
mito como alavanca do turismo, através de concursos escolares, peças de teatro amador,
encontros intermunicipais e a transformação do Museu na “Casa da Beja”, cenário montado
para oferecer ao turista uma “reconstituição” da residência onde teria morado a heroína
226
.
224
Sou Bisneta da Bêja: Correio de Araxá localiza e entrevista filha de Haydee. Correio de Araxá. 28 de
mar. de 1965. p. 1 e 6.
225
Idem. Idem.
226
Em 17 de abr. de 2002 foi realizado o “ Primeiro Encontro estadual do Mito Dona Beja”, com a presença
dos secretários de cultura e turismo de Estrela do Sul, Paracatu e Formiga, que se reuniram para discutir as
estratégias para a exploração turística do mito. Na ocasião, o secretário de turismo e desenvolvimento
industrial de Araxá forneceu aos presentes essas informações.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
108
Apropriações do Mito: Na Passarela e na Telinha.
Após a projeção nacional que recebeu em 1965, 1968 pode ser considerado o ano
em que Dona Beja caiu, literalmente, na “boca do povo”. Se até então tinha sido do
domínio e produto de consumo de uma classe média freqüentadora de balneários, o
carnaval e o Grêmio Recreativo Escola de Samba do Salgueiro a fizeram popular, no
sentido de seu pertencimento ao povo.
O carnaval pode ser considerado uma das manifestações culturais por excelênc ia
para as camadas populares investirem suas energias e exercitar sua capacidade
organizacional alternativa, através da qual poder expressar a consciência de sua
marginalidade e a dificuldade em superá-la.
No dizer de Bakhtin, o carnaval constitui o trunfo da liberação temporária de
verdades dominantes e do regime vigente, da abolição provisória de todas as relações de
hierárquicas, privilégios, regras e tabus
227
. Assim, no Brasil, o carnaval, que “tudo pode”,
levou Dona Beja até a Corte, subiu o morro e desceu com ela até avenida, mulata,
caracterizada esplendidamente pela estrela da Salgueiro, Izabel Valença, a mais famosa
destaque de escolas de samba da época
228
. (Figura 5)
Para Rachel Sohiet, o carnaval, como toda festa popular, mais do que apenas uma
válvula de escape para as tensões do cotidiano, permitida, organizada, estimulada e, além
de tudo, apropriada pelos grupos dominantes para reforçar a ordem vigente, é o palco onde
a dialética dominação/resistência marca sua presença
229
.
Foi por isso que depois do Triângulo Mineiro, do Grande Hotel do Barreiro, do
Centenário e de todas as causas em que foi utilizada como suporte, a dimensão histórica,
política e social de Dona Beja foi apropriada também pela escola que a traduziu na
linguagem carnavalesca para a militância em favor de problemas sociais mais atuais. Um
povo que, como ela fez no passado, hoje tira proveito de sua beleza, identificando-a como a
227
BAKHTIN, Mikhail. op. cit. p. 8.
228
Disponível em: andré@galeriadosamba.com.br. Atualizada em 10 de ago. de 2002.
229
Cf. SOHIET, Rachel. O Drama da Conquista na Festa: Reflexões sobre a Resistência Indígena e
Circularidade Cultural na América. In:BESSONE, Tânia Maria Tavares. (org). op. cit. p. 219.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
109
heroína que toca seus corações por haver enfrentado os poderosos, fazendo sentirem-se
redimidos aqueles que, como ela, acusam os efeitos de viver numa sociedade injusta:
Seguindo a linha de enredos sobre personagens da história popular
do Brasil, aqueles que não constam nos livros didáticos e não são
reconhecidos pelo 'país de cima' (designação dada pelo conhecido escritor e
acadêmico Otto Lara Rezende, que diz ser o Brasil dividido em 'país de
cima', o oficial, e em 'país de baixo', o não oficial, que obedece, que paga as
contas), o Salgueiro decidiu apresentar Dona Beja, a Feiticeira de Araxá,
baseado no livro do mesmo título de Thomas Leonardos (...), desenvolvido
por Fernando Pamplona com figurinos de Arlindo Rodrigues e Marie Louise
Nery”
230
.
Sob chuva, desfilaram os 2.500 componentes da escola e suas vozes ecoaram na
avenida cantando os versos do samba composto por Aurinho da Ilha
231
, considerado pelo
jurado oficial o de poema mais bonito
232
:
Certa jovem linda, divinal,
Seduziu com seus encantos de menina
O Ouvidor Geral
Levada a trocar de roupagem / numa nova linhagem
Ela foi debutar
Na Corte, fascinou toda a nobreza / com seu porte de princesa
E seu jeito singular.
Ana Jacintha rainha das flores / dos grandes amores
dos salões reais
com seus encantos e suas influências / supera as intrigas
e os preconceitos sociais.
Era tão linda, tão meiga, tão bela / Ninguém mais formoso que ela
No reino daquele Ouvidor
ela com seus modos inteligentes fez um reinado diferente
na corte de Araxá / e nos devaneios da festa do Jatobá.
Mas antes, com seu trejeito feiticeiro / traz o Triângulo Mineiro
De volta a Minas Gerais.
E até o fim da vida / Dona Beja ouviu falar
E seu nome figurar / na História de Araxá
233
.
230
Disponível em: andré@galeriadosamba.com.br. Acesso em: 10 de ago. de 2002.
231
Idem. Nome artístico do compositor Áureo de Souza Campagnhac.
232
ALENCAR, Edigar de. O Carnaval Carioca através da Música. 3ª ed. (corrigida e atual). Rio de Janeiro:
INL, 1979. pp. 482-492.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
110
Mas, embora o carnaval já fosse a comemoração mais importante do país, no
calendário das festas populares e uma excelente vitrine para a cidade, o desse ano não
parece haver ficado gravado de forma especial em Araxá -como se poderia esperar-, o que
ficou patente na escassa atenção que recebeu na imprensa local, em contraste com a do Rio
de Janeiro onde, como de costume, a festa recebeu grande cobertura.
Fosse pelos efeitos da influência de seus detratores que ressurgiram por essa época
na imprensa, porque na conjuntura vivida naquele momento a “onda” Dona Beja tinha
arrefecido em Araxá e, mais certamente, por tudo junto, desta vez seu “debut” na avenida
não provocou maiores reações ou, pelo menos, maiores registros na imprensa local, cujo
jornal lhe dedicou apenas uma nota, embora fosse de primeira página.
O motivo da aparente indiferença pode estar na liberdade tomada pelo carnaval e a
irreverência com que trata todos os assuntos, inclusive os considerados sérios, que permitiu
a Dona Beja ser representada por uma negra, quando, mesmo branca, tinha custado a
impor-se em Araxá. Por outro lado, se a presença da cidade na avenida, transportada por
Dona Beja caracterizada por uma negra, não chegasse a chocar ainda podia ser interpretada
como “brincadeira de carnaval” e, como ele, passageiro, portanto, nada de mais para ser
lembrado.
O jornal local “esnobou” Dona Beja em suas manchetes e dedicou ao carnaval uma
reportagem que ocupou um quarto da 1ª página, com o título “Salgueiro entra com Artistas
da TV e do Teatro no jogo da Avenida”
234
. Desta vez, nem o debate separatista que
novamente parecia cobrar força, ocupando a atenção da imprensa
235
, e que no passado
havia impulsionado o surgimento do mito -ou provavelmente por isso-, conseguiu
imprimir-lhe maior destaque na atenção local.
233
CAMPAGNHAC, Áureo de Souza. Dona Beja a Feiticeira de Araxá. In: ALENCAR, Edigar de. op. cit. p.
492.
234
Correio de Araxá. 18 de fev. de 1968. A reportagem destaca as personalidades que desfilaram nas 78 alas
da escola, embaixadores de ébano, soberanos, lordes, artistas, jogadores de futebol. Jairzinho do
Botafogo, as vedetes de Carlos Machado, os artistas da Tupi, Hamilton Fernandes (Albertinho Limonta),
Zélia Hoffman, entre outros, todos comandados pelos diretores de harmonia em um enredo de Fernando
Pamplona, artista laureado pela Escola de belas Artes. p. 1.
235
Idem. 14 de jan. de 1968. “Estado do Triângulo é quase uma realidade. Do Estado de São Paulo, sucursal
do Rio de Janeiro”. p. 1
Rosa Maria Spinoso de Montandon
111
O separatismo e o futuro promissor de Araxá, a bordo das empresas mineradoras,
eram assuntos mais sérios com que se ocupar, embora, com a mesma força com que o
primeiro irrompeu na imprensa de São Paulo e Belo Horizonte, onde em um jornal era
chamado de “surto” e “coqueluche”
236
, sua campanha se esvaziara, sendo necessário que o
presidente da União para o Desenvolvimento e Emancipação do Triângulo, UDET, se
manifestasse desmentindo o esvaziamento
237
.
Com relação ao futuro, a promessa com que as mineradoras acenavam para ele,
significava um novo impulso para a economia do município. Grande descoberta de urânio,
novos processos para a fabricação de fertilizantes e vultosos investimentos eram
anunciados como injeções de ânimo para o povo de Araxá.
O Grande Hotel do Barreiro não havia correspondido às expectativas que se
depositaram nele como âncora do turismo. A própria população não havia desenvolvido
uma “mentalidade turística”, o que era preocupante e tornava urgente a adoção de medidas
que corrigissem essa carência
238
. Tudo indicava que se Araxá havia deixado o campo pelo
turismo, o campo não havia deixado seu povo, pelo que era preciso alertá-lo para a
importância de “aprimorar” essa mentalidade divulgando a cidade e mantendo-a limpa e
cuidada, como um “cartão postal”.
Significativamente, em agosto desse ano, o jornal noticiava a morte, aos noventa e
um anos, de Sebastião de Afonseca e Silva, o “pigmalião” de Dona Beja, graças a quem sua
figura cobrara vida, e dois meses depois a doação de seus arquivos ao Museu Regional,
batizado com o nome de sua criação
239
. Infelizmente, não chegou a ver quebrados pela
televisão e de forma definitiva, os últimos e remanescentes resquícios de resistência que
236
Idem. Idem. A coluna “Araxá Separatista”, assinada por “Elizabeth”, reproduzia: uma página da história
publicada pelo professor Melo Cançado em O Diário de BH com o título Araxá e Cabrália, onde
lembrava a suposta pretensão atribuída ao Coronel Fortunato José da Silva Botelho, de criar, em 1842, a
República de Araxá, lembrando que foi ali onde se iniciou o movimento pelo retorno do Triângulo a
Minas. p. 2.
237
Idem. 28 de jan. de 1968. A reportagem “Campanha Separatista não foi esvaziada”, mencionava o
resultado favorável do plebiscito realizado para medir a adesão à campanha separatista, que recebeu entre
75% e 94% de aprovação, inclusive em Uberlândia onde, a Câmara Municipal, que em principio havia
sido contra, reverteu seu posicionamento em favor da mesma p. 1.
238
Idem. 04 de fev. de 1968. Mentalidade Turística. p. 6.
239
Idem. 18 de ago. de 1968 e 27 de out. de 1968.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
112
ainda entulhavam o caminho de sua musa, para quem, no entanto, novos tempos e novas
conquistas ainda lhe anunciava.
O processo de redemocratização que se iniciou a finais da década de 1970 e
culminou em 1985 com a subida de um civil à presidência da República, depois de vinte
anos de regime militar, liberou também a Dona Beja da tutela política a que havia sido
submetida desde inícios do século XX. Foi incorporada pela televisão, segundo um
discurso ao mesmo tempo erótico e feminista e, principalmente, de acordo com a nova
dimensão que, não só as mulheres, como também temas relacionados com o sexo e as
relações de gênero, adquiriam através e dentro desse veículo de comunicação
240
.
Essa nova dimensão deixava espaço para uma maior liberalidade no tratamento de
temas e personagens supostamente históricos e tradicionais, aos que se pode carregar com
fortes doses de erotismo, permitindo à televisão explorar Dona Beja e aproveitar o grande
potencial que lhe oferecia nesse sentido, mas aliada, agora, a uma imagem portadora de um
discurso feminista, identificada com a mulher forte, guerreira, que comandava sua
sexualidade e seu destino.
Em 1978, Clodovil saiu vencedor no programa “8 ou 80”da TV Tupi, em que por
várias semanas, se apresentou respondendo sobre Dona Beja, de quem se dizia fervente
admirador.
No mesmo ano, o concurso para eleger a Miss Minas Gerais foi realizado em Araxá,
sendo transmitido pela televisão. Os telespectadores da região puderam admirar a
representante da cidade anfitriã desfilar fantasiada de Dona Beja, mesma fantasia que foi
usada pela vencedora do concurso em nível nacional.
Sintomaticamente, também por essa época, começaram a deixar serem identificados
outros descendentes seus em Araxá, que se haviam mantido em um discreto anonimato,
possivelmente constrangidos diante da “má fama” de sua ancestral
241
. Anos depois, alguns
deles se apresentaram na gincana televisiva, “Cidade contra Cidade”, do SBT, como prova
240
Cf. HAMBURGER, Esther. “Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano”. In: NOVAIS,
Fernando A. (org) História da Vida Privada no Brasil. IV . op. cit. p. 471.
241
Borges, Guaraciaba Teixeira. Entrevista. Araxá: 11 de jun. de 2001. Guaraciaba é artista plástica e
tataraneta de Dona Beja.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
113
de que Dona Beja, a principal atração apresentada por Araxá, era fidedigna, o que deu a
vitória à cidade.
Assim, a sociedade se rendia ante Dona Beja e, principalmente, ante a TV, cujo
poder reside em sua capacidade não apenas de democratizar as informações, mas de
legitimar mudanças de comportamento, ditadas e orientadas não mais pelas instituições
socializadoras tradicionais, como a família, a igreja, a escola, o partido político e o Estado,
mas por mecanismos de mercado, que, por sua vez, são regidos pelo comportamento do
público e medido por métodos estatísticos especializados.
Um mercado em que a unidade de referência, segundo Ester Hamburger, são os
indivíduos telespectadores que se formaram como consumidores antes mesmo de ser
cidadãos
242
.
Dessa forma, a última resistência em Araxá, se é que ainda existia, com relação a
Dona Beja, ficou definitivamente enterrada quando a extinta Rede Manchete de TV levou
ao ar, em 1986, uma telenovela inspirada nos romances sobre ela e que, diante do grande
sucesso alcançado nacional e internacionalmente, foi reprisada em 1993. Protagonizada por
Maitê Proença, Dona Beja alcançou não apenas o país, mas o mundo, ao ser exibida com
sucesso em países da Europa, Ásia e América Latina. (Figura 6)
Como o gênero mais popular da televisão, a telenovela constitui um fenômeno
especial no Brasil, onde, como já dissemos, estabelece padrões de comportamento que,
ainda que não sejam da absoluta concordância do público, funcionam como referenciais
legítimos para comportamentos e tomada de posições. Assim, a figura de Dona Beja
avalizada pela televisão poderia ser aceita sem censuras moralizantes, restrições ou temores
ao ridículo, por uma sociedade que, a pesar de seu aparente repúdio, cresceu e se
desenvolveu alimentando-se e alimentando-a, em uma simbiose que se iniciou desde as
primeiras décadas do século XX.
Mas, ainda que tenham-lhe escolhido porta-bandeira do feminismo e sua milícia
tenha-lhe vestido com o uniforme de luta, a novela “Dona Beija” consagrou a fórmula
tradicional: a moça bela, mas pobre, humilhada e rejeitada pela sociedade; que consegue
reverter esse destino ao retornar poderosa e triunfante, encarnando o sonho de justiça e
242
HAMBURGER, Esther. op. cit. p. 459.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
114
ascensão social perseguidos pelos seus espectadores. A esse respeito, as reflexões de Esther
Hamburger são bastante oportunas, ao dizer que:
Quando uma novela galvaniza o país, atualiza seu potencial de
sintetizar uma comunidade imaginária cujas representações, ainda que
distorcidas ou sujeitas a variações de interpretação, são verosímeis, vistas e
apropriadas como reais e legítimas.(...) A representação de uma sociedade
ou comunidade imaginária, mais branca e mais susceptível à ascensão
social que a sociedade real, foi construída sob o signo da superação do
atraso, personificado freqüentemente pela figura dos patriarcas e os
personagens femininos limitados ao universo doméstico
243
.
243
Idem. p. 443.
Figura 1. Antigo sobrado da Beja. Detalhe da platibanda.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
115
O escultor Pigmaleão morador de Chipre, ilha célebre por suas
cortesãs, resolveu viver em celibato até encontrar a mulher física e
moralmente perfeita. Mas como sonhasse constantemente com uma beleza
de caráter diferente, esculpiu no marfim uma estátua feminina onde uniu
a pureza de expressão e de formas.
Era tão perfeita sua obra que por ela se apaixonou!
No dia da festa de Vênus, celebrada com magnificência na ilha,
Pigmaleão dirigiu-se ao templo da deusa que encontrou perfumado com
incenso e cercado por novilhas brancas, cujas pontas do pelo haviam
dourado antes de sua imolação no altar.
Grande deusa! exclamou-, me tornai marido de uma mulher tão
perfeita como a estátua que esculpi!
E a Deusa comovida, não encontrando em Chipre tal mulher, deu
vida à estátua que lhe concedeu como esposa, assistindo pessoalmente ao
himeneu
244
.
O texto sobre Pigmalião, apaixonado pela mulher imaginada, nos pareceu
apropriado para abrir o capítulo em que discutimos o surgimento de Dona Beja e sua
cristalização no imaginário social, com toda carga de afetividade e de emoções artísticas
que isso supõe.
Nesse processo intervém as imagens físicas ou morais, criadas e recriadas,
retratadas e divulgadas através da literatura e da iconografia em suas diversas modalidades,
motivo pelo qual consideramos de fundamental importância conhecê-las assim como a
“matéria-prima” que se encontra nas origens de sua criação.
Mas, ao tentarmos esse conhecimento e a leitura das obras que se ocuparam de
nosso mito, não pretendemos esgotar as possibilidades de uma discussão sobre estilos,
244
Cf.Pigmalião e sua Estátua. Disponível em: http://www.terravista.pt/meco/5950/venus.htm. Acesso em:
17 de nov. de 2001.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
116
técnicas ou mecanismos das linguagens literárias ou iconográficas, senão acompanhar o
processo que levou essas formas de linguagem a incorporarem Dona Beja em sua temática,
resultando dele sua divulgação e assimilação por parte do público.
Não é a discussão literária ou a iconográfica que nos interessa neste momento. Uma
análise do mito, desde essas perspectivas e suas diversas modalidades fugiria à nossa
proposta e a nosso campo de ação, apontando, por si só, grandes possibilidades para outros
trabalhos, sejam eles de mestrado ou doutorado. O que nos interessa aqui é a atuação dos
autores e o papel que suas obras desempenharam no processo de construção do mito, este
sim, o objeto de nossa pesquisa.
Por outro lado, a questão em torno da validade da literatura e a ficção literária como
ferramentas úteis à pesquisa histórica está, acreditamos, suficientemente debatida e
registrada pela historio grafia da cultura e seus teóricos, que vêm sustentando repetidamente
sua “confiabilidade”, assim como a pertinência de sua utilização.
Essa confiabilidade e pertinência se apóiam na convicção de que o conhecimento
literário ou artístico é tão importante quanto o “científico” para a compreensão do mundo, e
a literatura, uma das formas de conhecê-lo e descrevê-lo usando a linguagem de forma
imaginativa para representar as ambíguas e imbricantes categorias da vida, do pensamento,
das palavras e da experiência
245
.
Acaso pergunta Roger Chartier inspirado em Hyden White- ¿alguien podria creer
seriamente que el mito y la ficción literaria no se refieren al mundo real, no dicen verdades
sobre él y no nos proporcionan un conocimiento útil de ese mundo real?
246
. Inúmeras
argumentações têm sido emitidas na historiografia cultural, à guisa de resposta para
questionamentos dessa natureza, pelo que consideramos dispensável nos determos nelas.
245
Cf. KRAMER, Lloyd S. Literatura, Crítica e Imaginação Histórica. In: HUNT, Lynn. A Nova História
Cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. pp. 171-173.
246
CHARTIER, Roger. La Historia entre representación y construcción. Conferencia de encerramento
23 de Octubre. Atas. Seminário Internacional Dimensões da História Cultural Belo Horizonte: Unicentro
Newton Paiva, 1999. p. 96. Dentre os historiadores, Chartier é um dos que se tem destacado na discussão
em torno da literatura/história, como pode ser conferido, por exemplo, em: CHARTIER, Roger. As
práticas do escrito. In: CHARTIER, Roger et alii. (org.). História da Vida Privada no Ocidente III. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. ------ Textos, Impressões e Leituras. In: HUNT, Lynn. (org.). Nova
História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, entre outros. Ainda, dentro dessa discussão,
encontramos também a WHITE, Hyden. Meta-História. A Imaginação Histórica do Século XIX.
Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: EDUSP, 1994; ------ Trópico do Discurso. Ensaio sobre a
crítica da Cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
117
Mas, com relação às imagens de Dona Beja que aqui referimos, traduzidas e
representadas pela iconografia e a literatura, devemos lembrar que estamos falando de
construções baseadas em informações de natureza perceptiva e desenvolvidas no
pensamento.
As imagens não são algo concreto, fazem parte e são criadas como parte do ato de
pensar e não são passivas, pois constituem a forma como em momentos diversos,
percebemos a vida social, a natureza e as pessoas que nos circundam
247
. Através das
imagens são atribuídas qualidades físicas ou morais àquilo que se conhece, sejam pessoas
ou objetos, embora essas imagens nem sempre correspondam à realidade.
A realidade constitui a existência mesma das coisas ou das pessoas,
independentemente de como são percebidas e significadas; as imagens que se constroem
sobre elas são determinadas pelo corpo de valores sociais e culturais dentro dos quais
ocorre essa construção, sendo, nesse sentido, também representações
248
.
Dessa forma, a multiplicidade de imagens que se associam a Dona Beja corresponde
e está relacionada tanto com os diferentes momentos e situações em que surgiram, quanto
com os sentimentos, desejos e expectativas de quem assim a concebeu. Mais do que a
realidade de Dona Beja como sujeito histórico, suas imagens traduzem as realidades dos
momentos e dos sujeitos que a pensaram e retrataram, assim como da sociedade que as
incorporou, nossa tarefa é historicizar o surgimento dessas imagens.
Preto, Branco e em Cores: o fator racial na estética de Dona Beja
Na literatura produzida em torno do mito Dona Beja, o texto fundador seria
retomado na década de 1950, quando foram publicados os primeiros romances sobre ela, o
que não o exclui como fonte de quase tudo que a imprensa e outros memorialistas da região
já tinham publicado a seu respeito.
247
Cf. LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1997. pp.
10 - 11.
248
Idem. Idem. Para o conceito de representação ver: CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre
Práticas e Representações. Tradução de Manuela Galhardo. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1990.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
118
No campo da iconografia, a pintura passou a retratar Dona Beja na década de 1940,
logo, antes dos romances, o que faz necessário remetermos, de novo, a esse relato para
localizar a matriz de onde surgiram as imagens que a apresentaram sempre branca, loira e
de olhos claros, podendo ser verdes ou azuis e onde a beleza, expressada de forma
superlativa, era sempre a tônica dominante. Acreditamos que essa decantada beleza estava
intimamente relacionada e caminhava de mãos dadas com sua, também célebre, condição
de prostituta de luxo.
Sua personalidade e atuação como sujeito histórico já haviam sido julgados,
segundo os critérios morais e de conduta da sedutora, em oposição ao da madona, mas,
como musa, sua imagem física seria consagrada no século XX pelos artistas, fossem eles
pintores, escultores, escritores ou poetas que passaram a retratá-la através das modalidades
que praticaram com maior ou menor talento e sucesso, conforme as técnicas, os padrões
culturais e estéticos vigentes.
Mas, se não há descrições documentadas ou registros iconográficos contemporâneos
que fundamentassem essas imagens, como foi que se chegou até elas? Nosso propósito é,
portanto, discutir os mecanismos que produziram essa estética de Dona Beja e que
acreditamos, em princípio, fruto da fantasia e dos devaneios de seu “Pigmalião”, o que nos
levará, novamente, a percorrer os caminhos trilhados por Sebastião de Afonseca e Silva,
suas concepções e convicções pessoais, como referências que eram de uma determinada
época.
Embora o relato fundador de Dona Beja
estivesse, como sabemos, baseado na
memória de algumas pessoas que a teriam conhecido pessoalmente e desde então tenham-
lhes atribuído frases que se tornaram sentenças sobre sua beleza
249
, essas informações
dificilmente poderiam ser complementadas ou confrontadas com descrições ou registros
iconográficos, dos quais não localizamos nenhum da época. Por outro lado, a memória tem
seus próprios caminhos, atalhos e armadilhas, que nem sempre todos os que se valem dela
249
A frase “A natureza fez a Beija e quebrou o molde” é atribuída ao Dr. Eduardo Augusto Montandon e se
encontra impressa na embalagem de um sabonete, fabricado em Araxá, a base da lama e do sal sulfuroso
do Barreiro. Recentemente, a frase foi também tema de um “debate”, realizado em um jornal local, com a
participação de doze profissionais de diversas áreas que deveriam se pronunciar sobre sua veracidade ou
seu caráter fictício, este, produto da fantasia de seu suposto criador. Trocando em miúdos. O Tempo.
Araxá, 14 de set. de 2000. p. 2.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
119
para “remexer” o passado estão preparados para enfrentar, o que torna indispensável uma
série de reflexões que empreendemos a seguir.
O único documento conhecido que se refere à sua aparência física, o Censo
Provincial de 1832, apenas a relaciona como branca e ignoramos se teria chegado a
conhecimento de seu “criador” que, certamente, se fiou da opinião de suas fontes orais,
acrescentando as que foram de suas preferências pessoais, enriquecidas pela sua
imaginação.
Por outro lado, existem diversos fatores, relacionados intimamente, que devem ser
considerados em uma análise que pretenda destrinchar os “mistérios” da origem do aspecto
físico de Dona Beja. E quando dizemos “mistérios” o fazemos baseados nos debates,
dúvidas e perguntas tantas vezes formuladas e ouvidas por nós sobre a veracidade de sua
beleza ou de sua aparência física.
São diversos os fatores que intervieram em sua definição. Em primeiro lugar, deve-
se considerar o passado colonial brasileiro quando se introduziram e adotaram os padrões
estéticos que iriam vigorar no país. Outro fator, relacionado com o anterior, pode ser
encontrado no sistema escravista, que marcou, de forma indelével, as relações com a
população negra, fosse com os escravos ou com seus descendentes, estabelecendo uma
série de valores que se dispersaram e instalaram na sociedade. Para finalizar, e certamente
influenciada pelos anteriores, estavam as preferências pessoais de seu idealizador.
Através de sua metrópole e com relação às mulheres, o passado colonial legou ao
Brasil dos brancos também os “padrões” morais e estéticos ou modelos dominantes, já
mencionados anteriormente, que se encontravam presentes em todos os registros culturais
do “Velho Mundo”. Com ligeiras variações esses mesmos modelos foram traduzidos por
diversos autores que criavam suas próprias tipologias inspiradas nos estereótipos femininos
historicamente construídos e sancionados nas sociedades ocidentais. Em 1889, C. de
Varigny dizia:
Cada raça desenvolveu sua concepção particular da mulher. Para os franceses
representaria o ideal, para os espanhóis 'Nossa Senhora', para os italianos 'uma flor' e
para os turcos 'um utensílio de felicidade'
250
. Produto de uma visão eurocentrista, essa era
250
C. de Varigny. Apud GAY, Peter. A Educação dos Sentidos. Tradução de Per Salter. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 138.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
120
uma das fórmulas para retratar o suposto tratamento que cada povo dava às mulheres e que
supunha reservar, apenas às orientais, o papel de mulher objeto.
No terreno artístico, desde finais do século XIX, os modelos franceses da “Belle
Epoque” exerciam sua influência na cultura nacional transportando para o país uma estética
“decadentista” que freqüentemente encontrava inspiração em temas e figuras bíblicas ou
mitológicas. Isso pode ser percebido no relato de 1915, com suas referências a Vênus, às
estátuas de mármore gregas, às sereias e com palavras francesas como “cocotte”, utilizadas
para comparar e descrever metaforicamente a beleza irresistível de Dona Beja e sua
condição de meretriz
251
.
Por outro lado, o passado escravista estabeleceu valores que, embora nem sempre
fossem assumidos ostensivamente em lugares públicos onde pudessem ser considerados
inconvenientes, estavam fortemente arraigados e eram expressos livremente na intimidade
dos ambientes domésticos e familiares.
Para Lilia Moritz Schwarcz, embora o Brasil não praticasse uma política
discriminatória oficial depois da abolição, o preconceito e a exclusão sempre foram
intensos, ainda que camuflados. Ela vê no país um tipo singular de racismo silencioso (...) e
sem rosto que lança para o terreno do privado o jogo da discriminação
252
.
A idéia popularmente sancionada de “quanto mais branco melhor” definiria bem o
desejo de “branqueamento” da classe média brasileira e a posição desigual entre negros e
brancos que, em sua fase mais aguda, teria visto a mestiçagem como sintoma da falência da
nação
253
.
Por isso, ao buscarmos as causas para a “invenção” visual de Dona Beja, segundo as
imagens conhecidas e aceitas, devemos considerar o fator racial que, certamente, também
contribui para explicar seu êxito. Para ser aceita, ainda que prostituta -ou justamente por
isso-, a cor era importante. Dona Beja deveria ser branca, de preferência loira, traços que
251
Para Jung a sereia constitui um estágio instintivo de um ser mágico feminino que pode ser chamado de
“anima”. Mesmo papel desempenhado pelas “ondinas”, as ninfas dos bosques e as graças, que atordoam
os jovens, sugando-lhes a vida. Para ele, essas figuras seriam projeções de estados emocionais nostálgicos
e, na visão dos moralistas, de fantasias condenáveis. JUNG, Carl. G. op. cit. pp. 34-35.
252
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade.In: -----
(org) História da Vida Privada no Brasil IV. op. cit. p. 182.
253
Idem. p. 176.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
121
mais a aproximariam do modelo europeu, “objeto do desejo” de uma classe média em
ascensão, “tingida” de negro com mais freqüência do que supunha ou estaria disposta a
admitir; preço a pagar pelos mais de trezentos anos de escravidão. Uma classe média que
tinha, em Araxá, um competente porta-voz.
Em um dos manuscritos de Sebastião de Afonseca e Silva, onde pela primeira vez
traçava os contornos físicos de sua musa, a descreve de olhos azuis, cabelos pretos, pele
clara e aveludada, porte regular, linhas e contornos também regulares, que mereciam de
todos os que a viam o título de beleza nunca antes igualada pelas suas conterrâneas
254
.
Na publicação de 1915, essa descrição adotou a seguinte forma: Reunia todos os
encantos de uma beleza ideal à esplêndida primavera (...) e no todo harmonioso das linhas
e dos contornos, lembrava as formas divinaes (sic) da escrava grega que Paros
255
imortalizou no mármore
256
.
Essa imagem, apenas delineada, foi sendo lapidada por ele ao longo de outras
anotações, onde foi-lhe acrescentando ou retirando as características que seu gosto e
devaneios lhe ditavam. Os cabelos, que a princípio foram descritos “pretos e longos”, foram
clareando até passar a “pretos-castanhos” e finalmente, “aloirados”
257
. Mas, o que
definitivamente não mudou foi a suposta aversão de Dona Beja pela gente de “cor” e é ali
onde entra o fator racial na invenção de sua estética.
Se no relato publicado Afonseca se limitava a descrevê-la fisicamente e a compará-
la com Vênus, conferindo-lhe os atributos por ele sonhados, são suas notas pessoais que
nos dão a conhecer, melhor, suas posições racistas que transferiu para sua criatura e que
foram exploradas depois, de forma mais acentuada, na literatura. Não podemos esquecer
que essas notas foram, também, fonte declarada de quase todos os escritores que nelas
beberam para compor a personagem central de seus romances.
Nesse mesmo manuscrito, ao referir-se ao meio social de Araxá nos tempos de
Dona Beja, o autor o descreve formado em sua maioria por negros e mulatos, gente a quem
254
AFONSECA e SILVA, Sebastião de. Manuscrito. s/d. AMDB.
255
Ilha grega dedicada na antiguidade ao culto de Vênus e famosa pela qualidade de seu mármore.
256
CARDOSO, Clodion; AFONSECA e SILVA, Sebastião de. op. cit. p.28.
257
SILVA, Sebatião de Afonseca. Anotações manuscritas. AMDB/FCCB. Araxá, MG.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
122
uma suposta origem nobre da moça, levava a “detestar”. Mas, o racismo do “criador” de
Dona Beja ficou público e explícito em um folheto de sua autoria, publicado por volta da
década de 1930, em que expõe suas teorias sobre o “tublodismo”, suposto neologismo que,
em sua opinião, deveria ser introduzido na língua brasileira para “exprimir” os resultados
da miscigenação e as individualidades dos mestiços, mulatos, cabritos, caboclos, como
portadores de dois sangues
258
. O anglicismo era derivado da associação das palavras “two”
e “blood”: dois e sangue, respectivamente, que juntas e aportuguesadas, produziram
“tublode”.
Desconhecemos a repercussão de suas teorias, mas refletem bem as preocupações e
questões presentes em uma sociedade empenhada em identificar suas raízes e preocupada,
especialmente, com seu “branqueamento”. O folheto foi citado por Hildebrando de Araújo
Pontes, entre as fontes consultadas para sua obra já mencionada, a “História de Uberaba e a
Civilização do Brasil Central” e o próprio Afonseca disserta, detidamente, sobre as
questões raciais usando como referência seus filhos, tentando identificar neles traços ou
resíduos que acreditava exclusivos dos negros.
Não é difícil entender, portanto, que na literatura produzida com a temática de Dona
Beja, uma de suas rivais e inimigas fosse Josefa Pereira, prostituta de segunda, grande
prejudicada pela sua concorrência, que lhe reservava apenas os “restolhos” de uma clientela
“barata”, como já vimos no primeiro capítulo.
Esse nome não é fictício nem parece haver sido escolhido aleatoriamente. Josefa era
realmente vizinha de Anna Jacintha e como ela, andou às voltas com um processo
judiciário, que também ganhou, em torno de uma herança. Mas, um detalhe importante:
Josefa era negra.
Em 1838, em um dos documentos dos autos do processo, o advogado de sua
oponente referiu-se a ela como “Josefa Pereira mulher parda” o que provocou uma reação
interessante. Seu advogado respondeu com uma ação contra o colega, solicitando uma
multa e sua suspensão das atividades profissionais, alegando que esse adjetivo era
desnecessário e somente com o intuito de humilhar a sua cliente, que mesmo não sendo
uma “européia”, era uma cidadã brasileira “honra” que muito prezava
259
.
258
Documento avulso. AMDB/FCCB. Araxá, MG.
259
Inventário de Desidério Mendes dos Santos. 1838. Caixa nº 35. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
123
Ao não se poder negar a “negritude”, conseqüência de uma ascendência escrava,
invocava-se a cidadania que, em substituição da pele branca, também poderia ser motivo de
orgulho e de merecimento a um tratamento digno e justo.
Mas Josefa ganhou a causa e a herança o que a tornou “dona e senhora”, entre
outras coisas, de um sobrado vizinho ao de sua contemporânea Anna Jacintha de São José e
daí, ao igual que as irmãs Cândidas, também suas vizinhas, até ser conduzida ao prostíbulo
foi apenas um passo, na imaginação do povo, dos escritores e, certamente, do “informante”
que os alimentava.
No processo não se encontraram referências que pudessem lançar dúvidas sobre sua
“honestidade”. A união livre e consensual que Josefa e seu marido mantiveram por anos,
legalizada ao final da vida dele, na que poderia estar apoiada qualquer denúncia sobre sua
conduta, não era, como sabemos, algo inédito na sociedade brasileira do século XIX e
Araxá não era a exceção. As uniões mistas tampouco.
Ao contrário de Anna Jacintha, Josefa tinha uma ficha “limpa”e uma filiação
legítima: natural da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Desemboque, onde foi
batizada, era filha legítima do capitão Manoel Gonçalves da Silva e de Anna Pereira da
Silva (...). Viúva do Alferes Desiderio Mendes dos Santos, com quem fui casada em face da
Igreja e por carta de ametade na forma da Lei do Reino...
260
Mas, como Anna Jacintha, Josefa também transgrediu as normas em que se
apoiavam as duas grandes instituições sociais: a propriedade e a família. Alterou a ordem,
as relações familiares e de poder ao enfrentar a mãe de seu marido, branco, em função de
uma herança. Tudo indica que na construção do mito, ela era necessária como contraponto
da prostituta branca e de luxo que teria sido Dona Beja.
Isso não significa que toda prostituta branca fosse de luxo, mas, uma negra
dificilmente o seria. Foi precisamente a exceção um dos motivos que tornaram Xica da
Silva também um mito, sendo as duas mulheres temas de romance de um mesmo autor,
como veremos mais adiante.
Por ter seu nome incluído nos autos de um processo judiciário, envolvendo
interesses da família e da propriedade, Josefa Pereira, “mulher parda” foi transportada para
260
Testamento de Josefa Pereira da Silva. 18 de fev. de1842. Caixa. Nº 61, fls. 1-3. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
124
o bordel, como prostituta “barata”, onde pudesse realçar a figura “limpa” e branca de Dona
Beja.
A esse respeito, a posição do “pigmalião” de Dona Beja e suas preferências
pessoais, refletiam as da sociedade que lhe deu respaldo. No Brasil, diz Marilena Chauí, as
fantasias sexuais repressivas estão carregadas de mitologia, preconceito e racismo. A
imagem da prostituta superior, limpa, experiente, professora de sexo, está fortemente
associada à prostituta branca de origem européia
261
. Se Dona Beja foi concebida branca,
loira e de olhos claros, imagem com que foi retratada na iconografia e na literatura, foi
porque assim era solicitada pela sociedade.
Significativamente, foi de uma mulher a única voz discordante com relação a seu
aspecto físico. Ao notar a cor “triguera” de uma bisneta que conheceu na juventude, a
escritora araxaense Maria Santos Teixeira teria recebido dela a informação de não existirem
loiros na família de Dona Beja. Essa bisneta teria ouvido de uma ex-escrava a seguinte
descrição, que a escritora transcreveu imitando o antigo “argot” dos negros: era morenona,
dos cabelos pritinho, que inté briava cumo é qui ela haverá de sê crara si na faminona qui
ela dexou tudo é trigêro?
262
.
Essas informações a teriam feito mudar de opinião. Acatou a nova aparência que lhe
era descrita o que, aparentemente, não afetou a Sebastião de Afonseca, que fez a
apresentação do livro publicado em 1965. Como mulher, a autora parecia imune ao apelo
erótico de Dona Beja, que inundava as fantasias masculinas com um aspecto físico de
inspiração européia. Contudo, nenhum desmentido poderia abalar a certeza daquela
aparência; prevaleceu a “ficha” com a imagem da jovem prostituta, branca, loira, de olhos
claros, segundo se pode conferir na iconografia e na literatura.
Cores e Formas do Mito
As imagens iconográficas traduzem não apenas as formalidades técnicas e estéticas
vigentes em uma sociedade e numa época ou a criatividade e o talento pessoal do artista,
261
Cf. CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida. 12ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1991. p. 82.
262
TEIXEIRA, Maria Santos. O Solar de Dona Beija. Belo Horizonte: Gráfica Santa Edwiges, 1965.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
125
mas, principalmente, as idéias, as representações e os valores presentes no imaginário
social, retratados simbolicamente através de imagens, alegorias ou histórias, que os artistas
reproduzem em suas obras.
Já dissemos anteriormente que, como representações, tanto a imagem como o
símbolo, são definidos pelas relações sociais e não significam substituições puras dos
objetos apresentados na percepção, mas são, antes, re-apresentações (...) do objeto
percebido de outra forma, atribuindo-lhe significados diferentes, mas sempre limitados
pelo próprio objeto que é dado a perceber
263
.
Resumindo, os símbolos não são a substituição do objeto, apenas o fazem presente
por meio de outro, por isso, e para entender o papel que desempenham na iconografia,
procuramos na bibliografia especializada o significado simbólico de diversas figuras como
cavalos, amazonas, estátuas eqüestres, fontes, ninfas, luvas, chapéus e sombrinhas,
elementos constantes nas composições com temática de Dona Beja.
Segundo podemos constatar, como musa, Dona Beja inspirou inúmeros artistas,
fossem eles profissionais ou leigos, mas, neste trabalho, analisaremos somente as obras
mais conhecidas por encontrar-se expostas em espaços públicos ou acessíveis aos
interessados. Muitas outras devem permanecer anonimamente penduradas nas paredes das
salas familiares, desconhecidas e fora do alcance dos olhares estranhos
264
.
Nessas obras encontramos uma série de figuras e objetos cujo significado
descrevemos conforme nos foi indicado pela bibliografia específica, na convicção de que
sua inclusão nas referidas obras não foi gratuita nem acidental senão que reflete, de uma
forma ou outra, o inconsciente não apenas do artista como também da sociedade que ele
representa. Para isso, nos apoiamos em historiadores que acreditam ser a psicologia
também
uma disciplina válida para conhecimento histórico, assim como é imprescindível
para o conhecimento do funcionamento da mente humana
265
.
263
LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense. 1997. pp. 12-
16.
264
Durante nossa pesquisa tivemos a oportunidade de conhecer algumas dessas obras e seus artistas
anônimos.
265
Cf. GAY, Peter. Freud para historiadores. Tradução de Osmyr Faria Gabbi Jr. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989. O historiador, que também é psicanalista considera que a estas alturas, as conquistas da
psicologia no campo da mente humana são tão conclusivas, que não deixam espaço para dúvidas. Por
outro lado, Georges Devereux, em sua obra Mulher e Mito, já citada, valeu-se da psicologia para analisar
Rosa Maria Spinoso de Montandon
126
Como a Vênus, evocada por Sebastião de Afonseca, Dona Beja representaria as
forças irreprimíveis da fecundidade (...) a deusa que sublima o amor selvagem, integrando-
o a uma vida verdadeiramente humana
266
. A Amazona simboliza, entre outras coisas, a
mulher guerreira que governa a si própria, matadora de homens: deseja tomar seu lugar,
rivalizar com eles, combatê-los em vez de completá-los
267
. Fontes, Água e Banho
possuem significados próximos: A água da fonte é a água lustral, a própria substância da
pureza
268
; para Jung, a fonte é o arquétipo da imagem da alma
269
como origem da vida
interior. O Banho tem virtudes purificadoras e regeneradoras. O primeiro dos ritos que
sancionam as grandes etapas da vida, em especial o nascimento, a puberdade e a morte
270
.
Caixas ou Cofres são símbolos femininos interpretados como representações do
inconsciente e do corpo materno. Contêm segredo
271
. Na psicanálise, o Cavalo é ligado à
impetuosidade do desejo. O cavalo branco representa o instinto controlado, dominado,
sublimado. Constitui um dos arquétipos fundamentais da memória humana. É montaria,
veículo, nave; é seu destino, portanto inseparável do destino do homem
272
. Luvas, Chapéus
e Sombrinhas apresentam também significados semelhantes: emblemas de investidura,
signos de poder da soberania ou realeza. O ato de tirar o chapéu é um ato de submissão.
A leitura iconográfica que empreendemos está apoiada na metodologia indicada por
Panofsky
273
para quem uma análise correta, capaz de penetrar no significado intrínseco e no
os mitos femininos na identificação de um suposto regime matriarcal ou matrilinear que teria existido nas
sociedades pré-gregas. Considerava que, como os indivíduos, as sociedades também passam de um
matriarcado na infância, para o patriarcado na vida adulta.
266
CHEVALIR, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores e números. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 14.
267
Idem. p. 43.
268
Idem. p. 446.
269
Idem. Idem.
270
Idem. p. 119.
271
Idem. pp. 103-112.
272
Idem. p. 843.
273
PANOFSKY, Erwin. Estudos de Iconologia. Lisboa: Estampa, 1986. pp. 17-41.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
127
conteúdo de uma obra deve começar por uma descrição prévia dos aspectos formais que
nela se encontram.
Cientes de nossas limitações, ao adentrarmos num campo que não nos é familiar,
fazemos animados pelo autor, para quem qualquer um pode realizar uma análise dessa
natureza, partindo de sua maior ou menor experiência e equipagem cultural.
Qualquer pessoa pode reconhecer a forma e o comportamento dos seres humanos,
animais ou plantas e sabe distinguir entre um rosto zangado e uma expressão alegre
274
.
Embora o mesmo autor reconheça que em muitos casos apenas a experiência
pessoal não é suficiente para a apreensão do significado completo de uma obra, tentamos, a
seguir, uma leitura daquelas mais conhecidas e representativas em cada período e
modalidade, apoiados no conhecimento que temos da história, dos artistas e das condições
que cercaram sua criação.
Por volta de 1942, Joaquim Rocha Ferreira, um dos artistas que foram contratados
para ornamentar o interior das Termas, do Grande Hotel e da Fonte Dona Beja, no Barreiro,
incluiu nossa personagem em um dos painéis sobre a história e a evolução do balneário,
com a seguinte legenda:
1800. A fama e a beleza de D. Beja venciam as distâncias e traziam para Araxá
admiradores residentes nas mais afastadas regiões do país. 1890.
Na cena, encerrada entre duas datas, marco utilizado pelo artista para representar a
período histórico dominado pela sua figura, podemos vê-la em seu vestido rosa, cavalgando
ereta, em posição feminina, usando luvas e chapéu e segurando uma sombrinha. Dirige-se
às fontes à frente de um séqüito de escravos e admiradores, também a cavalo. Um pouco
adiante, um cavalheiro certamente um forasteiro-, de pé, formalmente vestido, aguarda sua
passagem e a cumprimenta, galante, “chapéu na mão”, enquanto seus dois criados, de libré
vermelha, lhe oferecem flores e presentes
275
. (Figura 7)
A história é o tema dominante, não apenas nos painéis que ornamentam as paredes
do nível inferior e superior da rotunda, mas, também, dos vitrais da cobertura. O artista
reservou o primeiro nível para retratar a evolução das fontes e o segundo, ao tema do banho
274
Idem. p. 23.
275
No Museu Histórico de Araxá, Dona Beja, existem dois protótipos em escala reduzida de dois desses
painéis, um deles o que descrevemos.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
128
nas diversas civilizações antigas como as: a indiana, egípcia greco-romana, etc. Nos vitrais
foram representados os períodos geológico, pré-histórico e histórico do Barreiro.
Dona Beja é também o tema de um mural de azulejos cor sépia em um recanto dos
corredores da ala esquerda, no térreo do Grande Hotel. Numa cena que pretende flagrar o
cotidiano, pode-se ver ginetes e pessoas de ambos sexos circulando na praça, em frente a
uma igreja, levando cestas na cabeça e nas mãos ou conduzindo mulas. Em primeiro plano,
ela, com um sorriso discreto no rosto, conduzida numa liteira por dois escravos de cabeça
baixa, enquanto é observada por um cavalheiro que parece escoltá-la, e por uma mulher que
tece algum comentário com a mucama que a acompanha. (Figura 8)
Ainda do mesmo artista, no interior da Fonte Dona Beja, outro mural de azulejos, de
cor azul coroa uma pequena gruta de pedras de onde jorram as águas. No lado esquerdo
quatro peões descansam e se refrescam na mata junto a um lago.
À direita, Dona Beja é surpreendida durante o banho. Como uma ninfa, figura
mitológica dos bosques, sentada à beira de sua fonte, em um gesto de contida sensualidade.
De olhos baixos, branca e nua, recebe os cuidados da mucama que lhe estende a toalha para
enxugar seu corpo. Atrás dela, um cão observa fixamente o espectador, protegendo com seu
corpo um cofre quem sabe?- de segredos. Sua verdade parece ser um mistério trancado na
arca, pois contrariando sua fama, mostra-se aqui outra, quase pudica, como se estivesse
praticando um ritual. O artista conhecia, sem dúvida, a história dos banhos origem de sua
beleza-, que ela religiosamente tomava a cada dia. (Figura 9)
Dona Beja, ninfa das fontes, representa o sonho recorrente dos homens e das
mulheres em busca da beleza e da eterna juventude, acenando com a promessa de encontrá-
las nas águas “miraculosas” do Barreiro. As árvores, as plantas e os pássaros, que abundam
na paisagem, compõem a “visão do paraíso” que o artista oferece e diante da qual somos
forçados a lembrar as palavras de Delumeau para quem:
No plano psicológico não se pode duvidar de o regresso à mitologia ter sido, em
larga medida, depois do Renascimento, para a civilização ocidental, uma forma de sonhar
com a idade de ouro. As inúmeras obras que representam os folguedos das ninfas, e dos
Rosa Maria Spinoso de Montandon
129
pastores, o trunfo de Baco, a glória de Vênus (…) recriam um país imaginário em que
jovens desnudas e encantadoras arrebatam a vista sem nunca se afanar
276
.
Para ele, nenhuma época teria sido tão imitada como a renascentista, quando se
empregaram, exaustivamente, tanto as técnicas como a imaginação para evocar os paraísos
mitológicos cujos habitantes, eternamente jovens, só pensam no amor
277
.
O elemento indicador de que essa clássica cena idílica tinha lugar no Brasil é a
indefectível escrava negra, co-protagonista indispensável em todas as caracterizações que
se passaram a fazer da personagem a partir das décadas seguintes.
A Dona Beja retratada por Rocha Ferreira no Barreiro é um produto de luxo, uma
imagem comportada e “pasteurizada”, adequada ao consumo de uma classe média
freqüentadora de balneários e estâncias hidrominerais. Para Delumeau, poesia pastoril,
mitologia e feitiçaria só existem nos sonhos dos ricos. Os sonhos dos pobres são menos
requintados
278
.
Provavelmente o quadro mais conhecido de Dona Beja foi o pintado pelo artista
araxaense Calmon Barreto, na primeira metade da década de 1970. Retratou Dona Beja
como amazona em um dos quadros mais populares e reproduzidos fotograficamente. Por
seu pincel a plácida ninfa abandonou as fontes para cavalgar vigorosa, livre e solta pelos
campos da paisagem araxaense, em meio a uma boiada que pasta indiferente. Em 1976 o
quadro ilustrou um folder turístico tornando-se alegoria da cidade e hoje se encontra no
Museu Calmon Barreto, criado para abrigar a obra do artista mor da cidade, que inclui
esculturas, desenhos, medalhas, moedas e livros.
A imagem da mulher decidida, militante e independente que se cristalizava na
época, chegou a Araxá com Dona Beja só, cavalgando em pêlo, seu destino, na forma de
um belíssimo cavalo branco ao que segurava com firmeza pelas rédeas. O discurso
feminista era endossado pelo artista que a retratou com roupas leves de camponesa,
descalça, montada como homem, fugindo da (im)posição, eminentemente feminina, mas
segundo a imagem sacramentada: branca, de cabelos loiros, soltos e “esboaçantes”.
276
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento II. Tradução de Manuel Ruas. Lisboa: Estampa,
1984. p. 17.
277
Idem. p. 18.
278
Idem. Idem.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
130
O tema parece haver sido gerado por volta de 1957 quando o artista ilustrou a capa
da primeira edição do romance “Dona Beija a Feiticeira do Araxá”, de Thomas Leonardos.
O desenho em “nanquin” mostra, com economia de linhas, uma amazona galopando
acompanhada por um pagem, também a galope. O mesmo tema foi repetido numa pequena
escultura em gesso, protótipo de uma estátua eqüestre de mármore que o artista projetou
para ser instalada em frente ao Grande Hotel do Barreiro, o que não acorreu pela falta de
interessados em financiá-la. A estatueta encontra-se num museu da cidade de Ribeirão
Preto, no estado se São Paulo
279
. (Figura 10)
Com Dona Beja, o artista traduziu sua preferência, que nunca escondeu, por
mulheres loiras e amparado na convicção de que, sendo um produto da imaginação de
Sebastião de Afonseca, poderia retratá-la com toda liberdade, segundo ele, diferente à
maioria das mulheres de Araxá. Nela plasmou os atributos físicos de uma jovem vizinha
que diariamente passava em frente à sua casa, a caminho de seu trabalho
280
. O gosto e as
fantasias pessoais do artista novamente traduziam os sonhos da coletividade e às
expectativas sociais, como indica a transformação do quadro em alegoria da cidade.
É interessante notar que artistas e escritores deram atenção diferenciada a alguns dos
elementos presentes no Mito Dona Beja. Temas como o banho e figuras, como da amazona
e a ninfa, foram explorados por uns e outros; já o rapto, elemento fundamental para a
construção do mito, foi ignorado pelos artistas plásticos, mas bastante explorado na
literatura.
O rapto constitui uma das formas de violação que, desde a antiguidade, se
encontram mais freqüentemente presentes no imaginário masculino. A isso se devem as
numerosas representações iconográficas que existem sobre o tema
281
. Entretanto, o tema do
rapto não parece haver seduzido os artistas inspirados em Dona Beja, embora esteja nas
origens de seu mito. Certamente esse foi o motivo pelo qual a indústria editorial teve que
acudir à obra “O Rapto das Filhas de Leucipo”, de Rubens, artista flamengo dos séculos
279
Museu Histórico e Ordem Geral “Plínio Travassos dos Santos”. Ribeirão Preto, SP.
280
Barreto, Cordelia. Entrevista. Araxá: 23/ 01/ 2001. Ouvimos essa declaração feita, pessoalmente, pelo
artista. Após seu falecimento, foi confirmada por sua irmã, também artista, Cordelia Barreto, quem nos
autorizou por escrito sua citação, preferindo não gravar a entrevista.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
131
XVI e XVII, para ilustrar a segunda edição do romance de Leonardos, em uma alusão
direta ao que teria sofrido a heroína na adolescência. (Figura 11)
O mesmo não se pode dizer da figura da amazona e das cenas do banho, constantes
na iconografia e através das quais, os artistas poderiam imprimir o conteúdo erótico que se
encontra subjacente na figura prostituída de Dona Beja. Ainda que, apesar de sua nudez na
fonte, como ninfa, e da leveza de suas roupas, como amazona, a sensualidade não fosse a
tônica dominante antes da década de 1970, aparecendo sugestivamente de forma leve e
contida.
Embora já tivesse sido “carnavalizada”, Dona Beja, na iconografia, continuava
sendo um produto destinado a um público consumidor de classe média, mas, no final dessa
década, também sua sensualidade se “popularizou”, explodindo nas páginas de uma revista,
com a versão quadrinizada do romance de Leonardos e enveredando para um erotismo
acentuado que atingiu seu “clímax” na versão televisiva da década de 1980.
A capa da revista ilustrada, em cores, recebeu um tratamento mais elaborado que as
páginas internas, em preto e branco. Nela, foram usados todos os elementos que lhe eram
característicos: a amazona cavalgando, agora, um corcel negro; o banho; os amantes e no
centro, Dona Beja, de enormes olhos azuis e sorriso enigmático; os loiros cabelos
recolhidos num complicado penteado, à moda das histórias de capa e espada. Para
compensar, os desenhos em preto e branco, embora menos elaborados, receberam uma
carga maior de erotismo, protegidos, como estavam, no interior da publicação. (Figura 12)
Sob a lente das câmeras
Outro dos elementos importantes na divulgação e cristalização da imagem visual de
Dona Beja é a fotografia. Como a pintura, apresenta uma singularidade, não corresponda
diretamente à personagem, sendo realizada apenas sob sua inspiração, constituindo, assim,
o material mais abundante e acessível, cuja produção é contínua. Desde 1965 se iniciaram
as inúmeras reproduções fotográficas das diversas caracterizações que, a cada década, se
281
VINCENT, Gerard. “Uma História do Segredo?. O corpo e o enigma sexual”. In: ARIÈS, Philippe;
DUBY, Georges. (org.). História da Vida Privada. Da Primeira Guerra a nossos dias. op. cit. p. 361.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
132
fizeram da heroína, constituindo evidências importantes da intencionalidade implícita na
manutenção do mito.
Mas são duas as fotografias que merecem um espaço especial em nosso trabalho.
Não para confirmarmos ou desmentirmos sua autenticidade, senão como testemunhas, entre
outras coisas, de que as “histórias de livre flutuação”, tantas vezes mencionadas, continuam
circulando em torno da figura de Dona Beja.
Tudo indica que essas fotografias datam do século XIX ou princípios do XX, de
cujos originais teriam sido feitas as cópias doadas ao Museu, fazendo parte de seu acervo.
A primeira, em preto e branco, foi doada por alguns de seus descendentes e nela
pode-se ver uma mulher, cuja extrema juventude resistiu e não conseguiu ser encoberta pela
sobriedade das vestes e do penteado. Usa uma ampla capa preta cuja função, alguns
supõem, seria a de ocultar a gravidez e tem como único adorno um galão beirando as
mangas. (Figura 13)
Contudo, considerando a idade de Dona Beja, nascida por volta de 1800, tomando-
se como base o já mencionado censo provincial de 1832, a juventude da retratada constitui
um empecilho para confirmar sua identidade nessa fotografia.
A técnica fotográfica, segundo a qual se poderiam fixar as imagens pela luz,
somente foi desenvolvida por Daguerre e apresentada na Academia de Ciências da França
em 1839. No ano seguinte, foi introduzida no Brasil por Dom Pedro II, que se encontrava
em Paris durante a apresentação e que o tornou um entusiasta dessa técnica, passando a
praticá-la e divulgá-la. Na década de 1850, a fotografia já era bastante conhecida no Brasil,
mas foi somente na década de 1870 que se popularizou, graças à redução dos preços
provocada pela proliferação de fotógrafos profissionais e itinerantes que a levaram até o
interior do país
282
. Dessa forma, e considerando a juventude da mulher retratada torna-se
difícil pensar nela como sendo Dona Beja, de quem desconhecemos qualquer possível
viagem para alguma cidade maior que, como o Rio de Janeiro, já tivesse sido alcançada
pela técnica fotográfica logo após 1840.
Uma outra fotografia, também em preto e branco, mostra uma senhora de idade
avançada, também vestida sobriamente e com a cabeça coberta por uma mantilha.
282
MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de.
(org). História da Vida Privada no Brasil. II. op. cit. p.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
133
Conhecemos duas versões diferentes sobre sua origem que, se não chegam a se desmentir
mutuamente, nos indicam, de forma flagrante, a premeditação de seu forjamento.
A primeira versão nos foi fornecida por um idoso e bastante conhecido fotógrafo
profissional da cidade que não quis gravar seu depoimento, preferindo permanecer
anônimo. Nos diz haver sido ele o autor da fotografia, realizada a pedido de um funcionário
municipal para ser enviada a Clodovil, famoso costureiro que, em 1977, se apresentava em
um programa de TV respondendo sobre Dona Beja
283
. Seria uma cópia de outra fotografia,
não de Dona Beja, publicada em uma revista, escolhida por considerarem a roupa da
retratada um bom exemplo da moda, na época em que Dona Beja teria essa idade
284
.
(Figura 14)
Em uma outra entrevista gravada, o próprio funcionário, hoje aposentado, nos deu
uma versão diferente. Diz ele que a foto lhe chegou às mãos através de um outro fotógrafo,
membro de uma abastada família local e conhecido pela sua irreverência, que lhe teria
garantido ser de Dona Beja, mas sem indicar-lhe suas fontes. Assim mesmo, o entrevistado
datilografou, pessoalmente, a legenda: Retrato autêntico de Anna Jacinta de São José (D.
ja) tirada aos 72 anos de idade, dois anos antes de sua morte. (Do arquivo do
Historiador araxaense, Sr. Sebastião de Affonseca e Silva), anexada à fotografia antes de
fazerem a cópia que foi enviada ao costureiro
285
.
Nos arquivos mencionados não encontramos cópia dessa foto, apenas uma
referência a ela em um “esboço de índice”, destinado a uma futura publicação sobre Dona
Beja. Na entrevista, o mesmo funcionário nos disse haver datilografado, a pedido do autor,
a maior parte das anotações que pretendia utilizar em essa obra, o que, certamente, lhe deu
a oportunidade e a autoridade para incluir o nome do mesmo na fotografia em questão.
Não deixa de chamar a atenção a economia de referências a essa foto nesses
arquivos, principalmente por conhecermos o esforço despendido pelo seu dono para
localizar os objetos que pertenceram a sua heroína ou, em seu defeito, cópias fotográficas
283
Programa “8 ou 80”. Rede Globo, 1977.
284
A informação sobre a época em que a foto teria sido feita é inexata uma vez que, segundo podemos
constatar, doze anos antes, em 1965, a jornal Correio de Araxá já a publicava na primeira página para
ilustrar um artigo sobre a inauguração do Museu.
285
Di Mambro, Luiz. Entrevista. Araxá: 23 de já. de 2001.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
134
dos mesmos
286
. Tal é o caso dos móveis da alcova, que após intensa correspondência com
pessoas da família, foram localizados em São Paulo, para onde tinham sido levados pela
esposa de um médico que morou em Estrela do Sul e que os recebeu como presente de
alguns descendentes
287
. Na década de 1950, o memorialista tentou recuperá-los para
comporem o acervo de um museu dedicado a Dona Beja, conseguindo apenas a autorização
para tirar cópias fotográficas, que conservava zelosamente em seus arquivos pessoais.
Embora nosso entrevistado não o mencione, tudo parece indicar que o nome de
Afonseca foi anexado à fotografia para lhe emprestar a credibilidade que seu estatuto de
historiador lhe conferia. Esse estatuto, como sabemos, lhe tinha sido atribuído, em princípio
e de forma consuetudinária, pela sociedade local e confirmado oficialmente, desde 1934,
quando havia sido convidado pelo prefeito de Araxá, Fausto Alvim, para ser o “informante
oficial” do município
288
.
A esse convite tinha agregado outro, em 1939, desta vez de Filinto Müller, chefe de
polícia do Rio de Janeiro, a quem interessava saber, por meio de um dos representantes das
profissões liberais e como porta-voz do povo de Araxá, como este havia recebido o Estado
Novo
289
.
Como sabemos, o projeto nacionalista da época previa a nacionalização cultural
(...) através da elaboração de um conceito de 'cultura brasileira'
290
, o mesmo clima dentro
do qual, certamente, se deu a publicação, em 1946, pela Imprensa Oficial do Estado, de
uma “História de Araxá”, assinada por Afonseca e Ayres da Mata Machado.
Sebastião de Afonseca era, portanto, o porta-voz “oficioso” e oficial da sociedade,
principalmente quando se tratava da história local e de Dona Beja se falava. Nas palavras,
286
Correspondência recebida de: Maria Braga. (carta) Estrela do Sul, 18 de jul. de 1950. Nilce Giselda Jacob.
(carta) S/D. Maria. (carta) Sem lugar de origem. 4 de fev. de 1949. Correspondência enviada ao Sr. Paulo
Camillier Florescano. Diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.(duas cartas) em 4 e 5 de set
de 1964. AMDB.
287
Os móveis pertencem aos descendentes do Dr. Max Rudolph. Em correspondência enviada a Afonseca, um
dos donos informava que somente a cama era original; a cômoda e a penteadeira seriam reconstituições
realizadas para compor o conjunto. AMDB.
288
Documento nº 112, pasta 2. AMDB.
289
Documento nº 115, pasta 2. AMDB.
290
MENDONÇA, Sônia Regina de. op. cit. p. 345.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
135
já citadas, do jornalista que dizia ser a ele a quem as professoras procuravam quando
queriam saber sobre ela.
Dona Beja em Prosa e Verso
Quase todos os estudiosos que se ocuparam do mito nos tempos modernos
coincidem na importância da literatura para sua divulgação, cristalização e sobrevivência.
Por outro lado, a incorporação da literatura como fonte válida e pertinente em um trabalho
de pesquisa histórica nos animou para procurar nos romances e poemas inspirados em Dona
Beja, as imagens que prevaleceram sobre ela e a atitude de poetas e escritores ao explorá-
las. Partimos do princípio de que, como os artistas plásticos, também eles traduzem as
práticas sociais, os discursos e a mentalidade vigente no espaço e no tempo em que operam.
Dessa forma, como mito moderno, Dona Beja não poderia prescindir da literatura,
veículo de expressão e penetração que teria ocupado nas sociedades atuais o papel que nas
antigas, desempenhava a oralidade na transmissão dos contos, lendas e mitos. Para Mircea
Eliade, a literatura e, especialmente, o romance conferem veracidade ao mito e com isso
uma dimensão aparentemente histórica, assim, ao decompor-se a estrutura de certos
romances modernos, é possível identificar neles os elementos de antigos mitos e rituais.
Para ele, ainda que despojado de seu significado religioso, o pensamento mítico não foi
totalmente abolido, sobrevivendo, no cotidiano, comportamentos, também míticos, que
traduzem os desejos e obsessões inerentes aos seres humanos, o que não signifique que,
com isso, pretenda confirmar a sobrevivência de mentalidades arcaicas.
Mais do que a sobrevivência de seu significado sagrado, os mitos seriam a
sobrevivência da necessidade que os seres humanos, inclusive os modernos, ainda têm do
sagrado. Hesitamos -diz-, em afirmar que o pensamento mítico tenha sido abolido.(...), ele
conseguiu sobreviver, embora radicalmente modificado(...). E o mais surpreendente é que,
mais do que em qualquer outra parte, ele sobrevive na historiografia!
291
.
No campo da literatura, para Ítalo Calvino, o mito é primordialmente uma narrativa,
uma linguagem ou um discurso ao qual as palavras, mas também os silêncios, dão vida. É a
291
Cf. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. op. cit. pp, 100-102.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
136
parte escondida ou subterrânea de toda história; a zona inexplorada por ainda não se terem
sido encontradas as palavras para se chegar até ela. Nesse sentido, a linguagem literária
facilitaria o caminho uma vez que sua força radica justamente em dar a palavra a tudo que
não se há podido dizer ou permanece no inconsciente. É o redescobrimento de palavras e
histórias que foram deixadas de lado ou abandonadas pela memória individual ou
coletiva
292
.
A arte em geral, e a literatura, em especial, são consideradas por Antônio Cândido
como uma necessidade vital e inerente aos seres humanos, não apenas por facilitar ou
tornar possível a comunicação, mas a própria vida. Para ele, a criação literária corresponde
a certas necessidades de representação do mundo sendo, como toda manifestação artística,
a elaboração estética de um problema fundamental: o do ajuste ao meio físico para a
sobrevivência
293
. Tudo é possível de se tornar mito, diz Roland Barthes, desde que seja
susceptível de ser julgado por um discurso.
Assim, enquanto memória, a entrada de Dona Beja, para a linguagem escrita
conferiu-lhe uma dimensão nova. Vítima, sedutora e heroína, pode ser moldada segundo a
figura da prostituta literária, produzida pela literatura pornográfica do século XVII,
retocada no século XVIII.
A prostituta da literatura “seiscentista” era concebida como a “libertina”;
independente, bem sucedida financeiramente, sensual, experimentada, desdenhosa dos
ideais femininos de virtude e vida familiar. Figura que foi transformada, no romance
romântico e sentimental do século seguinte, na “cortesã virtuosa” que retratava a prostituta
como um ser fundamentalmente bom, vítima involuntária e desafortunada da sociedade e
dos baixos instintos masculinos. Jovem pobre, quase sempre originária das classes
populares, dominada e maltratada física e espiritualmente pela sociedade e especialmente
pelos homens. Ambos modelos poderiam corresponder a um mesmo personagem em
diferentes épocas, podendo conviver perfeitamente em um mesmo texto
294
.
292
Cf. CALVINO, Ítalo. A Combinatória e o Mito na Arte da Narrativa. In: LUCIONNI, Gennie; BARTHES,
Roland et alii. Atualidade do Mito. Tradução de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Duas
Cidades, 1977. p. 77
293
MELLO e SOUZA, Antônio Cândido de. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: Publifolha, 2000. p.
49.
294
Cf. NORBERG, Kathryn. A Prostituta Libertina: Prostituição na Pornografia Francesa, de Margot a
Juliete. In: HUNT, Lynn. (org). A Invenção da Pornografia. São Paulo: Hedra, 1999. pp. 241-272.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
137
Esse foi o caso de Dona Beja que recebeu, primeiro, um tratamento próximo à
cortesã virtuosa, vítima do rapto perpetrado pelo ouvidor, violência que, junto à
intolerância e a rejeição social, teriam determinado sua opção pela prostituição. Desse
modelo passou-se para o da “prostituta libertina”, onde parece haver-se instalado
comodamente, realizando-se com plenitude.
Reabilitada primeiro como a heroína do Triângulo Mineiro e, mais recentemente,
como a “mulher libertária” ou feminista precoce, a imagem literária de Dona Beja, em
1915, pode ter recebido a influência da “Salomé”, obra teatral de Oscar Wilde, que teve
grande repercussão no Brasil a inícios do século XX. Como a figura bíblica wildeana, Dona
Beja também se inscreve no modelo da mulher fatal, que conquistou numerosos
admiradores entre os escritores e leitores brasileiros.
Diversas obras testemunham a enorme influência que o dramaturgo inglês, na época
vivendo na França, onde também conquistou numerosos admiradores, exerceu na literatura
brasileira. Gentil de Faria aponta a “receita” de alguns dos escritores nacionais, na criação
das mulheres fatais que povoaram essas obras:
Junte-se ao texto a imagem dos imitadores e os sonhos sensuais, (e) teremos a
imagem célebre da Salomé wildeana, modelo de`mulher fatal´; perturbadora, admirada e
temida pelos homens
295
.
Em um artigo sobre o impacto dessa obra na literatura brasileira, Orna Messer
Levin
296
informa o papel desempenhado pela tradução de João do Rio por meio da revista
“Kosmos”, seguida pela edição de Garnier, em 1908. Para autora, João do Rio, um dos
cultores do “dandismo inglês” no país, criou personagens refinados através dos quais
introduziu o relato de taras, vícios e fobias, de inspiração européia. Outros autores, como
Gastão Cruls e Gonzaga Duque, também teriam se inspirado nela para construírem
personagens femininos. Todos eles seriam exemplo da prosa contaminada pela ação
295
FARIA, Gentil. A Presença de Oscar Wilde na “Belle Époque” literária brasileira. op. cit. p. 169.
296
LEVIN, Orna Messer. Mutações da Mulher Fatal. Folha de São Paulo, caderno Mais. São Paulo, 26 de
nov. de 2000.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
138
perversa da fêmea enigmática e misteriosa, que se misturou à moda helenística pela que foi
reabilitada a mulher-esfinge
297
.
Ainda segundo a autora, fosse por referências diretas a Salomé ou por indícios de
corrosão moral, a literatura daquele período teria captado os sinais de renovação que o
esteticismo decadentista oferecia, sentindo-se a presença da obra de Wilde entre escritores,
hoje parcialmente esquecidos, que produziram um tipo de “subliteratura” contemporânea ao
modernismo
298
.
Através desses autores e das revistas que os publicavam chegava até o grande
público a influência que a Belle Époque francesa exercia na literatura brasileira. Como
jornalistas, alguns deles circulavam livremente nos diversos meios sociais; eram
freqüentadores das estâncias hidrominerais, lugares onde se encontravam, em algumas
épocas do ano, as elites políticas e sociais, razão pela qual não se pode desprezar sua
penetração e a conquista de leitores no interior do país.
Não encontramos exemplares de nenhuma dessas obras nos arquivos do autor a
quem creditamos a “construção” da matriz de onde se tiraram as imagens de Dona Beja, o
que poderia dever-se a um número infindável de motivos. Mas, se não podemos afirmar e
confirmar que as tivesse conhecido, o contrário também é válido, e nada temos para provar
que nunca as leu ou que não sofreu sua influência. Como já dissemos anteriormente, no
relato original se encontram alusões a figuras mitológicas, herança também do romantismo
e expressões em francês, que freqüentavam a literatura inspirada na Belle Époque
299
.
Todas as versões literárias que foram escritas, a partir da década de 1950, têm como
base esse relato e alguns escritores admitem haver conhecido as anotações particulares de
Afonseca, a quem agradecem seu acesso.
297
Idem. p. 11.
298
Idem. Idem. Ver também: MEYER, Marilyn. op. cit. A autora chama de “segundo time” ou “sem
fronteiras”as novelas francesas e inglesas que aportavam no Brasil, precedendo e abrindo caminho para a
popularidade do folhetim. p. 17.
299
A esse respeito é muito interessante a experiência da historiadora Janaína Amado que relata em seu artigo
“O Grande Mentiroso” os misteriosos caminhos pelos quais “Don Quixote” foi lido, apreendido e
reelaborado em uma comunidade rural no interior de Goiás. Cf. AMADO, Janaína. O Grande Mentiroso:
Tradição, Veracidade e Imaginação em História Oral. In: História. São Paulo, 14: 125-136, 1996.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
139
Nem todos os elementos encontrados nessas notas foram aproveitados pelos
escritores. A maioria deles tinha na literatura uma atividade complementar à que exercia
profissionalmente e escrevia para um público familiar, motivo pelo qual, se não resistiram
completamente ao conteúdo erótico que aquele passou a dar às descrições sobre sua
personagem, as aproveitaram, moderadamente, adequando-as ao público que pretendiam
atingir.
Tem-se a impressão de que, com o passar do tempo, a convivência de tantos anos
entre “criador e criatura” havia estreitado a tal ponto da “relação” haver-se transformou em
íntima e pessoal, embora ele tivesse nascido em 1877, quatro anos após a morte dela.
Às descrições de sua beleza física e moral, resultado de seu sangue azul transmitido
pela alta linhagem de seu ignoto genitor; ao racismo e sua franca aversão ao sangue da
raça preta, o autor acrescentou habilidades ou talentos naturais que a diferenciavam de
outras mulheres; “indiscrições” e particularidades sobre seus atributos sexuais, que
somente poderia conhecer quem convivesse intimamente com ela
300
.
O autor oferecia, em primeira mão, material pornográfico explícito, porém, a
maioria dos escritores optou por dar a suas obras um caráter “biográfico”, temperado com
leves pitadas de erotismo, mas ainda apropriadas para o consumo familiar.
Se a sexualidade é inerente aos seres vivos e se as diversas modalidades que
envolvem as práticas sexuais estiveram sempre presentes nas preocupações dos humanos, o
termo pornografia, que as designa, foi usado pela primeira vez somente no século XVIII,
por Restif de la Bretonne, para referir-se menos à sexualidade e mais aos discursos por ela
gerados
301
. Por outro lado, a proximidade entre erotismo e pornografia torna difícil sua
300
Segundo Afonseca, a sábia natureza teria aprimorado os dons dessa bela entidade feminina com um
equilíbrio fisiológico que se manifestava em seus hirtos e volumosos redondos seios. O potencial de sua
genitália manifestavam-se na bela cor sempre rósea e sua epiderme clara. Seu Gyneceu era Vibrátil,
Contráctil, Sucçante (sic), Aspirante, Envolvente, Deglutante, em seu Paroxismo Libidinal. O homem que
já estava embevecido e deslumbrado pelo perfil de sua beleza física, de seu organismo, era vencido e
jugulado pelo potencial feminino semelhante a uma corrente elétrica de dez mil volts que o deixava
exangue e quase desfalecido!!! . AFONSECA e SILVA, Sebastião de. “Os sete predicados intrínsecos e
pessoais de Anna Jacintha de São José, conhecida por (Dona Beja)”. Documento nº 48, pasta 1.
AMDB.
301
GERARD, Vincent. “Uma História do segredo?: O corpo e o enigma sexual”. op. cit. p. 379.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
140
demarcação já que, grosso modo, está relacionado com o que é aceito ou condenado na
exposição da sexualidade. Robbe-Grillet diz que a pornografia é o erotismo dos outros
302
.
Ao deter-nos nas notas e nos devaneios eróticos (ou pornográficos?) de um cidadão
aparentemente apaixonado, qual Pigmalião, por sua criatura, o fazemos por entender que
não eram confissões secretas, íntimas e escondidas, escritas para ficarem guardadas no
fundo de uma gaveta, ou para serem destruídas pelo fogo, logo que seu autor tivesse
“esfriado a cabeça” ou “recuperado o juízo”.
Como já vimos, elas deram fruto. Foram escritas e assinadas para serem publicadas,
como sugere seu título “Rascunhos e apontamentos para a organização da vida de Dona
Beja”; o mesmo autor admite havê-las remetido a diversas pessoas com o intuito de vê-las
publicadas em uma biografia sobre sua heroína, permitindo seu acesso aos escritores que o
solicitaram. Foram escritas e assinadas por um cidadão, a quem a comunidade e as
autoridades tinham concedido o estatuto de historiador; depositário de sua memória e,
principalmente, porque estão, hoje, doadas pela família, nos arquivos públicos de uma
instituição cultural.
Sebastião de Afonseca e Silva foi um cidadão “acima de qualquer suspeita”. Nasceu
em Araxá em 1877, foi coletor municipal entre 1901 e 1908 e federal até 1911, quando
recebeu da Diretoria de Saúde Pública a licença para atuar como farmacêutico prático.
Casou-se, em 1896, com Dona Prosolina Porfírio com quem teve treze filhos, dentre os
quais destacou-se Dom José Gaspar de Afonseca e Silva, Arcebispo de São Paulo, falecido
em um acidente aéreo, em 1942
303
. Atuou também como conselheiro ou membro da
diretoria em entidades assistenciais e irmandades religiosas de Araxá.
Pela palavra “oficiosa” e “oficial” de Sebastião nasceu, branca e bela, Dona Beja,
“Vênus do Sertão”.
Como os artistas plásticos, os escritores, poetas e compositores também são porta-
vozes da sociedade à qual pertencem, cuja ideologia, contradições, expectativas e desejos
são traduzidos por meio de suas obras. Sua habilidade ou sucesso para transmiti-las é
302
Idem. Idem. Também ver: HUNT, Lynn. (org). A Invenção da Pornografia, op. cit.
303
AFONSECA e SILVA, Sebastião de. Notas históricas sobre o casal Sebastião de Afonseca e Silva e
Prosolina Porfírio de Afonseca. Documento nº 101, pasta 2. AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
141
refletido no êxito das mesmas, avaliado e medido pelo número de edições que recebem ou
de admiradores e leitores que conquistam.
Para Antônio Cândido, a criação literária pressupõe três grupos de fatores que
influem, de maneira variada, no processo artístico em geral: em primeiro lugar,
manifestam-se mais visivelmente na definição da posição social do artista ou na
configuração dos leitores; os segundos, na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na sua
fatura e transmissão. Esses fatores marcam os quatro momentos de uma produção artística,
assim, sob o impulso de uma necessidade interior, o artista os orientaria, segundo os
padrões de sua época; selecionaria certos temas; usaria determinadas formas e a síntese do
resultado agiria sobre o meio
304
.
Mas, nessa relação que o escritor e sua obra estabelecem com o leitor, como a
síntese do resultado que age sobre o meio, se encontra a propaganda que opera através de
um duplo processo: por um lado o produto anunciado ocupa o lugar daquilo que se deseja,
ainda que sem proporcioná-lo diretamente, por outro estabelece os padrões para os desejos
e objetos de satisfação. Assim, o sucesso do autor é também “ajudado” pela propaganda.
O papel da propaganda é transformar em ideal social até aquilo que, muitas vezes, a
moral reprime ou condena. Nesse caso, induz ao consumo do proibido, que é consentido
porque traz retorno financeiro. Por essa forma de operar a propaganda acaba escondendo a
repressão moral dando a ilusão de que alguns objetos e produtos permitem o que a
sociedade proíbe
305
.
É dentro desse contexto que entendemos o fenômeno literário em torno de Dona
Beja, cuja constante exposição conferiu a seu mito e seu nome uma representatividade e um
caráter comercial com um apelo que, enquanto objeto de desejo, poderia ser extensivo ao
produto que o usasse. Daí que em Araxá, seu nome apareça constantemente em eventos,
lugares, objetos e produtos diversos
306
(fig...) e que a indústria editorial não o tivesse
304
MELLO e SOUZA, Antônio Cândido. op. cit. pp. 20-21.
305
Cf. CHAUÍ, Marilena. op. cit. pp. 160-162.
306
Recentemente uma cachaça foi lançada ao mercado com a marca “Dona Beja” e o jornal “Correio de
Araxá” noticiou em abril de 2002, o lançamento da boneca Dona Beja em um artigo intitulado “O Mito
Dona Beja”. Foi noticiada também a realização do “1º Encontro Estadual do Mito Dona Beja”, com a
participação de representantes de Paracatu, Estrela do Sul, Formiga e Araxá, para debater o mito e as
estratégias para sua exploração turística. Correio de Araxá, 18 de abr. de 2002. Araxá, MG. No mesmo
encontro, os participantes foram informados da transformação do Museu Histórico de Araxá, Dona Beja
Rosa Maria Spinoso de Montandon
142
deixado passar despercebido, como bom produto comercial. Existe um número significativo
de publicações que ostentam no título seu nome ou fazem alusão à personagem e que, a
miúdo e quando muito, dedicam a ela apenas um capítulo.
Esse é o caso de “Da Maloca ao Palácio”
307
, publicado por primeira vez em 1950
com uma segunda edição em 1987, após a morte de seu autor. E “O Sertão dos Araxá e os
amores do D. Bêja”
308
, escrito quando seu autor, vítima de uma doença fatal, passava por
dificuldades financeiras.
“Dona Beja a Feiticeira do Araxá”
309
e “A Vida em Flor de Dona Bêja”
310
foram
lançados em 1957, receberam repetidas edições e junto com “O Solar de Dona Beija”
311
, de
1965, foram as obras em que se baseia uma análise estrutural no mito realizada em 1981
para uma dissertação de mestrado em antropologia social. A terceira delas, de 1965, tem
ainda a peculiaridade de ser a primeira obra escrita por uma mulher quando, e como
sabemos, nossa personagem tinha sido sempre “assunto de homens”. Em 1979, outra
mulher se ocupou dela e foi lançado o “Romanceiro de Dona Beja”
312
. “Dona Beija nua e
crua”
313
e “Dona Beja a Flor do Pecado”
314
são dois títulos diferentes para a obra de um
mesmo autor. A telenovela inspirou “Dona Beija em Versos”e um jornalista de Estrela do
Sul escreveu um livro, tendo como base apenas as declarações e depoimentos dos
descendentes. Um jovem espírita a psicografou, o que resultou num livro e na criação de
na “Casa da Beja”, cenário montado para oferecer ao turista uma “reconstituição” da residência da
heroína. Ao mesmo tempo, foi possível confirmar, em entrevista com o diretor de um dos jornais locais,
que toda vez que há falta de assuntos ou notícias de interesse, a figura de Dona Beja é, invariavelmente,
“exhumada”, o que a torna um tema jornalístico recorrente.
307
COSTA, Waldir Luiz. Da Maloca ao Palácio. 2ª ed. Goiânia, GO: Gráfica Popular: 1987.
308
ALMEIDA, J.G. O Sertão dos Araxás e os amores de Dona Beija. 2ª ed. São Paulo: J. Bignhard & Cia,
1967.
309
LEONARDOS, Thomas. Dona Beija a Feiticeirra do Araxá. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.
310
VASCONCELOS, Agripa. A Vida em Flor de Dona Bêja. Romance do ciclo de povoamento das
Gerais. 2ª ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1985.
311
TEIXEIRA, Maria Santos.. cit. op
312
ALVIM, Maria Lúcia. Romanceiro de Dona Beija. Brasília, DF: INL; Rio de Janeiro: Fontana, 1979.
313
D’ÁVILA, Ângelo. Dona Beija Nua e Crua Riode Janeiro: Lais Costa Velho/ CODPOE, 1992.
314
D’ÁVILA, Ângelo. Dona Beija a Flor do Pecado. Brasília DF: Códice, 1999.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
143
uma fundação legalmente constituída com o nome “Ana Beija”. Em todas as obras, a musa
inspirou os autores que se ocuparam principalmente da sedutora, mas, ao final, a redimiram
como madona.
Algumas características são comuns a elas; a maioria dos autores se declara movida
por motivos mais elevados que os interesses puramente comerciais, justificados pelo caráter
histórico ou biográfico que imprimem a suas histórias. Todos se sujeitam à versão original
e partem do relato histórico de Araxá dentro do qual inserem a personagem. Todos,
também, centralizam sua atenção na imagem da sedutora e em sua transgressão de caráter
moral, embora alguns se posicionem como defensores e outros prefiram explorar o lado
mundano e desviante.
Dentre os elementos deste mito, presentes na literatura e sempre explorados está o
rapto, violência que sempre dá espaço para comentários e considerações de ordem moral,
cuja lógica é pautada nos códigos machistas. No capítulo dedicado a Dona Beja, o autor de
“Da Maloca ao Palácio”, ao falar do rapto, habilmente transforma o vilão em vítima quando
assim se expressa:
Todos os raptos têm, no velado consentimento da vítima, se não sua co-autoria, a
razão de seu êxito e da consumação de seu fim passional. Daí ser a vítima aquele que o
sente e não quem dele participa
315
.
Mentalidade ainda não superada nem no senso comum nem nos tribunais, quando
freqüentemente, se vê a mulher, quando vítima de violência sexual, passar de acusadora a
acusada e que está por trás, inclusive, dos autores que justificaram as culpas de Dona Beja
assumindo o papel de defensores contra os que insistiam em expô-las “impiedosamente”.
Ao justificar sua conduta, admitiam implicitamente uma culpa, daí a necessidade de defesa.
Contudo, houve aqueles que, sem defendê-la ou culpá-la, simplesmente deixavam-se levar
pela sua “inspiração”.
Entre os primeiros vamos encontrar Thomas Leonardos que, tudo indica, foi o
primeiro a dedicar uma obra inteiramente à nossa personagem. O autor aproveitou quase a
totalidade dos apontamentos que recolheu de Afonseca, a quem chama de “patriarca” e a
quem concede todos os créditos pela pesquisa que lhe teria possibilitado dar consistência
315
COSTA, Waldir Luiz. A Flor do Fango. In: ------ Da Maloca ao Palácio. op. cit.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
144
aos fatos e a “interpretação psicológica” que considerou acertada para a personagem que se
propunha defender.
Para avalizar o caráter histórico de sua obra, na primeira edição, o autor o anexou
uma bibliografia e a relação de todos os que tinham escrito direto ou indiretamente sobre
Dona Beja, casos de Olegário Mariano que escreveu um poema sobre a Fonte Dona Beja;
Viriato Correia, autor de uma peça de teatro já mencionada e Adelmar Tavares que
escreveu um poema à imagem de Nossa Senhora das Dores da Igreja Matriz de São
Sebastião de Araxá, que inspirou, a sua vez, a frase senhora também das dores, do povo de
Araxá, na canção-tema da telenovela, em 1983. Anexou também algumas das críticas
recebidas pelo seu livro nos jornais, dentre as quais destacamos a assinada por “Eneida”
que se refere a Sebastião de Afonseca, principal “fonte” do autor, como um homem que é a
crônica viva de Araxá, escritor e historiador que dedicou sessenta anos de sua vida aos
estudos sobre a vida de Dona Beja
316
.
A intenção do autor, exposta no prefácio também da primeira edição, era a de
reabilitar sua heroína escrevendo um “romance biográfico”, onde pudesse fazer, segundo
suas palavras, uma revisão serena das narrativas distorcidas que foram-lhe feitas ou,
conforme uma entrevista publicada em”O Fluminense”, em 1986, reconduzi-la ao lugar que
deveria ocupar, sem omitir seus pecados mas sem exagerá-los morbidamente.
Leonardos discordava e assim o dizia no prefácio da segunda edição- do
tratamento que foi dado a Dona Beja por outro autor, Agripa Vasconcelos, em cujo
romance, A Vida em Flor de Dona Bêja, também publicado em 1957, era retratada como
“perversa”ou “pervertida”, sem existir, na opinião de Leonardos, fundamentos para isso.
Mesmo em sua defesa, o autor recria em sua Dona Beja as eternas imagens femininas, que,
contudo, não lhe eram inerentes, mas determinadas pelo espírito e a atitude dos homens.
Dizia ele:
Ninguém poderia ficar indiferente à súbita presença da moça. Para aquele cujo
espírito podia elevar-se Ana Jacinta lembraria um anjo, uma aparição celestial em forma
de mulher. Mas para os que estivessem com os sentidos a rastejar, ali estava em carne e
osso a mulher-sensação, a mulher-pecado, a eterna perturbadora
317
.
316
LEONARDOS, Thomas. op. cit. p. 155.
317
Idem. p. 92.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
145
Ainda que, segundo ele, não pretendesse fazer comparações, mas associações de
idéias, aproximou, como heroínas, Joana D’Arc e Dona Beja pois, assim como os franceses
devem àquela a sua integridade territorial, os mineiros devem ao “sacrifício” desta que o
Triângulo seja Mineiro e não goiano. A primeira foi queimada como uma bruxa para
depois ser levada à santificação. A segunda foi estuprada para depois baixar aos infernos
da prostituição
318
.
Como já o mencionamos, o romance de Leonardos inspirou o enredo do Grêmio
Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, no carnaval de 1968. As boas
relações do autor -também advogado e em cuja função foi presidente da OAB- com o então
secretário de turismo do Rio de Janeiro, o jornalista e crítico Carlos Mafra Laert que
assinava com o pseudônimo de João Ega, possibilitaram esse acontecimento.
Consideramos, também, um dado interessante. Naquele mesmo carnaval foi
lançado, com grande sucesso, “O Samba do Crioulo Doido”, uma deliciosa pilheria de
Sérgio Porto para retratar os malabarismos histórico-poéticos a que eram submetidos os
autores dos sambas-enredo
319
. Entre 1971 e 1986, o romance de Leonardos recebeu
diversas edições, inclusive duas versões “quadrinizadas”.
Outro dos autores mais conhecidos dentre os que escreveram sobre Dona Beja foi
Agripa Vasconcelos, que também apresenta sua obra como histórica, produto de anos de
pesquisa, de viagens e das informações “fidedignas” que recolheu de pessoas idosas de
Araxá, Paracatu e Estrela do Sul. Junto com “Chica da Silva” e “Joaquina de Pompeu”, “A
Vida em Flor de Dona Bêja” faz parte de uma trilogia de mulheres mineiras,
“biografadas”pelo autor.
Em sua estrutura o contexto histórico de Araxá é apresentado segundo se
convencionou desde 1915: o nascimento de Desemboque pela descoberta de ouro, os índios
Araxás ilustrados pela lenda de Catuíra, Ambrósio e a destruição do quilombo, o final do
apogeu do ouro, a descoberta das fontes de águas minerais do Barreiro e o surgimento do
Arraial de São Domingos. A partir da chegada de Dona Beja, começa o romance de sua
vida.
318
Idem. Idem.
319
ALENCAR, Edigar de. O Carnaval Carioca através da música. op. cit. p. 482-499.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
146
Diferentemente de Leonardos, Vasconcelos, médico que costumava passar longas
temporadas em Araxá, hospedado no Grande Hotel do Barreiro, a convite da Hidrominas,
entretém o leitor com longas descrições da paisagem e dos costumes, retratados por uma
prosa abundante em regionalismos. Mas a semelhança da obra anterior, a vida de Dona
Beja transcorre aqui pelas mesmas passagens e peripécias, apenas mais enfeitadas e
emolduradas por um maior número de personagens e histórias paralelas.
De início, o que chama a atenção neste romance, cuja primeira edição foi ilustrada
por Yara Tupinambá, é a dramaticidade dos títulos de alguns capítulos. Inspirados em
temas bíblicos e mitológicos, associados a imagens funestas como: A Ira de Nêmesis, O
Rio Lêtes, O Monstro de Olhos Verdes, A Mulher dos Sete Demônios, O Diabo no Corpo e
aliados a outros títulos violentos como: Sangue na Terra e A Bofetada vão preparando o
espírito do leitor para o encontro com a heroína que, comparada com Helena, Cleópatra,
Inês de Castro e Marília, este autor também pretende biografar.
Já nos primeiros capítulos, o autor informa didaticamente ao leitor sobre o papel que
a mulher deveria desempenhar na sociedade, assim, a mãe andava sempre de luto,
considerando-se renegada, (como) mulher apanhada em falta
320
. Mais adiante, valendo-
se de uma orquídea recebida por Dona Beja como presente, o autor incumbe um velho
escravo da seguinte lição: a orquídea, diz o velho, dirigindo-se à moça, é muito bela (...)
mas é flor parasita. Vive da seiva das árvores e do ar(...). Ninguém deve ser como as
orquídeas, vivendo da vida alheia e do ar-. A mulher honesta deve ter raízes na virtude
bem plantada na alma. Deve viver do seu esforço e do seu trabalho e não do ar que é
vazio
321
.
Nos capítulos seguintes carrega as tintas nos episódios em que o racismo e o
sadismo de sua personagem se manifestavam, tanto com os negros como com os galãs
indesejados; “perversões” que o autor, anteriormente comentado, contestava.
Em uma passagem em que Dona Beja é descrita ainda criança como precoce e cheia
de imprevistos, o autor nos informa que ao se aproximar de algum escravo ela cerrava o
cenho e calava, pois como não fora criada com mães-prêtas, traia reserva (sic) sobre os
320
VASCONCELOS, Agripa. op. cit. p. 65.
321
Idem. p. 85.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
147
negros, de quem tinha medo
322
. Mais tarde, motivado pela admoestação que recebeu do
avô, deu-se o seguinte diálogo:
Você não gosta de gente preta, minha neta? Não gosto. Pois ouve; eles são como
nós (...) você não gostando de negros não gosta de Moisés que é nosso escravo. Bêja saiu-
se com facilidade: Mas Moisés não é negro!. Que é então?. Moisés é bom
323
.
Em outra passagem, ocorrida anos mais tarde, Dona Beja teria mandado açoitar um
admirador bem abonado, mas “de cor”, que imprudentemente pretendeu comprar seus
favores. Neste romance, o sadismo é confirmado pela própria personagem que dizia:
Tenho enorme prazer de martirizar a quem me quer. Isto é delicioso, vale mais que
a posse de um deles. E assumindo sua perversidade: A mentira pra mim é melhor que o
vinho (...) por fora sou cordial e política: dizem que sou bela, mas eu sei que sou é mulher
perversa
324
.
Por essas passagens, Dona Beja era retratada como a própria imagem da desordem
(...) o paradigma do desvio feminino, definido a norma pela transgressão
325
. Fiel à
estrutura do relato original, este romance também termina de forma exemplar. A mulher
fatal, a “devoradora” de homens é redimida, ao final de sua vida, pela maternidade, a idade
e a fé quando, mãe, anciã e avó devotada, termina seus dias, confortada (ou derrotada?)
pela santa religião.
A escritora araxaense Maria Santos Teixeira publicou seu romance, “O Solar de
Dona Beija”, em 1965 como uma homenagem ao centenário da cidade. Nele, a autora
ameniza solidariamente as características que destacaram a personagem como sedutora,
pois, sendo mulher, poude (sic) com mais facilidade descrever e interpretar o verdadeiro
sentimento que vai ao coração de outra mulher
326
.
322
Idem. p. 69.
323
Idem. Idem.
324
Idem. p. 339
325
FRANCHETO, Bruna et alii. Apresentação. In: ------ Perspectivas Antropológicas da Mulher. op. cit. p.
10.
326
AFONSECA e SILVA, Sebastião de. Apresentação. In: TEIXEIRA, Maria Santos. op. cit. p. 8.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
148
Na visão feminina da autora, ao acentuar sua condição de vítima as culpas da
heroína são atenuadas, em uma versão bem mais “benevolente” que a do autor anterior. Ao
contrário das amigas, admiradas com tamanha “louvação” por alguém que teve um passado
“tão suspeito”, a autora parecia conhecer bem o grande coração, uma dignidade relativa e
uma beleza incomparável
327
que Dona Beja possuía, qualidades que ficavam ocultas pela
sua vida dissoluta. Se algum vilão existia nessa história, esse era o ouvidor, gordo, balofo,
(...) de lábios grossos e sensuais, (...) cujo olhar despedia chispas de ódio e desejo
328
.
Na autora parecia sobreviver a velha e antiga idéia de ser a beleza física o reflexo da
alma, através da qual Deus se manifesta.
A beleza é uma irradiação de Deus, sua ´fonte perene`. E a beleza é ´flor de
bondade`. A primeira revela-nos a segunda: nós nunca entenderíamos nem apeteceríamos
a bondade oculta no interior das coisas se a ela não fôssemos conduzidos pelos sinais e
marcos da beleza exterior. E nisso se vê a admirável utilidade da beleza e do amor, que é
seu companheiro
329
.
Segundo esses princípios, se a beleza e o amor são expressão da bondade, o feio e o
ódio, são da maldade. Logo, o amor e a beleza de Dona Beja só poderiam refletir sua
bondade interior, tanto quanto o desejo odioso, a obesidade, os lábios grossos e a
sensualidade refletiam a maldade do ouvidor. E foi somente por ter a beleza maculada ante
a violência sofrida em mãos de seu algoz e pelo sofrimento da rejeição social, que o amor
transformou-se em ódio e a “bela jovem” viu torcido seu destino. Tomada por desejos de
vingança enveredou pelo “mau caminho”; como o sugere o título do capítulo “A Flor que
tombou no lodo”.
Para a escritora, esposa e mãe araxaense, a história de Dona Beja esteve tingida
desde o princípio pelas cores da tragédia: a mãe da infeliz donzela, morta no parto, tinha
sido seduzida por um rico mancebo e a avó, não resistindo à dor da perda, havia preferido,
por isso, mudar-se para Araxá
330
.
327
Idem. p. 12.
328
Idem. p. 35.
329
Cf. DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento II. op. cit. p. 93.
330
TEIXEIRA, Maria Santos. op. cit. p. 23.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
149
O rapto da Beja é apresentado como a “fatalidade” que determinou seu destino,
porquanto perpetrado por um ser poderoso e superior, contra o qual era inútil lutar. Assim o
indicam as palavras proferidas pela heroína como resposta aos reclamos amorosos de um
admirador apaixonado, quando ainda vivia em Paracatu:
Meu senhor, não sou senhora de meus atos; estou em poder daquele homem que
tudo pode e não me atrevo a cair no seu desagrado e contrariar a sua vontade, porque sei
do que ele é capaz
331
.
A tragédia estava, pois, perfeitamente caracterizada. Na análise desse gênero
literário, Marilena Chauí diz que para ela existir é necessário que na trama exista um ser
humano como sujeito, ou seja, um agente dotado de vontade e responsável pelos seus atos,
embora saiba que o que faz depende, em último caso, da decisão e da vontade superior. Sem
a contradição entre a vontade livre e responsável e o sentimento de cumprir um destino
inevitável, não pode haver tragédia
332
.
Para a autora do romance, como infeliz criatura e vítima involuntária, a culpa de
Dona Beja poderia ser compreendida e tolerada, segundo o percebeu também a esposa de
Antônio, o amante. Como mulher, a esposa também tinha sua vida dirigida e controlada por
forças superiores, era grata à sua rival pelos amores que mantinha com seu marido e os
aceitava como um “mal menor”, porque contribuíam para manter a harmonia em seu lar
333
.
O vigário, indefectível em todos esses romances, bondoso conselheiro, também
enxergou a tragédia que permeava a vida daquela ovelha desgarrada, que havia perdido o
caminho, mas não a devoção. Assim, acreditando que ainda tivesse salvação lhe fez apelos
para que não mais pecasse. E diante dos argumentos que ela apresentou em seu favor,
compreendendo a inevitabilidade de seus pecados, reduziu suas exigências: pediu-lhe que,
pelo menos, poupasse os homens casados
334
. Ela aceitou e por isso foi perdoada.
Negociando perdão e culpa com a pecadora, o fiel e plenipotenciário ministro de sua igreja,
331
Idem. p. 45
332
CHAUÍ, Marilena. op. cit. p. 59.
333
TEIXEIRA, Maria Santos. op. cit. p. 67.
334
Idem. p. 83.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
150
conseguia preservar a família e o sagrado sacramento do matrimônio. Ela, eterna Madalena,
“A Flor que Tombou no Lodo”
335
, ficaria com a redenção, por arrependida.
Outra mulher que também se ocupou de Dona Beja na literatura foi Maria Lúcia
Alvim em sua obra “Romanceiro de Dona Beja”, ilustrada com desenhos de José Pedrosa e
acrescida de um poema de Sylvio da Cunha. A autora reúne poesia em estilos diversos,
inspirada em nossa personagem e produzida no período entre 1965 e 1975.
Para Alphonsus de Guimaraens Filho, em uma das apresentações do livro, tudo se
conciliou para conferir à obra nota própria e acentuar-lhe a diversidade dentro de uma
nítida e evidente unidade
336
e, ainda que de forma brilhante, em nossa opinião, a autora
organizou seus poemas segundo a temática e a seqüência convencional que se deu à
narrativa do mito, introduzindo a heroína segundo a versão já conhecida.
Em outra das apresentações do livro, Ivo Barbiere remete o leitor à semântica
mítico-poética de seu discurso, à necessidade de desvendar as origens e a uma ânsia de
remissão do destino
337
que teriam movido à autora para a realização dessa obra. Nesse
sentido, sua busca, através da poesia, necessariamente deveria levá-la até o Sertão, o Largo
da Matriz e a Chácara do Jatobá, lugares e nomes com os quais conviveu quando morou em
Araxá, como filha do Dr. Fausto Alvim, prefeito em finais da década de 1930. Seriam elas
projeções simbólicas que depositam nas coisas circunjacentes o matiz íntimo de quadros
evanescentes. Nessa busca do mito inaugural, excavação no tempo e na paisagem intestina,
inquirição dos signos gravados na terra e dispersos no ar
338
, a poeta procuraria encontrar
os testemunhos verdadeiros da trajetória humana que lhe desvendassem as origens.
Desde esse prisma, ao levantar a problemática das origens e da busca de identidade,
provavelmente seja essa autora quem melhor pressentiu o significado de Dona Beja como
uma representação sócio-cultural inscrita em um discurso a partir do qual se poderia pensar
na identidade de Araxá e, ainda, da região, o que a teria levado a dedicar um livro completo
de poemas para tentar definir e desvendar o mito.
335
Idem. p. 59.
336
ALVIM, Maria Lúcia. op. cit. p. 11.
337
Idem. p. 13.
338
Idem. p. 15.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
151
Segundo Peter Gay, Freud invejava os romancistas e os poetas pela rápida e, quase
instintiva apreensão que tinham dos processos psicológicos ocultos. Gay também defende a
verdade que existe tanto na história como na poesia e embora elas sejam de caráter
diferente, não são por isso menos válidas. Os romancistas e os poetas, diz, não são alheios à
pesquisa
339
.
Na busca pelas origens com que a autora desafiava, em vão, o tempo, confirmava-
se, segundo Barbieri, o Mito do Eterno Retorno, onde retornar é renascer. O retorno ao
passado da história, da poesia, da emoção, é ainda caminhar na direção do nascente
340
.
Se “poetizando” Dona Beja a autora tenta um retorno a suas próprias raízes e um
resgate de sua identidade, em troca reserva para sua musa a solidariedade feminina e a
redenção que aquela buscava e que lhe foi negada em seu retorno a Araxá. No banho e na
fonte existe a purificação:
A fonte lava
E mortifica
Livra da culpa
Seca na bica
341
.
Na poesia da autora vamos encontrar presente toda a variedade de imagens e
elementos associados com Dona Beja, sejam eles provenientes de antigas mitologias ou da
cultura regional. A universalidade dos símbolos e mitos é visível novamente no retrato que
lhe faz como a ninfa que convida para um mergulho na fonte, no diálogo com As Musas.
Entre perguntas e respostas a autora nos a apresenta entre outras mulheres inspiradoras de
poetas como: Bárbara Heliodora, a bela; Marília, cujo nome passa; Glaura, nua na relva
blanda; Eulina, de ingrata sorte; Ifigênia, a amada filha e Ismália, a louca das longas
trança, para encerrar:
Quem é aquela
Desconhecida,
Alderabã,
Em pleno dia?
É Dona Beja
de sua fonte
339
GAY, Peter. Sobre o Estilo na História. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 172.
340
BARBIERI, Ivo. op. cit. p. 15.
341
Entre duas Fontes. In: ALVIM, Maria Lúcia. op. cit. p. 101.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
152
Que me convida
A mergulhar
342
Na poesia da autora, Dona Beja é também a musa flagrada num monólogo
concebido num momento em que a mulher começa a descobrir-se e a despertar:
...de penitentes abismos
Em campo aberto e fecundo
Na cadência policiada
do coração, pela cor
refluindo em mil acordes
no calor das almofadas votivas,
paisagem amanhecida
como se fora sonhada
como se fora de fora
e não dentro possuída;
flora de negra magia
pancada de chuva forte
cheiro de terra molhada...
343
.
A constante preocupação da autora com tempos e lugares; o título de alguns poemas
como As raparigas em flor
344
ou O Tempo Referto
345
; a diligência e a intimidade com a
que insiste em acompanhar Dona Beja após sua Chegada a São Domingos
346
, O Rapto
347
,
a Volta
348
e a forma como invade todos os cantos de sua casa, já seja na Sacada ou na
Escadaria, a Sala de Visita, o Salão de Música, a Sala de Jantar..., até o Pátio
349
, nos
sugerem uma busca, como a de Proust, também de seu “tempo perdido”, numa caminhada
ao passado em que recupera, também, o tempo de Araxá.
342
Idem. As Musas. p. 77.
343
Idem. Monólogo de Dona Beja. p. 85.
344
Idem. p. 76.
345
Idem. 172.
346
Idem. p. 74.
347
Idem. p. 81.
348
Idem. p. 98.
349
Idem. pp. 115-130.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
153
Junto com Dona Beja, a poeta revê os lugares e na Chácara do Jatobá
350
, a
acompanha, amiga, na intimidade de sua Casa: Na lucidez de uma taça o veneno escorre,
lento... Na Alameda passeia com ela enquanto percebe, sem estar certa, que uma porteira
batia onde e quando não sei bem... Juntas, poeta e musa, seguem pelo Caminho das Águas
chegando até a Estância onde são eternamente rendidas pela onipresença das águas: à
pontualidade das águas nos rendemos sob a púrpura pátina do tempo... Em Progenitura, a
espia, curiosa, na Concepção: Á força de sofrer engravidamos, com certa indolência
compassiva...; e vigia as transformações que se operam em seu corpo durante a
Gestação”: O corpo é o artesão que mistifica... Com ela conhece o paraíso da
Maternidade” e lamenta sua perda: É duro conhecer o paraíso e dele ser expulsa... e,
quando, finalmente, se despedem em Diamantina do Bagagem com a Balada da Estrela
do Sul: Subirei pela noite acima com os teus olhos diamantinos... Trespassadas pela
Agonia e Morte, juntas, elevam uma última oração à padroeira, Nossa Senhora Mãe dos
Homens: Maria, tua glória conjuramos sob o manto acetinado.... Uma oração que lhes
garanta a salvação antes de Dona Beja ditar sua última vontade e seu em Testamento:
Declaro ter vivido sempre em estado de solteira...
Tanto quanto a pintores anônimos ou escritores de tempo parcial, Dona Beja
também inspirou poetas bissextos que encontravam nos panfletos ou impressos particulares
o único recurso para verem seus poemas e homenagens publicadas. Encontramos um desses
exemplares nos arquivos de Afonseca e ainda que cronologicamente não pertença ao
período dos autores que mencionamos, não poderíamos deixar de incluí-lo ao lado dos
representantes da poesia, por entendermos constituir uma forma de expressar o sentir
popular e o modo como a figura de Dona Beja era apreendida, enquanto era identificada
com Araxá e com as fontes do barreiro.
Dona Beja continuava sendo a “mensageira” de sentimentos interessados (ou
interesseiros?). Das homenagens às autoridades, à cidade e ao povo, daqueles que com e em
seu nome pretendiam também exercitar seus dons artísticos. Em O Canto do Araxá,
350
Idem. p. 132 et passim.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
154
dedicado a Adelmar Tavares, Fausto Alvim, Álvaro Cardoso e ao Povo Araxaense
351
, o
tenente do exército Plínio Faclante da Câmara começa com ela sua louvação à cidade:
Minha gente, ora veja!
A senhora dona Beija
Que não casou pela Igreja,
Foi mesmo predestinada...
Levou uma vida agitada,
Entre sonhos e desejos
Entre prazeres e beijos...
Na velhice recatada,
Na mocidade estouvada,
Teve um romance de amor,
Com um audaz Ouvidor,
E nos deu de “mão beijada”
Essa terra idolatrada,
Que é bem a glória de Minas,
Araxá abençoada,
Cheia de graças divinas (...)
Araxá de encantos mil,
Sanatório do Brasil.
De águas maravilhosas
Que lhe dão tão grande fama,
Araxá de boa lama...
.
.
Tudo indica que, para Ângelo D’Avila, na década de 1990, escrever sobre Dona
Beija foi uma boa oportunidade de expor as teorias desenvolvidas por Afonseca sobre seus
talentos sexuais. Foi o único que explorou o filão erótico apontado por aquele, valendo-se
dela para falar do “Suxantismo”, um dos seus sete predicados “intrínsecos” e uma suposta
técnica erótica oriental, da qual, na versão deste autor, ela teria sido eximia praticante.
Em suas obras “biográficas”, “Dona Beija nua e crua” e “Dona Beja a Flor do
Pecado”, essa técnica teria sido introduzida no Brasil pelos portugueses mas era conhecida
desde a Idade Média, tendo sido mencionada por Rusticiano de Pisa que recolheu os relatos
de Marco Pólo. O autor, morador de Brasília, funcionário aposentado, membro da
351
Adelmar Tavares foi jornalista e poeta; Fausto Alvim e Álvaro Cardoso foram prefeitos de Araxá nas
décadas de 1930 e 1940, respectivamente. O autor não colocou a data, mas incluiu sua fotografia na capa e
um glossário ao final, para explicar ao leitor termos como “ouvidor”, “bouganvile” (sic), “Pau-de-binga”,
entre outros, assim como fatos locais mencionados no poema. Pelas homenagens acreditamos haver sido
escrito na década de 1940. DA CÂMARA, Plínio Faclante. Canto do Araxá. S/D. Doc. Nº 16. Cx. 1,
AMDB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
155
Academia de Letras de Brasília e ganhador de diversos prêmios literários, aproveita para
descrever a metodologia e as diferentes etapas que a envolvem
352
. Durante a colônia, as
mulheres ter-se-iam-se valido de um “pega-rapaz”, mecha de cabelo caído sobre a testa, à
guisa de código secreto que indicava o conhecimento da técnica na qual se haviam
especializado.
Nas primeiras páginas de uma dessas obras, o autor nos oferece um retrato da
heroína, produzido segundo a técnica da “regressão computadorizada”, a partir de uma
fotografia de quando ela era sexagenária, à que acrescentou a conhecida sentença
ligeiramente modificada: “Deus fez a Beja e perdeu o molde”, atrib uída ao Dr. Eduardo
Montandon.
Não comentamos os outros autores porque nada de novo encontramos em seus
trabalhos a não ser o desejo de aproveitarem o “boom” do momento e a boa receptividade
do título Dona Beja, decorrente do êxito atingido pela telenovela. Esse parece haver sido o
caso de Bordignhon, que resumiu em versos o roteiro da mesma, o que vem a confirmar seu
impacto ante o público
353
.
Analisar a obra “psicografada” do goiano Juliano Aarão
354
requer cuidados
especiais, senão pelas qualidades literárias, que não discutimos em nenhuma das obras
referidas, pelo seu significado, enquanto inserida no processo de expansão do fenômeno
religioso espírita. O espiritismo tem em Uberaba um centro de irradiação nacional,
alavancado pela figura do “médium” Chico Xavier e seu estudo requer tempo e espaços
próprios motivo pelo qual não pode ser tratado superficialmente
355
.
352
Cf. D’AVILA, Ângelo. Dona Beja a Flor do Pecado. op. cit. De acordo com o autor, as quatro principais
fases desse método científico seriam: Excitação da Parceira, Cavalgamento sobre o Parceiro, Orgasmo
no Ponto de Vênus e Relax Dorsal. pp. 34-36.
353
BORDIGNHON, Luiz Ignácio. Dona Beija em Versos: Atualidades e Reminicências. São Paulo:
Pannartz, 1989.
354
AARÃO, Juliano. Anna Beija. Memórias. Goiânia: Gráfica e Editores Bandeirante, 1997.
355
Cf. DA SILVA, Raquel Marta. Chico Xavier: Imaginário religioso e representações simbólicas no
interior das Gerais Uberaba 1959-2001. (Dissertação) Mestrado em História. Uberlândia MG: UFU,
2001. A autora discute o processo realizado com o consentimento e interesses mútuos, através do qual a
imprensa se apropriou da figura do médium ao mesmo tempo em que ele facilitava e consentia nessa
apropriação. Analisa o imaginário construído em torno de sua figura, sua incorporação pela sociedade
local e seu papel na projeção de Uberaba no âmbito nacional.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
156
Entretanto, registramos o lançamento do livro “Ana Beija Memórias”, no Museu
Histórico de Araxá Dona Beja, em 1997, ante um público formado, principalmente, por
espíritas, como um indicador da dimensão adquirida pela figura da heroína; a intensidade
de sua presença no imaginário social, tornando-a passível de apropriações de toda índole e
finalmente, sua capacidade de responder a inquietações e motivos diversos, que podem vir
cobertos (ou encobertos?) sob o amplo manto da religiosidade e das crenças populares,
avalizando sua legitimidade como manifestação cultural.
Essa rápida amostragem, objetiva, também, enfatizar a versatilidade de Dona Beja
e sua capacidade “caleidoscópica” de se transformar segundo o ângulo e o movimento que
se adotem ao enxergá-la, radicando nisso, certamente, uma das principais características
que a posicionam como mito, confirmadas pela literatura e a iconografia, de onde se extraiu
apenas um pequeno repertório de imagens.
Como produto destinado a um público que quanto maior torna-se “melhor”,
fotografias forjadas, caracterizações, citações e referências bibliográficas, depoimentos
orais de pessoas “reais” e conhecidas, tecnologia computadorizada, mediunidade, tudo, tem
sido utilizado para convencer, agradar, conquistar ou manter os admiradores, vendendo-
lhes aquela Dona Beja que melhor atenda a seus gostos, expectativas e ideologias.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
157
Faz parte da miséria do homem o
não poder conhecer mais do que
fragmentos daquilo que já passou,
mesmo no seu pequeno mundo;
e faz parte de sua nobreza e da
sua força o poder conjeturar
além daquilo que pode saber
356
.
Dialogando com os documentos.
O que deveriam ser somente as considerações finais desta pesquisa transformou-se
aos poucos num quarto capítulo que consideramos indispensável para dar voz a uma série
de dados, referências e informações localizadas em fontes primárias de diversas origens,
que não foi possível ou oportuno inserir na composição da trama central do texto, mas que
existem e por algum motivo estão ali, em documentos do século XIX, como “evidências
circunstanciais” e testemunhas mudas, precisando serem ouvidas.
São, por vezes, referências rápidas e curtas, soltas e sem conexão aparente, pedindo
explicações, assim como sua inclusão, ainda que periférica, no eixo central deste trabalho
embora, neste caso, nem sempre isso tivesse sido possível, precisando nos contentar com
inserir a maioria deles nesta última parte situada no escorregadio terreno das conjecturas.
Beatriz Sarlo refere-se à impossibilidade de falar de um fato sem incluí-lo numa
trama, que não (seja) necessariamente apenas uma ordem cronológica mas também uma
ordem de níveis, uma vez que,
356
MANZONI. Apud GINZBURG, Carlo. “Provas e posibilidades à margem de 'Il ritorno de Martin Guerre'
de Natalie Zemon Davis”. In ------ et alii. A Micro-História e outros Ensaios. Tradução de António
Narino. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 197.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
158
é a trama que define a pertinência das inclusões e das exclusões. É sua
interpretação para as palavras de Paul Veyne que diz que os fatos não têm dimensão
absoluta
357
.
Analisando a construção do mito em torno de Dona Beja desde essa perspectiva,
vamos encontrar uma série de inclusões e exclusões com o objetivo de se criar uma trama
que carregasse e desse sentido ao discurso que se construía em torno de sua figura, que
funcionava, ao mesmo tempo, como porta-voz e representação da sociedade que a inventou.
As reflexões, também de Sarlo, vêm ao encontro de nossa necessidade de justificar a
inclusão em “nossa” própria trama de dados que, ou não constam explicitamente na trama
do mito, ou constam de forma arranjada previamente, mas nem por isso deixaram de ser
importantes para dar-lhe sentido, fazendo parte das exclusões necessárias para conferir-lhe
aquele que lhe desejava dar.
Ao mesmo tempo, e não obstante sabermos que uma das contribuições da
antropologia à história cultural foi mostrar que os mitos não pertencem somente ao campo
do “sagrado”, exclusivo dos estudiosos das religiões e que os graus de fantasia e realidade
que apresentam não fazem parte da ordem de problemas propostos pelos historiadores, mas
às preocupações daqueles, não resistimos à tentação de tentar um exercício historicizante:
estabelecer o grau de “historicidade” ou fundamento histórico contido em alguns elementos
do mito, tais como personagens e situações, também encontradas nas versões literárias ou
na telenovela.
Esses elementos, após buscarmos suas origens, apresentaram graus variados de
realidade histórica, o que nos levou a classificá-los segundo o material documental
localizado e disponível para garantir-lhes a categoria que lhes demos. Da tentativa de
relacionar os indícios e sinais soltos e espalhados na documentação consultada com os
diversos graus de historicidade, que apresentaram alguns desses elementos surgiu esta parte
de nosso trabalho.
De fato, foi irresistível tentarmos um diálogo entre esses elementos e a
documentação; entre a personagem e as circunstâncias que a ligavam a outros personagens
357
SARLO, Beatriz. Clio Revisitada. In: ------ Paisagens Imaginárias. Intelectuais, Arte e Meios de
Comunicação. Tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EDUSP, 1997. p. 77.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
159
ou a situações diversas, fosse no mito ou na história. Também foi irresistível tentar achar
uma forma de atar os cabos soltos, representados por essas informações e por uma lista de
personagens que surgiram ao longo de nossa pesquisa e que, mesmo não tendo uma
participação direta na trama central do relato ou em nosso trabalho, foram encontrados na
documentação periférica e complementar consultada para tentarmos obter um quadro mais
completo do processo de construção do mito. Ainda que mantidos anônimos e nem sempre
aparentes esses elementos, certamente, fizeram parte da dinâmica interna que gerou o mito,
parecendo, apenas, não haver encontrado o espaço adequado para sua aparição ou
exposição.
Mais do que respostas conclusivas, alguns desses dados levantam ainda mais
interrogações, condizentes com os mistérios do que parece ser uma trama policial
subjacente ao mito ou submersa por ele.
Ainda que cientes dos excessos em que se pode incorrer, sob o amparo da
flexibilidade temática e metodológica da História Cultural, dos quais tentamos fugir, e
embora nossa “especulação investigativa” possa parecer temerária, a fizemos inspirados na
convicção de que dúvidas e interrogações são inerentes a uma “história-problema”, segundo
a concebiam Marc Bloch e Lucien Fevre
358
. Mais do que a busca por respostas e verdades
definitivas, os “enigmas e mistérios” que pressupõe a problematização da história,
constituem um dos principais motores da pesquisa histórica.
Além do que, e para legitimar ainda nossas conjeturas e as dúvidas que delas
derivaram, sabemos que um dos motivos que mais contribuíram para o sucesso entre a
comunidade acadêmica da nova concepção da história é precisamente não tentar impor
novos dogmas ou uma nova filosofia da história, mas convidar os historiadores para mudar
seus modos e métodos de trabalho
359
.
Assim sendo, a proposta geral deste trabalho de recuperação do processo de
construção do mito não implica, como condição básica para seu resultado final, na
possibilidade de responder de forma absoluta e definitiva a todas as interrogações que o
358
BLOCH, Marc. Introducción a la Historia. México DF: Fondo de Cultura Económica, 1952.
359
BARRACLOUGH, Geoffrey. Apud: CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e Paradigmas Rivais”. In: -----
VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Campus, 1977. p. 7.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
160
cercam; a problematização e a formulação de hipóteses já representariam um passo à frente
na construção do conhecimento histórico local.
O que pretendemos aqui é, também, uma demonstração das tentativas de seguirmos
todas as pistas -por menores que parecessem-, que, de um jeito ou outro, apontassem, se
não para respostas conclusivas, ao menos para uma ampliação nas possibilidades de
abordagem desse processo; abordagem que nem sempre poderia obedecer a procedimentos
convencionais, dando ampla margem para as conjecturas às quais somos forçados quando
as limitações permitem, somente, o conhecimento de “fragmentos” daquilo que já passou.
Como ensina Manzoni, convenientemente citado por Ginzburg, conjeturar faz parte da
grandeza humana.
A esse respeito, Tzvetan Todorov também nos acenou com seu consentimento.
Diante da dúvida de se valer ou não dos textos que lhe apresentavam a visão indígena da
conquista, por terem sido produzidos após a mesma e, portanto, sob a influência dos
conquistadores, viu-se ante o seguinte raciocínio, em sua obra “A Conquista de América. A
questão do outro”: se renunciasse a esse tipo de informações não poderia substituí-las por
outras, a menos que renunciasse a qualquer tipo de informações a respeito. Assim, o único
remédio era tentar ler esses textos não como enunciados transparentes, mas considerá-los
dentro das circunstâncias em que foram produzidos. Dessa forma, a questão não o remeteria
a um conhecimento verdadeiro do acontecido, mas à sua verossimilhança
360
. E é à
verossimilhança dos fatos analisados que nos remetemos.
Para muitas das interrogações que foram surgindo ao longo da pesquisa fomos
tentando dar resposta através de conjecturas, enunciando-as à medida que o conhecimento e
o acesso aos documentos o permitiam. Certamente, essas dúvidas e os “enigmas” que as
conjecturas suscitam, também fizeram parte da curiosidade popular contemporânea de
Dona Beja e assaltaram, depois, os “inventores” do mito, o que as tornam elementos ativos
na mitogênese e no seu processo de instalação no imaginário social.
Não as mencionamos no momento em que debatemos esse tema pela sua natureza
eminentemente subjetiva e pela sua carência de suporte historiográfico local, que não
combinaria com o teor da discussão que propomos naquela parte de nosso trabalho.
360
Cf. TODOROV. Tzvetan. A Conquista da América. A questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone
Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 64.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
161
Por outro lado, sabemos e estamos cientes, que, na medida em que avançarem as
pesquisas históricas locais, algumas dessas conjecturas podem ser revistas e re-visitadas,
confirmadas ou desmentidas. Mesmo respondidas as interrogações e resolvidos os enigmas
representados pelas lacunas documentais, não é inválido o risco de tê-las apresentado e
formulado neste trabalho.
Portanto, e fazendo um balanço final dos elementos que possibilitaram e
dinamizaram o processo de construção do mito e devidamente ancorados nas fontes
documentais e na bibliografia consultada, encontramos três momentos que abrangem um
período amplo em sua inserção na história de Araxá: o primeiro, no século XIX, quando
Anna Jacintha de São José viveu, até por volta de 1885, quando encontramos as últimas
referências documentais de seu nome e apelido.
O segundo, no século XX, a partir de 1915, quando se resgatou a personagem da
tradição oral e se construiu o mito dando-lhes uma dimensão histórica, até a década de
1940, quando se passou a explorá-lo na imprensa e na pintura, em função do
empreendimento turístico do Estado.
E, finalmente, na década de 1950 até nossos dias, quando foi incorporado pela
literatura e pelas artes da representação, em suas diferentes modalidades, levando o mito até
os âmbitos nacional e internacional.
Corresponde ao século XIX, quando viveu a personagem histórica que originou o
mito, o período mais desconhecido e difícil de completar seqüencialmente, quando surgiu a
maior parte desses indícios e referências que nos levaram às conjeturas que até aqui
tentamos justificar.
Mas antes de analisarmos os diferentes graus de historicidade que cercam os fatos e
os personagens relacionados com o mito é importante começar reiterando a historicidade da
personagem que o inspirou, cujo respaldo documental é indiscutível, centrando-se nossa
análise no que se diz e se continua dizendo sobre ela.
Entre os acontecimentos relatados no mito, encontramos alguns que não foram
possíveis confrontar com a documentação direta ou indiretamente relacionada com Dona
Beja, seja para negá-los ou confirmá-los, motivo pelo qual foi necessário nos valermos da
interdisciplinaridade, através da bibliografia produzida em outros campos do conhecimento,
para tentar encontrar uma explicação para sua inserção na trama de nossa personagem,
Rosa Maria Spinoso de Montandon
162
enquanto fenômenos socialmente produzidos. Sugerem-nos apropriações, para as quais foi
nulo o grau de fundamento documental relacionado diretamente com Dona Beja. Ainda
que, como veremos adiante, eles não tenham deixado de acontecer.
Em segundo lugar, e em um processo semelhante ao anterior, encontramos uma
série de dados que podem ser cotejados documentalmente, embora nem sempre as
informações que fornecem os documentos correspondam aos personagens ou às
circunstâncias locais com que foram relacionados no mito. São informações que
apareceram desde as primeiras versões dos memorialistas e que se mantiveram em alguns
romances, mas que parece haver sido deslocadas em sua passagem desde os documentos até
os relatos. Para alguns deles já apresentamos alguma análise e nos sugerem transferências
ou deslocamentos, através das quais se embaralharam nomes e acontecimentos, cujo
resultado final acabou sendo uma mistura de história e imaginação.
Em terceiro lugar, estão as referências ou “indícios”, que encontramos soltos e
espalhados na documentação, que envolvem não somente o nome e apelido de nossa
personagem, como também o de pessoas e situações aparentemente alheias que, se bem não
estão diretamente relacionadas com os fatos relatados, não podem ser simplesmente
deixados de lado, já que estão ali, registrados nos documento por algum motivo.
Apropriações
Entre as apropriações que consideramos mais flagrantes, e para a qual procuramos
detidamente apoio documental, está o suposto rapto, perpetrado pelo ouvidor Joaquim
Ignácio Silveira da Mota contra Dona Beja, na sua adolescência, e que constitui a peça
chave e a coluna fundamental que sustenta o mito, já que dele derivaram todas as
circunstâncias que cercaram a história da personagem.
Como já se mencionou anteriormente, não localizamos evidências documentais que
o pudessem fundamentar historicamente. Como conseqüência, tampouco se localizaram
documentos que pudessem fundamentar a permanência do ouvidor e sua amante em
Paracatu e nem a interferência dos dois na reintegração do Triângulo Mineiro a Minas
Gerais.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
1
63
Os nomes são reais, mas as circunstâncias que os relacionam, aparentemente, são
imaginárias ou parecem pertencer a outras “histórias” e a outros lugares, que podem ter
sido inseridas para iluminar ou preencher as lacunas que existem no período inicial da vida
de Anna Jacintha em Araxá e para compor a seqüênc ia cronológica, indispensável a um
relato “histórico”, segundo era concebido e segundo as normas que vigoravam quando se
criou em 1915.
Na busca por “provas” documentais não estivemos sós. Ainda que levados por
objetivos diferentes, antes de nós, historiadores tradicionais mineiros já o tinham tentado,
movidos pela preocupação de expurgar a história dos elementos fictícios que minariam sua
credibilidade. São historiadores que, se bem enxergam a disciplina histórica desde a
perspectiva de uma busca pela verdade” e o esclarecimento das inverdades que com
freqüência encontram refugio na história, são úteis pela minúcia com que procuram essas
provas documentais nos arquivos, para provar ou desmentir os fatos que estudam.
Isso de misturar lenda ou romance com história, geralmente traz confusão aos
desprevenidos, diz um desses historiadores
361
. Ele encontrou nos arquivos do Estado os
autos de um processo por rapto, em que pode estar inspirado o de Dona Beja,
caracterizando-se como a “apropriação” de um fato ocorrido em Serro, antiga Vila do
Príncipe, em Minas Gerais. Segundo a documentação, em 1801, nesse lugar, um ouvidor de
nome Antônio Seabra da Mota foi acusado de raptar a filha de um comerciante português, a
quem devia dinheiro. O ato teria como objetivo forçar a realização de um casamento,
através do qual poderia saldar sua dívida. O pai da jovem moveu um processo de
indenização contra o raptor, cujos autos constam nos arquivos
362
.
Os autores de outras publicações também se preocuparam em apontar as
incongruências dessa “estória”, como era chamada para assinalar seu caráter fictício,
contestando, entre outras coisas, a impossibilidade de um ouvidor de Goiás poder fugir para
Paracatu, em Minas Gerais, e continuar exercendo tranqüilamente suas funções
363
.
361
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico e Geográfico de Minas Gerais. op. cit. p. 32.
362
BARBOSA, Waldemar de Almeida. História de Minas. Belo Horizonte: Comunicação, 1979. p. 217.
363
BARBOSA, Maria Claret Carneiro. A Participação da Mulher na História de Minas. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1986. pp. 69-75. A autora cita as “Efemérides Mineiras” de Xavier da Veiga, em 3 de
novembro de 1801, que registram a Ordem do governo de Lisboa ao governador da capitania, mandando
facilitar a Francisco José Monteiro os meios de tirar sua filha violentamente roubada pelo Ouvidor
Rosa Maria Spinoso de Montandon
164
Mas, verídico ou não, o rapto de Dona Beja mereceu credibilidade apesar dos
desmentidos por parte dos historiadores preocupados com a “verdade histórica”.
Acreditamos que a coincidência dos sobrenomes dos ouvidores Seabra da Mota e Silveira
da Mota e do nome dos lugares “Vila do Príncipe” e “Paracatu do Príncipe”, cenários onde
transcorrem ambas histórias, possam ter contribuído para aproximá-las, facilitando sua
apropriação, fenômeno que não é raro encontrar e observar nas sociedades humanas.
Para auxiliar-nos na compreensão desse fenômeno devemos lembrar, novamente, as
observações de Levi-Strauss em um texto onde discute, precisamente, a aproximação da
mitologia e da história. Ele se refere à apropriação de tradições, personagens e histórias
orais, em diversos povos, ainda que provenientes de outras comunidades, segundo se
desprende de suas palavras:
Parece-me muito interessante considerar o modo como, quer no norte, quer
no Sul da América, e na realidade em todas as partes do mundo, um indivíduo que
recebeu, por direito ou herança, um certo relato da mitologia ou da tradição
lendária de seu próprio grupo reage ao ouvir outra versão diferente, contada por
alguém pertencente a um clã ou linhagem diferente, a qual é semelhante em certa
medida, mas, noutra perspectiva, é também extremamente diferente
364
.
Em nossa opinião, neste caso, um rapto “arranjado” para Dona Beja seria uma
solução conveniente para uma relação inconveniente: aquela que sabidamente nossa
personagem manteve com o vigário. Uma releitura que também forneceria a justificativa
válida e necessária para a prostituição da heroína que se pretendia criar. Um rapto, com a
carga de violência e onipotência que carrega, exerce um impacto mais marcante na
imaginação dos leitores, além do que, uma conduta desviante proveniente de uma
“fatalidade” como essa, seria bem mais aceitável que a derivada apenas dos baixos e
conhecidos instintos femininos, dos quais, como mulher, Dona Beja, era “portadora”. Não
esqueçamos as considerações de Delumeau sobre o rapto e o tratamento de tragédia que a
escritora araxaense deu, em seu livro, à personagem e a sua história.
Antônio Seabra da Mota e Silva (...). Ver também o artigo de OLIVEIRA MELLO. Dona Beja, Paracatu
e o Triângulo. Publicado no Estado de Minas, na década de 1980 em que desmente a “farsa gritante” da
participação de Dona Beja na anexação do atual território do Triângulo Mineiro a Minas Gerais.
364
LEVI-STRAUSS, Claude. Quando o Mito se Torna História. In: ------ Mito e Significado. Lisboa: Edições
70, 1978, pp. 62-63
Rosa Maria Spinoso de Montandon
165
Outra leitura e na suposição de que tivesse realmente acontecido um rapto na vida
de Anna Jacintha, é a possibilidade dele ter sido cometido não pelo ouvidor, mas pelo
próprio vigário, seu amante confesso. Levantamos esta hipótese apoiados nas informações e
questionamentos de Maria Beatriz Nizza da Silva sobre a atenção que se dava nas
Constituições Primeiras do Bispado da Bahia se dava para as punições por crimes de rapto
e sedução cometidos por membros da Igreja, as quais dão a impressão de visarem
principalmente os clérigos, o que teria levado à autora a se perguntar se isso não ocorreu
porque eram eles quem mais comumente os cometiam
365
.
Nesse caso, estaríamos ante a possibilidade de um encobrimento deliberado, ou não,
da real identidade do criminoso, cuja culpa teria sido transferida para outro, a fim de
proteger, mais do que a reputação do autor, a da instituição da qual era representante. Já
que, como veremos oportunamente, a preocupação pela preservação do “bom” nome das
pessoas não foi uma das principais características dos que inventaram e mantiveram o mito.
Sendo procedente ou não a história do rapto, novamente Todorov nos auxilia
quando aponta, não a importância de um fato ter ou não ter acontecido, conforme e segundo
apresenta algum cronista, mas de ele ter podido afirmá-lo e, principalmente, ter contado
com a aceitação do público. E isso seria tão importante e revelador quanto se tivesse
ocorrido, algo que, ao final, poderia dever-se ao acaso.
Para ele, a recepção dos enunciados é mais reveladora do que sua produção e as
mentiras ou enganos cometidos por um autor seriam mais significativos do que as verdades
que pudesse emitir. Desde essa perspectiva, a noção de falso ou verdadeiro ficaria
desqualificada, já que a importância recairia mais no fato de que o texto produzido pudesse
ser aceito, ou não, por seus contemporâneos
366
. Resumindo, a credibilidade que merece
uma inverdade e a descoberta ou conhecimento da intencionalidade subjacente à sua
enunciação e utilização se torna, e a torna, mais significativa do que o descobrimento da
própria “verdade”.
365
DA SILVA, Maria Beatriz Nizza. op. cit. p. 75.
366
TODOROV, Tzvetan. op. cit. p. 64.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
166
Transferências
Nesta segunda categoria incluímos principalmente personagens reais que foram
arrolados como atores na trama de alguns romances ou relatos supostamente históricos, mas
que foram deslocados espacial ou cronologicamente, atribuindo-lhes funções irreais que,
aparentemente, tiveram como objetivo dar maior volume à história, funcionando como
coadjuvantes da estrela principal.
Esses parecem ser os casos do próprio ouvidor Silveira da Mota, pivô da história,
transformado em raptor e que de fato atuou em Araxá em princípios do século XIX, como
pode ser conferido em documentos judiciários; de Josefa Pereira, analisado oportunamente;
das “Candinhas” e Candinha da Serra, prostitutas que figuram no relato e nos romances
como vizinhas e rivais “baratas” de Anna Jacintha.
Esses últimos nomes podem estar relacionados com os das irmãs Herculana Cândida
de São José e Cândida Antônia de São José, assim como com o de sua mãe, também
chamada Herculana Cândida de São José, filhas e esposa do capitão Antônio José de
Araújo, proprietário do sobrado da esquina, vizinho ao de Anna Jacintha.
Também é possível que da “Serra” esteja relacionado ou aluda a alguma das
fazendas do capitão, entre elas uma sesmaria localizada no Sertão dos Araxá, abaixo da
Serra
367
. Abaixo ou acima da “serra” eram referências e nomes freqüentes para as
propriedades rurais situadas próximas ou não longe das Serras da Pirapitinga, do Araxá,
da Boa Vista e do Monte Alto nas contravertentes do Barreiro
368
.
Outra possibilidade é o nome ter sido inspirado no de alguma personagem real,
prostituta ou regente de algum estabelecimento, cujo nome tivesse tornado genérico e
extensivo a suas pupilas, transferidas para o casarão, por um desses engenhosos
mecanismos utilizados no mito e que fizeram possível, por exemplo, que Josefa Pereira se
tornasse também prostituta e o coronel Fortunato um boticário.
Após a morte de seus pais, três anos antes de Anna Jacintha vender seu sobrado, as
duas irmãs Cândidas venderam sua propriedade para o capitão Marcelino Manoel Teixeira,
367
Sesmaria. 1782. Caixa nº 3. AFTF.
368
AFONSECA e SILVA, Sebastião de; MACHADO, Ayres da Mata. História de Araxá. op. cit. pp. 8-10.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
167
em 1861. Mas na reconstituição cronológica que fizemos, a partir desse ano, até o de 1965,
quando se instalou no sobrado o Museu Regional Dona Beja, não encontramos nenhuma
referência associada ao nome “Candinhas”. Esse nome foi encontrado num documento de
1892, batizando um local na chamada rua das Flores, situada entre o cemitério municipal e
a Igreja Matriz de São Sebastião
369
.
A deliberação municipal que desde 1873 instituiu a denominação oficial das ruas ,
parece que ainda não tinha sido assimilada pelo povo que seguia o antigo costume de
registrar as vias públicas, inclusive nos documentos oficiais, com o nome, a ocupação de
seus vizinhos ou segundo as peculiaridades que uns e outros apresentassem. Tudo indica
que a rua onde ficava o local das “Candinhas”
era a mesma que no século XX ainda era
conhecida popularmente como a “zona”, abreviatura para “zona do meretrício”,
denominação que recebia pela concentração de estabelecimentos dedicados a esse tipo de
comércio.
Contudo, não se pode descartar a possibilidade de que na memória popular, após sua
partida para a Freguesia de São Francisco de Salles, no Município da Villa do Prata
370
,
onde moravam na época da venda, as filhas do capitão, antigas moradoras do sobrado,
fossem lembradas como as “Candinhas”, sendo identificadas ou confundidas
posteriormente, com as “Candinhas”, da “zona”.
Um outro caminho para se entender o que levou às três Cândidas de São José,
históricas, até o prostíbulo de “Candinha da Serra” ou às “Candinhas” da “zona”, no
imaginário social, seria conhecer as regras impostas pela sociedade às mulheres, ante a
necessidade de normatizar sua conduta e legitimar sua condição através do casamento. O
estado civil, como se viu oportunamente, era fundamental na distribuição dos papéis sociais
que, segundo as normas consuetudinárias, eram atribuídos às mulheres, não somente no
passado como até hoje.
A ausência de assinaturas ou referência dos maridos nas procurações que fizeram
para vender o sobrado, assinadas “a rogo”, por não saberem ler nem escrever, sugere que
ficaram solteiras, já que se fossem casadas, e ainda que fossem representadas por terceiros,
369
Escritura de compra-venda. 1892. Livro nº 23, folha 80. Cartório do 1º Ofício de Notas de Araxá, MG.
370
Idem. Idem.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
168
os nomes e as rubricas de seus cônjuges constariam, como “cabeças de casal”, nas
procurações e no documento de venda. Contudo, não se pode eliminar a possibilidade de
que, ao tempo do negócio, ambas fossem viúvas e sem filhos, o que na prática e na
(des)consideração social não as diferenciaria muito das “solteironas”.
O mesmo nome São José, das proprietárias dos dois sobrados vizinhos, explicaria
também a confusão que levou o povo a denominar o casarão da esquina como “sobrado da
Beija”, nome que um século depois já constava nas escrituras, embora o que realmente lhe
pertenceu esteja situado no meio do quarteirão.
Outro caso de transferência de nome e identidade parece ser o de Fortunato,
identificado nos livros e na telenovela como um boticário que virou rapidamente coronel e
um dos maiores latifundiários de Araxá, ambicioso e inteligente
371
, figura carimbada como
um dos amigos incondicionais de Dona Beja. Essa figura pode ter sido inspirada ou parece
corresponder a de um neto do coronel Fortunato, chamado Fortunato Botelho, “Natinho”,
farmacêutico nas primeiras décadas do século XX e um dos filhos de Idalina de Castro
Botelho. Idalina era filha natural do coronel, de quem foi sua única herdeira, após ter sido
devidamente reconhecida e legitimada em cartório. Como mandava a tradição, era casada,
desde 1876, com seu primo Francisco Jacintho da Silva Botelho
372
.
Outros personagens, protagonistas anedóticos de histórias engraçadas ou curiosas,
que constam em alguns romances inseridos na trama principal como admiradores afoitos ou
candidatos a seus favores, rejeitados por atitudes caprichosas da personagem ou por serem
“de cor”, receberam nomes e sobrenomes de pessoas reais do passado, embora a
documentação consultada não nos tivesse lançado nenhum sinal que justificasse esse
tratamento. Aparentemente, são personagens e histórias que, em princípios do século XX,
faziam parte da comicidade popular, pertencendo ao inventário dos “causos” da memória e
do anedotário coletivo, mantidos vigentes pela transmissão oral, e que foram introduzidos
371
ROSA, Pedro Divino. Dona Beija. 3ª ed. Edição Independente, 1999. p. 55. VASCONCELOS, Agripa.
op. cit. p. 94 et passim.
372
Inventário do Coronel Fortunato José da Silva Botelho. 1890. Caixa 180, AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
169
nos romances sobre Dona Beja para dar-lhes maior volume. Não esqueçamos que a maioria
dos escritores obteve suas informações da mesma fonte em Araxá
373
.
Esse é o caso de Felício da Rocha Roriz, incorporado às histórias de Dona Beja por
memorialistas e romancistas como um avarento agiota que teria tentado comprar seus
serviços, sendo rejeitado de forma pouco comedida, por ela não admitir entre seus clientes
gente de cor
374
. Em 1890, Otaviano de Toledo se refere a esse personagem, com cujo nome
foi batizado um dos becos do centro antigo da cidade, como um dos homens mais
trabalhadores de Araxá, ligado principalmente à construção da Igreja de Nossa Senhora
D’Abbadia
375
. Na documentação consultada podemos conferir que se tratava de um
comerciante, homem pardo que vive de seu negócio de secos e molhados
376
, mais tarde
também “fabriqueiro” daquela Igreja, encabeçando com vinte contos de réis a lista dos que
colaboraram para as obras de sua construção
377
.
Chama a atenção que para Francisco Antônio Rodrigues, aparentemente o único
irmão de Anna Jacintha, mencionado por ela em seu testamento, documento
freqüentemente invocado para conferir veracidade a tudo que se escrevia sobre ela
378
,
373
No prefácio das três edições de sua obra, “Dona Beija a Feiticeira do Araxá”, Thomas Leonardos refere-se
a Sebastião de Afonseca e Silva, a quem chama de “patriarca” e ao acesso que teve a seus arquivos sem os
quais não poderia ter escrito seu livro. Waldir Luiz Costa, autor de “Da maloca ao Palácio” se refere a ele
no prefácio como venerando senhor (...) respeitável barão de Plutarco (de quem) não se poderá, hoje
como nunca, escrever uma frase sequer sobre a história de nossa terra e de nossa gente, sem ouvir-lhe a
palavra abalizada, que se inspira numa vida de pesquisa honesta e de trabalho meritório. O livro de D.
Maria Santos Teixeira, “O Solar de Dona Beija” foi apresentado por ele, que incorporou a seu nome o
título de “historiador aos 86 anos”. J,G Almeida dedica “O sertão dos Araxás e os amores de Dona Bêja”
ao venerando e venerável historiador e arquivista da Cidade. Agripa Vasconcelos não o menciona, mas
faz questão de dizer que em sua obra: As lendas inverosímeis foram desprezadas. Todos os nomes, datas e
lugares são, a rigor, exatos. Os fatos em geral aqui aflorados foram ouvidos de mais de um informante
(...) uns poucos nomes(...) aparecem como parônimos, por viverem ainda pessoas de seu sangue, e pela
escabrosidade dos fatos em que se envolveram.
374
PONTES, Hildebrando de Araújo. “Dona Beija”. 1800 1890. Araxá, Estado de Minas Gerais. S/D.
TEIXEIRA, Maria Santos. op. cit.
375
TOLEDO, Octaviano de. op. cit. pp. 282-283
376
Autos do Processo da Revolução de 1842. AFCCB.
377
A Igreja foi demolida cedendo seu espaço para a atual Igreja Matriz de São Domingos.
378
Em nome de Deos Amen. (sic).Eu Anna Jacintha de São José nascida e batizada na Freguesia de São José
digo na Freguesia da Cidade da Formiga, desta Província de Minas Gerais, filha natural de Maria
Bernarda dos Santos, já fallecida, faço o meo testamento e disposição de ultima vontade pela maneira
seguinte (...). Nomeo epeço que sejão meos testamenteiros, em primeiro lugar meo genro Clementino
Martins Borges; em segundo lugar meo neto Doutor Francisco Feancisco (sic) Ribeiro da Silva, e em
Rosa Maria Spinoso de Montandon
170
nenhum memorialista, cronista ou romancista tenha encontrado utilidade na trama que se
construía, sendo ignorado em favor de uma lista de personagens fictícios incorporados nos
romances. Isso pode ser explicado pelo fato dos principais romances terem sido escritos
antes da “descoberta” do testamento, dado a conhecer pela imprensa em 1965, quando a
“febre” de Dona Beja acometia Araxá, em função da “cruzada” histórica provocada pela
comemoração do primeiro centenário de sua elevação a cidade.
Contudo, dois casos merecem uma reflexão mais detalhada, porquanto envolvidos
com acontecimentos e crimes reais que foram relacionados diretamente com a trama central
da história, mas com a qual não conseguimos vinculá-los diretamente. O primeiro é o de
Manoel Fernandes de Sampaio, suposto amante de Dona Beja a quem a tradição popular e
os romances atribuíram a paternidade de Thereza. O outro é seu suposto assassino,
chamado Antônio Ramos
379
ou Antônio Almeida Ramos
380
, também apresentado em alguns
romances como um escravo a quem ela teria encomendado o assassinato do amante.
O sobrenome Almeida Ramos foi localizado em uma documentação judicial,
relacionada com ações e processos de falência da firma “Almeida & Filho”, de Antônio
Almeida Ramos e seu filho José Almeida Ramos, na década de 1880
381
, mas não
conseguimos localizar nenhuma referência ou documento que relacionem esses nomes com
o crime. Até porque não localizamos nenhum documento sobre o mesmo crime.
Mais enigmática ainda, é a inclusão de Sampaio na página policial da história de
Dona Beja. Nas páginas amorosas é figura constante como o amante, algumas vezes
chamado Manoel e outras Antônio, que por ciúmes teria aplicado uma surra a nossa
personagem. Sobre ele, podemos apurar que, de fato, foi assassinado, mas não conseguimos
estabelecer, em princípio, um vínculo entre eles.
Entretanto, uma leitura que cedesse um espaço maior à conjectura teria que levar em
conta uma série de dados ou, ainda, a ausência deles que, se não lançam maiores
terceiro lugar meo Irmão Francisco Antonio Rodrigues (...): e por não saber ler enem escrever, vai
escripta eassignada ameo (sic) rogo por Francisco de Paula Ramos Horta. Memória do Judiciário
Mineiro. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.
379
ALMEIDA, J.G. O Sertão dos Araxás e os Amores de Dona Bêja. op. cit. p. 64.
380
VASCONCELOS, Agripa. op. cit. p. 317 et passim.
381
Inventário de Antônio Almeida Ramos. 1888. Caixa Nº 171. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
171
esclarecimentos, deixam no ar uma série de interrogações sem resposta. A ausência de
dados muitas vezes produz silêncios mais eloqüentes que as próprias palavras, se seguirmos
a orientação de Carlo Ginzburg e seu “paradigma indiciário”
382
.
Inspirado na técnica de Giovanni Morelli que desenvolveu uma metodologia para a
atribuição das obras de arte, deslocando a atenção das características mais vistosas,
portanto mais facilmente imitáveis
383
e fixando-a em detalhes secundários ou periféricos
aos quais, normalmente, não se dava atenção, como o lóbulo da orelha, os dedos e as unhas,
menos influenciados pelas características do artista ou de sua escola. O historiador italiano
propõe a utilização de técnica semelhante na pesquisa histórica diminuindo o foco da
atenção dos elementos mais visíveis e sobressalentes em uma história ou documento e
transferindo-a para detalhes periféricos e aparentemente secundários; “indícios” reduzidos
ou escondidos, consciente ou inconscientemente, por trás de dados e informações nucleares,
por quem os registrou ou produziu. Esse método teria sido teria sido usado por Freud e por
Arthur Conan Doyle em seu célebre personagem Sherlock Holmes.
Não apenas os pequenos detalhes, mas a mesma ausência deles tornaram-se
indícios, para nós, na história de Manoel Fernandes de Sampaio, que viveu e morreu em
Araxá, no século XIX, sendo contemporâneo, quatorze anos mais velho, de Dona Beja. No
censo provincial de 1832 foi relacionado como homem branco, de 46 anos, casado com
Anna Anna Felizarda de Resende ou “Aninha Felizarda”, em romances e telenovela-, de
24 anos, pai de dois filhos: Placidina, de 6 anos e Forbes, de 2, morador na vila, onde
possuía onze escravos. Nas Atas da Câmara Municipal e em documentos do poder
Judiciário também consta a atuação de Sampaio como vereador e Juiz de Órfãos.
Em 1833, Sampaio foi objeto de uma ação judicial por calúnia e ofensas movida
contra ele pelo seu compadre e tio de sua mulher o comerciante Antônio da Costa Pereira, a
quem chamou de alcoviteiro dos diabos e filho da puta, em público, quando estava sentado
na porta de seu negócio e na frente de varias testemunhas, que presenciaram quando passou
cavalgando, apressado, proferindo tais ofensas. Segundo as testemunhas, essas palavras
382
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma Indiciário. In: ------ Mitos - Emblemas - Sinais:
Morfologia e História. Tradução de Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 143-
180.
383
Idem. p. 144.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
172
foram a resposta às perguntas que o comerciante lhe dirigiu sobre o motivo para sair de
viagem, o porquê de tanta pressa e para onde se dirigia
384
.
A primeira frase sugere a possibilidade de uma natureza passional para a causa da
ira do agressor, uma vez que alcoviteiro é aquele que serve de intermediário, encobre ou
protege relações de alcova, ilícitas e secretas. Ao que tudo indica, a segunda já era, como
hoje, uma fórmula para ofender sem que aludisse, necessariamente, a algum detalhe
específico ou real da vida ou do comportamento da mãe do ofendido.
Se as palavras eram ou não procedentes foi irrelevante para acusação, que se baseou
na ofensa que elas representavam,
...não só por ofensivas ao decoro do cidadão pasifico, mas também ao seo
crédito e honra, que vive manço e pasifico, (sic) que não ofende a seos
concidadãos, mas que também vive sujeito às Leis, as Authoridadªs constituídas,
que he Fiscal da Câmara desta Villa e della Vereador Suplente..
385
.
Agravadas pelo fato de terem sido proferidas em público e diante de pessoas que nada
podiam ou pareciam saber dos motivos que poderiam tê-las inspirado, detalhe que
tampouco foi apurado nem lhes foi perguntado.
A justiça se manifestou com a severidade que requeria a posição do ofendido, que
vivia de seu negócio de “fazendas, secos e molhados”, com fazendas de plantações, e
criações e, ao que tudo indica, era a mesma pessoa que em 1816 teria atuado como
procurador na Corte e portador do abaixo-assinado através do qual os moradores do
Julgado de Araxá solicitaram e obtiveram do Príncipe Regente a sua anexação a Minas
Gerais
386
.
Sampaio foi condenado a pagar uma multa de trinta mil réis, a um mês de prisão, a
pagar as custas do processo, sendo destituído, ainda, do cargo de vereador. Três anos
depois, em 1836, foi despiadadamente assassinado com uma bala e treze caroços de
chumbo grosso, disparados por uma espingarda, no dia treze de junho, por volta das sete
384
Libello. 1833. Caixa nº 30. AFTF.
385
Auto Summario de Corpo do Delicto. (sic) 02/ 07/ 1833. folha. 2. Caixa nº 30. AFTF.
386
Cód. Col. Nº 368, S.G, folha 125 e Cód. Nº 656, DF, folhas 163-163v. APM. Belo Horizonte, MG.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
173
horas da noite, segundo consta no termo de abertura de inventário solicitado por sua
esposa
387
.
Aqui estamos ante um fato e um personagem real, para os quais, embora constassem
em diferentes versões do mito, não conseguimos encontrar um lugar pertinente na trama do
perfil biográfico que fizemos de Anna Jacintha, cuja historicidade foi baseada unicamente
em documentos primários e fontes historiográficas.
Mas, se não pode ser incluído na trama historicizada da vida de Anna Jacintha,
Sampaio é uma figura onipresente na trama do mito em torno de Dona Beja, o que nos
obriga a dedicar-lhe algumas de nossas mais demoradas reflexões.
O Sampaio histórico foi uma figura com uma posição de certo relevo em Araxá na
primeira metade do século XIX, a julgar pelo fato de haver ocupado uma cadeira no
legislativo municipal, o que somente poderia ocorrer em se considerando sua posição
financeira como dono de terras e escravos
388
. Por outro lado, por sua posição e por terem
sido violentas as causas de sua morte, esta não poderia passar despercebidas ou sem
registro.
Entretanto, a única alusão que encontramos a ela foi, curiosamente, como se
“contrabandeada” na documentação relacionada com seu inventário. E ao dissermos
“curiosamente” o fazemos baseados na leitura de um bom número de inventários onde não
á comum encontrar esse tipo de referência. Neles, no termo de abertura, os autores ou
procuradores limitavam-se a registrar, laconicamente, a data e o lugar do óbito que
justificaria o início do processo.
O contrabando por nós empregado refere-se e nos foi sugerido, pelas palavras
despiadado, atraiçoadamente e desastroso fallecimentº (sic), expressões de forte carga
emocional, estranha nesse tipo de documentos, mas empregadas pela viúva para referir-se à
causa do óbito em dois únicos documentos em que solicita, em primeiro lugar, a realização
do inventário e, depois, uma autorização para atuar como tutora dos filhos
389
.
387
Inventário de Manoel Fernandes de Sam Paio. 1836. Caixa nº 33. EFTF.
388
Idem. op. cit. p S/N.
389
Idem. Ilmº Sn’r Juiz d’Orphãos Interº. Diz D. Anna Felizarda de Rezende, Viúva, q' ficou de Manoel
Fernandes de S. Paio, q' sendo o dito finado despiadadamente atravessado de hu'a bala, e 13 caroós de
chumbo, no dia 13 de Junho de cad anno, ehavendo nesse mmº dia dado alma ao Creador...(sic).
Rosa Maria Spinoso de Montandon
174
A gravidez da viúva à época do crime e seu iminente parto quando, seis meses
depois, solicitou a realização do inventário, constituiriam um reforço para o tom emocional
que percebemos nessas expressões, que podem ser interpretadas como a única oportunidade
de dar vazão à dor e à indignação, não apenas pela perda do marid o como pelo mesmo
crime
390
.
Por outro lado, devemos considerar que, o tom dramático com que se dirige às
autoridades, principalmente no segundo documento, poderia ter como objetivo provocar
uma reação favorável ou simpática a ela, já que o que solicitava era a tutela dos filhos.
Garantindo não ter dado motivo a falar sobre seu procedimento que merecesse censura,
salvo qualquer calúnia que gratuitamente lhe fizessem e sem poder constar que ao menos,
pelo mais leve pensamento, tivesse tratado ou prometido passar a segundas núpcias, como
“terna Mãe” solicitava a tutela e a administração dos bens de seus filhos
391
, o que lhe foi
concedido após serem devidamente registrados os depoimentos em seu favor, prestados sob
juramento pelas testemunhas apontadas por ela, entre eles o alferes Desiderio Mendes dos
Santos, o Coronel João José Carneiro de Mendonça e Augusto Montandon,
Chama a atenção a assistência prestada à viúva pelos notáveis da vila, na realização
do inventário e na obtenção da tutela dos filhos em contraste com o descaso que sugere a
ausência de documentação relacionada com o crime. O fato de Sampaio não mais pertencer
à Câmara Municipal, assim como as circunstâncias que provocaram sua exclusão, não lhe
retiravam, certamente, a condição de membro influente da comunidade, o que torna ainda
mais significativa essa aparente ausência de documentos ou referências sobre alguma
possível investigação ou processo movido em decorrência de seu assassinato.
Esse silêncio documental em torno de um crime de morte, envolvendo um membro
de uma família influente da comunidade, torna-se mais significativo principalmente ao ser
390
Idem. Ilmº Sn’r Juiz d’Orphãos Interº. Diz D. Anna Felizarda de Rezende, Viúva e Cabeça de Casal,
q’ficou do falecido seu marido Mel Frz de S. Paio, q’avendo ommº sido dezpiadadamente assacinado com
uma balla, e treze caroços de xumbo groço, provinientes dum Tiro de Espingarda q’atraiçoadamente lhe
foi impregdº nesta Vª asete horas pouco mais ou menos, da noite do dia treze ... (sic)..
391
Idem. Q’a Supp. E desde o falecimentº daquelle seu marido the agora tem constantemente vivido debaixo
de toda a honestidade das regras da desencia, de manrª, q’ ao menos está perçuadida de q’nada tem dado
a falar de seu procedimentº, que mereça sençura (...) Finalmente, que a Supp. he a mesma em sua idêntica
pessoa (...). Portanto, e pelo que se vem desprender he, q’a Supp. requer a VS pª que nos trºs da dª
legislaçam pelas testemunhas que nomeia o Cel. João Jé carneiro de Mendonça, e o Alfes. Deziderio
Mdes. Dos Santos...
Rosa Maria Spinoso de Montandon
175
comparado com a documentação que detalha as circunstâncias que lhe renderam, três anos
antes, um processo e uma pena por crimes menores, como os de calúnia e ofensas, já
mencionados.
Assim sendo, e ainda que saibamos dos estranhos caminhos que conduziram outras
pessoas até situações com as que, aparentemente, nada tiveram a ver, por conhecermos a
relação que no mito se lhe atribui a Sampaio com Dona Beja e a relação que, de fato, esta
manteve com João José Carneiro de Mendonça; pela relação que o último manteve com a
viúva, como avaliador e testemunha nomeado por ela na realização do inventário; pela
freqüência com que encontramos esses nomes presentes nos diversos episódios de nossa
história, não seria descabido nos perguntarmos qual teria sido o verdadeiro teor da relação
de todos eles.
Por que e como foi possível esse silêncio documental em torno de um fato que, sem
dúvida, deve ter provocado uma comoção e concorrido para uma grande alteração na
tranqüilidade da comunidade. Quais teriam sido os misteriosos caminhos que conduziram
Dona Beja até o banco dos réus no mito, acusada de ser a mandante desse crime.
A questão poderia ser resolvida se vista como um fenômeno de transferência ou
apropriação semelhante ao rapto, em que o processo de reclamação de herança pudesse ter
sido reelaborado na memória social e transformado em um processo de crime, perpetrado
contra o amante, aproveitando-se das lembranças ou notícias que ainda se tinham daquele
assassinato e da ausência de documentos esclarecedores. Isso, se não existissem “indícios”,
que discutiremos oportunamente, de algum tipo de vínculo entre eles, numa trama oculta e
apenas sugerida pelo nome e o apelido de Dona Beja associado às propriedades rurais da
família de Sampaio.
Mas, ainda que estranhos, os caminhos de “nosso” mito podem ter mão dupla e o
contrário também ser válido. Se, por um lado, essa ausência de documentos pode estar
relacionada com uma ação deliberada para ocultar fatos ou pessoas, envolvidas com a
vítima e o crime, também é possível que a relação dela com a vítima e com o crime tenham
sido construídas posteriormente, reforçados pela ausência de registros, causados por não
saber que motivos, permitiram uma livre associação entre os personagens e os
acontecimentos, já que nada ou ninguém poderia desmenti-los.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
176
Mas, com ou sem documentos, o fato é que o crime ocorreu e ainda era conhecido
ou lembrado por alguém no século XX, tanto que foi incorporado à trama do mito. Como já
observamos anteriormente, quando o primeiro relato foi produzido, o tempo e o imaginário
social, força reguladora da vida coletiva, já se teriam encarregado de envolver a memória
em uma teia fantástica em que os fios da história e do mito se encontravam fortemente
entretecidos.
Ainda assim, a dificuldade em localizar documentos ou notícias sobre o crime, seja
por sumiço, ausência, extravio ou desaparição, deliberada ou não, e mesmo a ausência de
qualquer notícia sobre alguma investigação ou processo decorrente tornam a história toda
ainda mais suspeita, justificando este exercício conjectural paralelo
392
.
Em se tratando de reflexões de caráter conjectural, não podemos deixar de observar
a temeridade ou impunidade com que nomes de pessoas reais foram usados de forma nem
sempre simpática, associados e entrecruzados, de forma aparentemente tão livre e arbitrária,
com situações irreais ou parcialmente reais, em uma história desenvolvida em uma
comunidade pequena e familiar onde haveria o risco de aparecer alguém interessado em seu
esclarecimento ou verificação. O que parece não haver ocorrido, como confirmam os
sucessivos romances que mantiveram essas informações.
Os mesmos motivos que teriam levado alguns dos parentes de Dona Beja a se
manterem no anonimato, por temer ser relacionados com uma pessoa de passado tão
duvidoso, podem ter movido também os parentes dos outros atores envolvidos na história, o
que caracterizaria um calado consentimento para tudo quanto se dissesse.
Deve ainda considerar-se a possibilidade de alguns dos fatos relatados conterem
doses variadas de realidade e, nos casos em que a ficção fosse completa, a força da
memória socialmente construída e legitimada pela palavra escrita teria-se encarregado de
aparar as arestas das inverdades.
Por outro lado, são inúmeros os motivos que podem ter causado o mudo
consentimento e a aceitação passiva dos fatos segundo eram relatados pelos seus autores.
392
Não faltam notícias de funcionários antigos ou ex-funcionários do fórum que “sabem”, ou viram algum
juiz levar para casa documentos que achavam interessantes. Para conferir, inquirimos um deles que,
evidentemente, negou tais afirmações. Entretanto, vale registrar que os autos do processo contra os
acusados de envolvimento na Revolução de 1842, pertencentes ao Poder Judiciário, foram “doados” aos
arquivos da Fundação Cultural Calmon Barreto por um funcionário público aposentado.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
177
Ou porque os envolvidos não deixaram descendentes diretos que pudessem desmenti-los ao
sentirem-se afetados, ou porque os vínculos familiares se diluíram junto com os
sobrenomes ao desaparecerem ou se modificarem pelas alianças familiares e a incorporação
de outros sobrenomes, perdendo-se com eles os elementos de uma identidade familiar
original. Ou simplesmente porque, ainda que parentes ou descendentes, a ninguém
interessava envolver-se em polêmicas em torno de personagens e de fatos ocorridos no
passado, sancionados, que eram, por pessoas que tinham a autoridade para fa-lo.
De algumas protagonistas da história, ainda que em papéis secundários, sabemos
que as Cândidas, e Anna Felizarda, por exemplo, haviam-se mudado de Araxá; Josefa
Pereira não teve descendentes diretos, sendo seus sobrinhos os herdeiros de seus bens após
sua morte
393
. Mas, em 1915, ano da publicação do primeiro relato, a morte do coronel
Fortunato, um dos envolvidos, ocorrida em 1890
394
, estava relativamente recente sem
contar a existência de uma filha, irmãos, sobrinhos e netos que poderiam ressentir-se da
forma pouco cortês com que seu ancestral era tratado.
A pouca repercussão que possivelmente teve, de início, a história de Araxá e de
Dona Beja e o conseqüente desconhecimento delas podem também ser somados às causas
para não haver ocorrido qualquer manifestação a favor ou contra os fatos contados. O
estatuto de historiador do encarregado da pesquisa, o peso e a reputação dos que forneciam
as informações verbais, e o prestígio que conferia ver o nome ou sobrenome da família ou
de um ancestral incluído em um texto tomado como histórico podem também ter coibido
qualquer manifestação, considerando-se ainda o peso e a credibilidade que a escrita confere
à palavra.
Aparentemente, para todos, como estavam as coisas estavam bem e assim deveriam
permanecer, como de fato aconteceu. Mas não para nós. Ainda consideramos necessário
nos determos em outra categoria de sinais ou indícios que encontramos na ampla galeria de
personagens que, ainda que não explicitamente, acabamos sempre encontrando
relacionados; vizinhos e até, quem sabe, cúmplices em nossa trama.
393
Inventário de Josefa Pereira. 1854. Caixa nº 61. AFTF. No relatório sobre as esmolas que foram
distribuídas entre os pobres, segundo a vontade registrada em testamento por Josefa, constava: receberão
esmolla (sic) no dia 23 de 7bro (sic) de 1854, na Porta da Igreja de S. Sebastião (...) Rita mer pobre em
casa de Beija. .
394
Inventário do Coronel Fortunato José da Silva Botelho. 1890. Caixa Nº 180. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
178
Indícios
Nessa categoria incluímos os dados, já analisados, que permitem associar Dona Beja
e o coronel João José Carneiro de Mendonça, como possível parente, pai ou avô de Joana,
tomando-se como base a inclusão de seu nome como padrinho no registro de batismo da
menina e com base na conhecida estratégia usada para dissimularem-se paternidades ou
parentescos inconvenientes ou que não se queria assumir publicamente.
Na mesma categoria de indícios poderíamos discutir uma possível relação entre a
partida de Carneiro de Mendonça para o Rio de Janeiro, em 1841 e a morte de Sampaio, o
que colocaria a Dona Beja em relação com a mesma.
Como já vimos anteriormente, e de acordo com os depoimentos das testemunhas no
processo da Revolução de 1842, o coronel João José Carneiro de Mendonça e seu filho
João, que nos romances aparece sempre como o amante por quem Dona Beja teria
dispensado o Fernandes, teriam sido os principais responsáveis pelas desordens ocorridas,
dois anos antes, quando eles e seus aliados, os Botelho, teriam expulsado o juiz
encarregado de presidir um julgamento que queriam impedir. Não encontramos notícias da
natureza do julgamento, da identidade do reu ou das acusações que se lhe faziam, apenas
encontramos o nome de Anna Jacintha de São José nas atas da Câmara Municipal, em
sessão permanente, que o juiz, Antônio da Costa Pinto Jr, registrou desde seu “exílio” em
Desemboque, como a dona da casa onde os revoltosos se reuniam para planejar as ações
395
.
Após esses acontecimentos, e ainda segundo essas testemunhas, os dois “suspeitos”
pela paternidade de sua filha mais nova, tanto o coronel como seu filho o Doutor João
Carneiro de Mendonça teriam desaparecido da cena de Araxá. O primeiro, pela sua partida
para o Rio de Janeiro e o segundo, por ter morrido, em algum momento do ano de 1842,
segundo se pode deduzir dos depoimentos em que as testemunhas no processo contra os
revoltosos de 1842 se referem a ele como o “finado”. Por esse motivo, nem um, nem o
outro teriam sido arrolados nesse processo, não ocorrendo o mesmo com outros membros
da família, entre os que se encontravam Josefa Maria Roquete Franco Carneiro de
Mendonça, esposa e mãe, respectivamente, e seu genro, o português Antônio Pestana.
395
Atas da Câmara Municipal de Araxá. 1840. Livro S/N. ACM.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
179
Algumas testemunhas confirmaram saber por ter “ouvido dizer” que, embora esses
membros da família estivessem envolvidos e a própria Josefa responsabilizara seu filho
Joaquim como o principal líder do movimento, não o marido, que teria marchado para
aquela província, desde 11 de janeiro, onde teria comprado uma fazenda, havendo
insinuações de que sua partida estaria relacionada com os já mencionados acontecimentos
ocorridos há dois anos
396
.
Tratando-se de uma comunidade pequena, algumas evidências apontam para uma
relação entre o Carneiro de Mendonça e a família de Sampaio, como o fato de ter gozado da
confiança da viúva que pessoalmente o nomeou avaliador dos bens na realização do
inventário e testemunha para a obtenção da tutela de seus filhos menores, e depois teria
mudado com eles para Bagagem. Além disso, um dos parentes de Anna Felizarda faz
alusão à ruptura que teriam sofrido as relações da família com os Carneiro de Mendonça, a
raiz da morte de Sampaio
397
.
Realmente, seria impossível, se não temerário, chegar a qualquer conclusão a partir
de evidências tão vagas e circunstanciais, mas pela constante relação que encontramos entre
as mesmas pessoas, cujos nomes aparecem sempre associados, elas têm que ser registradas,
ainda que seja para constar e sem que nunca se possa chegar a nenhum resultado
conclusivo.
A desarmonia mencionada pode ter sido provocada por inúmeros motivos e só pode
ter ocorrido após a realização do inventário, já que até então, Mendonça contava com a
confiança da viúva
398
. O que ocorreu depois poderia muito bem estar relacionado com a
atuação de Mendonça durante ou após a realização daquele invetário, ainda que não
tenhamos encontrado nele nenhuma evidência de alguma possível ação que pudesse
justificar tal desarmonia.
396
Autos do Processo da Revolução de 1842. Depoimento de Antônio Pereira da Costa Guimaraens. Folha
188.
397
Idem. No depoimento Guimaraens diz aos costumes que desde a morte de seu cunhado Fernandes para ca
que não viveu em armonia com a família do coronel João Carneiro (sic) folha 189.
398
Ilmº Snr. Juiz d’Orphãos Inter.º. Diz D. Anna Felizarda de Rezende (...) como meeira e cabeça de cazal, pª
q’VS em conformidade da Lei se digne proceder aaq.le Inventrº pelos avaliadores, q’a Suppe desde já
nomeia o Coronel João José Carnrº de Mendonça, e o Alfs. Diziderio Mendes dos Santos...Inventário de
Manoel Fernandes de Sampaio. op. cit. folha nº 2.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
180
Um documento bastante instigante é uma carta um tanto quanto confusa, sem falar
na caligrafia praticamente ininteligível de Josefa, apreendida com seu genro e anexada aos
autos do processo, como prova da participação de ambos na rebelião de 1842. Ainda que
não possamos relacioná-la diretamente com Dona Beja, é interessante mencioná-la pelo que
as duas mulheres tinham em comum: a relação com João e João José Carneiro de
Mendonça, filho e marido da primeira e suposto amante da segunda.
Nessa carta, Josefa se refere a um crime envolvendo seus filhos Joaquim e João, se
queixa amargamente de suas doenças, suas desgraças e dos nove anos que teria passado e
perdido, provavelmente, em Araxá, onde lhe teriam tirado tudo que lhe era prazeroso. Fala
de ter prevenido seu marido do risco de deixar junto dela um desses filhos, aparentemente
envolvido publicamente com uma mulher muito “doida”
399
.
A carta não tem data, mas foi apreendida com o genro quando ele foi preso np
Desemboque antes de estourar o movimento em Araxá, ocorrido em julho. Assim, a morte
de João, que a mãe ainda menciona em sua carta, deve ter acontecido entre esse mês e o de
dezembro, quando se realizou o processo em que as testemunhas já se referiam a ele como
“finado”.
É importante considerar que a missiva parece dirigida a outro de seus genros, seu
“caro compadre e amigo do coração”, Antônio Paulino Limpo de Abreu, apontado como
um dos líderes da revolução em Barbacena, alguém que gozava da confiança da autora e
399
Meu charo comp,e e amigo do coração. Pello correio paçado mandei fallar no crime de Joaqm. e o João,
e q' davão fiança pelo contrario clasificarão bofetadas tentativas de morte e ordem pª cerem prezos ontem
mandou-me o compe dos (...) avisar q’(...) com uma excolta q’fizece retirar o Joaqm por (...) e oje não
veio o Joaqm. o Fortunato levou pª Mandioca e ao outro mandei pª Pitangui numa cobrança outro
começou cobrança tão avoltada e ainda não deu um paso tantas vezes dise ao seu compe q’tinha medo de
ficar com este rapaz prencipalmente com amizade com q’esta q’não nus era estranha por cer pública pois
nunca se vio uma molher tão douda e vê já a mª disgraça (...) sempre criminoza e cheia de encomodo por
causa destes e outros tais: a cobrança q’esta comigo, e o compe. Pestana, e de fazer qto. estiver do meu
alcanse dispaxo elle e comforme eu acho acertado separar me da mª chara família já não poso ando em
comodada com as pernas enxadas porem saio se morer é outros q’acontece o mesmo e q’fazem mais falta
do q’eu ei de fazer e emqtº viver ei de praguejar este maldito (?) donde abita o canalha enferma q’já se
vão nove anos q’ pª minha disgraça aqui estive novª emtrão os dias damª vida nesinferno apanharão mo
tudo q’me podia llesongiar (?): conforme as notas de S. ainda ei de me...Julia sabe, e o grande P. sabem
desta amizade danada e porem o mandou pr. com d’ mentiras exconda delle tudo q’é pesamtº enferior
diga a seu compe q’ mande dizer a Joaqm q’ saia com crime e tudo pª as cobranças amosa não deixa elle
sair, e recomendar q’não faça despezas o compe Pestana já (?) porem nada se faz pr q’elles são tudo
Marianno Suterio Simão porem (?) esta acabando de colher o feijão eterna Sés. dei estimo gozasem e
todos da familha Vinhag’aja esta pr sua Sº a todos. Sua comte amte. Obrª. (...) Caetaninha se recomenda
ao meo comp. A Vinha os menino o Melchior. Josefa. Autos do Processo da Revolução de 1842. Folha 99.
FCCB.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
181
que, dado seu caráter pessoal e clandestino, não poderia referir-se abertamente aos fatos.
Sem se tratar de um verdadeiro código secreto, podemos deduzir que palavras como
“cobrança”, constantemente usada por Josefa, poderiam estar sendo usadas para disfarçar
seu verdadeiro significado, o mesmo que “negócio”, usada normalmente para substituir
quase tudo, dando como suposto que a pessoa a quem se destinava já estivesse a par dos
fatos, o que também supõe terem sido suficientemente comentados em família ou
discutidos previamente.
A mulher aludida como alguém com uma conduta fora do comum, a relação que um
dos filhos de Josefa mantinha com ela e a relação que o filho ou o marido mantinham com
Dona Beja, apoiada pelo registro de batismo de Joana, nos levam a pensar se as duas
mulheres não seriam a mesma. Da mesma forma seria factível estabelecer uma seqüência
entre a morte de Sampaio, em 1836, o nascimento de Joana, em 1838, os distúrbios para se
impedir um juízo contra um protegido dos Carneiro, em 1840 e esse filho envolvido com
uma mulher “doida” e morto em 1842.
Da mesma Josefa existem nos arquivos do Poder Judiciário seus pedidos, dirigidos
às autoridades, para que se amenizassem as condições do lugar em que era mantida presa
após os acontecimentos de 1842
400
.
Não nos deixa de chamar a atenção a pouca atenção que Josefa recebe nas histórias
sobre Dona Beja. Apesar de sua participação política e social, ainda que no âmbito local,
tendo desempenhado um papel atuante nesses acontecimentos, a ponto de ter sido presa e
julgada como uma das principais ativistas na Revolução e de ser Dona Gabriela Franco
Carneiro, uma das informantes ouvidas para compor o relato, membro de sua família -ou,
quem sabe, por isso mesmo-, Josefa não mereceu maior crédito, ficando seu nome relegado
como mãe de um dos amantes da heroína central.
Parece como se, a pesar de sua solidez histórica, não tivesse havido interesse em
realçar sua figura, assim como nenhuma outra que pudesse eventualmente rivalizar com
Dona Beja na atenção dos leitores. Como todas as outras figuras femininas, ela também
desempenhou um papel secundário sendo incluída, quando foi, apenas como coadjuvante
para compor o marco histórico da figura principal, uma vez que a combinação de
400
Autuação. 20 de dez. de 1842. Caixa nº 42. AFTF.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
182
personagens reais ou identificáveis, ainda que fosse apenas pelos nomes, conferiam
veracidade aos relatos, dando-lhes uma dimensão aparentemente histórica.
O casarão dos Carneiro de Mendonça, situado na praça, ao lado esquerdo da Igreja
Matriz, constitui outro elo entre essa família e outra das envolvidas diretamente na trama de
Dona Beja, a do coronel Fortunato, a quem passou a pertencer em algum momento após os
acontecimentos de 1842, segundo consta no processo de reclamação de herança já
analisado, onde aparece relacionada entre os imóveis que ela pretendia que fossem
incluídos na partilha. Isso não ocorreu como o indica sua menção e avaliação entre os bens
inventariados após a morte de Fortunato, herdados pela filha e o genro. Quando foi
demolido, nas primeiras décadas do século XX era conhecido como Sobrado do Zeca da
Cunha, nome de seu último proprietário.
Com relação ao sobrenome, escrito indistintamente Beija, Bêja ou Beja, acreditamos
ser este o momento oportuno para abordá-lo, por considerarmos pertencer ao terreno das
conjecturas todas as explicações que, na literatura, se deram para sua origem, sem que seus
autores tenham como fundamento ou fonte nada além daqueles em que fundamentam suas
próprias histórias e sua personagem. Não que esperássemos encontrar na literatura o mesmo
tipo de informação que se pode esperar de um trabalho histórico produzido dentro dos
parâmetros indicados pela academia, mas é importante ouvir essas explicações, porque se
inscrevem na relação de significados legitimados pela cultura popular.
Uma explicação relaciona o apelido que se deu a Anna Jacintha com a cidade
portuguesa de Bèja, na Região do Alentejo e teria a ver com a suposta origem portuguesa
que alguns atribuíram ao seu pai. A maioria o relaciona com “beijo” e com o “ato de
beijar”, palavra que se encontra em “beija-flor”, nome que também se dá ao colibri, ave
graciosa, nativa da América, com uma variedade em torno de 330 espécies, 86 delas no
Brasil. Conhecida pelo seu apetite voraz seu nome sugere que beija as flores para se
alimentar de seu néctar sem pousar em nenhuma
401
. Beijo também é o nome que se dá
popularmente ao hibisco, flor de origem polinésia aclimatada no Brasil e conhecida por
401
DALGAS, Christian; Johan Frisch. O Jardim dos Beija-Flores. Disponível em:
www.petbrazil.com.br/bicho/aves/. Acesso em 23 de jun. de 2001e atualizada em 8 de ago. de 2002.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
183
atrair o beija-flor. O hibisco é chamado de outros nomes como os sugestivos “Mimo-de-
Vênus”e “Hibisco-Colibri”
402
.
Mas, beijo é o nome popular das também populares “Maria-sem-vergonha” ou
“Beijo-de-frade”, plantas rústicas cujo nome científico é “Impatiens”, nas variedades
“Walleriana”e “Balsamina”. Existe em torno dessas flores também uma “história” segundo
a qual Dom Pedro I as teria escolhido para ornamentar o caminho que o levava até sua
amante, a Marquesa de Santos
403
.
Outra versão supostamente recolhida da tradição oral em Araxá faz derivar o
apelido da expressão “beija, primeiro!”, que Dona Beja, fiel à divisa de seu brasão, dirigia
como comprimento aos admiradores que a seus pés iam depor a fim de conhecê-la
404
. Um
conhecimento no sentido bíblico, como faz questão de esclarecer seu autor.
Como se vê, tentar uma explicação definitiva ou objetiva para o apelido, seria quase
impossível e teria que ficar no terreno das hipóteses e das conjecturas, como tantas outras
questões a respeito da nossa personagem, já que dificilmente poderíamos fazê-lo com base
em informações documentais oficiais. Tanto o significado encontrado na botânica como as
versões literárias sugerem um apelido derivado de uma conduta feminina desviante ou à
margem dos padrões de comportamento convencionais, desejados na mulher da sociedade
do século XIX. Uma conduta que na sua acepção mais branda sugeriria caracterizações
como “leviana” ou “fácil”, mesmas que se poderiam aplicar às “marias-sem-vergonha”, que
proliferavam na região tanto quanto as prostitutas.
O mais prudente é ficar nas aproximações sugeridas pela botânica e pela tradição
popular. Os apelidos - também os sobrenomes, em sua origem, se valeram de ambas -
pertencem ao domínio popular e funcionam como nomes paralelos aos oficiais ou de
batismo, identificando as pessoas segundo suas peculiaridades, incluindo-se ali as
qualidades ou defeitos, que as destacam e diferenciam na sociedade. São rótulos ou marcas
que indicam a forma como a pessoa é vista ou como ela mesma, às vezes, insiste em ser
402
Hibisco. Disponível em: www.com/flores/hibisco.htm. Acesso em 24 de jun. de 2001 e atualizada em 8 de
ago. de 2002.
403
Impatiens ou Maria-sem-vergonha. Disponível em:
http://www.jardimdeflores.com.br/CONSULTAS/mariasv.html. Acesso em 24 de jun. de 2001.
404
AZEVEDO, Vicente de Paulo de. D. Beija. In: O Estado de São Paulo. Suplemento Literário. 19 de nov.
de 1966. p. 3.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
184
vista e identificada, o que supõe uma cumplicidade entre ambas partes. Mas nem sempre os
apelidos são diminutivos ou carinhosos, surgidos no ambiente familiar e doméstico;
sugerindo qualidades e portados voluntariamente. Com freqüência são, como as caricaturas,
grotescos, irreverentes e até ofensivos encerrando crítica ou censura.
Em sua obra sobre a cultura popular na Idade Média e o Renascimento, Bakhtin
observou que os apelidos desempenhavam um papel similar ao das máscaras no carnaval,
que define como expressões das transferências, das metamorfoses, das violações das
fronteiras entre o natural e o ridículo
405
.
Luciano Figueiredo observou que uma das características das prostitutas durante a
colônia era serem portadoras de apelidos, geralmente depreciativos
406
. Mas o de Anna
Jacintha embora, aparentemente não o fosse, traduzia de alguma forma as impressões que
povo ou quem assim a batizou tinha sobre ela, estivesse o apelido baseado no seu aspecto
físico ou nos traços de sua personalidade que a destacavam ou distinguiam das outras
mulheres. As “insinuações”, que acreditamos encontrar na botânica, apoiadas na tradição
popular, denunciam, mais do que verdades ou mentiras sobre sua portadora, a criatividade,
a imaginação e a irreverência que ela fazia aflorar nos outros.
Além dos indícios que sugerem as atividades comerciais de Anna Jacintha e os que
apontam para sua origem, já analisados no capítulo correspondente, seu nome e apelido
aparecem relacio nados com alguns imóveis rurais, em documentos cartorários. Essas
referências já foram analisadas no capítulo em que se discutem suas propriedades, mas será
necessário voltar a elas para se discutir, novamente, suas possíveis ligações com...Sampaio!
Como já se sabe, Dona Beja foi proprietária de uma chácara próxima a Araxá que,
segundo a documentação correspondente, estaria localizada nas cabeceiras do Córrego do
Retiro, mesmo nome da fazenda onde, em 1867, nada menos que Forbes Fernandes de
Sampaio, filho de Manoel Fernandes de Sampaio, vendeu uma sorte de terras de seis
alqueires de cultura e sessenta e quatro de campos.
405
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François
Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1987. p. 35.
406
FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. op. cit. p.157.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
185
Situadas na Fazenda do Retiro, nas margens do Ribeirão da Capivara, essas terras
eram parte da herança paterna e nelas existia um local batizado com o título, nome e
sobrenome de “Dona Anna Jacintha de São José”.
Vendendo ele todos os campos e culturas dentro desses limites,
assim como também a Capoeira de Dona Anna Jacintha de São José e os
fundos da mata da mencionada capoeira...
407
,
O que nos obriga a novas reflexões. Em primeiro lugar, está o costume de batizar as
propriedades rurais segundo as peculiaridades que apresentam, freqüentemente inspiradas
nos acidentes geográficos localizados próximos ou dentro dos limites das mesmas. Nomes
como “Fazenda Pé da Serra”, “Fazenda do Morro Alto”, “Fazenda do Córrego Grande”,
“Fazenda do Córrego do Ouro”, são alguns exemplos encontrados nos registros cartorários,
aos quais viria a se juntar a “Fazenda do Retiro”, que pode muito bem ter recebido o nome
do Córrego do Retiro ou, ainda, emprestado o nome ao córrego, por estar localizado
próximo ou dentro de seus limites
408
. O mesmo córrego, em cujas cabeceiras se localizava a
“Chácara da Beija”, o torna, geograficamente, a ligação entre ambas as propriedades.
Existe também a referência ao Retiro de Dona Anna Jacintha de São José,
mencionado em um depoimento no processo da Revolução de 1842. Esse depoimento foi
feito por um dos acusados de liderar o movimento, aliado e aparentado com os Botelho,
logo, com Joaquim Ribeiro da Silva Botelho, genro de Dona Beja, motivo pelo qual
dificilmente poderia ter-se enganado a respeito do nome de sua proprietária.
407
Escritura de compra-venda. 5 de out. de 1867. Livro 12. Cartório do 1º Ofício de Notas. Araxá, MG.
Saibão quantos este publico instrumento de Escritura publica de compra e venda divida obrigação virem
que sendo no anno de Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e secenta (sic) e sete
Aos cindo dias do mês de Outubro do dito anno nesta Cidade de Sam Domingos do Araxá Comarca do
Parnahyba em meu Cartório compareceram as partes havidas e contractadas (sic) de uma como
vendedor Forbes Fernandes de Sampaio na pessoa de seo procurador o Major Antonio Manoel da
Apresentação (...) Procuração bastante que faz Forbes Fernandes de Sampaio como abaixo se declara
(...), que por este publico instrumento ena melhor forma de direito nomiava (sic) ao Major Antonio
Manoel da Apresentação com poderes especiais para vender as terras que elle outorgante pussui (sic) na
Fazenda do Ritiro (sic) que elle houve por Herança Paterna sendo centro e cincoenta e quatro alqueires
de campos e sete de cultura... folhas 79v-81v.
.
408
Em geral, “retiro” é uma fazenda onde o gado fica durante certa parte do ano. Em Minas Gerais, um
“retiro” pode ser um local um tanto retirado da sede da fazenda onde se solta o gado para engorda, ou
rancho para a guarda de gado invernado. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. op. cit. p. 1501. .
Rosa Maria Spinoso de Montandon
186
E existe ainda outro depoimento referindo o Retiro de Dona Anna, viúva do finado
Fernandes
409
, onde estaria escondida uma pessoa de sobrenome Batista que os Botelho
iriam procurar, “arranxando” depois em Araxá, o que acrescenta mais um “retiro” a essa
lista de propriedades, tornando todas elas vizinhas e próximas da vila
410
. (Ver mapa)
Quando Sampaio foi assassinado seu filho maior, Forbes, tinha seis anos, idade com
que foi relacionado no título de herdeiros no inventário de seu pai. Não podia,
evidentemente, assumir sua parte na herança, tendo-se transladado para Bagagem junto
com sua mãe e irmãs, a mais nova nascida após a morte de Sampaio. Na época da venda ele
já estava viúvo pela morte de sua mulher Antonia Perpetua Baptista e era pai de um filho,
Fernando Baptista Sampaio que morava com a avó, Anna Felizarda.
Reforçando o imaginário, novamente encontramos Sampaio e Dona Beja
relacionados, desta vez, em documentos imobiliários, o que poderia ser caracterizado,
segundo o “paradigma indiciário” de Ginzburg, como uma forte evidência, mais do que
circunstancial, de algum possível vínculo entre eles. A final de contas, por que nas terras
que haviam pertencido a Sampaio haveria, no mínimo, três lugares que, tantos anos após
sua morte, ainda eram chamados com o nome ou o apelido da mulher com quem o
imaginário o associou como amante?.
E, mais uma vez, o caminho que os une tem mão dupla. Os lugares teriam sido
batizados assim em decorrência da relação amorosa que de fato existia entre eles? Ou essa
relação surgiu no imaginário como resultado da coincidência e da vizinhança dos lugares?
Mas qualquer que tenha sido a direção do caminho tomado para associá-los, ainda
havia o fato concreto e explícito de existir nas terras de Sampaio um lugar denominado
“Capoeira de Dona Anna Jacintha de São José”.
O nome Anna Jacintha de São José, que foi dado ao lugar, aponta para diversas
possibilidades, como a de que essas terras, compradas ou ganhadas, já lhe tivessem
pertencido, ainda que não se tivessem localizado documentos que, como no caso de seu
409
Autos do Processo da Revolução de 1842. Depoimento de José Maximiano de Cerqueira. Segundo ele,
Fortunato Botelho e Joaquim Carneiro disserão a elle testemunha que havião de prender a Carlos Batista
Maxado que estava escondido no retiro de Dona Anna Viúva do finado Fernades e que no outro dia
haviam de arranxar na villa... folha nº 354v.
410
Seguindo as referências documentais e de acordo com o mapa do Município de Araxá elaborado pelo
Departamento de Cartografia do IBGE, a “Fazenda do Retiro” devia estender-se por uma ampla área,
Rosa Maria Spinoso de Montandon
187
sobrado, dessem notícia de qualquer transação imobiliária em torno deles. Que esse local
tivesse sido batizado assim, em sua homenagem, por estar próximo ou ser vizinho a sua
propriedade. Porque, como ocorreu com a fonte no imaginário social, era um lugar
freqüentado por ela, ou por quaisquer outros motivos e fatos que a associaram com ela.
Mas, afinal, significava que o lugar estava fortemente identificado com ela e que
essa relação nome-lugar estava devidamente legitimada pela memória e pelo costume,
sendo por isso registrado como referência de localização em documentos oficiais.
Podemos aplicar o mesmo tipo de raciocínio ao “Espigão da Beija”, referência de
localização encontrada em outro documento, ainda que isolada e que parece referir-se a
uma área situada próxima à propriedade denominada “Chácara da Beija”.
Contudo, o nome e apelido de nossa personagem, tanto num como noutro lugar,
parece haver-se eclipsado da memória local junto com a chácara, depois que a mesma
desapareceu de fato por volta de 1889, possivelmente demolida ou “desmanchada”, como já
vimos no primeiro capítulo. A chácara e não mais sua dona, que estava ausente de Araxá
fazia mais de vinte anos e tinha morrido em 1874, alimentava a memória, funcionando
como a referência básica para esses lugares. Parecera como se com a desaparição da
chácara tivesse desaparecido o motivo para manter nesses lugares a memória de seu nome.
Após esse ano, não encontramos mais seu nome e apelido em documentos
cartorários associados a esses lugares. A Chácara da Beija deu lugar à “Chácara do Jatobá”,
nome genérico do lugar onde se localizava e que foi incorporado a diversas outras
propriedades rurais situadas nessa área, ao norte da cidade. A essas alturas, o nome de sua
própria casa também já tinha sido transferido para a de suas antigas vizinhas.
Mais do que o sobrado na cidade, é a chácara que no mito aparece mais associada à
sua imagem de cortesã, já que teria sido esse o cenário de suas aventuras na difícil “vida
fácil”, que tão caras saíam para os usuários. Esse fato acentua a importância e o significado
do lugar na construção dessa imagem.
Na estrutura do mito, a casa representaria a sede familiar, onde bem ou mal; de
acordo ou em desacordo com os códigos sociais, Dona Beja desempenhava o papel de
chefe e mãe de família. E, como não foi por essas características que ela sobreviveu no
cortada pelo Córrego do Retiro, dentro do atual perímetro urbano da cidade onde, ainda hoje, existem
várias propriedades rurais que mantém esse nome.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
188
imaginário, esse imóvel pode ser mais facilmente descolado da figura de sua dona, sendo
transferida para o sobrado vizinho. Nesse lugar, instalação de uma instituição cultural com
seu nome contribuiu para resguardá-lhe o papel de sua suposta residência.
No caso da chácara, que não mais existia materialmente, a memória e o imaginário
puderam atribuí-lhe com inteira liberdade a locação de suas atividades amorosas no terreno
profissional, dando vazão à fantasia erótica daqueles que contribuíram para torná-la uma
figura ao mesmo tempo fascinante e marginal. No imaginário local, a Chácara do Jatobá
passou a funcionar como eufemismo de bordel de luxo, onde todas as licenças eram
concedidas no terreno erótico.
Mais condizente com uma visão empresarial moderna, chegou-se a precisar em
duzentos mil réis o preço fixo que ela cobrava, no século XIX, pelo simples ingresso ao
local, independentemente dos serviços pessoais e profissionais que, eventualmente, os
pagantes pudessem vir a receber dela, ainda que lá fossem servidos com bebidas, comida e
música.
Toda a fantasia que os “bons costumes”, ancorados na tradição religiosa, impediam
de aflorar e tornar realidade
411
era transportada pela imaginação e pelo imaginário para a
Chácara do Jatobá, até que puderam ser supridos pelos recursos modernos e sucumbiram a
outros apelos, notadamente, os provenientes da mídia.
Significativamente, após seu desaparecimento, o local foi “consagrado” a fins bem
mais nobres: ali se localizaria atualmente uma chácara pertencente às freiras da ordem
dominicana. Responsáveis por um tradicional colégio que tem educado sucessivas gerações
de meninos e meninas, que mantém vivos a tradição, a moral e os bons costumes dos
araxaenses.
Quis o “destino” que o tempo, com seus aliados a memória e o esquecimento se
encarregaram da “recuperação” de um lugar que, ainda que palco de prazenteiras fantasias,
fora no passado a morada do pecado, reservado-o para o descanso e o lazer das “noivas” do
Senhor.
411
Na década de 1920 existiam em Araxá em torno de dez associações religiosas como: as de São José, Filhas
de Maria, São Francisco e São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito...
Rosa Maria Spinoso de Montandon
189
¤
Tendo estruturado nosso trabalho em capítulos independentes que contém suas
próprias conclusões, só nos resta, finalmente e segundo mandam as normas técnicas,
apontar nossas últimas considerações sobre as pesquisas realizadas em torno do processo de
construção do mito aqui abordado.
Como esperamos ter mostrado, esse processo envolveu um conjunto amplo de
fatores de natureza política, econômica e cultural que se articularam no cenário histórico e
social de Araxá, abrangendo os quase dois séculos de sua existência. (Des)construir o Mito
Dona Beja, junto ao qual a cidade cresceu e se desenvolveu, equivaleu a desvendar uma
boa parcela de seu passado.
Quando Rocha Ferreira encerrou seu mural das termas no recorte cronológico
situado entre 1800 e 1890, o fez para assinalar o longo período histórico de Araxá
dominado pela figura de Dona Beja. De fato, todos fios que entrelaçam os marcos
históricos do século XIX, construídos pela memória local conduzem até ela. Nesse longo
trajeto memória, imaginação e história harmonizaram-se para, juntas, cristalizar como
realidade histórica uma memória socialmente construída, capaz de atender e explicar
satisfatoriamente um povo e seu passado.
Seria uma temeridade dizer que um povo não conhece ou não tem história porque o
que conhece de seu passado está fundado em mitos ou lendas. Foi-se o tempo em que para
os historiadores mito era sinônimo de mentira. Mas, admitindo-se que o fossem, segundo os
critérios históricos tradicionais para caracterizar a verdade e a mentira, a história e a ficção
ainda podemos argumentar que são mentiras ou ficções construídas e re-significadas por
uma sociedade e, portanto, portadoras de “sua verdade”.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
190
Cada povo constrói sua história e representa seu passado da maneira como melhor
atenda a sua necessidade de legitimação e procura dos elementos com os quais construir sua
identidade, não sendo o papel do historiador ir atrás do que julgue ser mentira ou verdade,
senão dos processos que deram lugar à sua construção.
Por outro lado, e com relação à contribuição para a (re)construção do conhecimento
histórico local, podemos afirmar que o tema que exploramos não se esgota neste trabalho,
podendo dar origem a muitos outros, de orientação política e econômica. Provavelmente a
contribuição mais consistente seja, além do levantamento de fontes, o universo de
possibilidades temáticas derivadas delas e que nos apontam para temas relacionados, por
exemplo, com a condição feminina no âmbito local que, acreditamos, poderia confirmar ou
reforçar os que consideram exagerada a suposta passividade das mulheres durante o período
colonial e imperial.
Outra possibilidade temática derivada desta pesquisa aponta para as estruturas
sociais e familiares, para natureza particular das relações econômicas e políticas que nas
vilas e arraiais, como Araxá do século XIX, distantes dos grandes centros urbanos e de
poder adotavam um caráter localista movendo-se na dinâmica de um universo paralelo.
Desenvolvidos com a complacência social, assuntos eclesiásticos e leigos,
amorosos e políticos, familiares e públicos se teciam numa intrincada rede de relações que
dão uma pista da tênue fronteira entre o conhecido e desconhecido dos espaços públicos e
privados. Prostitutas e donas de casa, compadres e políticos, curas e coronéis atuando
promiscuamente, livre e de comum acordo em todas as esferas da vida pública e privada, ao
amparo de uma benevolência informal que contradiz a suposta rigidez moral do passado.
Ainda em relação às inúmeras possibilidades temáticas derivadas e complementares
desta pesquisa podemos apontar também, em seus capítulos locais e regionais, as que se
desprendem da Revolução de 1842, do movimento separatista do Triângulo Mineiro, do
modernismo das primeiras décadas do século XX e o projeto de modernização da era
Vargas, com a construção do Grande Hotel do Barreiro; do elenco de imagens e
representações do mito na literatura, na iconografia, na festa e na mídia que, em conjunto
ou individualmente, podem produzir trabalhos de enfoque cultural tendo com objeto o mito
Dona Beja na fotografia, pintura, poesia, música popular, carnaval e televisão.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
191
Finalmente, para encerrar nosso trabalho e fazendo uma avaliação do objeto que
estudamos, podemos concluir que ainda que “inventado” sobre um cenário
predominantemente rural, o Mito Dona Beja é um produto urbano, concebido e mantido em
função de conflitos e interesses eminentemente urbanos, daí que seu público consumidor
esteja localizado também nas cidades, mais facilmente alcançado e susceptível aos apelos
da mídia, veículo por excelência do mito moderno.
Não são apenas os sonhos de sucesso econômico e ascensão social que Dona Beja
representa. Há também sonhos de autonomia, independência e liberdade por trás de seu
sucesso entre mulheres e homens. Há ainda o desejo de proteção e limite que inspira uma
personalidade forte, assim como as fantasias sexuais e os devaneios eróticos provocados
pela mulher proibida e pecadora.
E essa é uma das características mais singulares de sua trajetória mítica, que lhe tem
garantido a longevidade, atualizando sempre sua vigência, dotando-a da capacidade de
mudar facilmente de roupagem, em uma camuflagem camaleônica que lhe permite ser
confundida com todas as causas que a reclamem e identificada com todos os discursos que
a proclamem.
A natureza versátil de sua figura foi material dócil e moldável na construção do
mito, o que não deixa de admirar quando o que se criou foi a imagem de uma mulher forte,
rebelde, guerreira, que a seu modo e nem sempre com as armas convencionais, se impôs
num mundo dominado pelos homens. Do barro mole, novamente se construiu um ser
resistente que, como a mesma humanidade, desde os princípios da criação, vem resistindo
aos masculinos desígnios “divinos”.
Uma figura que seduz a todos com sua identidade versátil, por aliar aos encantos
femininos convencionais, os, também convencionais, atributos masculinos de poder,
coragem e força. Mulher travestida em homem? Homem travestido em mulher?
Como representação feminina cuja imagem se desdobra em múltiplas formas e
matizes, Dona Beja novamente nos remete à mitologia grega, especialmente ao mito
segundo o qual a jovem Cênis, virgem raptada por Poseidon, foi por ele metamorfoseada
em homem, forte, invulnerável, como recompensa ou compensação por havê-la mantido em
sua companhia e para que nunca mais pudesse ser violada.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
192
Forte e poderosa, voltou como Ceneu, “o domador de cavalos”, fincou sua lança no
meio da praça e obrigou o povo a cultuá-lo, tornando-se um tirano. Indignado, Zeus enviou
os centauros para castigá-lo e estes, lembrando-se de que era invulnerável, o golpearam
com troncos de abetos, enterrando-o como uma estaca. Um adivinho viu um pássaro surgir
dentre a pilha de troncos e nele reconheceu a alma de Ceneu e somente se descobriu que era
mulher quando foram lhe dar sepultura
412
.
Como a antiga Cênis do mito grego, a moderna Dona Beja do mito brasileiro
também foi violada e devolvida à sua cidade rica, invulnerável, poderosa e intocável.
Tornada máscula, como Ceneu, pelo poder que o ouvidor lhe conferiu, Dona Beja também
se fez objeto de adoração pública, plantando no meio da praça seu sobrado. Arrogante e
tirana, contrariou os “sagrados” desígnios masculinos, e desafiando um coronel incorreu na
ira divina, sofrendo os duros golpes dos “centauros”. Como um pássaro, seu espírito, beija-
flor, voou até o imaginário. Perto do fim, embora invulnerável, buscou o perdão, e
abandonando a armadura que a tornara masculina, permitiu-se voltar a ser mulher, piedosa
e frágil.
Caracterizada como uma metáfora da própria cidade que o criou e que, apesar de
sua aparente resistência, acabou por adotá-lo para se fazer representar, refletindo nela seu
cosmopolitismo e desejando-se cada vez mais branca e “limpa”, O Mito Dona Beja é a
própria imagem de Araxá, que vive em, e por ela.
Como Dona Beja do relato original, Araxá também nasceu camponesa, foi dotada
pela natureza de encantos e belezas não igualados pelas suas conterrâneas: suas fontes de
águas minerais, que a singularizaram entre suas irmãs e vizinhas. Como Dona Beja, Araxá
também conheceu a adversidade e foi objeto do desejo de poderes superiores. O Estado
apropriou-se de suas fontes, maculando sua beleza, ainda que a recompensasse provendo-a
de um rico patrimônio. Pelo Grande Hotel do Barreiro, Araxá conheceu o mundo e o
mundo a conheceu e, deixando para trás a vida de modesta camponesa, passou a “vender”
saúde e beleza, em embalagem de luxo. Mundana, escolheu o turismo de “alta classe” para
ganhar fama e fortuna.
412
Como no mito de Cênis, a origem paterna de Dona Beja também é polêmica. Tampouco teve descendência
com seu violador, nascendo suas filhas após seu retorno a Araxá. Cf. DEVEREUX, Georges. Cênis-
Ceneu. Um pênis como indenização por uma violação. In: ------ Mulher e Mito. Tradução de Beatriz
Sidou. Campinas, SP: Papirus, 1990. pp. 227-244.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
193
Hoje, Dona Beja é Araxá. Espelho de suas contradições, metáfora de suas
convicções e resposta a seus desejos. Nela se refletem, simultaneamente, as imagens do
presente, as representações históricas e “verdades” míticas de seu passado e as projeções do
seu futuro. Esse é, pois, o segredo de sua “teia”:
Revelado e nunca dito,
decifrado sem ser escrito,
arrancado e não cedido;
mensagem em código, mito (des)construído.
E essa é, também, a chave de sua “Juventa”
413
, fonte de vida, de sua sedutora
beleza e eterna juventude.
413
Nos romances e na novela sobre Dona Beja, a “Juventa”, fonte da eterna juventude da mitologia clássica,
foi transformada em “Fonte da Jumenta”, onde ela se banhava diariamente.
Fonte Dona Beja
Rosa Maria Spinoso de Montandon
194
1 DOCUMENTAIS
Arquivos da Fundação Cultural Calmon Barreto. Araxá, MG.
Autos do Processo da Revolução de 1842.
Arquivo do Museu Dona Beja.
Arquivo da Câmara Municipal.
Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, MG.
Mappa Populacional da Província de Minas Gerais”. 1832
Arquivos Cartorários.
“Coleção Augusto Eduardo Montandon”. (Cartório do Primeiro Ofício de Notas)
Araxá, MG.
“Coleção Joaquim de Paula”. (Antigo Cartório do Segundo Ofício de Notas)
Araxá, MG.
Cartório de Registro de Imóveis. Araxá, MG.
Arquivos Eclesiásticos.
Igreja Matriz de São Domingos. Araxá, MG.
Igreja Matriz de Nossa Senhora Mãe dos Homens . Estrela do Sul, MG.
Arquivo Paroquial de Carmo do Parnaíba, MG.
Fórum Tito Fulgêncio. Araxá, MG.
Autuação. (contra) Josefa Maria Roquete Franco. 1843. Caixa Nº 42.
Inventário de Antônio Almeida Ramos. 1888. Caixa Nº 171.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
195
Inventário de Desidério Mendes dos Santos. 1838. Caixa Nº 34.
Inventário de Francisco José da Silva. 1845. Caixa Nº 43
Inventário de Felício da Rocha Roiz. 1885. Caixa Nº 164.
Inventário de Fortunato José da Silva Botelho. 1890. Caixa Nº 180.
Inventário de Ignácio Affonso de Almeida. 1870. Caixa Nº 170.
Inventário de Josefa Pereira. 1854. Caixas Nº 61 e 67.
Inventário de Manoel Fernandes de Sam Paio. 1836. Caixa Nº 33.
Inventários de Joaquim Ribeiro da Silva Botelho e Tereza Thomazia de Jesus.
1852. Caixa Nº 57.
Libello Cível. (contra) Manoel Fernandes de Sam Paio. 1833. Caixa Nº 30.
Processo de Reclamação de Herança. (contra) Fortunato José da Silva Botelho.
1861, 1863, 1867. Caixas Nº 74, 78, 93.
Memória do Judiciário Mineiro. Belo Horizonte, MG.
Inventário e Testamento de Dona Anna Jacintha de São José. 1874.
Literatura
AARÃO, Juliano. Anna Beija. Memórias. Goiânia: Gráfica e Editora Bandeirante,
1997.
ALMEIDA, J.G. O Sertão dos Araxás e os Amores de Dona Beija. 2ª ed. São Paulo:
J. Bignard & Cia. 1967.
ALVIM, Maria Lúcia. Romanceiro de Dona Beja. Rio de Janeiro: Fontana;
Brasília: INL, 1979.
BORDIGNHON, Luiz Ignácio. Dona Beija em versos: Atualidades e Reminicências.
São Paulo: Pannartz, 1989.
COSTA, Waldir Luiz. Da Maloca ao Palácio. 2ª ed. Goiânia: Gráfica Popular, 1987.
D’AVILA, Ângelo. Dona Beja Nua e Crua. Rio de Janeiro: Laís Costa
Velho/CODPOC, 1992.
Rosa Maria Spinoso de Montandon
196
------ Dona Beija. A Flor do Pecado. (uma mártir prostituída pela sujeição de um
potentado e a rejeição de uma sociedade). Brasília: Códice, 1999.
FRIEIRO, Eduardo. A “Respeitosa” do Araxá. In: ------ O Diabo na Livraria do
Cônego. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 1981. pp. 175-184.
GUIMARÃES, Bernardo. O Garimpeiro. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1982.
LEONARDOS, Thomas. Dona Beija: a Feiticeira do Araxá. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Record, 1987.
------ Dona Beija: a feiticeira do Araxá. Quadrinização de Pedro Anísio; texto Orestes
de Oliveira Filho e José Menezes. Rio de Janeiro: Ed. Brasil-América, 1979.
PONTES, Hildebrando de Araújo. “Dona Beija”. 1800 1890. Araxá, Estado de Minas
Gerais. S/D.
ROSA, Pedro Divino. Dona Beija. Edição independente, 1999.
TEIXEIRA, Maria Santos. O Solar de Dona Beija. Belo Horizonte: Gráfica Santa
Edwiges, 1965.
VASCONCELOS, Agripa. A Vida em Flor de Dona Bêja. Belo Horizonte: Itatiaia,
1985.
Discografia e Vídeo.
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2 ORAIS
Entrevistas
Sr. Atanagildo Côrtes. 6 de novembro de 2000.
Sra. Elizena carvalho Montandon. 11 de julio de 2001.
Sr. Giordano Vieira de Carvalho. 11 de abril de 2002.
Sra. Guaraciava Teixeira Borges. 11 de junho de 2001.
Sr. Luiz Di Mambro. 23 de janeiro de 2001.
Sr. Mário Lúcio Costa. 11 de abril de 2002.
Sra. Maria Santos Teixeira. 16 de fevereiro e 19 de novembro de 2000.
Sr. Leandro Haddad. 17 e 23 de janeiro de 2002.
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Dutra. São Paulo: EDUSP, 1994.
Figura 3. Desde 1965, Araxá teve sempre como representante uma “Dona Beja” .
Figura 2. O Grande Hotel do Barreiro.
Figura 4. “Araxá, cidade que pela sua gente sabe crescer por seus próprios méritos...”
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Figura 5. “ ...a mais famosa destaque das Escolas de Samba do Rio de Janeiro”
Figura 6. Dona Beija: “a novela paixão”
Figura 7. “A fama e a beleza de Dona Beja venciam as distâncias...”
Figura 8. Dona Beja em sua liteira
Figura 9. Dona Beja “a ninfa das fontes”
Figura 11. Capa da 2ª edição de “Dona Beja Feiticeira do Araxá”
Figuras 10. “Dona Beja e seu Pajem”
Figura 12. Revista ilustrada
Figuras 13 e 14. Fotografias atribuídas a Dona Beja.
LISTA DE ABREVIATURAS
AFCCB - Arquivos da Fundação Cultural Calmon Barreto.
ACM - Arquivo da Câmara Municipal.
AMDB - Arquivo do Museu Dona Beja.
AFTF - Arquivo do Fórum Tito Fulgêncio.
AIMSD - Arquivo da Igreja Matriz de São Domingos.
APCP - Arquivo Paroquial do Carmo do Parnahiba.
APES - Arquivo Paroquial de Estrela do Sul.
APM - Arquivo Público Mineiro.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Antigo Sobrado de Dona Beja. Fotografia de Rosa Maria Spinoso de Montandon,
2001.
Figura 2. Grande Hotel do Barreiro. Fotografia de Rosa Maria Spinoso de Montandon,
2002.
Figura 3. Jovens araxaenses caracterizadas como Dona Beja. In: Revista O Cruzeiro, 1964;
Revista Geográfica Universal, 1978; Embalagem de café; acervo particular.
Figura 4. Araxá. A Favorita do Sol. Folder. Secretaria Municipal de Turismo, 1976/77.
Figura 5. Isabel Valenya. Destaque da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, 1968.
Disponível em: andre@galeriado samba.com.br.
Figura 6. Dona Beija. A Novela Paixão. MancheteVideo, SID.
Figura 7. Joaquim Rocha Ferreira. Mural das Termas do Barreiro. Fotografia de José
Augusto MontandonNeto. 2001.
Figura 8. Joaquim Rocha Ferreira. Mural do Grande Hotel do Barreiro. Fotografia de João
de Lima, 2002.
Figura 9. Joaquim Rocha Ferreira. Mural da Fonte Dona Beja. Fotografia de Rosa Maria
Spinoso de Montandon, 2001.
Figura 10. Calmon Barreto. Dona Beja e seu pagem. Fotografia de Jose Augusto
Montandon Neto realizada no Museu e Ordem Geral Plinio Travassos dos Santos,
Ribeirão Preto, SP, 2002.
Figura 11. Rubens. 0 Rapto das Filhas de Leucipo. (capa) In: LEONARDOS, Tomas. Dona
Beja a Feiticeira do Araxá. Rio de Janeiro: Record, 1979.
Figura 12. Pedro Anisio.Quadrinizaçã. In: LEONARDOS, Tomas. Dona Beja a Feiticeira
do Araxá. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1979.
Figum 13. Fotografia. Acervo do Museu Hist6rico de Araxá, Dona Beja. SID.
Figura 14. Fotografia.Acervo do Museu Hist6rico de Araxá, Dona Beja. SID.
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