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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
MARIA DO SOCORRO DE SOUSA ARAÚJO
PAIXÕES POLÍTICAS EM TEMPOS REVOLUCIONÁRIOS:
nos caminhos da militância, o percurso de Jane Vanini.
(1964 - 1974)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História, como requisito
para obtenção do título de mestre em
história.
Orientadora: Profª Drª Regina Beatriz Guimarães Neto
Cuiabá Mt
2002
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FICHA CATALOGRÁFICA
A663p Araújo, Maria do Socorro de Sousa
Paixões políticas em tempos revolucionários: nos
caminhos da militância, o percurso de Jane Vanini
(1964-1974) / Maria do Socorro de Sousa Araújo
. – Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
2002.
233p.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em História do Instituto de Ciências Huma-
nas e Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso, como requisito para obtenção do título de
Mestre em História, sob orientação da Prof. Drª Regi-
na Beatriz Guimarães Neto.
Bibliografia: p.225-233.
CDU – 323.22
Índice para Catálogo Sistemático
1. Militância política 1964-1974
2. Vanini, Jane Militância política 1964-1974
3. Vanini, Jane Memórias
4. Narrativas pessoais
5. Ditadura Brasil Chile
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Banca Examinadora
Prof. Dr. Paulo Celso Miceli
Universidade Estadual de Campinas
Profª Drª Lylia da Silva Guedes Galleti
Universidade Federal de Mato Grosso
Profª Drª Regina Beatriz Guimarães Neto
Universidade Federal de Mato Grosso
Orientadora
Jane Vanini não é mais terrena. Virou história.
João Negrão
Dedicatória
Aos meus filhos Antenor e Jussara, meus amores e minhas razões, que dão sentido à
invenção e à recriação da vida, todos os dias;
e a todas as pessoas que sabem inventar na vida, o substrato do viver.
Agradecimentos especiais
À toda família Vanini e, em particular aos irmãos Romano que, no primeiro
contato, se empenhou na interlocução com sua irmã, possibilitando assim as primeiras
revelações sobre essa história; a Dulce, a quem devo respeito e consideração singulares,
pela confiança e autorização em poder tornar pública a “história de vida’ de sua irmã, cujo
consentimento e disponibilidade ao acesso e o manuseio das correspondências pessoais
trocadas com Jane Vanini, tornou possível a construção da pesquisa; a Magali, pelo
acolhimento fraterno em sua residência nos momentos de buscas no Arquivo Público do
Estado de São Paulo e, sobretudo, porque, sem sua firmeza e seu apoio decisivo a Dulce,
quando foram feitos os primeiros contatos, essa investigação histórica também não teria
essa dimensão.
A minha orientadora acadêmica Profª Drª. Regina Beatriz Guimarães Neto, por
acreditar na minha capacidade de produção, por apontar caminhos para a pesquisa e por
tornar acessível múltiplas formas de tecer métodos, palavras e idéias, as quais dão sentido
e coerência à trama histórica.
À Banca de Qualificação, formada pelo Prof. Dr. Paulo Celso Miceli e pela Profª
Drª Lylia da Silva Guedes Galleti, que no rigor das leituras acadêmicas, fizeram
recomendações que orientaram a construção do texto de dissertação.
Aos entrevistados Natalino Ferreira Mendes, Suzana Lisboa, Regina Helena
Costa Marques Leal Cardoso, Airton Montecchi Filho e Abnael Bordon que, nas suas
lembranças, propiciaram a reconstrução e atualização de tempos e vivências.
Ao Programa de Pós-graduação da Universidade Federal, na pessoa de sua
coordenadora Profª. Drª Maria Adenir Peraro e à secretária Matilde Kroike, pelo zelo com
o curso e pelos cuidados, quase maternais, para com os mestrandos.
A todos os colegas do curso de mestrado em História, que incentivaram a
caminhada, pois, juntos, construímos esse tempo acadêmico. Agradeço especialmente a
Vânia Cristhina Nadaf, cuja iniciativa de enquadramento do texto contribuiu com a feição
final da dissertação. Muito me engrandece merecer sua atenção e sua amizade porque,
mais que dividir vitórias e angústias, você inventou formas de prestar solidariedade e
ensinou compartilhar momentos de vida.
Ao Departamento de História da Unemat, na pessoa do Prof. Ms. Otávio Ribeiro
Chaves e às Professoras Mestras Neuza Benedita Zattar, pelo rigor dos aspectos
lingüísticos do texto; Leila Jacob Bisinoto, pelas construções intelectuais compartilhadas
desde o início das investigações; Olga Maria Castrillon Araújo, que apontou trilhas
cruzadas entre a história e o texto literário e Vera Maquea, que nas discussões sobre
escrituração de textos, concebe a narrativa como uma trama apaixonada da pesquisa.
A “Jô”, pela atenção, pelo apoio, pelo incentivo e pelo afeto que tem dispensado,
em especial, nos momentos que se apresentam mais angustiantes.
A Salvy Bosco de Rezende, amigo e também solidário em momentos frágeis, por
acreditar na pesquisa histórica e pela ajuda valiosa na produção material de todo o
trabalho. À Marly, Pedro Piloni, Joel, Glener, Vinícius, Odete, Eber, Márcia, Oirma e
outros amigos, pela ajuda, compreensão e pela partilha em vários momentos difíceis.
Por último, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram com a
experiência de construir o percurso e esse texto de pesquisa histórica.
.
SUMÁRIO
Resumo..............................................................................................................................viii
Abstract ..............................................................................................................................ix
Apresentação .....................................................................................................................01
Construindo o objeto e definindo as fontes documentais ...................................................09
A dissertação em capítulos ................................................................................................14
Capítulo I Mundos, tempos e vidas .............................................................................17
Na trama das palavras, os tempos vividos ........................................................................18
Mundos plurais, vidas singulares .......................................................................................32
Registro fotográfico: entre a sedução e a memória ............................................................60
Capítulo II Lutas, vivências e experiências .................................................................70
Clandestinidade: territórios da razão e da paixão ...............................................................71
Chile: a experimentação da utopia .....................................................................................84
Tempos entre cartas ..........................................................................................................138
Capítulo III Percorrendo memórias, silêncios e paixões ........................................158
Memória de um tempo revisitado .....................................................................................159
As armas dos silêncios ......................................................................................................191
Paixões Políticas em Tempos Revolucionários:
nos caminhos da militância, o percurso de
Jane Vanini
(1964 - 1974)
A força das paixões ..........................................................................................................201
Considerações finais ......................................................................................................217
Referencias bibliográficas e fontes documentais ........................................................224
Referências bibliográficas.................................................................................................225
Fontes documentais disponibilizadas para a pesquisa .....................................................231
RESUMO
Esse trabalho de pesquisa tem por finalidade dar conhecimento mais detalhado às
práticas de militância política de esquerda, incluindo ações da luta armada, que acontecem
durante as ditaduras militares na América Latina. Para tanto, na perspectiva da
microanálise, é escolhido como fio condutor das investigações, as ações da militante Jane
Vanini, cujo percurso vai do Brasil ao Chile, passando pela Europa e Cuba, no período
compreendido entre os anos de 1964 e 1974.
Com base na documentação disponível, especialmente cartas pessoais enviadas à
família, assim como fontes orais e documentos institucionais, também estão postos os
movimentos que configuram as territorialidades do particular e do público. Nessa
perspectiva, os resultados da pesquisa dão visibilidade aos aspectos que se incorporam às
condutas e comportamentos políticos e sociais.
Por último, o trabalho, no seu todo, também aponta aspectos singulares de um
mundo simbólico, cujas significações colocam à prova, valores e tradições vigentes na
época. Eles, os símbolos, dão sentido às escolhas, esperanças, paixões, utopias, vitórias e
até aos fracassos, desencantos e derrotas de homens e mulheres que assim constroem suas
experiências de vida na dimensão e nas teias dos tempos revolucionários.
Abstract
This research work has the main target to give a deepper knoledgement to the left
political militants practicing work, including the armed struggle actions that happen
during the military dictatorship in Latin America. So, it has chosen as the investigation
start, the actions by the militant Jane Vanini, whose itinerary begins from Brazil to Chile,
going by Europe and Cuba, during the period between the years of 1964 and 1974.
Based on the available documentations, mainly personal letters sent to the family,
oral sources and institutional papers as well, it also can be found movements showing the
private and publics territories. In such perspective, the research results can show you
aspects joining social and political conducts and behavior.
Finally, in its whole, the work also points a symbolic world’s singulars aspects
whose meaning tests the traditions and values of that period of time. The symbols give
sense to men’s and women’s choices, hopes, passions, utopias, glories and even failures,
desenchantments and defeats that build up their lives experience in the revolutionary
dimensions and cobweb.
ApresentaçãoApresentação
Capítulo I
Mundos, Tempos e Vidas
Na trama das palavras, os tempos vividos
Cartas são instrumentos que, ao registrar suas informações, produzem sensações
diversas, mexendo com o estado emocional tanto de quem as escreve, quanto de quem as
lê.
Num primeiro instante, uma carta parece não passar de um veículo comum que provoca
um movimento de notícias que articulam pessoas, as quais se encontram fisicamente
distantes. No entanto, há uma complexidade que independe da natureza e do conteúdo que
cada carta carrega.
Para efeito de compreensão, o lastro desta pesquisa são cartas pessoais que
possibilitam, pela leitura dos conteúdos e interpretação de seus enunciados, a reconstrução
de aspectos de uma experiência político-social trágica vivenciada por uma jovem
estudante, entre os anos de 1964 e 1974. Essas cartas pessoais, produzidas entre os anos de
1972 e 1974, foram trocadas entre Jane e Dulce Vanini, e encontram no restabelecimento
das relações familiares, uma das fortes razões de existirem. Trata-se especialmente de
duas irmãs, uma delas, autora e remetente, Jane Vanini, que, na época vivendo
politicamente clandestina em Santiago-Chile, faz de suas correspondências, entre vários
outros sentidos, o reatamento de laços afetivos com sua família.
Num total de trinta e sete cartas, Jane destinou grande parte delas a Dulce, sua
irmã mais velha, a quem tratava afetivamente de “Madrinha” e que, naquele período, na
condição de funcionária da empresa Mappin S/A, residia em São Paulo-Capital. Embora
Dulce tenha sido a receptora das cartas, Jane também endereçou correspondências a outros
destinatários como irmãos, pais, sobrinhos, cunhados e tios.
O ato de escrever e trocar cartas são práticas antigas, produtoras de múltiplas
sensações que, num sentido primeiro, geram ao mesmo tempo um prazer por parte do
autor e uma ansiedade por parte do receptor. Na dimensão desse espaço existente entre o
que se escreve e o que se lê, é fundamental compreender os significados que aparecem
entre o conteúdo de um texto e os efeitos que ele tende a produzir.
O que de fato acontece com uma pessoa ao proceder qualquer tipo de leitura?
Para Chartier, a leitura não é um simples processo de absorção de conteúdos, pois nenhum
texto se apresenta como um amontoado semântico, nem o leitor como um mero
instrumento armazenador de discursos. A relação leitor versus leitura “supõe uma
multiplicidade de mediações e de intermediários entre as palavras anunciadas e a página
impressa”
1
, afirma ele. O leitor se encontra envolvido numa cadeia de práticas sociais
diversas intensamente compartilhadas entre grupos distintos. A leitura é, então, fortemente
marcada pela produção de sentidos, cujas formas de apreensão se articulam com a
utensilagem mental e o capital simbólico do leitor, os quais possibilitam construir valores,
intenções, propósitos, conceitos, conhecimentos, planos deliberativos, etc.
O leitor, por sua vez, tem uma capacidade de interpretação que é adquirida
através do conjunto de aspectos normativos, legitimadores de comportamentos sociais,
cujos princípios caracterizam a maneira de pensar de uma dada época. Assim, o leitor não
absorve uma leitura balbuciando palavras ou com um olhar silencioso sobre o texto, mas
1
CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre,
Jésus Anaya, Daniel Goldin e Antonio Saborit, 2001, prólogo.
na relação que ele estabelece entre suas competências individuais já internalizadas e a
mensagem que o texto, no seu todo, disponibiliza.
Não há, portanto, uma naturalização das coisas, ao contrário, a intervenção direta
e constante dos agentes sociais é que constrói a realidade, demonstrando, na dinâmica
social, a forma como se apropriam dessas leituras, manifestando suas percepções, através
das estratégias de conduta que utilizam no convívio em sociedade.
É com essa complexidade que se dispensa uma atenção especial para a
intertextualidade das cartas que contempla ao mesmo tempo as experiências plurais de
Jane Vanini, cujos relatos, cheios de “veredas”, ao exibirem um olhar militante sobre
aquele mundo, permitem também vários olhares sobre o mundo dos militantes.
Para Jane, escrever cartas aparece como uma necessidade, uma vez que elas se
apresentam como o lugar que sacraliza sua individualização, por conseguinte, o espaço
que assegura sua identidade. As correspondências são mundos passíveis de exibirem a
singularidade de Jane que aparece encarnada no corpo de cada escrita, ora reconhecendo-
se como revolucionária, ora circunscrita a si mesma. Esses são os lugares de construção de
identidades, pois permitem que Jane Vanini reconheça-se na sua própria trama. Já para a
família, a carta, enquanto objeto, tem o sentido de vida possível; enquanto conteúdo
imprime a essência humana da pessoa ausente. Cada carta enviada e recebida expressa,
sobretudo, a costura pausada de uma cumplicidade estabelecida entre a remetente e os
destinatários. Em outros momentos, as cartas são também maneiras de expressar as
saudades e o vínculo afetivo que a acompanham como sombras de vida e que, quase
sempre, começam ou terminam o noticiado de cada carta:
Madrinha:
Finalmente recebi sua carta. Estava realmente preocupada.
A Dona Maria havia escrito ao Sérgio que a senhora estava doente
dos nervos, etc., e como não recebia nenhuma notícia sua, me
preocupava e supunha mil coisas. Mas parece que sua tentativa de
escrever uma carta curta por semana não prosperou porque já vai
fazer 2 semanas que não recebo outra. (carta 28)
2
Querida Madrinha:
Muitas saudades. Tenho uma vontade enorme de estar com
vocês. Houve uns dias que passei meio na fossa. Não muito porque não
posso permitir-me êsses luxos. Já tinha recebido sua carta junto com
a do Papai mas queria estar sem ‘meias’ fossas para poder escrever.
Hoje eu o estou fazendo. Aliás interrompi aqui esta carta porque
acabo de receber outra carta, do dia 23 de abril com as fotos. Como
estão diferentes as ‘crianças’. Os grandes não tanto. A senhora
sempre enxutinha, né? Os cabelos dos nossos pais sim que estão mais
brancos. Que saudades! [...] Sonhei muito com vocês estes dias.
Pensei que sua carta me fôsse dizer que a senhora estava por aqui.
[...] não deixe de escrever-me, tá? Depois respondo tudo junto.
Queria vê-los. Morro de saudades. Tenho Banzo. Eu os quero muito,
abraços. (carta 34)
3
Por esses aspectos, é perceptível que os militantes, ao se tornarem militantes, não
se divorciam de seus sentimentos. Apesar de um tempo policialesco, que viola os direitos
de cidadania das pessoas, Jane aposta na possibilidade de algumas cartas não serem
interceptadas pela censura. Encontra junto a Dulce o “jeito” do envio e recebimento
através do qual consegue estabelecer uma comunicação direta com seus correspondentes:
2
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
3
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
Melhor que escrevam 2 vezes por se acaso uma se extravia.
(carta 02 )
O Mário recebeu outro dia uma carta de Dona Maria em que
ela diz que não estão recebendo cartas. Eu tenho escrito sempre com
muita regularidade. [...] As cartas que vocês me mandam chegam no
máximo com uma semana desde o dia em que colocam no correio. Em
geral elas vem reengomadas, quer dizer que a abriram e tornaram a
fechar. [...] Estou numerando as cartas. Esta vai ser a número 1 pode
ver no canto a direita, em cima. Até agora já escrevi, no total umas
18 cartas (incluindo a de Nícia). Espero que tenham recebido todas.
(carta 10)
4
Quando me escreverem colem a carta somente com a cola
que vem no envelope, porque se vem mais cola que essa já sei que foi
aberta no correio. (carta 12)
5
Embora os conteúdos dessas cartas também revelem aspectos da luta de
militância, eles mostram, ao mesmo tempo, que o regime vigente, no que diz respeito ao
controle, apesar de propagandeado e onipresente, não impediu que a capacidade criadora
da mente revolucionária construísse outras formas de sobrevivência. Como pode-se notar
nos trechos acima citados, códigos, datações e duplicidade de correspondências são
algumas maneiras que Jane elabora para circular num espaço totalmente personalizado.
Durante quase cinco anos, Jane vive inevitavelmente clandestina. Para uma
militante clandestina, mais do que para qualquer outra pessoa, escrever cartas também
toma um sentido de encurtar distâncias geográficas e físicas, além de estabelecer um fio
condutor de relações e sensibilidades. Há, no entanto, um espaço de sedução desenhado
pela busca
4
Carta de Jane Vanini, datada em 07.09.72, assinada por Ana.
5
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
de si mesma e pela conquista do outro, pela personificação dos conteúdos e pelos
segredos. A indistinção entre remetente, narradora e autora e a flutuação entre a
imaginação utópica e a ação experimentada, revela, sobretudo, a ansiedade que permeia a
vontade de ser revolucionária, a convivência com as incertezas e a opção de continuar
lutando. Por intermédio das cartas observa-se que há vários atores sociais em Jane, os
quais se misturam e se cruzam indistinta e simultaneamente sobre várias figuras: a
narradora, a militante, a guerreira, a filha, a irmã, a nora, a mulher, a companheira, a tia, a
cunhada, a revolucionária, a “camarada”, etc.
As circunstâncias da clandestinidade levam o revolucionário a pensar muitos
aspectos da militância política, a partir de um direcionamento pessoal, ou seja, exigem a
invenção de múltiplas formas de sobrevivência, pois convive-se simultaneamente com o
medo e a coragem, com um imaginário projetado e um ambiente muito adverso, com a
solidão insuportável e o apoio disponível, com o companheirismo possível e o
individualismo necessário, com a possibilidade de superação e a incerteza de alcançá-la.
Nesse caminho, é aceitável pensar que a camuflagem das identidades, por trás de cada
subscrição que Jane registra, esconde e revela muita coisa, cujos mistérios levam o leitor a
construir suas viagens cada vez mais intensas por espaços multidimensionais.
As pessoas têm maneiras muito singulares de se apropriar do conteúdo de um
dado texto. Para R. Chartier, um conjunto de normas, regras, convenções, códigos e
percepções são aspectos constituidores do leitor-indivíduo e o identifica como pertencente
a uma comunidade interpretativa própria.
6
São essas características que norteiam a relação
estabelecida entre a materialidade da escrita e a corporeidade sócio-cultural que o leitor
comporta. Assim, a escrita nunca é algo onipotente, ou seja, a inscrição das palavras no
6
CHARTIER, R. 2001, op. cit. p.32-33.
texto de uma carta, por exemplo, não transfere o sentido para o leitor, mas é este que, com
sua capacidade interpretativa e na relação com o que está escrito, elabora a construção dos
sentidos. Um texto não traz o sentido, produz sentidos.
Portanto, as cartas não são redutíveis às estratégias de persuasão que sugerem
demonstrar nos seus enunciados. As palavras são trilhas que constituem um mundo
particular, construído para que Jane possa habitá-lo livremente. Elas, as cartas, são
verdades vividas. São os espaços da vida normal, para além da normalidade de escrever,
sobretudo quando são produzidas e enviadas numa condição de vida anormal - a
clandestinidade.
Para Dulce, receptora de todas as correspondências da irmã, havia sempre uma
angústia contínua que se debruçava sobre o tempo da espera e o conteúdo de cada missiva.
A carta, como representação de vida, produz uma pluralidade de significados e formas de
apropriações. Ela emite recepções paradoxais e inéditas, tais como certezas e dúvidas.
Quem escreve pode inventar sua trama com a finalidade de produzir determinados efeitos;
e quem lê, mesmo acreditando no conteúdo, por se tratar de um presente que não é mais
presente, atualiza aquele passado, todavia com as incertezas do agora, pois ele, o agora,
pode traduzir-se numa estratégia de fuga: ...por mais que eu lesse o conteúdo da carta eu
achava que ela (Jane) estava passando dificuldades e não queria me falar, pois sabia o
quanto eu me preocupava com aquela situação que ela vivia.
7
Nesse sentido, a carta incorpora segredos porque, enquanto objeto, ela é
portadora de signos que produzem impressões processadas na memória voluntária. Esta
7
Trechos de entrevista com Dulce Ana Vanini, Rio de Janeiro, 2001.
procede por instantâneos e busca o segredo das impressões no próprio objeto. ... essa
memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes.
8
Entender essas tensões é aceitar que o tempo da clandestinidade é o da
experiência vivida e o da invenção do fazer. Como pode-se perceber, nas lembranças de
Suzana Lisboa, esse é um tempo emocional, descontínuo:
A intensidade das coisas que a gente vivia naquela época era
tal que você podia, alguém já falou nisso, que você, num minuto, sentia
emoções como se tivesse vivido um ano; a intensidade das emoções que
a gente vivia era muito grande. Só o fato de você está o tempo inteiro
convivendo com a morte já é uma coisa que traz uma montanha de
sensações e o período que por ventura a gente ficava juntos ele assumia
uma dimensão muito grande porque o convívio era muito intenso; você
viver com um companheiro e partilhar as mesmas emoções... quer dizer
eles (Jane e Sérgio) eram um casal jovem, assim como nós, que estava
jogando pela janela um futuro pensando na liberdade de seu país.
9
O tempo de cada carta - para quem escreve - está no assunto que, embora queira
parecer um presente, é sempre de um passado que trata - para quem recebe. O hoje da
recepção e da leitura vêm sempre depois do hoje da escrita e depois do hoje do envio, que
agora já é um ontem e esses dois hojes já sendo defasados no tempo, contem a
possibilidade quase certa de aquilo que nas cartas se lê, já não é mais o que está
acontecendo.
10
Nesse sentido, a brusca incidência que o passado faz sobre o presente permite que
sejam compreensíveis as incertezas e as inquietações de Dulce, pois o tempo de
escrever
8
DELEUZE, G. Proust e os signos, 1987, p. 57
9
Trecho da entrevista de Suzana Lisboa, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional e companheira de
Jane Vanini. A entrevista foi realizada em São Paulo, no dia 27.11.92.
10
MELO e CASTRO, E. M. de, Odeio cartas. 2000, p. 15.
da remetente e o tempo da receptora ler as cartas aparecem distintos. As sensações
aflitivas de Dulce tendem a provocar impactos emocionais de maiores proporções, tendo
em vista que a multiplicidade desses tempos não lhe possibilita conhecer o presente
simultâneo da irmã que escreveu a carta.
É importante ressaltar que o ‘chrónos’ aqui acontece diferente. Embora uma
parte significativa das cartas que Jane escreve apresenta-se datada, não é de um tempo
cronológico que falam; é o tempo das recordações, das reminiscências, da sensibilidade e
da experimentação da luta revolucionária. Esses tempos plurais são reveladores de signos
que se encontram mergulhados nas lembranças das experiências vividas, e são, sobretudo,
um olhar através do tempo múltiplo, um olhar que reconstrói, decifra, revela e permite a
passagem de um tempo a outro e, especialmente, trazem a possibilidade de atualização do
passado no presente.
11
Em Proust, cada espécie de signo corresponde, sem dúvida, a uma linha de
tempo privilegiada. [...] Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem redescobrir o tempo,
restituindo-o no meio do tempo perdido.
12
Ainda na concepção Proustiana, o exercício da
inteligibilidade possibilita a interpretação dos signos e a significação dos objetos. Nesse
sentido, a exterioridade é algo que se projeta da essência do ser e se manifesta nas práticas
do sujeito. É no espaço dessas essências que os signos se fazem grandes demarcadores de
tempos. É no tempo perdido, impresso em imagens fotográficas, que Jane redescobre o
tempo. As recordações e as saudades tão enunciadas em suas cartas expõem os desejos da
alma sobressaltados nos signos:
11
GUIMARÃES NETO, R. B. Artes da Memória, fontes orais e relato histórico, 2000, p. 103
12
DELEUZE, op. cit. p. 25
...acabo de receber outra carta, do dia 23 de abril com as
fotos. Como estão diferentes as ‘crianças’. Os grandes não tanto. A
senhora sempre enxutinha, né? Os cabelos dos nossos pais sim que
estão mais brancos. Que saudades! [...] Queria vê-los. Morro de
saudades. Tenho Banzo. Eu os quero muito, abraços. (carta 34 )
13
Nos cabelos grisalhos, ela vive o semblante do tempo e no reflexo de cada fio,
agora mais branco, revisita também as nesgas de sua vida. Eles são, portanto, os signos na
dimensão do tempo redescoberto. Pelos cabelos brancos Jane vive o tempo que se perdeu.
O olhar sobre a fotografia recupera o tempo perdido, porém é no movimento das imagens
e na configuração dos cenários fotografados que Jane se apodera de um tempo
redescoberto.
As crianças não estão diferentes só por terem crescido e mudado suas
fisionomias, nem os cabelos brancos ficaram apenas mais brancos pelos pais terem mais
idade, mas é porque no crescimento das crianças e no envelhecimento dos pais, as marcas
do tempo, fiadas e embrulhadas em suas dobras, revelam imensos filetes de vidas que
emergem da plenitude das reminiscências ou das lembranças involuntárias, da alegria
celestial que nos dão os signos da Memória e do tempo que eles nos fazem bruscamente
redescobrir, como define Proust.
14
É dessa forma que o texto fotográfico ganha mobilidade. As imagens
descongelam-se no encontro e na resignificação do tempo que aparecem potencialmente
nos semblantes do olhar, na tonalidade das vozes e na individualidade dos gestos que as
pessoas readquirem. Os cenários também alteram suas luzes e suas cores, enquanto os
objetos ganham outras significações.
13
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
14
DELEUZE, op. cit. p. 54
Falando ainda de um tempo que já passou, Deleuze diz que: Rever pessoas que
nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos, não sendo mais
habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do tempo que modificou
determinados traços, alongando-os, tornando outros flácidos ou vincados.
15
É nesse
sentido que o tempo torna-se visível e atualiza o passado num presente já repleto de
resignificações.
A experimentação da redescoberta do tempo, impulsionando uma profunda
sensação de múltiplos prazeres, imprime também uma resignificação do objeto.
Certamente por isso, é que Jane Vanini tanto privilegiou o registro fotográfico. Essa idéia
de redescoberta e invenção é de suma importância, não como algo que nunca existiu, mas
como aprendizagem e interpretação das coisas, objetos e seres, emitindo signos a serem
decifrados, interpretados.
16
Numa outra perspectiva, a correspondência que transita no espaço criado entre
remetente e destinatário produz muito mais forte um efeito de presença que de ausência.
Embora uma carta possa imprimir as marcas da ausência de alguém, a letra, o assunto, o
traço e o estilo de escrevê-la são representações autêntica de sua criatura. Foucault apud
Werneck
17
apresenta essa simbologia afirmando que a carta torna o escritor ‘presente’ em
relação a quem ele se dirige. E presente não simplesmente através das informações
que
15
Ibidem, p. 18.
16
GUIMARÃES NETO, R. B. op. cit. p. 104.
17
WERNECK, M. H. Veja como ando grego, meu amigo.”Os cuidados de si na correspondência
machadiana, 2000, p. 142.
fornece sobre sua vida, suas atividades, seus sucessos e seus fracassos, sua fortuna ou
suas infelicidades; presente de um tipo de presença imediata e quase física. [...] a carta
funciona como um olhar que se pousa no destinatário (através da missiva que ele recebe,
ele se sente olhado) é uma forma de se entregar ao seu olhar através daquilo que lhe
dizemos de nós mesmos.
Nessa ótica, a carta é o instrumento de múltiplas significações e a representação
simbólica do outro. O outro passa a ser a onipotência da busca. Em Dulce, Jane
potencializa a busca de si mesma. É, portanto, no significante que se reconhece o
significado. É com esse movimento de significações que Dulce, esperando, recebendo,
lendo, respondendo e guardando as cartas que Jane lhe remete, faz crê que ela ainda
continua viva e, assim, também constrói o seu outro.
As cartas são também concebidas como fontes potencialmente portadoras de
memória, cujas narrativas são carregadas desse tempo descontínuo e fragmentado - o
tempo da experiência. A memória guarda lembranças que, ao ser recordada, traz de volta o
que ficou inscrito nas experiências. É essa memória da experiência vivida que leva Jane, a
pessoa que escreve, a selecionar os acontecimentos que as cartas devem absorver.
Portanto, escrever cartas passa a ser um constante exercício de reinvenção da vida, uma
vez que as memórias ali postas remetem a escrevente ao deleite do espírito,
essencialmente quando a memória dá visibilidade aos múltiplos cenários do tempo
redescoberto. É lá, nesses cenários, que acontecem os reencontros com pessoas, lugares,
afeições, cores, vozes, rostos, concepções e comportamentos. É neles também que Jane
reencontra as lágrimas, os sorrisos e as saudades.
A relação entre o pensar e o ser, instrumentalizada pela inteligência, formula
impressões que, ao codificar-se na memória, manifestam-se nos desejos, nas paixões, nas
escolhas, etc. Assim sendo, as lembranças que lastreiam as correspondências são sempre
os cenários vividos, cujas imagens percebidas são o testemunho do acontecido. As
imagens são seladas na linguagem e articulam uma rede de relações interativas com seus
correspondentes.
As cartas falam de uma memória que registra seus marcos através dessa
linguagem operada como instrumento de poder e sedução, e estes remetem ao
encantamento do outro que, no registro do falante, tranqüiliza-se ao penetrar em sua
escuta e aprisioná-lo na teia de significados que a narrativa oferece. [...] Assim a
linguagem, a partir da razão narrativa, registra contornos presentes no falar dos sujeitos,
demonstrando o acontecido nas dobras do tempo, como um evento que se caracteriza pelo
pressuposto da verdade vivida.
18
Os fragmentos dessa memória se espalham e se recolhem nos territórios das
práticas da militância de esquerda armada que, por sua vez, reaparecem de uma forma
quase mística. As lembranças não se remetem a um passado que passou, mas as suas
mechas que ganharam significações nas marcas de um tempo descontínuo, cujos
fragmentos são capazes de revelar a teia de sentimentos afetivos com aquele passado.
O reencontro das experiências com suas verdades construídas possibilita rever os
retalhos de vida que ficaram espalhados pelo passado e que, ao se atualizarem no presente,
readquirem outras significações que, inevitavelmente, remodelam o sentido de viver dos
sujeitos. O viver parece consubstanciar-se na intensa experimentação das práticas sociais e
da luta revolucionária. É dessa forma que as cartas escritas por Jane Vanini e guardadas
por Dulce são também as memórias de uma paixão política alimentada pelos episódios
18
GROSSI, Y. S, FERREIRA, A. C. Razão narrativa: significado e memória, 2001, p. 30.
vividos e experimentados por vários atores que, acreditando e encenando seus papéis,
deixam suas marcas na simbologia de uma época - os anos rebeldes.
Mundos plurais, vidas singulares
Cartas, sempre cartas. Elas são curiosas e produzem outras curiosidades se se
considerar enquanto partes constituidoras de um tempo e de pessoas singulares. O
conteúdo de uma carta possibilita sempre ao leitor projetar, na imaginação, um espaço
capaz de configurar todas as cenas que são descritas e enunciadas pelo conteúdo que
apresenta. Elas, as descrições, são representações das verdades do emissor, as quais
atualizam informações, (re)formam cenários e (re)formulam emoções.
Considerando que o que se escreve é a codificação de uma oralidade, a escrita de
uma carta também remete ao manuseio de detalhes na construção do que se quer noticiar,
para que a compreensão e a assimilação sejam as mais próximas daquilo que
propositalmente se diz. Não se trata de regras ou modelos pré-estabelecidos para a feitura
de uma carta, mas de sintonizar a emissão de sentidos entre o que se escreve, o que está
escrito e o olhar do leitor.
Essa cadeia de sentidos se faz imprescindível quando as correspondências tratam
de relações afetivas e familiares. Assim, são as cartas escritas por Jane e recebidas por
Dulce Vanini, nos idos de 1970:
Espero que todos estejam bem. Somente agora lhes pude
escrever e espero que me escrevam rápido mandando notícias de
todos e de tudo. [...] Escrevam-me bastante. Gostaria de receber uma
carta de cada um de vocês todos: irmãos, sobrinhos, sogros,
cunhados, pais, e companheiros, caso já tenha algum aí. (carta 02)
19
O Mário recebeu outro dia uma carta de Da. Maria em que
ela diz que não estão recebendo cartas. Eu tenho escrito sempre,
com muita regularidade. Recentemente escrevi a Magali, Cida,
19
Carta de Jane Vanini, não datada, assinada por Ana.
Jorginho, Dulce, mamãe, Lena e Nícia. Ainda não recebi resposta de
nenhuma dessas cartas. (carta 10)
20
Bem, Madrinha, vou ficar por aqui. Um grande abraço a
todos e escreva-me bastante, não sabe como fico ansiosa para
receber carta de vocês. (carta 14)
21
Há vários dias já escrevi a senhora, a mamãe e a papai e até
agora não recebi resposta de ninguém. Além disso se contam as
cartas que receberam de minha parte e se eu conto as cartas que
recebi de todos vocês, vão ver que tenho saldo a meu favor. (carta
16)
22
...recebi tua carta e logo logo vou escrever mais. Vou aproveitar a
carta do Sérgio para escrever um ‘bilhete’. (carta 19)
23
Receber uma carta sua é sempre um reconforto. [...] Escreva
logo avisando se recebeu esta ainda que seja somente dizendo: recebi
sua carta 23.01.73. (carta 24)
24
Diga a Jorginho que ainda não recebi a resposta da carta
que lhe enviei por último. A (carta) que a Cidinha disse que me mandará
tampouco chegou. (carta 25)
25
Faz tempo que não recebo nenhuma carta sua. Vou ver se tem
carta todos os dias e nada. (carta 27)
26
Finalmente recebi sua carta. Estava preocupada [...] Nestes
dias vou escrever a papai e mamãe. (carta 28)
27
Querida madrinha: Faz mais de um mês que lhe escrevi e até
agora não tenho resposta. Tomara que estejam todos bem e que
tenham recebido minha carta anterior e entendido tudo. (carta 30)
28
20
Carta de Jane Vanini, datada de 07.09.72, assinada por Ana.
21
Carta de Jane Vanini, datada de 19.10.72, sem assinatura.
22
Carta de Jane Vanini, sem datação, assinada por Ana.
23
Carta de Jane Vanini, datada de 21.12.72, assinada por Jane.
24
Carta de Jane Vanini, datada em 23.01.73, assinada por Jane.
25
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
26
Carta de Jane Vanini, datada em 25.05.73, assinada por Ana.
27
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
28
Carta de Jane Vanini, datada em 18.07.73, assinada por Carmem.
Nos trechos dessas cartas, nota-se a ansiedade de Jane. Primeiro, a reafirmação
dos laços familiares, sentimento próprio de quem está longe, afastada de suas referências
afetivas mais seguras e vivendo uma experiência social e política muito tensa. Segundo, a
dúvida sobre o itinerário de suas cartas: chegam aos respectivos destinatários?
Em todos os fragmentos aqui apresentados, estampam-se o sentido de tempo, os
laços afetivos e a busca declarada de uma validade das escolhas no espaço familiar. O
envio de correspondências a todas as pessoas da família, citando com freqüência os graus
de parentesco e nominação dos destinatários, expressa um sentido de “vida familiar” que
talvez seja capaz de reconstituir um universo já conhecido.
A carta é uma representação simbólica da vida, mas só adquire este sentido na
troca das correspondências, pois é na relação entre remetente e destinatários que se
processam as identidades das pessoas envolvidas. Essa operação de identidades acontece
na mediação dos assuntos que, por sua vez, estabelece o diálogo íntimo e espontâneo entre
os correspondentes. Ali está o sentido de ser necessário receber uma carta de cada um de
vocês todos: irmãos, sobrinhos, sogros, cunhados, pais, e companheiros, caso já
tenha
algum aí.(carta 02) Então, para Jane Vanini, cada carta significa recolocar-se como uma
pessoa da família, lutar pelo seu lugar e não ser esquecida. Nessa perspectiva, é dramática
a vida daqueles que se afastam e fazem da luta revolucionária uma escolha pessoal de
vida.
Não há fronteiras demarcadoras entre a vida pessoal e a luta, ao contrário, há uma
troca mútua de valores que, ao longo da vida ou no decorrer das lutas, vai sendo
construída, experimentada e incorporada. A individualidade das pessoas se atualiza
continuadamente as relações articuladas e combinadas nas dimensões do mundo
simbólico. É a mobilidade dos signos que codifica e internaliza a cadeia das sensações de
quem escreve, ao mesmo tempo em que as exteriorizam para os leitores de cartas pessoais.
A palavra escrita tem uma função libertadora na dimensão do imaginário e permite superar
desencontros e rivalidades. E, em particular, quando se trata de cartas familiares, cuja
força motriz é a iniciativa de escrever e a espontaneidade de acomodar a comunicação.
Então, não é Jane que detém a escrita das cartas, é a necessidade da escrita que a detém.
Há um visível gosto e um desejo quase compulsório de escrever a todos e, de
todos receber cada resposta. Essas correspondências são marcadas por um estilo próprio,
que corresponde a uma organização de assuntos que interessa mais a Jane que a outrem. A
idéia que exprime essa especificidade é a de que os textos estão quase sempre informando,
descrevendo, opinando e, raras vezes, respondendo algo.
Em todos os trechos, sobretudo os últimos, a militante Jane sinaliza uma
preocupação com a probabilidade de cessarem as correspondências. Essa particularidade,
constante nos seus registros, demonstra que ela sempre se coloca numa situação de risco, e
também revela uma afeição imensa que ela nutre por todos os entes queridos, construída
ao longo do convívio familiar. É o tempo reencontrado que não pode ser desfeito. A
eminência da interrupção abala a alma, uma vez que a carta continuada significa o
consentimento de si mesma. E em cada destinatário, a certeza do assentimento individual.
Percorrer a história de vida de uma militante de esquerda, suas ações políticas,
seus testemunhos e seus embates, leva à busca de uma outra indagação: a militância, sendo
tão intensa como se revela, que espaço e que tempo existem para a vida privada dessas
pessoas? Que vida pessoal tem uma militante? Que situações domésticas vive Jane
Vanini? Além da luta que registra, dos acontecimentos que narra, da exposição de suas
escolhas políticas que aparecem de forma plena e despojada, as cartas também mostram
aspectos comuns, banalidades talvez, que revelam uma outra Jane - a pessoa orgânica e
individualizada.
...Gostaríamos que vocês me enviassem algumas coisas, caso ainda
existem. Trata-se de minha japona azul, da bota forrada, da saia de
lã de xadrez escocês, japona do Sérgio, capa espanhola dele e alguma
blusa de lã, se por acaso houver ainda. (carta 02)
29
.
...Não pensem em comprar coisas para mandar-nos. Estamos bem, e só
pedimos as roupas porque a facilidade é muito maior tendo bastante,
mas não estamos passando frio, estamos bem. (carta 05)
30
Esses trechos acima selecionados e expostos mostram a disposição de Jane,
juntamente com seu marido Sérgio Capozzi, em fixar-se no Chile e recompor todas as
situações da vida cotidiana que se destroçaram com a perseguição policial militar no
Brasil, anos antes. Daí, a necessidade de conseguir vestuário e, em particular, aquelas mais
convenientes: as peças que protegem do frio.
Os reiterados pedidos de envio de objetos pessoais e, com maior freqüência,
peças do vestuário, apontam as dificuldades da vida material com que o casal chega ao
Chile. Essa interpretação é possível, se se considerar que uma boa quantidade de roupas
significa minimizar parte das dificuldades materiais da vida diária do casal.
Na deliberada intenção de conhecer mais a fundo a vida privada da militante Jane
Vanini, não se pode deixar de passear pelas cartas seguintes:
Meus queridos:
Ontem um companheiro conseguiu retirar as roupas da
aduana e me entregou. Foi uma alegria rever nossas coisas antigas, e
29
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
30
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
um prazerzão receber tantas coisas bonitas. As blusas feitas na
máquina pela madrinha são as mais lindas e bem feitas que já vimos. O
cachecol da Lena e o colete da mamãe são lindos de dar inveja a
qualquer um. A boina, a meia e as sapatilhas me fizeram muita falta
no inverno. Uma companheira me emprestou um cachecol que me
quebrou o galho porque comecei numa época a ficar com dor de
garganta pelo vento frio no pescoço. Agora já não tenho nenhum
problema desses, não é mesmo? Como não queria comprar muita coisa,
quis bancar a valente e agüentar o inverno com meias normais e foi
fogo, ou melhor, foi gêlo. Depois mesmo com as meias de lã daqui me
saíram savanhões nos dedos dos pés. Ficam inchados, vermelhos, às
vezes coçam muito, se aperta um pouquinho dói à bessa e pode até
ficar ferido. Como eu tenho má circulação sangüínea quando começou
o inverno comecei a criar savanhões, mas tratei em tempo e não me
deram muitos problemas. O pessoal aqui adorou o joguinho de
sapatilhas e colete. Vão copiá-los. O que sei que vou usar ainda nesta
época é a boina, pois já não faz frio com exceção de alguns dias. [...]
Uma coisa que me deixou chateada, porque sei que a madrinha vai
ficar chateada é que nenhuma das blusas que ela fez me serviu.
Ficaram muito grandes e serviram perfeitamente para o Mário. [...]
Essas 2 blusas, êle disse que vai usar somente para as grandes
ocasiões. (carta 13)
31
Agora é setembro de 1972. Pelos termos dessa carta, parece que a florada da
primavera também colore os tempos de Jane Vanini. As expressões remetem o leitor a um
cenário ímpar de satisfações plenas. Nem parece com o ocorrido há duas semanas antes,
quando os fatos políticos transportam-na para o tempo das incertezas. No instante em que
ela escreve essa carta, os conflitos entre grupos sociais de representações distintas e os
chilenos em turnos de vigilância, contra possíveis embates, estão do “lado de fora” de Jane
31
Carta de Jane Vanini, datada em 29.09.72, sem assinatura.
Vanini. O “lado de dentro” desfruta da comoção de reencontrar-se no drapeado de um
outro mundo - o seu mundo privado. Contudo, isso não significa que a vida de militância
de esquerda permite configurar os espaços do público e do privado distintamente. Pelo
contrário, ambos se entremeiam de forma muito intensiva.
Durante as experiências da luta revolucionária, os tempos e os espaços são
múltiplos e simultâneos, e nos quais as ações urgentes e necessárias fazem com que um
invada o outro sem licenças e sem constrangimentos. O reencontro com seu mundo
privado não acontece por uma escolha simples, mas por um momento circunstancial:
receber os pertences pessoais tão desejados. Nota-se que em todo o texto há um relevo
especial nas palavras que tentam qualificar os objetos. A alegria de rever coisas antigas e
um prazerzão de receber tantas coisas bonitas torna-se quase indescritível para expressar
a resignificação do valor afetivo que cada peça adquire.
Os espaços ocupados por: foi uma alegria..., coisas bonitas..., mais lindas e bem
feitas..., lindas de dar inveja..., o pessoal adorou o joguinho..., vão copiá-los..., usar
somente para grandes ocasiões..., são territórios que indicam superioridade, exaltação e
unicidade dos objetos. Não é que os materiais tenham necessariamente esses predicados,
mas Jane os têm com essas proeminências. Ela os percebe como únicos e os vê como
diferentes de quaisquer outros, porque ela sente e fala de sua significação e não de sua
utilização.
A prática da militância, atravessada pelos riscos, medos e fugas, leva os
militantes a abdicarem da normalidade de suas vidas, o que implica também numa perda
da convivência com os objetos do cotidiano e seu mundo simbólico. A sobrevivência, por
ser necessariamente inventada todos os dias, conduz a uma outra forma de perceber-se nos
mundos plurais em que cada pessoa encontra-se envolvida, sem, contudo desfazer-se da
cadeia identitária construída, em tempos passados, numa relação simbólica entre outros
objetos e outros indivíduos. É no distanciamento dessa identidade que o ex-militante
Herbert Daniel declara:
...A falta que os objetos deixam é como marca e símbolo: uma
necessidade de se continuar nas coisas que a gente faz [...] Aí a gente vê,
nessa ausência, a gente mesmo como era. Por isso vamos carregando
aparentes inutilidades vida afora: memória viva. Ao termos de
abandonar drasticamente nossos pequenos cacos perdemos contato
conosco mesmo, a vida passa a ser descontínua. Cacos.
32
Na busca de compreender a complexa imbricação entre significante e significado,
e mergulhando nos signos em que Jane deixa-se transparecer, os objetos são o seu
significante e vêm carregados de significados. O significante isolado não tem
sentido,
porém, na rede de relações que lhe é incorporado, produz múltiplos sentidos e irradia suas
significações.
Nesse encadeamento de múltiplos sentidos é que Jane afirma não haver desespero
em receber as coisas, mas um desejo de sentir-se ligada a todos vocês pela valoração que
vem junto a todas essas coisinhas sentimentais.
Na expectativa de que Dulce viajará ao Chile, Jane, pelas dificuldades materiais
em que se encontra, aproveita para anunciar que: ...estou mandando junto esta lista de
coisas que quero que a senhora traga para mim, mas apenas se existe ainda... (carta 16)
33
1. Aquela blusa azul de tricô-lã igual a vermelha que a
senhora mandou na encomenda. Aquela outra cor de cenoura.
32
ALMEIDA, M.H.T., WEIS, L. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao
regime militar, 1998, pp. 381-382.
33
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
2. A sandália franciscana que eu tinha. As bolsas esporte
que estiverem por aí. Aquela cor de couro pequena, que eu sempre
usava, uma grande parecida um saco de levar no ombro, que foi a
última que comprei. ( É meia marrom com alguns desenhos).
3. um pijama de lã e uma camisola daquelas que a Da. Maria
me fez
4. Não me lembro bem, mas me parece que eu tinha um par
de luvas negras. Se a encontras por aí, pode trazê-la, tá?
5. Leite de colônia (isso eu não tinha, se der me compre, tá?)
6. Qualquer daquelas pantalonas que a mamãe e a Magali
estavam fazendo para mim e se der com algum retalho porque aqui se
usa bem comprida e creio que elas vão estar bastante curtas para
mim (além de folgadas porque creio que estou mais magra que quando
estava aí).
7. O meu biquíni se é que ainda existe. O cor de vinho, o
amarelo não.
8. Pelo menos 3 daqueles abridores de lata mais simples que
a gente usa aí no Brasil. Dos mais simples mesmo, que as vezes vem
até como brinde em alguns produtos. Os daqui são muito complicados
e não funcionam muito bem. E eu quero dar um a pelo menos 2 casas
amigas.
9. O meu fichário coberto de couro que o papai fez para
mim.
10. Semente de manga (umas 3)
13. Traga-me um grande abraço de todos, tá?
Conforme disse na carta anterior, esta era apenas uma lista
e não carta, para que a tivesse a mão e lhe fosse mais fácil juntar
tudo. (carta 17)
34
34
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
Um detalhe que chama bastante a atenção do leitor em boa parte das cartas de
Jane é a incidência de expressões como ...se houver ainda, ...caso ainda existam, ...se é
que está aí, ...que foi feito das nossas coisas e outras mais. São situações que podem ser
compreendidas de duas formas: a primeira diz respeito às coisas que sobraram e foram
devolvidas à família após a tomada do apartamento pelo cerco policial-militar da
Operação Bandeirante - OBAN
35
; e, por último, as coisas que ainda existem, ou que
alguém pode estar usando ou guardando. Guardar pertences pessoais de outrem é uma
forma simbólica de poder guardar pessoas, pois, mesmo ausentes continuam presentes.
Não há um contentamento em receber esses objetos apenas porque são pertences
pessoais, até necessários para a utilidade da vida individual, mas porque cada um deles
tem incorporado na sua essência, uma simbologia, pela qual, a vida ganha feições de
felicidade
e de prazer. Na relação que se dá entre quem envia e quem recebe os objetos, está a
significação das atitudes: são valores sentimentais refeitos, renovados, reeditados,
manifestados na ação fraternal, aceitação, carinho, proteção, segurança, afeto, acolhida,
entre outros, que se efetivam em cada peça que, de forma quase mágica, sai de dentro do
pacote de encomendas recebidas.
...Estou chateadíssima com a história da encomenda. Não sabe quanto
eu sinto. Estava louca para receber as coisas, não porque realmente
esteja precisando desesperadamente ou algo parecido, senão porque
ia sentir como que ligada a vocês por algo que me fizeram, por alguma
35
Órgão de repressão política, criada em 1º de julho de 1969 e comandada pelo II Exército, mas também
integrava militares da Marinha e Aeronáutica, Polícia Federal, polícias estaduais e outros organismos de
policiamentos. A eficiência de suas atividades de informação, repressão e controle político serviu de base
para criação de outros mecanismos de repressão na ”luta contra a subversão”, como se costumava chamar.
Sobre o assunto, ver: FON, A. C. Tortura, a história da repressão política no Brasil, 1979 -
ARQUIDIOCESE, de São Paulo. Brasil: Nunca Mais, 1985.
roupa antiga minha que viesse e todas essas coisinhas sentimentais.
(carta 08)
36
Nesses fragmentos, é possível ver, com os olhos da imaginação, as expressões de
deleite que o semblante de Jane debruça em cada gesto proferido diante de cada objeto
recuperado. Boa parte desses sentidos está nas mudas palavras, que ao falarem constróem
vontades, alimentam desejos, produzem emoções, articulam sentimentos e dão mobilidade
às atitudes e comportamentos de Jane Vanini e sua família.
É nessa densidade de signos que o abraço de todos, como item da lista de coisas,
não figura como o décimo terceiro objeto da lista, assim como todos os outros itens não
são apenas objetos de uso pessoal, são, sobretudo, afeições construídas na relação entre
Jane e todos. O olhar propositalmente dirigido, o toque de pele, o procedimento do outro e
até a empatia constróem para cada um, que compõe o todos, uma significação que tende a
ser direta, intransferível e singular. Portanto, tudo e todos, numa teia de significações,
constituem a cadeia relacional que dá sentido à vida, seja da pessoa comum, seja da
revolucionária.
É nessa dimensão de vida que Jane Vanini, endereçando uma de suas cartas à
família, que dirige-se aos Queridos todos, fazendo uma declaração de amor:
Tenho muitas saudades de todos vocês. Eu os quero muito e
esse amor que lhes tenho é multiplicado quando vejo alguma criança
como os sobrinhos ou os companheiros mais velhos com a idade de
meus pais, ou de meus irmãos e irmãs. Espero que algum dia
estejamos juntos e livres mas se não alcançamos, não importa tanto,
importa realmente que a sociedade que legamos aos nossos ‘herdeiros’
36
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
possua muito de nós mesmos, do nosso esforço, de nossos ideais, de
nosso amor. (carta 12)
37
Aqui, justifica a sua ausência e a separação física entre ela e todos, com a luta
pela liberdade, e espera ter o reconhecimento de todos, porque a essência do convívio em
sociedade está na ação política, na convicção e na conduta que cada pessoa, enquanto
viver, é capaz de emprestar ao mundo.
O último enunciado do trecho acima exposto dá visibilidade ao campo das
emoções e das sensações incorporadas tanto à militante quanto à pessoa individualizada de
Jane Vanini: a concepção e a vivência do amor fraterno que também se transforma em
fraternidade política.
Enquanto isso, nas ruas de Santiago, enfrentam-se os combatentes. De um lado,
os militantes de esquerda e os simpatizantes do governo unem-se nas estratégias e
disseminam-se pelos diversos espaços políticos na defesa do projeto socialista chileno;
no
outro campo, estão as forças opositoras que se articulam contra um governo legitimado,
mas que suas ações invertem a lógica social até então vivida. Os conflitos tendem a se
intensificar porque os dois grupos acreditam em suas aspirações e em suas táticas de luta.
Jane Vanini é uma militante que age o tempo todo. Seja trabalhando para
assegurar sua sobrevivência pessoal, na luta política para a construção do socialismo
chileno, nos grupos voluntários que atuam em creches, escolas, ruas, armazéns, na vigília
das fábricas e instituições públicas, seja nas lides domésticas, ela é uma pessoa de
constantes ações. Pelo conteúdo das cartas, percebe-se os múltiplos arranjos de vida
construídos por ela nos espaços público e privado, os quais dão conta de ajustar a
37
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
militante, a companheira, a voluntária, a trabalhadora e a mulher que cozinha, costura,
fotografa-se e, em especial, não abdica de sua singularidade feminina.
É vivendo essa multiplicidade de ações que Jane encontra apoio para a vida, ao
buscar a ajuda material da família e, por isso, situações domésticas tão particulares
aparecem nas correspondências com sua irmã:
...Como vai a máquina de tricô? Quero receber algum presente feito
pela senhora quando a madrinha vier. Aqui usa tudo muito apertado e
curto no caso de blusa. Além disso creio que estou mais magra do que
antes. Como diria a Magali, estou elegante. [...] Mandem-me receita
de bolo de queijo e de algumas coisa mais tá? (carta 07)
38
Já vimos que é tremendamente complicado tirar a
encomenda [...] não vou querer que vocês fiquem gastando tanto nas
roupas como nos fretes para mandar-me coisas. A roupa de lã ainda
tem sentido porque o frio aqui é de lascar... (carta 08)
39
...Quando a minha madrinha vier me tras aquelas (roupas) que
por ventura algum de vocês já começou a fazer... Quando a aeromoça
vier a Chile, peça-lhe que traga um vidro de leite de colônia que me
faz uma falta tremenda...(carta 10)
40
Pedi a madrinha que traga aquele fichário que o senhor me
encadernou. Tomara que ainda esteja por aí. Não quer me fazer uma
alpercata ou um tamanco daqueles que o senhor me fazia no sítio?
Gostaria bastante. (carta 23)
41
Soube que o seu Zé vem visitar o Sérgio. Se der peça-lhe
que traga alguma coisa dos meus discos de música brasileira, livros
[...] Gostaria que me mandasse aquela saia negra de crochê que eu
38
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
39
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
40
Carta de |Jane Vanini, datada em 07.09.72, assinada por Ana.
41
Carta de Jane Vanini, sem data, assinada por Ana.
tinha se é que está por aí [...] Não te esqueças das minhas receitas.
(carta 28)
42
No vai-e-vém de cartas, que incluem pedidos e envios de objetos de uso pessoal,
nota-se um empenho muito grande de Dulce que, embora correndo todos os riscos de
perseguição e censura, se revela na relação de cumplicidade. Em, ... a encomenda chegou,
mas ainda não pude retirá-la. São tantos os papéis que se necessita que é quase
impossível consegui-los todos. Hoje um amigo ia ver se resolvia tudo para mim...(carta
12), percebe-se que para Jane, a condição de ser estrangeira, clandestina, amparada por
organizações partidárias nem tão consolidadas e vivendo num país sacudido por muitos
conflitos políticos, impõe-lhe algumas limitações, e por isso observa-se uma certa
lentidão para estabelecer a normalidade da vida.
Como qualquer outra pessoa, um dos fatores que muito incomoda Jane é a
dependência de alguém para resolver situações inteiramente particulares. É o caso
da
retirada das “encomendas” que lhe chegam ao Chile, seja pelo correio ou por empresas
aéreas. Por mais que possa parecer solidariedade dos companheiros de luta, a ação da
retirada dos objetos, além de importunar a vida do outro, o outro lhe importuna por
intrometer-se em sua privacidade, ao testemunhar o trânsito de suas intimidades.
Outro dia escutei uma música argentina, com um cantor
argentino chamado Piero é é muito bonita. Quando puder vou comprar
o disco e quando puder vou enviarte. Tem uma parte que diz: Viejo, mi
querido viejo... e quando a escutei me lembrei do senhor. (carta 15)
43
O senhor não me escreveu se chegou a fazer o abajour que
eu expliquei naquela carta. Esse abajour é para por em lâmpadas que
42
Carta de Jane Vanini, datada em 12. 06. 73, assinada por Ana.
43
Carta de Jane Vanini, datada em 31.10.72, assinada por Ana.
ficam penduradas no teto. Em geral se faz de cores que combinam ou
com a colcha ou com os móveis, ou com a cortina, dependendo da casa
e da peça onde se vai colocá-la... (carta 28)
44
Aqui, percebe-se as dificuldades de Jane e Sérgio viverem uma vida “a dois” num
mundo em que faltam territórios de referências mais firmes. A tensão política que
experimentam atravessa tanto a vida pública quanto a privada. Assim, organizar essa vida
comum, em meio às tempestades da luta revolucionária, pelo visto, é uma condição difícil
e frágil. Nessa perspectiva, a lista de coisas que compõe uma de suas cartas, as peças de
roupas e outros pertences pessoais, incluindo o abajour, representam momentos
importantes da sobrevivência pessoal.
A figura do abajour parece ganhar um destaque especial. Ele não é aquele em que
se põe as lâmpadas que ficam penduradas no teto, combinando com o estilo do ambiente,
mas o adorno que veicula e revigora a afeição entre pai e filha. Ele, o abajour, é também
a
busca da bênção do Viejo. Na avidez do afeto familiar e na arte do argentino Piero, Jane
reencontra seu velho e querido pai. O velho artesão que faz encadernações, abajour,
fichários, alpercatas e outras coisas mais.
É impossível separar o tempo da ação política e o tempo da ação existencial.
Ambos, não apenas se cruzam nas práticas, invadem-se simultaneamente. São vidas
definidas num tempo que confina no mesmo espaço, fisionomias públicas e privadas, a
pessoa e a militante. É com esse caráter que as cartas apresentam mudanças bruscas de
assuntos, misturando humor crítico, solicitações, conselhos, sentimentos afetivos, relações
familiares e outros aspectos individuais da sobrevivência e da vida pessoal.
44
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
As palavras só ganham sentido quando articulam os signos e, por conseguinte,
instrumentalizam, pela comunicação, o exercício simultâneo das práticas. A escrita é a
significação dos desejos e só assim é que as cartas de Jane Vanini produzem o movimento
das atitudes comportamentais, dando visibilidade às práticas cotidianas.
Minha carta será bastante breve. É só para contar-lhes que
ontem nevou à bessa pela noite e pela primeira vez vimos a neve.
Ficamos em um apartamento bastante alto vendo a chuva e quando se
amontoou um pouco de neve na rua nós descemos para brincar. Nos
atirávamos neve, corríamos, deslizávamos nela e tudo. Nem sentíamos
o frio com exceção das mãos e dos pés que estavam molhados e
gelados. Tudo ficou branquinho, muito bonito. Tivemos sorte de que
nevasse no primeiro ano que passamos aqui. No sul é claro que sempre
neva, todos os dias, mas aqui é bem difícil. Não vejo á hora de que
limpe um pouco o tempo para ver a Cordilheira que deve estar toda
branca. Não imaginam o bonito e divertido que é estar no meio da
chuva de neve. Hoje faz um frio danado. (carta 04)
45
Essa carta é datada pelo inverno chileno. Para Jane, uma moça do interior do
Brasil, o momento é oportuno e singular: o acesso às belezas naturais dos povos andinos,
cujos símbolos são a Cordilheira e a neve. O deslumbramento com a paisagem que
testemunha e a necessidade do registro do que vê assinalam conhecimentos sobre outros
mundos e outras culturas. Dessa forma, é que a carta será bastante breve, enquanto que a
escrita das impressões parece eternizar a pureza dos sentidos que, por sua vez, tornam
imensuráveis as sensações.
Jane está em Santiago e se encanta com o lugar. Nos primeiros meses de 1972,
apesar da neve e muito frio, o tempo no Chile é agradável e, de presente aos olhos, vê-se a
45
Carta de Jane Vanini, sem data, com indício de assinatura de Ana.
Cordilheira dos Andes, também para ser absorvida pelo espírito de quem a contempla. Em
suas palavras, ela quer compreender aquele lugar que tem uma temperatura média acima
dos trinta graus centígrados e onde chove pouco. Até parece contraditório, a presença da
neve e o clima tão seco que a pele da gente fica totalmente seca e estou com ela toda
rachadinha, é como se tivesse uns 50 anos (exagerando um pouco). (carta 07). A neve é
um espetáculo que a natureza presenteia os humanos, e conduz todas as idades à pureza da
infância. São os encantos de criança que se manifestam em Jane ao conhecer o inverno
chileno e assim, seduzida, relata seus prazeres aos familiares.
Se não houvesse nenhum registro cronológico nas correspondências em análise,
certamente alguns detalhes reveladores da intimidade daquela militante marcariam os
traços das temporalidades vividas. Um desses detalhes, que chama a atenção de qualquer
leitor das cartas, é o pedido de envio de dois objetos que emitem a significação de seu
tempo: o leite de colônia e o rádio de pilhas.
Os anos 60, como se convenciona chamar, são essencialmente o tempo das
cidades, que significam, em especial, o progresso e a modernidade. Elas, as cidades, são os
teares das relações políticas, sociais, econômicas, religiosas e culturais das comunidades
em geral. E as relações pessoais são, em grande parte, veiculadas por emissoras e
aparelhos de comunicação. No Brasil, ganham destaques especiais a televisão e o rádio.
Este último alcança uma popularidade pela praticidade, utilitarismo e fácil aquisição, pois
acomoda-se em qualquer lugar, toca música, traz o noticiário, transmite o jogo de futebol,
estabelece o correio sentimental e veicula compromissos entre as pessoas, além de tornar-
se acessível pelo seu valor monetário relativamente baixo.
Todos esses atributos fazem do rádio um objeto de desejo e necessidade. É no
conjunto desses aspectos que Jane, na possibilidade de receber a visita de Dulce, lhe pede
um presente:
E por falar em presentes vou pedir um, tá? Aliás, como deve
ser caro, façamos um negócio: a senhora traz um rádio a pilha ou
elétrico ou que possa ser usado de uma outra forma que eu aqui te
pago o equivalente em coisas que a senhora queira levar, tá bom? Os
rádios bons aqui, com ondas curtas etc., são importados e saem muito
caro e creio que já nem se importam para economizar divisas. (carta
29)
46
.
É importante observar que o depoimento já nem se importam para economizar
divisas, não significa um ato de negligência com a economia interna do país, mas uma
questão menor se se considerar a fragilidade do momento político que vive o Chile. É
começo de julho de 1973 e o alerta de 29 de junho último, quando os tanques blindados do
Exército e alguns militares insistem em levar a cabo uma tentativa de golpe de estado,
aponta para a exaustão dos limites máximos dos conflitos, em breve.
Dentre todas as funções mencionadas sobre o rádio, o presente esperado por Jane
significa também e, sobretudo, uma sintonia direta com a rádio da Unidade Popular, que
transmite, na íntegra, as falas oficiais e os comunicados do presidente chileno Salvador
Allende. Por outro lado, a ação de presentear, entre outras, leva a perceber que para Jane, a
família representa o vínculo direto com o mundo do consumo.
Entre as décadas de 1960 e 1970, a população brasileira é embebida pelos ares da
modernidade, cujo formato é definido pela incorporação de novos padrões de consumo à
vida cotidiana das pessoas. Desde o surto industrial do Estado Novo, passando pelo
46
Carta de Jane Vanini, datada em 06.07.73, assinada por Ana.
desenvolvimentismo de JK e chegando ao “milagre econômico”, o Brasil desponta na
América Latina como nação que se moderniza e marcha para o progresso. Fabrica quase
tudo: aço, petróleo, estradas, eletrodomésticos, aviões, alimentos, medicamentos,
vestuário, calçados, artigos de higiene e até cultura. As fábricas passam a compor os
parques industriais e o comércio se moderniza, trazendo o supermercado e o shopping
center, como ícones dessa época.
Em meio a todas essas atualidades, o cuidado e a exposição gradativa do corpo
aparecem com especial destaque. As fisionomias masculinas e femininas passam a ter
contornos mais delineados. Os concursos de beleza vão definindo um padrão estético para
a inclusão social do corpo. Entre outros aspectos, os homens inovam-se com o uso do
desodorante, a loção, o creme e a máquina de barbear, pintura dos cabelos, cabelos
compridos, barba grande e bonés. Já as mulheres passam a exibir o corpo com mais
vaidade e menos censura: inventam e incorporam hábitos como o absorvente íntimo,
modelação e pintura das unhas dos pés e mãos, uso de rouge, cremes de limpeza e de
hidratação do corpo, tratamento e modelação dos cabelos, incluindo o manuseio de objetos
como escova, bobs e secador, cremes alisantes e tinta para colorir e descolorir os cabelos.
É na condição de personagem de seu tempo, vivendo essas inovações e
incorporando parte desses hábitos, que Jane pede para que Dulce lhe faça chegar, pelas
mãos da aeromoça, um vidro de leite de colônia que me faz uma falta tremenda...(carta10).
Esse pedido é feito em setembro de 1972, momento em que ela convive com Tereza Motta
e utiliza-se do seu nome para viabilizar a retirada da encomenda.
Nessa mesma avalanche de “novidades” para produzir a personalidade do corpo,
as vestimentas revolucionam os costumes da época. Os homens começam a adotar roupas
mais esportivas, como por exemplo, camisas mais coloridas, camisetas, bermudas, shorts,
calça jeans e o tênis que, quase obrigatoriamente, passam a fazer parte do guarda-roupa
moderno de homens e mulheres. O mundo feminino incorpora com mais rapidez alguns
modelos de vestuário, cujos aspectos espantam olhares conservadores e afrontam hábitos e
valores que, até então, compunham a moral e os bons costumes. A alusão recai mais
fortemente em dois símbolos que demarcam os territórios femininos da mulher: a mini saia
e o biquíni. Além dessas peças, a calça comprida, camiseta, shorts, roupas transparentes
sem anágua ou coladas ao corpo, que marcam curvas e linhas, juntando-se aos decotes
ousados, assinalam um estilo revolucionário que representa a ruptura com os usos
tradicionais.
Na intimidade com as palavras, Jane Vanini apresenta as marcas de sua
individualidade e com isso constrói a imagem de si mesma. Entre outros aspectos, ela
serve-se da linguagem epistolar para pronunciar e firmar, de maneira espontânea, sua
condição e natureza feminina, revelando as vaidades e os prazeres pessoais. Num de seus
registros, uma ênfase muito particular para uma peça de roupa: a saia.
A saia negra de crochê (carta 28) lhe faz muita falta num guarda-roupa um tanto
desfigurado, mas é uma saia escocesa que parece polir sua estima: Em relação ao envio de
roupa...[...] E aquela saia xadrez escocesa que eu tinha, muito bonita, que comprei no
Mappin, enviesada e que eu vestia muito, que foi feito dela? A encontraram? Essa eu
gostaria que me mandassem se está por aí...(carta 04). Ao que parece, Jane vê-se bonita
vestindo essa saia. A descrição dos detalhes xadrez, bonita, enviesada e de uso freqüente,
revela um estilo de apresentação em público e o gosto pela sua definição estética. É um
traje que emite sentidos de afeto, bem-estar e elegância feminina. Tanto é, que à
companheira do convívio diário convém presenteá-la com uma peça contendo
características similares:
Quero pedir-lhe mais um favor, que quem sabe saia um
pouco caro, mas no caso vale a pena. A companheira com a qual
vivemos está louca por uma saia de xadrez escocês, mas não gostou
de nenhum dos que encontramos, assim é que se virem por aí um
escocês com bastante cores diferentes e bonito, não precisa ser de
lã tão grossa como a minha, pode ser de lã um pouco mais fina, por
favor, comprem um corte para ela e mande para cá, tá. Quando
vierem por aqui eu a pagarei. Acho que uns 60 cm dá e sobra. (carta
04)
47
Percebe-se aqui o imperativo dos territórios femininos, os quais sugerem pensar a
sensualidade da mulher. Seja curta ou comprida, a saia é um objeto que, para a sociedade
latino-americana, remete sua significação à feminilidade, à estética e ao erotismo do
corpo. É muito em função desses signos de modernidade, incorporados à vida diária, que
Jane, ao tratar de uma possível viagem de Dulce ao Chile, observa e descreve o estilo
feminino da mulher chilena:
Aqui usa tudo muito apertado e curto no caso de blusa.(carta
07) ...Aqui se usa basicamente calça comprida para tudo: trabalho,
cine, passeios, festas boates, etc.[...] em janeiro o tempo é mais
quente aqui e o verão é realmente de lascar [...] os modelos aqui são
bonitos e tem um corte bonito também. [...] Aqui não se usa sapatos
de salto alto, usa bastante sandálias no verão e uma bolsa esporte
sempre... (carta 16) ...Aqui existem muitas coisas típicas bonitas,
principalmente de lã, coisas feitas 1ª mão como bolsas, ponchos,
blusas, meias, etc., vai poder levar presentes para todos. (carta 29)
48
47
Carta de Jane Vanini, sem data, com indício de assinatura de Ana.
48
Carta de Jane Vanini, datada em 06.07.73, assinada por Ana.
Na leitura de alguns registros de Jane Vanini, ao que tudo indica, há uma
sensação de que o Brasil é um país mais sintonizado com a modernidade, pois no Chile os
produtos que são relativamente bons e baratos são roupas e calçados. A roupa de lã ainda
tem maior produtividade, não por ser moderna, mas porque o frio é muito intenso, como
classifica Jane, é de lascar. Estas percepções estão vinculadas aos discursos
propagandísticos e às praticas da modernidade, cujos arranjos marcam severamente a
superioridade econômica, modelam o padrão de vida material e estabelecem a escalada do
progresso, classificando as nações e os grupos sociais a partir dos inovadores hábitos de
consumo e comportamentos.
No seu conjunto, as cartas são lugares que potencializam o exercício pleno das
liberdades múltiplas, onde a individualidade cria e recria suas tramas íntimas e assim
regula suas relações singulares de sociabilidade. São esses espaços singulares e
libertadores que produzem os tempos dos desejos e dos prazeres pessoais. Desejo de ver e
de estar junto dos familiares: ...Que bom. Vai ser fabuloso encontrar com alguém de
vocês. Alguém querido que represente aos demais queridos...(carta 15). Esse alguém é
Dulce que não substitui nenhuma outra pessoa, mas para Jane ela reúne em sua figura o
sentido completo de família e o significado de solidariedade.
É também o lugar em que Jane pode dar e receber presentes, sem que essas trocas
passem pelo terrível julgamento de “desvios burgueses”. Daí momentos de prazer que se
realizam em ... Já tenho um presente. Usei umas vezes, mas resolvi guardá-la agora para
te presentear quando chegar, porque senão não poderei te dar nenhum presente, para
variar, quase sempre estou dura. (carta 09). Esses fragmentos desenham as
territorialidades que configuram o particular e o público.
Mesmo com todas as singularidades políticas que o Chile apresenta, em que o
sonho revolucionário enxerga com nitidez a possibilidade de ser construída uma pátria
socialista, a militante Jane Vanini deixa escapar as significações de sua identidade
nacional. Saber fazer a feijoada é o usufruto de uma “identidade brasileira”, porque o
costume de degustar e consumir feijoada é especificidade brasileira: ...Às vezes quero fazer
algum bolo ou comida brasileira e não sei nenhuma receita. A única coisa que aprendi a
fazer (e muito gostosa) é feijoada. Só faltam a couve e a farinha que aqui não existe, nem
conhecem. (carta 28) Juntando-se a isso, nessa mesma carta, quando Jane diz:...Mande-me
uma garrafa de pinga, tá? Isso não existe aqui, porque ainda não dá cana-de-açúcar, há
uma declaração de prazer aos costumes, às tradições e aos hábitos que já são incorporados
a suas vivências, como parte do seu mundo simbólico.
A feijoada, mesmo faltando a couve e a farinha, as sensações de gosto e de cheiro
das frutas, o sabor e o aroma da pinga, são coisas muito singulares de uma gente ainda
mais singular - a “brasileira”. A saudade do bolo de queijo e de outras coisas mais (carta
07), e as lembranças da degustação do doce de goiaba que Jane saboreou em São Paulo
(carta 15), revelam que ela continua vivendo o Brasil no Chile, como mostra os recortes a
seguir:
Parece que a madrinha vem mesmo, não é? Fale com Marise
se me consegue um doce de goiaba como aquele que ela mandou para
mim quando eu estava em São Paulo. Sabe que aqui não tem goiaba
nem manga. Tem outras frutas que são diferentes das frutas
brasileiras, e as vezes a gente se lembra de alguma daí e sente
saudades. (carta 15)
49
49
Carta de Jane Vanini, datada em 15.10.92, assinada por Ana.
...Mande-me urgente a receita de torta paulista (aquela com
bolachinha e creme de leite nestlé, leite condensado, etc., de Caruru
com angu, se sabem e qualquer outra. Principalmente da torta paulista
que quero fazer nos próximos dias se possível para uma companheira,
tá?... (carta 17)
50
Tenho saudades da manga, do caju, do mamão, porque aqui
não existe essas frutas. [...] Temos em compensação a chicha de uva,
de maçã, que é deliciosa, mas são coisas diferentes. (carta 28)
51
O trabalho de Denise Rollemberg,
52
aponta a crise de identidade que vive os
exilados nos países que os recebem. Diante das adversidades que surgem na vida de
muitas pessoas que saem do país, a continuidade da militância política por meio do
ingresso em
outra organização de esquerda, dá um sentido à vida de quem acredita num projeto
revolucionário. É o que acontece com Jane Vanini, sobretudo, por significar uma
perspectiva maior de vitória da luta.
Em compensação, o Chile tem chicha de uva, de maçã, que é deliciosa, mas são
coisas diferentes (carta 28) significa que são coisas chilenas que, até pouco tempo antes,
ela não conhecia e por isso não se incorporam com a mesma simbologia. O tempo verbal
temos, que completa a construção da frase, pressupõe-se pensar que Jane adota o Chile
como sua pátria, mas a segunda, pois as sensações de gosto, sabor, aroma, textura de
bolos, doces, frutas, bebidas, tecidos, produtos de beleza, objetos, etc., exprimem sua
identidade brasileira. Todos esses aspectos mostram que Jane está no Chile, contudo não é
uma chilena.
50
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
51
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
52
ROLLEMBERG, D. Exílio: refazendo identidades, 1999.
Nesses trechos, aparece o caráter ambíguo da identidade da militante refugiada.
Há uma sensação de estar fora de seu lugar. A idéia de diferente está escondida e revelada
na maneira de dizer, de sentir e de conceber as situações que dimensionam a vida
cotidiana no Chile. Presentes em vários depoimentos, essa é uma característica recorrente
que se incorporam às experiências de muitos militantes exilados ou refugiados que Denise
Rollemberg aponta como sendo:
...a história da desorientação, da crise de valores que significou , para
uns, o fim de um caminho e, para outros, a descoberta de outras
possibilidades. É a história do esforço inútil e inglório para manter a
identidade, mas também a história da sua redefinição e reconstrução,
que se impuseram ao longo das fases do exílio e continuaram, para
muitos, mesmo depois da volta ao Brasil.
53
Uma outra situação que tem uma importância fundamental é a aquisição de
documentos de identidade. Na vida clandestina ter um nome fictício, naquela ocasião,
significa a tentativa de continuar revolucionário, além de minimizar os controles
institucionais a que são submetidos esses estrangeiros em condições tão especiais. Pelo
apoio e segurança que representa, Jane Vanini, pode solicitar da família, por várias vezes
até insistentemente, seus documentos:
...necessito que a senhora tente conseguir o máximo possível de nossos
documentos. Fotocópia, o que for possível. Creio que em algumas das
pastas de cartolina que havia em casa ou na casa de Da. Maria havia ou
fotocópias do título, da identidade, etc. ou o negativo dos mesmos.
Qualquer um serve. Se não conseguir, a senhora tente conseguir nos
colégios onde estudei ou prestei exame, no colégio Estadual de São
Paulo por exemplo, eles tem a fotocópia da identidade e me parece que
do título também, peça emprestado, explique que eu perdi os meus e
53
Ibid, p. 40.
preciso tirar outros e a fotocópia ajudaria, comprometa-se a devolver,
mostre seus documentos para provar que a senhora é minha irmã,
enfim faça o possível para conseguir uma fotocópia e me mande com a
máxima urgência possível. (carta 20)
54
...pedi faz uns dias e também por telefone que nos enviassem nossos
documentos: fotocópia ou negativo que devemos ter por aí ou que é
necessário que o peçam emprestado nas escolas, sei lá. É muito
importante que mandem o mais rápido possível, principalmente a
identidade. (carta 21)
55
Enquanto os documentos do colégio, todos tem que ter firma
reconhecida. Realmente não tem problema se a senhora vai ao Colégio
Estadual e pede para ver a pasta com meus documentos e copiar
os
dados. Diga que eu estou viajando e a senhora tem que preencher um
formulário para um concurso qualquer, de escola ou de viagem, ou
qualquer coisa e não tem os meus dados e aí é o único lugar onde a
senhora pode vê-los. (carta 22)
56
Creio que a única solução dos dados da CI seria buscar nos
meus papéis que sobraram e em alguns que estão na casa de Da. Maria,
em uma pasta, num armário que existe no antigo quarto de estudos do
Sérgio [...] O fogo no Colégio Estadual quer dizer que tampouco a
senhora conseguirá meu diploma? Necessito disso também, se bem que
não muito urgente. Tudo deve vir com firma reconhecida. Vou ver se
me lembro de algum outro lugar onde pode haver esses dados que
necessito. Enquanto isso, busquem milímetro por milímetro na casa de
Da. Maria. (carta 25)
57
54
Carta de Jane Vanini, datada em 30.12.72, assinada por Ana,
55
Carta de Jane Vainini, datad em 16.01.73, assinada por Jane.
56
Carta de Jane Vanini, sem datação, com assinatura de Ana.
57
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
Nota-se que há uma necessidade de restaurar a normalidade plena da vida,
recuperar perdas da vida material, social, intelectual e profissional. Nas investigações que
faz sobre aspectos da vida clandestina de militantes de esquerda, Denise diz que a
necessidade de portar documentos significa a materialização da identidade, pois “os
documentos definiam aspectos essenciais do dia-a-dia, a começar pela própria permissão
para se estabelecerem, trabalharem, terem direito à saúde, moradia, alimentação, etc.”
58
É certo que o Chile, até o golpe de estado em setembro de 1973, por ter um
governo de alianças que congregava partidos políticos de esquerda, não só acolheu muitos
brasileiros exilados e refugiados, como também dispensou um tratamento diferenciado de
outros países inclusive socialistas. Um exemplo muito forte que marca a vida de
pessoas
clandestinas que vivem no Chile entre 1970 e 1973, é o reconhecimento da nacionalidade
chilena aos filhos de brasileiros que por lá nasceram. A falta de documentos, antes de
tudo, impede as pessoas de locomover-se e negar a expedição oficial de documentos é uma
forma de repressão e controle que as ditaduras exercem sobre os militantes nacionais.
Numa outra perspectiva, essa condição bifurcada entre ser estrangeira e ser
revolucionária denota que a militância de esquerda, em sua essência, produz a
superação do conceito tradicional de nacionalidade, uma vez que a concepção da luta
revolucionária incide sobre a libertação dos povos esmagados pelo sistema capitalista. Isso
porém não significa a negação da nação, mas a afirmação desta, com base numa
construção da idéia de transnacionalidade, ou seja, uma multiplicidade de práticas políticas
e sociais, cujo movimento de suas ações está para além da nação.
58
ROLLEMBERG, op. cit. p. 60
Registro Fotográfico: entre a sedução e a memória
Embora o foco da investigação seja o conteúdo de cartas pessoais incorporadas à
vida de militância política, nota-se que no espaço das correspondências a referência sobre
fotografias é marcante, significando perceber que o registro fotográfico, mais que um
testemunho de um instante, é a produção de um discurso que também é parte da vida de
Jane Vanini. Um discurso sobre si mesma e sobre outras pessoas, pois a fotografia
incorpora um sentido de direção e referências sociais, especialmente, porque os
fragmentos registrados possibilitam informar ações e relações entre pessoas, espaços e
temporalidades.
Nesse ponto, as fotografias estão pensadas como partes indissociáveis das cartas.
O registro de espacialidades e temporalidades, que traz a fotografia, permite construir
múltiplos olhares que penetram nas possíveis escolhas das imagens. Os enunciados dessas
imagens são produtores de signos não-verbais que ajudam a compreender e reatualizar o
passado no presente. Elas, as imagens, são também portadoras de códigos de representação
que revelam comportamentos e experiências sociais. Ao trabalhar com mensagem
fotográfica, Mauad propõe cinco categorias denominadas de espaços. São eles, o
fotográfico, o geográfico, o espaço do objeto, o da figuração e o das vivências.
59
Nessas
categorias, encontram-se conteúdo e expressão, configuração física dos cenários,
dimensões
e valorações simbólicas, relações que estruturam o campo das significações e as atitudes
humanas conflituosas ou harmônicas.
Olhando dessa forma, há de se considerar que a fotografia é uma construção de
imagens que pode produzir mensagens e interpretações das imagens que registra.
E minhas fotos e documentos? Se puder mande algumas
fotos minhas e documentos, aquelas que eu tirei no sítio, de calça
comprida, de chapéu, às vezes com revólver na cintura, uma que eu
tenho sentada no antigo porto da antiga casa do Cabaçal, perto da
figueira, olhando o rio e alguma outra nesse estilo. Me lembro que
tirei algumas na lage. Mande-me todas que puder tiradas no campo.
Na cidade não me lembro agora de nenhuma que eu gostasse. Bom, vê
aí, tá? Fiquei contente em saber que a senhora nos mandou uma foto
59
MAUAD, A. M. S. A. E. O olho da História: análise da imagem fotográfica na construção de uma
memória sobre o conflito de Canudos, 1993. pp. 29/39.
de toda a turma. Mandem mais, quantas puderem. Tenho uma saudade
louca de vocês. (carta 09)
60
Esse recorte da carta enfatiza bem a capacidade do registro fotográfico em
construir imagens e disponibilizá-las para diversas interpretações. Os detalhes das fotos
que Jane expõe, tais como sítio, chapéu, revólver na cintura, antigo porto, figueira, rio, são
autênticas marcas da vida campestre. É o estilo mais “rural”, afastado do consumo e da
urbanização das cidades.
Esses termos também revelam a rede de referências familiares. Uma referência
singular, individualizada e própria de Jane Vanini, para as pessoas que convivem com ela
nesse momento e compõem suas referências no Chile. Os aspectos que constituem os
cenários dessas fotografias testemunham sua origem, as relações familiares e as condições
de vida material, por isso a ênfase para mandem-me todas que puder tiradas no campo.
Numa outra abordagem, é possível afirmar que a fotografia, na condição de
representar a presença da pessoa ausente, tem a força de poder recompor o núcleo familiar,
imprimindo em si mesmo o sentido de unidade. A necessidade de enviar e de querer
receber muitas fotos e de todos, é um traço marcante na reconstituição do convívio
familiar tanto para o fotografado, quanto para o receptor, embora isso não resolva os
conflitos que porventura existam. Neste caso, para o receptor, a fotografia passa a
documentar os aspectos da vida pessoal e social do fotografado e assim, o olhar torna-se
mais penetrante nas particularidades do registro que reúnem indumentária, semblantes,
expressões corporais, aparências, além de vários outros detalhes dos cenários congelados.
60
Carta de Jane Vanini, sem data , com assinatura de Ana.
O trecho acima selecionado traz uma outra singularidade da vida pessoal de Jane
Vanini: o gosto pela fotografia. A adoção da luta revolucionária, que parece ser a face
mais intensa de sua existência, não lhe retira o prazer de fotografar-se, mesmo porque o
registro fotográfico é um artifício que possibilita criar várias interpretações de realidades,
tanto para o retratado quanto para os receptores.
No consentimento ao ato de fotografar-se, que de maneira geral inclui propósito e
intenções, as pessoas são tomadas por momentos de satisfação, especialmente quando são
retratos de família. É também a vontade de ver construída a imagem de si mesma,
fundamentando-se na idéia de que “a fotografia tem sua origem a partir do desejo de um
indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em
determinado lugar e época”.
61
Analisando álbuns de família, Mírian Moreira Leite afirma a regularidade com
que as pessoas se permitem fotografar, considerando a forma, o ritmo, a estética, o
significado e a satisfação psicológica que o registro fotográfico proporciona. Nessa mesma
direção, ela aponta como motivos de satisfação do registro os seguintes aspectos: “a
proteção contra o tempo, que torna a fotografia um substituto mágico do que o tempo
destruiu; a comunicação com os outros e a expressão de sentimentos; a auto-identificação,
o prestígio social conquistado pela proeza técnica, pela realização pessoal ou pela despesa
ostentatória; a distração ou jogo e/ou a evocação da memória evanescente”.
62
Aqui é importante ressaltar que Jane Vanini incorpora o hábito e o prazer de ser
retratada, o que significa uma marca nos hábitos de consumo da família burguesa,
produzindo sentido de inclusão social, pois não é qualquer família que pode fotografar os
61
KOSSOY, B. Fotografia e história, 1989, p. 22.
62
LEITE. M. M. Retratos de família, 1973, p. 87
seus momentos. Seja na infância, nos carnavais, nas festas de aniversário, adolescência,
formaturas, desfiles cívicos ou de moda, mais curiosamente, ela registra também seus
tempos de militância política. Além do variado acervo, uma máquina fotográfica é parte de
seus pertences pessoais, como consta na carta 29, escrita em julho de 1973, quando
também aproveita para informar sobre o uso do dinheiro que recebeu de sua madrinha, que
aliás lhe deixa um tanto confortável:
Qualquer dia desses vou te mandar fotos minhas. O
problema é a falta de tempo e os filmes que são caros. Minha máquina
é de 35mm e os filmes de 400 asas que eu geral uso e estão escassos,
porque também é importado. Mas logo logo te mando algumas. Vou
comprar filmes com os 200, há, há, há!!” Vou mandar concertar e lhes
mandarei algumas fotos, tá? (carta 34)
63
Por que Jane desejou fotografar-se durante a prática da militância, um tempo tão
conturbado, em que o recomendável não é o registro pessoal? O que significa uma
militante fotografar sua imagem no Chile e enviá-la, pelos Correios e Telégrafos, a sua
irmã que reside em São Paulo-Brasil? Como se dá a escolha dos cenários fotográficos?
Parte dessas questões talvez não seja mais possível recuperar, nem tampouco a fotografia
fala sozinha de si mesma, mas permite que seus indícios recriem aspectos capazes de
fomentar a investigação histórica. Então, é imprescindível dispensar atenção ao registro
fotográfico, uma vez que este possibilita, no seu conjunto, complementar a montagem do
enredo.
Que trama histórica pode revelar ou esconder uma produção fotográfica? O “clic”
da objetiva registra um instante ímpar de um tempo, num espaço escolhido em função de
uma vontade, pois o cenário é construído pela intenção do fotógrafo e do fotografado, ou
63
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
de ambos. Seja como for, a cena registrada expressa o assunto que de fato existe. Isso não
significa que a fotografia traz em si mesma a expressão da verdade e nem um
conhecimento total sobre o passado retratado, mas expressa certamente um sentido
testemunhal do instante e ajuda a visualizar e compreender os “microcenários do passado”,
segundo Kossoy. Esse mesmo autor, ao analisar o tempo e a realidade no registro
fotográfico, diz que “toda fotografia representa em seu conteúdo uma interrupção do
tempo e, portanto, a vida. O fragmento selecionado do real, a partir do instante em que foi
registrado, permanecerá para sempre interrompido e isolado na bidimensão da superfície
sensível”.
64
Um sentido curioso na fotografia é que seu conteúdo pode revelar informações
que ajudam a reconstruir um tempo para quem analisa e reatualizar emoções para quem
partilha a convivência com o tempo retratado. Esses desdobramentos revitalizam as
imagens congeladas e, ao mesmo tempo, quebram sua imobilidade e as põem em
movimento numa continuada construção de significados que brotam do exercício de
rememoração.
O registro fotográfico é o resultado de uma vontade deliberada que implica na
escolha de aspectos como ângulos, iluminação, planos, enquadramentos, cenários, entre
outros, estabelecendo uma estreita relação com objetos, pessoas e paisagens, que são
constituidores de uma memória que legitima aquelas escolhas, ao mesmo tempo em que
produz um esquecimento sobre as outras lembranças. A fotografia não transmite uma
realidade, mas uma relação com ela, ou seja, uma representação desta que permite
construir uma significação entre seu conteúdo e sua forma.
64
KOSSOY, op. cit. p. 28
Há de fato uma teia de comunicação entre o observador e as imagens fotográficas
silenciadas no seu tempo, pois elas são componentes do sistema de signos não-verbais que
se caracteriza por estabelecer uma comunicação independente, gestora de múltiplos
aspectos culturais. É com esse sentido que Jane diz:
Eu queria tirar uma foto bem chilena e mandar a vocês e
pedi uma manta emprestada para a foto, porém agora comprei uma
manta para dar de presente a senhora e vou tirar uma foto com ela
para te mandar. (carta 24)
65
O registro fotográfico, por ser um texto visual, leva o leitor a estabelecer uma
relação cognitiva entre as imagens congeladas e ele mesmo, na qual se impõe o
processamento de informações que se escondem nos vincos dos cenários ou fora deles,
porém, na análise de Mírian M. Leite, “como a fotografia acolhe significados muito
diferentes na codificação e em possíveis decodificações da mensagem transmitida, as
interferências dessas condições alteram e percepção do observador da imagem.”
66
A relação com a imagem fotográfica produz múltiplos sentidos e imediatos,
porque as imagens possibilitam leituras dissimuladas, dispensando mediações. E quando
se trata de cenários, cujos comportamentos dos figurantes tem-se um conhecimento prévio,
as interpretações parecem mais próximas e os significados mais evidentes. Então, o
fragmento acima citado expressa em foto bem chilena e manta emprestada, a significação
do instante, como se quisesse falar: agora é assim, eu vivo o Chile. Essa prática de
fotografar-se também sugere pensar a forma mais imediata e mais presente de assegurar
65
Carta de Jane Vanini, datada em 23.01.73, assinada por Jane.
66
LEITE, M. L. M. Livros de viagem (1803-1900), 1997, p. 224.
sua integração plena ao grupo familiar, uma vez que o registro fotográfico não reúne, no
seu conteúdo, somente as singularidades pessoais dos atores, mas assinala, sobretudo, os
papéis e os lugares sociais de cada fotografado.
A família Vanini sempre preserva o costume de expor suas fotografias em fartos
álbuns, porém os registros de Jane nos seus tempos chilenos não estão assim dispostos,
mas guardados cuidadosamente nos pertences pessoais da irmã Dulce Ana. Essa é uma
particularidade que não ajuda a construir um esquecimento, mas algumas folhas de
silêncio. Silêncio sobre a ausência, a presença, as escolhas, as paixões, as fugas e as
atitudes sobre Jane. Qualquer tipo de silenciamento traz a sensação de protegê-la, quer da
repressão institucional, quer das múltiplas opiniões que se formulam e circulam sobre sua
conduta, gerando descontentamentos públicos aos quais submete toda a família.
As fotografias “guardadas”, assim como as cartas e outras lembranças, quando
olhadas e observadas, provocam rompimentos repentinos desse silêncio que acompanha a
história e, dessa forma, arrancam da memória familiar os traços de vida também guardados
nas lembranças do convívio. Assim, rememora-se o afeto, revivem-se as relações,
recompõe-se a convivência familiar, refazem-se as atitudes e os pensamentos, escuta-se o
som das vozes, recuperam-se os traços das feições e os contornos dos sorrisos e dos
olhares petrificados no registro. É como se as imagens ganhassem vida e se locomovessem
para o espaço do agora. É nessa vitalização das imagens que Jane deseja recuperar alguns
registros perdidos:
Gostaria que me mandassem uma foto de vocês outra vez.
Sabe que a que eu tinha me roubaram um dia em que me bateram a
certeira e estou sem nada. Nem da Cida. Nem do Jorge, nem daquela
de papai, mamãe, etc. Qualquer dia desses mando foto nossas. É que
temos que tirar ainda e não tivemos oportunidade. (carta 21)
67
Mande-me foto de todos vocês, tá? E se encontram algumas
minhas antigas, daquelas que eu gostava, mande-me também, tá?
(carta 25)
68
Para Jane Vanini, ao que tudo indica, a fotografia é um tempo de sedução que se
reedita em múltiplas vontades, uma vez que eterniza seus momentos de prazeres. Seja na
rua, no trabalho, ao telefone, nas creches em atividades voluntárias, ou ainda, conservando
imagens de cenários, pessoas e objetos, o encadeamento das relações produz signos de
uma experiência, mesmo que a fotografia possibilite leituras ambíguas sobre seu conteúdo.
Numa proximidade com as correspondências, as fotografias enviadas a Dulce são
instrumentos fascinantes, os quais, detendo informações e enunciando mensagens sobre o
cotidiano de Jane, soam como grandes fragmentos de certezas vividas. Com essa
significação é que Jane Vanini atualiza um passado no presente e fala do companheiro
gordinho, mas simpático, da magreza que não existe mais, da identificação das crianças e
da feitura de sua carteira:
Vou te mandar umas fotos (anteriores às outras que te
mandei) em que estou com um companheiro chileno. É meio ‘gordinho’,
mas é simpático e parece que está enamorado. Oh!!... Nesta época eu
estava magra, mas afora estou super gorda, assim é que não se
preocupem pela magreza minha nessa foto. (carta 32)
69
Em outra carta lhes vou mandar negativos com fotos nossas.
As duas crianças que aparecem são filhos do Pepe. A carteira que
aparece comigo, eu mesma a fiz. (carta 36)
70
67
Carta de Jane Vanini, datada em 16.01.73, assinada por Jane.
68
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
69
Carta de Jane Vanini, datada em 01.02.74, assinada por Ana.
70
Carta de Jane Vanini, datada em 29.07.74, Assinada por Carmem.
Qualquer que tenha sido a finalidade das produções fotográficas nos tempos das
práticas da luta revolucionária e, em especial no Chile, os registros também expõem a
marca individual do fotógrafo. Ele tem um estilo que revela seus valores culturais, sua
forma de pensar e sua compreensão sobre estética. Há, portanto, uma cumplicidade entre o
fotógrafo e a fotografada Jane.
Seguindo Boris Kossoy, a trajetória da fotografia se dá em três estágios: a) a
intenção de registrar a realidade, que pode ser do fotógrafo ou não; b) o ato de registrar o
real, que é o processo que origina a fotografia; c) os caminhos que tomam a fotografia, ou
seja, os aspectos como as aventualidades, as dedicatórias, as emoções, os sentimentos, as
razões pelas quais determinadas pessoas salvam os registros, os álbuns que conservam,
mãos e olhos que manuseiam as mensagens. “Neste caso, seu conteúdo se manteve, nele o
tempo parou. As expressões ainda são as mesmas. Apenas o artefato, no seu todo
envelheceu”.
71
Para os familiares de Jane Vanini, sua ausência, no sentido mais amplo, traduz
um sentimento de perda da ente querida e pode ser amenizado na contemplação da
imagem fotográfica. Os conteúdos de seus últimos registros representam a realidade
intensamente vivida e assim, a continuidade dos laços familiares e afetivos. É nessa
compreensão que os trabalhos de Míriam Moreira Leite apresentam a imagem fotográfica
como um prolongamento da existência humana como forma de culto e preservação da
memória das pessoas que já não se fazem mais presentes no espaço familiar. Ela enfatiza
essa representação afirmando que “a fotografia funciona como índice do que foi e por
onde passou a família. Silenciosas e imóveis, ficam, também por isso, ligadas à memória
71
KOSSY, B. Fotografia e História, 1989, p. 29
dos entes queridos que desapareceram e que se tenta fazer sobreviver. Além de ser um
espelho de momentos passados, as fotografias recuperam a presença dos ausentes”.
72
72
LEITE, M. M. Retratos de família. 1993, p. 160.
Capítulo I
Mundos, Tempos e Vidas
Na trama das palavras, os tempos vividos
Cartas são instrumentos que, ao registrar suas informações, produzem sensações
diversas, mexendo com o estado emocional tanto de quem as escreve, quanto de quem as
lê.
Num primeiro instante, uma carta parece não passar de um veículo comum que provoca
um movimento de notícias que articulam pessoas, as quais se encontram fisicamente
distantes. No entanto, há uma complexidade que independe da natureza e do conteúdo que
cada carta carrega.
Para efeito de compreensão, o lastro desta pesquisa são cartas pessoais que
possibilitam, pela leitura dos conteúdos e interpretação de seus enunciados, a reconstrução
de aspectos de uma experiência político-social trágica vivenciada por uma jovem
estudante, entre os anos de 1964 e 1974. Essas cartas pessoais, produzidas entre os anos de
1972 e 1974, foram trocadas entre Jane e Dulce Vanini, e encontram no restabelecimento
das relações familiares, uma das fortes razões de existirem. Trata-se especialmente de
duas irmãs, uma delas, autora e remetente, Jane Vanini, que, na época vivendo
politicamente clandestina em Santiago-Chile, faz de suas correspondências, entre vários
outros sentidos, o reatamento de laços afetivos com sua família.
Num total de trinta e sete cartas, Jane destinou grande parte delas a Dulce, sua
irmã mais velha, a quem tratava afetivamente de “Madrinha” e que, naquele período, na
condição de funcionária da empresa Mappin S/A, residia em São Paulo-Capital. Embora
Dulce tenha sido a receptora das cartas, Jane também endereçou correspondências a outros
destinatários como irmãos, pais, sobrinhos, cunhados e tios.
O ato de escrever e trocar cartas são práticas antigas, produtoras de múltiplas
sensações que, num sentido primeiro, geram ao mesmo tempo um prazer por parte do
autor e uma ansiedade por parte do receptor. Na dimensão desse espaço existente entre o
que se escreve e o que se lê, é fundamental compreender os significados que aparecem
entre o conteúdo de um texto e os efeitos que ele tende a produzir.
O que de fato acontece com uma pessoa ao proceder qualquer tipo de leitura?
Para Chartier, a leitura não é um simples processo de absorção de conteúdos, pois nenhum
texto se apresenta como um amontoado semântico, nem o leitor como um mero
instrumento armazenador de discursos. A relação leitor versus leitura “supõe uma
multiplicidade de mediações e de intermediários entre as palavras anunciadas e a página
impressa”
73
, afirma ele. O leitor se encontra envolvido numa cadeia de práticas sociais
diversas intensamente compartilhadas entre grupos distintos. A leitura é, então, fortemente
marcada pela produção de sentidos, cujas formas de apreensão se articulam com a
utensilagem mental e o capital simbólico do leitor, os quais possibilitam construir valores,
intenções, propósitos, conceitos, conhecimentos, planos deliberativos, etc.
O leitor, por sua vez, tem uma capacidade de interpretação que é adquirida
através do conjunto de aspectos normativos, legitimadores de comportamentos sociais,
cujos princípios caracterizam a maneira de pensar de uma dada época. Assim, o leitor não
absorve uma leitura balbuciando palavras ou com um olhar silencioso sobre o texto, mas
73
CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre,
Jésus Anaya, Daniel Goldin e Antonio Saborit, 2001, prólogo.
na relação que ele estabelece entre suas competências individuais já internalizadas e a
mensagem que o texto, no seu todo, disponibiliza.
Não há, portanto, uma naturalização das coisas, ao contrário, a intervenção direta
e constante dos agentes sociais é que constrói a realidade, demonstrando, na dinâmica
social, a forma como se apropriam dessas leituras, manifestando suas percepções, através
das estratégias de conduta que utilizam no convívio em sociedade.
É com essa complexidade que se dispensa uma atenção especial para a
intertextualidade das cartas que contempla ao mesmo tempo as experiências plurais de
Jane Vanini, cujos relatos, cheios de “veredas”, ao exibirem um olhar militante sobre
aquele mundo, permitem também vários olhares sobre o mundo dos militantes.
Para Jane, escrever cartas aparece como uma necessidade, uma vez que elas se
apresentam como o lugar que sacraliza sua individualização, por conseguinte, o espaço
que assegura sua identidade. As correspondências são mundos passíveis de exibirem a
singularidade de Jane que aparece encarnada no corpo de cada escrita, ora reconhecendo-
se como revolucionária, ora circunscrita a si mesma. Esses são os lugares de construção de
identidades, pois permitem que Jane Vanini reconheça-se na sua própria trama. Já para a
família, a carta, enquanto objeto, tem o sentido de vida possível; enquanto conteúdo
imprime a essência humana da pessoa ausente. Cada carta enviada e recebida expressa,
sobretudo, a costura pausada de uma cumplicidade estabelecida entre a remetente e os
destinatários. Em outros momentos, as cartas são também maneiras de expressar as
saudades e o vínculo afetivo que a acompanham como sombras de vida e que, quase
sempre, começam ou terminam o noticiado de cada carta:
Madrinha:
Finalmente recebi sua carta. Estava realmente preocupada.
A Dona Maria havia escrito ao Sérgio que a senhora estava doente
dos nervos, etc., e como não recebia nenhuma notícia sua, me
preocupava e supunha mil coisas. Mas parece que sua tentativa de
escrever uma carta curta por semana não prosperou porque já vai
fazer 2 semanas que não recebo outra. (carta 28)
74
Querida Madrinha:
Muitas saudades. Tenho uma vontade enorme de estar com
vocês. Houve uns dias que passei meio na fossa. Não muito porque não
posso permitir-me êsses luxos. Já tinha recebido sua carta junto com
a do Papai mas queria estar sem ‘meias’ fossas para poder escrever.
Hoje eu o estou fazendo. Aliás interrompi aqui esta carta porque
acabo de receber outra carta, do dia 23 de abril com as fotos. Como
estão diferentes as ‘crianças’. Os grandes não tanto. A senhora
sempre enxutinha, né? Os cabelos dos nossos pais sim que estão mais
brancos. Que saudades! [...] Sonhei muito com vocês estes dias.
Pensei que sua carta me fôsse dizer que a senhora estava por aqui.
[...] não deixe de escrever-me, tá? Depois respondo tudo junto.
Queria vê-los. Morro de saudades. Tenho Banzo. Eu os quero muito,
abraços. (carta 34)
75
Por esses aspectos, é perceptível que os militantes, ao se tornarem militantes, não
se divorciam de seus sentimentos. Apesar de um tempo policialesco, que viola os direitos
de cidadania das pessoas, Jane aposta na possibilidade de algumas cartas não serem
interceptadas pela censura. Encontra junto a Dulce o “jeito” do envio e recebimento
através do qual consegue estabelecer uma comunicação direta com seus correspondentes:
74
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
75
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
Melhor que escrevam 2 vezes por se acaso uma se extravia.
(carta 02 )
O Mário recebeu outro dia uma carta de Dona Maria em que
ela diz que não estão recebendo cartas. Eu tenho escrito sempre com
muita regularidade. [...] As cartas que vocês me mandam chegam no
máximo com uma semana desde o dia em que colocam no correio. Em
geral elas vem reengomadas, quer dizer que a abriram e tornaram a
fechar. [...] Estou numerando as cartas. Esta vai ser a número 1 pode
ver no canto a direita, em cima. Até agora já escrevi, no total umas
18 cartas (incluindo a de Nícia). Espero que tenham recebido todas.
(carta 10)
76
Quando me escreverem colem a carta somente com a cola
que vem no envelope, porque se vem mais cola que essa já sei que foi
aberta no correio. (carta 12)
77
Embora os conteúdos dessas cartas também revelem aspectos da luta de
militância, eles mostram, ao mesmo tempo, que o regime vigente, no que diz respeito ao
controle, apesar de propagandeado e onipresente, não impediu que a capacidade criadora
da mente revolucionária construísse outras formas de sobrevivência. Como pode-se notar
nos trechos acima citados, códigos, datações e duplicidade de correspondências são
algumas maneiras que Jane elabora para circular num espaço totalmente personalizado.
Durante quase cinco anos, Jane vive inevitavelmente clandestina. Para uma
militante clandestina, mais do que para qualquer outra pessoa, escrever cartas também
toma um sentido de encurtar distâncias geográficas e físicas, além de estabelecer um fio
condutor de relações e sensibilidades. Há, no entanto, um espaço de sedução desenhado
pela busca
76
Carta de Jane Vanini, datada em 07.09.72, assinada por Ana.
77
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
de si mesma e pela conquista do outro, pela personificação dos conteúdos e pelos
segredos. A indistinção entre remetente, narradora e autora e a flutuação entre a
imaginação utópica e a ação experimentada, revela, sobretudo, a ansiedade que permeia a
vontade de ser revolucionária, a convivência com as incertezas e a opção de continuar
lutando. Por intermédio das cartas observa-se que há vários atores sociais em Jane, os
quais se misturam e se cruzam indistinta e simultaneamente sobre várias figuras: a
narradora, a militante, a guerreira, a filha, a irmã, a nora, a mulher, a companheira, a tia, a
cunhada, a revolucionária, a “camarada”, etc.
As circunstâncias da clandestinidade levam o revolucionário a pensar muitos
aspectos da militância política, a partir de um direcionamento pessoal, ou seja, exigem a
invenção de múltiplas formas de sobrevivência, pois convive-se simultaneamente com o
medo e a coragem, com um imaginário projetado e um ambiente muito adverso, com a
solidão insuportável e o apoio disponível, com o companheirismo possível e o
individualismo necessário, com a possibilidade de superação e a incerteza de alcançá-la.
Nesse caminho, é aceitável pensar que a camuflagem das identidades, por trás de cada
subscrição que Jane registra, esconde e revela muita coisa, cujos mistérios levam o leitor a
construir suas viagens cada vez mais intensas por espaços multidimensionais.
As pessoas têm maneiras muito singulares de se apropriar do conteúdo de um
dado texto. Para R. Chartier, um conjunto de normas, regras, convenções, códigos e
percepções são aspectos constituidores do leitor-indivíduo e o identifica como pertencente
a uma comunidade interpretativa própria.
78
São essas características que norteiam a
relação estabelecida entre a materialidade da escrita e a corporeidade sócio-cultural que o
leitor comporta. Assim, a escrita nunca é algo onipotente, ou seja, a inscrição das palavras
78
CHARTIER, R. 2001, op. cit. p.32-33.
no texto de uma carta, por exemplo, não transfere o sentido para o leitor, mas é este que,
com sua capacidade interpretativa e na relação com o que está escrito, elabora a
construção dos sentidos. Um texto não traz o sentido, produz sentidos.
Portanto, as cartas não são redutíveis às estratégias de persuasão que sugerem
demonstrar nos seus enunciados. As palavras são trilhas que constituem um mundo
particular, construído para que Jane possa habitá-lo livremente. Elas, as cartas, são
verdades vividas. São os espaços da vida normal, para além da normalidade de escrever,
sobretudo quando são produzidas e enviadas numa condição de vida anormal - a
clandestinidade.
Para Dulce, receptora de todas as correspondências da irmã, havia sempre uma
angústia contínua que se debruçava sobre o tempo da espera e o conteúdo de cada missiva.
A carta, como representação de vida, produz uma pluralidade de significados e formas de
apropriações. Ela emite recepções paradoxais e inéditas, tais como certezas e dúvidas.
Quem escreve pode inventar sua trama com a finalidade de produzir determinados efeitos;
e quem lê, mesmo acreditando no conteúdo, por se tratar de um presente que não é mais
presente, atualiza aquele passado, todavia com as incertezas do agora, pois ele, o agora,
pode traduzir-se numa estratégia de fuga: ...por mais que eu lesse o conteúdo da carta eu
achava que ela (Jane) estava passando dificuldades e não queria me falar, pois sabia o
quanto eu me preocupava com aquela situação que ela vivia.
79
Nesse sentido, a carta incorpora segredos porque, enquanto objeto, ela é
portadora de signos que produzem impressões processadas na memória voluntária. Esta
79
Trechos de entrevista com Dulce Ana Vanini, Rio de Janeiro, 2001.
procede por instantâneos e busca o segredo das impressões no próprio objeto. ... essa
memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes.
80
Entender essas tensões é aceitar que o tempo da clandestinidade é o da
experiência vivida e o da invenção do fazer. Como pode-se perceber, nas lembranças de
Suzana Lisboa, esse é um tempo emocional, descontínuo:
A intensidade das coisas que a gente vivia naquela época era
tal que você podia, alguém já falou nisso, que você, num minuto, sentia
emoções como se tivesse vivido um ano; a intensidade das emoções que
a gente vivia era muito grande. Só o fato de você está o tempo inteiro
convivendo com a morte já é uma coisa que traz uma montanha de
sensações e o período que por ventura a gente ficava juntos ele assumia
uma dimensão muito grande porque o convívio era muito intenso; você
viver com um companheiro e partilhar as mesmas emoções... quer dizer
eles (Jane e Sérgio) eram um casal jovem, assim como nós, que estava
jogando pela janela um futuro pensando na liberdade de seu país.
81
O tempo de cada carta - para quem escreve - está no assunto que, embora queira
parecer um presente, é sempre de um passado que trata - para quem recebe. O hoje da
recepção e da leitura vêm sempre depois do hoje da escrita e depois do hoje do envio, que
agora já é um ontem e esses dois hojes já sendo defasados no tempo, contem a
possibilidade quase certa de aquilo que nas cartas se lê, já não é mais o que está
acontecendo.
82
Nesse sentido, a brusca incidência que o passado faz sobre o presente permite que
sejam compreensíveis as incertezas e as inquietações de Dulce, pois o tempo de
escrever
80
DELEUZE, G. Proust e os signos, 1987, p. 57
81
Trecho da entrevista de Suzana Lisboa, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional e companheira de
Jane Vanini. A entrevista foi realizada em São Paulo, no dia 27.11.92.
82
MELO e CASTRO, E. M. de, Odeio cartas. 2000, p. 15.
da remetente e o tempo da receptora ler as cartas aparecem distintos. As sensações
aflitivas de Dulce tendem a provocar impactos emocionais de maiores proporções, tendo
em vista que a multiplicidade desses tempos não lhe possibilita conhecer o presente
simultâneo da irmã que escreveu a carta.
É importante ressaltar que o ‘chrónos’ aqui acontece diferente. Embora uma
parte significativa das cartas que Jane escreve apresenta-se datada, não é de um tempo
cronológico que falam; é o tempo das recordações, das reminiscências, da sensibilidade e
da experimentação da luta revolucionária. Esses tempos plurais são reveladores de signos
que se encontram mergulhados nas lembranças das experiências vividas, e são, sobretudo,
um olhar através do tempo múltiplo, um olhar que reconstrói, decifra, revela e permite a
passagem de um tempo a outro e, especialmente, trazem a possibilidade de atualização do
passado no presente.
83
Em Proust, cada espécie de signo corresponde, sem dúvida, a uma linha de
tempo privilegiada. [...] Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem redescobrir o tempo,
restituindo-o no meio do tempo perdido.
84
Ainda na concepção Proustiana, o exercício da
inteligibilidade possibilita a interpretação dos signos e a significação dos objetos. Nesse
sentido, a exterioridade é algo que se projeta da essência do ser e se manifesta nas práticas
do sujeito. É no espaço dessas essências que os signos se fazem grandes demarcadores de
tempos. É no tempo perdido, impresso em imagens fotográficas, que Jane redescobre o
tempo. As recordações e as saudades tão enunciadas em suas cartas expõem os desejos da
alma sobressaltados nos signos:
83
GUIMARÃES NETO, R. B. Artes da Memória, fontes orais e relato histórico, 2000, p. 103
84
DELEUZE, op. cit. p. 25
...acabo de receber outra carta, do dia 23 de abril com as
fotos. Como estão diferentes as ‘crianças’. Os grandes não tanto. A
senhora sempre enxutinha, né? Os cabelos dos nossos pais sim que
estão mais brancos. Que saudades! [...] Queria vê-los. Morro de
saudades. Tenho Banzo. Eu os quero muito, abraços. (carta 34 )
85
Nos cabelos grisalhos, ela vive o semblante do tempo e no reflexo de cada fio,
agora mais branco, revisita também as nesgas de sua vida. Eles são, portanto, os signos na
dimensão do tempo redescoberto. Pelos cabelos brancos Jane vive o tempo que se perdeu.
O olhar sobre a fotografia recupera o tempo perdido, porém é no movimento das imagens
e na configuração dos cenários fotografados que Jane se apodera de um tempo
redescoberto.
As crianças não estão diferentes só por terem crescido e mudado suas
fisionomias, nem os cabelos brancos ficaram apenas mais brancos pelos pais terem mais
idade, mas é porque no crescimento das crianças e no envelhecimento dos pais, as marcas
do tempo, fiadas e embrulhadas em suas dobras, revelam imensos filetes de vidas que
emergem da plenitude das reminiscências ou das lembranças involuntárias, da alegria
celestial que nos dão os signos da Memória e do tempo que eles nos fazem bruscamente
redescobrir, como define Proust.
86
É dessa forma que o texto fotográfico ganha mobilidade. As imagens
descongelam-se no encontro e na resignificação do tempo que aparecem potencialmente
nos semblantes do olhar, na tonalidade das vozes e na individualidade dos gestos que as
pessoas readquirem. Os cenários também alteram suas luzes e suas cores, enquanto os
objetos ganham outras significações.
85
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
86
DELEUZE, op. cit. p. 54
Falando ainda de um tempo que já passou, Deleuze diz que: Rever pessoas que
nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos, não sendo mais
habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do tempo que modificou
determinados traços, alongando-os, tornando outros flácidos ou vincados.
87
É nesse
sentido que o tempo torna-se visível e atualiza o passado num presente já repleto de
resignificações.
A experimentação da redescoberta do tempo, impulsionando uma profunda
sensação de múltiplos prazeres, imprime também uma resignificação do objeto.
Certamente por isso, é que Jane Vanini tanto privilegiou o registro fotográfico. Essa idéia
de redescoberta e invenção é de suma importância, não como algo que nunca existiu, mas
como aprendizagem e interpretação das coisas, objetos e seres, emitindo signos a serem
decifrados, interpretados.
88
Numa outra perspectiva, a correspondência que transita no espaço criado entre
remetente e destinatário produz muito mais forte um efeito de presença que de ausência.
Embora uma carta possa imprimir as marcas da ausência de alguém, a letra, o assunto, o
traço e o estilo de escrevê-la são representações autêntica de sua criatura. Foucault apud
Werneck
89
apresenta essa simbologia afirmando que a carta torna o escritor ‘presente’ em
relação a quem ele se dirige. E presente não simplesmente através das informações
que
87
Ibidem, p. 18.
88
GUIMARÃES NETO, R. B. op. cit. p. 104.
89
WERNECK, M. H. Veja como ando grego, meu amigo.”Os cuidados de si na correspondência
machadiana, 2000, p. 142.
fornece sobre sua vida, suas atividades, seus sucessos e seus fracassos, sua fortuna ou
suas infelicidades; presente de um tipo de presença imediata e quase física. [...] a carta
funciona como um olhar que se pousa no destinatário (através da missiva que ele recebe,
ele se sente olhado) é uma forma de se entregar ao seu olhar através daquilo que lhe
dizemos de nós mesmos.
Nessa ótica, a carta é o instrumento de múltiplas significações e a representação
simbólica do outro. O outro passa a ser a onipotência da busca. Em Dulce, Jane
potencializa a busca de si mesma. É, portanto, no significante que se reconhece o
significado. É com esse movimento de significações que Dulce, esperando, recebendo,
lendo, respondendo e guardando as cartas que Jane lhe remete, faz crê que ela ainda
continua viva e, assim, também constrói o seu outro.
As cartas são também concebidas como fontes potencialmente portadoras de
memória, cujas narrativas são carregadas desse tempo descontínuo e fragmentado - o
tempo da experiência. A memória guarda lembranças que, ao ser recordada, traz de volta o
que ficou inscrito nas experiências. É essa memória da experiência vivida que leva Jane, a
pessoa que escreve, a selecionar os acontecimentos que as cartas devem absorver.
Portanto, escrever cartas passa a ser um constante exercício de reinvenção da vida, uma
vez que as memórias ali postas remetem a escrevente ao deleite do espírito,
essencialmente quando a memória dá visibilidade aos múltiplos cenários do tempo
redescoberto. É lá, nesses cenários, que acontecem os reencontros com pessoas, lugares,
afeições, cores, vozes, rostos, concepções e comportamentos. É neles também que Jane
reencontra as lágrimas, os sorrisos e as saudades.
A relação entre o pensar e o ser, instrumentalizada pela inteligência, formula
impressões que, ao codificar-se na memória, manifestam-se nos desejos, nas paixões, nas
escolhas, etc. Assim sendo, as lembranças que lastreiam as correspondências são sempre
os cenários vividos, cujas imagens percebidas são o testemunho do acontecido. As
imagens são seladas na linguagem e articulam uma rede de relações interativas com seus
correspondentes.
As cartas falam de uma memória que registra seus marcos através dessa
linguagem operada como instrumento de poder e sedução, e estes remetem ao
encantamento do outro que, no registro do falante, tranqüiliza-se ao penetrar em sua
escuta e aprisioná-lo na teia de significados que a narrativa oferece. [...] Assim a
linguagem, a partir da razão narrativa, registra contornos presentes no falar dos sujeitos,
demonstrando o acontecido nas dobras do tempo, como um evento que se caracteriza pelo
pressuposto da verdade vivida.
90
Os fragmentos dessa memória se espalham e se recolhem nos territórios das
práticas da militância de esquerda armada que, por sua vez, reaparecem de uma forma
quase mística. As lembranças não se remetem a um passado que passou, mas as suas
mechas que ganharam significações nas marcas de um tempo descontínuo, cujos
fragmentos são capazes de revelar a teia de sentimentos afetivos com aquele passado.
O reencontro das experiências com suas verdades construídas possibilita rever os
retalhos de vida que ficaram espalhados pelo passado e que, ao se atualizarem no presente,
readquirem outras significações que, inevitavelmente, remodelam o sentido de viver dos
sujeitos. O viver parece consubstanciar-se na intensa experimentação das práticas sociais e
da luta revolucionária. É dessa forma que as cartas escritas por Jane Vanini e guardadas
por Dulce são também as memórias de uma paixão política alimentada pelos episódios
90
GROSSI, Y. S, FERREIRA, A. C. Razão narrativa: significado e memória, 2001, p. 30.
vividos e experimentados por vários atores que, acreditando e encenando seus papéis,
deixam suas marcas na simbologia de uma época - os anos rebeldes.
Mundos plurais, vidas singulares
Cartas, sempre cartas. Elas são curiosas e produzem outras curiosidades se se
considerar enquanto partes constituidoras de um tempo e de pessoas singulares. O
conteúdo de uma carta possibilita sempre ao leitor projetar, na imaginação, um espaço
capaz de configurar todas as cenas que são descritas e enunciadas pelo conteúdo que
apresenta. Elas, as descrições, são representações das verdades do emissor, as quais
atualizam informações, (re)formam cenários e (re)formulam emoções.
Considerando que o que se escreve é a codificação de uma oralidade, a escrita de
uma carta também remete ao manuseio de detalhes na construção do que se quer noticiar,
para que a compreensão e a assimilação sejam as mais próximas daquilo que
propositalmente se diz. Não se trata de regras ou modelos pré-estabelecidos para a feitura
de uma carta, mas de sintonizar a emissão de sentidos entre o que se escreve, o que está
escrito e o olhar do leitor.
Essa cadeia de sentidos se faz imprescindível quando as correspondências tratam
de relações afetivas e familiares. Assim, são as cartas escritas por Jane e recebidas por
Dulce Vanini, nos idos de 1970:
Espero que todos estejam bem. Somente agora lhes pude
escrever e espero que me escrevam rápido mandando notícias de
todos e de tudo. [...] Escrevam-me bastante. Gostaria de receber uma
carta de cada um de vocês todos: irmãos, sobrinhos, sogros,
cunhados, pais, e companheiros, caso já tenha algum aí. (carta 02)
91
O Mário recebeu outro dia uma carta de Da. Maria em que
ela diz que não estão recebendo cartas. Eu tenho escrito sempre,
com muita regularidade. Recentemente escrevi a Magali, Cida,
91
Carta de Jane Vanini, não datada, assinada por Ana.
Jorginho, Dulce, mamãe, Lena e Nícia. Ainda não recebi resposta de
nenhuma dessas cartas. (carta 10)
92
Bem, Madrinha, vou ficar por aqui. Um grande abraço a
todos e escreva-me bastante, não sabe como fico ansiosa para
receber carta de vocês. (carta 14)
93
Há vários dias já escrevi a senhora, a mamãe e a papai e até
agora não recebi resposta de ninguém. Além disso se contam as
cartas que receberam de minha parte e se eu conto as cartas que
recebi de todos vocês, vão ver que tenho saldo a meu favor. (carta
16)
94
...recebi tua carta e logo logo vou escrever mais. Vou aproveitar a
carta do Sérgio para escrever um ‘bilhete’. (carta 19)
95
Receber uma carta sua é sempre um reconforto. [...] Escreva
logo avisando se recebeu esta ainda que seja somente dizendo: recebi
sua carta 23.01.73. (carta 24)
96
Diga a Jorginho que ainda não recebi a resposta da carta
que lhe enviei por último. A (carta) que a Cidinha disse que me mandará
tampouco chegou. (carta 25)
97
Faz tempo que não recebo nenhuma carta sua. Vou ver se tem
carta todos os dias e nada. (carta 27)
98
Finalmente recebi sua carta. Estava preocupada [...] Nestes
dias vou escrever a papai e mamãe. (carta 28)
99
Querida madrinha: Faz mais de um mês que lhe escrevi e até
agora não tenho resposta. Tomara que estejam todos bem e que
tenham recebido minha carta anterior e entendido tudo. (carta 30)
100
92
Carta de Jane Vanini, datada de 07.09.72, assinada por Ana.
93
Carta de Jane Vanini, datada de 19.10.72, sem assinatura.
94
Carta de Jane Vanini, sem datação, assinada por Ana.
95
Carta de Jane Vanini, datada de 21.12.72, assinada por Jane.
96
Carta de Jane Vanini, datada em 23.01.73, assinada por Jane.
97
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
98
Carta de Jane Vanini, datada em 25.05.73, assinada por Ana.
99
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
100
Carta de Jane Vanini, datada em 18.07.73, assinada por Carmem.
Nos trechos dessas cartas, nota-se a ansiedade de Jane. Primeiro, a reafirmação
dos laços familiares, sentimento próprio de quem está longe, afastada de suas referências
afetivas mais seguras e vivendo uma experiência social e política muito tensa. Segundo, a
dúvida sobre o itinerário de suas cartas: chegam aos respectivos destinatários?
Em todos os fragmentos aqui apresentados, estampam-se o sentido de tempo, os
laços afetivos e a busca declarada de uma validade das escolhas no espaço familiar. O
envio de correspondências a todas as pessoas da família, citando com freqüência os graus
de parentesco e nominação dos destinatários, expressa um sentido de “vida familiar” que
talvez seja capaz de reconstituir um universo já conhecido.
A carta é uma representação simbólica da vida, mas só adquire este sentido na
troca das correspondências, pois é na relação entre remetente e destinatários que se
processam as identidades das pessoas envolvidas. Essa operação de identidades acontece
na mediação dos assuntos que, por sua vez, estabelece o diálogo íntimo e espontâneo entre
os correspondentes. Ali está o sentido de ser necessário receber uma carta de cada um de
vocês todos: irmãos, sobrinhos, sogros, cunhados, pais, e companheiros, caso já
tenha
algum aí.(carta 02) Então, para Jane Vanini, cada carta significa recolocar-se como uma
pessoa da família, lutar pelo seu lugar e não ser esquecida. Nessa perspectiva, é dramática
a vida daqueles que se afastam e fazem da luta revolucionária uma escolha pessoal de
vida.
Não há fronteiras demarcadoras entre a vida pessoal e a luta, ao contrário, há uma
troca mútua de valores que, ao longo da vida ou no decorrer das lutas, vai sendo
construída, experimentada e incorporada. A individualidade das pessoas se atualiza
continuadamente as relações articuladas e combinadas nas dimensões do mundo
simbólico. É a mobilidade dos signos que codifica e internaliza a cadeia das sensações de
quem escreve, ao mesmo tempo em que as exteriorizam para os leitores de cartas pessoais.
A palavra escrita tem uma função libertadora na dimensão do imaginário e permite superar
desencontros e rivalidades. E, em particular, quando se trata de cartas familiares, cuja
força motriz é a iniciativa de escrever e a espontaneidade de acomodar a comunicação.
Então, não é Jane que detém a escrita das cartas, é a necessidade da escrita que a detém.
Há um visível gosto e um desejo quase compulsório de escrever a todos e, de
todos receber cada resposta. Essas correspondências são marcadas por um estilo próprio,
que corresponde a uma organização de assuntos que interessa mais a Jane que a outrem. A
idéia que exprime essa especificidade é a de que os textos estão quase sempre informando,
descrevendo, opinando e, raras vezes, respondendo algo.
Em todos os trechos, sobretudo os últimos, a militante Jane sinaliza uma
preocupação com a probabilidade de cessarem as correspondências. Essa particularidade,
constante nos seus registros, demonstra que ela sempre se coloca numa situação de risco, e
também revela uma afeição imensa que ela nutre por todos os entes queridos, construída
ao longo do convívio familiar. É o tempo reencontrado que não pode ser desfeito. A
eminência da interrupção abala a alma, uma vez que a carta continuada significa o
consentimento de si mesma. E em cada destinatário, a certeza do assentimento individual.
Percorrer a história de vida de uma militante de esquerda, suas ações políticas,
seus testemunhos e seus embates, leva à busca de uma outra indagação: a militância, sendo
tão intensa como se revela, que espaço e que tempo existem para a vida privada dessas
pessoas? Que vida pessoal tem uma militante? Que situações domésticas vive Jane
Vanini? Além da luta que registra, dos acontecimentos que narra, da exposição de suas
escolhas políticas que aparecem de forma plena e despojada, as cartas também mostram
aspectos comuns, banalidades talvez, que revelam uma outra Jane - a pessoa orgânica e
individualizada.
...Gostaríamos que vocês me enviassem algumas coisas, caso ainda
existem. Trata-se de minha japona azul, da bota forrada, da saia de
lã de xadrez escocês, japona do Sérgio, capa espanhola dele e alguma
blusa de lã, se por acaso houver ainda. (carta 02)
101
.
...Não pensem em comprar coisas para mandar-nos. Estamos bem, e só
pedimos as roupas porque a facilidade é muito maior tendo bastante,
mas não estamos passando frio, estamos bem. (carta 05)
102
Esses trechos acima selecionados e expostos mostram a disposição de Jane,
juntamente com seu marido Sérgio Capozzi, em fixar-se no Chile e recompor todas as
situações da vida cotidiana que se destroçaram com a perseguição policial militar no
Brasil, anos antes. Daí, a necessidade de conseguir vestuário e, em particular, aquelas mais
convenientes: as peças que protegem do frio.
Os reiterados pedidos de envio de objetos pessoais e, com maior freqüência,
peças do vestuário, apontam as dificuldades da vida material com que o casal chega ao
Chile. Essa interpretação é possível, se se considerar que uma boa quantidade de roupas
significa minimizar parte das dificuldades materiais da vida diária do casal.
Na deliberada intenção de conhecer mais a fundo a vida privada da militante Jane
Vanini, não se pode deixar de passear pelas cartas seguintes:
Meus queridos:
Ontem um companheiro conseguiu retirar as roupas da
aduana e me entregou. Foi uma alegria rever nossas coisas antigas, e
101
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
102
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
um prazerzão receber tantas coisas bonitas. As blusas feitas na
máquina pela madrinha são as mais lindas e bem feitas que já vimos. O
cachecol da Lena e o colete da mamãe são lindos de dar inveja a
qualquer um. A boina, a meia e as sapatilhas me fizeram muita falta
no inverno. Uma companheira me emprestou um cachecol que me
quebrou o galho porque comecei numa época a ficar com dor de
garganta pelo vento frio no pescoço. Agora já não tenho nenhum
problema desses, não é mesmo? Como não queria comprar muita coisa,
quis bancar a valente e agüentar o inverno com meias normais e foi
fogo, ou melhor, foi gêlo. Depois mesmo com as meias de lã daqui me
saíram savanhões nos dedos dos pés. Ficam inchados, vermelhos, às
vezes coçam muito, se aperta um pouquinho dói à bessa e pode até
ficar ferido. Como eu tenho má circulação sangüínea quando começou
o inverno comecei a criar savanhões, mas tratei em tempo e não me
deram muitos problemas. O pessoal aqui adorou o joguinho de
sapatilhas e colete. Vão copiá-los. O que sei que vou usar ainda nesta
época é a boina, pois já não faz frio com exceção de alguns dias. [...]
Uma coisa que me deixou chateada, porque sei que a madrinha vai
ficar chateada é que nenhuma das blusas que ela fez me serviu.
Ficaram muito grandes e serviram perfeitamente para o Mário. [...]
Essas 2 blusas, êle disse que vai usar somente para as grandes
ocasiões. (carta 13)
103
Agora é setembro de 1972. Pelos termos dessa carta, parece que a florada da
primavera também colore os tempos de Jane Vanini. As expressões remetem o leitor a um
cenário ímpar de satisfações plenas. Nem parece com o ocorrido há duas semanas antes,
quando os fatos políticos transportam-na para o tempo das incertezas. No instante em que
ela escreve essa carta, os conflitos entre grupos sociais de representações distintas e os
chilenos em turnos de vigilância, contra possíveis embates, estão do “lado de fora” de Jane
103
Carta de Jane Vanini, datada em 29.09.72, sem assinatura.
Vanini. O “lado de dentro” desfruta da comoção de reencontrar-se no drapeado de um
outro mundo - o seu mundo privado. Contudo, isso não significa que a vida de militância
de esquerda permite configurar os espaços do público e do privado distintamente. Pelo
contrário, ambos se entremeiam de forma muito intensiva.
Durante as experiências da luta revolucionária, os tempos e os espaços são
múltiplos e simultâneos, e nos quais as ações urgentes e necessárias fazem com que um
invada o outro sem licenças e sem constrangimentos. O reencontro com seu mundo
privado não acontece por uma escolha simples, mas por um momento circunstancial:
receber os pertences pessoais tão desejados. Nota-se que em todo o texto há um relevo
especial nas palavras que tentam qualificar os objetos. A alegria de rever coisas antigas e
um prazerzão de receber tantas coisas bonitas torna-se quase indescritível para expressar
a resignificação do valor afetivo que cada peça adquire.
Os espaços ocupados por: foi uma alegria..., coisas bonitas..., mais lindas e bem
feitas..., lindas de dar inveja..., o pessoal adorou o joguinho..., vão copiá-los..., usar
somente para grandes ocasiões..., são territórios que indicam superioridade, exaltação e
unicidade dos objetos. Não é que os materiais tenham necessariamente esses predicados,
mas Jane os têm com essas proeminências. Ela os percebe como únicos e os vê como
diferentes de quaisquer outros, porque ela sente e fala de sua significação e não de sua
utilização.
A prática da militância, atravessada pelos riscos, medos e fugas, leva os
militantes a abdicarem da normalidade de suas vidas, o que implica também numa perda
da convivência com os objetos do cotidiano e seu mundo simbólico. A sobrevivência, por
ser necessariamente inventada todos os dias, conduz a uma outra forma de perceber-se nos
mundos plurais em que cada pessoa encontra-se envolvida, sem, contudo desfazer-se da
cadeia identitária construída, em tempos passados, numa relação simbólica entre outros
objetos e outros indivíduos. É no distanciamento dessa identidade que o ex-militante
Herbert Daniel declara:
...A falta que os objetos deixam é como marca e símbolo: uma
necessidade de se continuar nas coisas que a gente faz [...] Aí a gente vê,
nessa ausência, a gente mesmo como era. Por isso vamos carregando
aparentes inutilidades vida afora: memória viva. Ao termos de
abandonar drasticamente nossos pequenos cacos perdemos contato
conosco mesmo, a vida passa a ser descontínua. Cacos.
104
Na busca de compreender a complexa imbricação entre significante e significado,
e mergulhando nos signos em que Jane deixa-se transparecer, os objetos são o seu
significante e vêm carregados de significados. O significante isolado não tem
sentido,
porém, na rede de relações que lhe é incorporado, produz múltiplos sentidos e irradia suas
significações.
Nesse encadeamento de múltiplos sentidos é que Jane afirma não haver desespero
em receber as coisas, mas um desejo de sentir-se ligada a todos vocês pela valoração que
vem junto a todas essas coisinhas sentimentais.
Na expectativa de que Dulce viajará ao Chile, Jane, pelas dificuldades materiais
em que se encontra, aproveita para anunciar que: ...estou mandando junto esta lista de
coisas que quero que a senhora traga para mim, mas apenas se existe ainda... (carta 16)
105
1. Aquela blusa azul de tricô-lã igual a vermelha que a
senhora mandou na encomenda. Aquela outra cor de cenoura.
104
ALMEIDA, M.H.T., WEIS, L. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao
regime militar, 1998, pp. 381-382.
105
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
2. A sandália franciscana que eu tinha. As bolsas esporte
que estiverem por aí. Aquela cor de couro pequena, que eu sempre
usava, uma grande parecida um saco de levar no ombro, que foi a
última que comprei. ( É meia marrom com alguns desenhos).
3. um pijama de lã e uma camisola daquelas que a Da. Maria
me fez
4. Não me lembro bem, mas me parece que eu tinha um par
de luvas negras. Se a encontras por aí, pode tra-la, tá?
5. Leite de colônia (isso eu não tinha, se der me compre, tá?)
6. Qualquer daquelas pantalonas que a mamãe e a Magali
estavam fazendo para mim e se der com algum retalho porque aqui se
usa bem comprida e creio que elas vão estar bastante curtas para
mim (além de folgadas porque creio que estou mais magra que quando
estava aí).
7. O meu biquíni se é que ainda existe. O cor de vinho, o
amarelo não.
8. Pelo menos 3 daqueles abridores de lata mais simples que
a gente usa aí no Brasil. Dos mais simples mesmo, que as vezes vem
até como brinde em alguns produtos. Os daqui são muito complicados
e não funcionam muito bem. E eu quero dar um a pelo menos 2 casas
amigas.
9. O meu fichário coberto de couro que o papai fez para
mim.
10. Semente de manga (umas 3)
13. Traga-me um grande abraço de todos, tá?
Conforme disse na carta anterior, esta era apenas uma lista
e não carta, para que a tivesse a mão e lhe fosse mais fácil juntar
tudo. (carta 17)
106
106
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
Um detalhe que chama bastante a atenção do leitor em boa parte das cartas de
Jane é a incidência de expressões como ...se houver ainda, ...caso ainda existam, ...se é
que está aí, ...que foi feito das nossas coisas e outras mais. São situações que podem ser
compreendidas de duas formas: a primeira diz respeito às coisas que sobraram e foram
devolvidas à família após a tomada do apartamento pelo cerco policial-militar da
Operação Bandeirante - OBAN
107
; e, por último, as coisas que ainda existem, ou que
alguém pode estar usando ou guardando. Guardar pertences pessoais de outrem é uma
forma simbólica de poder guardar pessoas, pois, mesmo ausentes continuam presentes.
Não há um contentamento em receber esses objetos apenas porque são pertences
pessoais, até necessários para a utilidade da vida individual, mas porque cada um deles
tem incorporado na sua essência, uma simbologia, pela qual, a vida ganha feições de
felicidade
e de prazer. Na relação que se dá entre quem envia e quem recebe os objetos, está a
significação das atitudes: são valores sentimentais refeitos, renovados, reeditados,
manifestados na ação fraternal, aceitação, carinho, proteção, segurança, afeto, acolhida,
entre outros, que se efetivam em cada peça que, de forma quase mágica, sai de dentro do
pacote de encomendas recebidas.
...Estou chateadíssima com a história da encomenda. Não sabe quanto
eu sinto. Estava louca para receber as coisas, não porque realmente
esteja precisando desesperadamente ou algo parecido, senão porque
ia sentir como que ligada a vocês por algo que me fizeram, por alguma
107
Órgão de repressão política, criada em 1º de julho de 1969 e comandada pelo II Exército, mas também
integrava militares da Marinha e Aeronáutica, Polícia Federal, polícias estaduais e outros organismos de
policiamentos. A eficiência de suas atividades de informação, repressão e controle político serviu de base
para criação de outros mecanismos de repressão na ”luta contra a subversão”, como se costumava chamar.
Sobre o assunto, ver: FON, A. C. Tortura, a história da repressão política no Brasil, 1979 -
ARQUIDIOCESE, de São Paulo. Brasil: Nunca Mais, 1985.
roupa antiga minha que viesse e todas essas coisinhas sentimentais.
(carta 08)
108
Nesses fragmentos, é possível ver, com os olhos da imaginação, as expressões de
deleite que o semblante de Jane debruça em cada gesto proferido diante de cada objeto
recuperado. Boa parte desses sentidos está nas mudas palavras, que ao falarem constróem
vontades, alimentam desejos, produzem emoções, articulam sentimentos e dão mobilidade
às atitudes e comportamentos de Jane Vanini e sua família.
É nessa densidade de signos que o abraço de todos, como item da lista de coisas,
não figura como o décimo terceiro objeto da lista, assim como todos os outros itens não
são apenas objetos de uso pessoal, são, sobretudo, afeições construídas na relação entre
Jane e todos. O olhar propositalmente dirigido, o toque de pele, o procedimento do outro e
até a empatia constróem para cada um, que compõe o todos, uma significação que tende a
ser direta, intransferível e singular. Portanto, tudo e todos, numa teia de significações,
constituem a cadeia relacional que dá sentido à vida, seja da pessoa comum, seja da
revolucionária.
É nessa dimensão de vida que Jane Vanini, endereçando uma de suas cartas à
família, que dirige-se aos Queridos todos, fazendo uma declaração de amor:
Tenho muitas saudades de todos vocês. Eu os quero muito e
esse amor que lhes tenho é multiplicado quando vejo alguma criança
como os sobrinhos ou os companheiros mais velhos com a idade de
meus pais, ou de meus irmãos e irmãs. Espero que algum dia
estejamos juntos e livres mas se não alcançamos, não importa tanto,
importa realmente que a sociedade que legamos aos nossos ‘herdeiros’
108
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
possua muito de nós mesmos, do nosso esforço, de nossos ideais, de
nosso amor. (carta 12)
109
Aqui, justifica a sua ausência e a separação física entre ela e todos, com a luta
pela liberdade, e espera ter o reconhecimento de todos, porque a essência do convívio em
sociedade está na ação política, na convicção e na conduta que cada pessoa, enquanto
viver, é capaz de emprestar ao mundo.
O último enunciado do trecho acima exposto dá visibilidade ao campo das
emoções e das sensações incorporadas tanto à militante quanto à pessoa individualizada de
Jane Vanini: a concepção e a vivência do amor fraterno que também se transforma em
fraternidade política.
Enquanto isso, nas ruas de Santiago, enfrentam-se os combatentes. De um lado,
os militantes de esquerda e os simpatizantes do governo unem-se nas estratégias e
disseminam-se pelos diversos espaços políticos na defesa do projeto socialista chileno;
no
outro campo, estão as forças opositoras que se articulam contra um governo legitimado,
mas que suas ações invertem a lógica social até então vivida. Os conflitos tendem a se
intensificar porque os dois grupos acreditam em suas aspirações e em suas táticas de luta.
Jane Vanini é uma militante que age o tempo todo. Seja trabalhando para
assegurar sua sobrevivência pessoal, na luta política para a construção do socialismo
chileno, nos grupos voluntários que atuam em creches, escolas, ruas, armazéns, na vigília
das fábricas e instituições públicas, seja nas lides domésticas, ela é uma pessoa de
constantes ações. Pelo conteúdo das cartas, percebe-se os múltiplos arranjos de vida
construídos por ela nos espaços público e privado, os quais dão conta de ajustar a
109
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
militante, a companheira, a voluntária, a trabalhadora e a mulher que cozinha, costura,
fotografa-se e, em especial, não abdica de sua singularidade feminina.
É vivendo essa multiplicidade de ações que Jane encontra apoio para a vida, ao
buscar a ajuda material da família e, por isso, situações domésticas tão particulares
aparecem nas correspondências com sua irmã:
...Como vai a máquina de tricô? Quero receber algum presente feito
pela senhora quando a madrinha vier. Aqui usa tudo muito apertado e
curto no caso de blusa. Além disso creio que estou mais magra do que
antes. Como diria a Magali, estou elegante. [...] Mandem-me receita
de bolo de queijo e de algumas coisa mais tá? (carta 07)
110
Já vimos que é tremendamente complicado tirar a
encomenda [...] não vou querer que vocês fiquem gastando tanto nas
roupas como nos fretes para mandar-me coisas. A roupa de lã ainda
tem sentido porque o frio aqui é de lascar... (carta 08)
111
...Quando a minha madrinha vier me tras aquelas (roupas) que
por ventura algum de vocês já começou a fazer... Quando a aeromoça
vier a Chile, peça-lhe que traga um vidro de leite de colônia que me
faz uma falta tremenda...(carta 10)
112
Pedi a madrinha que traga aquele fichário que o senhor me
encadernou. Tomara que ainda esteja por aí. Não quer me fazer uma
alpercata ou um tamanco daqueles que o senhor me fazia no sítio?
Gostaria bastante. (carta 23)
113
Soube que o seu Zé vem visitar o Sérgio. Se der peça-lhe
que traga alguma coisa dos meus discos de música brasileira, livros
[...] Gostaria que me mandasse aquela saia negra de crochê que eu
110
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
111
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
112
Carta de |Jane Vanini, datada em 07.09.72, assinada por Ana.
113
Carta de Jane Vanini, sem data, assinada por Ana.
tinha se é que está por aí [...] Não te esqueças das minhas receitas.
(carta 28)
114
No vai-e-vém de cartas, que incluem pedidos e envios de objetos de uso pessoal,
nota-se um empenho muito grande de Dulce que, embora correndo todos os riscos de
perseguição e censura, se revela na relação de cumplicidade. Em, ... a encomenda chegou,
mas ainda não pude retirá-la. São tantos os papéis que se necessita que é quase
impossível consegui-los todos. Hoje um amigo ia ver se resolvia tudo para mim...(carta
12), percebe-se que para Jane, a condição de ser estrangeira, clandestina, amparada por
organizações partidárias nem tão consolidadas e vivendo num país sacudido por muitos
conflitos políticos, impõe-lhe algumas limitações, e por isso observa-se uma certa
lentidão para estabelecer a normalidade da vida.
Como qualquer outra pessoa, um dos fatores que muito incomoda Jane é a
dependência de alguém para resolver situações inteiramente particulares. É o caso
da
retirada das “encomendas” que lhe chegam ao Chile, seja pelo correio ou por empresas
aéreas. Por mais que possa parecer solidariedade dos companheiros de luta, a ação da
retirada dos objetos, além de importunar a vida do outro, o outro lhe importuna por
intrometer-se em sua privacidade, ao testemunhar o trânsito de suas intimidades.
Outro dia escutei uma música argentina, com um cantor
argentino chamado Piero é é muito bonita. Quando puder vou comprar
o disco e quando puder vou enviarte. Tem uma parte que diz: Viejo, mi
querido viejo... e quando a escutei me lembrei do senhor. (carta 15)
115
O senhor não me escreveu se chegou a fazer o abajour que
eu expliquei naquela carta. Esse abajour é para por em lâmpadas que
114
Carta de Jane Vanini, datada em 12. 06. 73, assinada por Ana.
115
Carta de Jane Vanini, datada em 31.10.72, assinada por Ana.
ficam penduradas no teto. Em geral se faz de cores que combinam ou
com a colcha ou com os móveis, ou com a cortina, dependendo da casa
e da peça onde se vai colocá-la... (carta 28)
116
Aqui, percebe-se as dificuldades de Jane e Sérgio viverem uma vida “a dois” num
mundo em que faltam territórios de referências mais firmes. A tensão política que
experimentam atravessa tanto a vida pública quanto a privada. Assim, organizar essa vida
comum, em meio às tempestades da luta revolucionária, pelo visto, é uma condição difícil
e frágil. Nessa perspectiva, a lista de coisas que compõe uma de suas cartas, as peças de
roupas e outros pertences pessoais, incluindo o abajour, representam momentos
importantes da sobrevivência pessoal.
A figura do abajour parece ganhar um destaque especial. Ele não é aquele em que
se põe as lâmpadas que ficam penduradas no teto, combinando com o estilo do ambiente,
mas o adorno que veicula e revigora a afeição entre pai e filha. Ele, o abajour, é também
a
busca da bênção do Viejo. Na avidez do afeto familiar e na arte do argentino Piero, Jane
reencontra seu velho e querido pai. O velho artesão que faz encadernações, abajour,
fichários, alpercatas e outras coisas mais.
É impossível separar o tempo da ação política e o tempo da ação existencial.
Ambos, não apenas se cruzam nas práticas, invadem-se simultaneamente. São vidas
definidas num tempo que confina no mesmo espaço, fisionomias públicas e privadas, a
pessoa e a militante. É com esse caráter que as cartas apresentam mudanças bruscas de
assuntos, misturando humor crítico, solicitações, conselhos, sentimentos afetivos, relações
familiares e outros aspectos individuais da sobrevivência e da vida pessoal.
116
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
As palavras só ganham sentido quando articulam os signos e, por conseguinte,
instrumentalizam, pela comunicação, o exercício simultâneo das práticas. A escrita é a
significação dos desejos e só assim é que as cartas de Jane Vanini produzem o movimento
das atitudes comportamentais, dando visibilidade às práticas cotidianas.
Minha carta será bastante breve. É só para contar-lhes que
ontem nevou à bessa pela noite e pela primeira vez vimos a neve.
Ficamos em um apartamento bastante alto vendo a chuva e quando se
amontoou um pouco de neve na rua nós descemos para brincar. Nos
atirávamos neve, corríamos, deslizávamos nela e tudo. Nem sentíamos
o frio com exceção das mãos e dos pés que estavam molhados e
gelados. Tudo ficou branquinho, muito bonito. Tivemos sorte de que
nevasse no primeiro ano que passamos aqui. No sul é claro que sempre
neva, todos os dias, mas aqui é bem difícil. Não vejo á hora de que
limpe um pouco o tempo para ver a Cordilheira que deve estar toda
branca. Não imaginam o bonito e divertido que é estar no meio da
chuva de neve. Hoje faz um frio danado. (carta 04)
117
Essa carta é datada pelo inverno chileno. Para Jane, uma moça do interior do
Brasil, o momento é oportuno e singular: o acesso às belezas naturais dos povos andinos,
cujos símbolos são a Cordilheira e a neve. O deslumbramento com a paisagem que
testemunha e a necessidade do registro do que vê assinalam conhecimentos sobre outros
mundos e outras culturas. Dessa forma, é que a carta será bastante breve, enquanto que a
escrita das impressões parece eternizar a pureza dos sentidos que, por sua vez, tornam
imensuráveis as sensações.
Jane está em Santiago e se encanta com o lugar. Nos primeiros meses de 1972,
apesar da neve e muito frio, o tempo no Chile é agradável e, de presente aos olhos, vê-se a
117
Carta de Jane Vanini, sem data, com indício de assinatura de Ana.
Cordilheira dos Andes, também para ser absorvida pelo espírito de quem a contempla. Em
suas palavras, ela quer compreender aquele lugar que tem uma temperatura média acima
dos trinta graus centígrados e onde chove pouco. Até parece contraditório, a presença da
neve e o clima tão seco que a pele da gente fica totalmente seca e estou com ela toda
rachadinha, é como se tivesse uns 50 anos (exagerando um pouco). (carta 07). A neve é
um espetáculo que a natureza presenteia os humanos, e conduz todas as idades à pureza da
infância. São os encantos de criança que se manifestam em Jane ao conhecer o inverno
chileno e assim, seduzida, relata seus prazeres aos familiares.
Se não houvesse nenhum registro cronológico nas correspondências em análise,
certamente alguns detalhes reveladores da intimidade daquela militante marcariam os
traços das temporalidades vividas. Um desses detalhes, que chama a atenção de qualquer
leitor das cartas, é o pedido de envio de dois objetos que emitem a significação de seu
tempo: o leite de colônia e o rádio de pilhas.
Os anos 60, como se convenciona chamar, são essencialmente o tempo das
cidades, que significam, em especial, o progresso e a modernidade. Elas, as cidades, são os
teares das relações políticas, sociais, econômicas, religiosas e culturais das comunidades
em geral. E as relações pessoais são, em grande parte, veiculadas por emissoras e
aparelhos de comunicação. No Brasil, ganham destaques especiais a televisão e o rádio.
Este último alcança uma popularidade pela praticidade, utilitarismo e fácil aquisição, pois
acomoda-se em qualquer lugar, toca música, traz o noticiário, transmite o jogo de futebol,
estabelece o correio sentimental e veicula compromissos entre as pessoas, além de tornar-
se acessível pelo seu valor monetário relativamente baixo.
Todos esses atributos fazem do rádio um objeto de desejo e necessidade. É no
conjunto desses aspectos que Jane, na possibilidade de receber a visita de Dulce, lhe pede
um presente:
E por falar em presentes vou pedir um, tá? Aliás, como deve
ser caro, façamos um negócio: a senhora traz um rádio a pilha ou
elétrico ou que possa ser usado de uma outra forma que eu aqui te
pago o equivalente em coisas que a senhora queira levar, tá bom? Os
rádios bons aqui, com ondas curtas etc., são importados e saem muito
caro e creio que já nem se importam para economizar divisas. (carta
29)
118
.
É importante observar que o depoimento já nem se importam para economizar
divisas, não significa um ato de negligência com a economia interna do país, mas uma
questão menor se se considerar a fragilidade do momento político que vive o Chile. É
começo de julho de 1973 e o alerta de 29 de junho último, quando os tanques blindados do
Exército e alguns militares insistem em levar a cabo uma tentativa de golpe de estado,
aponta para a exaustão dos limites máximos dos conflitos, em breve.
Dentre todas as funções mencionadas sobre o rádio, o presente esperado por Jane
significa também e, sobretudo, uma sintonia direta com a rádio da Unidade Popular, que
transmite, na íntegra, as falas oficiais e os comunicados do presidente chileno Salvador
Allende. Por outro lado, a ação de presentear, entre outras, leva a perceber que para Jane, a
família representa o vínculo direto com o mundo do consumo.
Entre as décadas de 1960 e 1970, a população brasileira é embebida pelos ares da
modernidade, cujo formato é definido pela incorporação de novos padrões de consumo à
vida cotidiana das pessoas. Desde o surto industrial do Estado Novo, passando pelo
118
Carta de Jane Vanini, datada em 06.07.73, assinada por Ana.
desenvolvimentismo de JK e chegando ao “milagre econômico”, o Brasil desponta na
América Latina como nação que se moderniza e marcha para o progresso. Fabrica quase
tudo: aço, petróleo, estradas, eletrodomésticos, aviões, alimentos, medicamentos,
vestuário, calçados, artigos de higiene e até cultura. As fábricas passam a compor os
parques industriais e o comércio se moderniza, trazendo o supermercado e o shopping
center, como ícones dessa época.
Em meio a todas essas atualidades, o cuidado e a exposição gradativa do corpo
aparecem com especial destaque. As fisionomias masculinas e femininas passam a ter
contornos mais delineados. Os concursos de beleza vão definindo um padrão estético para
a inclusão social do corpo. Entre outros aspectos, os homens inovam-se com o uso do
desodorante, a loção, o creme e a máquina de barbear, pintura dos cabelos, cabelos
compridos, barba grande e bonés. Já as mulheres passam a exibir o corpo com mais
vaidade e menos censura: inventam e incorporam hábitos como o absorvente íntimo,
modelação e pintura das unhas dos pés e mãos, uso de rouge, cremes de limpeza e de
hidratação do corpo, tratamento e modelação dos cabelos, incluindo o manuseio de objetos
como escova, bobs e secador, cremes alisantes e tinta para colorir e descolorir os cabelos.
É na condição de personagem de seu tempo, vivendo essas inovações e
incorporando parte desses hábitos, que Jane pede para que Dulce lhe faça chegar, pelas
mãos da aeromoça, um vidro de leite de colônia que me faz uma falta tremenda...(carta10).
Esse pedido é feito em setembro de 1972, momento em que ela convive com Tereza Motta
e utiliza-se do seu nome para viabilizar a retirada da encomenda.
Nessa mesma avalanche de “novidades” para produzir a personalidade do corpo,
as vestimentas revolucionam os costumes da época. Os homens começam a adotar roupas
mais esportivas, como por exemplo, camisas mais coloridas, camisetas, bermudas, shorts,
calça jeans e o tênis que, quase obrigatoriamente, passam a fazer parte do guarda-roupa
moderno de homens e mulheres. O mundo feminino incorpora com mais rapidez alguns
modelos de vestuário, cujos aspectos espantam olhares conservadores e afrontam hábitos e
valores que, até então, compunham a moral e os bons costumes. A alusão recai mais
fortemente em dois símbolos que demarcam os territórios femininos da mulher: a mini saia
e o biquíni. Além dessas peças, a calça comprida, camiseta, shorts, roupas transparentes
sem anágua ou coladas ao corpo, que marcam curvas e linhas, juntando-se aos decotes
ousados, assinalam um estilo revolucionário que representa a ruptura com os usos
tradicionais.
Na intimidade com as palavras, Jane Vanini apresenta as marcas de sua
individualidade e com isso constrói a imagem de si mesma. Entre outros aspectos, ela
serve-se da linguagem epistolar para pronunciar e firmar, de maneira espontânea, sua
condição e natureza feminina, revelando as vaidades e os prazeres pessoais. Num de seus
registros, uma ênfase muito particular para uma peça de roupa: a saia.
A saia negra de crochê (carta 28) lhe faz muita falta num guarda-roupa um tanto
desfigurado, mas é uma saia escocesa que parece polir sua estima: Em relação ao envio de
roupa...[...] E aquela saia xadrez escocesa que eu tinha, muito bonita, que comprei no
Mappin, enviesada e que eu vestia muito, que foi feito dela? A encontraram? Essa eu
gostaria que me mandassem se está por aí...(carta 04). Ao que parece, Jane vê-se bonita
vestindo essa saia. A descrição dos detalhes xadrez, bonita, enviesada e de uso freqüente,
revela um estilo de apresentação em público e o gosto pela sua definição estética. É um
traje que emite sentidos de afeto, bem-estar e elegância feminina. Tanto é, que à
companheira do convívio diário convém presenteá-la com uma peça contendo
características similares:
Quero pedir-lhe mais um favor, que quem sabe saia um
pouco caro, mas no caso vale a pena. A companheira com a qual
vivemos está louca por uma saia de xadrez escocês, mas não gostou
de nenhum dos que encontramos, assim é que se virem por aí um
escocês com bastante cores diferentes e bonito, não precisa ser de
lã tão grossa como a minha, pode ser de lã um pouco mais fina, por
favor, comprem um corte para ela e mande para cá, tá. Quando
vierem por aqui eu a pagarei. Acho que uns 60 cm dá e sobra. (carta
04)
119
Percebe-se aqui o imperativo dos territórios femininos, os quais sugerem pensar a
sensualidade da mulher. Seja curta ou comprida, a saia é um objeto que, para a sociedade
latino-americana, remete sua significação à feminilidade, à estética e ao erotismo do
corpo. É muito em função desses signos de modernidade, incorporados à vida diária, que
Jane, ao tratar de uma possível viagem de Dulce ao Chile, observa e descreve o estilo
feminino da mulher chilena:
Aqui usa tudo muito apertado e curto no caso de blusa.(carta
07) ...Aqui se usa basicamente calça comprida para tudo: trabalho,
cine, passeios, festas boates, etc.[...] em janeiro o tempo é mais
quente aqui e o verão é realmente de lascar [...] os modelos aqui são
bonitos e tem um corte bonito também. [...] Aqui não se usa sapatos
de salto alto, usa bastante sandálias no verão e uma bolsa esporte
sempre... (carta 16) ...Aqui existem muitas coisas típicas bonitas,
principalmente de lã, coisas feitas 1ª mão como bolsas, ponchos,
blusas, meias, etc., vai poder levar presentes para todos. (carta
29)
120
119
Carta de Jane Vanini, sem data, com indício de assinatura de Ana.
120
Carta de Jane Vanini, datada em 06.07.73, assinada por Ana.
Na leitura de alguns registros de Jane Vanini, ao que tudo indica, há uma
sensação de que o Brasil é um país mais sintonizado com a modernidade, pois no Chile os
produtos que são relativamente bons e baratos são roupas e calçados. A roupa de lã ainda
tem maior produtividade, não por ser moderna, mas porque o frio é muito intenso, como
classifica Jane, é de lascar. Estas percepções estão vinculadas aos discursos
propagandísticos e às praticas da modernidade, cujos arranjos marcam severamente a
superioridade econômica, modelam o padrão de vida material e estabelecem a escalada do
progresso, classificando as nações e os grupos sociais a partir dos inovadores hábitos de
consumo e comportamentos.
No seu conjunto, as cartas são lugares que potencializam o exercício pleno das
liberdades múltiplas, onde a individualidade cria e recria suas tramas íntimas e assim
regula suas relações singulares de sociabilidade. São esses espaços singulares e
libertadores que produzem os tempos dos desejos e dos prazeres pessoais. Desejo de ver e
de estar junto dos familiares: ...Que bom. Vai ser fabuloso encontrar com alguém de
vocês. Alguém querido que represente aos demais queridos...(carta 15). Esse alguém é
Dulce que não substitui nenhuma outra pessoa, mas para Jane ela reúne em sua figura o
sentido completo de família e o significado de solidariedade.
É também o lugar em que Jane pode dar e receber presentes, sem que essas trocas
passem pelo terrível julgamento de “desvios burgueses”. Daí momentos de prazer que se
realizam em ... Já tenho um presente. Usei umas vezes, mas resolvi guardá-la agora para
te presentear quando chegar, porque senão não poderei te dar nenhum presente, para
variar, quase sempre estou dura. (carta 09). Esses fragmentos desenham as
territorialidades que configuram o particular e o público.
Mesmo com todas as singularidades políticas que o Chile apresenta, em que o
sonho revolucionário enxerga com nitidez a possibilidade de ser construída uma pátria
socialista, a militante Jane Vanini deixa escapar as significações de sua identidade
nacional. Saber fazer a feijoada é o usufruto de uma “identidade brasileira”, porque o
costume de degustar e consumir feijoada é especificidade brasileira: ...Às vezes quero fazer
algum bolo ou comida brasileira e não sei nenhuma receita. A única coisa que aprendi a
fazer (e muito gostosa) é feijoada. Só faltam a couve e a farinha que aqui não existe, nem
conhecem. (carta 28) Juntando-se a isso, nessa mesma carta, quando Jane diz:...Mande-me
uma garrafa de pinga, tá? Isso não existe aqui, porque ainda não dá cana-de-açúcar, há
uma declaração de prazer aos costumes, às tradições e aos hábitos que já são incorporados
a suas vivências, como parte do seu mundo simbólico.
A feijoada, mesmo faltando a couve e a farinha, as sensações de gosto e de cheiro
das frutas, o sabor e o aroma da pinga, são coisas muito singulares de uma gente ainda
mais singular - a “brasileira”. A saudade do bolo de queijo e de outras coisas mais (carta
07), e as lembranças da degustação do doce de goiaba que Jane saboreou em São Paulo
(carta 15), revelam que ela continua vivendo o Brasil no Chile, como mostra os recortes a
seguir:
Parece que a madrinha vem mesmo, não é? Fale com Marise
se me consegue um doce de goiaba como aquele que ela mandou para
mim quando eu estava em São Paulo. Sabe que aqui não tem goiaba
nem manga. Tem outras frutas que são diferentes das frutas
brasileiras, e as vezes a gente se lembra de alguma daí e sente
saudades. (carta 15)
121
121
Carta de Jane Vanini, datada em 15.10.92, assinada por Ana.
...Mande-me urgente a receita de torta paulista (aquela com
bolachinha e creme de leite nestlé, leite condensado, etc., de Caruru
com angu, se sabem e qualquer outra. Principalmente da torta paulista
que quero fazer nos próximos dias se possível para uma companheira,
tá?... (carta 17)
122
Tenho saudades da manga, do caju, do mamão, porque aqui
não existe essas frutas. [...] Temos em compensação a chicha de uva,
de maçã, que é deliciosa, mas são coisas diferentes. (carta 28)
123
O trabalho de Denise Rollemberg,
124
aponta a crise de identidade que vive os
exilados nos países que os recebem. Diante das adversidades que surgem na vida de
muitas pessoas que saem do país, a continuidade da militância política por meio do
ingresso em
outra organização de esquerda, dá um sentido à vida de quem acredita num projeto
revolucionário. É o que acontece com Jane Vanini, sobretudo, por significar uma
perspectiva maior de vitória da luta.
Em compensação, o Chile tem chicha de uva, de maçã, que é deliciosa, mas são
coisas diferentes (carta 28) significa que são coisas chilenas que, até pouco tempo antes,
ela não conhecia e por isso não se incorporam com a mesma simbologia. O tempo verbal
temos, que completa a construção da frase, pressupõe-se pensar que Jane adota o Chile
como sua pátria, mas a segunda, pois as sensações de gosto, sabor, aroma, textura de
bolos, doces, frutas, bebidas, tecidos, produtos de beleza, objetos, etc., exprimem sua
identidade brasileira. Todos esses aspectos mostram que Jane está no Chile, contudo não é
uma chilena.
122
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
123
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
124
ROLLEMBERG, D. Exílio: refazendo identidades, 1999.
Nesses trechos, aparece o caráter ambíguo da identidade da militante refugiada.
Há uma sensação de estar fora de seu lugar. A idéia de diferente está escondida e revelada
na maneira de dizer, de sentir e de conceber as situações que dimensionam a vida
cotidiana no Chile. Presentes em vários depoimentos, essa é uma característica recorrente
que se incorporam às experiências de muitos militantes exilados ou refugiados que Denise
Rollemberg aponta como sendo:
...a história da desorientação, da crise de valores que significou , para
uns, o fim de um caminho e, para outros, a descoberta de outras
possibilidades. É a história do esforço inútil e inglório para manter a
identidade, mas também a história da sua redefinição e reconstrução,
que se impuseram ao longo das fases do exílio e continuaram, para
muitos, mesmo depois da volta ao Brasil.
125
Uma outra situação que tem uma importância fundamental é a aquisição de
documentos de identidade. Na vida clandestina ter um nome fictício, naquela ocasião,
significa a tentativa de continuar revolucionário, além de minimizar os controles
institucionais a que são submetidos esses estrangeiros em condições tão especiais. Pelo
apoio e segurança que representa, Jane Vanini, pode solicitar da família, por várias vezes
até insistentemente, seus documentos:
...necessito que a senhora tente conseguir o máximo possível de nossos
documentos. Fotocópia, o que for possível. Creio que em algumas das
pastas de cartolina que havia em casa ou na casa de Da. Maria havia ou
fotocópias do título, da identidade, etc. ou o negativo dos mesmos.
Qualquer um serve. Se não conseguir, a senhora tente conseguir nos
colégios onde estudei ou prestei exame, no colégio Estadual de São
Paulo por exemplo, eles tem a fotocópia da identidade e me parece que
do título também, peça emprestado, explique que eu perdi os meus e
125
Ibid, p. 40.
preciso tirar outros e a fotocópia ajudaria, comprometa-se a devolver,
mostre seus documentos para provar que a senhora é minha irmã,
enfim faça o possível para conseguir uma fotocópia e me mande com a
máxima urgência possível. (carta 20)
126
...pedi faz uns dias e também por telefone que nos enviassem nossos
documentos: fotocópia ou negativo que devemos ter por aí ou que é
necessário que o peçam emprestado nas escolas, sei lá. É muito
importante que mandem o mais rápido possível, principalmente a
identidade. (carta 21)
127
Enquanto os documentos do colégio, todos tem que ter firma
reconhecida. Realmente não tem problema se a senhora vai ao Colégio
Estadual e pede para ver a pasta com meus documentos e copiar
os
dados. Diga que eu estou viajando e a senhora tem que preencher um
formulário para um concurso qualquer, de escola ou de viagem, ou
qualquer coisa e não tem os meus dados e aí é o único lugar onde a
senhora pode vê-los. (carta 22)
128
Creio que a única solução dos dados da CI seria buscar nos
meus papéis que sobraram e em alguns que estão na casa de Da. Maria,
em uma pasta, num armário que existe no antigo quarto de estudos do
Sérgio [...] O fogo no Colégio Estadual quer dizer que tampouco a
senhora conseguirá meu diploma? Necessito disso também, se bem que
não muito urgente. Tudo deve vir com firma reconhecida. Vou ver se
me lembro de algum outro lugar onde pode haver esses dados que
necessito. Enquanto isso, busquem milímetro por milímetro na casa de
Da. Maria. (carta 25)
129
126
Carta de Jane Vanini, datada em 30.12.72, assinada por Ana,
127
Carta de Jane Vainini, datad em 16.01.73, assinada por Jane.
128
Carta de Jane Vanini, sem datação, com assinatura de Ana.
129
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
Nota-se que há uma necessidade de restaurar a normalidade plena da vida,
recuperar perdas da vida material, social, intelectual e profissional. Nas investigações que
faz sobre aspectos da vida clandestina de militantes de esquerda, Denise diz que a
necessidade de portar documentos significa a materialização da identidade, pois “os
documentos definiam aspectos essenciais do dia-a-dia, a começar pela própria permissão
para se estabelecerem, trabalharem, terem direito à saúde, moradia, alimentação, etc.”
130
É certo que o Chile, até o golpe de estado em setembro de 1973, por ter um
governo de alianças que congregava partidos políticos de esquerda, não só acolheu muitos
brasileiros exilados e refugiados, como também dispensou um tratamento diferenciado de
outros países inclusive socialistas. Um exemplo muito forte que marca a vida de
pessoas
clandestinas que vivem no Chile entre 1970 e 1973, é o reconhecimento da nacionalidade
chilena aos filhos de brasileiros que por lá nasceram. A falta de documentos, antes de
tudo, impede as pessoas de locomover-se e negar a expedição oficial de documentos é uma
forma de repressão e controle que as ditaduras exercem sobre os militantes nacionais.
Numa outra perspectiva, essa condição bifurcada entre ser estrangeira e ser
revolucionária denota que a militância de esquerda, em sua essência, produz a
superação do conceito tradicional de nacionalidade, uma vez que a concepção da luta
revolucionária incide sobre a libertação dos povos esmagados pelo sistema capitalista. Isso
porém não significa a negação da nação, mas a afirmação desta, com base numa
construção da idéia de transnacionalidade, ou seja, uma multiplicidade de práticas políticas
e sociais, cujo movimento de suas ações está para além da nação.
130
ROLLEMBERG, op. cit. p. 60
Registro Fotográfico: entre a sedução e a memória
Embora o foco da investigação seja o conteúdo de cartas pessoais incorporadas à
vida de militância política, nota-se que no espaço das correspondências a referência sobre
fotografias é marcante, significando perceber que o registro fotográfico, mais que um
testemunho de um instante, é a produção de um discurso que também é parte da vida de
Jane Vanini. Um discurso sobre si mesma e sobre outras pessoas, pois a fotografia
incorpora um sentido de direção e referências sociais, especialmente, porque os
fragmentos registrados possibilitam informar ações e relações entre pessoas, espaços e
temporalidades.
Nesse ponto, as fotografias estão pensadas como partes indissociáveis das cartas.
O registro de espacialidades e temporalidades, que traz a fotografia, permite construir
múltiplos olhares que penetram nas possíveis escolhas das imagens. Os enunciados dessas
imagens são produtores de signos não-verbais que ajudam a compreender e reatualizar o
passado no presente. Elas, as imagens, são também portadoras de códigos de representação
que revelam comportamentos e experiências sociais. Ao trabalhar com mensagem
fotográfica, Mauad propõe cinco categorias denominadas de espaços. São eles, o
fotográfico, o geográfico, o espaço do objeto, o da figuração e o das vivências.
131
Nessas
categorias, encontram-se conteúdo e expressão, configuração física dos cenários,
dimensões
e valorações simbólicas, relações que estruturam o campo das significações e as atitudes
humanas conflituosas ou harmônicas.
Olhando dessa forma, há de se considerar que a fotografia é uma construção de
imagens que pode produzir mensagens e interpretações das imagens que registra.
E minhas fotos e documentos? Se puder mande algumas
fotos minhas e documentos, aquelas que eu tirei no sítio, de calça
comprida, de chapéu, às vezes com revólver na cintura, uma que eu
tenho sentada no antigo porto da antiga casa do Cabaçal, perto da
figueira, olhando o rio e alguma outra nesse estilo. Me lembro que
tirei algumas na lage. Mande-me todas que puder tiradas no campo.
Na cidade não me lembro agora de nenhuma que eu gostasse. Bom, vê
aí, tá? Fiquei contente em saber que a senhora nos mandou uma foto
131
MAUAD, A. M. S. A. E. O olho da História: análise da imagem fotográfica na construção de uma
memória sobre o conflito de Canudos, 1993. pp. 29/39.
de toda a turma. Mandem mais, quantas puderem. Tenho uma saudade
louca de vocês. (carta 09)
132
Esse recorte da carta enfatiza bem a capacidade do registro fotográfico em
construir imagens e disponibilizá-las para diversas interpretações. Os detalhes das fotos
que Jane expõe, tais como sítio, chapéu, revólver na cintura, antigo porto, figueira, rio, são
autênticas marcas da vida campestre. É o estilo mais “rural”, afastado do consumo e da
urbanização das cidades.
Esses termos também revelam a rede de referências familiares. Uma referência
singular, individualizada e própria de Jane Vanini, para as pessoas que convivem com ela
nesse momento e compõem suas referências no Chile. Os aspectos que constituem os
cenários dessas fotografias testemunham sua origem, as relações familiares e as condições
de vida material, por isso a ênfase para mandem-me todas que puder tiradas no campo.
Numa outra abordagem, é possível afirmar que a fotografia, na condição de
representar a presença da pessoa ausente, tem a força de poder recompor o núcleo familiar,
imprimindo em si mesmo o sentido de unidade. A necessidade de enviar e de querer
receber muitas fotos e de todos, é um traço marcante na reconstituição do convívio
familiar tanto para o fotografado, quanto para o receptor, embora isso não resolva os
conflitos que porventura existam. Neste caso, para o receptor, a fotografia passa a
documentar os aspectos da vida pessoal e social do fotografado e assim, o olhar torna-se
mais penetrante nas particularidades do registro que reúnem indumentária, semblantes,
expressões corporais, aparências, além de vários outros detalhes dos cenários congelados.
132
Carta de Jane Vanini, sem data , com assinatura de Ana.
O trecho acima selecionado traz uma outra singularidade da vida pessoal de Jane
Vanini: o gosto pela fotografia. A adoção da luta revolucionária, que parece ser a face
mais intensa de sua existência, não lhe retira o prazer de fotografar-se, mesmo porque o
registro fotográfico é um artifício que possibilita criar várias interpretações de realidades,
tanto para o retratado quanto para os receptores.
No consentimento ao ato de fotografar-se, que de maneira geral inclui propósito e
intenções, as pessoas são tomadas por momentos de satisfação, especialmente quando são
retratos de família. É também a vontade de ver construída a imagem de si mesma,
fundamentando-se na idéia de que “a fotografia tem sua origem a partir do desejo de um
indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em
determinado lugar e época”.
133
Analisando álbuns de família, Mírian Moreira Leite afirma a regularidade com
que as pessoas se permitem fotografar, considerando a forma, o ritmo, a estética, o
significado e a satisfação psicológica que o registro fotográfico proporciona. Nessa mesma
direção, ela aponta como motivos de satisfação do registro os seguintes aspectos: “a
proteção contra o tempo, que torna a fotografia um substituto mágico do que o tempo
destruiu; a comunicação com os outros e a expressão de sentimentos; a auto-identificação,
o prestígio social conquistado pela proeza técnica, pela realização pessoal ou pela despesa
ostentatória; a distração ou jogo e/ou a evocação da memória evanescente”.
134
Aqui é importante ressaltar que Jane Vanini incorpora o hábito e o prazer de ser
retratada, o que significa uma marca nos hábitos de consumo da família burguesa,
produzindo sentido de inclusão social, pois não é qualquer família que pode fotografar os
133
KOSSOY, B. Fotografia e história, 1989, p. 22.
134
LEITE. M. M. Retratos de família, 1973, p. 87
seus momentos. Seja na infância, nos carnavais, nas festas de aniversário, adolescência,
formaturas, desfiles cívicos ou de moda, mais curiosamente, ela registra também seus
tempos de militância política. Além do variado acervo, uma máquina fotográfica é parte de
seus pertences pessoais, como consta na carta 29, escrita em julho de 1973, quando
também aproveita para informar sobre o uso do dinheiro que recebeu de sua madrinha, que
aliás lhe deixa um tanto confortável:
Qualquer dia desses vou te mandar fotos minhas. O
problema é a falta de tempo e os filmes que são caros. Minha máquina
é de 35mm e os filmes de 400 asas que eu geral uso e estão escassos,
porque também é importado. Mas logo logo te mando algumas. Vou
comprar filmes com os 200, há, há, há!!” Vou mandar concertar e lhes
mandarei algumas fotos, tá? (carta 34)
135
Por que Jane desejou fotografar-se durante a prática da militância, um tempo tão
conturbado, em que o recomendável não é o registro pessoal? O que significa uma
militante fotografar sua imagem no Chile e enviá-la, pelos Correios e Telégrafos, a sua
irmã que reside em São Paulo-Brasil? Como se dá a escolha dos cenários fotográficos?
Parte dessas questões talvez não seja mais possível recuperar, nem tampouco a fotografia
fala sozinha de si mesma, mas permite que seus indícios recriem aspectos capazes de
fomentar a investigação histórica. Então, é imprescindível dispensar atenção ao registro
fotográfico, uma vez que este possibilita, no seu conjunto, complementar a montagem do
enredo.
Que trama histórica pode revelar ou esconder uma produção fotográfica? O “clic”
da objetiva registra um instante ímpar de um tempo, num espaço escolhido em função de
uma vontade, pois o cenário é construído pela intenção do fotógrafo e do fotografado, ou
135
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
de ambos. Seja como for, a cena registrada expressa o assunto que de fato existe. Isso não
significa que a fotografia traz em si mesma a expressão da verdade e nem um
conhecimento total sobre o passado retratado, mas expressa certamente um sentido
testemunhal do instante e ajuda a visualizar e compreender os “microcenários do passado”,
segundo Kossoy. Esse mesmo autor, ao analisar o tempo e a realidade no registro
fotográfico, diz que “toda fotografia representa em seu conteúdo uma interrupção do
tempo e, portanto, a vida. O fragmento selecionado do real, a partir do instante em que foi
registrado, permanecerá para sempre interrompido e isolado na bidimensão da superfície
sensível”.
136
Um sentido curioso na fotografia é que seu conteúdo pode revelar informações
que ajudam a reconstruir um tempo para quem analisa e reatualizar emoções para quem
partilha a convivência com o tempo retratado. Esses desdobramentos revitalizam as
imagens congeladas e, ao mesmo tempo, quebram sua imobilidade e as põem em
movimento numa continuada construção de significados que brotam do exercício de
rememoração.
O registro fotográfico é o resultado de uma vontade deliberada que implica na
escolha de aspectos como ângulos, iluminação, planos, enquadramentos, cenários, entre
outros, estabelecendo uma estreita relação com objetos, pessoas e paisagens, que são
constituidores de uma memória que legitima aquelas escolhas, ao mesmo tempo em que
produz um esquecimento sobre as outras lembranças. A fotografia não transmite uma
realidade, mas uma relação com ela, ou seja, uma representação desta que permite
construir uma significação entre seu conteúdo e sua forma.
136
KOSSOY, op. cit. p. 28
Há de fato uma teia de comunicação entre o observador e as imagens fotográficas
silenciadas no seu tempo, pois elas são componentes do sistema de signos não-verbais que
se caracteriza por estabelecer uma comunicação independente, gestora de múltiplos
aspectos culturais. É com esse sentido que Jane diz:
Eu queria tirar uma foto bem chilena e mandar a vocês e
pedi uma manta emprestada para a foto, porém agora comprei uma
manta para dar de presente a senhora e vou tirar uma foto com ela
para te mandar. (carta 24)
137
O registro fotográfico, por ser um texto visual, leva o leitor a estabelecer uma
relação cognitiva entre as imagens congeladas e ele mesmo, na qual se impõe o
processamento de informações que se escondem nos vincos dos cenários ou fora deles,
porém, na análise de Mírian M. Leite, “como a fotografia acolhe significados muito
diferentes na codificação e em possíveis decodificações da mensagem transmitida, as
interferências dessas condições alteram e percepção do observador da imagem.”
138
A relação com a imagem fotográfica produz múltiplos sentidos e imediatos,
porque as imagens possibilitam leituras dissimuladas, dispensando mediações. E quando
se trata de cenários, cujos comportamentos dos figurantes tem-se um conhecimento prévio,
as interpretações parecem mais próximas e os significados mais evidentes. Então, o
fragmento acima citado expressa em foto bem chilena e manta emprestada, a significação
do instante, como se quisesse falar: agora é assim, eu vivo o Chile. Essa prática de
fotografar-se também sugere pensar a forma mais imediata e mais presente de assegurar
137
Carta de Jane Vanini, datada em 23.01.73, assinada por Jane.
138
LEITE, M. L. M. Livros de viagem (1803-1900), 1997, p. 224.
sua integração plena ao grupo familiar, uma vez que o registro fotográfico não reúne, no
seu conteúdo, somente as singularidades pessoais dos atores, mas assinala, sobretudo, os
papéis e os lugares sociais de cada fotografado.
A família Vanini sempre preserva o costume de expor suas fotografias em fartos
álbuns, porém os registros de Jane nos seus tempos chilenos não estão assim dispostos,
mas guardados cuidadosamente nos pertences pessoais da irmã Dulce Ana. Essa é uma
particularidade que não ajuda a construir um esquecimento, mas algumas folhas de
silêncio. Silêncio sobre a ausência, a presença, as escolhas, as paixões, as fugas e as
atitudes sobre Jane. Qualquer tipo de silenciamento traz a sensação de protegê-la, quer da
repressão institucional, quer das múltiplas opiniões que se formulam e circulam sobre sua
conduta, gerando descontentamentos públicos aos quais submete toda a família.
As fotografias “guardadas”, assim como as cartas e outras lembranças, quando
olhadas e observadas, provocam rompimentos repentinos desse silêncio que acompanha a
história e, dessa forma, arrancam da memória familiar os traços de vida também guardados
nas lembranças do convívio. Assim, rememora-se o afeto, revivem-se as relações,
recompõe-se a convivência familiar, refazem-se as atitudes e os pensamentos, escuta-se o
som das vozes, recuperam-se os traços das feições e os contornos dos sorrisos e dos
olhares petrificados no registro. É como se as imagens ganhassem vida e se locomovessem
para o espaço do agora. É nessa vitalização das imagens que Jane deseja recuperar alguns
registros perdidos:
Gostaria que me mandassem uma foto de vocês outra vez.
Sabe que a que eu tinha me roubaram um dia em que me bateram a
certeira e estou sem nada. Nem da Cida. Nem do Jorge, nem daquela
de papai, mamãe, etc. Qualquer dia desses mando foto nossas. É que
temos que tirar ainda e não tivemos oportunidade. (carta 21)
139
Mande-me foto de todos vocês, tá? E se encontram algumas
minhas antigas, daquelas que eu gostava, mande-me também, tá?
(carta 25)
140
Para Jane Vanini, ao que tudo indica, a fotografia é um tempo de sedução que se
reedita em múltiplas vontades, uma vez que eterniza seus momentos de prazeres. Seja na
rua, no trabalho, ao telefone, nas creches em atividades voluntárias, ou ainda, conservando
imagens de cenários, pessoas e objetos, o encadeamento das relações produz signos de
uma experiência, mesmo que a fotografia possibilite leituras ambíguas sobre seu conteúdo.
Numa proximidade com as correspondências, as fotografias enviadas a Dulce são
instrumentos fascinantes, os quais, detendo informações e enunciando mensagens sobre o
cotidiano de Jane, soam como grandes fragmentos de certezas vividas. Com essa
significação é que Jane Vanini atualiza um passado no presente e fala do companheiro
gordinho, mas simpático, da magreza que não existe mais, da identificação das crianças e
da feitura de sua carteira:
Vou te mandar umas fotos (anteriores às outras que te
mandei) em que estou com um companheiro chileno. É meio ‘gordinho’,
mas é simpático e parece que está enamorado. Oh!!... Nesta época eu
estava magra, mas afora estou super gorda, assim é que não se
preocupem pela magreza minha nessa foto. (carta 32)
141
Em outra carta lhes vou mandar negativos com fotos nossas.
As duas crianças que aparecem são filhos do Pepe. A carteira que
aparece comigo, eu mesma a fiz. (carta 36)
142
139
Carta de Jane Vanini, datada em 16.01.73, assinada por Jane.
140
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
141
Carta de Jane Vanini, datada em 01.02.74, assinada por Ana.
142
Carta de Jane Vanini, datada em 29.07.74, Assinada por Carmem.
Qualquer que tenha sido a finalidade das produções fotográficas nos tempos das
práticas da luta revolucionária e, em especial no Chile, os registros também expõem a
marca individual do fotógrafo. Ele tem um estilo que revela seus valores culturais, sua
forma de pensar e sua compreensão sobre estética. Há, portanto, uma cumplicidade entre o
fotógrafo e a fotografada Jane.
Seguindo Boris Kossoy, a trajetória da fotografia se dá em três estágios: a) a
intenção de registrar a realidade, que pode ser do fotógrafo ou não; b) o ato de registrar o
real, que é o processo que origina a fotografia; c) os caminhos que tomam a fotografia, ou
seja, os aspectos como as aventualidades, as dedicatórias, as emoções, os sentimentos, as
razões pelas quais determinadas pessoas salvam os registros, os álbuns que conservam,
mãos e olhos que manuseiam as mensagens. “Neste caso, seu conteúdo se manteve, nele o
tempo parou. As expressões ainda são as mesmas. Apenas o artefato, no seu todo
envelheceu”.
143
Para os familiares de Jane Vanini, sua ausência, no sentido mais amplo, traduz
um sentimento de perda da ente querida e pode ser amenizado na contemplação da
imagem fotográfica. Os conteúdos de seus últimos registros representam a realidade
intensamente vivida e assim, a continuidade dos laços familiares e afetivos. É nessa
compreensão que os trabalhos de Míriam Moreira Leite apresentam a imagem fotográfica
como um prolongamento da existência humana como forma de culto e preservação da
memória das pessoas que já não se fazem mais presentes no espaço familiar. Ela enfatiza
essa representação afirmando que “a fotografia funciona como índice do que foi e por
onde passou a família. Silenciosas e imóveis, ficam, também por isso, ligadas à memória
143
KOSSY, B. Fotografia e História, 1989, p. 29
dos entes queridos que desapareceram e que se tenta fazer sobreviver. Além de ser um
espelho de momentos passados, as fotografias recuperam a presença dos ausentes”.
144
144
LEITE, M. M. Retratos de família. 1993, p. 160.
Capítulo I
Mundos, Tempos e Vidas
Na trama das palavras, os tempos vividos
Cartas são instrumentos que, ao registrar suas informações, produzem sensações
diversas, mexendo com o estado emocional tanto de quem as escreve, quanto de quem as
lê.
Num primeiro instante, uma carta parece não passar de um veículo comum que provoca
um movimento de notícias que articulam pessoas, as quais se encontram fisicamente
distantes. No entanto, há uma complexidade que independe da natureza e do conteúdo que
cada carta carrega.
Para efeito de compreensão, o lastro desta pesquisa são cartas pessoais que
possibilitam, pela leitura dos conteúdos e interpretação de seus enunciados, a reconstrução
de aspectos de uma experiência político-social trágica vivenciada por uma jovem
estudante, entre os anos de 1964 e 1974. Essas cartas pessoais, produzidas entre os anos de
1972 e 1974, foram trocadas entre Jane e Dulce Vanini, e encontram no restabelecimento
das relações familiares, uma das fortes razões de existirem. Trata-se especialmente de
duas irmãs, uma delas, autora e remetente, Jane Vanini, que, na época vivendo
politicamente clandestina em Santiago-Chile, faz de suas correspondências, entre vários
outros sentidos, o reatamento de laços afetivos com sua família.
Num total de trinta e sete cartas, Jane destinou grande parte delas a Dulce, sua
irmã mais velha, a quem tratava afetivamente de “Madrinha” e que, naquele período, na
condição de funcionária da empresa Mappin S/A, residia em São Paulo-Capital. Embora
Dulce tenha sido a receptora das cartas, Jane também endereçou correspondências a outros
destinatários como irmãos, pais, sobrinhos, cunhados e tios.
O ato de escrever e trocar cartas são práticas antigas, produtoras de múltiplas
sensações que, num sentido primeiro, geram ao mesmo tempo um prazer por parte do
autor e uma ansiedade por parte do receptor. Na dimensão desse espaço existente entre o
que se escreve e o que se lê, é fundamental compreender os significados que aparecem
entre o conteúdo de um texto e os efeitos que ele tende a produzir.
O que de fato acontece com uma pessoa ao proceder qualquer tipo de leitura?
Para Chartier, a leitura não é um simples processo de absorção de conteúdos, pois nenhum
texto se apresenta como um amontoado semântico, nem o leitor como um mero
instrumento armazenador de discursos. A relação leitor versus leitura “supõe uma
multiplicidade de mediações e de intermediários entre as palavras anunciadas e a página
impressa”
145
, afirma ele. O leitor se encontra envolvido numa cadeia de práticas sociais
diversas intensamente compartilhadas entre grupos distintos. A leitura é, então, fortemente
marcada pela produção de sentidos, cujas formas de apreensão se articulam com a
utensilagem mental e o capital simbólico do leitor, os quais possibilitam construir valores,
intenções, propósitos, conceitos, conhecimentos, planos deliberativos, etc.
O leitor, por sua vez, tem uma capacidade de interpretação que é adquirida
através do conjunto de aspectos normativos, legitimadores de comportamentos sociais,
cujos princípios caracterizam a maneira de pensar de uma dada época. Assim, o leitor não
absorve uma leitura balbuciando palavras ou com um olhar silencioso sobre o texto, mas
145
CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre,
Jésus Anaya, Daniel Goldin e Antonio Saborit, 2001, prólogo.
na relação que ele estabelece entre suas competências individuais já internalizadas e a
mensagem que o texto, no seu todo, disponibiliza.
Não há, portanto, uma naturalização das coisas, ao contrário, a intervenção direta
e constante dos agentes sociais é que constrói a realidade, demonstrando, na dinâmica
social, a forma como se apropriam dessas leituras, manifestando suas percepções, através
das estratégias de conduta que utilizam no convívio em sociedade.
É com essa complexidade que se dispensa uma atenção especial para a
intertextualidade das cartas que contempla ao mesmo tempo as experiências plurais de
Jane Vanini, cujos relatos, cheios de “veredas”, ao exibirem um olhar militante sobre
aquele mundo, permitem também vários olhares sobre o mundo dos militantes.
Para Jane, escrever cartas aparece como uma necessidade, uma vez que elas se
apresentam como o lugar que sacraliza sua individualização, por conseguinte, o espaço
que assegura sua identidade. As correspondências são mundos passíveis de exibirem a
singularidade de Jane que aparece encarnada no corpo de cada escrita, ora reconhecendo-
se como revolucionária, ora circunscrita a si mesma. Esses são os lugares de construção de
identidades, pois permitem que Jane Vanini reconheça-se na sua própria trama. Já para a
família, a carta, enquanto objeto, tem o sentido de vida possível; enquanto conteúdo
imprime a essência humana da pessoa ausente. Cada carta enviada e recebida expressa,
sobretudo, a costura pausada de uma cumplicidade estabelecida entre a remetente e os
destinatários. Em outros momentos, as cartas são também maneiras de expressar as
saudades e o vínculo afetivo que a acompanham como sombras de vida e que, quase
sempre, começam ou terminam o noticiado de cada carta:
Madrinha:
Finalmente recebi sua carta. Estava realmente preocupada.
A Dona Maria havia escrito ao Sérgio que a senhora estava doente
dos nervos, etc., e como não recebia nenhuma notícia sua, me
preocupava e supunha mil coisas. Mas parece que sua tentativa de
escrever uma carta curta por semana não prosperou porque já vai
fazer 2 semanas que não recebo outra. (carta 28)
146
Querida Madrinha:
Muitas saudades. Tenho uma vontade enorme de estar com
vocês. Houve uns dias que passei meio na fossa. Não muito porque não
posso permitir-me êsses luxos. Já tinha recebido sua carta junto com
a do Papai mas queria estar sem ‘meias’ fossas para poder escrever.
Hoje eu o estou fazendo. Aliás interrompi aqui esta carta porque
acabo de receber outra carta, do dia 23 de abril com as fotos. Como
estão diferentes as ‘crianças’. Os grandes não tanto. A senhora
sempre enxutinha, né? Os cabelos dos nossos pais sim que estão mais
brancos. Que saudades! [...] Sonhei muito com vocês estes dias.
Pensei que sua carta me fôsse dizer que a senhora estava por aqui.
[...] não deixe de escrever-me, tá? Depois respondo tudo junto.
Queria vê-los. Morro de saudades. Tenho Banzo. Eu os quero muito,
abraços. (carta 34)
147
Por esses aspectos, é perceptível que os militantes, ao se tornarem militantes, não
se divorciam de seus sentimentos. Apesar de um tempo policialesco, que viola os direitos
de cidadania das pessoas, Jane aposta na possibilidade de algumas cartas não serem
interceptadas pela censura. Encontra junto a Dulce o “jeito” do envio e recebimento
através do qual consegue estabelecer uma comunicação direta com seus correspondentes:
146
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
147
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
Melhor que escrevam 2 vezes por se acaso uma se extravia.
(carta 02 )
O Mário recebeu outro dia uma carta de Dona Maria em que
ela diz que não estão recebendo cartas. Eu tenho escrito sempre com
muita regularidade. [...] As cartas que vocês me mandam chegam no
máximo com uma semana desde o dia em que colocam no correio. Em
geral elas vem reengomadas, quer dizer que a abriram e tornaram a
fechar. [...] Estou numerando as cartas. Esta vai ser a número 1 pode
ver no canto a direita, em cima. Até agora já escrevi, no total umas
18 cartas (incluindo a de Nícia). Espero que tenham recebido todas.
(carta 10)
148
Quando me escreverem colem a carta somente com a cola
que vem no envelope, porque se vem mais cola que essa já sei que foi
aberta no correio. (carta 12)
149
Embora os conteúdos dessas cartas também revelem aspectos da luta de
militância, eles mostram, ao mesmo tempo, que o regime vigente, no que diz respeito ao
controle, apesar de propagandeado e onipresente, não impediu que a capacidade criadora
da mente revolucionária construísse outras formas de sobrevivência. Como pode-se notar
nos trechos acima citados, códigos, datações e duplicidade de correspondências são
algumas maneiras que Jane elabora para circular num espaço totalmente personalizado.
Durante quase cinco anos, Jane vive inevitavelmente clandestina. Para uma
militante clandestina, mais do que para qualquer outra pessoa, escrever cartas também
toma um sentido de encurtar distâncias geográficas e físicas, além de estabelecer um fio
condutor de relações e sensibilidades. Há, no entanto, um espaço de sedução desenhado
pela busca
148
Carta de Jane Vanini, datada em 07.09.72, assinada por Ana.
149
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
de si mesma e pela conquista do outro, pela personificação dos conteúdos e pelos
segredos. A indistinção entre remetente, narradora e autora e a flutuação entre a
imaginação utópica e a ação experimentada, revela, sobretudo, a ansiedade que permeia a
vontade de ser revolucionária, a convivência com as incertezas e a opção de continuar
lutando. Por intermédio das cartas observa-se que há vários atores sociais em Jane, os
quais se misturam e se cruzam indistinta e simultaneamente sobre várias figuras: a
narradora, a militante, a guerreira, a filha, a irmã, a nora, a mulher, a companheira, a tia, a
cunhada, a revolucionária, a “camarada”, etc.
As circunstâncias da clandestinidade levam o revolucionário a pensar muitos
aspectos da militância política, a partir de um direcionamento pessoal, ou seja, exigem a
invenção de múltiplas formas de sobrevivência, pois convive-se simultaneamente com o
medo e a coragem, com um imaginário projetado e um ambiente muito adverso, com a
solidão insuportável e o apoio disponível, com o companheirismo possível e o
individualismo necessário, com a possibilidade de superação e a incerteza de alcançá-la.
Nesse caminho, é aceitável pensar que a camuflagem das identidades, por trás de cada
subscrição que Jane registra, esconde e revela muita coisa, cujos mistérios levam o leitor a
construir suas viagens cada vez mais intensas por espaços multidimensionais.
As pessoas têm maneiras muito singulares de se apropriar do conteúdo de um
dado texto. Para R. Chartier, um conjunto de normas, regras, convenções, códigos e
percepções são aspectos constituidores do leitor-indivíduo e o identifica como pertencente
a uma comunidade interpretativa própria.
150
São essas características que norteiam a
relação estabelecida entre a materialidade da escrita e a corporeidade sócio-cultural que o
leitor comporta. Assim, a escrita nunca é algo onipotente, ou seja, a inscrição das palavras
150
CHARTIER, R. 2001, op. cit. p.32-33.
no texto de uma carta, por exemplo, não transfere o sentido para o leitor, mas é este que,
com sua capacidade interpretativa e na relação com o que está escrito, elabora a
construção dos sentidos. Um texto não traz o sentido, produz sentidos.
Portanto, as cartas não são redutíveis às estratégias de persuasão que sugerem
demonstrar nos seus enunciados. As palavras são trilhas que constituem um mundo
particular, construído para que Jane possa habitá-lo livremente. Elas, as cartas, são
verdades vividas. São os espaços da vida normal, para além da normalidade de escrever,
sobretudo quando são produzidas e enviadas numa condição de vida anormal - a
clandestinidade.
Para Dulce, receptora de todas as correspondências da irmã, havia sempre uma
angústia contínua que se debruçava sobre o tempo da espera e o conteúdo de cada missiva.
A carta, como representação de vida, produz uma pluralidade de significados e formas de
apropriações. Ela emite recepções paradoxais e inéditas, tais como certezas e dúvidas.
Quem escreve pode inventar sua trama com a finalidade de produzir determinados efeitos;
e quem lê, mesmo acreditando no conteúdo, por se tratar de um presente que não é mais
presente, atualiza aquele passado, todavia com as incertezas do agora, pois ele, o agora,
pode traduzir-se numa estratégia de fuga: ...por mais que eu lesse o conteúdo da carta eu
achava que ela (Jane) estava passando dificuldades e não queria me falar, pois sabia o
quanto eu me preocupava com aquela situação que ela vivia.
151
Nesse sentido, a carta incorpora segredos porque, enquanto objeto, ela é
portadora de signos que produzem impressões processadas na memória voluntária. Esta
151
Trechos de entrevista com Dulce Ana Vanini, Rio de Janeiro, 2001.
procede por instantâneos e busca o segredo das impressões no próprio objeto. ... essa
memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes.
152
Entender essas tensões é aceitar que o tempo da clandestinidade é o da
experiência vivida e o da invenção do fazer. Como pode-se perceber, nas lembranças de
Suzana Lisboa, esse é um tempo emocional, descontínuo:
A intensidade das coisas que a gente vivia naquela época era
tal que você podia, alguém já falou nisso, que você, num minuto, sentia
emoções como se tivesse vivido um ano; a intensidade das emoções que
a gente vivia era muito grande. Só o fato de você está o tempo inteiro
convivendo com a morte já é uma coisa que traz uma montanha de
sensações e o período que por ventura a gente ficava juntos ele assumia
uma dimensão muito grande porque o convívio era muito intenso; você
viver com um companheiro e partilhar as mesmas emoções... quer dizer
eles (Jane e Sérgio) eram um casal jovem, assim como nós, que estava
jogando pela janela um futuro pensando na liberdade de seu país.
153
O tempo de cada carta - para quem escreve - está no assunto que, embora queira
parecer um presente, é sempre de um passado que trata - para quem recebe. O hoje da
recepção e da leitura vêm sempre depois do hoje da escrita e depois do hoje do envio, que
agora já é um ontem e esses dois hojes já sendo defasados no tempo, contem a
possibilidade quase certa de aquilo que nas cartas se lê, já não é mais o que está
acontecendo.
154
Nesse sentido, a brusca incidência que o passado faz sobre o presente permite que
sejam compreensíveis as incertezas e as inquietações de Dulce, pois o tempo de
escrever
152
DELEUZE, G. Proust e os signos, 1987, p. 57
153
Trecho da entrevista de Suzana Lisboa, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional e companheira de
Jane Vanini. A entrevista foi realizada em São Paulo, no dia 27.11.92.
154
MELO e CASTRO, E. M. de, Odeio cartas. 2000, p. 15.
da remetente e o tempo da receptora ler as cartas aparecem distintos. As sensações
aflitivas de Dulce tendem a provocar impactos emocionais de maiores proporções, tendo
em vista que a multiplicidade desses tempos não lhe possibilita conhecer o presente
simultâneo da irmã que escreveu a carta.
É importante ressaltar que o ‘chrónos’ aqui acontece diferente. Embora uma
parte significativa das cartas que Jane escreve apresenta-se datada, não é de um tempo
cronológico que falam; é o tempo das recordações, das reminiscências, da sensibilidade e
da experimentação da luta revolucionária. Esses tempos plurais são reveladores de signos
que se encontram mergulhados nas lembranças das experiências vividas, e são, sobretudo,
um olhar através do tempo múltiplo, um olhar que reconstrói, decifra, revela e permite a
passagem de um tempo a outro e, especialmente, trazem a possibilidade de atualização do
passado no presente.
155
Em Proust, cada espécie de signo corresponde, sem dúvida, a uma linha de
tempo privilegiada. [...] Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem redescobrir o tempo,
restituindo-o no meio do tempo perdido.
156
Ainda na concepção Proustiana, o exercício da
inteligibilidade possibilita a interpretação dos signos e a significação dos objetos. Nesse
sentido, a exterioridade é algo que se projeta da essência do ser e se manifesta nas práticas
do sujeito. É no espaço dessas essências que os signos se fazem grandes demarcadores de
tempos. É no tempo perdido, impresso em imagens fotográficas, que Jane redescobre o
tempo. As recordações e as saudades tão enunciadas em suas cartas expõem os desejos da
alma sobressaltados nos signos:
155
GUIMARÃES NETO, R. B. Artes da Memória, fontes orais e relato histórico, 2000, p. 103
156
DELEUZE, op. cit. p. 25
...acabo de receber outra carta, do dia 23 de abril com as
fotos. Como estão diferentes as ‘crianças’. Os grandes não tanto. A
senhora sempre enxutinha, né? Os cabelos dos nossos pais sim que
estão mais brancos. Que saudades! [...] Queria vê-los. Morro de
saudades. Tenho Banzo. Eu os quero muito, abraços. (carta 34 )
157
Nos cabelos grisalhos, ela vive o semblante do tempo e no reflexo de cada fio,
agora mais branco, revisita também as nesgas de sua vida. Eles são, portanto, os signos na
dimensão do tempo redescoberto. Pelos cabelos brancos Jane vive o tempo que se perdeu.
O olhar sobre a fotografia recupera o tempo perdido, porém é no movimento das imagens
e na configuração dos cenários fotografados que Jane se apodera de um tempo
redescoberto.
As crianças não estão diferentes só por terem crescido e mudado suas
fisionomias, nem os cabelos brancos ficaram apenas mais brancos pelos pais terem mais
idade, mas é porque no crescimento das crianças e no envelhecimento dos pais, as marcas
do tempo, fiadas e embrulhadas em suas dobras, revelam imensos filetes de vidas que
emergem da plenitude das reminiscências ou das lembranças involuntárias, da alegria
celestial que nos dão os signos da Memória e do tempo que eles nos fazem bruscamente
redescobrir, como define Proust.
158
É dessa forma que o texto fotográfico ganha mobilidade. As imagens
descongelam-se no encontro e na resignificação do tempo que aparecem potencialmente
nos semblantes do olhar, na tonalidade das vozes e na individualidade dos gestos que as
pessoas readquirem. Os cenários também alteram suas luzes e suas cores, enquanto os
objetos ganham outras significações.
157
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
158
DELEUZE, op. cit. p. 54
Falando ainda de um tempo que já passou, Deleuze diz que: Rever pessoas que
nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos, não sendo mais
habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do tempo que modificou
determinados traços, alongando-os, tornando outros flácidos ou vincados.
159
É nesse
sentido que o tempo torna-se visível e atualiza o passado num presente já repleto de
resignificações.
A experimentação da redescoberta do tempo, impulsionando uma profunda
sensação de múltiplos prazeres, imprime também uma resignificação do objeto.
Certamente por isso, é que Jane Vanini tanto privilegiou o registro fotográfico. Essa idéia
de redescoberta e invenção é de suma importância, não como algo que nunca existiu, mas
como aprendizagem e interpretação das coisas, objetos e seres, emitindo signos a serem
decifrados, interpretados.
160
Numa outra perspectiva, a correspondência que transita no espaço criado entre
remetente e destinatário produz muito mais forte um efeito de presença que de ausência.
Embora uma carta possa imprimir as marcas da ausência de alguém, a letra, o assunto, o
traço e o estilo de escrevê-la são representações autêntica de sua criatura. Foucault apud
Werneck
161
apresenta essa simbologia afirmando que a carta torna o escritor ‘presente’
em relação a quem ele se dirige. E presente não simplesmente através das informações
que
159
Ibidem, p. 18.
160
GUIMARÃES NETO, R. B. op. cit. p. 104.
161
WERNECK, M. H. Veja como ando grego, meu amigo.”Os cuidados de si na correspondência
machadiana, 2000, p. 142.
fornece sobre sua vida, suas atividades, seus sucessos e seus fracassos, sua fortuna ou
suas infelicidades; presente de um tipo de presença imediata e quase física. [...] a carta
funciona como um olhar que se pousa no destinatário (através da missiva que ele recebe,
ele se sente olhado) é uma forma de se entregar ao seu olhar através daquilo que lhe
dizemos de nós mesmos.
Nessa ótica, a carta é o instrumento de múltiplas significações e a representação
simbólica do outro. O outro passa a ser a onipotência da busca. Em Dulce, Jane
potencializa a busca de si mesma. É, portanto, no significante que se reconhece o
significado. É com esse movimento de significações que Dulce, esperando, recebendo,
lendo, respondendo e guardando as cartas que Jane lhe remete, faz crê que ela ainda
continua viva e, assim, também constrói o seu outro.
As cartas são também concebidas como fontes potencialmente portadoras de
memória, cujas narrativas são carregadas desse tempo descontínuo e fragmentado - o
tempo da experiência. A memória guarda lembranças que, ao ser recordada, traz de volta o
que ficou inscrito nas experiências. É essa memória da experiência vivida que leva Jane, a
pessoa que escreve, a selecionar os acontecimentos que as cartas devem absorver.
Portanto, escrever cartas passa a ser um constante exercício de reinvenção da vida, uma
vez que as memórias ali postas remetem a escrevente ao deleite do espírito,
essencialmente quando a memória dá visibilidade aos múltiplos cenários do tempo
redescoberto. É lá, nesses cenários, que acontecem os reencontros com pessoas, lugares,
afeições, cores, vozes, rostos, concepções e comportamentos. É neles também que Jane
reencontra as lágrimas, os sorrisos e as saudades.
A relação entre o pensar e o ser, instrumentalizada pela inteligência, formula
impressões que, ao codificar-se na memória, manifestam-se nos desejos, nas paixões, nas
escolhas, etc. Assim sendo, as lembranças que lastreiam as correspondências são sempre
os cenários vividos, cujas imagens percebidas são o testemunho do acontecido. As
imagens são seladas na linguagem e articulam uma rede de relações interativas com seus
correspondentes.
As cartas falam de uma memória que registra seus marcos através dessa
linguagem operada como instrumento de poder e sedução, e estes remetem ao
encantamento do outro que, no registro do falante, tranqüiliza-se ao penetrar em sua
escuta e aprisioná-lo na teia de significados que a narrativa oferece. [...] Assim a
linguagem, a partir da razão narrativa, registra contornos presentes no falar dos sujeitos,
demonstrando o acontecido nas dobras do tempo, como um evento que se caracteriza pelo
pressuposto da verdade vivida.
162
Os fragmentos dessa memória se espalham e se recolhem nos territórios das
práticas da militância de esquerda armada que, por sua vez, reaparecem de uma forma
quase mística. As lembranças não se remetem a um passado que passou, mas as suas
mechas que ganharam significações nas marcas de um tempo descontínuo, cujos
fragmentos são capazes de revelar a teia de sentimentos afetivos com aquele passado.
O reencontro das experiências com suas verdades construídas possibilita rever os
retalhos de vida que ficaram espalhados pelo passado e que, ao se atualizarem no presente,
readquirem outras significações que, inevitavelmente, remodelam o sentido de viver dos
sujeitos. O viver parece consubstanciar-se na intensa experimentação das práticas sociais e
da luta revolucionária. É dessa forma que as cartas escritas por Jane Vanini e guardadas
por Dulce são também as memórias de uma paixão política alimentada pelos episódios
162
GROSSI, Y. S, FERREIRA, A. C. Razão narrativa: significado e memória, 2001, p. 30.
vividos e experimentados por vários atores que, acreditando e encenando seus papéis,
deixam suas marcas na simbologia de uma época - os anos rebeldes.
Mundos plurais, vidas singulares
Cartas, sempre cartas. Elas são curiosas e produzem outras curiosidades se se
considerar enquanto partes constituidoras de um tempo e de pessoas singulares. O
conteúdo de uma carta possibilita sempre ao leitor projetar, na imaginação, um espaço
capaz de configurar todas as cenas que são descritas e enunciadas pelo conteúdo que
apresenta. Elas, as descrições, são representações das verdades do emissor, as quais
atualizam informações, (re)formam cenários e (re)formulam emoções.
Considerando que o que se escreve é a codificação de uma oralidade, a escrita de
uma carta também remete ao manuseio de detalhes na construção do que se quer noticiar,
para que a compreensão e a assimilação sejam as mais próximas daquilo que
propositalmente se diz. Não se trata de regras ou modelos pré-estabelecidos para a feitura
de uma carta, mas de sintonizar a emissão de sentidos entre o que se escreve, o que está
escrito e o olhar do leitor.
Essa cadeia de sentidos se faz imprescindível quando as correspondências tratam
de relações afetivas e familiares. Assim, são as cartas escritas por Jane e recebidas por
Dulce Vanini, nos idos de 1970:
Espero que todos estejam bem. Somente agora lhes pude
escrever e espero que me escrevam rápido mandando notícias de
todos e de tudo. [...] Escrevam-me bastante. Gostaria de receber uma
carta de cada um de vocês todos: irmãos, sobrinhos, sogros,
cunhados, pais, e companheiros, caso já tenha algum aí. (carta 02)
163
O Mário recebeu outro dia uma carta de Da. Maria em que
ela diz que não estão recebendo cartas. Eu tenho escrito sempre,
com muita regularidade. Recentemente escrevi a Magali, Cida,
163
Carta de Jane Vanini, não datada, assinada por Ana.
Jorginho, Dulce, mamãe, Lena e Nícia. Ainda não recebi resposta de
nenhuma dessas cartas. (carta 10)
164
Bem, Madrinha, vou ficar por aqui. Um grande abraço a
todos e escreva-me bastante, não sabe como fico ansiosa para
receber carta de vocês. (carta 14)
165
Há vários dias já escrevi a senhora, a mamãe e a papai e até
agora não recebi resposta de ninguém. Além disso se contam as
cartas que receberam de minha parte e se eu conto as cartas que
recebi de todos vocês, vão ver que tenho saldo a meu favor. (carta
16)
166
...recebi tua carta e logo logo vou escrever mais. Vou aproveitar a
carta do Sérgio para escrever um ‘bilhete’. (carta 19)
167
Receber uma carta sua é sempre um reconforto. [...] Escreva
logo avisando se recebeu esta ainda que seja somente dizendo: recebi
sua carta 23.01.73. (carta 24)
168
Diga a Jorginho que ainda não recebi a resposta da carta
que lhe enviei por último. A (carta) que a Cidinha disse que me mandará
tampouco chegou. (carta 25)
169
Faz tempo que não recebo nenhuma carta sua. Vou ver se tem
carta todos os dias e nada. (carta 27)
170
Finalmente recebi sua carta. Estava preocupada [...] Nestes
dias vou escrever a papai e mamãe. (carta 28)
171
Querida madrinha: Faz mais de um mês que lhe escrevi e até
agora não tenho resposta. Tomara que estejam todos bem e que
tenham recebido minha carta anterior e entendido tudo. (carta 30)
172
164
Carta de Jane Vanini, datada de 07.09.72, assinada por Ana.
165
Carta de Jane Vanini, datada de 19.10.72, sem assinatura.
166
Carta de Jane Vanini, sem datação, assinada por Ana.
167
Carta de Jane Vanini, datada de 21.12.72, assinada por Jane.
168
Carta de Jane Vanini, datada em 23.01.73, assinada por Jane.
169
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
170
Carta de Jane Vanini, datada em 25.05.73, assinada por Ana.
171
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
172
Carta de Jane Vanini, datada em 18.07.73, assinada por Carmem.
Nos trechos dessas cartas, nota-se a ansiedade de Jane. Primeiro, a reafirmação
dos laços familiares, sentimento próprio de quem está longe, afastada de suas referências
afetivas mais seguras e vivendo uma experiência social e política muito tensa. Segundo, a
dúvida sobre o itinerário de suas cartas: chegam aos respectivos destinatários?
Em todos os fragmentos aqui apresentados, estampam-se o sentido de tempo, os
laços afetivos e a busca declarada de uma validade das escolhas no espaço familiar. O
envio de correspondências a todas as pessoas da família, citando com freqüência os graus
de parentesco e nominação dos destinatários, expressa um sentido de “vida familiar” que
talvez seja capaz de reconstituir um universo já conhecido.
A carta é uma representação simbólica da vida, mas só adquire este sentido na
troca das correspondências, pois é na relação entre remetente e destinatários que se
processam as identidades das pessoas envolvidas. Essa operação de identidades acontece
na mediação dos assuntos que, por sua vez, estabelece o diálogo íntimo e espontâneo entre
os correspondentes. Ali está o sentido de ser necessário receber uma carta de cada um de
vocês todos: irmãos, sobrinhos, sogros, cunhados, pais, e companheiros, caso já
tenha
algum aí.(carta 02) Então, para Jane Vanini, cada carta significa recolocar-se como uma
pessoa da família, lutar pelo seu lugar e não ser esquecida. Nessa perspectiva, é dramática
a vida daqueles que se afastam e fazem da luta revolucionária uma escolha pessoal de
vida.
Não há fronteiras demarcadoras entre a vida pessoal e a luta, ao contrário, há uma
troca mútua de valores que, ao longo da vida ou no decorrer das lutas, vai sendo
construída, experimentada e incorporada. A individualidade das pessoas se atualiza
continuadamente as relações articuladas e combinadas nas dimensões do mundo
simbólico. É a mobilidade dos signos que codifica e internaliza a cadeia das sensações de
quem escreve, ao mesmo tempo em que as exteriorizam para os leitores de cartas pessoais.
A palavra escrita tem uma função libertadora na dimensão do imaginário e permite superar
desencontros e rivalidades. E, em particular, quando se trata de cartas familiares, cuja
força motriz é a iniciativa de escrever e a espontaneidade de acomodar a comunicação.
Então, não é Jane que detém a escrita das cartas, é a necessidade da escrita que a detém.
Há um visível gosto e um desejo quase compulsório de escrever a todos e, de
todos receber cada resposta. Essas correspondências são marcadas por um estilo próprio,
que corresponde a uma organização de assuntos que interessa mais a Jane que a outrem. A
idéia que exprime essa especificidade é a de que os textos estão quase sempre informando,
descrevendo, opinando e, raras vezes, respondendo algo.
Em todos os trechos, sobretudo os últimos, a militante Jane sinaliza uma
preocupação com a probabilidade de cessarem as correspondências. Essa particularidade,
constante nos seus registros, demonstra que ela sempre se coloca numa situação de risco, e
também revela uma afeição imensa que ela nutre por todos os entes queridos, construída
ao longo do convívio familiar. É o tempo reencontrado que não pode ser desfeito. A
eminência da interrupção abala a alma, uma vez que a carta continuada significa o
consentimento de si mesma. E em cada destinatário, a certeza do assentimento individual.
Percorrer a história de vida de uma militante de esquerda, suas ações políticas,
seus testemunhos e seus embates, leva à busca de uma outra indagação: a militância, sendo
tão intensa como se revela, que espaço e que tempo existem para a vida privada dessas
pessoas? Que vida pessoal tem uma militante? Que situações domésticas vive Jane
Vanini? Além da luta que registra, dos acontecimentos que narra, da exposição de suas
escolhas políticas que aparecem de forma plena e despojada, as cartas também mostram
aspectos comuns, banalidades talvez, que revelam uma outra Jane - a pessoa orgânica e
individualizada.
...Gostaríamos que vocês me enviassem algumas coisas, caso ainda
existem. Trata-se de minha japona azul, da bota forrada, da saia de
lã de xadrez escocês, japona do Sérgio, capa espanhola dele e alguma
blusa de lã, se por acaso houver ainda. (carta 02)
173
.
...Não pensem em comprar coisas para mandar-nos. Estamos bem, e só
pedimos as roupas porque a facilidade é muito maior tendo bastante,
mas não estamos passando frio, estamos bem. (carta 05)
174
Esses trechos acima selecionados e expostos mostram a disposição de Jane,
juntamente com seu marido Sérgio Capozzi, em fixar-se no Chile e recompor todas as
situações da vida cotidiana que se destroçaram com a perseguição policial militar no
Brasil, anos antes. Daí, a necessidade de conseguir vestuário e, em particular, aquelas mais
convenientes: as peças que protegem do frio.
Os reiterados pedidos de envio de objetos pessoais e, com maior freqüência,
peças do vestuário, apontam as dificuldades da vida material com que o casal chega ao
Chile. Essa interpretação é possível, se se considerar que uma boa quantidade de roupas
significa minimizar parte das dificuldades materiais da vida diária do casal.
Na deliberada intenção de conhecer mais a fundo a vida privada da militante Jane
Vanini, não se pode deixar de passear pelas cartas seguintes:
Meus queridos:
Ontem um companheiro conseguiu retirar as roupas da
aduana e me entregou. Foi uma alegria rever nossas coisas antigas, e
173
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
174
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
um prazerzão receber tantas coisas bonitas. As blusas feitas na
máquina pela madrinha são as mais lindas e bem feitas que já vimos. O
cachecol da Lena e o colete da mamãe são lindos de dar inveja a
qualquer um. A boina, a meia e as sapatilhas me fizeram muita falta
no inverno. Uma companheira me emprestou um cachecol que me
quebrou o galho porque comecei numa época a ficar com dor de
garganta pelo vento frio no pescoço. Agora já não tenho nenhum
problema desses, não é mesmo? Como não queria comprar muita coisa,
quis bancar a valente e agüentar o inverno com meias normais e foi
fogo, ou melhor, foi gêlo. Depois mesmo com as meias de lã daqui me
saíram savanhões nos dedos dos pés. Ficam inchados, vermelhos, às
vezes coçam muito, se aperta um pouquinho dói à bessa e pode até
ficar ferido. Como eu tenho má circulação sangüínea quando começou
o inverno comecei a criar savanhões, mas tratei em tempo e não me
deram muitos problemas. O pessoal aqui adorou o joguinho de
sapatilhas e colete. Vão copiá-los. O que sei que vou usar ainda nesta
época é a boina, pois já não faz frio com exceção de alguns dias. [...]
Uma coisa que me deixou chateada, porque sei que a madrinha vai
ficar chateada é que nenhuma das blusas que ela fez me serviu.
Ficaram muito grandes e serviram perfeitamente para o Mário. [...]
Essas 2 blusas, êle disse que vai usar somente para as grandes
ocasiões. (carta 13)
175
Agora é setembro de 1972. Pelos termos dessa carta, parece que a florada da
primavera também colore os tempos de Jane Vanini. As expressões remetem o leitor a um
cenário ímpar de satisfações plenas. Nem parece com o ocorrido há duas semanas antes,
quando os fatos políticos transportam-na para o tempo das incertezas. No instante em que
ela escreve essa carta, os conflitos entre grupos sociais de representações distintas e os
chilenos em turnos de vigilância, contra possíveis embates, estão do “lado de fora” de Jane
175
Carta de Jane Vanini, datada em 29.09.72, sem assinatura.
Vanini. O “lado de dentro” desfruta da comoção de reencontrar-se no drapeado de um
outro mundo - o seu mundo privado. Contudo, isso não significa que a vida de militância
de esquerda permite configurar os espaços do público e do privado distintamente. Pelo
contrário, ambos se entremeiam de forma muito intensiva.
Durante as experiências da luta revolucionária, os tempos e os espaços são
múltiplos e simultâneos, e nos quais as ações urgentes e necessárias fazem com que um
invada o outro sem licenças e sem constrangimentos. O reencontro com seu mundo
privado não acontece por uma escolha simples, mas por um momento circunstancial:
receber os pertences pessoais tão desejados. Nota-se que em todo o texto há um relevo
especial nas palavras que tentam qualificar os objetos. A alegria de rever coisas antigas e
um prazerzão de receber tantas coisas bonitas torna-se quase indescritível para expressar
a resignificação do valor afetivo que cada peça adquire.
Os espaços ocupados por: foi uma alegria..., coisas bonitas..., mais lindas e bem
feitas..., lindas de dar inveja..., o pessoal adorou o joguinho..., vão copiá-los..., usar
somente para grandes ocasiões..., são territórios que indicam superioridade, exaltação e
unicidade dos objetos. Não é que os materiais tenham necessariamente esses predicados,
mas Jane os têm com essas proeminências. Ela os percebe como únicos e os vê como
diferentes de quaisquer outros, porque ela sente e fala de sua significação e não de sua
utilização.
A prática da militância, atravessada pelos riscos, medos e fugas, leva os
militantes a abdicarem da normalidade de suas vidas, o que implica também numa perda
da convivência com os objetos do cotidiano e seu mundo simbólico. A sobrevivência, por
ser necessariamente inventada todos os dias, conduz a uma outra forma de perceber-se nos
mundos plurais em que cada pessoa encontra-se envolvida, sem, contudo desfazer-se da
cadeia identitária construída, em tempos passados, numa relação simbólica entre outros
objetos e outros indivíduos. É no distanciamento dessa identidade que o ex-militante
Herbert Daniel declara:
...A falta que os objetos deixam é como marca e símbolo: uma
necessidade de se continuar nas coisas que a gente faz [...] Aí a gente vê,
nessa ausência, a gente mesmo como era. Por isso vamos carregando
aparentes inutilidades vida afora: memória viva. Ao termos de
abandonar drasticamente nossos pequenos cacos perdemos contato
conosco mesmo, a vida passa a ser descontínua. Cacos.
176
Na busca de compreender a complexa imbricação entre significante e significado,
e mergulhando nos signos em que Jane deixa-se transparecer, os objetos são o seu
significante e vêm carregados de significados. O significante isolado não tem
sentido,
porém, na rede de relações que lhe é incorporado, produz múltiplos sentidos e irradia suas
significações.
Nesse encadeamento de múltiplos sentidos é que Jane afirma não haver desespero
em receber as coisas, mas um desejo de sentir-se ligada a todos vocês pela valoração que
vem junto a todas essas coisinhas sentimentais.
Na expectativa de que Dulce viajará ao Chile, Jane, pelas dificuldades materiais
em que se encontra, aproveita para anunciar que: ...estou mandando junto esta lista de
coisas que quero que a senhora traga para mim, mas apenas se existe ainda... (carta 16)
177
1. Aquela blusa azul de tricô-lã igual a vermelha que a
senhora mandou na encomenda. Aquela outra cor de cenoura.
176
ALMEIDA, M.H.T., WEIS, L. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao
regime militar, 1998, pp. 381-382.
177
Carta de Jane Vanini, sem data, com assinatura de Ana.
2. A sandália franciscana que eu tinha. As bolsas esporte
que estiverem por aí. Aquela cor de couro pequena, que eu sempre
usava, uma grande parecida um saco de levar no ombro, que foi a
última que comprei. ( É meia marrom com alguns desenhos).
3. um pijama de lã e uma camisola daquelas que a Da. Maria
me fez
4. Não me lembro bem, mas me parece que eu tinha um par
de luvas negras. Se a encontras por aí, pode trazê-la, tá?
5. Leite de colônia (isso eu não tinha, se der me compre, tá?)
6. Qualquer daquelas pantalonas que a mamãe e a Magali
estavam fazendo para mim e se der com algum retalho porque aqui se
usa bem comprida e creio que elas vão estar bastante curtas para
mim (além de folgadas porque creio que estou mais magra que quando
estava aí).
7. O meu biquíni se é que ainda existe. O cor de vinho, o
amarelo não.
8. Pelo menos 3 daqueles abridores de lata mais simples que
a gente usa aí no Brasil. Dos mais simples mesmo, que as vezes vem
até como brinde em alguns produtos. Os daqui são muito complicados
e não funcionam muito bem. E eu quero dar um a pelo menos 2 casas
amigas.
9. O meu fichário coberto de couro que o papai fez para
mim.
10. Semente de manga (umas 3)
13. Traga-me um grande abraço de todos, tá?
Conforme disse na carta anterior, esta era apenas uma lista
e não carta, para que a tivesse a mão e lhe fosse mais fácil juntar
tudo. (carta 17)
178
178
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
Um detalhe que chama bastante a atenção do leitor em boa parte das cartas de
Jane é a incidência de expressões como ...se houver ainda, ...caso ainda existam, ...se é
que está aí, ...que foi feito das nossas coisas e outras mais. São situações que podem ser
compreendidas de duas formas: a primeira diz respeito às coisas que sobraram e foram
devolvidas à família após a tomada do apartamento pelo cerco policial-militar da
Operação Bandeirante - OBAN
179
; e, por último, as coisas que ainda existem, ou que
alguém pode estar usando ou guardando. Guardar pertences pessoais de outrem é uma
forma simbólica de poder guardar pessoas, pois, mesmo ausentes continuam presentes.
Não há um contentamento em receber esses objetos apenas porque são pertences
pessoais, até necessários para a utilidade da vida individual, mas porque cada um deles
tem incorporado na sua essência, uma simbologia, pela qual, a vida ganha feições de
felicidade
e de prazer. Na relação que se dá entre quem envia e quem recebe os objetos, está a
significação das atitudes: são valores sentimentais refeitos, renovados, reeditados,
manifestados na ação fraternal, aceitação, carinho, proteção, segurança, afeto, acolhida,
entre outros, que se efetivam em cada peça que, de forma quase mágica, sai de dentro do
pacote de encomendas recebidas.
...Estou chateadíssima com a história da encomenda. Não sabe quanto
eu sinto. Estava louca para receber as coisas, não porque realmente
esteja precisando desesperadamente ou algo parecido, senão porque
ia sentir como que ligada a vocês por algo que me fizeram, por alguma
179
Órgão de repressão política, criada em 1º de julho de 1969 e comandada pelo II Exército, mas também
integrava militares da Marinha e Aeronáutica, Polícia Federal, polícias estaduais e outros organismos de
policiamentos. A eficiência de suas atividades de informação, repressão e controle político serviu de base
para criação de outros mecanismos de repressão na ”luta contra a subversão”, como se costumava chamar.
Sobre o assunto, ver: FON, A. C. Tortura, a história da repressão política no Brasil, 1979 -
ARQUIDIOCESE, de São Paulo. Brasil: Nunca Mais, 1985.
roupa antiga minha que viesse e todas essas coisinhas sentimentais.
(carta 08)
180
Nesses fragmentos, é possível ver, com os olhos da imaginação, as expressões de
deleite que o semblante de Jane debruça em cada gesto proferido diante de cada objeto
recuperado. Boa parte desses sentidos está nas mudas palavras, que ao falarem constróem
vontades, alimentam desejos, produzem emoções, articulam sentimentos e dão mobilidade
às atitudes e comportamentos de Jane Vanini e sua família.
É nessa densidade de signos que o abraço de todos, como item da lista de coisas,
não figura como o décimo terceiro objeto da lista, assim como todos os outros itens não
são apenas objetos de uso pessoal, são, sobretudo, afeições construídas na relação entre
Jane e todos. O olhar propositalmente dirigido, o toque de pele, o procedimento do outro e
até a empatia constróem para cada um, que compõe o todos, uma significação que tende a
ser direta, intransferível e singular. Portanto, tudo e todos, numa teia de significações,
constituem a cadeia relacional que dá sentido à vida, seja da pessoa comum, seja da
revolucionária.
É nessa dimensão de vida que Jane Vanini, endereçando uma de suas cartas à
família, que dirige-se aos Queridos todos, fazendo uma declaração de amor:
Tenho muitas saudades de todos vocês. Eu os quero muito e
esse amor que lhes tenho é multiplicado quando vejo alguma criança
como os sobrinhos ou os companheiros mais velhos com a idade de
meus pais, ou de meus irmãos e irmãs. Espero que algum dia
estejamos juntos e livres mas se não alcançamos, não importa tanto,
importa realmente que a sociedade que legamos aos nossos ‘herdeiros’
180
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
possua muito de nós mesmos, do nosso esforço, de nossos ideais, de
nosso amor. (carta 12)
181
Aqui, justifica a sua ausência e a separação física entre ela e todos, com a luta
pela liberdade, e espera ter o reconhecimento de todos, porque a essência do convívio em
sociedade está na ação política, na convicção e na conduta que cada pessoa, enquanto
viver, é capaz de emprestar ao mundo.
O último enunciado do trecho acima exposto dá visibilidade ao campo das
emoções e das sensações incorporadas tanto à militante quanto à pessoa individualizada de
Jane Vanini: a concepção e a vivência do amor fraterno que também se transforma em
fraternidade política.
Enquanto isso, nas ruas de Santiago, enfrentam-se os combatentes. De um lado,
os militantes de esquerda e os simpatizantes do governo unem-se nas estratégias e
disseminam-se pelos diversos espaços políticos na defesa do projeto socialista chileno;
no
outro campo, estão as forças opositoras que se articulam contra um governo legitimado,
mas que suas ações invertem a lógica social até então vivida. Os conflitos tendem a se
intensificar porque os dois grupos acreditam em suas aspirações e em suas táticas de luta.
Jane Vanini é uma militante que age o tempo todo. Seja trabalhando para
assegurar sua sobrevivência pessoal, na luta política para a construção do socialismo
chileno, nos grupos voluntários que atuam em creches, escolas, ruas, armazéns, na vigília
das fábricas e instituições públicas, seja nas lides domésticas, ela é uma pessoa de
constantes ações. Pelo conteúdo das cartas, percebe-se os múltiplos arranjos de vida
construídos por ela nos espaços público e privado, os quais dão conta de ajustar a
181
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
militante, a companheira, a voluntária, a trabalhadora e a mulher que cozinha, costura,
fotografa-se e, em especial, não abdica de sua singularidade feminina.
É vivendo essa multiplicidade de ações que Jane encontra apoio para a vida, ao
buscar a ajuda material da família e, por isso, situações domésticas tão particulares
aparecem nas correspondências com sua irmã:
...Como vai a máquina de tricô? Quero receber algum presente feito
pela senhora quando a madrinha vier. Aqui usa tudo muito apertado e
curto no caso de blusa. Além disso creio que estou mais magra do que
antes. Como diria a Magali, estou elegante. [...] Mandem-me receita
de bolo de queijo e de algumas coisa mais tá? (carta 07)
182
Já vimos que é tremendamente complicado tirar a
encomenda [...] não vou querer que vocês fiquem gastando tanto nas
roupas como nos fretes para mandar-me coisas. A roupa de lã ainda
tem sentido porque o frio aqui é de lascar... (carta 08)
183
...Quando a minha madrinha vier me tras aquelas (roupas) que
por ventura algum de vocês já começou a fazer... Quando a aeromoça
vier a Chile, peça-lhe que traga um vidro de leite de colônia que me
faz uma falta tremenda...(carta 10)
184
Pedi a madrinha que traga aquele fichário que o senhor me
encadernou. Tomara que ainda esteja por aí. Não quer me fazer uma
alpercata ou um tamanco daqueles que o senhor me fazia no sítio?
Gostaria bastante. (carta 23)
185
Soube que o seu Zé vem visitar o Sérgio. Se der peça-lhe
que traga alguma coisa dos meus discos de música brasileira, livros
[...] Gostaria que me mandasse aquela saia negra de crochê que eu
182
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
183
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
184
Carta de |Jane Vanini, datada em 07.09.72, assinada por Ana.
185
Carta de Jane Vanini, sem data, assinada por Ana.
tinha se é que está por aí [...] Não te esqueças das minhas receitas.
(carta 28)
186
No vai-e-vém de cartas, que incluem pedidos e envios de objetos de uso pessoal,
nota-se um empenho muito grande de Dulce que, embora correndo todos os riscos de
perseguição e censura, se revela na relação de cumplicidade. Em, ... a encomenda chegou,
mas ainda não pude retirá-la. São tantos os papéis que se necessita que é quase
impossível consegui-los todos. Hoje um amigo ia ver se resolvia tudo para mim...(carta
12), percebe-se que para Jane, a condição de ser estrangeira, clandestina, amparada por
organizações partidárias nem tão consolidadas e vivendo num país sacudido por muitos
conflitos políticos, impõe-lhe algumas limitações, e por isso observa-se uma certa
lentidão para estabelecer a normalidade da vida.
Como qualquer outra pessoa, um dos fatores que muito incomoda Jane é a
dependência de alguém para resolver situações inteiramente particulares. É o caso
da
retirada das “encomendas” que lhe chegam ao Chile, seja pelo correio ou por empresas
aéreas. Por mais que possa parecer solidariedade dos companheiros de luta, a ação da
retirada dos objetos, além de importunar a vida do outro, o outro lhe importuna por
intrometer-se em sua privacidade, ao testemunhar o trânsito de suas intimidades.
Outro dia escutei uma música argentina, com um cantor
argentino chamado Piero é é muito bonita. Quando puder vou comprar
o disco e quando puder vou enviarte. Tem uma parte que diz: Viejo, mi
querido viejo... e quando a escutei me lembrei do senhor. (carta 15)
187
O senhor não me escreveu se chegou a fazer o abajour que
eu expliquei naquela carta. Esse abajour é para por em lâmpadas que
186
Carta de Jane Vanini, datada em 12. 06. 73, assinada por Ana.
187
Carta de Jane Vanini, datada em 31.10.72, assinada por Ana.
ficam penduradas no teto. Em geral se faz de cores que combinam ou
com a colcha ou com os móveis, ou com a cortina, dependendo da casa
e da peça onde se vai colocá-la... (carta 28)
188
Aqui, percebe-se as dificuldades de Jane e Sérgio viverem uma vida “a dois” num
mundo em que faltam territórios de referências mais firmes. A tensão política que
experimentam atravessa tanto a vida pública quanto a privada. Assim, organizar essa vida
comum, em meio às tempestades da luta revolucionária, pelo visto, é uma condição difícil
e frágil. Nessa perspectiva, a lista de coisas que compõe uma de suas cartas, as peças de
roupas e outros pertences pessoais, incluindo o abajour, representam momentos
importantes da sobrevivência pessoal.
A figura do abajour parece ganhar um destaque especial. Ele não é aquele em que
se põe as lâmpadas que ficam penduradas no teto, combinando com o estilo do ambiente,
mas o adorno que veicula e revigora a afeição entre pai e filha. Ele, o abajour, é também
a
busca da bênção do Viejo. Na avidez do afeto familiar e na arte do argentino Piero, Jane
reencontra seu velho e querido pai. O velho artesão que faz encadernações, abajour,
fichários, alpercatas e outras coisas mais.
É impossível separar o tempo da ação política e o tempo da ação existencial.
Ambos, não apenas se cruzam nas práticas, invadem-se simultaneamente. São vidas
definidas num tempo que confina no mesmo espaço, fisionomias públicas e privadas, a
pessoa e a militante. É com esse caráter que as cartas apresentam mudanças bruscas de
assuntos, misturando humor crítico, solicitações, conselhos, sentimentos afetivos, relações
familiares e outros aspectos individuais da sobrevivência e da vida pessoal.
188
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
As palavras só ganham sentido quando articulam os signos e, por conseguinte,
instrumentalizam, pela comunicação, o exercício simultâneo das práticas. A escrita é a
significação dos desejos e só assim é que as cartas de Jane Vanini produzem o movimento
das atitudes comportamentais, dando visibilidade às práticas cotidianas.
Minha carta será bastante breve. É só para contar-lhes que
ontem nevou à bessa pela noite e pela primeira vez vimos a neve.
Ficamos em um apartamento bastante alto vendo a chuva e quando se
amontoou um pouco de neve na rua nós descemos para brincar. Nos
atirávamos neve, corríamos, deslizávamos nela e tudo. Nem sentíamos
o frio com exceção das mãos e dos pés que estavam molhados e
gelados. Tudo ficou branquinho, muito bonito. Tivemos sorte de que
nevasse no primeiro ano que passamos aqui. No sul é claro que sempre
neva, todos os dias, mas aqui é bem difícil. Não vejo á hora de que
limpe um pouco o tempo para ver a Cordilheira que deve estar toda
branca. Não imaginam o bonito e divertido que é estar no meio da
chuva de neve. Hoje faz um frio danado. (carta 04)
189
Essa carta é datada pelo inverno chileno. Para Jane, uma moça do interior do
Brasil, o momento é oportuno e singular: o acesso às belezas naturais dos povos andinos,
cujos símbolos são a Cordilheira e a neve. O deslumbramento com a paisagem que
testemunha e a necessidade do registro do que vê assinalam conhecimentos sobre outros
mundos e outras culturas. Dessa forma, é que a carta será bastante breve, enquanto que a
escrita das impressões parece eternizar a pureza dos sentidos que, por sua vez, tornam
imensuráveis as sensações.
Jane está em Santiago e se encanta com o lugar. Nos primeiros meses de 1972,
apesar da neve e muito frio, o tempo no Chile é agradável e, de presente aos olhos, vê-se a
189
Carta de Jane Vanini, sem data, com indício de assinatura de Ana.
Cordilheira dos Andes, também para ser absorvida pelo espírito de quem a contempla. Em
suas palavras, ela quer compreender aquele lugar que tem uma temperatura média acima
dos trinta graus centígrados e onde chove pouco. Até parece contraditório, a presença da
neve e o clima tão seco que a pele da gente fica totalmente seca e estou com ela toda
rachadinha, é como se tivesse uns 50 anos (exagerando um pouco). (carta 07). A neve é
um espetáculo que a natureza presenteia os humanos, e conduz todas as idades à pureza da
infância. São os encantos de criança que se manifestam em Jane ao conhecer o inverno
chileno e assim, seduzida, relata seus prazeres aos familiares.
Se não houvesse nenhum registro cronológico nas correspondências em análise,
certamente alguns detalhes reveladores da intimidade daquela militante marcariam os
traços das temporalidades vividas. Um desses detalhes, que chama a atenção de qualquer
leitor das cartas, é o pedido de envio de dois objetos que emitem a significação de seu
tempo: o leite de colônia e o rádio de pilhas.
Os anos 60, como se convenciona chamar, são essencialmente o tempo das
cidades, que significam, em especial, o progresso e a modernidade. Elas, as cidades, são os
teares das relações políticas, sociais, econômicas, religiosas e culturais das comunidades
em geral. E as relações pessoais são, em grande parte, veiculadas por emissoras e
aparelhos de comunicação. No Brasil, ganham destaques especiais a televisão e o rádio.
Este último alcança uma popularidade pela praticidade, utilitarismo e fácil aquisição, pois
acomoda-se em qualquer lugar, toca música, traz o noticiário, transmite o jogo de futebol,
estabelece o correio sentimental e veicula compromissos entre as pessoas, além de tornar-
se acessível pelo seu valor monetário relativamente baixo.
Todos esses atributos fazem do rádio um objeto de desejo e necessidade. É no
conjunto desses aspectos que Jane, na possibilidade de receber a visita de Dulce, lhe pede
um presente:
E por falar em presentes vou pedir um, tá? Aliás, como deve
ser caro, façamos um negócio: a senhora traz um rádio a pilha ou
elétrico ou que possa ser usado de uma outra forma que eu aqui te
pago o equivalente em coisas que a senhora queira levar, tá bom? Os
rádios bons aqui, com ondas curtas etc., são importados e saem muito
caro e creio que já nem se importam para economizar divisas. (carta
29)
190
.
É importante observar que o depoimento já nem se importam para economizar
divisas, não significa um ato de negligência com a economia interna do país, mas uma
questão menor se se considerar a fragilidade do momento político que vive o Chile. É
começo de julho de 1973 e o alerta de 29 de junho último, quando os tanques blindados do
Exército e alguns militares insistem em levar a cabo uma tentativa de golpe de estado,
aponta para a exaustão dos limites máximos dos conflitos, em breve.
Dentre todas as funções mencionadas sobre o rádio, o presente esperado por Jane
significa também e, sobretudo, uma sintonia direta com a rádio da Unidade Popular, que
transmite, na íntegra, as falas oficiais e os comunicados do presidente chileno Salvador
Allende. Por outro lado, a ação de presentear, entre outras, leva a perceber que para Jane, a
família representa o vínculo direto com o mundo do consumo.
Entre as décadas de 1960 e 1970, a população brasileira é embebida pelos ares da
modernidade, cujo formato é definido pela incorporação de novos padrões de consumo à
vida cotidiana das pessoas. Desde o surto industrial do Estado Novo, passando pelo
190
Carta de Jane Vanini, datada em 06.07.73, assinada por Ana.
desenvolvimentismo de JK e chegando ao “milagre econômico”, o Brasil desponta na
América Latina como nação que se moderniza e marcha para o progresso. Fabrica quase
tudo: aço, petróleo, estradas, eletrodomésticos, aviões, alimentos, medicamentos,
vestuário, calçados, artigos de higiene e até cultura. As fábricas passam a compor os
parques industriais e o comércio se moderniza, trazendo o supermercado e o shopping
center, como ícones dessa época.
Em meio a todas essas atualidades, o cuidado e a exposição gradativa do corpo
aparecem com especial destaque. As fisionomias masculinas e femininas passam a ter
contornos mais delineados. Os concursos de beleza vão definindo um padrão estético para
a inclusão social do corpo. Entre outros aspectos, os homens inovam-se com o uso do
desodorante, a loção, o creme e a máquina de barbear, pintura dos cabelos, cabelos
compridos, barba grande e bonés. Já as mulheres passam a exibir o corpo com mais
vaidade e menos censura: inventam e incorporam hábitos como o absorvente íntimo,
modelação e pintura das unhas dos pés e mãos, uso de rouge, cremes de limpeza e de
hidratação do corpo, tratamento e modelação dos cabelos, incluindo o manuseio de objetos
como escova, bobs e secador, cremes alisantes e tinta para colorir e descolorir os cabelos.
É na condição de personagem de seu tempo, vivendo essas inovações e
incorporando parte desses hábitos, que Jane pede para que Dulce lhe faça chegar, pelas
mãos da aeromoça, um vidro de leite de colônia que me faz uma falta tremenda...(carta10).
Esse pedido é feito em setembro de 1972, momento em que ela convive com Tereza Motta
e utiliza-se do seu nome para viabilizar a retirada da encomenda.
Nessa mesma avalanche de “novidades” para produzir a personalidade do corpo,
as vestimentas revolucionam os costumes da época. Os homens começam a adotar roupas
mais esportivas, como por exemplo, camisas mais coloridas, camisetas, bermudas, shorts,
calça jeans e o tênis que, quase obrigatoriamente, passam a fazer parte do guarda-roupa
moderno de homens e mulheres. O mundo feminino incorpora com mais rapidez alguns
modelos de vestuário, cujos aspectos espantam olhares conservadores e afrontam hábitos e
valores que, até então, compunham a moral e os bons costumes. A alusão recai mais
fortemente em dois símbolos que demarcam os territórios femininos da mulher: a mini saia
e o biquíni. Além dessas peças, a calça comprida, camiseta, shorts, roupas transparentes
sem anágua ou coladas ao corpo, que marcam curvas e linhas, juntando-se aos decotes
ousados, assinalam um estilo revolucionário que representa a ruptura com os usos
tradicionais.
Na intimidade com as palavras, Jane Vanini apresenta as marcas de sua
individualidade e com isso constrói a imagem de si mesma. Entre outros aspectos, ela
serve-se da linguagem epistolar para pronunciar e firmar, de maneira espontânea, sua
condição e natureza feminina, revelando as vaidades e os prazeres pessoais. Num de seus
registros, uma ênfase muito particular para uma peça de roupa: a saia.
A saia negra de crochê (carta 28) lhe faz muita falta num guarda-roupa um tanto
desfigurado, mas é uma saia escocesa que parece polir sua estima: Em relação ao envio de
roupa...[...] E aquela saia xadrez escocesa que eu tinha, muito bonita, que comprei no
Mappin, enviesada e que eu vestia muito, que foi feito dela? A encontraram? Essa eu
gostaria que me mandassem se está por aí...(carta 04). Ao que parece, Jane vê-se bonita
vestindo essa saia. A descrição dos detalhes xadrez, bonita, enviesada e de uso freqüente,
revela um estilo de apresentação em público e o gosto pela sua definição estética. É um
traje que emite sentidos de afeto, bem-estar e elegância feminina. Tanto é, que à
companheira do convívio diário convém presenteá-la com uma peça contendo
características similares:
Quero pedir-lhe mais um favor, que quem sabe saia um
pouco caro, mas no caso vale a pena. A companheira com a qual
vivemos está louca por uma saia de xadrez escocês, mas não gostou
de nenhum dos que encontramos, assim é que se virem por aí um
escocês com bastante cores diferentes e bonito, não precisa ser de
lã tão grossa como a minha, pode ser de lã um pouco mais fina, por
favor, comprem um corte para ela e mande para cá, tá. Quando
vierem por aqui eu a pagarei. Acho que uns 60 cm dá e sobra. (carta
04)
191
Percebe-se aqui o imperativo dos territórios femininos, os quais sugerem pensar a
sensualidade da mulher. Seja curta ou comprida, a saia é um objeto que, para a sociedade
latino-americana, remete sua significação à feminilidade, à estética e ao erotismo do
corpo. É muito em função desses signos de modernidade, incorporados à vida diária, que
Jane, ao tratar de uma possível viagem de Dulce ao Chile, observa e descreve o estilo
feminino da mulher chilena:
Aqui usa tudo muito apertado e curto no caso de blusa.(carta
07) ...Aqui se usa basicamente calça comprida para tudo: trabalho,
cine, passeios, festas boates, etc.[...] em janeiro o tempo é mais
quente aqui e o verão é realmente de lascar [...] os modelos aqui são
bonitos e tem um corte bonito também. [...] Aqui não se usa sapatos
de salto alto, usa bastante sandálias no verão e uma bolsa esporte
sempre... (carta 16) ...Aqui existem muitas coisas típicas bonitas,
principalmente de lã, coisas feitas 1ª mão como bolsas, ponchos,
blusas, meias, etc., vai poder levar presentes para todos. (carta
29)
192
191
Carta de Jane Vanini, sem data, com indício de assinatura de Ana.
192
Carta de Jane Vanini, datada em 06.07.73, assinada por Ana.
Na leitura de alguns registros de Jane Vanini, ao que tudo indica, há uma
sensação de que o Brasil é um país mais sintonizado com a modernidade, pois no Chile os
produtos que são relativamente bons e baratos são roupas e calçados. A roupa de lã ainda
tem maior produtividade, não por ser moderna, mas porque o frio é muito intenso, como
classifica Jane, é de lascar. Estas percepções estão vinculadas aos discursos
propagandísticos e às praticas da modernidade, cujos arranjos marcam severamente a
superioridade econômica, modelam o padrão de vida material e estabelecem a escalada do
progresso, classificando as nações e os grupos sociais a partir dos inovadores hábitos de
consumo e comportamentos.
No seu conjunto, as cartas são lugares que potencializam o exercício pleno das
liberdades múltiplas, onde a individualidade cria e recria suas tramas íntimas e assim
regula suas relações singulares de sociabilidade. São esses espaços singulares e
libertadores que produzem os tempos dos desejos e dos prazeres pessoais. Desejo de ver e
de estar junto dos familiares: ...Que bom. Vai ser fabuloso encontrar com alguém de
vocês. Alguém querido que represente aos demais queridos...(carta 15). Esse alguém é
Dulce que não substitui nenhuma outra pessoa, mas para Jane ela reúne em sua figura o
sentido completo de família e o significado de solidariedade.
É também o lugar em que Jane pode dar e receber presentes, sem que essas trocas
passem pelo terrível julgamento de “desvios burgueses”. Daí momentos de prazer que se
realizam em ... Já tenho um presente. Usei umas vezes, mas resolvi guardá-la agora para
te presentear quando chegar, porque senão não poderei te dar nenhum presente, para
variar, quase sempre estou dura. (carta 09). Esses fragmentos desenham as
territorialidades que configuram o particular e o público.
Mesmo com todas as singularidades políticas que o Chile apresenta, em que o
sonho revolucionário enxerga com nitidez a possibilidade de ser construída uma pátria
socialista, a militante Jane Vanini deixa escapar as significações de sua identidade
nacional. Saber fazer a feijoada é o usufruto de uma “identidade brasileira”, porque o
costume de degustar e consumir feijoada é especificidade brasileira: ...Às vezes quero fazer
algum bolo ou comida brasileira e não sei nenhuma receita. A única coisa que aprendi a
fazer (e muito gostosa) é feijoada. Só faltam a couve e a farinha que aqui não existe, nem
conhecem. (carta 28) Juntando-se a isso, nessa mesma carta, quando Jane diz:...Mande-me
uma garrafa de pinga, tá? Isso não existe aqui, porque ainda não dá cana-de-açúcar, há
uma declaração de prazer aos costumes, às tradições e aos hábitos que já são incorporados
a suas vivências, como parte do seu mundo simbólico.
A feijoada, mesmo faltando a couve e a farinha, as sensações de gosto e de cheiro
das frutas, o sabor e o aroma da pinga, são coisas muito singulares de uma gente ainda
mais singular - a “brasileira”. A saudade do bolo de queijo e de outras coisas mais (carta
07), e as lembranças da degustação do doce de goiaba que Jane saboreou em São Paulo
(carta 15), revelam que ela continua vivendo o Brasil no Chile, como mostra os recortes a
seguir:
Parece que a madrinha vem mesmo, não é? Fale com Marise
se me consegue um doce de goiaba como aquele que ela mandou para
mim quando eu estava em São Paulo. Sabe que aqui não tem goiaba
nem manga. Tem outras frutas que são diferentes das frutas
brasileiras, e as vezes a gente se lembra de alguma daí e sente
saudades. (carta 15)
193
193
Carta de Jane Vanini, datada em 15.10.92, assinada por Ana.
...Mande-me urgente a receita de torta paulista (aquela com
bolachinha e creme de leite nestlé, leite condensado, etc., de Caruru
com angu, se sabem e qualquer outra. Principalmente da torta paulista
que quero fazer nos próximos dias se possível para uma companheira,
tá?... (carta 17)
194
Tenho saudades da manga, do caju, do mamão, porque aqui
não existe essas frutas. [...] Temos em compensação a chicha de uva,
de maçã, que é deliciosa, mas são coisas diferentes. (carta 28)
195
O trabalho de Denise Rollemberg,
196
aponta a crise de identidade que vive os
exilados nos países que os recebem. Diante das adversidades que surgem na vida de
muitas pessoas que saem do país, a continuidade da militância política por meio do
ingresso em
outra organização de esquerda, dá um sentido à vida de quem acredita num projeto
revolucionário. É o que acontece com Jane Vanini, sobretudo, por significar uma
perspectiva maior de vitória da luta.
Em compensação, o Chile tem chicha de uva, de maçã, que é deliciosa, mas são
coisas diferentes (carta 28) significa que são coisas chilenas que, até pouco tempo antes,
ela não conhecia e por isso não se incorporam com a mesma simbologia. O tempo verbal
temos, que completa a construção da frase, pressupõe-se pensar que Jane adota o Chile
como sua pátria, mas a segunda, pois as sensações de gosto, sabor, aroma, textura de
bolos, doces, frutas, bebidas, tecidos, produtos de beleza, objetos, etc., exprimem sua
identidade brasileira. Todos esses aspectos mostram que Jane está no Chile, contudo não é
uma chilena.
194
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura.
195
Carta de Jane Vanini, datada em 12.06.73, assinada por Ana.
196
ROLLEMBERG, D. Exílio: refazendo identidades, 1999.
Nesses trechos, aparece o caráter ambíguo da identidade da militante refugiada.
Há uma sensação de estar fora de seu lugar. A idéia de diferente está escondida e revelada
na maneira de dizer, de sentir e de conceber as situações que dimensionam a vida
cotidiana no Chile. Presentes em vários depoimentos, essa é uma característica recorrente
que se incorporam às experiências de muitos militantes exilados ou refugiados que Denise
Rollemberg aponta como sendo:
...a história da desorientação, da crise de valores que significou , para
uns, o fim de um caminho e, para outros, a descoberta de outras
possibilidades. É a história do esforço inútil e inglório para manter a
identidade, mas também a história da sua redefinição e reconstrução,
que se impuseram ao longo das fases do exílio e continuaram, para
muitos, mesmo depois da volta ao Brasil.
197
Uma outra situação que tem uma importância fundamental é a aquisição de
documentos de identidade. Na vida clandestina ter um nome fictício, naquela ocasião,
significa a tentativa de continuar revolucionário, além de minimizar os controles
institucionais a que são submetidos esses estrangeiros em condições tão especiais. Pelo
apoio e segurança que representa, Jane Vanini, pode solicitar da família, por várias vezes
até insistentemente, seus documentos:
...necessito que a senhora tente conseguir o máximo possível de nossos
documentos. Fotocópia, o que for possível. Creio que em algumas das
pastas de cartolina que havia em casa ou na casa de Da. Maria havia ou
fotocópias do título, da identidade, etc. ou o negativo dos mesmos.
Qualquer um serve. Se não conseguir, a senhora tente conseguir nos
colégios onde estudei ou prestei exame, no colégio Estadual de São
Paulo por exemplo, eles tem a fotocópia da identidade e me parece que
do título também, peça emprestado, explique que eu perdi os meus e
197
Ibid, p. 40.
preciso tirar outros e a fotocópia ajudaria, comprometa-se a devolver,
mostre seus documentos para provar que a senhora é minha irmã,
enfim faça o possível para conseguir uma fotocópia e me mande com a
máxima urgência possível. (carta 20)
198
...pedi faz uns dias e também por telefone que nos enviassem nossos
documentos: fotocópia ou negativo que devemos ter por aí ou que é
necessário que o peçam emprestado nas escolas, sei lá. É muito
importante que mandem o mais rápido possível, principalmente a
identidade. (carta 21)
199
Enquanto os documentos do colégio, todos tem que ter firma
reconhecida. Realmente não tem problema se a senhora vai ao Colégio
Estadual e pede para ver a pasta com meus documentos e copiar
os
dados. Diga que eu estou viajando e a senhora tem que preencher um
formulário para um concurso qualquer, de escola ou de viagem, ou
qualquer coisa e não tem os meus dados e aí é o único lugar onde a
senhora pode vê-los. (carta 22)
200
Creio que a única solução dos dados da CI seria buscar nos
meus papéis que sobraram e em alguns que estão na casa de Da. Maria,
em uma pasta, num armário que existe no antigo quarto de estudos do
Sérgio [...] O fogo no Colégio Estadual quer dizer que tampouco a
senhora conseguirá meu diploma? Necessito disso também, se bem que
não muito urgente. Tudo deve vir com firma reconhecida. Vou ver se
me lembro de algum outro lugar onde pode haver esses dados que
necessito. Enquanto isso, busquem milímetro por milímetro na casa de
Da. Maria. (carta 25)
201
198
Carta de Jane Vanini, datada em 30.12.72, assinada por Ana,
199
Carta de Jane Vainini, datad em 16.01.73, assinada por Jane.
200
Carta de Jane Vanini, sem datação, com assinatura de Ana.
201
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
Nota-se que há uma necessidade de restaurar a normalidade plena da vida,
recuperar perdas da vida material, social, intelectual e profissional. Nas investigações que
faz sobre aspectos da vida clandestina de militantes de esquerda, Denise diz que a
necessidade de portar documentos significa a materialização da identidade, pois “os
documentos definiam aspectos essenciais do dia-a-dia, a começar pela própria permissão
para se estabelecerem, trabalharem, terem direito à saúde, moradia, alimentação, etc.”
202
É certo que o Chile, até o golpe de estado em setembro de 1973, por ter um
governo de alianças que congregava partidos políticos de esquerda, não só acolheu muitos
brasileiros exilados e refugiados, como também dispensou um tratamento diferenciado de
outros países inclusive socialistas. Um exemplo muito forte que marca a vida de
pessoas
clandestinas que vivem no Chile entre 1970 e 1973, é o reconhecimento da nacionalidade
chilena aos filhos de brasileiros que por lá nasceram. A falta de documentos, antes de
tudo, impede as pessoas de locomover-se e negar a expedição oficial de documentos é uma
forma de repressão e controle que as ditaduras exercem sobre os militantes nacionais.
Numa outra perspectiva, essa condição bifurcada entre ser estrangeira e ser
revolucionária denota que a militância de esquerda, em sua essência, produz a
superação do conceito tradicional de nacionalidade, uma vez que a concepção da luta
revolucionária incide sobre a libertação dos povos esmagados pelo sistema capitalista. Isso
porém não significa a negação da nação, mas a afirmação desta, com base numa
construção da idéia de transnacionalidade, ou seja, uma multiplicidade de práticas políticas
e sociais, cujo movimento de suas ações está para além da nação.
202
ROLLEMBERG, op. cit. p. 60
Registro Fotográfico: entre a sedução e a memória
Embora o foco da investigação seja o conteúdo de cartas pessoais incorporadas à
vida de militância política, nota-se que no espaço das correspondências a referência sobre
fotografias é marcante, significando perceber que o registro fotográfico, mais que um
testemunho de um instante, é a produção de um discurso que também é parte da vida de
Jane Vanini. Um discurso sobre si mesma e sobre outras pessoas, pois a fotografia
incorpora um sentido de direção e referências sociais, especialmente, porque os
fragmentos registrados possibilitam informar ações e relações entre pessoas, espaços e
temporalidades.
Nesse ponto, as fotografias estão pensadas como partes indissociáveis das cartas.
O registro de espacialidades e temporalidades, que traz a fotografia, permite construir
múltiplos olhares que penetram nas possíveis escolhas das imagens. Os enunciados dessas
imagens são produtores de signos não-verbais que ajudam a compreender e reatualizar o
passado no presente. Elas, as imagens, são também portadoras de códigos de representação
que revelam comportamentos e experiências sociais. Ao trabalhar com mensagem
fotográfica, Mauad propõe cinco categorias denominadas de espaços. São eles, o
fotográfico, o geográfico, o espaço do objeto, o da figuração e o das vivências.
203
Nessas
categorias, encontram-se conteúdo e expressão, configuração física dos cenários,
dimensões
e valorações simbólicas, relações que estruturam o campo das significações e as atitudes
humanas conflituosas ou harmônicas.
Olhando dessa forma, há de se considerar que a fotografia é uma construção de
imagens que pode produzir mensagens e interpretações das imagens que registra.
E minhas fotos e documentos? Se puder mande algumas
fotos minhas e documentos, aquelas que eu tirei no sítio, de calça
comprida, de chapéu, às vezes com revólver na cintura, uma que eu
tenho sentada no antigo porto da antiga casa do Cabaçal, perto da
figueira, olhando o rio e alguma outra nesse estilo. Me lembro que
tirei algumas na lage. Mande-me todas que puder tiradas no campo.
Na cidade não me lembro agora de nenhuma que eu gostasse. Bom,
aí, tá? Fiquei contente em saber que a senhora nos mandou uma foto
203
MAUAD, A. M. S. A. E. O olho da História: análise da imagem fotográfica na construção de uma
memória sobre o conflito de Canudos, 1993. pp. 29/39.
de toda a turma. Mandem mais, quantas puderem. Tenho uma saudade
louca de vocês. (carta 09)
204
Esse recorte da carta enfatiza bem a capacidade do registro fotográfico em
construir imagens e disponibilizá-las para diversas interpretações. Os detalhes das fotos
que Jane expõe, tais como sítio, chapéu, revólver na cintura, antigo porto, figueira, rio, são
autênticas marcas da vida campestre. É o estilo mais “rural”, afastado do consumo e da
urbanização das cidades.
Esses termos também revelam a rede de referências familiares. Uma referência
singular, individualizada e própria de Jane Vanini, para as pessoas que convivem com ela
nesse momento e compõem suas referências no Chile. Os aspectos que constituem os
cenários dessas fotografias testemunham sua origem, as relações familiares e as condições
de vida material, por isso a ênfase para mandem-me todas que puder tiradas no campo.
Numa outra abordagem, é possível afirmar que a fotografia, na condição de
representar a presença da pessoa ausente, tem a força de poder recompor o núcleo familiar,
imprimindo em si mesmo o sentido de unidade. A necessidade de enviar e de querer
receber muitas fotos e de todos, é um traço marcante na reconstituição do convívio
familiar tanto para o fotografado, quanto para o receptor, embora isso não resolva os
conflitos que porventura existam. Neste caso, para o receptor, a fotografia passa a
documentar os aspectos da vida pessoal e social do fotografado e assim, o olhar torna-se
mais penetrante nas particularidades do registro que reúnem indumentária, semblantes,
expressões corporais, aparências, além de vários outros detalhes dos cenários congelados.
204
Carta de Jane Vanini, sem data , com assinatura de Ana.
O trecho acima selecionado traz uma outra singularidade da vida pessoal de Jane
Vanini: o gosto pela fotografia. A adoção da luta revolucionária, que parece ser a face
mais intensa de sua existência, não lhe retira o prazer de fotografar-se, mesmo porque o
registro fotográfico é um artifício que possibilita criar várias interpretações de realidades,
tanto para o retratado quanto para os receptores.
No consentimento ao ato de fotografar-se, que de maneira geral inclui propósito e
intenções, as pessoas são tomadas por momentos de satisfação, especialmente quando são
retratos de família. É também a vontade de ver construída a imagem de si mesma,
fundamentando-se na idéia de que “a fotografia tem sua origem a partir do desejo de um
indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em
determinado lugar e época”.
205
Analisando álbuns de família, Mírian Moreira Leite afirma a regularidade com
que as pessoas se permitem fotografar, considerando a forma, o ritmo, a estética, o
significado e a satisfação psicológica que o registro fotográfico proporciona. Nessa mesma
direção, ela aponta como motivos de satisfação do registro os seguintes aspectos: “a
proteção contra o tempo, que torna a fotografia um substituto mágico do que o tempo
destruiu; a comunicação com os outros e a expressão de sentimentos; a auto-identificação,
o prestígio social conquistado pela proeza técnica, pela realização pessoal ou pela despesa
ostentatória; a distração ou jogo e/ou a evocação da memória evanescente”.
206
Aqui é importante ressaltar que Jane Vanini incorpora o hábito e o prazer de ser
retratada, o que significa uma marca nos hábitos de consumo da família burguesa,
produzindo sentido de inclusão social, pois não é qualquer família que pode fotografar os
205
KOSSOY, B. Fotografia e história, 1989, p. 22.
206
LEITE. M. M. Retratos de família, 1973, p. 87
seus momentos. Seja na infância, nos carnavais, nas festas de aniversário, adolescência,
formaturas, desfiles cívicos ou de moda, mais curiosamente, ela registra também seus
tempos de militância política. Além do variado acervo, uma máquina fotográfica é parte de
seus pertences pessoais, como consta na carta 29, escrita em julho de 1973, quando
também aproveita para informar sobre o uso do dinheiro que recebeu de sua madrinha, que
aliás lhe deixa um tanto confortável:
Qualquer dia desses vou te mandar fotos minhas. O
problema é a falta de tempo e os filmes que são caros. Minha máquina
é de 35mm e os filmes de 400 asas que eu geral uso e estão escassos,
porque também é importado. Mas logo logo te mando algumas. Vou
comprar filmes com os 200, há, há, há!!” Vou mandar concertar e lhes
mandarei algumas fotos, tá? (carta 34)
207
Por que Jane desejou fotografar-se durante a prática da militância, um tempo tão
conturbado, em que o recomendável não é o registro pessoal? O que significa uma
militante fotografar sua imagem no Chile e enviá-la, pelos Correios e Telégrafos, a sua
irmã que reside em São Paulo-Brasil? Como se dá a escolha dos cenários fotográficos?
Parte dessas questões talvez não seja mais possível recuperar, nem tampouco a fotografia
fala sozinha de si mesma, mas permite que seus indícios recriem aspectos capazes de
fomentar a investigação histórica. Então, é imprescindível dispensar atenção ao registro
fotográfico, uma vez que este possibilita, no seu conjunto, complementar a montagem do
enredo.
Que trama histórica pode revelar ou esconder uma produção fotográfica? O “clic”
da objetiva registra um instante ímpar de um tempo, num espaço escolhido em função de
uma vontade, pois o cenário é construído pela intenção do fotógrafo e do fotografado, ou
207
Carta de Jane Vanini, datada em 04.05.74, assinada por Jane.
de ambos. Seja como for, a cena registrada expressa o assunto que de fato existe. Isso não
significa que a fotografia traz em si mesma a expressão da verdade e nem um
conhecimento total sobre o passado retratado, mas expressa certamente um sentido
testemunhal do instante e ajuda a visualizar e compreender os “microcenários do passado”,
segundo Kossoy. Esse mesmo autor, ao analisar o tempo e a realidade no registro
fotográfico, diz que “toda fotografia representa em seu conteúdo uma interrupção do
tempo e, portanto, a vida. O fragmento selecionado do real, a partir do instante em que foi
registrado, permanecerá para sempre interrompido e isolado na bidimensão da superfície
sensível”.
208
Um sentido curioso na fotografia é que seu conteúdo pode revelar informações
que ajudam a reconstruir um tempo para quem analisa e reatualizar emoções para quem
partilha a convivência com o tempo retratado. Esses desdobramentos revitalizam as
imagens congeladas e, ao mesmo tempo, quebram sua imobilidade e as põem em
movimento numa continuada construção de significados que brotam do exercício de
rememoração.
O registro fotográfico é o resultado de uma vontade deliberada que implica na
escolha de aspectos como ângulos, iluminação, planos, enquadramentos, cenários, entre
outros, estabelecendo uma estreita relação com objetos, pessoas e paisagens, que são
constituidores de uma memória que legitima aquelas escolhas, ao mesmo tempo em que
produz um esquecimento sobre as outras lembranças. A fotografia não transmite uma
realidade, mas uma relação com ela, ou seja, uma representação desta que permite
construir uma significação entre seu conteúdo e sua forma.
208
KOSSOY, op. cit. p. 28
Há de fato uma teia de comunicação entre o observador e as imagens fotográficas
silenciadas no seu tempo, pois elas são componentes do sistema de signos não-verbais que
se caracteriza por estabelecer uma comunicação independente, gestora de múltiplos
aspectos culturais. É com esse sentido que Jane diz:
Eu queria tirar uma foto bem chilena e mandar a vocês e
pedi uma manta emprestada para a foto, porém agora comprei uma
manta para dar de presente a senhora e vou tirar uma foto com ela
para te mandar. (carta 24)
209
O registro fotográfico, por ser um texto visual, leva o leitor a estabelecer uma
relação cognitiva entre as imagens congeladas e ele mesmo, na qual se impõe o
processamento de informações que se escondem nos vincos dos cenários ou fora deles,
porém, na análise de Mírian M. Leite, “como a fotografia acolhe significados muito
diferentes na codificação e em possíveis decodificações da mensagem transmitida, as
interferências dessas condições alteram e percepção do observador da imagem.”
210
A relação com a imagem fotográfica produz múltiplos sentidos e imediatos,
porque as imagens possibilitam leituras dissimuladas, dispensando mediações. E quando
se trata de cenários, cujos comportamentos dos figurantes tem-se um conhecimento prévio,
as interpretações parecem mais próximas e os significados mais evidentes. Então, o
fragmento acima citado expressa em foto bem chilena e manta emprestada, a significação
do instante, como se quisesse falar: agora é assim, eu vivo o Chile. Essa prática de
fotografar-se também sugere pensar a forma mais imediata e mais presente de assegurar
209
Carta de Jane Vanini, datada em 23.01.73, assinada por Jane.
210
LEITE, M. L. M. Livros de viagem (1803-1900), 1997, p. 224.
sua integração plena ao grupo familiar, uma vez que o registro fotográfico não reúne, no
seu conteúdo, somente as singularidades pessoais dos atores, mas assinala, sobretudo, os
papéis e os lugares sociais de cada fotografado.
A família Vanini sempre preserva o costume de expor suas fotografias em fartos
álbuns, porém os registros de Jane nos seus tempos chilenos não estão assim dispostos,
mas guardados cuidadosamente nos pertences pessoais da irmã Dulce Ana. Essa é uma
particularidade que não ajuda a construir um esquecimento, mas algumas folhas de
silêncio. Silêncio sobre a ausência, a presença, as escolhas, as paixões, as fugas e as
atitudes sobre Jane. Qualquer tipo de silenciamento traz a sensação de protegê-la, quer da
repressão institucional, quer das múltiplas opiniões que se formulam e circulam sobre sua
conduta, gerando descontentamentos públicos aos quais submete toda a família.
As fotografias “guardadas”, assim como as cartas e outras lembranças, quando
olhadas e observadas, provocam rompimentos repentinos desse silêncio que acompanha a
história e, dessa forma, arrancam da memória familiar os traços de vida também guardados
nas lembranças do convívio. Assim, rememora-se o afeto, revivem-se as relações,
recompõe-se a convivência familiar, refazem-se as atitudes e os pensamentos, escuta-se o
som das vozes, recuperam-se os traços das feições e os contornos dos sorrisos e dos
olhares petrificados no registro. É como se as imagens ganhassem vida e se locomovessem
para o espaço do agora. É nessa vitalização das imagens que Jane deseja recuperar alguns
registros perdidos:
Gostaria que me mandassem uma foto de vocês outra vez.
Sabe que a que eu tinha me roubaram um dia em que me bateram a
certeira e estou sem nada. Nem da Cida. Nem do Jorge, nem daquela
de papai, mamãe, etc. Qualquer dia desses mando foto nossas. É que
temos que tirar ainda e não tivemos oportunidade. (carta 21)
211
Mande-me foto de todos vocês, tá? E se encontram algumas
minhas antigas, daquelas que eu gostava, mande-me também, tá?
(carta 25)
212
Para Jane Vanini, ao que tudo indica, a fotografia é um tempo de sedução que se
reedita em múltiplas vontades, uma vez que eterniza seus momentos de prazeres. Seja na
rua, no trabalho, ao telefone, nas creches em atividades voluntárias, ou ainda, conservando
imagens de cenários, pessoas e objetos, o encadeamento das relações produz signos de
uma experiência, mesmo que a fotografia possibilite leituras ambíguas sobre seu conteúdo.
Numa proximidade com as correspondências, as fotografias enviadas a Dulce são
instrumentos fascinantes, os quais, detendo informações e enunciando mensagens sobre o
cotidiano de Jane, soam como grandes fragmentos de certezas vividas. Com essa
significação é que Jane Vanini atualiza um passado no presente e fala do companheiro
gordinho, mas simpático, da magreza que não existe mais, da identificação das crianças e
da feitura de sua carteira:
Vou te mandar umas fotos (anteriores às outras que te
mandei) em que estou com um companheiro chileno. É meio ‘gordinho’,
mas é simpático e parece que está enamorado. Oh!!... Nesta época eu
estava magra, mas afora estou super gorda, assim é que não se
preocupem pela magreza minha nessa foto. (carta 32)
213
Em outra carta lhes vou mandar negativos com fotos nossas.
As duas crianças que aparecem são filhos do Pepe. A carteira que
aparece comigo, eu mesma a fiz. (carta 36)
214
211
Carta de Jane Vanini, datada em 16.01.73, assinada por Jane.
212
Carta de Jane Vanini, datada em 05.04.73, assinada por Ana.
213
Carta de Jane Vanini, datada em 01.02.74, assinada por Ana.
214
Carta de Jane Vanini, datada em 29.07.74, Assinada por Carmem.
Qualquer que tenha sido a finalidade das produções fotográficas nos tempos das
práticas da luta revolucionária e, em especial no Chile, os registros também expõem a
marca individual do fotógrafo. Ele tem um estilo que revela seus valores culturais, sua
forma de pensar e sua compreensão sobre estética. Há, portanto, uma cumplicidade entre o
fotógrafo e a fotografada Jane.
Seguindo Boris Kossoy, a trajetória da fotografia se dá em três estágios: a) a
intenção de registrar a realidade, que pode ser do fotógrafo ou não; b) o ato de registrar o
real, que é o processo que origina a fotografia; c) os caminhos que tomam a fotografia, ou
seja, os aspectos como as aventualidades, as dedicatórias, as emoções, os sentimentos, as
razões pelas quais determinadas pessoas salvam os registros, os álbuns que conservam,
mãos e olhos que manuseiam as mensagens. “Neste caso, seu conteúdo se manteve, nele o
tempo parou. As expressões ainda são as mesmas. Apenas o artefato, no seu todo
envelheceu”.
215
Para os familiares de Jane Vanini, sua ausência, no sentido mais amplo, traduz
um sentimento de perda da ente querida e pode ser amenizado na contemplação da
imagem fotográfica. Os conteúdos de seus últimos registros representam a realidade
intensamente vivida e assim, a continuidade dos laços familiares e afetivos. É nessa
compreensão que os trabalhos de Míriam Moreira Leite apresentam a imagem fotográfica
como um prolongamento da existência humana como forma de culto e preservação da
memória das pessoas que já não se fazem mais presentes no espaço familiar. Ela enfatiza
essa representação afirmando que “a fotografia funciona como índice do que foi e por
onde passou a família. Silenciosas e imóveis, ficam, também por isso, ligadas à memória
215
KOSSY, B. Fotografia e História, 1989, p. 29
dos entes queridos que desapareceram e que se tenta fazer sobreviver. Além de ser um
espelho de momentos passados, as fotografias recuperam a presença dos ausentes”.
216
216
LEITE, M. M. Retratos de família. 1993, p. 160.
Capítulo III
Percorrendo Memórias, Silêncios e Paixões
Memórias de um tempo revisitado
Em maio de 1992, a revista ISTO É, ao noticiar os crimes políticos do Chile, na
década de 1970, inclui o nome de cinco brasileiros desaparecidos durante a ditadura
militar de Augusto Pinochet. Entre os nomes, consta o de Jane Vanini, nascida em
Cáceres, estado de Mato Grosso, que em 1964 fixa residência na cidade de São Paulo com
o intuito de estudar e trabalhar.
Após quase vinte anos, a circulação dessa notícia pela revista ISTO É, além de poder
instrumentalizar a pesquisa histórica, possibilita, sobretudo, a desconstrução do
silêncio familiar sobre as atividades políticas, a clandestinidade e a morte de Jane
Vanini.
Como pode ter acontecido uma coisa dessas com uma pessoa de Cáceres?
Curiosamente, essa é uma indagação que tem permeado, com certa freqüência, os diálogos
com muitas pessoas residentes na cidade de Cáceres e mostram-se até certo ponto
intrigadas quando tomam conhecimento, ainda que superficial, sobre a vida de Jane, ou
ainda, ninguém podia imaginar que ia acontecer uma coisa dessas com ela, exclamam
outros contemporâneos seus.
De uma forma ou de outra, quase sempre uma expressão de perplexidade parece
não querer conferir ao lugar, um lugar de história. É como se a construção da história
ainda tenha de acontecer com feitos e personagens heróicos, em espacialidades incomuns.
Assim, na normalidade dos lugares e na singularidade dos tempos, ao registrar suas
experiências de vida, Jane Vanini dá visibilidade ao lugar comum da história.
Por intermédio de indícios fisgados de suas correspondências, juntamente com
testemunhos de familiares e contemporâneos, como também utilizando-se da mediação de
registros escritos, é possível reconstituir alguns cenários políticos, sociais e culturais de
época, na cidade de Cáceres.
Jane é a caçula do universo de oito filhos do casal José e Antonia Vanini. Numa
ordem cronológica decrescente, seus irmãos são: Dulce, Marize, Magali, Jones, Romano,
Henry e Helena, e com exceção de Jones, todos estão vivos. A mãe, que todos a conhecem
carinhosamente como Dona Tunica, se diz “fumaciana” pela sua origem de vida na
fazenda Fumaça, localizada também no município de Cáceres. O chefe dessa família é de
origem italiana, cujos progenitores, como tantos outros grupos de imigrantes estrangeiros,
se estabelece em Cáceres, ainda no século XIX.
De característica patriarcal, a organização familiar é construída sobre fortes
sentimentos afetivos mútuos e duradouros. Com um modelo de sociabilização voltado para
o fortalecimento do núcleo familiar, o patriarca José Vanini Filho dá menos importância a
situações que possam aumentar sua renda financeira ou sua efetiva participação nos
quadros do poder político local. Ele é um pequeno proprietário rural que, como provedor
familiar, faz da lavoura a atividade produtiva para garantir a manutenção de todos por
muito tempo.
Na década de 1960, Cáceres se apresenta como uma cidade de vida pacata e
saudável, considerada pelos discursos geopolíticos como pólo de desenvolvimento do lado
oeste mato-grossense. Com pouco menos de trinta mil habitantes espalhados pelos 42.333
km² de extensão territorial, tradicionalmente o município, localizado a noroeste do Estado,
a duzentos quilômetros da capital, Cuiabá, prima pela pecuária, mas a riqueza se
complementa com a produção de milho, arroz e algodão que também se origina nos
minifúndios e, assim, constituem a fartura que os olhos podiam alcançar.
217
Assim são os anos 60 quando o largo da praça Barão do Rio Branco empresta o
seu espaço para que seja empilhada a produção de grãos, episódio este que muito chama a
atenção de toda a população, representações sociais e instituições, inclusive a
imprensa:...eu me lembro que vieram repórteres de São Paulo, dos grandes jornais de São
Paulo e fotografaram as montanhas de produção e estamparam nos jornais paulistas,
relembra Natalino Ferreira Mendes, ao comentar aspectos das safras agrícolas daqueles
tempos.
218
Com um olhar mergulhado nas dobras de um passado que não se descola de um
presente, diversos atores sociais, que encenam suas vidas nos anos sessenta, relembram a
cidade num estilo bucólico. Tempo este em que as pessoas reinventam a cidade, que ainda
não tem a constância da luz elétrica, porém se utilizam dos lampiões de querosene ou para
economizar o querosene, usufruem do prateado das noites de luar para alumiar as ruas.
Enquanto isso, a prosa corre solta entre aqueles que arrastam as cadeiras para se sentarem
à porta da casa e a meninada, solta pelos pátios, pode brincar brincadeiras de crianças
como se distribuísse inocência.
Essa é a forma mais freqüente com que as pessoas rememoram o desenho da
cidade e o convívio social. Não há maquilagens nesse olhar, elas vêem o lugar com esse
caráter romântico e trazem para o presente, não o passado, mas suas marcas e seus
sentidos, os quais reaparecem articulados com as percepções do tempo atual. Há, portanto,
217
Expressão popular que significa linha do horizonte e aqui é empregada para quantificar a produção.
218
Entrevista com Natalino Ferreira Mendes, professor e funcionário público em Cáceres durante 40 anos. A
entrevista foi feita em Cáceres, em setembro de 1992.
um movimento da memória no tempo, e isso se dá porque “todo ato de perceber é
indissociável da memória que temos acumulada, assim como todo ato de rememorar
compreende a forma como nossa percepção encontra-se condicionada ao presente”.
219
Assim como em outras épocas, a juventude de Cáceres costuma formar seus
grupinhos, observando as mais distintas afinidades entre eles, uma vez que todos se
identificam como a fatia da população considerada mais ativa e moderna. O ponto de
encontro é habitualmente a praça Barão do Rio Branco, onde se assenta o passeio público.
Existem também as brincadeiras dançantes, como se costuma convencionar, que
acontecem geralmente em residências, previamente escolhidas. São atrativos freqüentes,
como lembra a professora Regina Helena:
... então era assim, a gente passava a noite no Calçadão, final de
semana, se bem que não saíamos de Segunda a Quinta, era muito
difícil, só quando tinha um bingo, ah! tinha muito bingo dançante;
fim de semana era uma maneira da moçada reunir, divertir...
sempre tinha dança pelo meio e não era as danças soltas de hoje,
mas aquelas danças de pares, bem comportadas,...
220
Convém destacar que em boa parte das residências, consideradas de classe média,
consta um piano no seu mobiliário e chega à cidade pelas embarcações fluviais do rio
Paraguai, contudo não é ao som de piano que os jovens organizam seus encontros. Nesse
tempo, o Brasil se transporta para a era da modernidade, cujos símbolos são
classificadores dos níveis sociais. Na diversidade de objetos que configuram a sociedade
219
MONTENEGRO A. T. e FERNANDES T. M. História Oral: um espaço plural, 2001, p. 09.
220
Entrevista com Regina Helena Costa Marques Cardoso Leal, professora em Cáceres. A entrevista foi feita
em Cáceres, no dia 14 de setembro de 2000.
de consumo, cujo conjunto dá relevo aos grupos sociais, encontra-se a eletrola, também
conhecida como vitrola. É ela, a vitrola, que pela sua funcionalidade, substitui o piano
naquelas brincadeiras dançantes.
Na variedade e na sofisticação dessa funcionalidade, o “rádio a válvula deu lugar
ao rádio transistorizado, AM e FM ao rádio de pilha, que andava de um lado para outro
junto com o ouvinte; a eletrola, a vitrola hi-fi, o som estereofônico, o aparelho de som, o
disco de acetato, o disco de vinil, o LP de doze polegadas, a fita, a TV preto e
branco,...”
221
entre outros, marcam as temporalidade vividas, ajustando os brasileiros ao
mundo moderno.
É importante ressaltar que em Cáceres vive-se a época do rádio. É um tempo em
que os sistemas de comunicação se alastram. Enquanto os aparelhos de televisão não
chegam em todos os lugares, o Brasil inteiro ouve o rádio. O rádio que encurta as
distâncias, redimensiona o tempo, provoca emoções e decodifica o mundo distante até
então inexistente para muitos. O rádio é quase sempre um veículo para o qual se dispensa
um zelo especial, a ponto de consagrar-lhe um lugar especial na casa. Geralmente é na
sala, sobre uma mesinha forrada com uma toalha, de preferência bordada, com cadeiras ao
redor para que todos escutem os noticiários, as novelas, o jogo de futebol nas tardes de
domingo e as produções musicais radiofônicas que circulam.
As inovações da modernidade são mais acessíveis para os centro urbanos com
maior concentração populacional, onde os padrões de vida vão adquirindo novos hábitos.
Mesmo não havendo ainda uma difusão ou uma freqüência dos aparelhos de telefone e
televisão, na cidade as pessoas costumam se comunicar através dos Correios e, assim, na
221
MELO J. M. C. de e NOVAES F. A. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna, 1998, p. 564.
época as distâncias eram vencidas pelo telégrafo, a gente mandava muita carta e
telegrama, como afirma a professora Regina Helena.
Articulando comunicação e divertimento, não dá para se esquecer dos cinemas
que rigorosamente passam o noticiário em tela e os espectadores saem mais informados
sobre futebol ou outros fatos políticos e sociais que acontecem pelo país a fora. Ainda dá
para escutar na memória a trilha sonora que parece acompanhar o arremesso da bola como
se fosse perfurar a tela cinematográfica. Os casais de namorados cuidam-se para não
serem surpreendidos com a presença do guardinha que repentinamente aparece
focalizando sua lanterna como que procurasse algo que nunca teria perdido. Quase como
um ritual, é dessa forma que sempre começam as exibições dos filmes nos cinemas São
Luiz, Copacabana e Palácio, em Cáceres.
Além disso, como em tantos outros lugares, a cidade é bastante festeira. Com o
Esporte Clube Humaitá, Esporte Clube Mato Grosso e o UBSSC (agremiação dos
sargentos do Exército), a população vive várias festas durante o ano. Entre outras, a Festa
da Primavera, Festa da Cidade, desfiles de moda, desfile do Sete de Setembro e festa de
debutantes. Dos eventos religiosos, os mais rememorados são o de Divino Espírito Santo,
São Benedito, São Sebastião e São Luís - o padroeiro da cidade. Embora distintas na
forma de apresentação, as festas dos santos também são motivações que propiciam um
reencontro com os amigos ou o começo dos namoricos da época.
Quase sempre nessas festas Jane se faz presente. Pelo acervo fotográfico da
família, existem vários registros seus em desfiles de moda. Nas festas de debutantes, há
sempre uma fotografia congelando sua imagem nesse tempo definidor de marcas, seja
dançando ou vinculada ao grupo de amigos. Compondo o álbum de família, ela também
aparece num outro cenário muito singular - a comemoração de seus quinze anos.
Especialmente, no ano de 1960, como rito de passagem, lá está Jane Vanini, na sua festa
de debutante, estreando na vida social de Cáceres.
Jane é uma jovem de seu tempo e de seus momentos. Passa por todos esses
recantos, vive todos os encantos de sua cidade. Sempre presente nos passeios de bicicleta,
nos piqueniques, nos banhos de praia do rio Paraguai, nos bailinhos sejam nos clubes ou
em casas de famílias amigas. Nos bailes carnavalescos, ela sempre se apresenta fantasiada
de índia, princesa, odalisca e outras figuras, seguindo o estilo de época.
Nas lembranças das pessoas, Jane é uma moça muito vistosa, tem uma fisionomia
de traços visivelmente marcantes, destacando-se o cabelo comprido e volumoso, os olhos
pretos e arredondados e um sorriso largo. Assim é que seus contemporâneos, quase que se
repetindo uns aos outros, a descreve. Na ação de descrevê-la, quase todos também
parecem legislar sobre um tempo que se perdeu e retirou dele o substrato dos tempos
vividos. Numa expressão do tipo: ...eu lembro muito, parece que estou vendo ela com
aquelas tranças... engraçado como o tempo passou... como Cáceres era diferente e como
mudou nesse tempo todo..., as pessoas recolhem-se nos seus mundos e atualizam suas
histórias de vida. É o tempo revisitado, construindo resignificações de si mesmo.
Completando o cenário urbano é imprescindível revisitar os territórios sócio-
político e cultural que ocupa a escola. A educação é uma aquisição luxuosa, digna dos
possuidores. Em idade apropriada, nem todos estudam. Nesses tempos, educação significa
muito mais uma formação para um convívio social qualificado que um adestramento para
o trabalho.
O Colégio “Onze de Março”, o Colégio “Imaculada Conceição”, o “Instituto
Santa Maria”, o Colégio “Esperidião Marques” e a Escola “Rodeio” são as instituições
educacionais que aparecem como carro-chefe da educação em Cáceres. Salientando aqui o
destaque para as duas primeiras por reunirem maior número de alunos com melhor poder
aquisitivo e, por isso, projeção das atividades escolares nos meios sociais. Elas
simbolizam, sobretudo, a distinção social.
O Colégio Imaculada Conceição é uma instituição pertencente à Congregação das
Irmãs Azuis, originada na França no final do século XVIII, cujas regras de comportamento
moral e disciplina são bastante rígidas. Com um corpo docente quase que totalmente
formado apenas por religiosas da referida congregação, a escola atende às necessidades do
ensino fundamental, pois oferece os cursos então denominados de primário e ginasial para
um corpo discente constituído apenas por meninas e moças.
Uma das alunas matriculadas no curso ginasial dessa escola é Jane Vanini. Pelos
registros escolares, ela é assídua às aulas e sempre participa das atividades extra-
curriculares, incluindo as religiosas, tais como as missas aos domingos e a celebração da
páscoa. Pela memória fotográfica da escola e da família, ela também está presente, com
seu uniforme impecável, nos desfiles cívicos de Sete de setembro e Seis de outubro. Este
último, refere-se às comemorações do aniversário da cidade.
Estudar no Colégio das Irmãs (assim conhecido) é um motivo de orgulho e
distinção social para as alunas ao mesmo tempo em que às famílias imprime uma certeza
de filhas “bem formadas” para a vida social, para os atributos familiares, principalmente
do casamento, para a disciplina da convivência e para a perpetuação dos valores católicos,
sobretudo, a obediência a Deus-Pai todo poderoso. Sobre esse tempo, a ex-aluna e hoje
professora, Regina Helena, relembra as marcas de sua formação e sua adolescência:
...eu vivi toda a vida no colégio das Irmãs - Colégio Imaculada
Conceição. Eram poucas as alunas no antigo ginásio; era restrito o
número de alunos que estudavam ali, mas dos poucos que estudávamos
éramos muito unidas, amigas umas das outras e saíamos em turmas. A
gente era formada realmente para ser esposa e mãe; era muito rígido, a
gente não entrava sem estar impecável com o uniforme, sapato
engraxadinho, meia comprida ¾, gravata, nem pintava nem mesmo a
unha; tem um episódio que eu não me esqueço: houve um baile, parece
que até da primavera, pintei a unha de esmalte escuro, chegou no dia
seguinte, como aqui a gente tinha dificuldade de acesso à acetona e não
tinha supermercado na época só nas lojas e quase a gente não
encontrava esse produto, tentamos tirar e tiramos um pouquinho do
esmalte com açúcar cru e álcool que ensinaram p’ra gente, porque a
gente não entrava mesmo de unha pintada; o colégio era muito rígido;
nos desfiles em que a gente se apresentava tinha os uniformes de gala,
também o colégio era muito querido tanto o colégio das Irmãs e o
Colégio Onze de Março, os dois colégios se apresentavam muito bem
nos desfiles, a gente tinha muito orgulho e sempre as mães admiravam
as meninas...
222
Ao que parece, via de regra, os jovens tendem a transgredir a
ordem estabelecida, uma espécie de confrontação de valores vigentes.
Com Jane também não foi diferente. Desde cedo ela experimenta a
ousadia. Inventa suas histórias. Certa vez, vai à Cachoeirinha, um sítio de
propriedade de sua irmã, Marize Vanini, localizado na comunidade
denominada Cabaçal, em Cáceres. Parece ter boas recordações daquele
lugar, uma vez que em algumas das cartas enviadas do Chile, por
volta de 1973, enfatiza
aspectos a que atribui significados especiais. Com pouco mais de
dezesseis anos, a viagem parece ter sido uma provocação, pois sem
autorização dos pais, foi acompanhando o carro de boi do senhor Miguel
Ferreira e acaba ficando por lá, aproximadamente, uns dez dias, conta
Marize.
222
Entrevista com Regina Helena Costa Marques Cardoso Leal, em 14 de setembro de 2000.
Surpresa e ao mesmo tempo assustada, a irmã pergunta-lhe se
sua presença ali é do conhecimento da família, o que prontamente Jane
lhe responde: papai não deixou, mas eu falei que vinha a pé.
Continuando, Marize Vanini, fitando um canto da sala, como que sua
expressão quisesse esconder uma melancolia, deixa escapar dos fios de
suas lembranças: ...ela gostava de desafiar.
A escola é, por excelência um lugar de experimentações
plurais. O Colégio Estadual “Onze de Março”, tratado até hoje por
CEOM, é um pouco diferente do colégio das irmãs. Estudam moças e
rapazes, o que certamente ajuda a construir uma dinâmica de relações
interpessoais entre os jovens alunos com uma significação diferenciada.
Nessa época, a escola, enquanto lugar privilegiado do saber, que
incorpora em si mesma o signo de mundo do conhecimento tecnicamente
elaborado, se apresenta como uma certeza de um futuro brilhante na vida
de cada aluno e de cada família.
Como hoje, o corpo docente apresenta uma certa rotatividade
ocasionada pela falta de profissionais devidamente habilitados para a
carreira do magistério, porém a cidade parece se empenhar para romper
seus obstáculos. Nesse sentido lembra o então professor Natalino
Ferreira Mendes, primeiro diretor da escola Onze de Março:
...e também como nós não dispúnhamos, vamos dizer assim, de professores formados na
época, nós utilizávamos os poucos que tinham curso superior em Cáceres; eram
farmacêuticos, eram médicos e sobretudo utilizávamos os padres, as Irmãs e as Forças
Armadas, ou melhor do Exército, que Cáceres sempre teve um intercâmbio muito forte
com o quartel, com os militares, porque essa gente aqui chegava e se entrosava logo com o
civil... aquela amizade de cidade pequena...
223
Compondo essa equipe de professores, alguns parecem ser mais presentes nas
experiências que formulam e, talvez por isso mesmo, mais presentes na memória de seus
ex-alunos. Além dos professores Lindote, Natalino, Ênio Maldonado, entre outros, há um
destaque especial para a figura do profissional Aroldo Widal de Pinho, a quem todos o
conhecem como o professor TUTE LINE. Pelos depoimentos, ele aparece distinto na sua
lida diária pelo empenho que demonstra para com o trabalho de magistério e pela
metodologia própria empregada durante as atividades de construção do saber,
especialmente no que diz respeito às provocações que faz aos seus alunos ao inventar
formas que questionam a investigação do conhecimento didático e científico.
...ele era um excelente professor, era o orientador e mestre da gente; se o aluno não
aprendesse bem a matéria durante as aulas ele dizia: ‘que dia é que você quer ir lá em casa
para eu te ensinar?...Ele era professor de matemática e trouxe harmonia com o ensino de
matemática [...] porque até então nós tínhamos um medo, todo aluno tem medo de
matemática [...] diante disso, nós tivemos uma convivência boa com o professor Tute, que
é o nosso professor Aroldo Widal de Pinho [...] quando ele dizia que nós precisávamos
melhorar, buscar coisas boas para Cáceres [...] ele nos ensinou sempre que precisávamos
separar o joio do trigo [...] ele sempre nos deu esperança dizendo que nós mudaremos o
nosso sistema de vida [...] se nós ficássemos lá, ele sempre falava para mim: você vai ser
talvez o melhor laçador de boi, na fazendo de um fazendeiro qualquer... [...] na área de
química, ele sempre dizia: olha convém vocês conhecerem um pouquinho mais e busquem
223
Entrevista com Natalino Ferreira Mendes, em setembro de 1992.
esse aprendizado e qualquer dúvida que vocês tiverem procurem, perguntem p’ra mim até
fora da aula, porque o que eu quero é que meus alunos sejam criativos, que busquem o
aprendizado através da comparação das coisas e saber distinguir a água limpa da água
suja, nós não podemos seguir simplesmente as idéias...
224
Na cidade, há quem afirme que esse espaço de convivência com o professor
“Tute” tenha contribuído para despertar, em seus alunos, outros olhares sobre o mundo. O
ano é 1962 e na constituição do corpo discente da escola “Onze de Março”, está Jane
Vanini. Na perspectiva de validar essa premissa é que se inscreve o olhar de Regina
Helena sobre Jane:
...ela era uma moça bonita, sempre altiva em todos os sentidos,
inteligente e muito avançada para a época, politizada e muito
avançada para a época; ela era no mínimo uma década na frente
da gente, no pensamento e em tudo, a gente notava...
225
Em outro momento da conversa com o ex-aluno Abnael Bordon, ele enfatiza que
a falta de perspectiva, tanto no ensino quanto no campo de trabalho, tem levado os jovens
a percorrer outros caminhos desejados, esvaziando a cidade. Em Cáceres, afirma ele, os
que tinham boas condições financeiras vão para o Rio de Janeiro e os que
precisavam
trabalhar vão para São Paulo, porque trabalhavam durante o dia e, durante a noite,
estudavam.
224
Entrevista com Abnael Bordon, ex-aluno do Colégio CEOM. A entrevista foi feita em São Paulo, capital,
no dia 05 de novembro de 2000.
225
Entrevista com Regina Helena Costa Marques Cardoso Leal, em Cáceres.
Uma outra passagem, digna de observância, na vida cotidiana dessa gente é a
existência do Grêmio Estudantil “Castro Alves”, filiado à União de Estudantes
Secundaristas de Cáceres - U.E.S.C., que por sua vez é filiado à União Mato-grossense de
Estudantes Secundaristas - U.M.E.S., cujo lema estampado no documento de identificação
dos alunos filiados parece querer cravar no mundo a conduta de um tempo: DEVEMOS
VENCER PELA FORÇA DO DIREITO, NÃO PELO DIREITO DA FORÇA.
Jane Vanini consta como aluna dos Colégios Imaculada Conceição e Onze de
Março, lugares de onde pode exibir um atestado de boa conduta.
226
Na sua trajetória
estudantil, em Cáceres, participa ativamente do então Grêmio Estudantil “Castro Alves”,
cuja identidade de filiação é do ano de 1963 e leva o número 09, assinada pelo então
presidente Bolivar Ramos e o então secretário geral Airton Montecchi Filho. Pelo
depoimento deste último, na diretoria da agremiação, ela ocupa o cargo de diretora social
pela habilidade que tinha no tratamento com as pessoas.
Nas lembranças de alguns filiados ao Grêmio daquela época, a vontade e o
estímulo para participar desse movimento estudantil aparecem pela necessidade de se
preocupar com um futuro próximo, pois Cáceres ainda não conta com uma escola que
ofereça os cursos científico ou clássico, os mais desejados na época e que correspondem
atualmente ao que se denomina de ensino médio.
Uma atuação muito comum entre as organizações estudantis na década de 1960 é
a edição de jornaizinhos que circulam entre os alunos, cujos conteúdos propagam as
226
Documento oficial que fazia parte da documentação de época, necessária ao ingresso nas instituições
escolares.
informações, divulgam as práticas e revelam as múltiplas habilidades estudantis. Mesmo
com uma dimensão de informalidade que apresentam, os jornais estudantis também são
artifícios que possibilitam um ensaio das projeções sociais da escola, a potencialidade de
cada aluno envolvido e a capacidade inventiva dos diversos grupos de estudantes. O
movimento que articula essas práticas políticas e sociais revela, sobretudo, um tempo
simbólico demarcador de identidades e os territórios que configuram essa construção
identitária.
Ao abordar as limitações sobre estudo e trabalho em Cáceres, os quais inquietam
os filiados ao Grêmio “Castro Alves”, Abnael Bordon reconstitui um tempo revisitado, da
seguinte forma:
...não tínhamos condições de encontrar emprego, a cidade não nos
oferecia, não tínhamos trabalho, não existia investimentos que
aproveitasse o aluno no trabalho [...] então, acabávamos ficando
ociosos e isso daí não seria bom, por isso que nós também acabamos
criando um jornal, que pudemos divulgar o nosso trabalho, a nossa
escola, o nome do Ginásio, que era o jornal do ginásio mesmo, [...] o
qual tivemos grande participação de vários colegas, entre eles eu posso
citar Airton Montecchi, Bolívar Ramos e uma pessoa muito especial que
é Jane Vanini...
227
Percorrendo outros arquivos institucionais e particulares, até
este momento não há vestígios de qualquer edição desse jornal, contudo,
é numa correspondência de Jane, endereçada aos sobrinhos, por volta de
1972, que aparece sua ação de escrever e o nome do jornal da escola, no
qual seu, então, colega Abnael Bordon faz referência:
227
Entrevista com Abnael Bordon, em São Paulo.
Um dia me chamaram de comunista porque no jornal ‘A voz
do Aluno’ eu reclamava pelo aumento no preço do leite e da carne, que
muita gente não podia pagar e êsses alimentos são básicos para uma
boa alimentação. (carta 03)
228
Destacando o termo comunista que aparece na carta da militante Jane, do qual se
serve o aparato repressivo para desqualificar pessoas, em especial, estudantes opositores
ao regime militar, Abnael Bordon diz que:
...em Cáceres qualquer idéia que nós trouxemos, no sentido de mudar ou
trazer qualquer novidade, além daquilo que fosse dado nos bancos
escolares, era uma afronta e isso talvez ocorreu muitas vezes se
observada dessa forma, mas o que ela (Jane) tinha muito era um
espírito crítico, mas ela nunca buscou distorcer as coisas do poder
existente naquela oportunidade, porque contrariar em Cáceres naquela
época era sujeito até ser expulso, não digo ser expulso, mas ser visado,
isso que eu sinto da época.
229
Não é só em jornais escolares e nem só textos de protesto que
Jane escreve. Ao que se conhece, ela habitua-se a escrever desde cedo. O
ato de escrever é uma prática, na qual os textos emitem sentidos que
revelam outras práticas sociais, ou seja, um texto exposto à circulação
adquire uma função relacional com os leitores, além de comportar em si
mesmo, para o autor, o prazer da comunicação e o encontro com seu
próprio mundo. No poema abaixo, a autora Jane Vanini demarca as
temporalidades de seu sujeito social.
SONHO DE NORMALISTA
Como é possível esquecer-te se estás presente em tôda
parte? Até nos ruídos mais bizarros ouço o teu nome. O próprio vento
228
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Jane.
229
Entrevista com Abnael Bordon, em São Paulo.
traz-me o eco da tua gargalhada e repete-me baixinho até as
palavras mais simples que me disseste.
Esta rosa aberta me lembra o teu beijo e o seu botão me
faz pensar naquele que ainda me darás. Essa luz, essa réstea de sol
que entra mansamente pela minha janela, que imperceptivelmente
caminha pela sala, és tu, teu espírito, tua sombra. Êsse verde que
veste os ramos, és tu materializado em folhas. O ar que respiro é o
mesmo que o teu!
Esta caneta com que escrevo, é o teu dedo traçando minha
sorte sôbre o livro da vida, que se chama destino. Tu és tudo para
mim. Amar-te é sentir no inferno as alegrias do céu, e no céu sofrer o
martírio do inferno. Amar-te é tudo para mim, pois minha vida sem ti
não vale nada. Tu és meu deus particular, teu amor é o meu hino, teu
nome a minha prece, meu porvir, minhas esperanças.
Tu és a luz da minha vida e a esperança que emoldura o meu
porvir. Se pudesse imortalizaria êste teu amor como a liberdade se
materializou em sua estátua de bronze.
Partes. Mas... sei que um dia voltarás e ao ver-me, lembrar-
te-ás de que ainda existo. Sorrirás talvez. Quiçá te perguntarás -
‘será que a amo?’ - Eu te responderei a essa pergunta, não para ti,
mas para mim mesma, ao sentir o corpo dolorido e o coração a pulsar
mais forte dentro do peito: - ‘sim, eu o amo ainda!’
E, ao fazê-lo, vozes de anjos descerão até mim, cantando,
glorificando êste amor. O demônio murmurará por entre as chamas
do inferno, que perdeu a partida, que me queimei, não em suas
chamas, mas na labareda do teu imenso amor.
Deuses descerão à terra para abençoar êste amor e o
mundo inteiro, derrotado, abaixará a cabeça, pois tudo fizeram para
nos separar e nada conseguiram. O tempo, a distância, a saudade, já
não existirão; serão como lendas que se cantam às crianças para
fazê-las dormir.
Finalizando, te deixo estas humildes palavras, como uma
lembrança de alguém que sempre te terá em seu coração por mais que
o tempo e a distância nos separe, até que enfim chegue o dia em que
tenhamos que nos encontrar para não nos separarmos jamais.
230
Esse texto estabelece uma comunicação com a sociedade, codifica as condutas
próprias de um tempo e de um grupo social, além de assinalar a inserção de uma
mensagem em vários sentidos intertextuais. Falando sobre a intertextualidade, e ao
considerar as condições de produção, emissão circulação, lugar do enunciador, Mauad diz
que “o texto pode ser considerado como mensagem, elemento importante no processo
comunicativo, por serem veículos de significação”.
231
Nos primeiros anos da década de 1960, muitos jovens parecem ter construído
experiências de cunho político-sociais, as quais aparecem simultaneamente reeditadas de
formas diferentes, em localidades distintas, porém com a mesma matriz referencial, ou
seja, a negação de valores e condutas tradicionais. Na reminiscência desse tempo e na
memória dos contemporâneos, é possível reconstruir episódios que cristalizam o perfil das
ações estudantis do grêmio “Castro Alves”. Um deles diz respeito ao acesso aos cinemas.
Em Cáceres, o calçadão da praça Barão do Rio Branco, até hoje ainda se
caracteriza como espaço público legitimado, pois na cidade tudo acontece sempre ali: as
festas de santo, os festejos juninos, o vai-e-vem da moçada, os encontros, as trocas de
olhares que quase sempre ajudam a despontar um namorico, enfim, é o espaço que se
apresenta como o cenário propício para os desejos e as paixões da juventude.
230
Jornal O Pioneiro, p. 06, Cáceres, 16 de junho de 1963.
231
MAUAD, A. M. Passado Composto: palavras e imagens, a intertextualidade em história oral, 2001, p.
64.
Lá também situa-se o Cine São Luiz, de propriedade do Senhor José da Lapa. E
como em qualquer lugar do Brasil, nos anos 60, o “escurinho” do cinema é potencialmente
um símbolo de sedução que atraí desejos, sentimentos e corpos. Ali, todos se encontram.
Pela “Força do Direito”, os estudantes lutam para usufruir o direito de assistir aos
filmes pagando apenas a metade do valor do ingresso, uma vez que esse tratamento
acontece em todo território nacional, porém a postura sisuda e inacessível do proprietário
impede que sejam contemplados.
Em meio às proibições e tentativas fracassadas de diálogos, os estudantes
encontram uma forma muito singular de chamar a atenção de outras pessoas e exporem
suas vontades e iniciativas: aglomeram-se constantemente em frente ao cinema
dificultando assim o fluxo normal do público alvo, conforme reconstituição do então
estudante Airton Montecchi:
...o proprietário do cinema chamou a polícia, a polícia veio mas não
resolveu nada, pois achou que a gente estava com a razão e fez corpo
mole... e continua relatando o então secretário geral do grêmio: ...
posteriormente reunimos e discutimos esse assunto e resolvemos usar de
um outro tipo de operação: fila-boba no cinema, só estudante na fila,
não deixava ninguém entrar e nós íamos renovando... chegava perto da
bilheteria, não comprava o ingresso e voltava para o final da fila...
ficava ali... não entrava ninguém... e desse movimento acabou a gente
ganhando o direito a meio ingresso acertado com o proprietário desde
que a pessoa fosse filiado à União Cacerense de Estudantes
Secundaristas - U.C.E.S.; pagava uma taxa simbólica e obtinha a
carteira de estudante, então de posse da carteira a pessoa se habilitava
a pagar meio ingresso e foi uma vitória; deixamos todo mundo
boquiaberto, ninguém acreditava que aqui em Cáceres acontecia um
movimento daqueles... os estudantes também tinham um lugar ao sol,
nós estávamos assim no nível do estudantado do Brasil todo.
232
Um outro momento demarcador das práticas estudantis,
veiculado pelo Grêmio Castro Alves, é a participação de estudantes de
Cáceres no Congresso de Estudantes Secundaristas realizado em Campo
Grande, ainda estado de Mato Grosso, no ano de 1963. Na oportunidade,
os jovens Abnael Bordon, Bolívar Ramos e Terezinha Conceição de
Souza representam a delegação estudantil de Cáceres, cabendo à última,
conduzir a fala representativa, reivindicando a criação dos cursos
Comercial e Científico para a cidade de Cáceres. Esse episódio recebeu o
reconhecimento da Câmara Municipal, na forma de moção de louvor,
apresentada pelos vereadores Walter Fidelis Mendonça, Airton Pinheiro
Leite e Luiz Souza Costa.
233
Ainda naquele congresso, as lembranças dos jovens
participantes trazem para o presente as discussões acaloradas, repudiando
a dominação do capital internacional sobre a exploração de monasita,
um minério extraído das minas de Urucum. O discurso, o
posicionamento e a convicção dos estudantes expressam a luta por uma
política de nacionalização das riquezas brasileiras, principalmente a
exploração do subsolo, relembra Abinael Bordon, então militante do
movimento estudantil em Cáceres.
Aqui é importante perceber por mais que o desenho da cidade
de Cáceres possa ter-se configurado um lugar meramente provinciano,
como ocasionalmente afirmam algumas pessoas, é impossível defender a
232
Entrevista com Airton Montechi, em Cáceres, no dia 22 de setembro de 2000.
233
CÁCERES. Câmara Municipal, ofício CMC nº 13/63, de 20.02.63, encaminhado à Mesa Diretora.
idéia de um mundo isolado. Pelas singularidades das ações e pelas
espessuras dos episódios que saltitam dos relatos, não há dúvidas de que
esse recanto do Brasil sintoniza-se e articula-se com os mais diversos
grupos sociais, com outras culturas, e com os acontecimentos que
fervilham pelo mundo a fora.
Nessa perspectiva, basta compreender a dimensão que o
sistema de comunicações produz nos espaços humanos. A dimensão das
ondas curtas e médias com que as emissoras de rádio operam, através dos
noticiários, juntamente com toda a programação, são capazes de
construir um rearranjo das temporalidades históricas. Os elevados índices
de audiência alteram a lógica e a dinâmica social. Eles também indicam
múltiplas reinvenções de práticas de convivências.
O rádio, além de reformular a concepção de lazer, ocupa o
lugar de interlocutor social e ganha uma importância fundamental pelo
alcance da comunicação interpessoal, através dos serviços de utilidade
pública que presta às comunidades, se incorporando ao cotidiano das
pessoas.
Quem dessa época esquece o Repórter Esso? A Voz do Brasil, que traz como
fundo musical O Guarani de Carlos Gomes, é um compromisso que faz parte da agenda
do dia, preferencialmente após o jantar. As mensagens telegráficas também são uma
constância na vida diária das pessoas, em Cáceres. As várias revistas e os jornais veiculam
as informações, especialmente as primeiras, pela capacidade de visualização de suas
imagens. É certo que nem telefone e nem aparelho de televisão ainda compartilham do
dia-a-dia da cidade, mas isso não significa uma inferiorização do lugar, pois, como
acontece em todo o interior do Brasil, a dificuldade é o acesso a esses mecanismos e não o
desconhecimento deles.
Contudo, não há de se desconsiderar o imenso vácuo que se estabelece na relação
dicotômica entre as idéias de sertão e litoral, capital e interior, campo e cidade, atraso e
modernidade, e outras situações dessa natureza. Embora a elaboração da memória seja
fundamentada na percepção pessoal, ela, a memória, é produto da convivência social e,
por isso mesmo, sua construção passa, inevitavelmente, pela apropriação das idéias e dos
discursos predominantes de cada época.
Na construção dos discursos que emerge a idéia de isolamento de Cáceres, um
dos aspectos que pode ser traduzido como isolamento é a ausência de estradas de rodagens
ligando aquela cidade a todo o Brasil, uma vez que rodovia representa um dos ícones
bastante forte do desenvolvimento e do progresso material, na segunda metade do século
XX. Esse é o tempo em que o asfalto atapeta as estradas, simbolizando a modernidade,
porque o capital moderniza-se ao mesmo tempo em que se inventam suas próprias
fórmulas de multiplicação simultânea.
Os vários textos, quer políticos, quer jornalísticos, e os
investimentos públicos encarregam-se de construir e disseminar esse
ideário, como símbolo de modernidade e de novos padrões de consumo.
É certo que as inovações retardam um pouco em chegar às populações
distantes dos grandes centros urbanos, mas as imagens desses signos,
veiculadas nas revistas de circulação nacional, como, por exemplo, O
Cruzeiro, vão modelando os desejos de inclusão à modernidade.
Sobre as rodovias, como ícones do progresso, Mello e Novais ilustram a
imponência desses tempos, ao afirmarem que: Desenhamos um sistema rodoviário que
cortava o Brasil de ponta a ponta, com algumas estradas de padrão internacional, as
primeiras a Via Dutra, ligando São Paulo ao Rio de Janeiro, a Via Anchieta, de São
Paulo a Santos, e a Via Anhaguera, de São Paulo a Jundiaí e, depois, até Campinas.
234
Ademais, nessa perspectiva, não há como negar a importância e a influência que
as viagens fluviais das mais diversas pessoas de Cáceres, notadamente os jovens que se
deslocam para estudar no Rio de Janeiro (a capital cultural) e em São Paulo (a capital
financeira), exercem sobre a cidade, sejam em períodos de recesso escolar ou não. De
qualquer forma, o fluxo de pessoas que atravessam as águas do rio Paraguai, levando e
trazendo o fascínio da vida daquelas cidades, provoca, inevitavelmente, uma interlocução
recíproca entre esses mundos aparentemente distantes e, ao mesmo tempo, uma reinvenção
de práticas sociais diferenciadas.
Aqui o termo fascínio expressa a produção de sentidos que, paradoxalmente,
articula o medo de conduzir-se por regras de condutas desconhecidas, as quais expõem as
pessoas deslocadas a múltiplos constrangimentos, e o deslumbramento pela ordem
urbanística das cidades que, no seu devir, atualiza, inclui e ajusta atores e práticas sociais.
Numa outra abordagem, é preciso perceber que, nas sociedades
modernas, o lugar das ações humanas é o espaço urbano e concentra-se
com maior intensidade nas metrópoles. Elas, como invenção de seu
tempo, representam a percepção do mundo atualizado e desenvolvido
encarnando, em si mesmas, a racionalidade humana e a dimensão da
idéias, onde se cristalizam a arte, a cultura, a religião, a economia, as
ciências, a política, a guerra, o futuro e a esperança.
234
MELO J.M. C. de e NOVAES F. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna, 1998, p. 563.
No Brasil dos anos 60, as cidades, e aqui enfaticamente as cidades grandes, são
territórios que emitem signos sem fronteiras onde estão postos os vivos e os mortos, as
feiras, as rezas, o fascínio, o medo, a violência, o silêncio, as práticas, as estratégias, os
múltiplos poderes... Enfim, elas representam a realidade, e se transbordam de
modernidade. Elas significam também uma perspectiva de vida, certeza de um futuro
promissor, uma vez que embutem na sua configuração a possibilidade do trabalho, da
educação e do divertimento. Elas são de fato o espetáculo do conhecimento humano
pensado, processado, construído e experimentado, por isso, ditam normas, demarcam
tempos e definem comportamentos sociais.
O espaço urbano é também, por excelência, o lugar das relações políticas e
econômicas, pelas quais são construídas as idéias de desenvolvimento e progresso. Pelos
códigos de postura, passam as definições e a disciplina dos lugares da cidade. E na
organização e funcionamento das metrópoles, estão as referências das cidades modernas.
Sobre os aspectos que produzem as concepções históricas, enquanto referências sociais e,
tomando São Paulo e Rio de Janeiro, necessariamente nesta ordem, como cidades-mitos,
Ribeiro, faz compreender que:
Da primeira metrópole, espraiam-se codificações para o
trabalho, o sucesso empresarial e a construção da denominada ‘cidade
mundial’- expressão da hegemonia do capital financeiro. Na segunda
metrópole, tem sido historicamente procuradas referências sociais para
o exercício do poder - da mescla entre prazer e força que caracteriza a
dominação em nossa cultura.
235
Percebida pelos olhares de seus atores até aqui expostos, Cáceres se apresenta
como um espaço de convívio social harmônico, em que os sujeitos sociais constituem
235
RIBEIRO, A. C. T. Memória e Cidade: Afastamentos e Simbioses, 2001, p. 360.
uma cadência de acordes no concerto urbano. Nas frestas que se situam entre um
instrumento e outro, Jane Vanini, ao escrever para seu pai, dá visibilidade a cenários
comuns que são quase imperceptíveis ou encobertos nos olhares sobre a cidade:
Fico contente com o progresso cacerense. Imagino que com
o crescimento deve ficar difícil para os pobres irem até às casas do
centro ou da Coronel Ponce a pedir esmolas que costumava ver quando
eu era pequena, não é mesmo? Assim se tem a impressão de que tudo
vai bem. O Brasil cresce, ninguém o segura, etc. Agora, cá pra nós,
para que o governo que representa apenas os ricos deem uma parte
desse lucro dos ricos para aumentar as estradas, levar a televisão a
todas as partes, etc., necessariamente tem algum motivo, não é
mesmo? O que interessa a eles é a “paz social” e dinheiro. A “paz
social” aumenta na medida que os pobres se dividem em mais pobres e
outros menos pobres, que passou a receber uma parte do “progresso”
e o dinheiro eles recebem quando essa parte mais satisfeita com a
esmola começa a trabalhar com mais afinco para o enriquecimento
dos donos das indústrias, comércio para os patrões, enfim. P’RA
FRENTE BRASIL! O NORDESTE? Ah! Mas isso é subversão. (carta
23)
236
Ao falar, o Brasil cresce, ninguém o segura, e o que interessa a eles é a paz
social e dinheiro, Jane Vanini faz ver o tempo do “milagre econômico”, em franca
execução e propagação pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici. Esse é o tempo
em que os militares promovem uma intensa propaganda patriótica, na qual fazia acreditar
que o Brasil seria, em pouco tempo, uma grande potência mundial. Os efeitos
propagandísticos se dão pelos discursos e imagens dos grandes investimentos públicos,
como a ponte Rio-Niterói que, fincada dentro do mar e na imponência tecnológica, ajuda a
236
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Ana. Provavelmente escrita em fins de 1972.
modelar um quadro urbanístico daquelas duas cidades; a hidrelétrica de Itaipú (a bi-
nacional, que abastece de energia elétrica o sul do Brasil e o Paraguai); a estrada
Transamazônica (rodovia que corta uma imensa faixa da floresta tropical, cujo fim
resolveria os problemas da seca do Nordeste, ao deslocar grandes contingentes
populacionais de flagelados da seca para a Amazônia); a usina de Angra dos Reis (usina
nuclear que produziria energia suficiente para sustentar o déficit energético do Sudeste);
Carajás e Serra Pelada, que nas suas produções de minério de ferro e ouro,
respectivamente, todos seriam respostas à dependência econômica brasileira.
É certo que os beneficiários desse modelo econômico são, em parte, os
trabalhadores urbanos, detentores de mão-de-obra especializada, o que faz a classe média,
que vive nos grandes centros de produções, alcançar um melhor padrão de vida material,
pela melhoria da renda salarial. Aos outros trabalhadores - maior aglomerado - que inclui
os oriundos do campo, os quais, pelo êxodo rural, invadem a periferia das cidades em
busca de oportunidades de sobrevivência, resta-lhes engrossar os contingentes da
rotatividade do subemprego ou a estatística do desemprego.
Dessa forma, a economia nacional, de fato, consegue índices invejáveis, porém a
concentração da riqueza produzida fica em poder dos ricos e, em menor proporção, com a
classe média. Os tecnocratas que compõem a área econômica do governo, nesse caso,
representados pelo então ministro Delfim Neto, reconhecem o quadro de desigualdades
sociais, mas os consideram inevitáveis numa economia capitalista quando alcança um
vigoroso crescimento. E, geralmente, ilustram essas situações ambíguas, anunciando que
“o bolo deve crescer antes para dividi-lo depois”.
237
237
SKIDMORE, T. Brasil de Castelo a Tancredo, 1988, p. 254.
Esse quadro político, gerador de profundos desníveis sociais, é o que Jane batiza
de “paz social e dinheiro”. Essa é a forma, ainda, através da qual ela expõe seu protesto
não tão explícito contra o desenvolvimento, mas contra o progresso capitalista, pois
produzindo muita riqueza para uns, também produz muita pobreza para muitos. No seu
discurso de esquerda, mergulhado num estilo pedagógico de interpretar e conceber as
práticas do mundo capitalista, nas práticas da militância, em que os atos de contestação
são formas de se construir uma identidade política e sempre presente na demarcação
desses territórios, Jane reafirma o seu lugar de revolucionária, ao assinalar que, com o
crescimento de Cáceres, deve ficar difícil para os pobres irem até às casas da Coronel
Ponce a pedir esmolas que costumava ver quando era pequena...
Pela militância ativista e pelos lugares que passou, Jane
certamente só percebe os contrastes do liberalismo econômico. Nas
metrópoles onde ela vive, esses cenários são mais visíveis porque os
amontoados humanos perambulam pelas ruas e, na travessia das
necessidades humanas, inventam a sobrevivência. Farrapos de gente
habitam as ruas, cabanas de madeira, lata, papelão, plástico é até núcleos
de alvenaria, porém, assim, disformes e sem feições, constituem as
favelas grandiosas que de seus lugares espiam e afrontam os bem
instalados, os quais ostentam suas liberdades entre muros imensos,
grades esculturais e medos incontidos.
Dessa forma, as cidades modernas são erguidas sobre sombras de multidões
ambulantes e anônimas, que fragilizadas pelo progresso, convivem com a degradação
social e a desumanização da vida. Contudo, no contrapelo da história, lá está essa multidão
em suas fugas, reiniciando suas lutas e reinventando suas sobrevivências. Nessa
interpretação, parece ter eco uma observação da professora Olga Maria Castrillon Araújo,
ao definir que ‘o progresso é uma alavanca que o homem nunca vai deixar de puxar. O
espírito humano é insatisfeito e insaciável. A gana da conquista e das descobertas parece
infinita... não vejo como poderíamos ter chegado até aqui por outro caminho’.
Nessa mesma paisagem contrastante entre o ter e o ser, Walter Benjamim
descreve o Anjo da História, a partir do quadro de Paul Klee, chamado de Angelus Novus:
Ele representa um anjo que parece ter a intenção de
distanciar-se do lugar em que permaneceu imóvel. Seus olhos estão
encarquilhados, sua boca aberta, sua asa estendida. Tal é o aspecto que
deve ter necessariamente o anjo da história. Ele tem o rosto voltado
para o passado. Onde se nos apresenta uma cadeia de eventos, ele não
vê senão uma só e única catástrofe que não cessa de amontoar ruínas
sobre ruínas e as joga a seus pés. Ele bem que gostaria de se deter,
acordar os mortos e reunir os vencidos. Mas do paraíso sopra uma
tempestade que se abate sobre suas asas, tão forte que o anjo não as
pode fechar. Essa tempestade o empurra incessantemente para o futuro,
para o qual ele tem as costas voltadas, enquanto diante dele as ruínas se
acumulam até o céu. Essa tempestade é o que denominamos o progresso.
(BENJAMIN
238
, apud SEVCENKO, 1987, p. 46)
Ainda naquela mesma carta (23) que Jane escreve para o pai,
além de outros significados de seu conteúdo, ela também revela o sentido
de fronteira política estratégica que Cáceres representa para o país, na
década de 1960:
Caceres, pelo que me lembro fica muito perto da fronteira
com Bolívia, país onde os operários e mineiros adquiriram um grau
muito grande de consciência e que está sempre em uma situação
238
BENJAMIN, W. Teses Sobre a Filosofia da História, 1940.
explosiva. Além disso o governo brasileiro colaborou diretamente no
golpe que levou ao poder o ditador fascista que está no poder
boliviano atualmente. Assim Cáceres é uma cidade localizada muito
estrategicamente no terreno. Eu me lembro que quando se passava
pela ponte para ir ao Cabaçal, por exemplo, revistavam as malas e
caminhões em busca de armas e isso já faz bastante tempo. Agora
deixando toda ou parte da população com posições simpáticas ao
governo bem pouca gente quererá colaborar com os ‘subversivos’ que
possam pretender atuar na região, não te parece? A televisão será
para que a população tome conhecimento das torturas, da fome do
Nordeste ou das lutas isoladas que alguns desesperados tentam levar
adiante como um último suspiro, ou será para a propaganda massiva
que o governo faz de si mesmo por todos os meios possíveis e
imagináveis de comunicação? (carta 23)
239
Ao enfatizar operários e mineiros adquiriram um grau muito grande de
consciência, a militante Jane Vanini se mantém fiel ao discurso da esquerda que concebe
os trabalhadores urbanos como revolucionários em potencial. Ao omitir os camponeses do
seu relato, por certo tem uma vinculação com o fim trágico do mito revolucionário Ernesto
Guevara, emboscado por intermédio das informações de um lavrador daquele país. Quanto
à afirmação de que o governo brasileiro colaborou diretamente no golpe que levou ao
poder o ditador fascista que está no poder boliviano atualmente, Jane mostra a
interligação da rede de ditaduras militares que se estabelece na América Latina, como
cortina de resistência à expansão dos regimes soviético e, em particular, o cubano.
No restante do trecho da carta, ela chama a atenção do pai para dois aspectos: o
primeiro é o controle policialesco da população, quando da revista das pessoas ao
239
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Ana.
atravessar a ponte Marechal Rondon, seja para o trabalho, seja como viajante; e o segundo,
é o papel que a televisão desempenha na vida política do país, como instrumento de
massificação dos brasileiros, no que diz respeito às campanhas publicitárias, cujo produto
anunciado é um nacionalismo exacerbado e que serve para ocultar as torturas, fome,
miséria, conflitos sociais, desemprego, seca do Nordeste e as lutas revolucionárias da
esquerda armada.
De todos os registros, a escolha dos fragmentos abaixo tem uma significação
muito especial, porque Jane se dirige ao pai de uma forma muito singular:
É verdade que nós dois nunca conversamos e realmente
nunca um chegou ao outro e disse abertamente tudo que pensava, mas
creio que o senhor é mais forte que os outros, pelo menos eu sempre
aprendi a respeitá-lo por sua coragem, sua honestidade, em tudo que
o senhor faz. Sua dedicação por fazer um trabalho bem feito,
qualquer que seja, desde que assuma o compromisso de fazê-lo é uma
coisa que pretendo imitar ao pé da letra. Sua coragem em não temer
ao perigo se crê no que faz pode chamar mesmo valentia e junto com
sua honestidade absoluta são coisas admiráveis. E por tudo isso creio
que apesar de velho, o senhor é o mais forte e posso refugiar-me em
sua fortaleza para contar-te esse pequeno período.
Perdoe-me por escrever somente coisas sobre política, sei
que vocês me pediram que não o fizesse para não dar nenhum
problema se á que aconteça algo, mas se eu não escrever de tudo isso
que é que eu vou escrever? Terei a me limitar a escrever-lhes: Estou
bem, muitas saudades, abraços. Ana.(carta 23)
240
Essa correspondência é bastante extensa e não traz nenhuma
data. Pelos indícios apresentados no seu conteúdo, o tempo da escrita é o
240
Ibid
segundo semestre de 1972 e, ao que parece, trata-se de uma carta-
resposta ao senhor José Vanini Filho. Embora, não seja tão visível em
outros relatos, aqui Jane se reconhece na figura do pai e, ao proceder
assim, reafirma o modelo familiar tradicional que tem como uma das
referências simbólicas a autoridade patriarcal.
Antes, porém, se faz necessário compreender que, incorporado ao ideário de
estado-nação, o modelo de organização social brasileiro consagra à família tradicional um
lugar de gestação do processo de sociabilidade dos indivíduos e imprime à figura do
patriarca, além de provedor da conduta e do sustento familiar, a representação da
autoridade constituída, cujo reconhecimento se dá por meio das múltiplas relações com os
demais grupos de convivência.
A essas construções sociais vincula-se um emaranhado de virtudes, tais como
fidelidade, firmeza, coragem, honestidade, respeito, compromisso, lealdade, capacidade de
trabalho, entre outras, que constitui os códigos de conduta moral cristã, pelos quais se
legitimam a autoridade patriarcal. No núcleo familiar tradicional, o homem é, por
excelência, o chefe; ele não é só o pai dos filhos, é, sobretudo, o pai da família.
Nos trechos selecionados da carta acima expostos, reúnem muitas dessas
questões. É interessante observar que o fragmento começa por uma espécie de lamento
pela falta de diálogo entre pai e filha, o que é muito comum na época, contudo, termina
com um pedido de perdão pela desobediência e teimosia, em continuar relatando sobre
política. Embora, a distância e a escrita possibilitem acomodar melhor as relações
conflituosas entre pai e filha, este é um traço que expressa o reconhecimento da autoridade
paterna, patriarcal e familiar.
Ao mencionar do pai a coragem em não temer ao perigo se crê no que faz pode
chamar mesmo valentia e junto com sua honestidade absoluta são coisas admiráveis, a
filha Jane Vanini, ao legitimar as virtudes do patriarca, fala também da Jane Vanini
militante, da sua coragem e valentia nas lutas, de não temer os perigos dos combates, da
crença revolucionária e da honestidade para com a família, em compartilhar suas
experiências.
Da mesma forma, ao ressaltar a pretensão de imitar o pai, ao pé da letra, na
dedicação por fazer um trabalho bem feito, qualquer que seja desde que assuma o
compromisso de fazê-lo, primeiro, ela toma para si a promessa de herdar os bens virtuosos
(dedicação, responsabilidade e capacidade de trabalho), para em seguida, invocar a
aceitabilidade do pai para sua opção política e validação de suas atitudes revolucionárias.
É certo que na formação humana de cada indivíduo estão as marcas traçadas pelas
aprendizagens que uma convivência familiar proporciona, ainda mais quando são
sistematizadas pelos costumes e tradições vigentes de uma época. Nessa perspectiva, o
trecho da carta de Jane leva a evidenciar que ela vive, naquele momento, um
questionamento existencial e busca no pai os valores referenciais de sua vida, porém para
esse reencontro, observa-se que primeiro ela reafirma a ele o código de conduta moral, que
também dá sentido a sua existência. Nesses aspectos parece ficar visível o psicodrama que
vive Jane Vanini, em conviver com os conflitos que se constróem entre as identidades
revolucionária e pequeno-burguesa.
Em meados da década de 1960, Jane se interessa em adotar São Paulo como sua
segunda cidade. Com o curso ginasial concluído, a iniciativa se torna mais facilitada pelo
fato de familiares seus já terem fixado residência naquela cidade. Nos seus planos para a
vida futura, lá certamente imagina encontrar melhores motivos para estudar, trabalhar e
profissionalizar-se, como fizera tantos outros contemporâneos seus. Dessa forma, muito
provavelmente, entre os anos de 1964 e 1965, muda-se em definitivo para a capital
paulista, tendo como primeiro endereço o apartamento de Dulce Ana Vanini (irmã mais
velha), localizado na avenida Nove de Julho.
Recomeça a vida procurando matrícula nas escolas e um emprego para dividir
com a irmã suas despesas de manutenção. Oportunamente, trabalha como secretária na
então revista Engenheiros Modernos e, em seguida, na rede de lojas de departamentos
Mappin S/A, na condição de agente de crediário. Entre outras instituições educacionais, é
aluna do Colégio Estadual Paulista, localizado no Parque D. Pedro e, ao que se sabe, tem
pretensões de ser universitária do curso de Ciências Sociais, da Universidade de São Paulo
- USP. Nos registros do DOI-CODI de São Paulo, consta que Jane Vanini pretende fazer
curso de psicologia, tem instrução pré-universitária e, em 1968, ‘era aluna do Cursinho do
Grêmio da Faculdade de Filosofia/USP’, situado à rua Martinico Prado.
241
As armas dos silêncios
241
SÃO PAULO (Estado). Poder Judiciário, 2ª Auditoria do Exército, DOI-CODI, ficha de elementos
procurados, sem data e sem paginação.
Nas investigações sobre o passado, o silêncio tem levado a reconstituir trilhas de
vidas, revisitando os segredos e a memória de pessoas silenciadas. O desaparecimento de
muitos militantes políticos no tempo das ditaduras militares na América Latina e, em
particular, o de Jane Vanini, significa a produção de um silêncio profundo e duradouro.
Pelos desaparecimentos desses militantes, o estado revela sua forma brutal de silenciar; e
pelos depoimentos de quem sobrevive e pelas incessantes buscas dos familiares, esse
mesmo silêncio se faz falar.
Calar-se no entanto, não significa o não falar ou o emudecer num tempo como se
fosse possível apagar um passado tão presente que ainda continua fortemente ressoando na
memória Então, quais são os ecos desses silêncios? Que ruídos eles são capazes de
produzir? Que trama esses silêncios podem esconder e revelar? O silêncio produz signos
nem sempre visíveis e significados que se revelam de múltiplas formas, seja por emoções,
introspecção, dor, revolta, segredo, cumplicidade, disciplina, fidelidade, exercício de
poder, horror ameaça, ausência, enfim o silêncio é plural. Seja lá como for, o silêncio é
uma forma de ocultação, porque ele é construído em meio às renuncias e é também uma
forma de libertação porque produz, na sua essência, o ato de anunciar.
Com o marco cronológico fincado em 31 de março de 1964, o Brasil reinventa o
curso de sua história e o golpe de estado, pelo seu caráter autoritário, delimita os espaços
entre a razão militar e a razão revolucionária. De um lado, os militares reagem às
“ameaças comunistas”, por isso quaisquer que sejam as formas de combatê-las ganham
legitimidade; do outro, os militantes de esquerda repudiam qualquer forma de convivência
com a “direita”, na qual se incluem os milicos e a burguesia, por isso os enfrentamentos e
a certeza de derrubá-los.
Utilizando-se de suas armas, o espaço social agora comporta intensas disputas de
poderes entre os grupos concorrenciais, que na imposição de suas “verdades” fazem
aparecer seus olhares sobre um mundo potencialmente carregados de escolhas. São esses
olhares que, construindo discursos que deixam emergir as imagens que cada grupo
formula sobre o real se cristalizam nas pluralidades de suas práticas sociais. São também
essas práticas que revelam um mundo carregado de sentidos e significações, cujas
estratégias de luta fazem de seus discursos a legitimidade de suas práticas.
Os militares que representam o Estado valem-se de dispositivos tornados legais e
delegam às Instituições o funcionamento de um poder presente, capaz de manter sob seu
controle o comportamento das multidões e, assim, eliminar mecanismos de desordem nos
espaços políticos e sociais. Os opositores, nos percursos de suas racionalidades e privados
do exercício de suas vontades políticas, se utilizam dos espaços redefinidos e,
inicialmente, rearticulam suas lutas por intermédio de táticas de enfrentamento às
imposições do silêncio.
A prática de silenciamento, que não se dissocia de seus discursos, também revela
a prática de inclusão do outro, de exclusão do outro e de classificação do outro. Classificar
os militantes de esquerda como “subversivos”, “terroristas” ou ainda como “delinqüentes
vermelhos”, traz um sentido de “virulência” que deve ser excluído do convívio familiar e
social, mas é sobretudo imprimindo-lhes a significação de “malditos da sociedade” que se
faz disseminar discursos que desencadeiam práticas de julgamento, condenação e
marginalização social. Comunistas e terroristas passam a ter o mesmo significado.
A invenção e a necessidade dos silêncios são aspectos que constituem os
territórios do medo. O Estado tem medo dos militantes. Os militantes têm medo da
repressão. As pessoas têm medo do tratamento policial.
Nesse quadro, logo que Jane Vanini e Sérgio Capozzi silenciam suas identidades
civis e passam a viver em Adélia e Mário, respectivamente, as irmãs Magali e Dulce
Vanini são intimadas a prestar esclarecimentos sobre o paradeiro da irmã e do cunhado.
Na OBAN - Operação Bandeirantes, enquanto aguardam para depor, podem
perceber no semblante de cada pessoa, que ali se encontra (muitas nem sabiam o motivo
da intimação), as expressões de medo e de pavor, pois fosse pelos gritos dos torturados,
pelo olhar silencioso de quem deixa o recinto ou pelo rosto desfigurado de quem não
conseguia segurar o medo, cada criatura tem informação dos métodos de fazer falar e de
fazer calar. Nos espaços das lutas que também são lugares de vigília, os enfrentamentos
entre militantes e militares vão adquirindo um caráter de guerra revolucionária, apesar das
condições serem muito desiguais.
As contingências dessa guerra produzem uma forma singular de silenciamento: a
experiência do militante ao se tornar clandestino. O “eu” silencia para um “outro eu”
poder lutar, poder existir. O cotidiano do clandestino é inventado numa caçada plural aos
meios de sobrevivência e, no espaço social disponível, o silêncio se opera pelos
procedimentos das ações. A condição tática de reinvenção do espaço de convivências
políticas presta-se à permissividade dos conflitos. Embora o que se apresenta aqui é uma
circunstância específica de vida - a clandestinidade -, Michel de Certeau, mapeando as
práticas sociais, faz compreender a dinâmica com que diversos grupos sociais reconstróem
a utilização dos espaços, num conjunto de forças:
A relação dos procedimentos com os campos de força onde
intervém deve portanto introduzir uma análise polemológica da cultura.
Como o direito (que é um modelo de cultura), a cultura articula conflitos
e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais forte. Ela se
desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências, a quem
fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e
compromissos mais ou menos temporários.
242
No rastreamento que faz sobre a condição do “estar clandestino”, Ridenti
reconstitui, no depoimento da ex-militante Guiomar Lopes Calejas, o sentido da utilização
desses tempos e espaços:...quando entrei na clandestinidade, larguei estudo, família e
fiquei na dependência da própria organização para viver; eu não tinha fachada legal, não
tinha outra atividade... A clandestinidade tem um lado que dá a sensação, talvez falsa, de
liberdade, e um outro lado, que é a sensação de absoluta solidão.
243
Tanto a fala da depoente quanto as análises complementares do autor, ambas
apontam para situações de silenciamento, ou seja, a clandestinidade se conduz por uma
solidão que vai nem tão lentamente confinando o militante ao silêncio de si mesmo, por
um isolamento social que vai segregando o militante ao silêncio de seu próprio mundo.
Porém, em ambas situações, a opção de continuar nas organizações e, conseqüentemente,
nas lutas de resistência à ditadura são também formas de dar sentido às ações e às vidas
silenciadas.
Nessa perspectiva, Orlandi, ao trabalhar com as formas e os sentidos do silêncio,
faz compreender que o silêncio se constrói em espaços de produção de signos e de
relações simbólicas. Assim, ela enfatiza que “... o silêncio não se reduz à ausência de
palavras. As palavras são cheias, ou melhor, são carregadas de silêncio. Não se pode
excluí-lo das palavras assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do
242
CERTEAU, M. de A Invenção do cotidiano: l. artes de fazer, pp. 44-45.
243
RIDENTI, M. S. O Fantasma da Revolução Brasileira, p. 250.
silêncio só pela verbalização”. E mais adiante, a autora afirma: “... ele é o tecido
intersticial que põe em relevo os signos que dão valor à própria natureza do silêncio que
não deve ser concebido como um ‘meio’.
244
Entretanto, esse silêncio também é revelador de práticas e comportamentos. É no
silêncio da clandestinidade que Jane Vanini expõe à família sua atual situação de
militante. Numa correspondência encaminhada especialmente aos sobrinhos, ela faz saber
que:
...como estávamos ganhando, a facilidade das coisas fêz com que nos
descuidássemos. Ao mesmo tempo, os ianques começaram a pagar
gente para que torturassem os revolucionários e muitos companheiros
não resistiram as bárbaras torturas e falaram e foram caindo outros
companheiros e estamos na atual situação. [...] É por tudo isso que
agora estou longe de vocês. Que estou condenada a 5 anos de prisão
além das torturas que não aparecem nos jornais e na condenação.
(carta 03)
245
É uma carta extensa, sem data, mas pelos indícios é escrita no ano de 1972. Como
tantas outras militantes que escreve de seus mundos silenciados para os filhos (esses
muitas das vezes ainda na aprendizagem da fala), Jane Vanini endereça essa carta
aos sobrinhos que são quase todos adolescentes, os quais, pela manutenção do silêncio
familiar, não têm informações sobre as atividades políticas da tia, o que justifica tomarem
244
ORLANDI, E.P. As formas do Silêncio - No Movimento dos Sentidos, pp. 69-70
245
Correspondência de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Jane.
conhecimento da carta 03 depois de quase vinte anos. A carta parece prescindir de uma
necessidade de fazer falar o silêncio. Em seu conteúdo, indica também uma espécie de
exposição de motivos que, num discurso pedagógico, dá relevo ao sentido revolucionário
da escolha que Jane faz.
Investidos de poderes institucionais, as autoridades militares registram suas ações
de controle dos “subversivos”. No dossiê dos militantes políticos de esquerda, produzido
pelo DOI-CODI de São Paulo, Jane Vanini consta dos autos do processo nº. 85/70, sempre
inclusa como participante da Aliança Libertadora Nacional. Após ser denunciada,
indiciada e julgada pelo Conselho Permanente de Justiça, a 2ª Auditoria do Exército,
instância agregada à 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Jane Vanini é condenada à
revelia, em 12 de maio de 1972, “à pena de cinco anos de reclusão, com base no art. 46 do
Decreto Lei nº 898/69 e à perda dos direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos, nos
termos do art. 74 da Lei de Segurança Nacional.”
246
Nos caminhos que levam aos lugares de conflitos nos idos das ditaduras militares,
o barulho dos silêncios também aparece revelando as práticas de censura e de tortura. São
elas, particularmente enquanto artifícios institucionalizados, que dimensionam e legitimam
as atitudes disciplinarizadoras desse tempo e dessa ordem. Portanto, por este olhar, a
prática desses silenciamentos é também reveladora de uma linguagem que se embute na
simbologia dos desejos e das paixões de quem os produzem. A prática da tortura que
condena os corpos e as almas, paradoxalmente, produz a potencialidade das falas e dos
silêncios.
246
Poder Judiciário. Processo 85/70, fls. 1949, Mandado de Prisão, datado em 18.05.72, expedido pela 2ª
Auditoria do Exército, 2ª Circunscrição Judiciária Militar - Sp. Dossiê BNM, Arquivo Edgard Leuenroth,
Unicamp, Campinas-Sp.
Neste caso, de forma específica, o silêncio que faz calar é o mesmo que faz falar.
O silêncio que faz esquecer é o mesmo que faz lembrar. O silêncio que esconde é também
o que revela. O silêncio que emudece é, sobretudo, o que anuncia. Ele produz signos que
rearranjam as atitudes e os comportamentos sociais. Na teatralização do espaço social, as
pessoas se agrupam pela representação de seus papéis porque acreditam neles,
compartilham com seus pares suas concepções e suas verdades e se valem de seus códigos
de conduta que, ao configurarem este mesmo espaço social, constróem as teias de
significação.
Na reinvenção dos espaços controlados pela disciplina organizativa, as “práticas
do fazer” acontecem por representações coletivas, mesmo que nelas se incorporem
comportamentos individuais, e fazem dos lugares espaços de sentidos que se manifestam
em múltiplas situações sociais. Nessa multiplicidade de forças com que agem os atores, se
localizam as táticas de sobrevivência dos militantes, entre as quais se inscrevem esses
trechos de várias correspondências de Jane (no Chile) para a família, no Brasil:
Lembra-se da marca e do método que eu usaria quando lhes
quisesse escrever algo mais importante? Quando necessário voltarei
a usá-lo. Melhor escrever duas vezes por se acaso uma se extravia
(carta 02). - Assim peço a vocês que usem somente a cola do envelope
porque assim se vem recolada a gente sabe que a censura abriu, tá?
(carta 10). - Vou escrever agora assim: uma só carta para tôdos,
para evitar chamar a atenção da censura sobre tantas cartas que lhes
escrevo. (carta 13). - Provavelmente te escrevo amanhã ou depois
(hoje é 14.12.72). (carta 19).
247
Nessa mesma perspectiva, um trecho de outra carta revela formas criativas de
transitar e manipular espaços censurados ou organizados por estratégias de poderes
institucionais:
Enquanto os documentos do Colégio, todos tem que ter
firma reconhecida. Realmente não tem problema se a senhora vai ao
colégio Estadual e pede para ver a pasta com meus documentos e
copiar os dados. Diga que eu estou viajando e a senhora tem que
preencher um formulário para um concurso qualquer, de escola ou de
viagem, ou qualquer coisa e não tem os meus dados e aí é o único lugar
onde a senhora pode vê-los, ou algo assim. Sem dúvida que te
deixarão ver e copiar sem nenhum problema mesmo. (carta 22).
248
Essa carta não tem data, mas tudo indica que é do começo do ano de 1973. Ela
expõe um procedimento também clandestino de poderes, no qual se operam os
dispositivos técnicos e burocráticos disponíveis que transgridem a ordem institucional.
Dessa forma, proibindo-se as formas de “ser” e de “fazer”, inventa-se o “fazer” de outras
formas. Aqui, a militante Jane Vanini mostra que o exercício dos múltiplos poderes
veicula-se nos modos de conduzir as ações.
247
Correspondências de Jane Vanini: Carta 02, sem data e com assinatura de Ana.. Carta 10, datada em
07.09.72, com assinatura de Ana. Carta 13, datada em 29.09.72, sem assinatura. Carta 19, datada em
21.12.72, assinada por Jane.
248
Correspondência de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Ana.
Certeau, no estudo detalhado sobre os diversos comportamentos sociais em
espaços tomados por forças conflitantes, faz compreender que os grupos criam para si um
espaço de jogo para maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar ou da língua. Sem sair
do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e
criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí os efeitos são imprevisíveis.
249
Nas espessuras das “maneiras de fazer” traçadas por Certeau, nas quais se
desenha a reutilização dos cenários sociais, torna-se visível a dinâmica com que os
militantes de esquerda transitam pelos silêncios das ditaduras militares. Os
comportamentos são permeados por táticas de ações inteligíveis, que se disseminam pelos
lugares de combates e articulam as formas de sobrevivências individual e política.
É oportuno dizer que um tempo embalado pela produção de múltiplos sentidos e
singularidades simbólicas é o da arte. O mundo artístico, como um território
potencialmente censurável nos tempos da ditadura militar, é o espaço que se reinventam
ações políticas revolucionárias, e os atores sociais passam a atribuir à arte uma ação
libertadora da sociedade. Depois que o AI-5 passa a controlar a “segurança nacional”,
extirpando da vida civil a perspectiva de convívio com a pluralidade, a política e a estética
motivam a criatividade de muitos artistas e estes redimensionam as produções culturais no
Brasil.
A relação arte-política não é partidária e por isso mesmo agrupa vanguardistas,
nacionalistas e populistas. No espaço público, os artistas militantes agora representam a
revolução e levam cultura para o povo. Os militantes de esquerda parecem reencontrar
suas identidades, uma vez que a arte emite significados de seu tempo. As peças teatrais
249
CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer, p. 93.
trazem uma força política muito forte, mas são as produções musicais e, em particular, os
festivais de música popular que marcam os lugares de protestos contra o regime militar.
Há uma escolha e quase um culto a algumas músicas, como, por exemplo, Para
não dizer que eu não falei das flores - Caminhando - que tem Geraldo Vandré como
criador, representa o “hino dos protestos” desse tempo. Para Jane Vanini, a música
Disparada, cuja autoria também é de Geraldo Vandré e apresentada por Jair Rodrigues no
Festival de 1967, é a marca de seu tempo revolucionário, porque ela se percebia a si
mesma na música, segundo Sérgio Capozzi.
250
As insatisfações e as indignações cantadas nas músicas de protesto e os
estrangulamentos políticos e sociais representados nas peças teatrais e nas produções
artísticas e cinematográficas configuram uma cartografia cultural dessa época. No
entender de Orlandi, a censura é “um processo de identificação e diz respeito às relações
do sujeito com o dizível [...] Ela sempre se dá na relação do dizer e do não poder dizer, do
dizer de ‘um’ e do dizer do ‘outro [...] O silêncio da censura não significa ausência de
informação, mas interdição.”
251
Nessa perspectiva, a força do protesto e da denúncia se dilui e aparece como
marcas de uma era revolucionária. Os festivais são representações de espaços que
constróem discursos e textos didáticos que não são proferidos em palanques, mas
exaltados e evocados em meio aos gritos, aplausos e gestos impulsivos, imponentes e
simbólicos. E, na reinvenção dos espaços, perante o controle político-social legislado pela
censura, percebe-se, então, que o que não é possível ser dito, é dito de uma outra forma.
250
Correspondência de Sérgio Capozzi, enviada do Canadá em dezembro de 1992.
251
ORLANDI, E.P. As formas do Silêncio - no movimento dos sentidos, p.108.
A Força das Paixões
Os anos finais da década de 60, com distinção para o ano de
1968, diversos grupos de pessoas constróem experiências que,
afrontando valores vigentes da época, alteram a ordem daqueles tempos.
O destaque para 68 é porque ele é mais que um ano, é um símbolo que
como tal continua assim: inacabado. Pelo mundo afora, 1968 é,
sobretudo, um tempo simbólico que produz euforia, paixões, esperanças,
utopias e também desencantos. É “um mundo em movimentos, conflitos,
projetos e sonhos de mudanças, gestos de revolta, lutas apaixonadas:
revolução nos costumes, na música, nas artes plásticas, no
comportamento e nas relações pessoais, no estilo de vida, e nas tentativas
novas não apenas de derrubar o poder vigente mas de propor uma relação
diferente entre a política e a sociedade”.
252
No Brasil, várias manifestações estudantis e as greves operárias
de Contagem (Minas Gerais) e Osasco (São Paulo) assustam os militares.
Ademais, o discurso do então deputado federal Márcio Moreira Alves,
252
REIS FILHO, D. A. 68: a paixão de uma utopia, p. 11.
no Congresso Nacional, serve de afronta às Forças Armadas.
253
Com
esses fatos representativos, entre outros, e mediante a negação da
Câmara Federal para processar o parlamentar, o presidente general Artur
da Costa e Silva, em 13 de dezembro anuncia o Ato Institucional nº 5,
pelo qual se implanta um intenso controle
repressivo na vida política e social do país. Diante dessas condições
históricas, diversos grupos de pessoas, oriundas especialmente de
sindicatos, de universidades e outras instituições educacionais, assim
como setores da Igreja, se organizam em várias frentes de oposição e
combate ao regime militar.
Pela dimensão de suas atitudes, um dos grupos que ganha
visibilidade é o de estudantes, especialmente os universitários, que se
revelam por uma notável dinâmica de atividades, sobretudo pelas
experiências de luta na defesa das liberdades democráticas e da reforma
universitária, nas quais se inclui a co-gestão nas faculdades. Cercados
pela repressão militar cada vez mais presente, movimento estudantil e
organizações de esquerda se juntam e pensam o confronto armado como
meio para destituir os governos militares.
Na perspectiva dessa aliança, emerge um sonho revolucionário
para além dos desejos estudantis: a luta de libertação nacional. Numa de
suas correspondências, a militante Jane Vanini registra a força do
idealismo desse tempo:
253
Esse discurso convoca os brasileiros a não comparecerem aos desfiles de Sete de Setembro, como
também sugere às mulheres não se relacionarem com homens fardados e, em particular, com jovens oficiais.
Sobre o assunto, ver BARROS, E.L. de. Os governos militares, 1997.
Vocês se perguntarão que faço no exterior se me interesso
tanto pelo Brasil. Eu lhes explico: Nós pertencemos a um continente a
quem se chama genericamente por América Latina. Essa América
Latina tôda tem as mesmas questões raciais que nós do Brasil. Fala
um idioma muito parecido e que teve também as mesmas origens.
Sofremos as mesmas enfermidades, analfabetismo, fome, velhice
prematura, dentição podre, e principalmente o nosso inimigo
fundamental é o mesmo: o ianque.
Eu sou latinoamericana e amo igual ao mestió, ao crioulo, ao
índio, ao negro, ao asiático, ao branco, que entraram na mesma
formação. E meus irmãos são todos os latinoamericanos e por êles
estou disposta a dar até mesmo a única coisa que realmente possuía:
a vida. Digo possuía pois uma vez que uma pessoa contempla as coisas
que presenciei e tomei a decisão que tomei, não possui mais nada além
do desejo de mudar tudo, não importa a que preço.
E como sou latinoamericana, dar na mesma estar no Chile ou
no Brasil, ou Venezuela, ou México, ou Bolívia ou qualquer outro, pois
cada país livre apressará a liberdade dos outros. Cada território
liberado é uma frente de luta para prosseguir lutando. (carta 01).
254
Esses fragmentos possibilitam enfocar três situações que
acompanham as práticas de lutas revolucionárias: a primeira, uma nítida
divisão de territórios entre o capitalismo e o socialismo, na qual se
acentuam os conflitos políticos oriundos da guerra fria, cujos cenários se
contrapõem o progresso material e a justiça social; a segunda, externa o
nível de envolvimento do indivíduo com a militância, na qual se constrói
a crença de transformação das pessoas e do mundo; por último, cada
militante representa a própria revolução.
254
Carta de Jane Vanini, sem data, sem assinatura.
Essa é, portanto, a forma de percepção do mundo social com
que os grupos de militantes se apropriam e, estrategicamente, elaboram
seus discursos e legitimam-nos por intermédio das práticas de lutas
clandestinas. Esses procedimentos Chartier define como forma de
apropriação do mundo e “tem por objetivo uma história social das
interpretações, remetidas para suas determinações fundamentais (que são
sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que
as produzem”.
255
Antes disso, porém, é fundamental ressaltar que o movimento
estudantil não aparece enquanto contingência de partidos políticos de
esquerda, tampouco se institui para confrontos com os governos
vigentes. Menos preocupados com as lutas pelos poderes
institucionais num primeiro instante, a juventude estudantil surpreende
vários lugares do mundo ao manifestar suas desesperanças e indignações
para com as condutas políticas e relações sociais existentes na época. A
ruptura com um mundo considerado utilitarista leva os estudantes a
explodirem suas indignações em múltiplos espetáculos contestatórios.
As barricadas de Paris em 1968 tornam o movimento estudantil
francês um símbolo de luta contra todos os valores e instituições
tradicionais. É um movimento arrebatador e espontâneo, destituído de
comandos centralizados, cujas ações impetuosas do tipo passeatas,
assembléias, ocupações e discursos não se constituem em lutas
planejadas e organizadas. É com essa singularidade que Olgária Matos
pensa o movimento estudantil francês marcado muito mais por um
255
CHARTIER R. A história Cultural: entre práticas e representações, p.26.
desejo revolucionário que por uma força revolucionária.
256
Ele se
apresenta com um caráter contestador e imaginativo e expressa a
intolerância com a sacralização de condutas tradicionais.
Ao que tudo indica, Jane Vanini ingressa na militância política
de esquerda por intermédio do movimento estudantil paulista. No
Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, onde freqüenta, a militância
política está para além das fronteiras da escola, especialmente porque as
atividades acadêmicas se misturam com as produções artísticas e
culturais da época, e também porque, entre 1965 e 1968, as
universidades se constituem como lugares de discussões e ações
políticas.
Longe de ser regra geral, é freqüente a existência de conflitos
que aparecem em gerações de jovens que contestam convenções, normas
sociais e valores tradicionais vigentes nas sociedades a que pertencem. O
movimento estudantil dos anos 60 contesta as ações e propagandas
institucionais, o conceito de civilização superior, as marcas do
autoritarismo e a ortodoxia política. Recusa também as hierarquias
sociais, além de negar a crença no progresso material e a submissão às
produções científicas e às invenções tecnológicas que estejam a serviço
das catástrofes humanas como, por exemplo, as guerras. Assim, a
contestação é a marca desse tempo.
O mundo parece sacudido por inquietações: a Europa Ocidental
incomoda-se com os repúdios ao modelo de sociedade tradicional; os
Estados Socialistas desconcertam-se no possível desabamento de seus
controles burocráticos; as Comunidades Asiáticas assistem à disposição e
256
MATOS, Olgária C.F. Paris 1968: as barricadas do desejo, p. 28.
à combatividade de seus grupos ao questionarem a coesão social, uma
vez que pensam ter consolidado uma unidade nacional; a América Latina
experimenta os movimentos revolucionários que, como as outras regiões
do mundo, traduzem-se em lutas de libertação nacional.
No Brasil, surgem várias organizações de esquerda que
conspiram a tomada do poder. A experiência revolucionária parece
entalhar em cada militante uma capacidade criadora de superação de seus
próprios limites e uma crença na possibilidade de efetivação dos sonhos.
O imaginário dos militantes consegue ultrapassar horizontes
intransponíveis como, por exemplo, o poderio dos arsenais militares e
visualizar um mundo, quase harmônico, que apresenta uma disposição
política diferente, ou seja, uma dimensão das relações entre as pessoas e
as instituições que sejam permeadas pela justiça social. Essa concepção
aparece nas palavras de Suzana Lisboa, companheira de Jane Vanini:
Se imaginava a construção de uma pátria socialista. A ALN
tinha por estratégia a luta de libertação nacional para se livrar, na
época, do jugo americano e se marchar, se reconstruir o país com uma
perspectiva socialista. Existiram divergências na época que hoje em dia
podem parecer insignificantes, mas na época era um divisor de águas.
257
Embora sendo uma fala do presente, essas afirmações só
podem ser compreendidas no seu tempo. Para os militantes, elas não
representam ilusões inatingíveis, mas um sonho possível bordado na
imaginação que se materializa nas práticas da luta armada. Essa
imaginação utópica se constrói com motivações subjetivas que aparecem,
257
Suzana Lisboa, entrevista realizada em São Paulo, 1992.
num primeiro momento, envolvendo a capacidade mental do indivíduo;
em seguida, ela (a imaginação utópica) “se nutre dos fatores objetivos
produzidos pela tendência social da época, guia-se pelas possibilidades
objetivas e reais do instante, que funcionam como elementos mediadores
no processo de passagem para o diferente a existir amanhã. [...] seu lastro
é o da realidade plausível que existe”.
258
A luta armada pensada como resposta a um governo
ditatorial, na qual se planejam grandes enfrentamentos e batalhas
decisivas de uma guerra iminente, a idéia de guerrilhas é parte da utopia
construída pelas organizações de esquerdas brasileira. As ações
guerrilheiras (boa parte delas praticadas por jovens oriundos de grupos
estudantis) desenham a dimensão simbólica da época: os assaltos a
bancos e trens pagadores, ataques a Quartéis, seqüestro de representações
políticas internacionais, o Calabouço, Passeata dos Cem Mil, Congresso
de Ibiúna, entre outros, configuram os cenários de lutas e fazem
acreditar numa perspectiva de eficácia e sucesso sobre a ditadura militar.
Nos registros da militante Jane Vanini, aparecem essas ações
simbólicas:
Nessa época todo mundo olhava os assaltos a bancos, as
bombas contra as empresas exploradoras, etc., com grande simpatia
e o povo começava a entrar para nossas filas. Porque assim é que
sempre foi. Se começa em grupo pequeno mas se mostra ao povo que
se está lutando por ele e então o povo começa a ter coragem e a
compreender as coisas e começa a lutar. (carta 03)
259
258
TEIXEIRA COELHO, J.N. O que é utopia, 1980, p. 82.
259
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Jane.
O fragmento expõe sua imaginação utópica. A luta
revolucionária é um caminho propositivo que, acontecendo daquela
forma, palmilhada sobre tais procedimentos, possibilita alcançar a vitória
final. A imaginação utópica mergulha o indivíduo na busca incessante
pela materialização de um desejo, e o desejo de Jane e de outros tantos
militantes está colado no projeto revolucionário, na vontade de
experimentá-lo e na crença de sua consecução.
Para Teixeira Coelho, a imaginação utópica se processa na
relação que constrói o “ponto de contato entre a vida e o sonho”, e por
isso mesmo produzindo sentidos mútuos. No campo político, a
imaginação utópica, é o “elemento de impulso das invenções, das
descobertas, mas também das revoluções.”
260
Certamente a construção de utopias possíveis não se deve à
contribuição de pessoas iluminadas que aparecem com postulados
revolucionários nas práticas da luta, mas é oriunda da interpretação de
modelos socialistas em vigência e, sobretudo, da forma com que cada
militante se apropria da idéia de revolução e da forma como a representa.
Essas construções mentais são artifícios de um mundo simbólico que
produz sentido numa articulação entre linguagem, símbolo, imaginário e
representação. Nesse jogo simbólico, Capelato & Dutra definem
representação como:
...a imagem mental mediada, tornada possível, pelo uso dos signos. A
relação simbólica entre o signo e o que ele dá a conhecer, é, portanto,
260
TEIXEIRA COELHO, op. cit.
uma relação de representação, em que o signo toma o lugar da coisa
representada, o que só pode se efetuar com o recurso ao imaginário.
261
No dia-a-dia do militante de esquerda, faz parte da sua
formação a leitura de pensadores que ajudam a formular um ideário
político. Entre outros pensadores, lia-se Karl Marx, Bertold Brecht,
Marcuse, Lukács, Gramsci, Pablo Neruda, Camilo Torres, Che Guevara
e Régis Debray, sendo os dois últimos, um fascínio para os debates, além
do impacto muito forte que causa A Revolução Brasileira de Caio Prado
Jr. Como militante ativista, Jane Vanini também tem seus livros e solicita
à irmã suas armas revolucionárias:
...Se der vá mandando um livro por mês do Caio Prado Jr., Jorge
Amado, Celso Furtado e quando der livros infantis do Monteiro
Lobato que quero dar a alguns amiguinhos e divulgá-lo um pouco
também Isso devagarinho. Um por mês se tanto. Os primeiros não
precisa comprar. Mandem dos que encontrarem entre nossos livros.
Também ‘5 anos que estremeceram o Brasil’. Todos esses nós
devemos ter por aí, com exceção dos livros de Monteiro Lobato, ainda
assim me parece que haviam uns 2 ou 3. Mande esses livros pelo
correio, como impresso simples. (carta 17)
262
...Se der peça-lhes que me traga alguma coisa dos meus discos de
música brasileira. livros, por exemplo, os de Celso Furtado, Werneck
Sodré, Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela; Capitães de Areia;
Mar Morto; Os Subterrâneos da Liberdade, que são me parece 3
volumes que tem outros nomes. Em qualquer dos livros onde se faz
referência à coleção, diz quais são os 3).(carta 28)
263
261
CAPELATO, M. H. e DUTRA, E. R. F. de. Representação Política. O reconhecimento de um conceito
na historiografia brasileira. 2000, p. 228.
262
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura. Provavelmente escrita nos finais de 1972.
263
Carta de Jane Vanini, datada de 12.06.73, com assinatura de Ana.
As concepções que constróem as idéias de luta armada no
Brasil, durante a ditadura militar, têm suas referências inscritas em vários
acontecimentos e figuras espalhados pelo mundo, cuja essência produz
marcos de sedução e encoraja as práticas revolucionárias como marchas
vitoriosas num futuro próximo. São influências que produzem sentidos,
elegem símbolos e lapidam utopias.
Nessa perspectiva, o Vietnã pode ser mencionado como uma
das influências simbólicas para a militância de esquerda armada
brasileira, por uma razão também simbólica: a guerra vietnamita enfrenta
como inimigo a maior potência mundial, quer financeira, quer
militarmente - Estados Unidos da América. Isso leva à crença de que um
exército tecnicamente sofisticado e militarmente invencível pode ser
abalado e até derrotado se houver união, organização e consciência da
população explorada. Acredita-se, então, que a vontade e a determinação
políticas podem suplantar as armas dos poderosos. Acredita-se também
que a preparação revolucionária e a ação inteligente de um guerrilheiro
superam as técnicas adversárias e/ou inimigas. Acredita-se, sobretudo, na
resistência armada como a forma mais revolucionária de continuidade da
luta.
É cabível enfatizar que, para os militantes de esquerda, os
Estados Unidos da América representam um símbolo de opressão
internacional e de exploração dos povos periféricos. Trechos dos
registros de Jane Vanini revelam essa simbologia, cujos detalhes
possibilitam compreender a lógica dos repúdios da época:
... e principalmente o nosso inimigo fundamental é o mesmo: o yanque.
É o norteamericano que explora todas nossas riquezas: o petróleo, o
cobre o café, o gado, o ouro, a cultura, as frutas, tudo enfim. E o
norteamericano não nos explora gratuitamente. Nossos governos
pagam a êles para que êles venham a explorar nossas minas, nossos
operários, nosso cultura, para que levem a matéria bruta para os
EUA, pagando uma miséria e nos exportem depois o café solúvel, as
peças, as máquinas, enfim caríssimos, o produto acabado. Enquanto
isso guardam como reserva a que êles têm nos EUA. Quando nós, os
subdesenvolvidos, não tivermos mais nada para oferecer-lhes, então
êles ainda terão a sua própria riqueza. Nós? Mas que importa nós, se
somos ‘seres inferiores’, meio macacos subdesenvolvidos, que só
copiam os costumes dos ‘povos superiores’? (carta 03)
264
As utopias formuladas e por várias vezes reeditadas pela
militância de esquerda não constituem um ideário de sociedade
platônica, na qual pessoas são agrupadas pelos interesses estritos da
República, porém aproximam-se da pólis grega ao privilegiar critérios de
justiça e a abolição das desigualdades sociais. Nos tempos
revolucionários do século XX, as bases de pensamento têm seu
nascedouro nas formulações teóricas do materialismo histórico, cujos
laboratórios experimentais são o leste europeu, algumas comunidades
asiáticas e Cuba. Nessa interpretação, um aspecto vital na configuração
desse mundo revolucionário é a abolição da propriedade privada que,
também para Platão, significa a maior causa dos males sociais.
Para os militantes, o projeto revolucionário, defendendo a
igualdade entre homens e mulheres e a não exploração do homem pelas
relações de trabalho, resolve, em grande parte, os conflitos sociais na
América Latina. Ter-se-ia, então, um Estado que asseguraria educação,
264
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Jane. Provavelmente enviada no começo de 1972.
saúde, trabalho, moradia, transporte e alimentação para todos os seus
cidadãos. Essa idealização para Jane Vanini e também outros militantes
parece existir com um grau acentuado de convicção revolucionária,
quando a esquerda brasileira “ocupasse” ou “tomasse” o poder:
No começo a luta no Brasil foi fácil obtivemos muitas
vitórias e acreditamos que sempre seria fácil. Uma vez no poder
expropriaríamos as emprêsas, isto é, sem pagar aos yanques e demais
donos ladrões que já tiveram lucro em demasia explorando ao povo,
essas emprêsas passariam a pertencer a todo povo. Os lucros seriam
para construir casas, hospitais, escolas, comida para todos. É claro
que os patrões brasileiros e yanques não gostariam de ficar de uma
hora para outra na condição de qualquer outra pessoa. (carta 03)
265
Nos cenários projetados por essa imaginação utópica, toda a
nação e sua dinâmica social se remetem a situações ideais ou idealizadas
que, por sua vez, criam suas referências na dimensão de um paraíso
perdido pelas atrocidades humanas. Isso leva à produção de múltiplos
sentidos que vagueiam entre um passado, que se recupera trazendo
respostas, e um futuro, que aparece prometendo esperanças. Essa
construção mental se processa nas possibilidades históricas de suas
realizações, ou seja, a revolução. Cada atividade da militância é,
portanto, a experimentação do sonho revolucionário.
Também como símbolo, a Primavera de Praga é um
acontecimento que ganha visibilidade além de suas fronteiras européias.
As reviravoltas políticas intensificadas em 1968 parecem reconfigurar
um pedaço do mundo socialista. Contudo, os interesses conflituosos que
265
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Ana. Provavelmente enviada no começo de 1972.
tecem as relações de poderes internacionais, inventariando o mundo
entre os sistemas capitalistas e socialistas, levam uma frente política de
partidos comunistas, notadamente o soviético, a intervir contra as
inovações políticas da Tchecoslováquia. Entre alguns focos de
resistência tcheca e o poderio militar do Pacto de Varsóvia, em nome da
solidariedade socialista, a população theca se vê impedida de assegurar
sua diferença. Mesmo com um desfecho trágico e percebida como crítica
às práticas do socialismo real, a Primavera de Praga não deixa de ser
uma influência simbólica na fermentação das vivências revolucionárias
em outros lugares do mundo, inclusive no Brasil.
Aqui é fundamental lembrar que no ano de 1970, ao fazer o
percurso de militante clandestina entre o Brasil e Cuba, Jane Vanini
juntamente com Sérgio Capozzi passam pela então Tchecoslováquia,
especificamente em Praga.
Parece muito forte a necessidade de um militante sentir-se
revolucionário. A razão da luta é também a razão da vida. A morte é
menor que os signos da revolução. A vontade de lutar se encarna nesses
símbolos. Entre outras referências simbólicas, a figura do médico
argentino e guerrilheiro da revolução cubana, Ernesto Guevara de La
Sarna - o CHÊ - aparece quase como uma legenda dessa época. Pelo seu
destaque junto às investidas revolucionárias na revolução cubana,
transforma-se em símbolo, mito e paixão. Ele representa um expoente
dos movimentos revolucionários na América Latina. Ele não significa,
ele é a própria paixão revolucionária! Por ser lido, interpretado, seguido
e imitado, ele é também a encarnação da utopia e o encantamento da
paixão pela luta!
No movimento destas paixões, Jane Vanini também acalenta
seus sonhos, seus ideais e suas ações de militância:
Enfim, eu queria dizer-lhes como o CHÊ: em qualquer que me
surpreenda a morte bem vinda seja desde que uma nova mão se
estenda para empunhar nosso fuzil e que os cantos lutuosos sejam
substituídos pelo repicar da metralhadora e novos gritos de guerra e
de vitória. (carta 12)
266
Ainda em algumas outras cartas da militante pode ser
encontrada a expressão Pátria ou morte. Venceremos!, que é criada por
Che Guevara e dá um sentido às práticas de lutas revolucionárias, uma
vez que a difícil sobrevivência, os riscos da clandestinidade e até a
própria morte são incorporados pelos militantes como um projeto
político de vida.
Certa vez, algum militante apaixonado escrevera algo mais ou
menos assim sobre o Chê: ...o maior guerrilheiro do mundo morto pelo
pior exército do mundo. O grau conferido a um como o “maior” e ao
outro como o “pior” significa sobretudo a dimensão que o mito alcança e
a representação simbólica da luta revolucionária impregnada no corpo,
no espírito e nas ações da luta.
Apesar de ser considerado brilhante guerrilheiro e estrategista
revolucionário, é tragicamente assassinado pelos militares bolivianos,
mas sua morte seria menor do que sua legenda
267
. Sua heroificação é
cantada e declamada nas ações e emoções dos militantes. O heroísmo do
guerrilheiro também suplanta o desastre da luta boliviana.
266
Carta de Jane Vanini, datada em 15.09.72, sem assinatura.
267
REIS FILHO, D. A. 68: a paixão de uma utopia, 1986, p.34.
Para muitas organizações de esquerda, é inegável que Cuba
seja o exemplo da experiência revolucionária. A Ilha está no continente
latino-americano, tem uma revolução socialista vitoriosa recente,
enfrentou os Estados Unidos da América, é o país que apóia diretamente
as investidas de luta armada, recebendo militantes perseguidos e
treinando guerrilheiros, além das figuras de Fidel Castro - o comandante
- e Ernesto Guevara - o Chê, como encarnações da revolução. É o que
parece significar os fragmentos das cartas da militante Jane Vanini:
Em Cuba a revolução começou na ‘Sierra Maestra’. No
continente americano, pelo que tudo indica, começará nos Andes. E os
revolucionários do lado de lá e do lado de cá dos Andes costumam
dizer que ‘quem terminar primeiro cruza a Cordilheira para lutar do
outro lado’. (carta 01)
268
...Fiquei sabendo que já haviam muitos países socialistas: União
soviética, China Vietnam do Norte, Coréia e muitos outros e o que é
muito importante, que aqui na América Latina existia um país que era
um exemplo de socialismo: Cuba. Pois bem, como os outros alcançou o
socialismo, lutando com armas na mão, todo o povo contra uma minoria
de privilegiados que tinham de tudo e contra o exército que defendia
esses privilegiados. E foi então que eu como muitos outros
companheiros pensamos em lutar para implantar o socialismo no
Brasil. Em Bolívia estava lutando um argentino que havia lutado em
Cuba até a Vitória da Revolução popular e a que se costumava chamar
CHÊ. (carta 03)
269
É uma pena que não posso lhe mandar alguns livros e revistas
de Chile e de Cuba. Aqui se encontra muitas revistas cubanas e é
realmente uma beleza o que o socialismo fez lá. Lembra-se dos jogos
Panamericanos? Pela primeira vez na história desses jogos os países
268
Carta de Jane Vanini, sem data e sem assinatura. Provavelmente enviada no começo de 1972.
269
Carta de Jane Vanini, sem data e com assinatura de Jane. Provavelmente enviada no começo de 1972.
latinoamericanos em conjunto conseguiram obter mais medalhas que
os Estados Unidos. Graças a Cuba, que ganhou muito mais medalhas
que qualquer outro país latinoamericano inclusive o Brasil com 100
milhões de habitantes, quando Cuba tem apenas 8 milhões. Tudo isso
não pode ser uma coincidência, não é mesmo? (carta 23)
270
Percebe-se que a experiência cubana é a grande referência no
imaginário dos militantes de esquerda. A interpretação de que um
pequeno grupo de militantes obstinados faz a revolução socialista, como
aconteceu em Sierra Maestra, representa a crença e a paixão
revolucionária dos grupos de esquerda, na América Latina. Nos relatos
acima, é perceptível a ênfase que a militante dispensa ao triunfo cubano
em relação aos jogos panamericanos, destacando que os resultados
brilhantes são frutos de um projeto revolucionário que estabelece o fim
da dependência cubana de outros países. Pelo espelho cubano, Jane
Vanini manifesta ainda que para se chegar ao socialismo o caminho é a
luta armada contra a minoria de privilegiados que tinha de tudo e
contra o Exército que defende esses privilegiados.
São todos esses aspectos juntos que motivam a escolha da luta
revolucionária pelos militantes e, em particular, Jane Vanini. Presentes
em seus relatos, há uma convicção carregada de desejos que se manifesta
em suas práticas. Construindo uma identidade para as multiplicidades de
tempos que vivencia e, ao incorporar as experiências da militância de
esquerda armada, revela sua paixão de revolucionar o mundo.
Buscando em Hegel o conceito de paixão, Lebrun afirma ser
aquilo “que dá estilo a uma personalidade, uma unidade a todas as
270
Carta de Jane Vanini, , sem data e com assinatura de Ana. Provavelmente, enviada no começo de 1973.
condutas... é então constitutiva de um personagem - mas sem
transformá-lo num maníaco, num ‘apaixonado’...”
271
Nessa
perspectiva, é cabível perceber a paixão revolucionária como um
movimento da alma que toca os afetos e conduz as emoções. Elas, as
paixões, permeiam as práticas políticas e aparecem em meio ao
sofrimento e prazer, aos encantos e desencantos, porém são aspectos da
natureza humana que devem passar pela compreensão e não pela
condenação.
271
LEBRUN, G. O conceito de Paixão, p. 23.
Considerações Finais
Chile indeniza famílias de brasileiros mortos no golpe.
Duas Famílias brasileiras estão batendo às portas dos
tribunais chilenos. Suas representantes, a paulista Nairza Cardoso e a
paranaense Maria das Dores Romaniolo, querem uma indenização
mensal de US$400, quantia que o governo do Chile está pagando, a
título de pensão, aos familiares de mortos e desaparecidos durante a
ditadura do general Augusto Pinochet. Exilados no Chile Túlio
Quintiliano Cardoso, filho de Nairza Cardoso e Vânio José de Matos,
marido de Maria das Dores, estão entre os 2.279 mortos durante a
violenta repressão que se seguiu ao golpe militar de 1973. Seus nomes
constam no Relatório Rettig organizado pelo ex-senador do Partido
Radical Raúl Rettig, no qual consta os nomes das vítimas da ditadura. O
trabalho do parlamentar acabou sendo referendado pelo Congresso e
desde fevereiro qualquer familiar, com base no relatório, pode pedir a
indenização ao governo.
É possível que essas duas famílias sejam apenas as primeiras
de uma fila de brasileiros que deverão reivindicar o mesmo direito. O
advogado Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos
do Rio Grande do Sul, está coletando informações sobre outros cinco
brasileiros que, embora não sejam citados no relatório, também
morreram nas mãos da polícia de Pinochet: Luiz Carlos Almeida,
Nelson de Souza Khol, Jane Vanini, Newton Rosa da Silva e Antenor
Machado dos Santos. O vereador Paulistano Francisco Whitaker (PT),
que na época do golpe chileno trabalhava para o ONU em Santiago,
lembra-se de vários brasileiros presos no Estádio Nacional,
transformado em prisão. Com as exceções de Jane Vanini e Newton
Rosa da Silva, que militavam no MIR, grupo de esquerda chileno,
nenhum dos brasileiros mortos atuava em organizações políticas,
segundo Krischke. Eles foram detidos devido a uma estreita colaboração
entre os militares chilenos e brasileiros, que desejavam por as mãos nos
exilados.
272
A partir do conhecimento dessa matéria jornalística, circulando em todo território
nacional, a família Vanini vê-se obrigada a romper com um tempo silenciado de quase
vinte anos. Essa situação não se reduz ao legado de história política, implica sobretudo
numa multiplicidade de olhares sobre vários aspectos da dinâmica da sociedade, cujas
configurações permitem ser visíveis as microrelações conflituosas entre grupos sociais
distintos.
Por se tratar da história de vida de uma militante de esquerda política, esse
acontecimento tem provocado impactos com desdobramentos que vão desde especulações
mais adversas a respeito do assunto, até à revelação de comportamentos que corroboram
com a classificação de atitudes proibidas e censuráveis, além de cutilar feridas abertas que
continuam guardando em suas sangrias, profundos sentimentos familiares.
É com essa dimensão e bastante apreensiva que Dulce Ana Vanini, a irmã que
mantinha preservada a maior parte das memórias de Jane, encorajada pelo seu irmão
Romano Vanini, vão ao Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès, na cidade de
Cáceres, estado de Mato Grosso, para proceder a confirmação daquilo que a reportagem da
coluna POLÍTICA E ECONOMIA, da revista ISTO É, faz constar.
Na perspectiva de que as informações terão um tratamento respeitoso, podendo os
fatos adquirir um caráter oficial, o casal de irmãos Vanini, é recebido pela professora Leila
Jacob Bisinoto, então dirigente daquela entidade, que, oportunamente, aqui reconstitui os
aspectos e os cenários daquele dia de inverno do ano de 1992:
272
Revista Isto É. São Paulo: Editora Três, nº 1180, 13.05.1992, p. 22.
A revista ‘Isto É’, ao publicar um artigo informando que
o Governo chileno reconhecia o desaparecimento de brasileiros
durante a ditadura de Pinochet, dizia também que aquele Governo
estaria disposto a indenizar os familiares das vítimas. Essa mesma
reportagem mencionava nomes de brasileiros supostamente
mortos pela repressão chilena, dentre os quais o de Jane Vanini.
Associei imediatamente o nome à família Vanini, de Cáceres, mas
não imaginava que Jane pertencesse a essa família, muito menos
que fosse cacerense.
Alguns dias depois recebi um telefonema no Centro de Direitos
Humanos. Era a professora Maria Guida Vanini, com a qual eu
trabalhava em uma escola estadual. Maria Guida contou-me que Jane
era sua cunhada, irmã de seu marido, o Sr. Romano. Disse-me ainda que
tomou conhecimento da reportagem, que a família estava interessada no
que dizia a revista e, como a reportagem mencionava uma entidade de
Diretos Humanos de Porto Alegre como intermediária do caso, achou
por bem procurar-nos para se orientar. Entretanto deixou bem claro
que a família não queria dar publicidade ao fato, que já havia sofrido
muito e que sua sogra (mãe de Jane) era idosa e ‘nem sonhava’ que sua
filha morrera assassinada.
Prometi a Maria Guida informar-me sobre o assunto, mas
adiantei que precisava de mais informações antes de entrar em contato
com o Dr. Jair Krischke, advogado dos Direitos Humanos em Porto
Alegre. Ela concordou.
No dia seguinte recebi, no Centro de Diretos Humanos, a visita
do Sr. Romano, que me apresentou Dulce, sua irmã. Vieram falar sobre
a questão da Jane e pediram que a conversa fosse apenas comigo, em
local reservado. Conduzi-os a uma sala e fechei a porta. Ambos
pareciam desconfortáveis e Dulce não conseguia esconder sua
apreensão. Desde o momento em que chegaram, ela olhava muito para
os lados, abraçada a uma bolsa.
Eu comecei a falar. Disse do telefonema da Maria Guida, da
disposição dos Direitos Humanos em colaborar e expliquei por que
havia pedido mais informações.
Dulce, então, passou a narrar, num fio de voz, uma história
confusa do desaparecimento de sua irmã no Chile, sempre lembrando
que sua mãe era velha e doente e que, por isso, essa história não poderia
ser divulgada: ela não agüentaria saber que sua filha foi morta. Quando
percebi a dificuldade de Dulce em expor com detalhes ou, pelo menos,
com mais clareza os fatos, passei a fazer perguntas, muitas das quais
foram respondidas em monossílabos. Perguntei-lhe, então, como
souberam que Jane havia morrido no Chile. Ela abriu a bolsa e
entregou-me uma carta em espanhol, assinada por Pepe Carrasco, o
companheiro de Jane no Chile. A carta, escrita na prisão, era
endereçada a Dulce e informava, com dados razoavelmente precisos e
um imenso pesar, a morte violenta de Jane pelas forças repressivas de
Pinochet, no final do ano de 1974.
Enquanto eu lia a carta, Dulce ‘desabou’ a chorar. Meu
comentário foi mais ou menos este: ‘eu não sabia - e acho que poucas
pessoas sabem - que Cáceres tem uma filha que derramou seu sangue
por um sonho de liberdade e de justiça social. Os Direitos Humanos têm
procurado resgatar essa história e reverenciar a memória desses latino-
americanos que lutaram contra os regimes totalitários que
transformaram este Continente num palco de tortura, de cerceamento da
liberdade, de desmandos de toda ordem. A forma como essas pessoas
lutaram não vêm ao caso agora - o que interessa é que sacrificaram
juventude, família, a própria vida por uma causa justa e nobre - a
liberdade.
Percebi imediatamente e com muita clareza o impacto que
minhas palavras causaram. Dulce me olhava assustada, como se ouvisse
isso pela primeira vez.. Só então ela e o Sr. Romano passaram a relatar
o sofrimento da família devido à ‘fama de Jane’ , tida em Cáceres como
uma terrorista caçada, uma destrambelhada inconseqüente; os
comentários maldosos, as insinuações, as alusões desabonadoras na
imprensa da época. O pavor por ter o Batalhão de Fronteira ao lado, as
dificuldades de comunicação com Jane, o medo, a vergonha, a
humilhação.
Vi, à minha frente, concretamente, o que havia lido várias
vezes sobre as seqüelas que o trauma da perseguição e da violência
imprimem na vida das vítimas da barbárie política institucionalizada.
Constatei ainda quão indeléveis e dolorosas são as marcas da
discriminação exercida por setores da sociedade, fiéis a uma ordem
absolutista, contra aqueles que ousam pensar e agir diferentemente.
A partir desse primeiro encontro, que me permitiu contactar o
Dr. Jair Kirschke, fui conhecendo aos poucos a história de Jane. Dulce
faz jus ao nome - é uma pessoa extremamente educada e sensível, dessas
incapazes de dissimular. Desvelar e revelar a história da irmã pareceu-
me um processo ao mesmo tempo penoso e libertador para ela.
273
Na singularidade dessa narrativa Dulce Vanini revela sua difícil luta de
convivência com a ansiedade e os medos. Medos das perseguições policiais-militares, dos
sentimentos de culpa, dos julgamentos e condenações. Medos que se acumulam e se
arrastam há mais de duas décadas, nas quais aparecem mecanismos de muita censura e
muito controle repressivo em todo o país.
Os discursos que são construídos circunstancialmente nos tempos das ditaduras
militares em toda a América Latina, os quais classificam de “terroristas” e “subversivos”
os militantes de esquerda, são fantasmas que continuam no convívio familiar e se
apresentam mais intensos na vida de Dulce por ter compartilhado mais proximamente com
sua irmã Jane Vanini, os tempos da luta revolucionária.
273
Depoimento de Leila Jacob Bisinoto, professora e ex-dirigente do Centro de Direitos Humanos Dom
Máximo Biennès. O depoimento foi feito na cidade de Cáceres, em 13.02.2002.
Na perspectiva dos acontecimentos, há de se considerar que os discursos da
condenação da irmã também se disseminam em Cáceres, um lugar militarizado, sobretudo,
pela presença do então 66º Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército, cidade
considerada área de segurança nacional, e, em particular, por ser vizinha da Bolívia
cheguevarizada e que passa por muitos conflitos internos.
Há também uma outra particularidade: a cidade de Cáceres fica distante dos
centros de efervescência política onde se formulam múltiplas opiniões sobre política
nacional, por isso Dulce Vanini encontra num Centro de Direitos Humanos o lugar
confiável para falar sobre as atividades da irmã. Enquanto isso, a idade e o estado doentio
da mãe, são formas de justificar o silêncio sobre Jane.
Dulce não carregou culpas, mas conflitos pessoais. Um deles é o choque entre o
sentimento de afetividade e a tolerância e complacência que contraria, de forma
consciente, as atitudes da irmã. Um outro, é a conseqüência da preservação dessa
afetividade e a própria condenação por tolerar as convicções de Jane. Quando alguém lhe
fala do valor da luta da militante Jane Vanini, construindo uma outra versão sobre a
conduta e as convicções da irmã, e quando encontra a forma de desconstruir o discurso da
“subversiva” e da “terrorista”, Dulce Vanini reconstrói, gradativamente, a sua libertação.
Assim, após quase vinte anos, a veiculação daquela notícia e consequentemente a
visita dos irmãos Dulce e Romano Vanini, ao Centro de Direitos Humanos, assistida pela
então diretora professora Leila Jacob Bisinoto, autorizavam, embora violentando
sentimentos silenciados, a possibilidade de uma investigação histórica sobre a trajetória
de vida de uma militante de esquerda política, privilegiando sua escolha revolucionária,
pela qual se revelam as concepções, as experiências vividas, as ações de luta armada, o
comportamento revolucionário, os deslocamentos, as marcas da sobrevivência e a morte
da militante Jane Vanini.
Referências bibliográficas
e fontes documentais
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1988.
Fontes documentais disponibilizadas para a pesquisa
1. Correspondências de Jane Vanini:
1.1. Dezoito cartas datadas e assinadas.
1.2. Cinco cartas datadas e não assinadas.
1.3. Três cartas não datadas e não assinadas.
1.4. Treze cartas assinadas e não datadas.
2. Correspondências de José Tapia Carrasco Pepe.
2.1. Oito cartas, todas datadas e assinadas, enviadas do Chile à Dulce Vanini.
3. Correspondências de Sérgio Capozzi:
3.1. Três cartas datadas e assinadas, enviadas do Chile à Dulce Vanini.
3.2. Cinco cartas datadas e assinadas, enviadas da Europa à Dulce Vanini.
4. Informações complementares sobre cartas pessoais como fontes documentais:
4.1. Em 1992, através de correspondência, Sérgio Capozzi é localizado em Guelp, Canadá.
Na oportunidade, ele escreveu uma carta datada em 21 de março de 1993, com
informações sobre aspectos gerais da militância do casal no final dos anos de 1960 e
começo de 1970.
4.2. Em 18 de julho de 1975, uma chilena por nome de Rosa Ester Montoya, ex-militante e
contemporânea de Jane escreve a Dulce Vanini, a que denomina “madrinha”.
Também por meio de correspondência, Rosa Ester é localizada em Los Angeles,
Chile, em agosto de 2000, e por correio eletrônico manifesta interesse em ajudar na
busca de informações sobre a militância de Jane Vanini, durante o tempo em que ela
vive no Chile.
5. Depoimentos colhidos em entrevistas:
5.1. Suzana Lisboa, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional, contemporânea de Jane
Vanini. Entrevistada em 27 de novembro de 1992, nas dependências da apartamento
de Magali Vanini, irmã de Jane Vanini, em São Paulo-capital.
5.2. Natalino Ferreira Mendes, professor aposentado e primeiro diretor do Colégio
Estadual “Onze de Março”, onde Jane Vanini é aluna nos primeiros anos da década de
1960. A entrevista é feita em 04 de junho de 1993, na residência do entrevistado, na
cidade de Cáceres-Mt.
5.3. Airton Motecchi, contemporânea de Jane Vanini, ex-aluno do Colégio Estadual “Onze
de Março” e secretário do então grêmio “Castro Alves”. A entrevista é feita na
residência do entrevistado, em 22 de setembro de 2001, na cidade de Cáceres-Mt.
5.4. Regina Helena Costa Marques Cardoso Leal, professora aposentada, contemporânea
de Jane Vanini, ex-aluna do Colégio Imaculada Conceição. Entrevista feita em sua
residência, em 14 de setembro de 2000, na cidade de Cáceres-Mt.
5.5. Abnael Bordon, empresário, contemporâneo de Jane Vanini, ex-aluno do Colégio
Estadual “Onze de Março” e participante ativo do grêmio “Castro Alves”. A
entrevista é feita em sua residência, em 09 de novembro de 2000, na cidade de São
Paulo-capital.
6. Registro fotográfico:
O acervo fotográfico disponibilizado para a pesquisa refere-se a vários momentos da vida
de Jane Vanini, inclui seus últimos registros feitos aproximadamente entre 1972 e 1974 no
Chile e são cedidos e autorizados pela irmã Dulce Vanini.
7. Documentos institucionais:
7.1. Dossiê contendo cadastro, fotografias e informações sobre a militante Jane Vanini,
originado na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e DOI-CODI de São
Paulo, vinculados à 2ª Auditoria Militar do 2º Exército, à disposição para
conhecimento no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
7.2. Auto de Qualificação e Interrogatório de Gilberto Luciano Beloque, então militante da
Aliança Libertadora Nacional, originado na Secretaria de Segurança Pública de São
Paulo e DOI-CODI de São Paulo, vinculados à 2ª Auditoria militar do 2º Exército, à
disposição para conhecimento nos Anais BNM, processo 120/85, no Aequivo Edgard
Leuenroth, da UNICAMP, Campinas-Sp.
7.3. Auto de Qualificação Indireta de Jane Vanini, originado na Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo e DOI-CODI de São Paulo, também à disposição para
conhecimento nos Anais BNM, processo 120/85, no Arquivo Edgard Leuenroth, da
UNICAMP, Campinas-Sp.
7.4. Auto de Apreensão de Jane Vanini, originado na Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo e DOI-CODI de São Paulo, também à disposição para conhecimento nos
Anais BNM, processo 120/85, no Arquivo Edgard Leuenroth, da UNICAMP,
Campinas-Sp.
7.5. Laudo de Análise (sobre material apreendido), originado no Quartel General do II
Exército, 2ª região militar em São Paulo, dado a conhecer nos Anais BNM do Arquivo
Edgard Leuenroth da UNICAMP, Campinas-Sp.
7.6. Autos de Inquérito policial dos denunciados, originado na Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo e DOI-CODI de São Paulo, também à disposição para
conhecimento nos Anais BNM, processo 120/85, no Arquivo Edgard Leuenroth, da
UNICAMP, Campinas-Sp.
7.7. Relatório de indiciados, originado na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e
DOI-CODI de São Paulo, também à disposição para conhecimento nos Anais BNM,
processo 120/85, no Arquivo Edgard Leuenroth, da UNICAMP, Campinas-Sp.
7.8. Ata de Sessão de Conselhos de Justiça Militar, originado na Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo e DOI-CODI de São Paulo, também à disposição para
conhecimento nos Anais BNM, processo 120/85, no Arquivo Edgard Leuenroth, da
UNICAMP, Campinas-Sp.
7.9. Mandado de prisão de indiciados, originado na Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo e DOI-CODI de São Paulo, também à disposição para conhecimento nos
Anais BNM, processo 120/85, no Arquivo Edgard Leuenroth, da UNICAMP,
Campinas-Sp.
7.10. Comunicado de Investigação sobre o desaparecimento de Jane Vanini, expedido
pela Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación, em Santiago-Chile,
enviado à família em 14 de janeiro de 1994.
8. Publicações da imprensa:
8.1. Revista Isto É, nº 1180, coluna Política e Economia, de 13 de maio de 1992.
8.2. Recorte de jornais de época, em especial a Folha de São Paulo e Última Hora.
9. Outros documentos:
9.1. Certidão de Nascimento de Jane Vanini.
9.2. Certificados escolares de Cáceres-Mt e São Paulo-Sp.
9.3. Selo de identificação de trabalhos voluntários no Chile.
9.4. Correspondência do Grupo Tortura Nunca Mais, enviada à senhora Antonia Vanini,
comunicando que Jane Vanini é nome de logradouro público na cidade do Rio de
Janeiro.
9.5. Identificação de filiação de Jane Vanini ao Grêmio Estudantil “Castro Alves”, na
cidade de Cáceres-Mt.
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