Rosa Maria Spinoso de Montandon
momentos em que supostamente teria ditado sua última vontade e constitui, hoje, um
testemunho valioso, não só do aparato social e familiar que cercava o parto, como do drama
vivido pelas mulheres em sua batalha para colocar os filhos no mundo
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Embora esse tipo de documento não o registre, é possível entender a dor, a angústia
e o medo, que devia tomar conta das mulheres ante a iminente batalha que deveriam travar
sozinhas, ainda que rodeadas da família. Luta solitária, intransferível e freqüentemente fatal
que, nos partos difíceis, como o de Theodora, culminava, invariavelmente, com a morte de
mãe e filho, transformando em trágico fim o que deveria ser o início de uma nova vida.
Maus ou difíceis tais partos dão a medida da confrontação entre a vida e a morte em que
viviam as parturientes de nosso passado
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A descrição do médico segue um tom objetivo e profissional
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embora não se possa
deixar de considerar um possível comprometimento pessoal com a família, motivado pelo
seu casamento com D. Maria Porfírio Alvarez Machado, que tinha um filho natural de
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Certifico que em oito de novembro de mil oito centos e cincoenta e seis cheguei ao meio dia na Fazenda da
Mandioca, para onde tinha sido chamado a peditório do Senhor Coronel Furtunato da Silva Bothelho,
cuja ordem me foi transmitida (sic) pelo Senhor tenente Coronel Francisco José da Silva Botelho, que ao
chegar fui recebido pelo Senhor Antônio Theodoro, que me comunicou ao apearme o estado da
Parturiente, dizendo-me que se esperava a cada hora o momento funesto que levaria a parturiente da vida,
e que ao vel-a (sic) melhor ajuizaria. Entrando no quarto da enferma achei-a exausta de força,(sic) e
custou algum pouco em conhecer-me, só o pulso faltava, o ventre estava extraordinariamente crescido, e
denotava huma hemorragia interna, havia ausência de colichas, (sic) que segundo me informarão as
Parteiras, cessaram de correr na noite da quarta feira digo de quarta para quinta feira anterior. A criança
não existia mais, e declarei a família que qualquer tentativa para extrahi-la (sic) (...) por meio de fórceps,
ou da operação Cesaria seria seguida da morte rápida da Enferma, porem que era do meu dever tentar a
dilatação do collo uterino e a extração do feto. O senhor Antônio José da Silva declarou-me em nome
delle e da família que se oppunha (sic) a qualquer operação. Pratiquei então a tentativa para obter a
dilatação (...) na terceira tentativa hum desmaio profundo fez temer pelos dias da enferma (...) e as oito e
meia falleceu (sic) a enferma com o feto no ventre (...) As pessoas presentes eram tantas quanto me posso
lembrar, o dito Vigário, Eduardo Bernardes, os ditos Antônio José da Silva Sobrinho, e Antônio Theodoro,
cunhados da Enferma; José da Costa, Francisco de Salles, João de Tal Mattos, e as mais pessoas cujos
nomes não me posso recordar; duas parteiras, Joanna e Anna, a viúva do fallecido José Jacintho e a
mulher do Senhor Antônio Theodoro. Durante as horas de minha estadia vieram algumas visitas, entre
elas...”. Processo de Reclamação de Herança. p. 29-30.AFTF.
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Idem. p. 261.
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Idem. A autora adverte para a insensibilidade desses relatos médicos que, no entanto, constituem valiosas
fontes que permitem “capturar” os comportamentos individuais e do grupo, assim como as estruturas
mentais, o imaginário e as práticas sobre o nascimento. Embora pareçam protagonistas silenciosas, as
mulheres deixaram marcas nas falas dos doutores que um dia se debruçaram sobre os mecanismos do
parto, e a despeito do testemunho indireto que significa o saber médico, ele apoiava-se em realidades
femininas. p. 256.