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MICHELE SOARES
RESISTÊNCIA E REVOLUÇÃO NO TEATRO:
ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS
(1965-1967)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em HISTÓRIA, da Universidade Federal
de Uberlândia, como pré-requisito para a obtenção
do grau de Mestre. Linha de Pesquisa: História e
Cultura.
Orientadora: Profª Dr.ª Rosangela Patriota
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Uberlândia MG
FEV/2002
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2
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Uberlândia, ____ de ____________ de 20___.
Resultado:_________________________________________________
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3
Esta dissertação é dedicada à Regina e Natal
(meus pais), Patrícia e André (meus irmãos).
E ao amor de sempre de Felícia (minha avó
in memorian).
4
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação jamais seria realizada sem a participação de outras pessoas.
Como em tudo na vida não poderia construí-la sozinha. É um estudo que é resultado,
objetivamente de dois anos de pesquisa. No entanto, sabemos que há elementos às
vezes, bastante subjetivos indispensáveis para a sua elaboração e que nos
acompanham há anos, formando-nos pessoal, social e intelectualmente. E são as pessoas
com quem convivemos e que fazem parte de nossa história de vida, que são os agentes
no processo de formação do que somos, trazendo até nós estímulo, solidariedade, afeto,
companheirismo. Por isso, neste momento gostaria de agradecer às pessoas que de
diversas maneiras colaboraram com este trabalho.
Meus agradecimentos iniciais são para a Prof.ª Dr.ª Rosangela Patriota, por
quem possuo profunda admiração, pois com seu trabalho estimula meu compromisso
com as questões sociais e meu amor pelo teatro brasileiro, e que me acompanhando,
nessa trajetória, com extrema sabedoria e generosidade, torna um privilégio ser sua
orientanda.
Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos, sou eternamente grata pela “co-
orientação” que acontecendo de maneira informal foi um inestimável e prazeroso
aprendizado. Posso dizer que não foram raras as vezes que nossas, nem tão freqüentes,
conversas acabaram com minhas angústias diante da tela do computador. Como disse
Brecht: “algumas pessoas são imprescindíveis”.
À Profª. Dr.ª Regma Maria dos Santos cujas críticas e sugestões durante o
Exame de Qualificação foram valiosos para o andamento e finalização do trabalho.
Aos meus pais, Regina e Natal que são e sempre serão minha base. Terão
eternamente meus aplausos e minha admiração pela coragem com que lutam para que
possamos realizar nossas atividades. O envolvimento, com apoio e afeto foram
fundamentais.
Aos meus irmãos, Patrícia e André, pelo carinho, pelas brincadeiras, pela
confiança...
Aos amigos Carlito e Ana, pelo estímulo e por tê-los como significativos
interlocutores e companheiros no ideal e na luta cotidiana de fazermos, em um lugar de
condições tão adversas, uma arte conseqüente, atuante e comprometida com o social.
5
À Márcia Duarte, professora e amiga, por sua disposição em me ajudar, sua
vivacidade e solidariedade. Pela companhia valiosa, em nossas “idas e vindas”.
A todos os meus professores do curso de História do Instituto Superior de
Ensino e Pesquisa ISEPI / UEMG que, numa atitude generosa, compreenderam
minhas ausências, devido à minha condição de mestranda.
Aos meus amigos do Grupo Meca e aos alunos da Escola de Teatro
Vianinha, que vêem me acompanhando nesse momento de dúvidas, angústias,
ansiedade com paciência, carinho e assumindo tarefas que deixei nesse período de
afastamento.
Aos meus colegas da graduação, em especial à Sirley, Elaine e Kênia, por
compartilhar comigo o cansaço, os desabafos, as expectativas, os lanches...
Por último, mas não menos importante, aos colegas do NEHAC, que sempre
me recebem com afeto e alegria, ingredientes indispensáveis para prosseguirmos. Ao
lado de todos que não citarei, mas que estão em minha memória, gostaria de agradecer
ao Marcos Henrique, pelas inteligentes e divertidas conversas e à Thaís, pela gentileza e
companheirismo com que sempre me atendeu, ou melhor, “socorreu”.
6
Somos profissionais
não vamos agredir
agredir não é fácil, mas transfere responsabilidades
viemos aqui cumprir a nossa missão
a de artistas
não a de juízes de nosso tempo
a de investigadores
a de descobridores
ligar a natureza humana à natureza histórica
não estamos atrás de novidades
estamos atrás de descobertas
não somos profissionais do espanto
para achar a água é preciso descer terra adentro
encharcar-se no lodo
mas há os que preferem olhas os céus
esperar pelas chuvas
ODUVALDO VIANNA FILHO
7
RESUMO
Resistência e Revolução no Teatro: Arena conta Movimentos Libertários
(1965-1967) é um estudo que, a partir da interpretação das peças Arena conta Zumbi
(1965) e Arena conta Tiradentes (1967), objetiva compreender a historicidade dessas
obras, ou seja, de que modo os artistas (autores, diretores, atores) se inseriram nos
debates e lutas de sua época. Para tanto, estaremos desenvolvendo um diálogo
interdisciplinar entre duas bibliografias específicas: a produção historiográfica relativa à
pesquisa e a referente à area de atuação, o que nos permitirá compor um quadro acerca
dos aspectos socio-políticos e cultural da década de 60. Neste sentido, tratando-se de
manifestações artísticas que não só buscaram compreender e representar as
circunstâncias históricas vivenciadas, mas também intervir, através da conscientização
de grupos sociais, na transformação da sociedade, podemos analisar períodos recentes
da nossa história, que são aquelas que dizem respeito, por um lado, à posição de artistas,
intelectuais e militantes da esquerda diante da ditadura militar, e por outro, à construção
de uma cultura de oposição, formada pelo engajamento artístico e que foi a base da
resistência democrática desenvolvida no momento. Por isso esses textos são aqui
pensados como documentos de luta, constituídos em um lugar específico e em um dado
momento, por sujeitos que possuem suas referencias teóricas e ideológicas, suas opções
estéticas que são políticas e históricas. Diante de tais questões, preocupamo-nos em não
nos situar como advogados de acusação ou de defesa, mas respeitá-las, o que nos levou
a uma reavaliação do quadro interpretativo, traçado pelas produções acadêmicas, a
respeito do trabalho desse grupo teatral. Entendemos, a partir de nosso estudo, os
musicais do Arena como resposta aos impasses enfrentados por seus agentes no campo
da luta política.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------- 9
CAPÍTULO I INTERPRETAÇÕES ACERCA DO ARENA E
DE SEUS MUSICAIS --------------------------------------------------- 17
CAPÍTULO II ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS:
ESTRUTURAS E PROPOSTA TEMÁTICA--------------------- 46
“ARENA CONTA ZUMBI”---------------------------------------------------------46
“ARENA CONTA TIRADENTES” -------------------------------------------------62
BRECHT E BOAL: UM DIÁLOGO ABERTO -------------------------------------72
O TEMPO DOS MUSICAIS: A ARTE ENGAJADA NA
RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA--------------------------------------------------79
CAPÍTULO III A HISTORICIDADE DO TEATRO DE ARENA
A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE OPOSIÇÃO--- 84
CONCLUSÃO ------------------------------------------------------------------------------------ 111
BIBLIOGRAFIA--------------------------------------------------------------------------------- 116
9
INTRODUÇÃO
Este estudo pretende contribuir com as reflexões sobre a
interdisciplinaridade História e Teatro, buscando desvendar as possibilidades de
conexão entre a realidade histórica e a ficção, a arte e a sociedade. Partindo do
reconhecimento e compreensão do teatro, não apenas como meio de entretenimento,
mas também como meio de denúncia, advertência, conscientização, propomos analisar
manifestações artísticas sem perder de vista a historicidade inerente a elas. E dentro
dessa perspectiva evidenciar a obra de arte, em especial, a arte cênica, como documento
histórico capaz de elucidar o aspecto social e político de uma sociedade num
determinado momento, sabendo que se trata apenas de fragmentos da história desta
sociedade. Isso nos permitirá descobrir as possibilidades de análise histórica que essa
documentação nos oferece, dialogando com diversas outras fontes documentais.
No século XIX já havia historiadores que trabalhavam com objetos
artísticos. Segundo Langlois e Seignobos: “as concepções, em si mesmas, são meros
fatos psicológicos; mas a imaginação não cria seus objetos; toma sempre da realidade
os elementos que os constituem. As descrições de fatos imaginários são feitos com os
fatos exteriores que o autor observou em torno de si. (...) Já houve quem se utilizasse de
obras literárias, poemas épicos, romances e peças de teatro, para esclarecer períodos e
fatos de documentação minguada, assim procedendo, também em relação à antigüidade
e à determinação de usos da vida privada. O processo não é ilegítimo, desde que se
subordine a várias restrições, que, infelizmente, estamos sempre sujeitos a esquecer
1
.
Todavia, com o surgimento dos Annales, especialmente, a partir das décadas
de 60/70, a história começa a se interessar por virtualmente toda a atividade
humana
2
, ampliando o olhar do historiador para diversas manifestações culturais, tanto
as elaboradas quanto as do cotidiano. A preocupação dos Annalescom toda a
abrangência da atividade humana os encoraja a ser interdisciplinares, no sentido de
aprenderem a colaborar com antropólogos sociais, economistas, críticos literários,
psicólogos, sociólogos, etc.
3
. Outra questão é a que se refere ao tema de novos objetos,
como as manifestações artísticas e culturais. Não que a utilização dessas fontes sejam
1
LANGLOIS, Ch. V. & SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença,
1946, p. 135-136.
2
BURKE, P. (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 11.
3
Ibidem, p. 16.
10
novas como centro de pesquisa histórica, ao contrário, é uma prática de longo tempo,
porém é novo “o fato de seus profissionais serem agora extremamente numerosos e se
recusarem a ser marginalizados
4
, por acreditarem que não se pode mais ignorar a
possibilidade de pesquisa histórica na ligação arte sociedade, cultura e história. Esse
crescente interesse dos historiadores pelo campo da cultura, justifica as pesquisas que se
baseiam em objetos artísticos e diversas representações.
Tomando essas diversas manifestações como objeto de investigação,
evidencia-se que “os documentos deixam de ser vistos como portadores de evidência de
verdade; eles passam a ser entendidos como documentos de luta, isto é, elaborados em
um dado momento e em lugar específico, por alguém ou por um grupo. Carregam
princípios, posicionamentos e traduzem uma determinada percepção do momento
vivido. Diante destes novos questionamentos a introdução de novos temas, novos
objetos e novas abordagens no universo da pesquisa histórica tornou-se, plenamente,
legítima e, dentro destas aspirações, procurou-se pensar em denominada produção
artística como documento de pesquisa
5
, o que possibilitou a conexão História e Teatro.
Assim, por meio das peças Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta
Tiradentes (1967), musicais encenados pelo Teatro de Arena de São Paulo, pretende-se
discutir questões pertinentes ao contexto político e social dos anos 60. Estabelecendo
um diálogo contínuo entre estas peças, o movimento teatral brasileiro e o momento
histórico, buscaremos contribuir para as reflexões sobre a historicidade do texto teatral.
A escolha de tais peças não se deu aleatoriamente, pois nasceu seguindo o movimento
que norteia o conjunto da obra. Os textos estão inseridos num mesmo contexto de
ditadura militar, arte engajada, movimento de resistência e renovação estética. Além de
trabalharem com figuras históricas, que coordenaram movimentos de libertação e
independência. Daí a importância de se trabalhar a historicidade dessa dramaturgia,
entendendo que ela surge do encontro de duas temporalidades: a época em que o enredo
está inserido e que as peças são escritas. Dessa forma, poderemos perceber como os
dramaturgos Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri fazem a relação passado-presente
em suas obras e qual é a leitura que o Arena faz da realidade de seu momento. Como
assinala Chartier, “a história cultural, (...) tem por princípio identificar o modo como
4
Ibidem, p. 19.
5
PATRIOTA, Rosangela. O NEHAC e as suas perspectivas da Pesquisa Histórica. CDHIS, Uberlândia,
v. 11, n. 7, 1994.
11
em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada e dada a ler.”
6
A partir destas questões, este trabalho está vinculado à linha História e
Cultura por pretender analisar diferentes aspectos que compõem o real social, político,
cultural de um determinado período ditadura militar através de um objeto artístico
o texto teatral além de propor discutir as relações história e ficção, arte e sociedade.
Obras que constituem um movimento de arte engajada, que possui seu código próprio,
porém não deixando de ser arte, pois não perde sua dimensão estética. “A História
Social (...) nem furta à arte o sentido do prazer ou do belo, nem nega-lhe uma vocação
política, mas propõe uma discussão em torno da relatividade de cada obra, ou seja,
tenta estabelecer mediações entre o nível estético e as instâncias políticas, econômicas
e sociais
7
. Procurando evidenciar que seu conteúdo e sua forma são determinados pelo
processo histórico da época, ou seja, evidenciar a historicidade do texto teatral e o
processo histórico, presente na discussão da peça, que busca conscientizar o povo de sua
situação histórica, seus problemas, sua realidade, percebemos “uma outra categoria de
fontes privilegiadas (...) que é constituída pelos documentos literários e artísticos.
História não de fenômenos ‘objetivos’, porém da representação desses fenômenos,
história que se alimenta dos documentos do imaginário
8
. Como bem aponta Ginzburg,
todo documento é precioso para o historiador, até mesmo um documento contra, dá
pistas para a pesquisa.
9
Partimos do princípio básico de que toda obra artística está ligada a
sociedade, que traz em si marcas da realidade. Ou ainda: o texto teatral é a expressão
dessa realidade, a representação de uma luta política de um grupo. É a reflexão crítica
sobre esse real e seus problemas, já que o artista é um ser humano que vive numa dada
cultura de uma época específica e a cultura se dá no contato social, como assinala
Ginzburg.
10
Nesse sentido, os espaços de luta e resistência são diversos, podendo se
situar na cultura, na arte.
Sob esse aspecto, Oduvaldo Vianna Filho comenta: A arte nasce na
6
CHARTIER, R. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand
Brasil Difel, 1990, p.16.
7
CONTIER, A. D. Arte e Estado: Música e Poder na Alemanha dos anos 30. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v.8, n.15, set.87/fev.88, p. 109.
8
LE GOFF, J. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, J. & NORA, P. (orgs.). História:
novos objetos. 2ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, p. 76.
9
GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
10
Ibidem.
12
sociedade. No momento em que os sentidos juntam os dado imediatos da percepção
percebendo sua estrutura, relacionando-a a abstrações, a representações que já possui,
a sentimentos que já possui nasce a arte. É o conhecimento que cria sentimentos
complexos representações de alto nível de abstração que servindo e partindo da
realidade concreta que o homem define para sua existência volta sobre ela,
modificando-a. A realidade é a objetivação de todas as potências do ser humano. E é
na realidade, no mundo exterior ao homem, que a vida humana está ligada. É sobre ela
que se atiram nossas representações e sentimentos. Arte e conhecimento não podem se
separar existem se interagindo. É o conhecimento que permite que nossa ação sobre
os fenômenos da realidade seja cada vez mais adequada. (...) A arte para mim é a
transmissão de vivências, emoções, relações, representações e valores, que se incluem
no aparelho imediato com que enfrentamos a realidade desenvolvendo nossa
capacidade de reagir sobre ela, nossa capacidade de inteligi-la e representá-la. Arte
não é útil porque não ligada à produção de bens materiais, não pode transmitir
conceitos, nem pode definir e formar atitudes diante de fenômenos isolados mas se
inclui na cultura do homem, no seu aparato imediato com que representa os fenômenos
sociais determinando suas aspirações, sentimentos, e criando as formas de ação com
que representa e apreende esta realidade. A arte coordena e desenvolve as
necessidades objetivas de representação do mundo que determinadas épocas e classes
têm da realidade.
11
Outro ponto, porém, não de menor relevância, é a questão do documento,
que sempre foi de grande importância, na tradição historiográfica. Diante do
documento, independente de sua posição, cria-se uma postura para com a pesquisa e
para o papel do historiador. Este deve buscar investigar como este objeto foi
produzido, tentando reconstituir sua razão de ser ou aparecer a nós segundo sua
própria natureza, ao invés de determiná-lo em classificações e compartimentos
fragmentados, pelo que ‘não é’, e por estar ‘fora do lugar’, ou por ter nascido
‘tardiamente’. E, finalmente, entender a objetividade como o ato de fazer emergir a
trama das relações que tecem a síntese histórica que é o objeto, não uma coisa abstrata
(separada) e observada a distância pelo investigador, mas algo que, ao mesmo tempo,
11
PEIXOTO, F. (org.). Vianinha: teatro televisão política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 66-67.
13
contém (e participa de) uma exposição do real histórico, tanto o real do passado
quanto do presente.
12
Nessa perspectiva, são de extrema importância as observações do
historiador Robert Paris, que trabalha com a pesquisa em história a partir de textos
literários: “a primeira dificuldade, aliás é de ordem literária. À diferença do seu colega
que exuma uma peça inédita de arquivo, o historiador aqui, não é nunca o primeiro
leitor do documento. Ele aborda esse documento através de uma escala, um sistema de
referências, uma ‘história da literatura’, que já separou o joio do trigo hierarquizando
as escritas, as obras e os autores. Portanto, é necessário, sem ocultar o valor estético
das obras, lhe creditar ‘a priori’ uma igual carga documental sujeita à verificação
posterior.
13
O autor demonstra, nessa passagem, que os objetos artísticos são
documentos portadores de determinadas especificidades, o que traz algumas
dificuldades que precisam ser superadas para se perceber a historicidade desses objetos.
Texto valioso e que muito nos orienta no desenrolar da pesquisa é Vianinha,
um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo, de Rosangela Patriota. A autora, através da
obra de Oduvaldo Vianna Filho, investiga o momento cultural e político brasileiro, além
de resgatar o significado teatral e histórico da obra do dramaturgo. Alerta para a
necessidade de se ampliar a leitura nesse tipo de trabalho, enfrentando “a proposta de
estudo interdisciplinar que articula História e Teatro, sobretudo com o objetivo de
pensar o texto teatral como documento da pesquisa histórica
14
, e para isso, levanta
importantes considerações metodológicas para quem pretende percorrer esses caminhos.
Evidencia a historicidade do texto teatral, discutindo momentos de nossa história
contemporânea à luz da dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho, partindo do
pressuposto de que a produção estética e, neste caso particular, a dramaturgia são
momentos constituintes do processo histórico”
15
Ao trabalhar a relação História e
Teatro, aponta que ela se torna possível, porque “todas as manifestações, artísticas ou
não, são políticas. Elas podem ser diferenciadas pelos níveis de engajamento, mas não
por meio de divisões esquemáticas como ‘político’ e ‘não-político’”
16
12
MARSON, A. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: SILVA, M. A. da (org.). Repensando a
História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984, p. 49.
13
PARIS, R. A Imagem do operário no século XX pelo espelho de um ‘Vaudeville’”. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo/Rio de Janeiro. ANPUH/Marco Zero, v.8, n.15, set.87/fev.88, p.84.
14
PATRIOTA, R. Fragmentos de Utopia (Oduvaldo Vianna Filho um dramaturgo lançado no coração
de seu tempo). São Paulo. Tese de Doutorado. FAFICH USP. 1995, p. 09.
15
____________. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.
19.
16
Ibidem, p. 20.
14
A historicidade da obra já era evidenciada por Ginzburg, em O Queijo e os
Vermes
17
, quando colocou que o romance Gargantua e Pantagruel de François Rabelais
serviam para Bakhtin analisar a cultura popular medieval, o modo que os homens
constrõem relações sociais, através da cultura e a circularidade cultural,
impossibilitando então pensar cultura de forma estanque, dissociada de seu contexto
histórico. E a melhor maneira de analisar os textos é “transportar-se ao próprio terreno
onde foi recolhida a obra, onde ela foi concentrada e interpretada.
18
A partir dessas evidências, acreditamos que seja fundamental contextualizar
os musicais do Arena, seu momento de confecção e apresentação, já que, tendo sido
determinados pelo contexto histórico, são a representação da conjuntura política,
inclusive dos impasses vividos pela esquerda brasileira no pós-64. Além de abordar
temas como repressão, tortura, liberdade, justiça, democracia, independência nacional, a
partir dos quais, pretendiam instigar o espectador para a tomada de posição contrária ao
novo regime imposto. Assim, trabalharemos as peças como resultado de um
determinado momento histórico, inserido no âmbito das relações sociais, com todas as
suas implicações de dominação, reação, resistência, diferentes comportamentos;
encaradas como documentos de luta, de resistência ao regime militar e que possui,
portanto, o discurso de um determinado grupo em uma época específica. Para isso,
propomos um diálogo interdisciplinar, relacionando-os com outros documentos de seu
período, já que não está isolado, não é absoluto e sim a representação do real, quer
dizer, a visão da realidade filtrada por um sujeito que tem suas referências teóricas e
suas experiências sociais.
Dessa forma, torna-se imprescindível, como já foi dito, circunstanciar o
momento, já que perder a historicidade do trabalho do Arena e dos autores/diretores
Boal e Guarnieri, levando em consideração a forma como estes se inseriram nos debates
e lutas da época, é perder de vista toda a dimensão estética e política de suas obras.
Aqui pegamos emprestado o conceito sobre contextualização elaborado por Alcides
Freire Ramos: “o processo de contextualização nada mais é do que uma construção,
uma operação intelectual, fruto do trabalho do próprio historiador em contato com
documentos históricos. (...) De qualquer maneira (...) mão devemos ter em mente a
possibilidade de recobrir tudo, de esgotar as possibilidades. Por isso, as
17
GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
18
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. 2ed. São Paulo/Brasília: HUCITEC/Ed. da UNB. 1993, p. 50.
15
descontinuidades, as fissuras, lapsos, etc., que constituem este contexto devem ser
incorporados, ao invês de escamoteados mediante artifícios. Contextualizar, portanto, é
buscar estabelecer novas significações para o objeto, analisando, justapondo,
comparando ou contrapondo diferentes documentos históricos. E tudo isso é, como
sabemos há bastante tempo, o produto de escolhas, muitas vezes arbitrária. No entanto,
não menos válida”
19
.
Dessa maneira, é pertinente observar que nossas mentes não refletem
diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de convenções, esquemas e
estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra. Nessa situação,
nossa percepção dos conflitos é forjada por uma apresentação de pontos de vista
opostos do que por uma tentativa de articular um consenso
20
. A opção pelo objeto o
texto teatral no âmbito da História Cultural, confirma nossa identificação com as
reflexões de historiadores da cultura, para quem “os homens constrõem relações sociais
através da cultura
21
e a resistência ocorre de diversas maneiras. O tema se justifica
pelo pressuposto de que “ ‘real’ e ‘imaginário’ não podem ser separados, mas também
que seria inútil atribuir a um ou a outro desses termos a função privilegiada de
referencial ou de fundamento
22
.
Este estudo foi organizado em três capítulos, sendo que o primeiro deles,
intitulado “Interpretações acerca do Arena e de seus musicais”, preocupa-se em fazer
um levantamento historiográfico do Arena, para analisarmos como a produção
acadêmica, que parte de pressupostos teóricos e estéticos estabelecidos a priori, muitas
vezes externos a proposta da companhia, e que aceita a periodização formulada por
Augusto Boal, que por sua vez, elide os acontecimentos históricos do processo,
apresenta o grupo e o localiza na História do Teatro Brasileiro. Daí ser fundamental o
questionamento sobre o lugar em que essas interpretações sobre o Arena são feitas, já
que, diversas vezes, estruturam sistematizações a partir de uma carga valorativa a
respeito da obra, preocupando-se em aprovar ou desaprovar suas opções e não em
função de que elas são assumidas, o que permitiria recuperar a multiplicidade estética e
política que permeou a trajetória do grupo e não como transparece em muitos trabalhos,
19
RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção um estudo de “Os
Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Almeida). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História)
FFLCH, USP, p. 179-180.
20
BURKE, P. (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 15.
21
GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
22
PARIS, R. A Imagem do Operário no Século XX pelo espelho de um “Vaudeville”. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo/ Rio de Janeiro. ANPUH/Marco Zero, v.8, n.15, set.87/fev.88, p. 84.
16
a idéia de que houve um único projeto, construído linearmente e que perpassou todos os
sujeitos dessa história.
O segundo capítulo, “ ‘Arena conta Movimentos Libertários’: estrutura e
proposta temática”, tem como função central analisar a estrutura dramática de cada
peça, discutindo sobre o processo de criação dos textos, as questões que motivaram sua
confecção, as opções estéticas que são também históricas e políticas e os temas
desenvolvidos no texto. Em resumo, “não é apenas a obra que é preciso interrogar ou
questionar: é também a prática artística, da qual esta obra é o produto. O que nela lê
(...) é o relacionamento do autor com o processo de produção: sua aceitação dos
antigos modos de representação do real ou sua vontade de descobri-los novamente, sua
adesão a uma certa ordem artística (que é também uma ordem social) ou sua vontade
de transformá-la
23
.
O terceiro capítulo, “A historicidade do Teatro de Arena A construção de
uma cultura de oposição”, é dedicado à análise crítica dos comentários, sendo estes
depoimentos de integrantes do Arena, que deixam vir a tona as diferentes perspectivas
políticas e ideológicas congregadas no interior da companhia, além da relação direta
com os fatos históricos. Através do estudo desse material, objetivamos demonstrar
como toda a trajetória do Arena está em consonância com o golpe de 64 e que não foi
um projeto único e linear, mas que abarcou uma multiplicidade de pensamentos,
trazendo para o debate a situação política e cultural da época que determinou sua
produção, bem como as posições e lutas nas quais os mesmos e o grupo estavam
envolvidos. Partimos de uma questão fundamental em nosso trabalho: considerar os
autores como agentes no processo histórico e pensar os textos como documentos
construídos nos embates políticos do momento.
Dessa forma, propomos discutir historicamente a produção do Arena,
respeitando suas opções teóricas e ideológicas, pois acreditamos que, por meio desse
procedimento, seja possível recuperar os impasses vividos pelos intelectuais e artistas de
esquerda e pela própria esquerda, que se encontrava fracionada; os debates e lutas do
período, nos quais o grupo e os autores estiveram inseridos, como sujeitos atuantes,
agentes na construção do contexto histórico. Para isso, procuraremos enfrentar a
proposta de estudo interdisciplinar que articula História e Teatro, pensando as diversas
possibilidades que as manifestações artísticas oferecem para a pesquisa histórica.
23
DORT, B. O teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 341-342.
17
CAPÍTULO I
INTERPRETAÇÕES ACERCA DO ARENA E DE SEUS MUSICAIS
“Que erro? Deu errado o quê? Estava dando tão certo que
precisou ser cortado pelas pessoas a quem não
interessava que desse certo. O processo cultural, o teatro,
especificamente, foi interrompido. Na medida em que as
coisas começaram a se tornar explícitas, começaram a se
tornar perigosas, porque provocavam a discussão, a
polêmica. Então veio o silêncio, impuseram o silêncio.
Veio um ataque de cima, isso sim. E se até hoje o teatro
brasileiro possui essa imagem de resistência cultural, isso
nasceu de onde? Vem de quê? Vem de todo esse processo
de busca e pesquisa, acertos e erros, mas de consciência
crítica viva” (Gianfrancesco Guarnieri).
“Os documentos que descrevem ações simbólicas do
passado não são textos inocentes e transparentes; foram
escritos por autores com diferentes intenções e
estratégias, e os historiadores da cultura devem criar suas
próprias estratégias para lê-los. Os historiadores sempre
foram críticos com relação a seus documentos e nisso
residem os fundamentos do método histórico” (Lynn
Hunt)
Buscando discutir alguns aspectos da realidade sócio-cultural da década de
60, no Brasil, propomos uma abordagem das manifestações artísticas do momento, já
que eram movimentos interessados em representar e discutir a realidade, objetivando
uma intervenção nos problemas vividos pela sociedade.
Nesse sentido, tomaremos o Teatro de Arena
24
(1953-1970 / SP) como base
para resgatar momentos de nossa história, especificamente o período da ditadura militar,
pois nossa pesquisa está centralizada no momento da confecção dos musicais, sendo
eles Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967), já que este é um grupo
que sempre se pautou na concepção da arte como meio de luta política, instrumento
24
“Fundado por jovens formados pela primeira turma da Escola de Arte Dramática (EAD), de São Paulo,
o Arena teve esta denominação devido à escolha do palco. De acordo com o diretor José Renato, a leitura
do livro Theatre in the round (Margot Jones) fora fundamental para esta decisão, porque destacava as
facilidades e as vantagens, principalmente econômicas, do ‘palco em arena’”. (PATRIOTA, R. História,
Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. &
18
capaz de conscientizar o homem de seu papel de agente transformador da sociedade.
Sua história é a representação da mediação entre arte e realidade histórica, o que
fundamenta um exercício de interdisciplinaridade e de historicidade da obra artística.
Procuraremos neste capítulo perceber como vem sendo reconstruída a
história do Arena e como vem sendo constituída a sua historiografia, nos diversos
trabalhos acadêmicos que o tem como objeto de investigação. No entanto, acreditamos
ser importante iniciarmos pela teorização de Augusto Boal (diretor do grupo, de 1956 a
1970, ano em que foi exilado), que é tomada como base pelas interpretações
historiográficas confeccionadas a posteriori.
Junto com a intensa criação artística (peças, direção de espetáculos, criação
do Seminário de Dramaturgia, do Laboratório de Interpretação, da Feira Paulista de
Opinião), Augusto Boal sistematizou suas reflexões e análises sobre o processo do
Arena, tornando-se, inclusive, referência teórica, política e artística sobre o trabalho do
grupo. Em seu livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, no capítulo “Etapas
do Teatro de Arena de São Paulo”, percorre as atividades desse mesmo, estabelecendo
uma periodização que passa a ser adotada como base para as posteriores investigações e
produção historiográfica sobre o trabalho do grupo. Para tal, parte do pressuposto de
que os elencos nacionais dividem-se em “clássicos” e “revolucionários”:
“São clássicos não os que montam obras clássicas, mas os que procuram
desenvolver e cristalizar um mesmo estilo através de seus espetáculos. (...) Já o
Teatro de Arena elabora a outra tendência, a do teatro revolucionário (...) o seu
desenvolvimento é feito por etapas que não se cristalizam nunca e que se sucedem
no tempo, coordenada e necessariamente. A coordenação é artística e a necessidade
social.”
25
A partir disso, periodiza as atividades do grupo em quatro etapas, numa
tentativa de localizar a posição do Arena no teatro brasileiro. São elas: Primeira Etapa
“Não Era Possível Continuar Assim”; Segunda Etapa “A Fotografia”; Terceira Etapa
“Nacionalização dos Clássicos”; Quarta Etapa “Musicais”; como se uma fechasse
naturalmente a outra.
PATRIOTA, Rosangela (orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades
historiográficas. Uberlândia, UFU, 2001. P.172).
25
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p.188.
19
Então sob essa perspectiva linear, em 1956, o Arena iniciava sua “fase
realista”, como primeira etapa, que assim se caracterizava, para Boal, por significar um
não respondido ao teatro praticado até o momento
26
. Naquele ano,
“(...) o panorama paulista era dominado pela estética do TBC, teatro fundado e
quem o disse foi seu fundador entre dois copos de whisky, para orgulho da
‘cidade que mais cresce’. Feito por quem de dinheiro para quem também o tivesse.
Luxo indiscriminado cobrindo Gorki e Goldoni. Teatro para mostrar ao mundo:
‘aqui também se faz o bom teatro europeu. On parte français. Somos província
distante, mas temos alma do Velho Mundo’.
Era a nostalgia de estar distante, mas alegria de fazer quase igual. O Arena
descobriu que estávamos longe dos ‘grandes centros’ mas perto de nós mesmos e
quis fazer um teatro para quem estivesse perto.
Perto de onde? De sua platéia. Quem era? Bem, aqui vem outra história. Quando
surgiu o TBC, em nossos palcos estavam os divos, atores-empresários, que em si
centralizavam todo o espetáculo, majestosamente pisando num pedestal de
supporting-casts e ‘N.N.’. As platéias eram impedidas de ver os personagens, já
que as estrelas se mostravam, prioritariamente, idênticas a si mesmas, em qualquer
texto. Eram poucas as estrelas e já tinham todas sido vistas. A platéia fartou-se e
abandonou-as.”
27
Assim, um público mais politizado, farto das encenações abstratas, ricas na
estética, porém distantes da vivência do brasileiro, desejava encenações que fossem de
encontro à realidade.
“o Arena devia responder com peças nacionais e interpretações brasileiras. Porém,
peças não havia. Os poucos autores nacionais de então preocupavam-se
especialmente com mitos gregos. Nelson Rodrigues chegou a ser ovacionado com a
seguinte frase, que consta da orelha de um dos seus livros: ‘Nelson cria, pela
primeira vez no Brasil, o drama que reflete o verdadeiro sentimento trágico grego
da existência’. Estávamos interessados em combater o italianismo do TBC, mas
não ao preço de nos helenizarmos. Portanto, só nos restava utilizar textos modernos
realistas, ainda que de autores estrangeiros.
O realismo tinha, entre outras vantagens, a de ser mais fácil de realizar. Se antes
usava-se como padrão de excelência a imitação quase perfeita de Guielgud,
passávamos a usar a imitação da realidade visível e próxima. A interpretação seria
tão melhor na medida em que os atores fossem eles mesmos e não atores.”
28
26
O grupo de maior destaque no momento era o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), fundado em 1948
por Franco Zampari. Trata-se de uma companhia de teatro que, tendo em seu elenco diretores estrangeiros
como Adolfo Celi e Ziembinski, contribuiu para a profissionalização das artes cênicas no Brasil, para o
aperfeiçoamento do trabalho do ator, do cenográfo e do diretor. Além da atualização do repertório
dramático que privilegiava sobretudo autores estrangeiros, como Tennesse Williams e Pirandelo, embora
o TBC, mais tarde sob influência do próprio Arena, também tenha encenado brasileiros como Jorge
Andrade. A companhia acabou em 1964.
Para maiores informações sobre o TBC consultar:
GUZIK, A. TBC: Crônica de um Sonho. São Paulo: Perspectiva, 1986.
27
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p. 188-189.
28
Ibidem, p. 189.
20
Nesse momento, no Arena, criou-se o Laboratório de Interpretação, onde
Stanislavski
29
foi estudado intensamente, em busca de uma interpretação mais brasileira,
no sentido de quebrar a que existia, que era simbólica adotada pelo TBC,
caracterizado pelo exagero e gestos pré-estabelecidos e assumir uma que fosse
sinalética, verdadeira, na encenação de peças como: Ratos e Homens de John Steinbeck,
Juno e o Pavão de Sean O’Casey, Os Fuzis da Senhora Carrar de Bertolt Brecht
(embora esta venha mais tarde, pertence esteticamente a esta etapa), entre outras.
Em 1958, com a encenação de Eles não usam black-tie de Guarnieri, inicia-
se a Segunda Etapa, denominada “A Fotografia”, que durou quatro anos (1958-1962) e
lançou jovens autores, como: Oduvaldo Vianna Filho (Chapetuba Futebol Clube),
Roberto Freire (Gente como a Gente), Edy Lima (A Farsa da Esposa Perfeita), Augusto
Boal (Revolução na América do Sul), Francisco de Assis (O Testamento do
Cangaceiro), Benedito Ruy Barbosa (Fogo Frio). Na análise de Boal,
“O estilo pouco variava e pouco fugia do fotográfico, seguindo demasiado de perto
as pegadas do primeiro êxito da série. Eram as singularidades da vida o principal
tema deste ciclo dramatúrgico. E esta foi a principal limitação: a platéia via o que
já conhecia. Ver o vizinho no palco, ver o homem da rua, ofereceu de início grande
prazer. Depois, todos perceberam que podiam vê-los fora do palco sem pagar
entrada. (...) Esta fase necessariamente deveria ser superada. Suas vantagens foram
imensas: os autores nacionais deixaram de ser considerados ‘venenos de
bilheteria’, já que quase todos obtiveram imenso êxito; entusiasmados pela
existência de um teatro que só apresentava autores nacionais, muitos aspirantes
converteram-se em dramaturgos, contribuindo com suas obras para a formação d e
um teatro mais brasileiro e menos mimético.
Porém, a desvantagem principal consistia em reiterar o óbvio. Queríamos em teatro
mais ‘universal’ que, sem deixar de ser brasileiro, não se reduzisse às aparências. O
novo caminho começou em 63.”
30
Então, para Boal, a excessiva identificação entre palco e platéia poderia se
constituir no maior obstáculo para a fruição do espetáculo, uma vez que o que estava
sendo mostrado no palco já era conhecido pelo público. Assim, a partir dessas
29
Constantin Stanislavski (1863-1938) foi teórico de teatro, ator e diretor russo, foi o criador de um
conjunto de pressupostos e “técnicas” para o desempenho do ator que ficou conhecido como método de
interpretação. Sua finalidade era estimular o ator a “incorporar” a personagem o máximo possível, a fim
de “vivê-la”. Stanislavski foi o fundador do Teatro de Arte de Moscou, em 1898, que teve entre seus
colaboradores fixos Anton Tchecov que escreveu “As Três Irmãs” (1901) e “O Jardim das Cerejeiras”
(1903) especialmente para a companhia.
Para maiores informações ver:
STANISLAVSKI, C. A preparação do Ator. 11ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. /
KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo: HUCITEC, 1992.
30
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p. 192.
21
“limitações”, o grupo encerra este ciclo e dá início à Terceira Etapa “A
Nacionalização dos Clássicos”, em 1963, sendo visto pelo autor como um processo
“natural” de fechamento de algo que finalizou um período. Essa nova fase define-se
pela montagem de textos estrangeiros, em especial, aqueles considerados como
clássicos pelo pensamento ocidental.”
31
Foram eles A Mandrágora de Maquiavel
(1962), O Noviço de Martins Penna (1963), O Melhor Juiz, O Rei de Lope de Vega
(1963), O Tartufo de Molière (1964), O Inspetor Geral de Nicolai Gogol (1966).
Alguns desses foram encenados fora da etapa, mas estão ligados a ela pela proposta
estética. Consistia em interpretar os textos em função do momento histórico do presente,
dos fatos políticos do Brasil, ou seja, uma ênfase em algum aspecto da peça que fosse de
encontro aos problemas nacionais. A “nacionalização” das obras era feita de acordo
com as perspectivas sociais do momento. Essa foi uma etapa importante, sobretudo,
pela prática da analogia que se torna decisiva nos musicais realizados pós-64.
“Esta etapa oferecia, de início, alguns problemas importantes, entre eles o de estilo.
Muita gente acreditava que a montagem de peças clássicas seria o retorno ao TBC,
e assim não se dava conta do alcance, bem mais distante, do novo projeto. Quando
montávamos Molière, Lope ou Maquiavel, nunca o estilo vigente desses autores
era proposta como meta de chegada. Para que se pudesse radicar no nosso tempo e
lugar, tratavam-se esses textos como se não estivessem radicados à tradição de
nenhum teatro de nenhum país. Fazendo Lope não pensávamos em Alejandro
Ulloa, nem pensávamos nos elencos franceses, fazendo Molière. Pensávamos
naqueles a quem nós queríamos dirigir, e pensávamos nas inter-relações humanas e
sociais dos personagens, válidas em outras épocas e na nossa. Claro que
chegávamos sempre a um ‘estilo’ porém nunca aprioristicamente. Isto nos dava a
responsabilidade de artistas criadores e nos retirava os limites da macaqueação. (...)
ainda no terreno interpretativo, outra ênfase foi deslocada. Cada vez mais passou
ao primeiro plano a interpretação social. Os atores passaram a construi seus
personagens a partir das relações com os demais, e não a partir de uma discutível
essência. Isto é, os personagens passaram a ser criados de fora para dentro.
Percebemos que o personagem é uma redução do ator e não uma figura que paira
distante e flutua até ser alcançada por um instante de inspiração. Mas redução de
que ator? Cada ser humano forma seu próprio personagem na vida real: ri da sua
maneira própria, anda, fala, cria vícios de linguagem, de pensamento, de emoções:
o enrijecimento de cada ser humano é o personagem que cada um cria para si
mesmo. Porém, cada um é capaz de ver, sentir, pensar, ouvir, emocionar-se mais
do que o faz no dia-a-dia. Uma vez libertado o ator de suas mecanizações
cotidianas, estendidos os limites de sua percepção e expressão, este ator, assim
liberto, reduz suas possibilidades àquelas exigidas pelas inter-relações nas quais
desenvolve seu personagem.”
32
31
Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In:
MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais:
contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU. p. 187.
32
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p.194-195.
22
Para Boal, desenvolvida mais essa etapa, ficava clara a necessidade de se
buscar outra proposta, pois se a etapa da “Fotografia” restringia-se demais na análise
das singularidades, por outro lado esta limitava-se à síntese de universalidades. O
diretor, coloca que era necessário tentar a síntese. Assim, passa-se para a Quarta-Etapa
“Musicais” onde Boal procura dar “unidade” ao processo do Arena, já que era um
período que propunha a destruição das convenções teatrais que se apresentavam como
obstáculos ao desenvolvimento estético das artes cênicas. Dessa forma,
“procurava-se mais: contar uma história não da perspectiva cósmica, mas sim de
uma perspectiva terrena bem localizada no tempo e no espaço: a perspectiva do
Teatro de Arena, e de seus integrantes. A história não era narrada como se existisse
autonomamente: existia apenas referida a quem a contava.”
33
Assim, como já dissemos, tomando como ponto de partida essa teorização
de Augusto Boal, foram realizadas diversas pesquisas acadêmicas, tendo o Teatro de
Arena como objeto de estudo, buscando analisar seu projeto estético e político e definir
seu lugar no cenário teatral brasileiro. Estudos foram elaborados no decorrer das últimas
décadas, com diferentes referenciais teóricos e que devem ser consultados quando o
tema é o mesmo. Porém nos restringiremos aos trabalhos que discutem os musicais da
companhia, objeto de nossa pesquisa.
A ênfase no texto está presente no estudo de mestrado de Sonia Goldfeder,
Teatro de Arena e Teatro Oficina o Político e o Revolucionário, concluído em 1977,
que estabelece comparação entre as realizações destes dois grupos, centrando-se nas
peças Arena conta Tiradentes e O Rei da Vela
34
, com o objetivo de determinar o papel
que desempenharam no processo artístico e histórico em que estão inseridos, tendo
como referência os conceitos de “teatro político e “teatro revolucionário”.
Para tal análise, a pesquisadora apóia-se em formulações desenvolvidas por
Brecht e que estão presentes em sua obra, opondo-as ao teatro de Piscator
35
, que visava
33
Ibidem, p. 196.
34
O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada pelo Teatro Oficina (SP), em 1967, com direção de
José Celso Martinez Corrêa.
35
A diferença entre Erwin Piscator (1893-1965) e Bertolt Brecht (1898-1956) se dá essencialmente no
seguinte ponto: “Piscator quer mostrar tudo. Quer mostrar a História que se faz, como e por quem ela é
feita. Por exemplo, montando Rasputin, utiliza a segment-buhne, isto é, um palco hemisférico com planos
múltiplos; no centro, Rasputin age e fala, e à sua volta, em alturas diferentes, desenrolam-se ações
paralelas que envolvem as principais personagens da Europa. Brecht, por sua vez, pretende inicialmente
nos mostrar a relação entre o homem, entre um homem e a História não nos expor toda esta História.
Para ele, há, de um lado, a vida individual deste homem e, do outro, a História: cabe ao espectador efetuar
o vaivém entre os dois e extrair daí a moral, a sua moral.” (DORT, Bernard. O Teatro e a sua Realidade.
São Paulo: Perspectiva, 1977, p.286.)
23
colocar em cena os problemas e soluções para a classe operária, levando-a a exaltação e
agitação, para uma tomada de decisão e não apenas uma atitude reflexiva. Isso criaria
uma relação de comoção com a platéia, para que esta fosse convencida pela paixão e
para isso, segundo Goldfeder, o encenador utilizava-se largamente da figura do herói
positivo. Ao contrário, Brecht combate o abandono do nível artístico em detrimento do
discurso político, pois não se trata de simplificar a realidade, e sim mostrá-la em sua
contradição, em sua imperfeição, propondo “um teatro da consciência, não da ação; do
problema, não da resposta; como toda linguagem literária, serve para formular, não
para fazer
36
.
Nessa perspectiva, para a autora, manifestação artística revolucionária é
aquela implicada não na recolocação de uma ordenação social já falsa, já em
decadência, mas sim em denunciar a crise desta maneira (e portanto a crise deste real),
propiciando novas linguagens que se coadunem com o verdadeiro processo de
transformação social
37
. Ou seja, um teatro que leve o espectador à dúvida, ao
questionamento e que não subordine o estético ao político. Porém, acreditamos que não
dá para pensar a relação estética-política de forma estanque, já que eles estão
imbricados, pois um discurso comprometido com a transformação da realidade socio-
política, necessita de uma forma inovadora.
Centrarnos-emos à análise que a autora faz sobre o Tiradentes, apesar de
que percorre a história de alguns espetáculos do Arena, em que discute o seu projeto
estético e ideológico, colocando-o como o grupo impulsionador das mudanças mais
intensas pelas quais passou o teatro brasileiro, especialmente a partir de 1958, ano da
montagem de Eles não usam black-tie, que se insere no projeto de “nacionalização do
teatro” e que caracteriza-se como “bandeira de luta”, na medida em que promove uma
tradição de “teatro político” no país e inaugura uma nova fase no teatro nacional.
No que se refere a esse momento dos textos nacionais, a autora parte da
perspectiva de que ele se traduz em uma visão idealizada das classes oprimidas, porém
com o episódico se sobrepondo ao político, já que é o primeiro que conduz a ação
dramática, recorrendo ao acontecimento político, que irá definir o comportamento dos
principais personagens, pondo em discussão seus valores, aspirações e sua moral. Além
36
ECO, Umberto. Apud: GOLDFEDER, S. Teatro de Arena e Teatro Oficina O Político e o
Revolucionário. Campinas, 1977. Dissertação (Mestrado e Ciência Política) Depto. de Ciências Sociais
IFCH/UNICAMP, p. 6.
37
GOLDFEDER, S. Teatro de Arena e Teatro Oficina O Político e o Revolucionário. Campinas, 1977.
Dissertação (Mestrado e Ciência Política) Depto. de Ciências Sociais IFCH/UNICAMP, p. 13.
24
de sobressaltar um esquema maniqueísta entre o bom e o mau, o autêntico e o falso, que
reforça a função didática do texto. A autora chama a atenção para o fato de que todo o
discurso do Arena, se apoia em um tratamento de “idealização” da realidade e
composição do personagem heróico, positivo, representativo do “povo”, aqui
compreendido como classe operária, reforçando a mensagem didática do texto.
Já no momento seguinte, a nacionalização dos clássicos, centra-se na
encenação para analisá-lo, pois nesse momento ela teria sido privilegiada, numa visão
que incorporava o artístico enquanto forma, demonstrando uma reordenação da função
social do teatro e da formulação estética no grupo, porém sem abandonar as
problemáticas sociais. Goldfeder aceita a periodização estabelecida por Augusto Boal,
atribuindo o surgimento dessa nova etapa à tentativa de manter o Arena, que sofria com
o esgotamento da produção de textos nacionais, bem como com a ruptura no grupo, que
levou à saída de alguns integrantes, como Oduvaldo Vianna Filho, Flávio Migliaccio,
Nelson Xavier. Não era, ressalta a autora, uma resposta aos problemas vividos pela
sociedade no momento. Contudo, considera essa uma das melhores fases do grupo, em
que o projeto estético se põe à frente do ideológico e que se consegue um
amadurecimento nas formas de interpretar. Os personagens são construídos a partir
das relações que mantém entre si e não à partir de uma discutível essência; enfatiza-se
dessa forma a interpretação social em oposição a uma interpretação psicológica dos
personagens
38
. A base dessas encenações seria a sátira que, agindo sobre a moral, os
costumes, exerceria seu papel de crítica social.
Sônia Goldfeder evidencia que a segunda fase (Fotografia) localizava a
singularidade, enquanto que a terceira (Nacionalização dos Clássicos) apontava para a
universalidade, ainda numa interpretação calcada nas ponderações de Augusto Boal.
Dessa forma, era preciso buscar a síntese que representava um retorno à perspectiva do
teatro, pensando a realidade imediata, só que agora tendo o estético em função do
político.
Partindo daí, para Sônia Goldfeder, Zumbi é a retomada da proposta de ter
como protagonista do espetáculo o “povo”, retornando ao teatro que reflita e pense a
realidade do momento. Ressurge também a idealização do real: os negros são
concebidos por Boal e Guarnieri como indivíduos valentes, fortes, líricos, sensuais. Os
brancos arrasam, pisam, esfolam, roubam, matam. E surpreendentemente os brancos
38
Ibidem, p. 121.
25
vencem
39
. Assim, o personagem positivo elaborado nas peças da “fase nacional”, como
um indivíduo comum mas digno, bom caráter, agora, em Zumbi e Tiradentes, toma a
dimensão de herói “cuja imagem positiva já é aceita a priori, isto é, já pertence ao
repertório do público; estas ‘imagens’ sofrem uma reelaboração que vem a reboque de
uma atualização histórica transforma-se o ‘herói’ do passado, inserido no
conhecimento comum, em um personagem que responde às necessidades de um
processo atual de atuação no real
40
, o que enfatiza uma composição maniqueísta e
didática, que serão, segundo a autora, os pontos de maior crítica na época de sua
montagem, além do discurso político que se sobreporá ao episódico, em função dessa
mesma proposta. Por exemplo, na personagem Tiradentes, essa heroicização se daria na
visão lúcida, objetiva e realista que possui da situação, ao contrário do caráter
intelectualizado, oportunista e individualista dos demais inconfidentes. E a didatização
do teatro poderia ser vista no estilo de interpretação, na introdução da música, do
narrador, o caráter explicativo do discurso entre outras. Nesse sentido, a autora
questiona a eficiência desse recurso como forma de esclarecimento das relações sociais
e “explicitação das formas ideais de luta
41
.
Sônia Goldfeder trabalha de modo a acentuar a maneira como o discurso
político é utilizado na dramaturgia do Arena. No primeiro momento, a recorrência a ele
se dava de forma indireta, servindo ao episódico; enquanto nos musicais ele ganha
autonomia, subordinando a fábula. Dessa maneira, a autora considera a fase de
“nacionalização dos clássicos” como melhor momento da companhia que, em sua visão,
sobrepõe o projeto estético ao ideológico.
Partindo desse raciocínio, Goldfeder qualifica o Arena como não
revolucionário, por sua concepção de engajamento que “condiciona de forma irrestrita
o sentido de refiguração do real projetado nas montagens
42
que apresentam verdade
prontas e acabadas, expondo soluções, não dando margem à reflexão pelo espectador à
formulação de respostas para os problemas, o que acabava por obscurecer a realidade
social. E nesse ponto, enfatiza ainda que toda renovação estética surge em função do seu
projeto ideológico: “o compromisso político acaba por superar o compromisso com a
própria, regimentando a criação e transformando-se mais em um meio do que um fim
39
Ibidem, p. 127.
40
Ibidem, p. 148.
41
Ibidem, p. 46.
42
Ibidem, p.228.
26
em si. Realizam, (...) um TEATRO POLÍTICO; seu projeto artístico, porém, não se
coloca como ‘revolucionário’
43
. Para a autora, teatro revolucionário é aquele que,
centralizando seu projeto na crítica à sociedade constituída, cerca-se de uma visão
mais fiel da realidade
44
para denunciar suas contradições, levando o espectador à
reflexão, além de romper com os valores antigos da arte. Um teatro que, ao contrário,
represente a realidade a partir de seu projeto ideológico e encare a criação como meio
de luta, não será nunca vanguarda. Então, político seria aquele que trata de uma
temática social, de forma objetiva e direta, servindo-se do estético (que vem deficiente)
para suas formulações ideológicas, simplificando a realidade representada.
Fica claro que a autora faz restrições ao trabalho do Arena, em especial aos
musicais, pela explicitação de seu conteúdo político e ideológico, considerando que o
teatro não é capaz de, por si mesmo, promover a transformação da sociedade. Diz
reconhecer o uso que se pode fazer dele como arma de conscientização, mas que deve
ser visto apenas como mais um elemento numa luta mais ampla.
Dentro dessa discussão, em que a autora parece confundir ou restringir o
conceito “político”, torna-se pertinente o esclarecimento que Rosangela Patriota faz em
relação a este tipo de restrição, que segundo ela “são associadas a interpretações que
acreditam que os trabalhos engajados são superados pelo tempo, ao passo que os que
(pretensamente) não se comprometem com o seu presente podem almejar a perenidade.
No entanto, a defesa desta opinião elidiu um aspecto importante da discussão: o fato de
não assumir publicamente posição e perspectivas de análise não significa em absoluto,
ausência deles. Ao contrário, o que não ocorre é a não-revelação dos princípios que
nortearam a elaboração da obra. Assim, torna-se plenamente justificável afirmar que,
por excelência, todas as manifestações, artísticas ou não, são políticas. Elas podem ser
diferenciadas pelos níveis de engajamento, mas não por meio de divisões esquemáticas
como ‘político’ e ‘não-político’ (grifo nosso)”
45
.
Em 1978, a revista Dionysos lança um número especialmente dedicado ao
Teatro de Arena. Nele a crítica Mariângela Alves de Lima, em um artigo intitulado
“História das Idéias”, registra, cronologicamente, o essencial da trajetória da
companhia, através de informações colhidas em programas de teatro, periódicos,
43
Ibidem, p.232.
44
Ibidem, p.228.
45
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC,
1999, p. 19-20.
27
depoimentos e fotos, e discute seu projeto estético, sem perder de vista as circunstâncias
históricas a que está vinculado.
Para a autora, a dinamização do centro cultural irá postular ao Arena o papel
de modificador das coordenadas teatrais. Isso traz a preocupação em formar um público
e captar novos contingentes para a atividade teatral.
Essa preocupação será melhor atendida com a criação do Seminário de
Dramaturgia, em resposta do Arena a essas preocupações, que despertam nos
integrantes do grupo a necessidade de criação de uma dramaturgia nacional, que lhes dê
as temáticas que desejam pôr em cena:
“o Arena se compromete com a invenção de uma dramaturgia enraizada na história
do país. É dessa história, ‘enquanto acontece’, que o grupo vai extrair os textos que
precisa para reanimar um trabalho que estava próximo a um ponto de
estrangulamento.
Precariamente pode-se denominar o trabalho de Arena, a partir de Black-tie, como
uma linha de nacionalismo crítico. Isso porque o nacionalismo, nesse caso, não tem
conotação estreita de um ufanismo da coisa própria. Não se pode, portanto,
desvincular o nacionalismo da crítica, na avaliação do trabalho do Arena.”
46
Nesse sentido, para a autora, Eles não usam black-tie, de Guarnieri,
encenada em 1958, irá determinar o rumo dos acontecimentos posteriores do Arena,
evidenciando a viabilidade artística de um comprometimento entre a obra teatral e a
história, os fatos presentes. Juntamente com essa transformação no campo da
dramaturgia, surge a necessidade de revolucionar a cena. Começa então a pesquisa do
“gesto brasileiro”, na elaboração do espetáculo, de forma a evidenciar no personagem a
maneira de agir do povo brasileiro. Essa busca leva à formulação de diversos cursos de
voz, expressão corporal, interpretação, além do estudo teórico.
A partir da cronologia proposta por Boal, a autora discute a passagem dessa
segunda fase da procura do herói nacional, para a de “nacio nalização dos clássicos”,
que considera a etapa de menor êxito e que teria se dado pela dificuldade de construção
desse tipo de herói, que exige tempo integral do autor, o que não era possível no Arena,
já que todos estavam envolvidos nas atividades do grupo, levando a uma interrupção na
elaboração da dramaturgia, além da busca de reformulação estética, que começava a
surgir, instigada por uma insatisfação com os textos produzidos que, muitas vezes,
subordinavam a comunicação artística com o público aos ideais políticos. Aqui, apesar
46
LIMA, M. A. de. “História das Idéias”. In: Dionysos. Rio de Janeiro: MEC/DAC-FUNARTE/SNT.
Outubro, 1982, p. 56.
28
de, diferentemente de Sonia Goldfeder, não ver grande êxito nesta fase, acaba partindo
da mesma perspectiva de considerar que o Arena submetia o estético a função de servir
ao ideológico, não discutindo, mais profundamente, o contexto histórico nas mudanças
da companhia.
Por outro lado, Mariângela Alves de Lima, em sua análise sobre os
musicais, acentua as características de redundância e emocionalismo, para chegar a
mesma crítica de Sonia Goldfeder, que aponta uma relação empática com o público,
baseada no apelo emocional. Evidencia a ênfase na emoção em diferentes níveis do
espetáculo, como na “comunicação emocional intensa e direta com o espectador
47
, que
deve dispor das mesmas informações do teatro, na interpretação dos atores, na
disposição cênica, no canto, entre outros. Porém, esse envolvimento da platéia poderia
impedir a reflexão e o entendimento do sistema a que a peça se refere. Nesse ponto a
autora assinala que,
“Nesses espetáculos há gestos e composições que, pela sua freqüência, tornaram-se
signos amplos de uma oposição: opressão vs. Aspiração libertária. O ator apela
diretamente para a platéia, num gesto de convite. Convida-a para a participar de
uma aspiração coletiva. Enquanto isso, as músicas referem-se com muita
simplicidade à tristeza dos oprimidos e à vontade titânica dos ‘heróis humildes’.
São heróis que extraem sua força do aniquilamento a que estão confinados pela
organização da sociedade. No caso, o sentimento de ser oprimido se sobrepõe à
compreensão dos mecanismos de poder.”
48
Apesar disso, reconhece que nos musicais, especialmente em Zumbi,
qualidades literárias e musicais, que promovem uma abordagem inteligente de
acontecimentos históricos, que já foram mistificados pela história tradicional. O que não
elimina, para a autora, a constatação de que “o índice de informações novas é bem
menor que o do tempo em que o Arena procurava conhecer e criticar a realidade
brasileira
49
.
Quanto ao que se refere à crítica de ser o público do Arena burguês,
Mariângela Alves de Lima concorda, colocando que esta é a maior contradição do
Arena, que direcionava suas encenações às classes trabalhadoras, que são o agente
transformador da realidade, estando, no entanto, limitado a um público burguês em sua
sede, encontrando o povo apenas quando viajava para o interior do país. Para a
pesquisadora, essa foi uma grande limitação do Arena: o público, que ora era o burguês
47
Ibidem, p. 56.
48
Ibidem, p. 57.
49
Ibidem, p. 56.
29
que freqüentava sua sede, ora o povo, que o grupo encontrava esporadicamente no
contato com associações estudantis, sindicatos, ligas camponesas, etc.. Entretanto, numa
análise dos objetivos e conquistas do grupo, a autora discorda quanto ao processo do
modo de produção da arte, destacando que,
“é preciso não perder de vista que, se o Arena não chegou a transferir para as
classes populares os meios de produção do teatro, chegou a transferir para outros
grupos de teatro a maior parte das suas aquisições. O encaminhamento que o grupo
deu às questões do teatro popular engajado foram posteriormente utilizadas, na
prática e na teoria, por centenas de grupos profissionais e amadores, nas diversas
regiões do país por onde o grupo passou. O teatro feito com uma idéia e poucos
recursos, a luz substituindo os objetos de cena, a caracterização social da
personagem sobre a caracterização particular, a utilização da música como recurso
narrativo, o compromisso social entre o ator e o público, todas essas coisas
passaram a circular como moeda corrente em intocáveis grupos de teatro. Propostas
certamente revolucionárias na produção teatral de pequenas comunidades do país,
onde o teatro iniciava-se apenas como uma das poucas alternativas de lazer. Essas
novas idéias o Arena introduziu não só através dos espetáculos, como através da
atividade isolada de seus membros junto a essas comunidades.”
50
Um ano depois da publicação de Dionysos, Elza Cunha de Vincenzo conclui
sua dissertação de mestrado, intitulada A Dramaturgia Social de Gianfrancesco
Guarnieri, que tem como objeto de estudo algumas peças de Guarnieri,. Como o próprio
título sugere, a autora centra-se na obra do dramaturgo, inserindo-a “no panorama
histórico e sócio-cultural do país, buscando mostrá-la como expressão teatral
50
Ibidem, p. 50-51. Nesse ponto, essa questão que Mariângela Alves de Lima levanta é de extrema
pertinência. Pois como podemos constatar, a grande contribuição do Arena ao transferir suas aquisições
técnicas e teóricas para outros grupos de teatro, profissionais e amadores, de diversas regiões do país,
inclusive no interior, possibilitando o desenvolvimento e a consolidação desses grupos ou até mesmo a
formação de outros, é real. Isso se mostra na própria experiência de teatro de nossa cidade Ituiutaba. Em
1974 foi fundado o Grupo MECA Movimento Experimental de Cultura por Carlos Emílio Guimarães e
Ana Luiza Guimarães, até hoje presentes no mesmo. A criação do Meca surge da intenção de construir
uma intervenção cultural e política na cidade, através do teatro e com isso formar um público consciente e
crítico, que encontrasse em cena temáticas atuais e polêmicas inerentes a vida da comunidade, quer
tratasse da realidade local ou nacional. Acreditamos que a influência do Arena tenha sido fundamental
para a formação do grupo e para a construção, alguns anos depois, de sua sede o Teatro Vianinha.
Apesar de não ser uma influência direta, pois se deu através da repercussão do trabalho do Arena, no
contato de Carlos Emílio com este (assistindo aos espetáculos e residindo naquele momento na região
onde se localizava o Arena), mas fundamentalmente na identificação com a postura ideológica. Nesse
sentido comunga, da visão da arte como meio de luta política, social, que provoque a reflexão e a
consciência da necessidade de resistir e atuar, porém com a preocupação de não perder a dimensão
estética. Sempre procurando percorrer esse caminho, o Meca hoje é considerado referência artística no
município e na região, tendo sido premiado em 1985 pelo Conselho de Cultura da Secretaria do Estado de
Minas Gerais, já que é o único grupo que se mantém há tanto tempo (27 anos) com uma atividade
constante, entre espetáculos, encontros, shows musicais, cursos de teatro, etc.
30
portanto, poética de determinadas experiências político-sociais que nosso povo tem
vivido
51
.
No estudo de algumas peças, a autora discute momentos do Arena, por
estarem, intimamente, ligados à trajetória deste com a obra de Guarnieri. Inicialmente,
traça um panorama da dramaturgia que era feita antes da criação do Arena, da
encenação de Black-tie e a busca de um teatro nacional e popular.
Especificamente, em Zumbi e Tiradentes, ao contrário de outras abordagens,
focaliza sua análise no processo de trabalho e não no texto, por se tratar de co-autoria, e
por terem sido acompanhadas de “intensa e elaborada teorização de Boal.”
Ao iniciar a análise sobre os musicais, destaca a ligação destes com os
impasses vividos pelo teatro brasileiro, a partir de 64:
“O teatro brasileiro, desde 1964, tal como outras instituições, vinha vivendo sob
vigilância e censura rigorosas. A atuação do novo governo, desde a sua 1ª fase,
obriga o teatro a desviar-se, em muitos pontos, dos rumos que vinha seguindo. (...)
o teatro brasileiro, consciente ou inconscientemente, busca novos caminhos para
sobreviver. Alguns desses caminhos, nos primeiros momentos, quando o
cerceamento (que será progressivo) não atingiu ainda os núcleos vitais da
criatividade, representam de certa forma, um enriquecimento estético. Com o
tempo, porém, o represamento ou repressão continuando ou acentuando-se
tenderá a tornar-se uma força esterilizante. Nos momentos iniciais, entretanto,
provoca respostas prontas, que são verdadeiras reações em corpo vivo.”
52
Porém, na seqüência do estudo, aceita a periodização proposta por Boal e
suas argumentações, para o fim de uma fase e início de outra. Como é o caso dos
próprios musicais, e que a estudiosa, partindo da explicação do dramaturgo, coloca que
essa 4ª etapa é a busca da síntese entre a singularidade, promovida pela 2ª etapa “A
Fotografia” e a universalidade da 3ª - “A Nacionalização dos Clássicos”. Além de
representarem, como já disse, uma resposta ao contexto socio-político e cultural.
Assim, para Vincenzo, nesse momento, com estas peças, o Arena pretendia
criar condições para que o público captasse a luta entre opressores e oprimidos, os
mecanismos de exploração daqueles e que era possível alterar essa condição de opressão
e conquistar a liberdade. Levanta dois fins a que os musicais serviram, além dos
assinalados por Boal:
“O primeiro foi criar condições para vencer o cerco da censura por duas vias
estratégicas: o recurso à narrativa histórica (que permite deslocar para uma ação do
51
VINCENZO, E. da C. A Dramaturgia Social de Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo, 1979.
Dissertação (Mestrado em Artes) ECA/USP, p. II.
52
Ibidem, p. 126.
31
passado a discussão sobre o presente) e a utilização do ambíguo poder da música,
que, se por um lado generaliza e não define, de imediato, compromissos de ordem
conceitual e ideológica, por outro, atua como grande força empatizante e
congregadora. (...) O segundo objetivo alcançado pelos musicais, que
possivelmente não estava previsto, foi funcionar como oportunidade para uma
grande catarse coletiva. (...) O que, na verdade, significa desempenhar ainda que
por entre as frestas da cerrada teoria racionalista de Boal uma também importante
função social.”
53
Ou seja, Elza Vincenzo também registra uma ação catártica na platéia
provocada pelos espetáculos. Porém ressalta a importância de sua função social,
especialmente, numa situação de arbítrio.
No livro Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião uma interpretação
da cultura de esquerda, Edélcio Mostaço, realiza um estudo sobre o Arena (SP), o
Oficina (SP) e o Opinião (RJ), procurando apreender momentos distintos da trajetória
dos grupos, articulando-os às motivações ideológicas e políticas que instigaram os
trabalhos realizados. Em relação ao Arena, destacou marcos importantes, como a
montagem de Black-tie que foi um “divisor de águas” na companhia, a utilização do
“realismo socialista para externalizar um ideário” de engajamento da arte, que retrate a
realidade; a chegada de Boal e a inclusão do TPE no elenco do grupo, trazendo para este
o sentido político que marcará suas atividades, entre outros. Para tal análise, partiu da
perspectiva do Realismo, como base estética do grupo e procurou analisar as fases
propostas por Boal a partir deste referencial
“Mas que realismo? Praticamente impossível saber. Zulmira Ribeiro Tavares é
taxativa: ‘De um ponto de vista teórico, o Seminário de Dramaturgia esteve muito
preso às teses do realismo socialista. As relações entre teoria e prática foram nele
sempre problemáticas. O procurado ‘reflexo’ da realidade era entendido em sentido
estrito, quase documental, e a fuga a isto encarada como um ‘desvio formalista’.’
Outro integrante, Flávio Migliaccio, também sugere esta tônica: ‘Imbuídos daquele
entusiasmo todo, era perfeitamente normal considerar válidos somente os textos
dentro daquilo que achávamos ser a forma que daria início ao nosso trabalho, que
era o realismo socialista.’ Enquanto Guarnieri refuta categoricamente: ‘Não
aceitamos o rótulo de realismo socialista. Nosso realismo era, antes de tudo, crítico.
Nas primeiras composições, era de um naturalismo de observação social imediata.
Tivemos sérias discussões a respeito da existência de realismo socialista num país
capitalista.’”
54
A partir de uma análise de Augusto Boal sobre o teatro brasileiro e as
condições necessárias para a formação de um teatro popular, em um artigo datado de
53
Ibidem, p. 130.
54
MOSTAÇO, E. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura de
esquerda). São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 43-44.
32
1959, Mostaço aponta que as idéias e formulações teóricas do Arena e que refletiam em
sua obra andavam em “perfeita sintonia com o que de mais político se pensava então, e
cujas vertentes principais encontravam-se no ISEB e nas teorizações do PCB
55
. Para
ele, o Arena estava em consonância com as discussões político-culturais do momento,
ao contrário dos grupos anteriores a ele, que não tinham esse caráter engajado de
participar dos debates políticos:
“Os dois primeiros aspectos, que lançariam o Arena decisivamente na procura da
realidade brasileira, estão sintetizados no último parágrafo do citado texto:
‘Portanto, à medida que o nosso teatro vai incorporando novas platéias, não vai
jamais reduzindo seu campo de ação, mas ampliando-o e buscando uma adequação
formal mais enérgica. Lamentavelmente, até as idéias reacionárias e falsas podem
encontrar uma forma artística válida e atuante. Por isso, mais do que nunca, requer-
se uma definição exata do artista como homem e ser social. A análise do artista
como homem vivendo no mundo é certamente mais importante do que a do
desenvolvimento do nosso teatro, não sendo, porém, objeto deste artigo.’ Discurso
que não deixa dúvidas, o homem político e social sobrepôs-se ao homem estético
conferindo ao Arena nesta sua Segunda fase o caráter de um grupo teatral
ideológico, o primeiro de uma série de outros que surgiriam na década de 60,
caráter preponderante em sua posterior trajetória. (...) foi o Arena o introdutor do
caráter funcional da arte, fazendo de sua prática artística um ininterrupto diálogo
entre estas duas funções sociais: arte e política. Equações quase sempre
transformadas em adequações, sem uma filiação partidária rígida, mas de esquerda,
dentro da pluralidade de tendências que este conceito admite. Este caráter
revolucionário é novo dentro do panorama que estamos observando. Não é possível
falar em teatro no Brasil, depois do Arena, sem levar em consideração sua enorme
influência, ao menos se falarmos do teatro cultural e socialmente válido.”
56
55
A esse respeito Mostaço compreende o seguinte: “O ISEB congregava uma seleta intelectualidade,
organizada em torno da criação de um projeto desenvolvimentista, cuja função básica nos anos JK foi
fornecer o necessário respaldo intelectual e ideológico para a presidência da República. Organizado como
uma “universidade”, através de aulas, conferências e seminários, influiu decisivamente na formação da
intelectualidade jovem dos últimos anos 50 e primeiros da década de 60. Sem ser o portador de um
pensamento único, frise-se, pelo contrário, comportando desde neo-positivistas até marxistas, o ISEB
como um todo, teve papel decisivo nas discussões econômico-culturais do período, não havendo nenhum
movimento importante que dele não se abeberasse, criticando ou negando, mas sempre tendo-o como
ponto de referência. (...) Quanto ao PCB, suas preocupações concentravam-se mais nas táticas políticas do
que na formação de um pensamento cultural. Após o 20º Congresso do PCUS, onde Nikita Kruschev
iniciaria a ‘desestalinização’, o PCB entraria igualmente em confrontos internos que resultariam, em
1958, na promulgação de uma Declaração Política ‘que representaria uma modificação substancial na sua
linha’. Esta declaração acirra ânimos internos e será o início do processo que levará o Partido a se
subdividir posteriormente. Enquanto tática política é a mais clara expressão da constituinte de esquerda na
conjuntura do Estado populista que se configurou até 1964. É desta Declaração o trecho: ‘a revolução no
Brasil não é ainda socialista, mas anti-imperialista e anti-feudal, nacional e democrática’, destacando
ainda a necessidade de formação de ‘uma frente única nacionalista e democrática, integrada pelo
proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia interessada no desenvolvimento independente e
progressista da economia nacional e mesmo setores de latifundiários em contradição com o imperialismo
norte-americano na disputa de mercados ou grupo da burguesia ligados a monopólios rivais dos
monopólios norte-americanos e que são por este prejudicados.” (Ibidem, p. 45-47).
56
Ibidem, p. 47-48.
33
A fase seguinte “nacionalização dos clássicos” , representava “o
aprofundamento estético e político do pensamento de Boal” e seria, para Mostaço, uma
etapa de êxito e inovação, de crescimento qualitativo tanto nos aspectos artísticos
quanto políticos, já que propunha mostrar o homem como um ser dialético, enfatizando
o conteúdo político da peça. Assim, o autor propõe que
“a expressão ‘nacionalização dos clássicos’ marcasse não só uma fase estética mas
uma preocupação com uma prática e uma teoria teatral voltada para a constituição
de uma dramática nova, respaldada em textos que tiveram a grandiosidade de
permitir um exercício ideológico conseqüente enquanto praxis artística. Dessa
forma também se enfeixariam Os Fuzis da Sra. Carrar, de Brecht e o exercício
nordestino, O Filho do Cão, de Guarnieri.”
57
Na análise dos musicais, Mostaço aponta que além de “uma opinião sobre o
mundo”, buscavam “uma perspectiva para esta opinião”, que pudesse demonstrar um
caminho como proposta de luta, definindo-se como “grupo ideológico com certo
partidarismo em arte”.
Em vista disso, lança críticas aos musicais, considerando-os maniqueístas
em excesso, em especial a Zumbi: “os negros sãos sempre belos, altaneiros, alegres; os
brancos despóticos, sorumbáticos, desprezíveis e cruéis
58
. Destaca que a correlação
entre acontecimentos históricos do passado e do presente, para se chegar a uma analogia
que tenha uma mensagem política, é deliberada, pois vem em função de “demonstrar
uma similitude de fatos, e assim atingir sua mensagem política: a uma fase de
tolerância e de transações de amizade e convivência pacífica entre negros e brancos,
sobrevém um duro golpe militarista, destinado a desbaratar os quilombolas, a apagar a
memória daquele sonho de liberdade e felicidades humanas
59
. Ou seja, não impõe um
distanciamento crítico, ao contrário, a platéia é envolvida, tornando-se “cúmplice do
ritual”. Estabeleciam uma comunicação comum para se chegar a uma “cartasis
purgadora”.
E ainda, que o resultado das opções formais do espetáculo, como a
desvinculação ator/personagem, o uso de recursos como slides, o ecletismo de gênero,
entre outros, produziam um resultado que se assemelhava a um seminário
universitário, uma dramatização feita pelos alunos da classe para os colegas
60
. Na
57
Ibidem, p.65.
58
Ibidem, p.83.
59
Ibidem, p.83.
60
Ibidem, p.85.
34
relação cena/platéia, caracterizada pelo autor como fechada
61
, ele aponta o que, em sua
opinião, foi o grande erro, que é transformar o público, formado nesse momento em sua
maioria por estudantes, ou seja, pertencentes a mesma classe burguesa dos artistas, em
agente revolucionário, mistificando-o. Por isso, “considerar os elementos constituintes
da frente ou os estudantes (...) constituiu, no mínimo, uma estranhável abordagem da
teoria marxista
62
. Percebe-se, a partir daqui, que Mostaço parte de pressupostos
teóricos, dissociados do contexto histórico em que a obra está inserida. Pois não
deixando de comungar de princípios marxistas, esses “artistas burgueses” (Arena) estão
propondo para os estudantes, seu público, saírem da idéia dominante de sua classe de
origem e comungarem do ideal de justiça, igualdade, democracia e não se enquadrarem
no padrão de vida burguês.
Para o autor, Tiradentes se diferencia de Zumbi pelo fato de que:
“A estética já não é mais do que mera arma de incitamento e o teatro senão o lugar
de encontro da seita para ouvir a palavra de ordem a ser cumprida na rua. A
mobilização atinge seu grau máximo, onde o mínimo desejável é que o espectador,
saído do teatro, apanhe a primeira arma e comece a lutar.”
63
Ou seja, a crítica de Mostaço se dá a nível de divergência da posição política
postulada na peça. E vai mais além:
“Não é nenhum absurdo pensar que Boal, ao rebater o caráter ‘clássico’ dos ex-
cepecistas do Opinião estava igualmente rebatendo suas posições políticas, assim
como, de resto, explicitando através da perspectiva do Arena, sua reprovação à
política frentista das esquerdas. (...) Esta perspectiva, vislumbrando a luta armada,
era novíssima no Brasil, contrariando as posições ortodoxas do PCB. O racha de
67, de onde surge a ALN e suas táticas preconizava, pela via cubana, a luta armada
como única saída para os povos oprimidos, encontra na montagem de Tiradentes
não apenas uma apologia estética como a primeira mobilização de opinião pública
a nível de sua propaganda. (...) Retórica aplicada, de raro efeito emocional (e
emocionante!), Tiradentes demonstrou saber lidar com seu público, bem como
fazer para tornar o mais eloqüente possível suas componentes rituais. (...) A platéia,
ao declarar sim em seu foro íntimo, em estreita conivência com as idéias
apresentadas (...) encontrava-se o mais completamente dentro das malhas da
ideologia.”
64
61
Relação cena/platéia qualificada como fechada, significa nesta abordagem de Edelcio Mostaço, que a
peça é constituída por mensagens definidas e acabadas, não dando liberdade para que o espectador reflita
e tome sua posição.
62
MOSTAÇO, E. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura de
esquerda). São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 85.
63
Ibidem, p. 93.
64
Ibidem, p. 94-95.
35
Outro trabalho de grande importância é Zumbi, Tiradentes, de Claúdia
Arruda Campos, por se deter mais especificamente sobre as peças Arena conta Zumbi
(1965) e Arena conta Tiradentes (1967). A pesquisadora elabora um histórico sobre a
trajetória do grupo, obedecendo a periodização estabelecida por Augusto Boal. Porém,
em relação a esse ponto, considera que é preciso atenuar a teorização feita por Boal, ao
caracterizar o Arena como um teatro revolucionário, por ter-se desenvolvido através de
etapas jamais cristalizadas
65
, já que a autora classifica-o no máximo como um teatro
ágil, capaz de responder com rapidez às dificuldades enfrentadas.
Percorre cronologicamente o percurso do Arena, antes de se centrar nos
musicais, por considerar que eles são a síntese de todas as realizações do Arena, “são
produtos da maturidade de um grupo”, articulando em seu estudo o material crítico
produzido na época, em especial, de Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado, além
dos ensaios formulados depois, como os de Sônia Goldfeder, Mariângela Alves de Lima
e Roberto Schwarz.
Comenta, entre outros marcos da história do grupo, a encenação de Eles não
usam black-tie, de Guarnieiri, que promovia aspirações como incentivo ao autor
nacional, projeto de um teatro popular e a fixação de um estilo brasileiro de
representação, promovido pela realização de Laboratórios de Interpretação, calcados no
método stanislavskiano, estudado por Boal no Actor’s Studio, leva à criação do
Seminário de Dramaturgia que, para a autora, tem um caráter restritivo, devido as
definições estéticas e políticas estarem submetidas à preocupações conteudísticas.
A partir da perspectiva de Sábato Magaldi, Claúdia Arruda Campos aponta
que as objeções enfrentadas pelo grupo na opção pela dramaturgia nacional, como
textos incompletos próximos da estréia do espetáculo, a necessidade de aumentar o
valor do ingresso, já que precisavam manter o prédio e por isso público restrito e
burguês, reforçando a questão da platéia que se torna o centro da crise entre os
componentes da companhia, causando a perda de colaboradores na produção de peças
brasileiras, levam-no a buscar outro caminho: a nacionalização dos clássicos, que é
considerada, pela autora, a etapa de menor êxito, principalmente, se comparada à
anterior, apesar de ressaltar o aprimoramento técnico, que surge sem pôr em detrimento
a sua postura de engajamento e o desenvolvimento da prática da analogia, que será
decisiva no período pós-64:
65
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p.188.
36
“A contribuição mais vigorosa do Arena nesse período está na divulgação e
transferência de suas conquistas a diversos grupos amadores e profissionais, numa
prática que só será assumida programaticamente em 1968.
Esse processo e multiplicação do Arena, entre 1962 e 1964, dá-se, entretanto, com
base na transferência dos resultados obtidos em etapas anteriores: a possibilidade
de um bom teatro com poucos recursos, a fixação de um teatro de idéias,
intimamente comprometido com a realidade social do país. Desse modo, as
realizações do grupo entre 62 e 64 não têm a mesma força pioneira da fase
anterior.”
66
Porém, para a autora, esse é um momento que pode levar o Arena “à surdez
ou à redundância”, já que para entender essa metáfora é necessária uma cumplicidade,
um “código comum à cena e à platéia.”
Quando focaliza os musicais, Claúdia Arruda Campos, por sua vez, destaca
que, a partir deles, o Arena introduz uma nova forma de criação teatral, onde a
elaboração não só do espetáculo, como também do texto se dá coletivamente. Nessas
peças, “o produto vai sendo esculpido através de ampla cooperação, na qual se inclui o
próprio público, cuja cumplicidade lhes emprestou uma parte de sua significação.”
67
Outro dado novo, é o uso de elementos da cultura popular, que se vê presente na
composição dos recursos expressivos. Tendo sido assimilado, na construção da obra,
dados da tradição brasileira e de uma arte erudita.
A autora discute o fato de que, por trás do discurso que exalta o “povo”,
estariam
“os pequeno-burgueses, infaustamente oriundos de classe não-revolucionária, mas
que assumiram, por motivos diversos, o compromisso com uma transformação
social, (...) os artistas de esquerda ousam falar de sua própria dor, de suas
perplexidades, de sua derrota, de sua esperança manietada,”
68
o que, segundo ela, limita, pois apenas a compreensão do erro não leva à superação, a
peça não indica novos rumos, “não consegue desvendar os mecanismos capitalistas e a
luta de classes, a razão última dos embates políticos que pretende representar
69
.
Assinala, que:
“Tudo estaria bem se a peça terminasse por alertar o espectador contra tal cegueira
e a acentuasse como um dos erros a serem evitados. Mas não, ela nos exorta a
66
CAMPOS, C.A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 58.
67
Ibidem, p. 160.
68
Ibidem, p. 162.
69
Ibidem, p. 77.
37
prosseguir o mesmo combate na escuridão que arrasou Palmares. Novos deuses,
propostos pela peça, ‘Liberdade’ e ‘Terra da amizade’, o exigem.”
70
Além disso, a necessidade de que exista uma cumplicidade entre palco/platéia para a
compreensão das alusões feitas, torna, para a autora, a peça datada.
Aponta ainda, que o conflito é esquemático, articulando-se em torno das
seguintes oposições: opressores x oprimido, negro x branco, bem x mal, ou seja, uma
visão maniqueísta. Porém ressalta que, em certa medida, o espetáculo oferece uma
resposta ao momento, sendo que, “um dos sentidos de Zumbi, e no qual a peça é bem-
sucedida, está na reação que constrói contra uma tal força obscurantista
71
.
Em Tiradentes, para Claúdia Arruda Campos, há um dado importante: a
crítica estende-se aos derrotados, deixando para trás a complacência presente em Zumbi,
no momento em que são apresentados, como causas da derrota, o fato de não haver
participação do povo no movimento e a composição do grupo pretensamente
revolucionário
72
. Além disso, o recurso da analogia é melhor utilizado, na medida em
que tem abrangência maior, conferindo ao texto duplo sentido: refere-se à dominação
geral e à particular e datada, referindo-se sempre a procedimentos da exploração
capitalista.
Porém, além da postura “paternalista” desenvolvida na idéia de que o
“povo” sujeito revolucionário, mas que não tem consciência precisa ser guiado por
aqueles que a tenha, a autora destaca que,
“talvez por desejo de superar a imagem balofa que havia sido dada aos inimigos no
primeiro musical do Arena, talvez ainda pela excessiva gana de demolir os pseudo-
revolucionários, permite-se ao opressor conhecer e enunciar as verdades que
escapam a seus opositores.
O procedimento resulta positivo no sentido de alertar para a força dos que detêm o
poder, mas possui um dado infeliz na medida em que enfraquece a posição do
herói. Este só se resgata pela simpatia, nunca no plano racional da peça.
Pode estar aí a única falha mais grave de um espetáculo onde os elementos de
análise política (concordemos ou não com seu teor) vêm colocados com rigorosa
precisão, selecionando-se, com astúcia só comparável à dos vilões da peça, os
recursos literários e/ou dramáticos.”
73
Para a autora, o Arena elabora um discurso didático, tornando as peças
doutrinárias, na medida em que expõem verdades prontas, através de uma linguagem e
70
Ibidem, p. 88.
71
Ibidem, p. 90.
72
Ibidem, p. 99.
73
Ibidem, p. 110.
38
de recursos emotivos, que buscam do espectador uma tomada de posição a favor desses
ideais e não uma reflexão que leve a questionamentos. Ressalta ainda, que o grupo se
mostra mais preocupado em preservar e aglutinar do que em despertar uma visão crítica,
que busque o novo. Liga-o a uma prática “populista”, no sentido de que tem uma
postura tutelar, “paternalista”, no tratamento com o povo, já que la nça para ele a
solução, o caminho a ser percorrido. No entanto, mesmo que o grupo tenha
desenvolvido tal postura, é importante considerar que ela pode não estar presente em
todos os seus momentos, inclusive nos musicais, período em que tal prática se encontra
em declínio.
74
Assim, Claúdia Arruda Campos parte da consulta de um grande número de
críticas da época, mas não vai além na análise do projeto estético e político que formou
o Arena e os musicais. Em sua discussão, considera, a partir da estrutura forma l da peça,
que esta possui uma fábula frágil, personagens pobres, situações maniqueístas e que “os
significados brotam menos do texto que dos sentimentos e idéias suscitados pelas
vivências comuns de autores, atores e público
75
. Quer dizer, apesar de indicar
qualidades estéticas, inovações, a autora conclui que o texto possui muitos problemas do
ponto de vista estético e formal e que não cumpre sua tarefa de despertar a platéia e
propor-lhe uma solução para os embates vividos no presente, já que a envolve num
efeito catártico. Há, nesse sentido, uma cobrança que parece partir de uma noção já
estabelecida do que seria a melhor estrutura dramática de uma peça e da idéia de que
bom espetáculo não é aquele que termina com uma mensagem, mas que deixa o
espectador refletir, pensar. Aponta qualidades e defeitos, sem esclarecer de que
pressuposto estético parte para tal análise.
Dessa forma, é como se os conceitos teatrais estivessem definidos, pairando
sob qualquer circunstância, ignorando a historicidade dos acontecimentos. Análises que
partem de pressupostos teóricos e estéticos externos às propostas do artista. A obra é
vista em si e não como um conjunto que tem, em suas opções estéticas, razões e
74
Segundo Octávio Ianni, por volta dos anos 60 e mais evidente em 64, começa ocorrer o que ele chama
de “o colapso do populismo no Brasil”: “os desenvolvimentos da política de massas não foram pacíficos.
Ao contrário, as ‘concessões’ consubstanciadas na legislação trabalhista industrial e rural, por exemplo,
eram o resultado de reivindicações reais, conseqüentes de tensões e conflitos repetidos e acumulados na
experiência coletiva. À medida que se desenvolve e diversifica a economia nacional (em especial a
industrialização), multiplicam-se as greves. No jogo entre os empresários, os assalariados e as
organizações políticas, as tensões agravam-se e conduzem a situações de impasse. Muitas vezes, as
organizações e lideranças de esquerda preparam e comandam a greves”. (IANNI, Octavio. O Colapso do
Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.98).
75
CAMPOS, C.A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 91.
39
referências diversas, comungadas por sujeitos que têm suas intenções e seus
comprometimentos. Porém, nem por isso devem ser julgados, mas sim analisados
enquanto agentes na construção do social, se partirmos da premissa básica de que a arte
é a representação da realidade e não seu reflexo.
Por sua vez, Lúcia Maria Mac Dowell Soares, em sua monografia O Teatro
Político do Arena e de Guarnieri, concluída em 1980, e que três anos mais tarde foi
publicada em um livro, juntamente com outros dois trabalhos, editado pelo INACEM
(Instituto Nacional de Artes Cênicas) como resultado de um concurso de monografias
em que obteve o 1º lugar, traça um panorama do Teatro de Arena, a partir de temas
como “espaço cênico”, “dramaturgia nacional” e “teatro revolucionário”, e elabora uma
análise de algumas obras de Guarnieri, refletindo sobre a estrutura dramática, a escolha
dos temas e o tratamento dos mesmos.
A partir daí, ao discutir as relações entre produção cultural e atuação
política, busca verificar a eficácia do projeto político e estético do Teatro de Arena,
articulado com um código ideológico não-revolucionário, que é o desenvolvimentismo.
Para verificar tal raciocínio, a autora utiliza-se dos argumentos de Maria Sylvia C.
Franco:
“(...) no pensamento desses intelectuais encontrava-se um grande ecletismo teórico
que visava ao escamoteamento das diferenças dos interesses de classe, uma vez que
propunha-se como resposta aos interesses da nação como um todo mas, na verdade,
não passava de uma ideologia que defendia os interesses da burguesia. Dando-se
como ideologia da nação, o desenvolvimentismo trabalhava para forjar o
incremento do capitalismo no país, o qual pressupõe desde logo um antagonismo
básico entre os interesses do capital e os do trabalho. no entanto, esse antagonismo
não se manifesta nos textos teóricos do ISEB e é-nos veiculada a informação de
que os grandes obstáculos a serem vencidos pelo país são a dependência e o
subdesenvolvimento. Forjando-se o desenvolvimento, por meio da industrialização
e do planejamento das atividades produtivas pelo Estado, atacava-se a dependência,
o que resultaria do enriquecimento e desenvolvimento do país. O que Maria Sylvia
faz, magistralmente, é desconstruir esse discurso, revelando seu caráter ideológico
e denunciando a serviço de quem se colocava; mostrando-os como ele tinha por
base a acentuação da exploração do capital sobre o trabalho, ficando claro que a
libertação do país não seria de todos, mas apenas de uma classe.”
76
Nessa perspectiva, seria impossível fazer arte revolucionária, na ausência de
uma mudança nos modos de produção da arte que, ao se identificar com o universo
cultural da classe dominante, estaria mantendo a ordem tal como já se encontra
76
SOARES, L.M.M.D. “O Teatro Político do Arena e de Guarnieri”. In: Monografias/1980. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 31-32.
40
estabelecida. Ao contrário, mudando os meios de produção, a obra de arte concede ao
próprio artista os mecanismos necessários para torná-lo produtor, “quando então se
solidariza com o proletariado
77
. Nesse sentido, na visão de Lúcia Mac Dowell, o
Arena não pode ser visto como um teatro revolucionário, na medida em que estava
impregnado por idéias de caráter burguês.
Todavia a autora salienta que o nacionalismo veiculado pelo Arena tinha um
caráter crítico, pois ele não difundia a ideologia burguesa de, através da exploração da
classe proletária, promover o desenvolvimento. Ao contrário, buscavam esclarecer à
platéia de que o operário podia subverter esse estado de subordinação, na medida em
que se organizasse como classe e pressionasse para conquistar melhores condições de
trabalho. Porém, verifica a ligação entre o Arena e ISEB, numa:
“(...) constatação de ordem histórica: à época do estabelecimento do Arena, a
ideologia desenvolvimentista encontrava-se no poder, em sua manifestação
primeira e bem forte, no governo JK. Nesse período, conforme nos atestam
diversos depoimentos, respirava-se um ar de liberdade e de crença no progresso do
país. As liberdades democráticas estava garantidas: o movimento operário estava
mobilizado, ainda que a partir das lideranças de tipo populista, quer de esquerda
quer de direita: a industrialização passa por uma fase de incremento; as cidades
modernizam-se através do impulso dado à industrialização, sobressaindo-se, entre
elas, São Paulo. Todo esse contexto vinha marcado ainda pela luta contra o
imperialismo, onde a noção de nacionalismo (sem dúvida, isebiana) recebia
contornos específicos.”
78
Assim, o Teatro de Arena estaria inserido na ideologia do ISEB, mesmo que
sustentando a idéia de libertação do povo, pois tem em suas discussões as noções de luta
anti-imperialista, anti-subdesenvolvimento, em favor do progresso, estando inserido no
universo ideológico dominante da época”, que “passeava por cima das diferenças de
classe, falando muitas vezes em nome do povo
79
. E nesse contexto, o intelectual e o
artista, vistos numa função de “ilustrador”, de responsáveis por conscientizar a massa,
que se revela mais fortemente nos musicais, onde será mantido o discurso político
engajado contra o Estado autoritário, anulando as contradições sociais e políticas e
identificando-se com o povo como revolucionários, sendo ambos os reprimidos.
80
77
Brecht ao elaborar uma teoria marxista da arte rompe com antigos modos de representação e propõe
uma transformação no processo de produção, pois só assim é possível uma mudança da arte, dos
conceitos ideológicos e estéticos, para uma utilização da mesma como meio de alteração do que está
estabelecido na sociedade.
78
SOARES, L.M.M.D. “O Teatro Político do Arena e de Guarnieri”. In: Monografias/1980. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 32-33.
79
Ibidem, p. 12.
80
Ibidem, p. 35.
41
Em relação aos musicais, Lúcia Mac Dowell, ao contrário dos demais
autores, não aceita, acriticamente, as fases estabelecidas por Boal para periodizar a
trajetória do Arena e que promove a idéia de que esses espetáculos são a síntese de todo
o trabalho da companhia e a estrutura dramática e estética que buscavam:
“É certo que o Arena sempre caracterizou-se por uma resistência cultural e uma
tendência à reformulação de seus passos anteriores. Porém é faltar com a verdade a
difusão da idéia de que o TA encontrou nos musicais a forma ideal que estaria
sendo perseguida. (...) No entanto, a questão assim colocada não responde a nada.
Na verdade, o Arena já trazia em si, mesmo antes das possíveis implicações na arte
decorrentes do golpe de 64, um esgotamento de fórmulas estéticas. Sem dúvida, a
companhia teria que encontrar uma resposta formal a esta questão. Mas nada
determinava que fosse o musical, forma que ‘aliava a uma trama relativamente
simples o envolvimento emocional da platéia. As idéias encontravam sua expressão
conotativa na música, dispensando portanto o arranjo minucioso das peripécias da
ação dramática’. (...)
Se os musicais serviram como um movimento de resistência à ordem vigente e
como um mantenedor da freqüência ao teatro, eles pouco avançaram na
dramaturgia nacional. Esta simplificou-se, explorando amplamente o tom
emocional da resistência a ser dividido com a platéia. Em nada o Arena avançou na
tentativa de discussão e compreensão da realidade brasileira; da nova ordem
política do país; das forças sociais e jogo; das caracterís ticas do poder estabelecido
e de suas associações e de quaisquer que fossem as questões compromissadas com
um teatro político, sempre sua proposta. O texto nacional comprometido com uma
visão engajada da realidade brasileira havia surgido em 1958, inaugurando uma
vertente fecunda para a dramaturgia brasileira. Esta, no entanto, não encontrará no
Arena pós-64 sua continuidade. Ainda ficavam por existir os textos nacionais que
tentassem dar um salto no sentido de uma produção mais conseqüente teoricamente
e menos comprometida com o real imediato e, particularmente, no sentido de
compreender e pensar o contexto histórico de que o país passa a ser palco, a partir
de 64.”
81
No entanto, a análise de Mac Dowell não se diferencia na concepção de que
o texto comprometido com as questões socio-políticas do momento, do real imediato
tem menos valor, no sentido de que não consegue promover uma discussão e
compreensão da realidade. E nisso, a autora, apesar de encarar o Arena como processo,
sem estancá-lo em fases desligadas do contexto histórico, cobra do trabalho do grupo
uma evolução, tomando como medida o seu desenvolvimento na elaboração de textos
nacionais. O que, para a autora, interrompe o trabalho de “construção da dramaturgia
brasileira”, parecendo-nos um pensamento equivocado, pois assim estaria anulando toda
uma produção nacional pré-Arena, constituída por autores como Nelson Rodrigues,
Jorge Andrade, Ariano Suassuna, etc.
81
Ibidem, p. 27-28.
42
Por fim, a autora conclui que o Teatro de Arena não demonstrou um
conteúdo revolucionário, por ter tido uma postura “paternalista”, na qual o artista é
aquele que impulsiona a ação social através da conscientização que provoca no povo, o
agente transformador. Essa postura ainda se faz notar “ao exortar uma tomada de
posição e não uma reflexão
82
, mantendo com a platéia uma relação emocional, o que,
para a autora, não propicia a compreensão dos fatos e de suas relações econômicas e
políticas.
Mesmo que houvesse um projeto inovador da forma, o conteúdo mantinha o
caráter conservador, burguês e nem um pouco revolucionário, já que estava carregado
de princípios da ideologia burguesa. Chama a atenção para a importância de destacar
que, se a ‘abertura’ política do governo JK propiciou o estabelecimento de um
discurso crítico da realidade nacional, este discurso circulava num espaço político
onde a ordem do dia eram os conceitos nação/antinação, desenvolvimento e
nacionalismo
83
.
Aponta ainda que o Arena não contava com condições de interferir na
transformação social, como num teatro engajado, já que não eram textos que
procuravam “dar conta da nova ordem social instaurada no país, das alianças de classe
e da nova organização econômica
84
, mas sim que se limitavam aos textos de
resistência do tipo opressor x oprimido, textos analógicos de vinculações esquemáticas
com o presente
85
.
Trabalho de fundamental importância e que muito nos estimulou é o artigo
História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo, de
Rosângela Patriota, que busca recuperar a trajetória do Arena pelo rememorar de seus
ex-integrantes, destacando que a importância de retomar essas memórias, já que o grupo
comporta diferentes propostas de atuação, reside no fato de tornar perceptível essas
diferenças, além de permitir observar como as tentativas de reconstrução de sua história
de forma linear, partindo da idéia de um projeto que existiu a priori, como se tivesse
sido comum a todos os que o integraram, anula as multiplicidades estéticas e políticas
que constituem a trajetória do Teatro de Arena de São Paulo.
Nesse sentido, Patriota aponta questões presentes na historiografia
produzida sobre o Teatro de Arena, como a “ênfase dada à atmosfera sociopolítica do
82
Ibidem, p. 38.
83
Ibidem, p. 33.
84
Ibidem, p. 36.
85
Ibidem, p. 36.
43
Brasil de então, à influências teóricas explicitamente assumidas e, principalmente, à
busca de significados para as atividades do grupo
86
.
Além disso, levanta a questão, que nos parece a mais importante, de haver,
por parte dos estudiosos, uma aceitação da “periodização já cristalizada, que, com o
passar dos anos, transformou-se no próprio acontecimento
87
. Situação gerada pelo
tratamento dado aos documentos, que se mostra acrítico, segundo a historiadora, sendo
usados como a versão mais correta sobre os acontecimentos ou simplesmente como
ilustrativo dos fatos que compõem essa história. Esquecendo-se de localizar o espaço e
o momento de onde essas interpretações são feitas, sejam de críticos, estudiosos ou até
mesmo dos ex-integrantes do Arena.
Ao constituir essas etapas, Boal busca um significado para as atividades do
grupo, deixando de lado os acontecimentos históricos, como se o percurso do Arena
tivesse um caráter uno e linear. Quando na verdade, sabemos que diversas pessoas
atuaram nele, com suas diferentes referências teóricas e políticas, trazendo-lhe inúmeras
influências estéticas, que iam sendo descobertas e estudadas no decorrer dessa
experiência e sofrendo diretamente as ações políticas, já que se propunha uma postura
de arte engajada que representasse, refletisse e interferisse na realidade brasileira.
Além desses pontos abordados pela historiadora Rosangela Patriota, ao final
da análise dos diferentes estudos, pode-se concluir que todos partem da mesma premissa
de discordar e denunciar a prática política dos autores, não como possibilidade de
investigar as posturas assumidas e as lutas nas quais estes se inseriam, mas como
maneira de condená-las, desqualificá-las, comparando-as com suas próprias opções.
Ao lançarem críticas quanto ao público do Arena e sua relação com este ser
paternalista, parecem estar excluindo todo o contexto político do momento que não
possibilitava outra ação ao grupo, que tentava resistir nas frestas da cerrada ditadura
militar, tentando provocar em sua platéia atitudes de resistência e combate, fosse ela
burguesa ou não. O Arena recorre à analogia histórica para suscitar um movimento, que
acabou se tornando o mais atuante do período o estudantil, de oposição ao regime.
Além disso, há uma ostensiva cobrança do por que ter sido essas as escolhas
e não outras e o julgamento por terem explicitado as intenções políticas em sua obra,
como se a arte fosse uma manifestação apolítica, ou que o artista deveria tê-la como um
fim em si mesma, isto é, a arte pela arte. Fica clara a tendência a desvalorizar o teatro
86
Ibidem, p. 203.
87
Ibidem, p. 204.
44
político, a obra de arte comprometida com as questões da realidade imediata, como se
este se posicionasse como substituto das lutas de classes, dos embates travados na
sociedade. Quando na verdade, não se trata disso, mas sim de instrumentalizar o homem
agente revolucionário para atuar no real, transformando o estabelecido, alterando a
ordem.
E ainda restrições por considerar a obra datada, como se o autor não
estivesse, mesmo que inconscientemente, comprometido com sua produção. Ou ainda,
como se um texto ou qualquer obra de arte não possuísse uma historicidade. Cabe até
mesmo uma pergunta: que obra de arte não é datada? Acreditamos que todo texto,
documento, peça teatral seja datado, sendo uns mais outros menos. No entanto, isso não
invalida a obra, que continua tendo função nos momentos que relacionados à sua
temática. Por exemplo, uma peça, como os musicais, que trata de um governo ditatorial,
opressor, cumpriria seu papel em qualquer situação de arbítrio, que inclusive a Améica
Latina não está de todo protegida, como podemos ver atualmente. Ou ainda: Zumbi seria
útil em outros momentos, como para o movimento negro; as peças de Brecht que
denunciam o capitalismo exploratório, as injustiças e desigualdades promovidas por
relações de poder e dominação entre os homens não podem ser mais atuais do que são
neste novo século.
Dentro dessa questão, é importante, ainda, assinalar que as peças falam de
um momento (golpe de 64), das impossibilidades que havia e continuam existindo, no
sentido de que a luta opressor/oprimido é atemporal e ainda permeia muitos
movimentos sociais atuais. No entanto, muitas dessas análises são feitas em um outro
momento, posterior a criação da obra e lançadas ao passado, por pessoas que não se
identificam com suas propostas estéticas e seus compromissos políticos e que cobram,
então, diferentes posturas.
Os trabalhos acadêmicos demonstram ainda uma tentativa de dar conta do
Arena como um conjunto homogêneo e linear, buscando apreendê-lo de forma
evolutiva, comparando suas fases, elegendo a melhor e a pior, como se estas não fossem
respostas ao momento social e político, cobrando questões que estavam em seus
projetos. Acabam não o pensando à luz de seu momento histórico e perdem toda a
multiplicidade estética e política que formou a companhia.
Pois na verdade, o Arena foi um projeto político, constituído por sujeitos
que possuíam seus referenciais, sua ideologia e que pretendiam, nos diferentes
momentos dessa experiência histórica, interferir na situação do momento, promovendo,
45
através da conscientização que buscavam despertar na platéia, ações de transformação
dessa realidade.
46
CAPÍTULO II
ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS: ESTRUTURA E
PROPOSTA TEMÁTICA
“Eu vivi nas cidades no tempo da desordem. Vivi no
meio da gente minha no tempo da revolta. Assim passei
os tempo que me deru pra vivê. Eu me levantei com a
minha gente, comi minha comida no meio da batalha.
Amei sem tê cuidado...olhei tudo que via sem tempo de
bem ver...por querer liberdade. A voz da minha gente se
levantou. Por querer liberdade. E minha voz junto com a
dela. Minha voz não pode muito, mas gritá eu bem gritei.
Tenho certeza que os dono dessas terra e sesmaria ficaria
mais contente se não ouvisse a minha voz...Assim passei
o tempo que me deru pra vivê. Por querer liberdade.”
(Ganga Zumba, personagem da peça Arena conta Zumbi
de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri).
“Quem esquece a própria vontade/ quem aceita não ter
seu desejo/ é tido por todos um sábio/ é isso que eu
sempre vejo/ é a isso que eu digo não!(...) Quem aceita a
tirania/ bem merece a condição/ não basta viver somente/
é preciso dizer não!” (Coro Arena conta Tiradentes de
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri).
“ARENA CONTA ZUMBI”
O elenco entra em cena, ao som de atabaque, com ritmo forte e frenético,
cantando. Os atores cantam sem terem grandes vozes ou serem cantores profissionais e
demonstram trabalhada expressão corporal ao, dançando, construírem imagens,
ambientações com o próprio corpo, sem necessariamente serem bailarinos. Ficam
sempre em cena, assumindo as diferentes personagens frente à platéia, o contrário de
uma encenação realista
88
, não permitindo que ela se esquecesse de que a história era
88
Teatro Realista: o realismo se baseava na ilusão, procurava-se reproduzir a realidade o mais fielmente
possível, escondendo no espaço cênico, qualquer instrumento teatral que remetesse à consciência de que
se estava diante de uma ficção. Busca-se o envolvimento do espectador e para isso os atores deviam
encantar, mostrando-se “natural’ em cena, agindo como se estivessem em suas casas; os cenários,
47
narrada e por quem era feita. Neste momento, não são as personagens que se
apresentam, mas os atores expondo seu ponto de vista e o dos autores. Cantam,
apresentando a peça, o que ela pretende e de que perspectiva se está falando:
O Arena conta a história
pra você ouvir gostoso,
quem gostar nos dê a mão
e quem não tem outro gozo.
História de gente negra
da luta pela razão,
que se parece ao presente
pela verdade em questão,
pois se trata de uma luta
muito linda na verdade:
É luta que vence os tempos,
luta pela liberdade!
A história que o Arena conta
é a epopéia de Zumbi;
tanto pró e tanto contra
juro em Deus que nunca vi.
Os atores têm mil caras
fazem tudo nesse conto
desde preto até branco
direitinho ponto por ponto
Há lenda e há mais lenda
Há verdade e há mentira
de tudo usamos um pouco
mas de forma que servira
a entender nos dias de hoje
quem está com a verdade,
(...) quem está com a mentira ...
89
Arena conta Zumbi é uma peça em dois atos, escrita em parceria por
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, tendo assinatura de Edu Lobo para as
músicas. Estreou em 1º de maio de 1965, no Teatro de Arena de São Paulo. É composta
de 23 cenas, sendo que algumas são cantadas, contendo um total de 18 canções, além
das falas dos cantadores e algumas do coro que têm acompanhamento musical. Porém,
as cenas são autônomas, isto é, não dependem uma da outra, possuem sentido próprio e
recebem, no texto, um título que indica a ação da cena. Por exemplo: “Conquista da
Opinião Pública” que busca o apoio público na investida contra Palmares, alertando
acessórios, figurinos deviam “refletir” a realidade nos mínimos detalhes, a iluminação criar uma
atmosfera ilusionista e a música ressaltar o clima de uma ação.
89
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 1-2.
48
contra o “perigo negro”; ou ainda “Realismo Político” em que acontece a nomeação
de D. Ayres de Souza de Castro e seu discurso de posse.
90
A história é uma recriação poética do episódio de Palmares e presta uma
homenagem “a todos aqueles que, através dos tempos, dignificam o ser humano,
empenhados na conquista de uma terra da amizade onde o homem ajuda o homem
91
.
No primeiro ato há o cativeiro de Zambi, que na cena anterior, no barco vindo de
Luanda para o Brasil, já se mostra como líder, chamando os negros à ação. Zambi
(Ganga Zumba) questiona:
Que faz esses negro parado, que faz que não quebra esse bojo e atira tudo no
mar? Levanta gente, não adianta ficar aí sentado.”
92
Pretende-se atingir o espectador, envolvê-lo, trazê-lo para o centro da arena,
da luta.
Segue uma cena, em que o mercador apregoa seu produto (negro) e em que
são descritos pelos atores, de forma explicativa e ilustrados por slides, os castigos e
formas de tortura usados. Nesta passagem, há grande referência ao momento do regime
militar que utilizava essa prática na prisão e que era sabida por todos. O rei Zambi
revolta-se contra o cativeiro e ganha as matas. É um incentivo para que inúmeros outros
negros fujam, em busca de uma sociedade livre e pacífica, onde poderão trabalhar
livremente as dádivas da natureza, na construção da prosperidade dos quilombos:
Negros de todos os lugares procuravam as matas fugindo desesperados. Horror a
chibata, ao tronco, às torturas. Buscavam no desconhecido um futuro sem senhor.
Enfrentavam todo perigo. Fome, sede, veneno, flexas dos índios, capitães do mato.
Agonia pela liberdade. Idéia de ser livre
93
.
Os senhores vão até o governador Dom Pedro de Almeida reclamar da fuga
dos escravos, mas constatam que lhes é mais vantajoso importar outros negros do que
recuperar o “fujão”. Um dos momentos mais belos do espetáculo é quando rezam Ave
Maria, misturando elementos do cristianismo e de rituais africanos, numa narração de
90
O recurso de intitular as cenas é uma influência direta de Brecht que chegava a colocar na encenação
esses títulos através de cartazes ou projeções, como mais uma maneira de evidenciar que se tratava de
uma representação, de uma teatralização, servindo também para introduzir os acontecimentos. No Brasil,
essa técnica já era utilizada pelo CPC (ver nota 30) e havia sido empregada por Augusto Boal em sua
Revolução na América do Sul, encenada pelo Arena, em 1960, com direção de José Renato.
91
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 3.
92
Ibidem, p. 4.
93
Ibidem, p. 6.
49
sua vida, seus sonhos, o que valorizam, como resistem e lutam:
ZAMBI Ave Maria cheia de graça. Olorum é convosco
Bendito é o fruto de vosso ventre.
Bendita é a terra que plantamos
Bendito é o fruto que se colhe.
CÔRO Ave Maria, bendito seja
Ave Maria cheia de graça, Olorum.
ZAMBI Bendito é o trabalho neste campo
Bendita é a água que se bebe
Bendita é a mulher de quem se gosta
Bendito é o amor e nossos filhos.
CÔRO - Ave Maria cheia de graça
Ave Maria bendito seja, Olorum
ZAMBI Bendita é a palmeira, o rio, o canavial
Bendito é o peixe que se come
Bendito é o gado que se come.
CÔRO - Ave Maria cheia de graça
Ave Maria bendito seja, Olorum
ZAMBI - Bendita é a caça e a flecha
CÔRO - Ave Maria, bendito seja
ZAMBI - Bendita é a enxada e a semente
CÔRO - Bendita seja, cheia de graça, Olorum
ZAMBI - Perdoai os nossos erros
CÔRO - Ave Maria cheia de graça
ZAMBI - Perdoai, Ave Maria
Perdoai a morte que matamos
O assalto, o roubo,
Perdoai, perdoai Ave Maria
CÔRO - Ave Maria cheia de graça
Perdoai, Ave Maria, Olorum.
ZAMBI - Perdoai o nosso orgulho
CÔRO - Perdoai, Ave Maria.
ZAMBI - Perdoai a nossa rebeldia
CÔRO - Perdoai, Ave Maria.
ZAMBI - Perdoai a nossa coragem
CÔRO - Perdoai, Ave Maria.
ZAMBI - Perdoai a fuga do cativeiro
CÔRO - Perdoai, Ave Maria.
ZAMBI - Perdoai as nossas dívidas
CÔRO - Perdoai, Ave Maria.
ZAMBI -Perdoai-nos Ave Maria. Assim como nós perdoamos os nossos
senhores.
CÔRO - Perdoai, Ave Maria.
Ave Maria cheia de graça
Olorum, Amém, Amém, Amém, Amém
94
.
Tempos depois, chega Ganga Zona, neto de Zambi, pelo navio negreiro, de
Luanda. Os negros de Palmares o libertam e o conduzem aos quilombos. Trabalhando a
94
Ibidem, p. 12-13.
50
terra, começam sua produção e negociam com os comerciantes e com várias cidades
brancas em troca de armas. No quadro “A Bondade Comercial”, realiza-se a aliança
entre os brancos comerciantes e os quilombolas que remete ao acordo das classes
trabalhadoras com setores da burguesia, na década de 60. Naquele momento, isso era
interessante para os brancos pois atendia seus objetivos de lucro:
Nós os brancos comerciantes
sabemos ter muita amizade
pelo negro que trabalha
tão distante da cidade.
Queremos paz, prosperidade,
chega de raiva, e de maldade,
de tudo um pouco nós compraremos
e muitas armas venderemos
95
.
Já para os donos das sesmarias essa paz não era desejada, não servia, pois
significava perdas já que investiam alto na compra dos negros que agora ganhavam
mais estímulo e força para manterem os quilombos ou no caso dos cativos para fugirem:
Nós os brancos senhores da terra
fiéis vassalos de Portugal
aqui chegamos, lutamos, vencemos
e desbravamos esse país.
O que aqui pertence só a nós pertence,
Aqui trabalhamos, nosso sangue correu
O negro trouxemos, o negro compramos
Pagamos bom preço ao barão espanhol.
A paz que se pede com o negro rebelde
(...) é perda de ouro, da honra e de tempo.
(...) A paz é a vitória do subversivo
96
.
A palavra “subversivo” faz clara referência ao presente, lembrando de que
época e do que se está falando: os acontecimentos de 1964. Diante de tal declaração, os
comerciantes saem em defesa dos negros, ou melhor, de seus interesses. E em resposta,
os negros confiantes que têm proteção dos brancos, com quem negociam, resolvem
deixar de comprar armas e aumentar o valor de suas mercadorias. Para os autores, o erro
que os levará a derrota está aí: são movidos pela ingenuidade e vencidos pela violência
e crueldade do inimigo. Então, a partir de tais resoluções, os comerciantes atingidos em
suas maiores ambições, reagem aliando-se aos senhores de terra para destruir os negros
rebeldes. Apesar de suas contradições, unem-se contra o povo e recorrem à Igreja para
95
Ibidem, p. 20.
96
Ibidem, p. 20.
51
fundamentar suas ações, como podemos ver no uso que fazem de trecho do Evangelho,
mais uma vez simbolizando a dominação ideológica:
COMERCIANTES:
Nós os brancos comerciantes,
nos guiamos pela bíblia
o livro santo prevê este caso
no Evangelho de Ezequiel:
- Com a rebeldia não há concordia,
punir com firmeza é uma forma
de demonstrar misericórdia.
COMERCIANTES E DONOS DAS SESMARIAS:
- Nós os brancos, senhores da terra
- Nós os brancos, comerciantes
Resolvemos em santa união
dar fim ao povo rebelde
exterminar a subversão
97
.
Nesse momento, a liberdade do negro e a prosperidade conquistada se
mostram como grande ameaça:
Há algo melhor que a liberdade ? Não há. A liberdade é a glória de uma coroa, a
glória dos bem nascidos. (...) Mas pobres valores da nossa sociedade se se admite
que o negro, naturalmente inferior, por vontade de Deus destinado ao cativeiro,
que não o infelicita, mas ao contrário, o humaniza a escravidão dignifica o
negro! Integrando-o na sociedade na posição que lhe compete. Eis a ameaça que
pesa sobre o Brasil.
E veja Excelência: esses negros, inferiores pela própria natureza, ameaçam
destruir uma sociedade bem mais aparelhada, produtiva e forte do que a nossa. É
anti-histórico
98
.
Vendo toda sua estruturação social ameaçada, os brancos buscam
apoiadores de todas as formas e começam uma campanha de conquista da opinião
pública, alertando contra o “perigo da infiltração negra”, para reunir forças no seu
intento de destruir Palmares.
À Ganga Zona se juntará, mais tarde, Ganga Zumba, seu filho, nascido no
cativeiro e que será aclamado rei de Palmares. Para ele, Ganga Zona canta a esperança
de se conquistar a liberdade, em Upa Negrinho, composição de Edu Lobo e que foi a
música de maior sucesso:
Upa negrinho, upa!
Upa pra lá e prá cá
Virge que coisa mais linda
97
Ibidem, p. 21.
98
Ibidem, p. 27.
52
Upa, negrinho começando a andá
Cresce negrinho, me abraça
cresce me ensina a cantá
eu vim de tanta desgraça
mas muito te posso ensiná
Ziquizira, posso tirá
valentia eu posso emprestá
mas liberdade, só posso esperá
99
.
Momento que coincide com importantes acontecimentos, como a destituição
de D. Pedro de Almeida, que havia firmado paz com os negros, oferecendo-lhes terras
para produzir e comércio com o seu trabalho, mas é substituído e nomeado. Em seu
lugar está D. Ayres de Souza Castro, mais enérgico, que comandará a organização de
repressão e destruição ao quilombo. O novo governador discursa com o seguinte som de
fundo sugerido na rubrica: “rufo, flauta e violão agressivos. Prenunciando canção de
guerra
100
. Elemento musical, no caso do rufar de tambores, que remete ao período
militar, à presença do exército.
No segundo ato, acontece toda a elaboração do ataque à Palmares. Os
negros possuindo pouco armamento são surpreendidos e condenados à derrota. Ganga
Zona é aprisionado. Zambi comete suicídio. No comando dos quilombos fica o jovem
Ganga Zumba. Logo depois, os últimos redutos da resistência negra são arrasados pela
tropa do bandeirante Domingos Jorge Velho, que fora recomendado pelo bispo para
comandar o ataque a Palmares, dando a sua bênção a expedição. A primeira fala do
comandante é uma referência ao presente, mais especificamente à tríplice que compõe o
poder no regime militar:
Salve Governador...Ah, Eminência há quanto tempo! Assim é que eu gosto,
Estado e Igreja em perfeita harmonia! Só faltava o Exército, hein?
101
Mas, apesar da derrota que sofrem os negros, a peça se encerra por uma
exortação onde se afirma a validade da luta. Há uma otimização em relação às
perspectivas de transformação no futuro. Ganga Zumba, cercado pelo inimigo, dirige à
platéia a seguinte fala:
Eu vivi nas cidades no tempo da desordem. Vivi no meio da gente minha no tempo
da revolta. Assim passei os tempo que me deru pra vivê. Em me levantei com a
minha gente, comi minha comida no meio da batalha. Amei sem tê cuidado... Olhei
99
Ibidem, p. 31.
100
Ibidem, p. 33.
101
Ibidem, p. 44.
Comentário:
53
tudo que via sem tempo de bem ver... por querer liberdade. A voz da minha gente
se levantou. Por querer liberdade. E minha voz junto com a dela. Minha voz não
pode muito, mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza que os dono dessas terra e
sesmaria ficaria mais contente se não ouvisse a minha voz... assim eu passei o
tempo que me deru pra vivê. Por querer liberdade
102
.
Em seguida, a peça termina com a exaltação da liberdade, pelos atores:
Entendeu que lutar afinal
é um modo de crer
é um modo de ter
razão de ser
103
.
Entende-se a derrota apenas com uma batalha perdida numa guerra que
ainda não terminou. Resta a esperança, a perspectiva de transformação a partir de um
movimento revolucionário, que se pretende desencadear no público, através dessa
tomada de posição instigada pela peça.
O texto é a reconstrução da história de Zumbi, formado também por
documentos, discursos, canções, dados e fatos da época. Para argumentação, Boal e
Guarnieri utilizaram-se do romance Ganga Zumba de João Felício dos Santos, além de
recorrerem às fontes documentais, que nem sempre eram usadas com exatidão, havendo
distorções dos fatos, assumidamente pelos autores.
104
Recorreram também à apropriação
e reelaboração de diversos textos históricos e literários, em que, numa interpretação
irônica ou distorcida, os autores aproveitaram para expor e reafirmar suas idéias, sua
perspectiva. Isso acontece, por exemplo, com cartas de Pero Vaz de Caminha ou poesias
de Padre Antônio Vieira
105
, como podemos ver na seguinte passagem, que pretende
mostrar a dominação ideológica, que busca convencer o negro sobre a existência de
vantagens na escravidão:
Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e à
paixão de Cristo do que o vosso
106
.
É possível elencar várias passagens da peça que aludem aos
acontecimentos de 1964. Por exemplo: o discurso de posse do rígido governador D.
102
Ibidem, p. 49.
103
Ibidem, p. 49.
104
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p. 203.
105
CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 72.
106
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 6.
54
Ayres, que foi construído a partir de documento histórico e da fala do presidente Castelo
Branco ao tomar posse, de modo a acentuar o furor repressivo posto a serviço de um
poder externo
107
:
Senhores da discussão nasce a sabedoria. Opiniões diversas devem ser
proclamadas, defendidas, protestadas. O dever dessa Capitania é a de todos ouvir,
porém devem agir exclusivamente segundo lhe ordena sua própria consciência
individual. Sejamos magnânimos na discussão, mas duros na ação. Plurais na
opinião, singulares na obediência de minha ordem. Descontentes haverá e sempre.
Um governo enérgico toma medidas impopulares de proteção à Coroa, não aos
insatisfeitos. Meu governo será impopular; e assim, há de vencer, passo a passo
dentro da lei que eu mesmo hei de fazer. Senhores, vós guerreais como quem faz
política, eu farei política como quem guerreia. Vossas entradas são derrotadas
pela pluralidade de opiniões e partidos de pensamento. Minhas entradas serão
vitoriosas pela unicidade do ataque. A independência é necessária na teoria, na
prática vigora a inter-dependência. Não é aqui, neste Brasil, que as decisões
devem ser tomadas: é na Metrópole, nossa Mãe Pátria, a quem devemos lealdade,
a quem devemos servir como vassalos fiéis
108
.
A aliança dos quilombolas com os brancos comerciantes, em analogia à aliança das
classes trabalhadoras com setores da burguesia; diversas expressões como “infiltração
negra” (que se pode ler comunista), “exterminar a subversão”, “moralização”, “valores
de nossa sociedade”; e os papéis da campanha militar, da Igreja, da religião, como já
apontamos, presentes em ambos os períodos.
109
A peça está intimamente ligada aos
acontecimentos do país naquele momento, já que é possível percebê-los no texto e a
própria encenação acompanhava o desenrolar dos fatos.
É um momento de total renovação estética. O caráter épico
110
remete a
influências brechtianas, no que Boal define como “poética marxista
111
. Isso impõe um
107
CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 75.
108
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 33.
109
CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 75.
110
No capítulo “Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto”, Augusto Boal discute o
conceito de épico, a partir de elaborações de Brecht: “A chamada forma ‘épica’, segundo Brecht poética
marxista: 1.o ser social determina o pensamento (personagem-objeto); 2.o home m é alterável, objeto de
estudo, está ‘em processo’; 3.contradições de forças econômicas, sociais ou política movem a ação
dramática, a peça se baseia em uma estrutura dessas contradições; 4.historiza a ação dramática,
transformando o espectador em observador, despertando sua consciência crítica e capacidade de ação;
5.através do conhecimento, o espectador é estimulado à ação; 6.razão; 7.o conflito não se resolve e
emerge com maior clareza a contradição fundamental; 8.as falhas que o personagem possa Ter
pessoalmente não são nunca a causa direta e fundamental da ação dramática; 9.o conhecimento adquirido
revela as falhas da sociedade; 10.é narração; 11.visão do mundo; 12.exige decisões”. (BOAL, A. Teatro
do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.115-116).
111
Discutindo o conceito de “épico” e a definição de personagem para Hegel e Brecht, Augusto Boal
levanta a seguinte questão: “A objeção de Marx a Hegel e, portanto, de uma Poética marxista a uma
poética idealista, inverte os termos da proposta. Qual dos dois termos precede o outro? Para Brecht,
evidentemente a objetividade é anterior. Se, por um lado, para a poética idealista, o pensamento
condiciona o ser social, por outro lado, para a poética marxista, o ser social condiciona o pensamento
social. Para Hegel, o espírito cria a ação dramática; para Brecht, a relação social do personagem cria a
55
distanciamento, uma visão crítica pela platéia que tem em sua frente o ator
representando um acontecimento e ao mesmo tempo expondo sua opinião e a do autor a
respeito do assunto. Desenvolve-se a função analógica, em que se comenta ao mesmo
tempo passado e presente, no intuito de demonstrar, metaforicamente, através da
representação do Teatro de Arena, uma batalha travada há anos e que deve ser
recuperada no momento.
Todos os elementos cênicos revelam um novo tipo de encenação. A
começar pela ambientação, que é sugerida pelo próprio texto, por efeitos sonoros e de
iluminação, pela interpretação dos atores. Não há cenário, nem figurino caracterizado.
Os atores se vestem da mesma maneira (calça Lee e camiseta colorida) e o jeans, ao não
remeter mais ao Brasil Colonial, alude ao presente, ou ainda à realidade do Brasil sob a
ditadura militar. Ou seja, com uma concepção que busca evitar o ilusionismo
112
e
demonstrar a teatralidade, acaba-se por aproximar do tempo de que fala a peça: 1964.
Dessa forma, podem fazer todas as personagens, pois serão reconhecidos pela palavra,
pelo gesto, pela postura, além de música e iluminação própria.
A personagem deixa de ser um indivíduo com conflitos particulares para
mostrar-se como integrante de um grupo social, com conflitos determinados pelo social,
pela relação com o outro grupo. Propositadamente, os papéis são estereotipados,
representando forças sociais antagônicas e não conflitos psicológicos internos, angústias
vividas na relação com o outro, mas vividas na sua inserção na estrutura econômica e
social. Questão que esteve presente em todos os momentos do Arena, mas que nos
musicais se mostra mais definidamente, por estar inserido em um outro contexto: o
regime militar, em que as liberdades estão restringidas e a arte sofre com a censura.
Dessa forma, através de uma linguagem analógica, em que se falando do passado fazia-
ação dramática. (...) A Poética brechtiana não é simplesmente épica: é marxista e, sendo marxista, pode
ser lírica, dramática ou épica.” (BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.113-114).
112
Até certo tempo, mais especificamente fim do século XIX, a preocupação era buscar o poder
ilusionista do espetáculo para que se pudesse levar o espectador a uma confusão ou fusão da ficção com a
realidade. E para isso “todo e qualquer instrumento de produção da ilusão teatral devia estar camuflado,
tornado invisível ao espectador, sob risco de lembrar-lhe que estava assistindo a uma tentativa de
mistificação da qual ele era, com seu próprio consentimento, a vítima. Eis por que, na tradição ocidental,
o palco fechado suplanta o palco aberto (...) A abertura do palco é delimitada por uma moldura opaca
(reguladores e bambolinas cuja função consiste precisamente em esconder da vista do público tudo que
produz a ilusão varas e urdimento para o cenário, ribalta e gambiarras para a iluminação). Já a cena
aberta (o teatro medieval, o palco elisabetano, os tablados da commédia dell’arte) que está sendo
redescoberta hoje em dia oferece perspectiva mais ampla, possibilidades teatrais de extrema variedade,
sem se preocupar especialmente em camuflar os instrumentos do espetáculo.” (ROUBINE, Jean-Jacques.
A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.)
56
se uma leitura do presente, buscava-se discutir os acontecimentos de 64. E para isso,
novas formas teatrais foram utilizadas, visando a eficiência do discurso político.
-se a desvinculação ator/personagem, permitindo um elenco menor e
uma economia financeira. Aqui há grande influência do teatro grego
113
, que trabalhava
com dois ou três atores, dividindo vários papéis e usando máscaras para diferenciarem
os personagens. No Arena também usava-se a máscara
114
, porém social, isto é, os atores
construíam coletivamente o gestual, o modo de falar, as entonações, a movimentação de
cada personagem. Por exemplo, o rei Zambi, que deve ser sempre majestoso, ter uma
postura ereta, a voz forte e emocionada e destacar-se dos demais. Tudo isso permite a
encenação de uma história com tantos acontecimentos, em variados lugares e
personagens. Havendo cenas que se passam em pleno alto mar, por exemplo, sendo a
ambientação toda caracterizada pela movimentação dos atores, que no caso se jogam no
chão remando, simulando um barco.
Outro aspecto inovador é a ausência de unidade de estilo. Há um ecletismo
de gênero, que varia de acordo com a necessidade de cada cena. Daí a possibilidade de
conciliar cenas inspiradas em Brecht e outras em Stanislavski, operando com o
distanciamento e a identificação, para que o teatro possa cumprir seu papel daquele
momento, que era tanto criticar como entusiasmar.
115
Não há um rigor que a peça seja
113
O poeta Tespis teria sido o primeiro a representar o papel de ator num drama das dionísiacas (festas ao
deus Dionísio) das cidades gregas. Ésquilo, escritor de tragédias, aumentou o número de atores para dois,
diminuiu a importância do coro e criou o primeiro diálogo. Sófocles elevou o número de atores para três,
colocando-os em cena. Os atores, todos masculinos, são conhecidos através da pintura ou escultura, mas
ignora-se seus gestos e sua voz. Assim, só se pode falar deles através de seus aspectos simbólicos:
máscara e traje. O ator antigo se “apaga” atrás de seu papel, mesmo fisicamente: a máscara oculta seu
rosto e deforma, ampliando, sua voz; a veste e o manto, igualmente amplos ao menos na tragédia
esconde seu corpo tão bem que ele se torna aos olhos do espectador, o personagem que representa
naquele momento. Pois no instante seguinte pode interpretar outro papel, já que o traje (que pode
rapidamente ser trocado) permite a um ator desempenhar na mesma peça vários papéis diferentes.
(GASSNER, John. Mestres do Teatro I. 2ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1991).
114
No teatro grego, quando falamos em máscaras, estamos falando dos objetos usados no rosto pelos
atores para evitar a confusão da platéia ao alternarem entre si a interpretação de todos os personagens da
peça e que representavam um “poderoso meio de prender a atenção, criando excitação e expressando a
essência do drama. Todos os atores usavam máscaras alongadas e grotescas de linho, cortiça e madeira,
que se tornaram maiores e mais curiosas com o tempo. Ainda que bastante estereotipadas, retratando
atributos gerais, tais como a crueldade, a astúcia e o sofrimento, esses disfarces possuíam considerável
variedade”. (Ibidem, p. 30). Porém, quando estamos nos referindo ao Arena, a máscara já não é essa física
que vemos, “mas sim um conjunto de ações e reações mecanizados dos personagens. (...) Em Zumbi,
independentemente dos atores que representavam cada papel, procurava-se manter, em todos, a
interpretação da ‘máscara’ permanente de cada personagem interpretado. Assim, a violência característica
do Rei Zumbi era mantida, independentemente do ator que interpretava em cada cena. A ‘aspereza’ de
Don Ayres, a ‘juventude’ de Ganga Zona, a ‘sensualidade’ de Gongoba, etc.” (BOAL, A. Teatro do
Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 199-200).
115
SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 84.
57
encaixada em uma ou outra técnica dramatúrgica. Encontram-se cenas elaboradas desde
o teatro de agitação até o naturalismo
116
, todas girando em torno da mesma temática: a
luta entre o opressor e o oprimido e a busca deste por liberdade. No que se refere a
utilização de slides, projeções, fotos, leitura de poemas, documentos, cartas, notícia de
jornal, exibição de filmes enfim, recursos extrateatrais que pudessem ajudar a explicar e
tornar mais evidente a realidade na qual a peça se baseia, para evitar que se pensasse
nos símbolos por eles mesmos e não em analogia a outros elementos, constata-se a
influência de Piscator que usou esses elementos pela primeira vez em um espetáculo
teatral. Mas também remete-se ao CPC
117
(Centro Popular de Cultura) que já utilizava
em suas encenações essa forma do teatro de agitação, de intervenção. E é nesta
perspectiva que o recurso ao ‘teatro-documento’ ou ao ‘teatro de fatos’ adquire todo
seu sentido. Sabemos: trata-se de colocar em cena fatos verdadeiros, dados brutos (...)
Pois, como afirmava Piscator, ‘a realidade é sempre o melhor teatro’. Não se deve ver
aí uma retomada da ambição dos naturalistas: não se trata de reconstituir no palco
uma aparência de realidade coerente e acabada. Este teatro de fatos procura
essencialmente despertar o espectador, tirá-lo de seu entorpecimento e de suas
certezas: mais que imitar a realidade, emprega-a para violentar as defesas de seu
público. Literalmente, lança pedaços desta realidade ao público. Quer obrigá-lo a
tomar posição
118
.
116
Teatro Naturalista: sustenta-se na idéia de colocar a vida no palco, mostrá-la, representar no teatro a
sociedade, mas de maneira a envolver o espectador, fazendo-o se sentir parte da história contada. Assim
era urgente alargar o quadro de personagens representadas aristocratas, burgueses não bastavam mais,
era necessário colocar em cena o povo, porém, seu drama individual predominava sobre a situação
histórica geral. Dessa forma, a encenação busca a espontaneidade e a verdade na interpretação dramática,
em que o ator deve observar e imitar as atitudes da vida cotidiana; os personagens não devem ser
representados, mas vividos; a linguagem cênica deve ser autêntica, jamais superficial, aproximando-se da
linguagem falada e não da literária; o espetáculo deve desenvolver-se como que atrás de uma “quarta
parede”, para que o espectador tenha diante de si um “pedaço da vida”. Seu grande representante foi
Émile Zola romancista, dramaturgo e crítico. (DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1977).
117
Oduvaldo Vianna Filho ao sair do Teatro de Arena, funda juntamente com Leon Hirzman, Chico de
Assis, Carlos Estevam Martins entre outros, o Centro Popular de Cultura, mais tarde o CPC da UNE, que
existiu de 1960 a 64. Vianinha justifica sua saída do Arena pela incapacidade do grupo em atingir
parcelas maiores e mais populares da população e vai em busca de seu projeto que era instrumentalizar o
teatro para a realização da transformação política. A produção no CPC influencia bastante os musicais do
Arena no que se refere à construção formal dos espetáculos, já que trabalhava com elementos do teatro
político alemão (Piscator/Brecht), como pode ser visto na ruptura com a cena realista que promove,
esquecendo o drama psicológico e evidenciando a noção de representação, com a utilização de slides,
cartazes, do rompimento palco/platéia através da construção do texto, da interpretação do ator que revele
para o público sua intenção, sua opinião. Além disso, o CPC decide não assinar individualmente nenhum
texto, valorizando as produções coletivas. Entre elas estão: A mais-valia vai acabar, seu Edgar e O Auto
dos 99%.
118
DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 27-28.
58
Porém, apesar desse ecletismo de gênero, o espetáculo em seu conjunto
pode ser classificado dentro de um, especificamente, que perpassa a obra: o musical.
Mesmo trazendo semelhanças com o teatro de revista, no que se refere à comicidade, a
piada descomprometida, Arena Conta Zumbi inova por tratar de um tema histórico, com
preocupações políticas.
Às vezes, um mesmo recurso é aproveitado de diferentes maneiras, como a
comicidade. A diferença do humor usado para as cenas dos negros, em que se pretende
ressaltar alegria, sensualidade, positividade, por exemplo, na seqüência das músicas
Dádivas da Natureza, Samba do negro valente e das negras que estão de acordo, A mão
livre do negro e depois na cena Construção de Palmares
119
; e quando é utilizado para os
brancos, em que se busca invocar a falsidade, a negatividade, a malícia, o mau-
caratismo. Assim, no momento em que a comicidade é empregada aos escravos, há uma
diferença de objetivo: busca-se a simpatia, a aproximação, ao contrário das cenas dos
inimigos, em que se quer provocar o distanciamento, o repúdio.
No decorrer da peça, também no que se refere à ausência da unidade de
estilo, há ainda uma divisão esquemática: os negros atuam no terreno da tragédia, do
poético (por exemplo, as falas do rei Zambi são quase sempre em versos), enquanto os
brancos estão localizados na paródia, na farsa, no cômico. A comicidade e o poético são
grandes pilastras no espetáculo, que vão se alternando entre as cenas curtas.
A partir da constatação da “existência de uma hierarquia que privilegia
temas/narrações trágicas e/ou dramáticas em detrimento da comédia e da farsa
120
, a
historiadora Rosangela Patriota, discute no texto “O lugar da tragédia e da comédia na
construção do erudito e do popular na tradição literária”, os pressupostos hierárquicos
que envolvem a classificação destes gêneros. Dialogando com os autores Aristóteles e
Mikhail Bakhtin, a autora observa que o canon ocidental, ao excluir a comédia,
(ancorado na escassez de informações de sua produção na antigüidade grega), forjou,
119
- Êi negro motá, vem cá me ajudar com essas estacas./ - É gente trabalhando, e gente nascendo e
gente batizando e gente desbatizando./ - Meu nome de escravo era João Romão./ - Em nome de Olorum
pois fica sendo É-Bilaí./ - Meu nome de escravo era Pedro./ - Em nome de Olorum pois fica sendo É
Turiandú./ - Meu nome de escravo era Zé Firi./ - Em nome de Olorum pois fica sendo É Firiri./ - Num
mudou quase nada.../ (...)/ - Tem gente trabalhando, tem gente nascendo, tem gente crescendo e gente
casando./ (...)/ - Ei, Segé, tu nim casou ainda aintes de ontem com a Milena?/ SEGÉ Foi./ - Pois que faiz
tu aqui com a desconhecida.../ SEGÉ Casei inda agorinha. Agora são a Milena, Micoti, Rainha, Turiadá.
E agora mais a Eforge. Dentro da lei e com todas as benção./ - Ei, Palmares crescendo./ SEGÉ As
quatro de antes já estão com cria no bucho. Agora vou botar no buchinho desta aqui também./ (...)/ - Ai!/ -
Que foi bantú?/ - Martelei o dedo.” (BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 18).
120
PATRIOTA, Rosangela. O lugar da tragédia e da comédia na construção do erudito e do popular na
tradição literária. História: Fonteiras. p. 833.
59
também, os parâmetros do erudito e do popular, na medida em que o primeiro
associou-se ao trágico e o segundo à comédia. Esta opção possui implicações estéticas
e políticas , pois, como bem lembrou Umberto Eco, o riso tem a capacidade de liberar e
produzir questionamentos, pois a comédia, ao contrário da tragédia, não propicia a
identificação do espectador com o que ocorre em cena, pelo contrário, ela pode
suscitar o ‘estranhamento’, a crítica, bem como permite romper o espaço das
hierarquias estabelecidas
121
.
Porém, não é o que ocorre, pelo menos em parte na construção dramática de
Zumbi. Aqui opera-se o contrário: aqueles que estariam localizados no plano do
“erudito” os brancos estão associados ao cômico, enquanto outros que estariam no
plano do “popular” os negros associam-se ao trágico. Mas como aponta a discussão
de Patriota, o riso provoca o distanciamento, suscita a crítica, derruba as hierarquias,
tornando possível rir, gozar de um personagem representante da alta classe, do poder,
que busca a subserviência, o respeito e a obediência dos outros pela imposição, mas o
que consegue então é tornar-se ridículo e patético aos olhos da platéia. Enquanto a
tragédia procura despertar a empatia, a identificação e em decorrência uma tomada de
posição ao lado desses personagens trágicos.
Então, partindo desse ecletismo de gênero, para que haja clareza na estrutura
dramática da peça e não aconteça um caos comprometendo a compreensão do público,
há a presença do cantador e do coro, mais uma influência do teatro grego, que podem
ser desempenhados indiferentemente por todos os atores e que têm como função
reforçar o seu caráter narrativo, orientando o espectador no entendimento das cenas ou
de acontecimentos que não são encenados, mas apenas contados, fazendo a ligação entre
elas, resumindo-lhes o conteúdo, para analisar o que acabou de ser mostrado ou
introduzir o que virá. Além de servir de porta-voz para os autores que reafirmam seu
ponto de vista:
CANTADOR É justo neste instante, instante de espanto e emoção
que paramos nossa história prá aliviar atenção.
Temos nós nosso direito de dar descanso à falação
Tome café no barzinho que depois vem continuação.
Até já meu senhorzinho, se não gostou peço perdão,
Até já irmão, até já irmão
122
.
121
Ibidem, p. 840.
122
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 34.
60
Dessa forma, a música vem como suporte de conceitos, prepara a platéia
para a reflexão ou para a emoção, poupa o espetáculo do discursivo, quebra um
momento, desalienando o público, que tem os atores posicionados à sua frente, expondo
um comentário irônico, alegre, às vezes sério que procura desmanchar qualquer
possibilidade de entorpecimento pela ficção. Sua intervenção não busca realçar o clima
de uma cena, mas ao contrário provocar rupturas e ela se mostra exatamente como
música de teatro, não hesitando, se necessário, em citar-se a si mesma, em pegar
emprestadas certas fórmulas que remetem a formas tradicionais , familiares,
conhecidas do espectador: a ópera, o cabaré, o circo...
123
. Aqui também pode-se ver
bastante influência de Brecht que atribuía à música a seguinte função: “interromper a
continuidade da ação, romper a unidade da imagem cênica, despsicologizar o
personagem opondo-lhe uma contradição; enfim destruir todos os efeitos do real
eventualmente induzidos pelo espetáculo
124
. Brecht justapõe as referências mais
diversificadas, sem fundi-las. E Boal e Guarnieri trabalham essa multiplicidade em
Arena Conta Zumbi, como podemos ver, por exemplo, na cena em que o cantador
anuncia festa no palácio do governador, com presença de Dom Ayres. Vêem-se
justapostas as idéias de festa, religião (reza), a música clássica (flautim com música
seiscentista), a feira popular (cantador que deve cantar firme, aludindo aos repentistas
do Nordeste).
A peça propõe contar a história de Zumbi de Palmares, uma luta travada no
passado “que se parece ao presente/ pela verdade em questão/ (...) é luta que vence os
tempos,/ luta pela liberdade!
125
pretende-se mostrar “quem está com a verdade,/ quem
está com a mentira”, de forma esquemática, maniqueísta mesmo, assumidamente pelos
autores, para mais direta e claramente atingir suas propostas.
Ao dedicar o espetáculo “a todos aqueles que, através dos tempos” lutam
pela liberdade, os autores querem chamar a atenção da platéia para o presente,
mostrando que ainda se trata de algo a ser conquistado. Na fábula, os escravos são
convocados à ação, a saírem da passividade, mas o tom de conclamação ultrapassa a
arena, busca-se o espectador.
Dentro da temática da escravidão o negro está configurado como o valente,
o rebelde, o herói. Porém, na cena em que toma as matas, um deles diz:
123
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1982. p. 140.
124
Ibidem, p. 141.
125
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 1.
61
Não quero ser livre. Ser livre pra que? (...) Quem muito quer cai em desgraça.
Deixa de ser tão querençoso, mano. Aqui se come, se bebe, se tem teto pra dormir.
Negro ladino consegue escapar da chibata e até que a sinhá daqui não é das mais
malvadas.”
126
.
A resposta a esse questionamento vem em forma de canção, mostrando o
negro que busca um mundo mais justo, mais igual, construído por sua força e união,
onde possa ser feliz com sua família, numa idéia ampla de liberdade:
Só o verde da mata num dá/ pra um homem ser feliz/ é preciso ter mulher, pra
saber o que se diz./ liberdade somente não dá, - não!/ pra se Ter um bom viver,/
sem o carinho da minha nega é melhor morrer
127
.
A última fala de Ganga Zumba é uma afirmativa da validade da luta e uma
retomada do discurso de Zambi antes de sua morte, pois, antes de suicidar-se, confia a
seu bisneto a liderança do movimento, da batalha. Então, na cena final, os negros estão
derrotados, mas não vencidos, encontram-se ainda dispostos a lutar e resistir. Aliás essa
é a idéia que percorre a peça: uma guerra que não terminou, que ainda deverá ser
definida na luta pela liberdade, contra a tirania e a opressão. O espetáculo busca suscitar
na platéia uma atitude de resistência.
Nesse sentido, o texto ganha amplitude, saindo da idéia de datada, conforme
inúmeras críticas apontam. Pois mesmo que haja circunstâncias que façam alusão a seu
tempo, até porque o tema prende-se ao imediato, às questões políticas do momento, não
se esquecendo que uma obra é filha de seu contexto histórico, Zumbi contém algo
universal e atemporal (daí também o seu sucesso internacional): a luta do oprimido
contra o opressor.
E mostrando isso no palco, ainda não se estava no nível de apontar
caminhos, soluções e sim no plano da constatação, do entendimento, da denúncia, da
resistência. Antes de tudo era preciso estar vivo.
Além dessas questões, é inegável a inovação estética trazida por Zumbi ao
teatro brasileiro, que a despeito de qualquer vedetismo ou estrelismo, consagra a criação
coletiva, o teatro de equipe que inicia um momento de reformulação da encenação,
provocada pelo contexto político-social. Nesse sentido, agora mais do que em outros
períodos de sua trajetória, essa pesquisa e conseqüente mudança se dão em função da
126
Ibidem, p. 7.
127
Ibidem, p. 9-10.
62
eficiência do discurso político. Porém, nesse ponto, o Arena sofre inúmeras críticas
daqueles que opõem “teatro engajado” e “teatro estético”, oposição que parece
ultrapassada.
Entendemos obra de arte engajada como aquela que explicitamente assume
a mensagem política. Assim ela pode ser política e não necessariamente engajada.
128
Dessa forma, temos diferentes momentos da discussão política no Arena, que sempre se
propôs discutir a realidade em cena, mas que teve, em algumas fases, o engajamento
como o elemento fundamental e em outras colocou no palco questões sociais ou até
mesmo particulares do ponto de vista emocional, mas que conseguem projetar uma
discussão mais ampla.
Nessa perspectiva, é evidente que a visão dos autores sobre a década de 60,
mais especificamente, o golpe militar de 64, está representada em sua obra.
Logicamente, há na peça a discussão política, mas dentro de uma dimensão estética,
pois, em nenhum momento, deixou-se de buscar a qualidade estética dos trabalhos.
E ainda seria pertinente considerarmo s que, se a obra de arte é uma
interpretação de aspectos da realidade concreta, nenhuma produção artística está
despida de caráter ideológico ou de classe.
Assim não pretendemos compreender os espetáculos do Arena e as posições
estéticas e políticas dos autores refletidas neles a partir de valores externos à sua
construção, mas sim percebê-los como documentos de luta de um grupo de artistas que
enfrentavam com “cenários, tanques; com figurinos, fuzis
129
.
“ARENA CONTA TIRADENTES”
Novamente partindo da idéia, de que por meio de um acontecimento
histórico do passado (séc. XVIII), pode-se falar do presente e discutir suas questões
políticas e sociais, Arena conta Tiradentes reelabora a estrutura utilizada em Zumbi,
tornando-a mais complexa e definida, pois há maior quantidade de informações
128
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC,
1999, p. 20.
129
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 270.
63
lançadas nas cenas e relação mais completa entre razão e emoção, a fim de ser mais
eficaz na transmissão da mensagem política.
Arena conta Tiradentes é uma peça em dois atos, ou um coringa em dois
tempos, como preferem os autores Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.. As
músicas são de Theo Barros, Sidney Miller, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Estreou em
21 de abril de 1967
130
, com direção de Augusto Boal. É composta de 30 cenas e 19
canções, havendo repetição de algumas e sendo que a música assume toda variedade de
movimentos da peça. Às vezes, vem como comentário, como sátira, provocando
distanciamento, outras buscam o emocional, ou ainda algumas melodias usadas para
criar o clima da cena.
Há um maior número de rubricas
131
. São 238 ao total, enquanto em Zumbi
somavam 56. Isso é de extrema importância, pois dá, tanto ao encenador quanto ao
pesquisador, mais informações sobre a construção dos personagens e o papel de cada
elemento teatral na elaboração das cenas.
A peça inicia-se com uma canção que afirma a validade da luta, estando os
atores em cena, cantando em coro, no escuro, com tema de seresta, sendo que o
andamento e o tema vão sofrendo modificações, tornando-se mais agressivos. A música
é Dez vidas eu tivesse (poema de Cecília Meirelles):
Dez vidas eu tivesse,
dez vidas eu daria.
Dez vidas prisioneiras
Ansioso eu trocaria,
Pelo bem da liberdade,
Nem que fosse por um dia.
Se assim fizessem todos,
Aqui não existiria
Tão negra sujeição
Que dá feição de vida
Ao que é mais feia morte;
Morrer de quem aceita
130
A estréia aconteceu em Ouro Preto, cidade onde Tiradentes viveu, indo depois para a sede do Arena
em São Paulo. Como relembra Boal: “antes da estréia, fizemos algumas cenas de teatro quase-invisível:
os atores representavam cenas nas filas de ônibus, nas mesas dos bares, vestidos como personagens, mas
sem darem a impressão de ser teatro e sim realidade os espectadores ficavam assustados ouvindo falar
de insurreição, de não pagamento de dízimos à Coroa etc. Ótima maneira de se ensaiar...” (Ibidem,
p.157).
131
Rubrica: “qualquer palavra escrita de um texto teatral que não faça parte do DIÁLOGO. Essas
palavras podem ser tanto o nome do personagem diante de cada FALA, quanto a descrição do
PERSONAGEM, do CENÁRIO, do FIGURINO, ou indicações de entradas e saídas de CENA, sugestões
de MARCAÇÃO ou, ainda, comentários explicativos ao estado de espírito dos personagens (...)”
(VASCONCELLOS, L. P. Dicionário de Teatro. 3ed. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 171).
64
Viver em escravidão.
Dez vidas eu tivesse
Dez vidas eu daria.
Mais vale erguer a espada
Desafiando a morte
Do que sofrer a sorte
De sua terra alugada ...
132
Luzes. Todo o elenco em cena. Os fatos seguem ordem cronológica, exceto
dois que quebram a seqüência linear: a sentença contra o Alferes, que lida no início da
peça, coloca no passado a ação dramática; e o interrogatório de Tiradentes, que se
encontra no decorrer do texto, e é composto de informações de origens variadas, reais e
ficcionais. Após a leitura da condenação de Tiradentes, o Coringa localiza no tempo e
no espaço, a partir de qual perspectiva seria contada a história:
Nós, somos o Teatro de Arena. Nossa função é contar histórias que conta o
homem; às vezes conta uma parte só: o lado de fora, que todo mundo vê mas não
entende, a fotografia. Peças em que o ator faz macarrão e faz café, e a platéia só
aprende a fazer macarrão e fazer café, coisas que já sabia. Outras vezes, o teatro
explica o lado de dentro, peças de idéia: todo mundo entende mas ninguém vê.
Entende a idéia mas não sabe a quem se aplica. O teatro naturalista oferece
essência sem idéia, idéia sem experiência. Por isso, queremos contar o homem,
quando necessário. ‘Arena conta Tiradentes’ história de um herói da liberdade
nacional
133
.
E faz uma dedicatória a José Joaquim de Maya, que foi, segundo o Coringa
(os autores), “o primeiro homem a se preocupar com a liberdade no Brasil
134
. Em
seguida, acontece a cena em que Maya, estudante brasileiro em Montpellier, França,
escreve pedindo ajuda à Thomaz Jefferson, herói da independência norte-americana, na
libertação do Brasil. Porém, este coloca que o apoio só viria depois dessa ação realizada
e sob a condição comercial imposta por ele:
“(Tom de velha e carinhosa mãe gorda) Ideal sagrado a liberdade! O povo
brasileiro pode contar com a nossa estima e carinho, mas não com nosso
rompimento de relações comerciais com Portugal. O povo brasileiro pode contar
com todo nosso apoio moral, mas não com nossos navios. E quando o povo
brasileiro por si só, já tiver conseguido a libertação poderá contar com os nossos
oficiais para adestrar seu exército. Em troca o Brasil deverá tão somente comprar
o nosso bacalhau
135
.
132
BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Tiradentes. p. 1.
133
Ibidem, p. 2.
134
Ibidem, p. 2.
135
Ibidem, p. 3.
65
No 1º episódio, do ato I, apresentam-se os vícios do governo de Cunha
Menezes, o Coringa comenta:
Luiz da Cunha Menezes construiu casa, rua, palácio. Extraiu minério, ouro,
diamantes! Quis esquecer que o Brasil era colônia, mas não esqueceu de tudo;
esqueceu só de mandar ouro para Portugal. Esqueceu no seu bolso. Fez obra
monumental! Obra símbolo do Brasil a Cadeia Pública símbolo do Brasil
Colônia! Era homem honesto. Para sua construção, abriu concorrência pública, e
honestamente contratou quem honestamente ofereceu melhores condições. Isto é, a
mais honesta porcentagem para ele próprio, Governador
136
.
Há também, a construção da Cadeia Pública que demonstra a corrupção, a
exploração capitalista a que são submetidos os prisioneiros e a submissão sofrida pelo
país naquele período.
Ainda nesse episódio, Tiradentes, na casa de pilatas, numa conversa com
Mônica (prostituta), em que fala sobre a participação do povo nas decisões do país,
escolha de governos, submissão econômica à metrópole, libertação das colônias entre
outros, começa a expor suas id éias revolucionárias de libertação e independência. No
entanto, a moça repudia toda a fala de Tiradentes, pois lhe interessa sua tranqüilidade,
seu comodismo, refletindo toda a submissão que toma conta de sua consciência. E há
uma rubrica para a personagem Mônica, que conversa com o alferes, muito apropriada:
Para ela a conversa de Tiradentes é muito engraçada; tem tanta graça como se hoje
se falasse de Reforma Agrária
137
. Chega Maciel que planeja o levante com o alferes,
enquanto em Vila Rica, acontece no Palácio do Governo, a posse do Visconde de
Barbacena, que substitui Cunha Menezes e nomeado pela Rainha, para lançar a derrama
(pagamento da dívida), para espanto de todos que esperavam um governante menos
duro. Após seu primeiro discurso, “(...) Só vos peço isso: digam comigo confiamos no
Brasil! Apostamos no Brasil! Critique menos e trabalhe mais!
138
, segue-se uma
marcha, que remete a inúmeras outras criadas no regime militar, para promover a
alienação, eram meio de propaganda e dominação ideológica:
Se o governo é bom ou mal,
vamos todos melhorar:
dê seu ouro a Portugal.
Existem muitas colônias,
Que se tornaram mais florentes,
136
Ibidem, p. 6.
137
Ibidem, p. 13.
138
Ibidem, p. 24.
66
Quando pagam suas dívidas
E à Coroa são tementes.
Trabalhe sem entender,
Dê dinheiro e seja ousado.
Pagando somos felizes
Num país escravizado...
139
Em seguida, acontece o primeiro interrogatório de Tiradentes no texto, que é
feito pelo Coringa.
O 2º episódio tem início com o diálogo entre o governador Barbacena e o
Tenente-Coronel Francisco de Paula, em que aquele ordena: “É perigoso deixar o povo
pensar sozinho. (...) A tropa que passeie pela rua. A força que exibe vale mais do que
realmente se tem
140
. Em seguida, entram Tomás Antônio Gonzaga, Domingos de
Abreu Vieira, Claúdio Manuel da Costa e João Silvério dos Reis, que apesar de serem
todos aristocratas, têm interesses divergentes, o que os leva a estarem dispostos a se
aproveitarem um do outro ou a se unirem, caso vejam seus lucros ameaçados.
Barbacena ordena o fechamento das fábricas de Domingos. Silvério resolve ficar com
seus duzentos escravos, agora “sem serventia”, “conforme o preço e o prazo”. Porém, é
exigido pelo governador, que antes ele pague as dívidas com a Coroa. Silvério se vê
impossibilitado de pagar com um empréstimo a juros, que Claúdio lhe faria, devido a
nova lei de Barbacena que elimina a usura e extingue o crédito
141
. Então após
discussão de não lançar a derrama, Barbacena decide escrever à Rainha propondo
adiamento, desde que os outros se comprometam a obedecer as novas leis impostas.
Na seqüência, há uma entrevista feita pelo Coringa, assim como é feita em
campo de futebol, com Barbacena, que é questionado sobre sua atitude, ao que responde
que visou a conciliação e com isso “a certeza da aplicação das leis em troca de um
hipotético adiamento da Derrama. Até lá eu preparo meu exército...
142
. Depois a
entrevista acontece com um garimpeiro, que se mostra como a classe revolucionária,
ligada ao setor econômico mais importante da época:
CORINGA
Mas se alguém organizasse a resistência, o povo ia junto?
GARIMPEIRO
139
Ibidem, p. 24.
140
Ibidem, p. 26.
141
Ibidem, p. 28.
142
Ibidem, p. 30.
67
Ah, isso é mais que mais que certo. Estourou o fuzelê, nós tá. O difícil é
estourá
143
.
No 3º episódio, desenrola-se a preparação da revolta, através de uma
construção dramática, que se dá de forma que duas cenas vão se alternando: uma se
passa na casa do Tenente-Coronel Francisco de Paula, onde estão, além do próprio,
Tiradentes, Maciel, Domingos Abreu Vieira, Carlos de Toledo, João Silvério dos Reis
(e às vezes, Alvarenga); a outra tem como cenário a residência de Tomás Antônio
Gonzaga, onde se encontram, além dele, Claúdio Manuel da Costa, Bárbara Heliodora
(e às vezes, Alvarenga e Cônego Luiz Vieira). Enquanto o primeiro grupo discute a
revolta, como fazê-la, os homens e as armas de que dispõem, a participação do povo
(libertação dos escravos que, de imediato, é rebatida), os outros discutem o dístico da
bandeira, a cor, a criação de uma universidade, onde será a capital, enfim planos
futuros, idealização. Não propõem nada prático para a ação de libertação, limitam-se ao
plano das idéias. Barbara Heliodora, mulher de Alvarenga, diz: “vocês gastaram tanto
tempo fazendo o dístico que agora só ficou faltando fazer a independência. Se tivessem
gasto o mesmo tempo fazendo a independência, agora só faltaria o dístico
144
. Ao final
unem-se os dois planos e traçam o plano de tomada do poder, combinando a ação de
cada um, o dia (lançamento da Derrama) e a senha (“É hoje o dia do meu batizado”).
O ato II é dedicado à narração do malogro e inicia da mesma forma que o
ato I: no escuro, o coro canta. Logo no início há uma entrevista do Coringa com
Silvério, que estava à caminho do palácio para entregar a carta de delação ao Visconde
Geral e que faz uma análise clara do insucesso da composição, da postura dos
inconfidentes e da ausência do povo no movimento. É o momento em que o personagem
revela para a platéia suas intenções secretas:
CORINGA
Ao que leva o medo, hein Silvério?
SILVÉRIO
Medo coisa nenhuma. Se valesse o risco até que o medo a gente enruste. Mas
vamos falar com franqueza: já pensou direito em quem está metido nessa rebelião?
Um bandinho de intelectuais que só sabe falar. Porque a liberdade...a cultura...a
coisa pública...o exemplo do Norte... na hora do arroxo quero ver. O outro lá
143
Ibid em, p. 39.
144
Ibidem, p. 49.
68
comandante das tropas, o que quer mesmo é posição seja na República, na
Monarquia, no comunismo primitivo, o que ele quer é estar por cima. Olha velho,
dessa gente, a maioria está trepada no muro: conforme o balanço, eles pulam pra
um lado. E eu aqui vou nessa? Mas nunca.
CORINGA
Então você não acredita mesmo nesse levante?
SILVÉRIO
Condições havia, mas agora não. Povo, que é o que resolve mesmo nessa hora,
não se pode contar com ele. O povo não se reúne na casa do Ouvidor Gonzaga e
muito menos na do Tenente-Coronel. (...) Bom, lá vou eu...E de agora em diante
com um novo título: o mais famoso dedo-duro do Brasil. Adeus
145
.
O 4º episódio trata da delação, da perseguição e da prisão dos inconfidentes.
Quando tem início a repressão à conjura, alguns homens embuçados (embuçado 1, 2 e
3) vão avisar os inconfidentes do perigo que correm, contando que foram traídos e que
Tiradentes havia sido preso. Chega Marília que pede a Gonzaga que fuja, dizendo que
irá com ele. Porém, ele decide ficar, movido por seu amor à Pátria. A cena é
melodramática. O Coringa interrompe e faz repeti-la, buscando uma “versão
verdadeira”: Maciel conta a Gonzaga, Claúdio e Alvarenga que Visconde suspendera a
Derrama. Há suspeita de traição. Chega Silvério que é recebido com receio por todos.
Em seguida são presos. Enquanto isso, Tiradentes, no Rio de Janeiro, busca proteção de
amigos. Bate à porta da casa da viúva Inácia, que não lhe dá guarda. Vai preso. Todo o
elenco canta Campanhas da Libertação.
O 5º episódio apresenta o julgamento, sentença e execução de Tiradentes, o
único, entre os conspiradores de Vila Rica, que leva até o fim suas convicções, que
mantem seus ideais e os expõe a todos, até mesmo ao governo. Os outros inconfidentes
têm a pena de morte comutada para degredo na África. A afirmação da luta é retomada,
de forma exortativa, no final da peça, através de duas canções: Dez vidas eu tivesse (já
citada) e Campanhas de Libertação. A primeira representa o modelo de herói a ser
seguido e a segunda, uma mensagem de esperança:
Espanto que espanta a gente,
tanta gente a se espantar
que o povo tem sete fôlegos
e mais sete tem pra dar.
Quanto mais cai, mais levanta
Mil vezes já foi ao chão.
145
Ibidem, p. 59-60.
69
Mas de pé lá está o povo
Na hora da decisão
146
.
Na composição da peça, os autores utilizaram-se de pesquisa que vai desde
obras científicas e artísticas sobre a Inconfidência Mineira, como o Romanceiro da
Inconfidência de Cecília Meireles, ao exame dos Autos da Devassa. Porém, estando
ausente a preocupação de “rigor científico” e veracidade dos fatos, assumidamente pelos
autores. A narrativa tem o mérito de estabelecer a discussão e não seguir interpretações
históricas/e consagradas.
Quanto à encenação, há um aperfeiçoamento de todos os recursos teatrais
música, figurino, estilos, cenário, construção dramática que tomam uma única direção
no sentido de reforçar uma idéia, a de que é possível uma ação libertária; e tornar mais
eficiente a transmissão da mensagem, que deve provocar não apenas reflexão no
espectador, mas sobretudo uma atitude de resistência organizada.
Surge a necessidade, depois de Zumbi, de organizar uma estrutura fixa de
dramaturgia e de espetáculo, que venha dar ao teatro mais possibilidades, devido ao
baixo custo, à eliminação de grandes cenários, ao número reduzido e fixo de atores,
num período em que as artes cênicas estava em crise, por razões econômicas e políticas.
Além da necessidade, que aponta Boal, “de analisar o texto e revelar essa análise à
platéia; de enfocar a ação segundo uma determinada e preestabelecida perspectiva e só
dessa; de mostrar o ponto de vista do autor ou o dos recriadores”.
147
Cria-se, então, o
“Sistema Coringa”, elaborado e sistematizado por Augusto Boal. Se em Zumbi todos os
atores faziam todos os personagens, sendo distribuídos os papéis diferentemente em
cada cena, em Tiradentes, com o sistema coringa, cada ator tem sua função pré-
determinada; não são estabelecidos personagens aos atores, mas sim funções de acordo
com a estruturação geral dos conflitos do texto.
A primeira função é a protagônica: é o único papel da peça que não admite
revezamento, devendo ser feito por um único ator e de maneira naturalista, para
recuperar a empatia do público. E não necessariamente é a personagem principal da
história, mas é aquela que se quer dar maior atenção e proporcionar uma aproximação
do espectador. No caso, Tiradentes exerce a função protagônica e é desempenhado por
um único ator durante toda a peça, exceto na cena em que o Coringa se “veste” de
146
Ibidem, p. 93.
147
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p. 207.
70
Tiradentes e que pede uma concepção de teatro infantil, pois ele está cavalgando e como
não há a possibilidade de se colocar no palco um cavalo, este torna-se “mágico”
(imaginário) e, no momento de seu enforcamento, que adquire contorno teatral. Aqui a
intenção é a busca de uma identificação da platéia com o herói, que concentra em si a
consciência e as qualidades necessárias para uma atitude libertária e uma postura de um
“verdadeiro revolucionário”.
A outra é a coringa, que assume a função distanciadora na tarefa de
despertar o público para que se posicione criticamente frente os fatos, podendo
desempenhar qualquer papel e retomar sempre a atribuição que lhe é própria, de
conduzir o espetáculo, já que é dele que parte a narração, é ele que comenta e explica os
acontecimentos, apresenta aos espectadores o ponto de vista dos autores. É um meio de
trazer à cena o que a ação dramática, às vezes, não consegue expressar. “Funciona como
menneur du jeu, raisonneur, mestre-de-cerimônias, dono do circo, conferencista, juiz,
explicador, exegeta, contra-regra, diretor de cena, regisseur, kurogo, etc
148
.
Essas duas funções tornam-se via dupla para a exposição da opinião dos
autores, pois, apesar de do ponto de vista formal serem opostas, caminham na mesma
perspectiva de interpretação da realidade. "Ambos, um pela razão, outro pelo
envolvimento emocional, nos oferecem a compreensão do erro, a indicação do caminho
e do modelo a seguir”.
149
Dentro dessa estrutura, o espetáculo divide-se em sete partes: Dedicatória,
Explicação que além de interromper a ação, tem como propósito básico, envolto no
tom de conferência, esclarecer questões que podem ter ficado confusas ou sem
compreensão pela platéia por necessitar de referências históricas ou por ter havido uma
distorção por parte dos autores; ou ainda para reforçar uma expressão, gesto ou idéia;
expor os objetivos da peça; clarear as opções estéticas; sendo sempre assumida pelo
Coringa , Episódio, Cena, Comentário, Entrevista e Exortação final em que, seja
através de prosa ou canção coletiva, o Coringa estimula a platéia a integrar-se ao tema
tratado na peça.
O sistema proporciona liberdade de gêneros e proporciona a fixação do
conhecimento dos códigos, indispensável para a total fruição e compreensão do
espetáculo, como num jogo de futebol, em analogia de Boal
150
, em que as regras
148
Ibidem, p. 216.
149
CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 109.
150
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p.198.
71
precisam ser pré-conhecidas. Os demais atores ficam divididos em dois coros,
Deuteragonista (papéis de apoio ao protagonista) e Antagonista (papéis dos oponentes),
que comentam a cena anterior e preparam a seguinte, além da tarefa de organizar o
cenário, que agora ganha objetos que definem o espaço. Cada um tem o seu corifeu, que
se pronuncia após a entrada do coro, tem o papel de situar época e lugar da ação e
interromper o envolvimento emocional. Os dois ligam as cenas e são a base do caráter
narrativo da peça.
O fato é que todos os personagens (tanto os companheiros de conspiração
quanto os inimigos) são apresentados com a intenção de provocar críticas às classes
dominantes. Já o personagem principal é mostrado como o herói da luta pela libertação
nacional, para suscitar empatia pelo “homem que dá sua vida pela causa
151
.
Em Tiradentes, o figurino abandona o indiferenciado de Zumbi, sem
individualizar. Há um modelo básico para cada um dos papéis sociais (Igreja, Exército,
Aristocracia, Povo), complementado com elementos que caracterizam subsetores dos
grandes grupos sociais. Por exemplo: o latifundiário Silvério dos Reis e o poeta Tomás
Antônio Gonzaga fazem parte do grupo aristocrata, mas assumem posição e atividade
distintas. Serão identificados, o primeiro pelo uso de um chicote, o segundo por uma
flor.
152
Aqui, também é possível constatar uma semelhança, ou melhor, uma
analogia entre os acontecimentos narrados e outros das décadas de 50 e 60 no Brasil: o
incitamento, por parte de setores da esquerda, no pós-golpe a ações revolucionárias,
armadas sem a efetiva participação do povo; na figura de Cunha de Menezes e seu
discurso de progresso com a construção da Cadeia Pública numa alusão ao governo de
Juscelino Kubitscek sustentado no desenvolvimentismo, ou ainda a Adhemar de Barros
no que se refere à corrupção; a preocupação da metrópole portuguesa (onde deve-se ler
Estados Unidos) em conter o desenvolvimento econômico da colônia brasileira,
evidenciando a luta anti-imperialista a que a peça se refere.
153
O foco narrativo privilegiado na peça tem como escudo a Inconfidência
Mineira, para falar dos acontecimentos da época, é a aliança do personagem central
Tiradentes o herói revolucionário com os intelectuais. Estes são colocados em
julgamento, por sua omissão, incoerência, infidelidade à causa, individualismo
151
SCHWARZ , R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 84.
152
CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 102.
153
Ibidem, p. 100.
72
decorrente de sua posição de classe privilegiada. Visando criticar o comportamento dos
conjurados (poetas/intelectuais) do século XVIII, o que “acaba funcionando como uma
espécie de autocrítica feita pelos (oferecida aos) artistas revolucionários do final dos
anos 60/início dos setenta
154
. Nessa perspectiva, a temática central é a situação
arbitrária de ausência de liberdade e de subjugação a uma nação estrangeira. Questões
que serão o centro também de outros movimentos do período, como o da esquerda e o
estudantil.
Apesar da oposição central ao poder externo se manter, a idéia agora é
outra: quer se demonstrar que condições para uma revolução bem-sucedida havia,
porém se isso não ocorre seria pela composição do grupo que se propõe tal tarefa e pela
não participação do “povo” verdadeira classe revolucionária (garimpeiro, minerador
classe cuja força de trabalho sustenta o setor fundamental da economia no século
XVIII), no movimento. Na primeira possibilidade a limitação se dá pela razão que move
os inconfidentes ser a defesa de seus interesses e privilégios. E ainda: não conseguem
ser diferentes por causa de sua origem social, sua formação política e intelectual
diretamente ligada ao liberalismo. Através desse grupo, a peça critica posturas
falsamente revolucionárias. Porém, entre eles se destaca Tiradentes que reúne
qualidades morais e intelectuais de alguém que luta por seus ideais de justiça e liberdade
e que teria então pensamento e postura divergentes dos demais, inclusive no que se
refere à participação popular na revolta. Assim, o seu erro teria sido acreditar que os
outros envolvidos no movimento tinham os mesmos ideais e que eram confiáveis.
A ampla carreira de Boal (autor, diretor, professor de teatro) e por certo a
forma como encara a arte teatral, sua concepção política e engajada de ter a arte como
meio de luta, de interferência na realidade social, sem perder a dimensão formal,
conferem-lhe uma extrema liberdade teórica e estética no que se refere a elaboração de
um espetáculo que representa a grande renovação no processo de desenvolvimento da
arte cênica no país.
BRECHT E BOAL: UM DIÁLOGO ABERTO
154
RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção um estudo de “Os
Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História)
FFLCH, USP, p. 201.
73
Além de autor (dramaturgo, poeta e ensaísta) e diretor, Bertolt Brecht foi
também teórico, desenvolvendo juntamente com sua própria obra um método da
mesma. Mas um método que se pretende um processo no sentido de uma teoria aberta
para a realidade, algo a ser experimentado, pesquisado, reelaborado e não ser tomado
como modelo, como exemplo, uma simples cartilha a ser seguida por qualquer grupo
em qualquer lugar e momento. Isso seria matar a teoria brechtiana que ultrapassa
técnicas teatrais inovadoras, possuindo um sentido político amplo que, se não for
compreendido e comungado pela encenação que se inspira em Brecht, fará desta apenas
um espetáculo superficial e repetidor de uma linguagem morta, sem razão de ser. O
teatro brechtiano se fundamenta numa atitude histórica, política, “numa visão dialética
de nossa história
155
.
Nesse sentido, Brecht propõe uma arte engajada que fale da realidade,
considerando que a peça de teatro é composta de fragmentos do real, que mostre as
contradições entre os homens, entre as classes sociais, a relação entre o homem e a
História, que tire o espectador da alienação que o teatro psicológico provoca, deixando
em estado de alerta sua consciência, sua visão crítica e em evidência que o que o
público vê é teatro, ou seja, uma representação da vida, uma reprodução, para que ele
possa extrair daí a moral, tirar a conclusão para intervir na vida real. Temos assim um
teatro que busca instigar a platéia a uma tomada de posição em relação à realidade da
qual fazem parte o espectador e o artista. Como coloca Bernard Dort: “Antinaturalista,
porque recusa a dissolução do homem no mundo, a obra de Brecht baseia-se nesta
necessidade de transformar a sociedade, e, para transformá-la, de conhecê-la. Seu
ponto de partida é a contestação da natureza (...) burguesa. Recusando a noção de que
houvesse uma natureza ‘naturalizante’, reconhecendo que o que chamamos de natureza
não é nunca mais do que o conjunto das regras que nos são impostas pela classe
dominante, com a finalidade de manter e perpetuar sua dominação dando-a como
natural, Brecht empenhou-se inicialmente em nos revelar a realidade datada, histórica,
de uma tal natureza, falsamente considerada eterna
156
.
Porém, ao contrário do que se possa pensar, não se trata de uma encenação
que, porque busca despertar a razão e a reflexão, opõe-se à emoção. Pelo contrário, a
emoção está presente, mas de forma desalienante, provocativa, indagadora. Assim, “a
155
DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 302.
156
Ibidem, p. 293.
74
poesia não é transcendência, negação da realidade. A dramaturgia brechtiana faz
convergirem realismo e poesia: uma poesia que nunca nega o realismo, e um realismo
que nunca é naturalismo.”
157
Ou seja, fugindo de uma encenação realista, assumindo o
teatral, busca-se a realidade, através da representação, da discussão não apenas do
mundo, um mundo sem fissuras, mas dos homens situados num lugar e um momento
específicos, e a relação entre estes, que se dá tensa e contraditória. “A vida cotidiana e o
painel histórico coexistem, em uma relação dialética. Tal é o primeiro elemento do
realismo brechtiano
158
.
Brecht parte do princípio de que nem o homem nem o mundo são entidades,
mas sim estruturas em transformação, dinâmicas. Assim a influência brechtiana nos
musicais do Arena se faz fundamentalmente pela identificação com a poética marxista
de Bertolt Brecht, que afirma que a personagem não é sujeito absoluto e sim objeto de
forças econômicas ou sociais, às quais responde, determinando suas ações.
159
Dessa
forma, o teórico alemão não acredita na existência de uma “natureza humana”, como se
o sujeito se encontrasse pronto e acabado, ou se constituísse de forma livre e autônoma.
Deve-se buscar as causas que fazem com que ele seja como é, os elementos que
processualmente o vão formando. O que não quer dizer, para ele, que as vontades
individuais não intervêm nunca, porém, não são o fator determinante da ação
dramática.
160
Então o que importa mostrar é como se dá esse processo, que pode ter dois
caminhos: “uma ação do mundo sobre o homem, mas também de uma ação do homem
sobre o mundo
161
.
Nos musicais, Boal e Guarnieri acentuam o primeiro caminho, retratando
uma certa fatalidade: os heróis (Zumbi, Tiradentes) não se transformam, não se tornam
líderes, já o são. São o que são do início ao final da peça. Sua postura, seu caráter e
ideologia não sofrem mutação, já são conhecidos pelo público logo no começo. Mas é
como coloca o próprio Brecht: sua fatalidade é social, é imposta pelo mundo, por suas
157
Ibidem, p. 281.
158
Ibidem, p. 287-288.
159
Sobre essa questão Augusto Boal desenvolve um capítulo intitulado “Hegel e Brecht: Personagem-
Sujeito ou Personagem-Objeto?”, que está em seu livro “Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas”.
Em sua discussão, o autor traça a diferença, a oposição entre a poética de Brecht e de Hegel: “a
confrontação central entre estas duas Poéticas (hegeliana e brechtiana) se dá no conceito de liberdadde do
personagem, (...): para Hegel o personagem é inteiramente livre quer se trate da poesia lírica, épica ou
dramática; para Brecht (e para Marx) o personagem é objeto de forças sociais (...) às quais responde, e em
virtude das quais atua.” (p. 107, 113) Daí, para Boal, é um erro designar a poética brechtiana como épica,
já que se trata de um termo utilizado por Hegel; devendo então, ser denominada poética marxista.
160
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p.119-120.
161
DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 291.
75
instituições. Há causas que fazem com que cada um seja o que é. E não permite que as
personagens deixem de agir como agem, de cometer os erros que têm e escolher os
caminhos assumidos.
162
Como dizia Marx, é o ser social determinando o pensamento
social.
Porém, não se encerram as peças com derrotismo, ficam a esperança e a
conclamação de continuidade da luta, da ação do homem sobre o mundo.
Formulada com inspiração brechtiana e marxista, a série “Arena conta...
buscava despertar no público a consciência de que era possível alterar um estado de
repressão, tortura e medo, por um baseado em princípios como liberdade, participação,
igualdade e democracia, mostrando a batalha dos oprimidos e os diversos mecanismos
de dominação dos opressores, através dos tempos. Representando tal situação num
momento passado, objetivava-se falar sobre o presente e enfatizar que, se o homem é
determinado pelas condições históricas, não quer dizer que não possa atuar sobre elas
para modificá-las.
Nessa perspectiva de argumentação, acreditamos que é fundamental
compreender como indivíduos concretos interpretam os símbolos e signos que estão à
sua volta, como internalizam e a que decisões chegam em momentos de opção tanto em
situações explicitamente dramáticas da história de uma sociedade quanto ao nível do
cotidiano (...) Os indivíduos concretos, em suas biografias, interpretam, mudam e criam
símbolos e significados, evidentemente vinculados a uma herança, a um sistema de
crenças. Com isso recupera-se a idéia de que os indivíduos também desempenham o
papel de agentes de transformação e mudança da cultura e da sociedade e não são
mero joguetes de forças impessoais. O fato de que as pessoas nascem dentro de um
sistema sócio-cultural já dado não quer dizer que este sistema não esteja sempre se
fazendo através das biografias individuais
163
.
Para se chegar à teoria brechtiana, todo elemento teatral é trabalhado de uma
nova forma, assumindo-se como tal. A construção dramática passa a tratar cada cena
por si mesma, em separado, não dependendo uma da outra, ou de um encadeamento,
mas formando um todo que persegue uma temática e que resulta numa montagem, como
podemos ver na estrutura que compõe os musicais do Arena. Não persegue mais um
162
Ibidem, p. 290-291.
163
VELHO, Gilberto e CASTRO, E.B. Viveiros. O Conceito de Cultura e o Estudo de Sociedades
Complexas: uma Perspectiva Antropológica. p. 12.
76
enredo de organização harmoniosa, baseado numa gradação que procura atingir um
clímax que possibilite a catarse, nem em personagens delineados a partir do psicológico.
Pretende-se acentuar as contradições. De forma que as situações e a sua
interpretação pelo ator, que deve se posicionar em relação à personagem, ganhem tal
elaboração que instigue o espectador a “situar, e portanto a criticar, o encadeamento
das causas e dos efeitos que lhes deram origem
164
. Nesse sentido, uma peça como
Arena conta Zumbi é altamente instigadora, pois concilia situações de grande emoção,
sem deixar de realçar a contradição que provoca questionamentos, por exemplo, a cena
em que os negros de Palmares, cegamente, acreditam na proteção dos brancos
comerciantes e decidem aumentar o preço de suas mercadorias, deixando de comprar as
armas dos brancos, sem tomar consciência de que estão dando início ao esfacelamento
de sua sociedade, de suas famílias.
Nessa perspectiva, numa análise sobre o forma de protesto e o uso da
emoção, a respeito de Arena conta Zumbi, Fernando Peixoto considera que o
espetáculo, “traduzindo confiança e entusiasmo na transformação, apontava uma trilha
talvez (...) útil. Mas a exaltação da dor ou da alegria, o palco iluminado ou escuro,
permanecem estágios primários, ainda que honestos: a apreensão da realidade exige
uma entrega e um compromisso mais decisivos
165
. No entanto, se havia erros, muitos
eram em função de estarem no momento da produção mergulhados num universo de
intensa descoberta e pesquisa, tanto em nível artístico, quanto ideológico e,
contraditoriamente, vivendo em difíceis condições de trabalho, limitados pela violência
do golpe de 64. Uma possível resposta vem do próprio Fernando Peixoto, em um artigo
escrito nove anos depois, quando diz: “dentro de todos os terríveis e perigosos limites
do possível (...) criamos uma fecunda e exemplar produção cultural de resistência
166
.
Ou seja, participavam dentro do possível, para que pudessem agir e não se omitir,
mantendo viva “muita coisa do teatro (...) a vontade de não calar, de não aceitar a
mentira, de procurar descobrir a verdade, esteja onde esteja
167
. Compromissos ou
não? Parece que sim.
164
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1982, p. 170.
165
PEIXOTO, Fernando. O limite de um protesto. Movimento, n.º 8, 25/8/75. In: PEIXOTO, F. Teatro em
Movimento. São Paulo: HUCITEC, 1985, p. 33.
166
PEIXOTO, Fernando. Cultura: do golpe ao apodrecimento do golpe. Publicado no programa do
espetáculo Amor em Campo Minado, de Dias Gomes, direção de Aderbal Júnior, Rio de Janeiro. In:
PEIXOTO, F. Teatro em Questão. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 59.
167
PEIXOTO, Fernando. Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri. Encontros com a Civilização
Brasileira, n.º 1, Jul./1978. In: PEIXOTO, F. Teatro em Movimento. São Paulo: HUCITEC, 1985, p. 59.
77
Brecht era marxista: por isso, para ele, uma peça de teatro não deve
terminar em repouso, em equilíbrio. Deve, pelo contrário, mostrar por que caminhos se
desequilibra a sociedade, para onde caminha, e como apressar sua transição
168
.
Também nesse ponto, os autores dos musicais comungam da mesma postura, quando,
ao final das peças, seja de forma exaltativa, através da emoção, buscam a adesão do
público no sentimento de revolta, de transformação. Então, não se trata de mero
emocionalismo alienante, mas de emoção provocada pelo conhecimento de situações
injustas, de opressão, que provocam na platéia o desejo de luta, de participação.
Porém, pode-se dizer que Boal, na influência que sofre de Brecht, não cai na
armadilha de repetir suas técnicas ou imitar seus espetáculos. Mas ao ter a mesma
postura ideológica de luta contra o capitalismo opressor e a favor da construção de uma
sociedade socialista, encara as idéias de Brecht, como incentivo para a pesquisa de uma
nova linguagem adaptada à sua realidade.
Dentre os elementos trabalhados, o drama é substituído pela narrativa, que
irá descrever comportamentos e narrar opiniões, afastando-se da “verdade histórica” e
preocupando-se em sublinhar a transformação da sociedade. Como nos musicais, em
que o Arena trata de temas históricos sem se prender às circunstâncias, buscando mais o
sentido, a razão, os elementos que tornam a sociedade engajada na mudança de sua
condição histórica num dado momento. E se os espetáculos tratavam do Brasil e da
América Latina no século XVIII, isso era apenas metáfora de coisas referentes ao
mundo atual. E era nisso que os autores queriam que o público pensasse.
A relação ator-espectador também muda e propõe uma interação, ou ainda,
uma participação que se expande para além dos limites do teatro e busca o mundo do
qual a platéia faz parte. Jamais deve haver uma absorção passiva, alienante, um apelo à
criação de atmosferas, ao contrário, a crítica deve conduzir o olhar do público,
estabelecendo uma comunicação, mas ao mesmo tempo um distanciamento
169
, que
pretende evidenciar que se trata de uma representação de aspectos do real, deixando
168
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991, p.122.
169
No conceito de Bernard Dort: “é literalmente, empreender um processo de ‘desalienação’, dando aos
‘a contecimentos nos quais se defrontam os homens o aspecto de fatos insólitos, de fatos que necessitam
de explicação, que não falam por si, que não são simplesmente naturais’. E tal ‘distanciamento-
desalienção’ deve intervir em todos os níveis da representação: no trabalho dos atores como na
dramaturgia, na música como na cenografia... deve ‘conduzir o espectador a assumir uma atitude crítica
a partir de um ponto de vista social, sem destruir a vitalidade, o caráter concreto e o desenho histórico dos
acontecimentos e das personagens’” (DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva,
1977, p. 319.)
78
ativa a capacidade de análise do público, não mais isolando-o com a “quarta parede” do
palco, que caracteriza o ilusionismo.
Em favor dessa nova postura, falam todos os recursos teatrais (cenografia,
objetos, iluminação, a música, etc.), mostrando que a idéia e a imagem dialogam,
caminham juntas e não há então uma contraposição entre elas, que colocasse o discurso
em detrimento do espetáculo. A pesquisa e a inovação de Brecht se dão em todos os
níveis da montagem, em função de um eficiência do compromisso político, porém sem
subordinar o estético, pois, para ele, “uma idéia só é legitimada teatralmente a partir do
momento em que ela consegue visualizar-se
170
.
Além dessas indicações, Brecht congregava em torno de si as diversas
funções de teórico, autor teatral e encenador, porque assim, tendo um único “mestre de
obras”
171
, o espetáculo atingiria sua proposta. E foi também nesse caminho que os
autores dos musicais, em especial Augusto Boal, por elaborar mais extensa e
profundamente uma teorização sobre esse trabalho, construíram os mesmos.
Ainda hoje, o método brechtiano é de extrema validade para aqueles que
desejam e propõem um teatro engajado na realidade, além da reflexão que proporciona
sobre o lugar da arte cênica na sociedade.
Em nossos dias, em que muitas vezes a cultura é tomada como produto de
consumo, como mercadoria, em que ganham força os teatros de estrela, de
personalidades, em que apelam para os padrões regidos pelas leis da oferta e da procura
e por esse critério são financiados, a teoria brechtiana em seu sentido mais amplo e
profundo, o político, torna-se fundamental na produção do teatro de grupo, conseqüente
e compromissado, consciente da função social da arte.
No entanto, se o momento atual é de questionamento sobre a eficácia
política do teatro e em que medida consegue intervir na realidade, toda a prática artística
de Brecht e do Arena nos mostra que o teatro é um poderoso instrumento de reflexão
crítica e transformação da sociedade, do sistema de produção injusto e exploratório. Ele,
com seus próprios meios, é capaz de instrumentalizar o homem, agente revolucionário,
para atuar no mundo.
Brecht, ao elaborar uma teoria marxista da arte, rompe com velhos modos
de representação, com uma “certa ordem artística (que é também uma ordem social)
172
170
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1982, p. 62.
171
Ibidem, p. 63.
172
DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 342.
79
e propõe uma transformação no processo de produção, nos conceitos ideológicos e
estéticos, uma utilização da arte como meio de mudança do que está estabelecido.
Porém é de extrema importância não se desviar da questão que Fernando Peixoto chama
à atenção para que não se invalide a teoria brechtiana: “Brecht tem muito a nos ensinar,
desde que tenhamos a capacidade de aceitar seu trabalho teórico e prático como um
estímulo a encontrarmos nossos caminhos latino-americanos de trabalho teatral vivo e
criativo
173
.
O TEMPO DOS MUSICAIS: A ARTE ENGAJADA NA RESISTÊNCIA
DEMOCRÁTICA
Apesar do golpe de 64 e o fim do tom democrático com o início da
República Militar, a presença cultural de esquerda não é anulada, nesse momento. Ao
contrário, adquire relativa hegemonia, além da singular qualidade, podendo “ser vista
nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais,
incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas e de invasão policial, na
movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos
santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. (...) Assinala, além de luta, um
compromisso.
174
Porém, Schwarz localiza esta hegemonia entre os próprios intelectuais
de esquerda, ou seja, suas obras eram feitas para o consumo destes mesmos intelectuais,
num sentido de estímulo à continuação da luta. Também na visão de Rosangela Patriota,
a construção de uma “cultura de oposição”, durante o regime militar, “presente no
teatro, no cinema, na música, na literatura, entre outra formas de manifestação,
permitindo que se estabelecesse uma ‘identidade’ entre produtores e consumidores de
bens culturais, propiciada pelo engajamento artístico, se tornou uma das pilastras da
resistência democrática”.
175
Por outro lado, a direita usava a repressão para abafar o movimento operário
ou qualquer manifestação indesejada e buscava ativar politicamente os sentimentos
173
PEIXOTO, F. Teatro em Questão. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 256.
174
SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 62.
175
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC,
1999, p. 16.
80
retrógrados e conservadores da pequena burguesia, fazendo-a se manifestar
contrariamente à esquerda, que era pichada de inimigo do povo e do país, através de
ações como as “Marchas da família, com Deus e pela Liberdade”, que eram contra o
divórcio, a reforma agrária, a comunização do clero, entre outros.
A partir desse quadro, o sociólogo Octávio Ianni assim analisa os dilemas
vividos pela esquerda: “No confronto entre as concepções básicas dos vários grupos
sociais engajados nas disputas políticas no Brasil, a esquerda precisou lutar muito
para formular e fixar-se numa alternativa própria. Diante dos modelos apresentados
pelos diferentes setores da classe dominante (...) a esquerda brasileira precisou criar a
sua concepção de progresso socialista. Vinha das tradições e práticas do marxismo-
leninismo, como solução revolucionária. Entretanto precisou ajustar-se às condições
locais. (...) Esse é o dilema mais geral com o qual se defronta a esquerda brasileira, na
época em que se dão lutas notáveis pela superação da economia colonial e pela
emanipação, política e cultural”.
176
A esquerda brasileira vivia um episódio de lutas e desacertos,
experimentando dificuldades, contradições e oscilações dentro da própria esquerda, dos
partidos políticos, que se viam “desmembrados” em diversos segmentos sociais,
movidos por diferentes valores ético-morais, diferenciadas interpretações quanto ao
caminho a se percorrer, para se chegar ao mesmo fim: derrubar o governo ditatorial.
Nesta linha de argumentação, Schwarz destaca que “em seu conjunto, o
movimento cultural destes anos é uma espécie de floração tardia, o fruto de dois
decênios de democratização, que veio amadurecer agora, em plena ditadura, quando as
suas condições sociais já não existem, contemporâneo dos primeiros ensaios de luta
armada no país. A direita cumpre a tarefa inglória de lhe cortar a cabeça (...) Mas,
também à esquerda a sua situação é complicada, pois se é próprio do movimento
cultural contestar o poder, não tem como tomá-lo. De que serve a hegemonia
ideológica, senão se traduz em força física imediata? (...) Pressionada pela direita e
pela esquerda, a intelectualidade entra em crise aguda. Os temas dos romances e filmes
políticos do período é, justamente, a conversão do intelectual à militância. (...) Nestas
circunstâncias, uma fração da intelectualidade contrária à ditadura, ao imperialismo e
176
IANNI, O. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 2.
81
ao capital vai dedicar-se à revolução, e a parte restante, sem mudar de opinião, fecha a
boca, trabalha, luta em esfera restrita e espera por tempos melhores”.
177
Em certa medida, pode-se dizer que as peças contêm elementos que
permitem uma análise a respeito das ações e pensamentos da esquerda, dos impasses
enfrentados, das propostas não alcançadas. Por isso, segundo Alcides Freire Ramos, “é
possível afirmar que a leitura atenta dos documentos dos partidos de esquerda revela
idéias, valores e propostas que, em linhas gerais, encontram-se referidas nas obras
artísticas. Isto não quer dizer que a arte do período apenas ilustre as teses partidárias.
(...) trata-se de elementos que, independentemente do partido ou do artista em sua
individualidade/particularidade, podem ser vistos atravessando a década de sessenta e
servindo de solo/base de sustentação para todos os que se colocaram contra o estado
de coisas implantado pelos militares”.
178
Ainda assim, a esquerda passava por um
momento conflitante de divergências, entre os que optavam pela resistência democrática
e aqueles que buscavam uma opção mais radical a luta armada. De qualquer maneira,
mesmo entre os que se ocupavam da construção da resistência, como era o caso dos
intelectuais e artistas, havia dúvidas, questionamentos e auto-críticas em relação às suas
posturas. No entanto, se essas críticas não eram expostas explicitamente, apesar de
estarem mediadas em suas obras, e buscava-se justificativas para suas derrotas, era no
sentido de não abalar forças, que eram oposição aos governos militares.
O fato é que estavam formadas as dissidências dentro do PCB. Enquanto
vários grupos trilhavam o caminho da guerrilha, artistas e intelectuais continuaram a
defender a importância de seu trabalho e o papel social da produção artística e
intelectual nesse momento, enfatizando a necessidade de reflexão e resistência
organizada.
Nesse contexto, o Arena via na arte, sobretudo na atividade teatral, uma
possibilidade real de intervenção no processo de conscientização da sociedade
brasileira. Diante dessa proposta de teatro engajado e do golpe militar, que substituía o
Estado de Direito pela imposição de um Estado autoritário, que restringia as liberdades
civis, fazendo da censura uma constante nas artes, ou seja, que implantava um regime
de opressão, o Arena se via na necessidade de construção da resistência democrática e
177
SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 89-91.
178
RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção um estudo de “Os
Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História)
FFLCH, USP, p. 181.
82
de tornar suas obras meio para resgatar princípios como liberdade, igualdade, justiça,
democracia. Se por um lado o regime instaurou a censura e mecanismos eficientes de
repressão, de outro lado “a sua presença permitiu que bandeiras fossem levantadas,
lutas fossem travadas e símbolos fossem erigidos”.
179
Nesta linha de raciocínio, Boal comenta o período dos musicais, em que se
situa a encenação de Arena conta Zumbi, tendo como referência o golpe militar de
1964:
Mundo cão. Revisamos armários, estantes. Cartas cubanas, agendas, endereços,
edições do Granma, livros de Mao, Che, Fidel, Marx, Engels, Sartre...anotados
com carinho, foram escondidos ou jogados no lixo.
Antecipado São João ideológico: fogueiras.
Notícias davam conta: o exército, estacionando tanques no meio-fio; a marinha,
ancorando navios a largo; a aeronáutica, aterrisando onde havia pista; tinham
abandonado seus deveres militares e se convertido em força policial.
Vasculhavam, atrás de nós e do povo. Quem, alguma vez, tivesse dito coisa que
pudesse ser aparentada a pensamento assemelhado à esquerda (...) era preso (...)
A primeira medida da ditadura foi cultural: proibidos os Centros Populares de
Cultura em todo o território nacional. Por extensão, Ligas Camponesas,
sindicatos, uniões estudantis, qualquer forma de diálogo.
(...) Em Zumbi, outra vez, a metáfora. (...)
Queríamos resistir.
O texto usava jornais. Um discurso do comandante analfabeto, Don Ayres,
destruidor de Palmares, foi copiado ipis litteris do ditador Castelo Branco falando
ao Terceiro Exército: nosso exército se converteria em gigantesca polícia, o
verdadeiro inimigo (nós!) estando dentro e não fora das nossas fronteiras. (...)
Zumbi nos deu alegria, até financeira. Durante anos, quando um espetáculo não
atraía público, voltava Zumbi: o teatro, magicamente, transbordava
180
.
Com o decreto do AI-5, em 1968, a dificuldade aumenta, já que a censura e
a repressão ficam mais intensas. É o momento em que alguns optam pela luta armada e
outros, como é o caso do Arena, tentavam resistir. A criação da Feira Paulista de
Opinião, que encenou os textos O Líder, de Lauro C. Muniz; O Sr. Doutor, de Bráulio
Pedroso; Animalia, de G. Guarnieri; A receita, de J. Andrade; Verde que te quero verde,
de P. Marcos e A lua muito pequena e A caminhada perigosa, de A. Boal, buscava
expressar essa resistência:
Mil novecentos e sessenta e oito ano dos estudantes! , clímax da luta pela
liberdade de expressão. Foi o último ano de relativa claridade antes da escuridão
que tomou conta do país inteiro a partir do Ato n.º 5, que instituiu oficialmente o
fascismo no país, trazendo leis como a famosa Lei Secreta: nas acusações oficiais,
179
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC,
1999, p. 25.
180
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 221,
232.
83
publicava-se o número e não o conteúdo das leis que teriam sido infringidas pelo
réu, o que permitia à ditadura acusar e condenar quem quer que fosse, alegando
infração à lei, à qual nem os advogados tinham acesso. Condenados sem saberem
pôr que: Joseph K., Franz Kafka.
Veio a Lei da Delação: professores universitários que não denunciassem seus
alunos subversivos incorreriam na mesma pena que eles. Vieram as
aposentadorias compulsórias, as cassações de direitos civis, seqüestros, torturas e
assassinatos.
Não sabíamos o que fazer. Cada qual tinha a sua opinião. Qual a certa? Por isso,
pensamos em uma feira que seria a das opiniões
181
.
Depois, em 1969, o Arena viaja para Nova York, para uma temporada de
Arena conta Zumbi, inicialmente programada para uma semana, mas que durou um mês,
tendo sido recebido positivamente também pela crítica. Recupera, em seu depoimento, a
criação do Núcleo 2, do Teatro Jornal, a montagem de Arturo Ui de Brecht, a excursão
pelos Estados Unidos e alguns países da América do Sul com os espetáculos Arena
conta Zumbi e Arena conta Bolívar e assim, como Guarnieri, ao invés de pensar
cronologicamente o fim do grupo, circunstanciou acontecimentos, como o acúmulo de
dívidas, a sua prisão seguida de saída do país e a impossibilidade de desenvolver seus
trabalhos, que o levou a dissolução, através do estrangulamento artístico e cultural.
181
Ibidem, p. 253.
84
CAPÍTULO III
A HISTORICIDADE DO TEATRO DE ARENA
“O teatro inúmeras vezes parece uma expressão em crise.
Em certas épocas quase perde o sentido. Em outras é
perseguido. Às vezes refugia-se em pequenas salas
escuras, às vezes sai para as ruas e redescobre a luz do
sol. Sua função social tem sido constantemente
redefinida. Desde muitos séculos antes de nossa era até
hoje, nunca deixou de existir: há algum impulso no
homem, desde seus primórdios, que necessita deste
instrumento de diversão, conhecimento, prazer e
denúncia.” (Fernando Peixoto).
“Na verdade cada vez que um pano de boca se abre neste
país, cada vez que um refletor se ascende, soam as
trombetas no céu. Trata-se de uma vitória da cultura,
qualquer que seja o espetáculo.” (Oduvaldo Vianna Filho
Vianinha).
“Retorno, angústia. Eu não queria viver lá fora;
impossível viver aqui. Lá, poderíamos fazer bom teatro e
já seria muito. No Brasil, impossível esquecer o povo
massacrado, fechar os olhos. Quem, no Brasil, nos anos
70, poderia pensar em Metafísica? Metafísica tem hora!
Alguns se meteram na luta armada, desapareceram. No
Arena e em outros, tentava-se resistir. Cada qual a seu
modo.” (Augusto Boal).
A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE OPOSIÇÃO
Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes são obras, como já discutimos
no capítulo anterior, que mantêm um intenso diálogo com o seu momento histórico,
possuindo, por isso, elementos que permitem uma investigação a respeito da década de
60, em particular o pós-golpe, permeadas por temáticas como luta pela liberdade, justiça,
democracia, igualdade questões que foram solapadas pelos governos militares e que
estavam na ordem do dia de grupos que buscavam, de diversas maneiras, resgatá-las.
Além disso, são textos que foram confeccionados por autores e atores, numa criação
coletiva, que entendiam a arte como instrumento de luta, capaz de interferir nos processos
85
socio-políticos, trazendo para o palco representações dos problemas da sociedade, para
que a platéia, conscientizando-se, efetivasse o seu papel de agente transformador nos
conflitos vividos na realidade concreta.
Dessa forma, esses artistas não estiveram envolvidos apenas na construção
das produções artísticas, mas também do processo histórico em todos os seus níveis. São
sujeitos que possuem suas opções teóricas, estéticas e ideológicas e com elas estiveram
inseridos nos debates e lutas de sua época. Assim, propomos, neste capítulo, pensar as
manifestações culturais desse momento, em especial o Teatro de Arena, à luz de seu
contexto histórico, respeitando as posturas assumidas pelos indivíduos e/ou grupos
sociais, a fim de não perder de vista a historicidade de seus trabalhos.
Assim, se nos anos 50/60 a sociedade brasileira passava por inúmeras
mudanças, elas se refletiam também na produção cultural do período: no cinema com o
Cinema Novo; na música com a criação da Bossa Nova; nas artes plásticas; no teatro
com o surgimento do Teatro de Arena de São Paulo, fundado em 1952, pelo diretor José
Renato. Temas como “modernização”, “progresso”, “nacionalismo”, “anti-imperialismo”,
estavam mediados nas obras de arte. Isso porque se tratava de um momento em que todos
estavam envolvidos por essas questões, movidos pela crença de que era possível realizar
uma transformação em diversos níveis social, econômico, político, cultural e atingir o
ideal de um país democrático.
O ator e diretor Paulo José, que participou ativamente do Arena na década
de 60, relembrou a trajetória do grupo sob a perspectiva da conjuntura brasileira e da vida
política do país que se traduzia na arte, com uma valorização da “fala e do tipo físico
brasileiro”, e nos movimentos estudantis:
Depois da queda de Vargas, em 45, a União Nacional dos Estudantes ganhou
uma força, inclusive teve uma grande atuação no movimento contra a ditadura de
Vargas em 45. E mesmo políticos que, depois, se tronaram políticos
conservadores, ligados a partidos conservadores, na ocasião, eram líderes da
União Nacional dos Estudantes. Na realidade, naquele momento, eram ideais
democráticos que apareciam com muita força, então mobilizavam muito as
pessoas.
Houve, portanto, um fortalecimento muito grande das entidades estudantis que
passaram a ter, realmente, uma atuação muito grande, na base da decisão. Era
uma força política. Então a UNE União Nacional dos Estudantes era muito
forte. A UNE e a UNES estaduais e os grêmios de colégios, de universidades.
As atividades culturais começaram a se desenvolver muito também: cine-clubes,
dentro do quadro de cada colégio, assim como atividade teatral... Mas isso sempre
muito identificado com atividade política. Porque, por outro lado, uma série de
mudanças, a morte de Vargas em 54, foi uma coisa brutal, uma grande reviravolta.
86
Vargas foi deposto em 45. Quando volta em 50, já vem com uma proposta
nacionalista, esse petróleo é nosso, a campanha do trigo, a nacionalização do
trigo, nacionalização de eletricidade Eletrobras etc. Tudo isso trazendo
fortalecimento das entidades estudantis como atividade política mesmo (grifo
nosso)”
182
.
Como podemos ver, trata-se de uma geração que acreditava na possibilidade
de alterar a ordem das coisas, que tinha sede de mudança, de participação/intervenção,
de poder de decisão política. Jovens estudantes que circulavam nos movimentos
estudantis, políticos e culturais, construindo um modo de pensar, de viver, de relacionar-
se. Eram influenciados e influenciavam. Tinham a sua ideologia, sua postura formada
pelos mais diversos acontecimentos revolucionários, pelos quais o mundo estava
passando, e traziam suas expectativas para a realidade, que parecia promissora. Assim,
relembra Augusto Boal:
Anos cinqüenta, o Partido Comunista tornou-se popular entre artistas. Filiavam-
se ou simpatizavam; ou de longe desconfiavam. (...)
O mundo parecia mudar para melhor, planeta habitável! A Revolução Cubana
expulsava o gorila Batista, reconquistava a dignidade do ex-bordel dos Estados
Unidos. Sputiniks, avanço impetuoso da ciência soviética. Lumumba, no Congo ex-
Belga, começava a Revolução Africana abaixo colonialismos! Brasília brotando
no deserto.
Cinqüenta anos em cinco! JK parecia ter sido verdade! Movimentos estudantis e
Ligas Camponesas se multiplicavam, Jango no poder! O mundo tinha conserto
183
.
Sob esse aspecto, o Teatro de Arena começa a compor o perfil que
acompanharia toda a sua trajetória: a arte engajada. Esse caráter tem início,
especialmente, com a fusão do Arena com o Teatro Paulista do Estudante (TPE), que
tinha em seu elenco Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, e a chegada de
Augusto Boal, em 1956. A partir daí, toda a efervescência política do momento
contribui para uma politização da arte, no sentido em que
o que se fazia era quase um exercício de viver brigando por ideais, mas tudo
muito fechado, muito entre nós. Depois de uns três anos de movimento estudantil
firme, percebemos que realmente estávamos errando. Depois de uns três anos é
que chegamos à conclusão que precisávamos ampliar aquilo, que o movimento
estudantil não era só nosso, não era só de uma cúpula e sim de grupos que se
formavam em várias capitais, grupos pequenos mas que praticamente se
identificavam. E que era necessário então fazer um trabalho sério entre todos os
182
“Interview de Paulo José. In: ROUX, R. APUD: Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A
Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela
(Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU.
p. 179.
183
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 165.
87
estudantes. Chegamos à conclusão que o movimento cultural e principalmente o
movimento artístico seriam um meio eficaz de organização, onde se poderia
discutir, reforçar os grêmios, de estruturar diretórios e procurar criar um debate
cultural no meio estudantil.
184
.
Toda essa movimentação, acompanhada pelo campo político e artístico,
produziu no Arena realizações que marcariam sua história, como os Seminários de
Dramaturgia (onde aconteciam estudos e discussões sobre teoria do teatro e produziam
textos teatrais) e os Laboratórios de Interpretação (onde se estudou o método
Stanislavski, trazido por Augusto Boal, de um curso com John Gassner e Lee Strasberg,
no Actor´s Studio, nos Estados Unidos). Nesse momento, o Arena buscava construir
uma dramaturgia que discutisse a realidade atual do país, que passa a ser qualificada
como “inauguração da dramaturgia nacional”. Porém, isso queria dizer que era a
primeira vez que a classe operária marcava presença na cena brasileira, isto é, a
construção de obras do ponto de vista das camadas subalternas da população. Começava
a nascer uma proposta de intervenção política a partir do teatro, que era acompanhada
por outros segmentos estéticos:
Nesse período juscelinista , período de nacionalismo mesmo que tivesse muita
coisa errada era um nacionalismo que se baseava também muito na penetração
do capital americano mas, de qualquer maneira, havia um certo desenvolvimento
real. O período de Brasília foi o período em que houve um desenvolvimento da
siderurgia, houve um desenvolvimento da indústria em geral. O Brasil,
realmente...quer dizer, as metas do Juscelino eram fazer cincoenta anos em cinco.
Evidentemente, ele não conseguiu isso mas ele conseguiu um avanço espetacular,
um desenvolvimento espetacular da economia brasileira, mesmo se continuasse
atrelado ao Fundo Monetário Internacional...
Nesse período, aparece o Teatro de Arena mas também apareceu o Cinema Novo.
Nelson Pereira dos Santos é mais ou menos dessa época. Um pouco antes do que
nós, no Arena. A Bossa Nova é também desse período. E mesmo o desenvolvimento
das artes plásticas, também, coincide.
Então, você veja que havia todo um desenvolvimento artístico que não era só do
Arena. Quer dizer, isso fazia parte de uma...eu não diria revolução porque não era
uma revolução mas de uma conturbação social positiva não é? que desenvolvia
o Brasil.
Provocou o aparecimento de tantas formas novas de arte que não existiam antes e
o desenvolvimento. Havia uma disponibilidade financeira. O pessoal ia a teatro, ia
a cinema, ia a concerto. Se criava, eu costumo dizer até as pessoas pensam que é
piada mas não é. O desenvolvimento de todas essas coisas de arte foram
coincidentes com o desenvolvimento de uma coisa que chamavam inferninho, que
eram as pequenas boates não é? boîtes de nuit. Apareceram, proliferaram ao
184
“Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983, p. 23.
88
mesmo momento. É porque havia um desenvolvimento, havia um nacionalismo
(grifo nosso)”
185
.
Neste exercício de rememorar, Guarnieri também mescla os acontecimentos
históricos à perspectiva do Arena, recordando os contatos com José Renato, a parceria
entre o TPE e o Arena, além das motivações que sustentavam estas atividades e a
expectativa de “progresso”, de transformação do país, que havia, principalmente, por
parte dos jovens e que se refletia nas mudanças ocorridas nas artes:
Nunca colocamos nossa carreira individual como objetivo. Nossa meta era outra.
Nós não tínhamos grandes responsabilidades... quer dizer... ‘Olha, se eu não sou
um bom ator é porque não tenho obrigação de ser... Estou aqui também fazendo
um negócio coletivo porque achamos que através desse trabalho podemos nos
organizar e desse modo servir à cultura nacional, ajudar a formar uma
consciência brasileira...’ E tudo que acontecia politicamente na época foi
importante! Começava a surgir aquele negócio de identidade que seguia todo o
processo político, houve a tentativa do golpe, o Juscelino toma posse ou não toma?
O Teixeira Lott garante ‘Paz e democracia’... Começou-se a falar em
nacionalismo, coisa que empolgava a juventude. Muita gente ouvia o cantar do
galo mas não sabia exatamente de onde vinha o canto: nacionalismo... coisas
nossas...(...)...Alguns elementos do TPE e do Arena saíram, uma minoria ficou.
Houve muita confusão, e dos que ficaram a gente ouvia: ‘Puxa vida, não sabemos
de nada! É verdade, nós não sabemos nada...E o que fazer então? Vamos fazer um
curso!’ Falamos com Sábato Magaldi, Júlio Gouveia e Décio de Almeida Prado;
pedíamos sugestões; fizemos um curso do qual participaram duzentas e tantas
pessoas...era um momento de muita efervescência e tudo era meio fácil porque as
pessoas estavam interessadas. As universidades começaram a criar um trabalho
mais sólido com preocupações mais orientadas, e de repente começou a se viver no
Brasil um clima mais cultural. Era uma coisa geral. Foi justamente nesse estado
de coisas que houve a junção do TPE com o Arena. O Zé Renato propôs dar o
material para que realizássemos nossos espetáculos nos colégios, ele daria a infra-
estrutura, a orientação artística e técnica e, em contrapartida, nós do TPE,
trabalharíamos como suporte de cast para o Teatro de Arena, que já era
profissional (grifo nosso)”
186
.
O diretor e dramaturgo Augusto Boal, em sua autobiografia, lançada em
2000, percorre toda a sua trajetória, estando em seu rememorar também a história do
Teatro de Arena, que vai sendo pontuada pelos acontecimentos históricos e contada de
forma a trazer as indagações, as dúvidas, as divergências presentes no histórico do
grupo. Em alguns momentos aponta falhas, mas se desculpa por levar em consideração
185
“Interview d’Augusto Boal. In: ROUX, R. APUD: Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A
Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela
(Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU.
p. 184.
186
“Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983, p. 30-31.
89
o contexto da época: o tempo o redime. Aqui não é o teórico que exclui a historicidade,
na intenção de buscar um significado, uma unicidade para o trabalho do Arena, que
encontramos, mas o sujeito, o indivíduo, que fala através de sua memória, deixando que
venha a tona tudo o que ela abarca, inclusive a subjetividade.
Na seqüência estão registrados, por Augusto Boal, o contato com José
Renato, que havia recebido a indicação de Boal através de Sábato Magaldi; a paixão
pelo teatro; a capacidade de criação dentro dos pequenos limites do Arena, o que
definirá uma das características do grupo: a valorização do ator, desprendido de
sofisticados recursos técnicos:
José Renato mostrou a miúda arena, minúsculos metros quadrados, cinco por
cinco. Pouco maior que sala de jantar. Devagar entendi que era ali a arena do
Arena. Naquele pequenino ali mesmo, ali deveríamos fazer revoluções estéticas...
Algumas, com estudo e trabalho, fizemos!
Escassez é limitação, não vamos elogiar a falta de recursos como se fosse bênção
divina; desejar carência absurdo! O artista, no entanto, não choraminga. Com
desejo e arte, falta de meios pode ser estímulo. Em nossos países escravizados
estamos condenados à criatividade!
Essa pobreza não desejada acabou se transformando em condição ideal para o
trabalho com atores. Espaço cênico finito: dentro de nós, porém, somos infinitos.
Fizemos a busca da infinitude: para dentro de nós.
No Arena, mergulhamos mo precipício da nossa alma.
(...) Naquela época, José Renato era elogiado por ter introduzido no Brasil uma
forma barata de se fazer teatro. Verdade, mas não só: introduziu espetáculos em
que os atores eram valorizados ao extremo. A arena não permitia truques, não
dissimulava: atores tinham que se apoiar uns aos outros.
Arena era olho no olho, close-up: atores em primeiro plano, a menos de um metro
dos espectadores, centímetros. O arena parecia uma extensão do Actors’ Studio.
Cara a cara!
Acredito que, mesmo que se disponha de meios materiais, o começo, o âmago (...)
a verdade do teatro é a inter-relação entre os seres humanos. É a paixão que entre
eles flameja. Aqui está a essência do teatro que pode, depois, vestir-se de ouropéis!
Não antes. Disse Lope de Vega: ‘Teatro é um tablado, dois atores e uma paixão!’
Não preciso nem do tablado...
187
Augusto Boal, ao relembrar o Seminário de Dramaturgia, parece concordar
com Guarnieri, no sentido de se acharem intransigentes quanto ao conteúdo das peças,
na medida em que se tornara uma fórmula, pois a priori estavam definidos os heróis
positivos do espetáculo, bem como a temática, que deveria ser social e ao mesmo tempo
realizar uma denúncia ou uma conclamação à organização dos trabalhadores
188
,
quando poderiam, segundo o diretor, ser mais compreensivos, isto é, serem mais
187
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 139-
140.
188
PATRIOTA, R. “ ‘Revolução na América do Sul’ de Augusto Boal A Narrativa Épica no ‘Teatro de
Arena’ de São Paulo”. ArtCultura, n.º II, vol. I, 2000, Uberlândia, p. 89.
90
flexíveis quanto à diversidade de temas. Porém, essa análise do passado, revisando
algumas coisas, se torna ainda mais interessante, quando Boal narra a necessidade que
tinham, nesse momento, de conhecer e retratar o povo:
Andávamos à cata do povo brasileiro e eu via cada vez mais povos no meu povo:
japoneses de Marília, caipiras autóctones, quatrocentões paulistanos, mineiros de
Uberaba, cariocas de Copacabana, operários da Penha, alemães de Santa
Catarina, italianos de toda parte...até suecos e finlandeses nas montanhas. Tive
medo do Nordeste: como seria o povo cabeça-chata?
O povo que queríamos não era Geografia nem História: era classe. Fomos atrás
do povo nos campos e fábricas, tivesse a cor que tivesse, vestido como se
embrulhasse. Povo era classe, fome, desemprego: nosso interlocutor.
(...) O primeiro espetáculo, Black-tie , sucesso. Quem vinha nos ver? Quem podia
pagar. Tortura ideológica. Nós nos tranqüilizávamos pensando que vinham
também intelectuais com quem queríamos trocar idéias: não seria em vão a
viagem, mesmo que não achássemos o povo. Classe média, por que excluí-la?
Espremida entre esperança e angústia era dever dialogar. Classe média não é
povo, mas é como se fosse! É a outra cara do povo.
Mil novecentos e sessenta virando 61, campeões mundiais de futebol e basquete,
esportes populares; campeã Maria Esther Bueno em Wimbledon, tênis, esporte de
elite; Eder Jofre nocauteava pesos-galo, esporte desconhecido. A Bossa Nova
surgia, mania. Brasília: Juscelino inaugurava a 21 de abril candangos fora. O
Cinema Novo mostrava o Brasil na Europa. Enfim, não tínhamos do que ter
vergonha!!! Classe média também é povo! Já que não encontrávamos o nosso,
transformávamos em povo tudo aquilo que encontrávamos!
(...) No Arena, nós nos limitávamos a mostrar a vida pobre, como éramos capazes
de entendê-lo. Em cena, nos vestíamos de operários e camponeses: os figurinos
eram autênticos, mas não o corpo que os habitava. Triste pieguismo. Mas não
quero, hoje, lamentar nossos lamentos de anteontem. Fizemos o que podíamos ter
feito!
189
Ainda tendo os acontecimentos históricos como norte, Boal comentou o
surgimento do período de nacionalização dos clássicos, responsável pela montagem de
A Mandrágora de Maquiavel:
Renato, convidado para dirigir o Teatro Nacional de Comédia no Rio, proposta
irrecusável, quis vender o teatro. Formamos uma empresa: Guarnieri, que
retornava à casa paterna, Flávio Império, Juca de Oliveira, Paulo José e eu.
Compramos o Arena.
Decidimos inventar o caminho que batizamos de Nacionalização dos clássicos.
Queríamos buscar nossa identidade, descobrir nossas feições, não mais diante do
espelho naturalista, que revelava a face rude, mas em retratos de outros tempo,
lugares, que nos permitissem ver nosso rosto verdadeiro, refletido em rostos de
outras épocas.
Nacionalizar era moda; Brizola, no Sul, tinha nacionalizado (estatizado)
companhias estrangeiras, Jango ameaçava estatizar (nacionalizar) empresas de
interesse estratégico todas, de certa forma. A imprensa era nacionalista ou
entreguista, sem meio termo.
189
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 172-
173,177.
91
(...) Com A Mandrágora descobrimos a Metáfora que não se come como o
naturalista macarrão à bolonhesa: metáfora se goza! Abandonamos de vez o
realismo em busca da realidade. Brecht: ‘O dever do artista não é o de demonstrar
como são as coisas verdadeiras, mas como verdadeiramente são as coisas.’ Bravo,
Bertolt!
(...) Cansados de repetir cenas parecidas, diálogos e figurinos. Tínhamos medo de
repetir pensamentos. Horror!
190
Porém ao lado de tantas perspectivas positivas, havia a consciência de que
se estavam acontecendo mudanças, elas eram recebidas de diferentes maneiras pela
população. Em sua análise sobre as ilusões da modernização brasileira
191
, Roberto
Schwarz ressalta que o desenvolvimento nacional provocou uma migração para as
cidades tratando de arrancar a população de uma situação semicolonial que ainda se
encontrava, trazendo-a ao universo da cidadania, do trabalho assalariado e da atividade
econômica moderna, especialmente industrial, onde ficava relegada à pobreza e às
novas formas de exploração econômica e de manipulação populista. Era o momento de
realização do projeto nacional de transformar o país de agrário para industrial, de rural
para urbano, indo contra o imperialismo.
Coerente com a realidade, Boal em sua visão sobre o desenvolvimento
ponderou:
O Arena, tinha, além disso, metas próprias, também. Além da meta nacionalista
geral, nós tínhamos a nossa que era que esse desenvolvimento devia vir em favor,
em função do povo e não em função de elites apenas. Quer dizer, não em função da
classe média apenas. Então nós, embora víssemos que havia um desenvolvimento
da sociedade brasileira grande, víamos que havia as camadas sociais mais
trabalhadoras e as camadas sociais desempregadas que não tinham trabalho,
que não tinham terra, não tinham emprego essas camadas continuavam
miseráveis. Nós víamos o progresso da sociedade mas nas classes de média para
alta e o resto, não. Proletários, muito pouco, comparativamente.
Então, nós éramos a favor desse progresso, sim, mas que esse progresso fosse mais
popular, também. Essa era a nossa meta e essa meta se traduziu de forma
diferente, como foi a nacionalização dos clássicos, como foi os musicais que nós
fizemos, como foi a parte nacionalista e tudo isto (grifo nosso)”
192
.
Como aponta Roberto Schwarz, “nascido na conjunção de mercado interno
e industrialização, o ciclo desenvolvimentista adquiriu certo alento de epopéia
patriótica a partir da construção de Brasília; o seu ponto de chegada seria a sociedade
190
Ibidem, p. 199-201.
191
SCHWARZ, Roberto. Fim de Século. Folha de São Paulo. São Paulo, 04/12/94. (Caderno Mais).
192
“Interview d’Augusto Boal. In: ROUX, R. APUD: Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A
Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela
(Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU.
p. 184.
92
nacional integrada, livre dos estigmas coloniais e equiparada aos países adiantados. É
um fato que nas próprias elites existia a convicção de que essa trajetória incluiria
momentos de fricção com os interesses norte-americanos. Ocorre entretanto que no
início dos anos 60 se foi firmando mais outra convicção, esta explosiva, segundo a
qual, a firmeza do antiimperialismo dependia de uma modificação na correlação de
força entre as classes sociais dentro do próprio país. O nacionalismo só alcançaria
seus objetivos se fosse impulsionado pelo acirramento da luta de classes. Começava a
radicalização social que seria cortada em 64 pelo golpe militar. Noutras palavras,
surgia a consciência de que a exploração de classe interna e as grandes dificuldades na
ordem internacional se alimentavam reciprocamente e que era necessário enxergar as
duas em conjunto (grifo nosso)”
193
.
No entanto, ainda segundo o autor citado, se o P.C. teve o mérito de difundir
a ligação entre a dominação imperialista e a reação interna, pecou na maneira de
especificá-la, distinguindo, no interior das classes dominantes, um setor agrário, pró-
americano e um industrial, nacional, acreditando que sua aliança com este contra o
primeiro pudesse pesar mais que o conflito entre esses mesmos setores e a ameaça do
comunismo. A realidade, porém, demonstrou que a expectativa com relação à burguesia
nacional era ilusória, pois mantinha fortes relações de dependência com o capital
internacional. Sendo apenas um inexpressivo setor da burguesia nacional contrário a
este. Quanto às suas supostas contradições com os setores latifundiários, também a
realidade tratou de desmistificar: na prática, a forma atrasada de organização da
produção rural beneficiava as indústrias, pois fornecia matéria-prima a baixo preço e
favorecia constantes migrações de mão-de-obra, que resultavam em oferta de trabalho
por baixos salários. E é essa aliança da esquerda com parte da burguesia que foi
criticada nos musicais, sob a metáfora, em Zumbi, dos negros de Palmares que se
aliaram com os brancos comerciantes, acreditando que esses os protegeriam dos donos
de sesmarias, e em Tiradentes, do herói revolucionário com uma intelectualidade que
não avançaria, tendo em vista a possibilidade de perder seus privilégios, como sendo o
erro que, cometido ingenuamente, leva-os à derrota.
Porém a constatação de graves problemas sociais e da relação de
dependência econômica que o país mantinha com nações imperialistas não arrefeciam
os movimentos, ao contrário, era a razão que os sustentava. Sob essa perspectiva, “a
193
SCHWARZ, Roberto. Fim de Século. Folha de São Paulo. São Paulo, 04/12/94, p.6. (Caderno Mais).
93
intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando, editando, filmando, falando,
etc., e sem perceber contribuíra para a criação no interior da pequena burguesia, de
uma geração maciçamente anti-capitalista
194
. E mais do que isso, uma geração que
atribuía uma caracterização política às criações artísticas como também aos seus atos
individuais:
(...) nessa época 63 , com os estudantes (organizados na UNE) apoiando o
presidente João Goulart, ou pressionando-se para ir mais para a esquerda; com
Miguel Arraes fazendo um governo admirável em Pernambuco em estreita união
com as camadas populares; com os CPCs da UNE produzindo peças e canções
panfletárias mas muito vitais; éramos levados a falar freqüentemente sobre
política: o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam sua face
profundamente injusta e de alçar-se acima do imperialismo americano. Vimos
depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons motivos
para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi
vivida com intensidade e essa intensidade apressou a reação que resultou no
golpe
195
.
Sob esse aspecto, Caetano Veloso comenta o tom hegemônico da esquerda
na cultura e o papel da música, assim como de outras manifestações artísticas, nos
debates da época:
As pretensões de uma arte política, esboçadas em 63 pelos Centro Populares de
Cultura da UNE, difundiram-se por toda a produção artística convencional e,
apesar da repressão nas universidades e da censura na imprensa, o mundo dos
espetáculos viu-se sob a hegemonia da esquerda. Num ambiente estudantil
altamente politizado, a música popular funcionava como arena de decisões
importantes para a cultura brasileira e para a própria soberania nacional
196
.
Em setembro de 1960, estréia Revolução na América do Sul
197
, de Augusto
Boal e direção de José Renato, que tem como tema “o operário brasileiro e a sua
194
____________. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro:
MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 63.
195
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 64.
196
Ibidem, p. 177.
197
A respeito desse espetáculo e de seu momento José Renato, diretor da peça, comentou:
“Acreditávamos que tínhamos coisas significativas a dizer, que nossa contribuição não era apenas relativa
à forma, mas principalmente ao conteúdo. Mas foi sem dúvida a presença do Teatro Paulista do Estudante
que, por assim dizer, trouxe a semente do engajamento que germinou aqui dentro e deu, acredito, os
melhores frutos possíveis. Frutos, também, das dúvidas que ainda persistiam no grupo. Posteriormente ao
Black-tie abriu-se o Seminário de Dramaturgia, que o Boal dirigiu. E desse Seminário participaram
muitos dramaturgos que depois não fizeram peças para o Arena, mas continuaram distribuindo a sua
produção por outros teatros. Considero fundamental essa contribuição de preocupação política que
vivíamos então no Brasil. Essa preocupação informou o Black-tie, informou Chapetuba e informou,
principalmente, Revolução na América do Sul, a peça mais importante daquela época, a meu ver. Com ela
realizamos, pela primeira vez, um teatro quase guerrilheiro. Isto é, um teatro em que misturávamos
revista, comédia, música e a discussão política dos temas da época.” (APUD: PATRIOTA, R. História,
Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. &
94
realidade econômica social
198
, que modifica a estrutura dramatúrgica, trocando o
dramático pelo farsesco e abandonando os processos naturalistas, o que marca o início
da influência de Brecht no Brasil e projeta o caminho para os musicais. Está presente o
ecletismo de estilo: ...comédia, farsa, sátira, revista, circo e mesmo chanchada,
pensarão muitos. Talvez tudo isso mais alguma coisa. Mais, muito mais: documento e
protesto, grito de alarme, brutal e crua denúncia contra os nossos políticos, contra um
estado de coisas que tende a se eternizar em nosso país
199
.
Fazendo um balanço cultural da década de 60, Schwarz comenta o
movimento cultural no pré-golpe e seu tom irreverente: No Rio de Janeiro os C.P.C.
(Centro Popular de Cultura) improvisavam teatro político em portas de fábricas, sindicatos,
grêmios estudantis e na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-
revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma
agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas
etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente
200
.
No entanto, a burguesia, preocupada com seus interesses lucrativos, não
deixaria o país continuar trilhando o caminho de busca de transformações que visava
favorecer as classes mais baixas, nem os militares deixariam a ameaça de uma
revolução crescer. Para tanto, em 1964, instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de
garantir o capital e proteger o continente contra o socialismo que, depois da Revolução
Cubana, parecia mais perigoso. O golpe foi recebido com surpresa e perplexidade,
vindo dificultar as ações de intelectuais e artistas engajados no ideal democrático, como
relembra Caetano Veloso
Eu tinha ido a uma reunião para formação de instrutores voluntários quando a
notícia de que um golpe de Estado se daria naquela mesma noite nos fez
interromper os trabalhos. Alguns participantes quiseram continuar, argumentando
que sem dúvida tratava-se de um boato infundado. Mas os mais experientes,
baseado no peso das fontes das quais surgira o alerta, desfizeram imediatamente a
sessão, recomendando-nos que fôssemos para casa, enquanto eles averiguariam se
havia algum esquema de resistência em que se engajar. Saí perplexo do prédio da
Escola de Economia. (...) No dia seguinte, na Faculdade de Filosofia, não houve
aula. Circulavam notícias de professores presos ou chamados para prestar
depoimento e boatos sobre o paradeiro de colegas desaparecidos. E o que era
PATRIOTA, Rosangela (orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades
historiográficas. Uberlândia, UFU, 2001).
198
___________. “ ‘Revolução na América do Sul’ de Augusto Boal A Narrativa Épica no ‘Teatro de
Arena’ de São Paulo”. ArtCultura, n.º II, vol. I, 2000, Uberlândia, p. 94.
199
D.G., O Estado de São Paulo. APUD: LIMA, M.A. de. “História das Idéias”. Dionysos. Rio de
Janeiro: MEC/DAC-FUNARTE/SNT. Outubro, 1982, p.16.
200
SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 69.
95
mais assustador tanques nas ruas. (...) Vendo os tanques, eu me perguntava se
teria coragem de me meter numa revolução, se estaria disposto a dar a vida pelas
causas sociais que supunha apoiar. Naturalmente, senti que não daria minha vida
por nada. Mas não estava certo do que significava naquele momento (...) ‘minha
vida’. As ruas silenciosas, os tanques, tudo me dava a impressão de um pesadelo.
Eu sentia medo e ódio daquela presença do exército nas ruas, com suas cores
encardidas e seu ar anônimo. Infantilmente, apenas desejei que aquilo passasse
depressa
201
.
No entanto, diante de uma nova conjuntura política, o Arena reformula sua
estética. Há a procura de novas formas para a representação teatral, para que fosse
possível continuar fazendo arte engajada, mesmo sob um regime de censura e
perseguição política. Sempre com a preocupação de não perder de vista o caráter
político do teatro, estando continuamente comprometido com a discussão de
problemáticas atuais. Nesse momento, a situação não é mais interpretada como
revolucionária, e sim como momento de construção da resistência democrática”
202
. Os
ideais democráticos, a crença numa sociedade justa e igualitária, mantinham-se:
Em 64, executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas
desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira
funcionar (mal, naturalmente) e, no plano internacional, pela defesa da
liberdade de mercado contra a ameaça do bloco comunista (guerra fria) , os
militares tomaram o poder. Os estudantes ou eram de esquerda ou se calavam. No
ambiente familiar e nas relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade
de alguém em sã consciência, discordar do ideário socializante. A direita só existia
por causa de interesses escusos e inconfessáveis. Assim, as passeatas ‘com Deus
pela liberdade’, organizadas por ‘senhoras católicas’ em apoio ao golpe militar,
nos surgiam como cínicos gestos hipócritas de gente má
203
.
Guarnieri ao comentar sobre a interdição do espetáculo O filho do cão, de
sua autoria, e a montagem de Tartufo de Molière, norteando-se pelo fechamento do
Arena, pelo golpe militar de 64, fica evidente como os acontecimentos históricos
definiam a trajetória do grupo, que naquele momento agia em
resposta à hipocrisia que achávamos ser o movimento que tinha sido instaurado,
porra! É aquela coisa que estávamos falando um pouco antes: o Tartufo foi feito
criticando a sociedade francesa da época, e caía como uma luva muitos anos
depois para denunciar defeitos de hoje e num outro país. Essa revolução de 1964
estava cinicamente falando em corrupção e as cadeias estavam cheias de gente de
bem e os verdadeiros ladrões estavam numa boa. ‘Que negócio é esse?’, gritamos
na época! ‘Não pode ser encenado o Guarnieri? Então vamos de Molière em cima
deles!’ (Pausa.) Agora, nós não queríamos abrir mão da nossa dramaturgia e
201
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 310.
202
PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.
116.
203
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 15.
96
estava difícil. Estava difícil porque a Censura imediatamente radicalizou mesmo e
não queria saber de nada
204
.
No período de 62/64 o grupo se aproxima de movimentos musicais
apresentados no Teatro de Arena e em outras casas. Mas não eram apenas apresentações
de música, eram um misto de música e texto, o que foi um dos fatores que contribuiu
para os espetáculos da fase Arena conta... de 65/70. Nessa aproximação se dá o contato
com os integrantes do CPC, através do show Opinião
205
, montado no Rio de Janeiro sob
direção de Augusto Boal, com roteiro deste, juntamente com Armando Costa, Oduvaldo
Vianna Filho e Paulo Pontes, que percebem não poderem mais, diante das restrições
impostas pelo golpe (censura, repressão), acentuar o tom político como faziam no CPC.
A mensagem política precisa estar disfarçada por uma metáfora, uma analogia e para
isso a música será a grande aliada que, em tom de conclamação e encorajamento, canta
a “opinião” de todo e qualquer cidadão, servindo de resistência ao regime militar.
Vianinha tinha claro o papel de veículo de oposição que o teatro tomava para si: “o
teatro brasileiro em 1965 ou se empenha na sua libertação, participando do processo
de redemocratização da vida nacional, na consagração dos sentimentos de soberania e
vigor do povo brasileiro ou, então alheio a um dos momentos capitais de nossa
história poderá ficar incluído entre os que tiveram a responsabilidade de descer
sobre o Brasil a mais triste e estúpida de suas noites. (...). Não há que desanimar. A
democracia foi destruída enquanto organização, mas não enquanto absoluta aspiração
do povo e do artista brasileiro. A destruição dos valores democráticos custou também a
destruição de vários mitos que enredavam a consciência social. No teatro, 1965 começa
204
“Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983, p. 16.
205
A vinda dos irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia para São Paulo, se dá nesse momento, em razão
do convite que esta recebe para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião, por sugestão da mesma, que
os conhecera na Bahia. A respeito desse momento, Caetano, que ainda era um jovem desconhecido,
comenta: “Alguns meses depois da ‘revolução’ como era chamado oficialmente o golpe de Estado que
tinha instaurado o governo militar , o musical Opinião reunia um compositor de morro (Zé Kéti), um
compositor rural do Nordeste (João do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara
Leão) num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos shows de bolso de bossa
nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política. O espetáculo ao mesmo tempo
coroava a tendência de alguns bossanovistas (Nara Leão entre eles) de promover a aproximação entre a
música moderna brasileira de boa qualidade e arte engajada (...) e inaugurava o show de música
teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e mundial ou escritos especialmente
para a ocasião, que veio a desenvolver-se como uma das formas de expressão mais influentes na
subsequente história da música popular brasileira. A canção ‘Carcará’, de João do Vale, era já o clímax
do show na interpretação de Nara, mas Bethânia, com um talento dramático que Nara estava longe de
possuir, parecia dar corpo à canção, que descrevia a violência natural com que um gavião do tipo que
habita o Nordeste o carcará ataca os borregos recém-nascidos. O refrão ‘pega, mata e come’ era
repetido a intervalos com crescente intensidade. Uma sugestão de comparação ‘carcará, mais coragem
97
para frente. Vá ver Opinião
206
. Outro grande sucesso do período foi Liberdade,
Liberdade de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em que é apresentado uma “antologia
ocidental de textos libertários
207
, de VI a.C. a XX d.C., também tendo como apoio, na
luta da democracia contra a ditadura, a música popular, que abria o espetáculo
conclamando:
E no entanto é preciso cantar,
mais que nunca é preciso cantar,
é preciso cantar e alegrar a cidade...
A tristeza que a gente tem,
qualquer dia vai se acabar,
todos vão sorrir,
voltou a esperança
é o povo que dança
contente da vida
feliz a cantar...
208
.
Segundo Décio de Almeida Prado, logo após 1964, o meio teatral viveu
momentos de euforia, acreditando que poderia funcionar como centro de oposição ao
regime militar. E assim, o teatro tomava para si a responsabilidade de veicular o
protesto:
Calada a imprensa liberal e de esquerda, atemorizados os partidos, abolidos os
comícios e a propaganda política, as salas de espetáculo eram dos poucos lugares
onde ainda era lícito a uma centena de pessoas se encontrarem e manifestarem sua
opinião, guardadas certas precauções. A própria necessidade de falar
indiretamente, em linguagem semicifrada, criava uma exaltante sensação de
cumplicidade, de perigoso desafio aos poderes constituídos. Bastava uma
referência dos atores à liberdade (...) para despertar no público uma onda de
entusiasmo patriótico. Tiradentes passou a ser um símbolo malvisto pelo governo e
uma simples canção como ‘Carcará’, cantada por Maria Bethania (...) ‘pega,
mata e come!’ , assumia ares de inflamado hino revolucionário
209
.
A história do Teatro de Arena é a representação da mediação entre arte e
realidade histórica. A situação política da época intensificou o caráter contestador,
engajado, revolucionário dos musicais, que se opunha ao regime vigente de opressão,
censura, ditadura. Assim, a história dos musicais do Arena está diretamente ligada às
do que homem’ era suficiente, no contexto, para transformar a canção num vago mas poderoso
argumento revolucionário”. (VELOSO, C. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 72-73).
206
Vianna Filho, O. Perspectivas do teatro em 1965. In: PEIXOTO, F. (org.). Vianinha: Teatro
Televisão Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 104.
207
SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 80.
208
RANGEL, Flávio & FERNANDES, Millôr. Liberdade, Liberdade. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 1966, p.2-3.
209
PRADO, Décio de Almeida. Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 1988, p.120.
98
vicissitudes do teatro brasileiro que, por sua vez, sofre alteração com o regime político
de 1964, que atinge diretamente as artes, ao ponto de determinar novas formas de
encenação, no caso do teatro. A atuação do novo governo, obriga tanto a arte cênica,
como todas as manifestações artísticas, repensarem sua linguagem, já que agora era
preciso ter cuidado com o que se dizia. Dessa forma, há nesse momento uma
reformulação dos caminhos seguidos, em todas as manifestações artísticas o teatro, a
música, que ganhava espaço a canção de protesto, o cinema
210
o que representa um
enriquecimento estético, até que essa repressão, que gradualmente vai se tornando mais
intensa e culmina, em dezembro de 1968, no decreto do Ato Institucional n.º 5,
ampliando o conflito entre as manifestações artísticas de conteúdo crítico, político e o
Estado esteriliza e desagrega o movimento artístico.
Assim esses artistas e intelectuais de esquerda, que sempre foram sujeitos
atuantes, presentes na luta política, viram-se ameaçados por fortes e bem estruturados
mecanismos de repressão, mas também instigados a continuar lutando, agora de novas
formas, utilizando a arte que oferecia ainda meios de resistir, de combater a repressão,
através de símbolos, metáforas, analogias, que não os colocassem no obscurantismo,
como muitas vezes aconteciam com elementos que se decidiam pelo enfrentamento
direto a luta armada. Dessa forma, era preciso construir a resistência democrática.
Como demonstra Schwarz, o teatro, logo após o golpe, pretendia ensinar
que as “pessoas continuavam lá e não haviam mudado de opinião”, de que “com jeito se
poderia dizer muita coisa”. Nos espetáculos daquele momento, a inteligência
identificava-se com os oprimidos e reafirmava-se em dívida com eles, em quem via a
sua esperança. Davam-se combates imaginários e vibrantes à desigualdade, à ditadura
e aos E.U.A. Firmava-se a convicção de que vivo e poético (...) é o combate ao capital e
210
Com o golpe de 64, também o cinema sofre reformulações, em especial o Cinema Novo. Segundo
Ismail Xavier, “a partir de abril de 64, a nova conjuntura política incide diretamente no trajeto do CN;
exige resposta, redefinição de caminhos. Surge, de um lado, a preocupação de alguns autores em fazer um
diagnóstico, expressar sua perplexidade, em face do desafio dos acontecimentos; temos os filmes cujo
tema, de forma velada ou não, é a atualidade política, o golpe militar, a derrota das esquerdas ‘O
desafio’/Saraceni/65, ‘A derrota’/Mário Fiorani/67, ‘Terra em Transe’/Glauber/67, ‘Fome de
amor’/Nelson Pereira/68, ‘O bravo guerreiro’/Gustavo Dahl/68. E, de outro lado, a investigação da
realidade e consciência do oprimido continua, agora em filmes preocupados com a passividade política do
povo como é o caso do gênero documentário no estilo cinema-direto, cujo exemplo mais importante é
‘Viramundo’/Geraldo Sarno/65 , ou empenhados em abordar em tom menos agressivo os mesmos temas
da militância pré-64, dentro da geografia de sertão e favela, da problemática da pobreza, da migração, do
marginalismo, como acontece em ‘A grande cidade’/Diegues/65. Há uma autocrítica no CN que procura
encaminhar uma política profissional de viabilização de um cinema crítico na conjuntura adversa, cinema
mais atento à comunicação, cujo nacionalismo se define uma postura de análise do social não mais tão
ansiosa pelos efeitos imediatos de conscientização para a luta revolucionária” (Xavier, I. APUD:
99
ao imperialismo
211
. E após Opinião, Boal dirige Arena canta Bahia e Tempo de
Guerra
212
. Era um momento de grande efervescência também para a música popular
brasileira, que vivia o período áureo dos festivais, como por exemplo, O Fino da Bossa,
com Elis Regina, na TV Record.
O contato com esses espetáculos influenciam na construção dos musicais
Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, que sendo todo o espetáculo permeado
por música, resgata a empatia do público, criando uma perspectiva de liberdade. E o
tom satírico, gozador, crítico, buscava despertar a platéia, mostrando-lhe que era
possível acordar e organizar um movimento de resistência e oposição a um mundo em
que todos estavam envolvidos. A peça continha o “riso que expressava uma opinião
sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem
213
. Um mundo
em que “o medo é a expressão extrema e é vencido pelo riso (...) que libera a
consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o
desenvolvimento de novas possibilidades
214
. A discussão objetivava não é a solução
para os problemas, mas a contribuição ao debate.
Nos depoimentos de Guarnieri há um evidente entusiasmo quando fala de
Arena conta Zumbi, pela experiência de um trabalho de pesquisa e criação coletiva:
Após 64 estávamos sem saber como agir, como trabalhar. Ele (Boal) foi para o
Rio e organizou o ‘show’ Opinião... Aqui no Arena, depois de 64, a gente montou o
PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.
112).
211
SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros ensaios. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.80.
212
Arena canta Bahia tinha direção e texto de Augusto Boal, o elenco era formado por Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Gal, Maria Bethânia, Tom Zé e Piti; foi encenado em 1965, no TCB (Teatro Brasileiro de
Comédia). Tempo de Guerra tinha direção de Boal e texto era seu em parceria com Guarnieri, incluindo
poemas de Brecht; o elenco era o mesmo do outro musical; tendo sido encenado no Teatro Oficina. A
respeito desses espetáculos, Boal comenta: “Bethânia me pediu que dirigisse um espetáculo só com ela.
Juntamos músicas de que ela gostava, outras que eu preferia, e demos o título de Tempo de Guerra,
inspirado numa canção do Zumbi, inspirada em Brecht. (...) Bethânia queria ajudar seus amigos baianos,
lançá-los no Sul onde eram desconhecidos. Além de Caetano, ela me apresentou Maria da Graça (que
virou Gal Costa), Gilberto Gil, TomZé e Piti e com eles fiz um segundo ato, músicas de Caetano e Gil, e
um texto lírico de Caetano (...) Decidimos fazer um musical contando histórias de nordestinos que
vinham para o sul em busca de trabalho, fugindo da fome. As canções de Arena canta Bahia foram
escolhidas pelas letras, para contar uma história de retirantes. Não era seleção das mais belas músicas
baianas: eu queria mostrar famílias que sofriam seca e buscavam miragens de esperanças. Gente com
medo de sonhar colorido: sonhava preto e branco. Sonhavam gotas de orvalho, sem coragem de sonhar
oceanos. Caetano não se conformava: inconcebível espetáculo cujo título continha a palavra mágica,
Bahia, Caymmi estando ausente. Sempre gostei de Caymmi (...) Não se tratava, porém, de gostar ou não,
mas de escolher músicas que condenassem a ditadura, cada vez mais desumana.” (BOAL, A. Hamlet e o
filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 232-233).
213
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Françõis
Rabelais. São Paulo/Brasília: HUCITEC/Ed. Da UNB, 1993, p.11.
214
Ibidem, p.41,43.
100
Tartufo, de Molière. Boal estava no Rio. Eu discutia muito especialmente com o
Paulo José, as propostas de Joan Littlewood, de Londres. A gente sentia que
precisava mudar a forma narrativa. Não era uma discussão nova, mas se aguçou
nesse período, sobretudo depois que chegou o Edu Lobo, que veio chamado antes
do tempo, por precipitação do Luís Vergueiro. Edu veio achando que existia um
texto pronto para ele musicar, mas a gente não tinha nada. A não ser a
inquietação. A gente sentia a necessidade de romper com o que fazia antes. Eu
tinha a ‘idéia de sala de visitas’. Você pega três atores numa sala de visitas e, se
eles quiserem, eles contam uma história, passando do passado para o futuro, do
campo de futebol para o Himalaia. Surgiu a magia do conta. E Edu começo a
cantar músicas novas para a gente. Cantou uma sobre o Zumbi. A gente passou
uma noite de loucura pela cidade e às 8 da manhã estava na Praça da República
comprando o livro de João Felício dos Santos, Ganga Zumba. Resolvemos contar
a história da rebelião negra. Arena conta. Começamos a pesquisa. Boal chegou.
Todos juntos, o elenco junto. Foi uma fase em que tudo se transformava e a gente
também. Dentro da maior alegria, da maior euforia. Todo mundo rompendo com
coisas, até no nível pessoal e todo mundo buscando coisas novas. Época de euforia
e alegria mesmo. E Boal organizando o trabalho criativo. Na hora de escrever,
ficamos eu e ele (grifo nosso)”
215
.
Boal, quando rememora o momento de confecção dos musicais, também
fala com muito entusiasmo, registrando que a peça é uma resposta à ditadura militar, ou
seja, um documento de luta:
Como arte coletiva, a formação de equipe é imprescindível, rigor contratual ou
laços afetivos, mas tem que existir.
Existiu em minha vida, em ocasiões e motivações diversas. Quando eu e Guarnieri
escrevemos e Edu Lobo musicou Arena conta Zumbi, sempre juntos, ensaiando
partes do texto e músicas que iam ficando prontas. À noite, Tartufo de Molière e,
depois do jantar, até de madrugada, íamos autores e atores para minha casa.
Guarnieri e eu revezávamos na Olivetti, os outros em volta, dando sugestões, Edu
trancado em outra sala, compondo.
Juntos criamos essa unidade, esse coração, não só porque éramos família, mas,
ideologicamente, estávamos juntos, lutando contra a recente instalação da
ditadura cívico-militar, que tanto matou e tantos danos irreparáveis causou (grifo
nosso)”
216
.
A peça pretendia mostrar que as lições extraídas do evento narrado devem-
se adequar à época de construção do texto: o episódio de Palmares torna-se a metáfora
dos acontecimentos de 1964. Procurava-se analisar movimentos libertários “frustrados”,
mas que podem suscitar uma atitude de resistência na platéia em relação ao golpe
militar. Sob esse aspecto, descreve Roberto Schwarz:
215
Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri concedida a Fernando Peixoto. Publicada em Encontros com
a Civilização Brasileira, n.º 1 (julho de 1978). In: PEIXOTO, F. Teatro em Movimento: 1959-1984. São
Paulo: HUCITEC, 1985, p.57-58.
216
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 157.
101
‘Opinião’ produzira a unanimidade da platéia através da aliança simbólica entre
música e povo, contra o regime. ‘Zumbi’ tinha esquema análogo, embora mais
complexo. À oposição entre escravos e senhores portugueses, exposta em cena,
correspondia outra (...) entre o povo brasileiro e a ditadura pró-imperialista. Este
truque expositivo, que tem sua graça própria, pois permite falar em público do que
é proibido, combinava um antagonismo que hoje é apenas moral a questão
escrava a um antagonismo político, e capitalizava para o segundo o entusiasmo
descontraído que resulta do primeiro. (...) Uma vez a revolta escrava era referida
à ditadura; de outra, a ditadura era reencontrada na repressão àquela. (...) a luta
entre escravos e senhores portugueses seria, já, a luta do povo contra o
imperialismo (...) e valoriza-se a inevitável banalidade do lugar-comum: o direito
dos oprimidos, a crueldade dos opressores; depois de 64, como ao tempo de Zumbi
(séc. XVII), busca-se no Brasil a liberdade
217
.
Outro aspecto novo na realização desses espetáculos, era ao fato de o
público ser mais estudantil que o costumeiro, coincidindo com o momento áureo do
movimento estudantil, de vanguarda política do país, portanto mais politizado e
consciente, o que favorecia uma troca/cumplicidade maior entre artistas e espectadores,
já que esses respondiam mais agilmente às alusões políticas. O teatro fomentava as
discussões políticas entre os estudantes e acentuava a postura de oposição ao regime
militar, “oferecia-lhes uma coleção de argumentos e comportamentos bem pensados,
para imitação, crítica ou rejeição
218
. Em reação, os ativistas da direita responderam
arrebentando cenários e equipamentos, espancando elenco e muitas vezes o público, em
defesa de sua dominação sobre o povo, que deveria ser afastado de qualquer meio de
formação de opinião que não expressasse a ideologia dos militares.
Numa análise da estrutura dramática do texto, feita para uma crítica sobre o
espetáculo, naquele momento, Décio de Almeida Prado assim recebe Zumbi:
“Arena conta Zumbi é uma história narrada sem nuances, apenas em preto e
branco mas com as cores trocadas. Os negros têm o alvor dos anjos: constróem
um paraíso de pujança econômica, de justiça social, e ainda por cima com
deliciosos toques de erotismo. A fórmula perfeita: o trabalho livre e o amor livre.
Em compensação, a lama dos brancos é do negror das trevas de Satanás: arrasam,
pilham, esfolam, roubam, matam. Os pretos são valentes, fortes, líricos, sensuais.
Os brancos são decrépitos, adamados, pernósticos, ridículos. Surpreendentemente,
os brancos vencem. Deve haver alguma coisa que não foi bem contada. É que a
peça não se importa muito com a realidade concreta. A idéia que faz dos homens,
no que concerne ao bem e ao mal, é essencialmente religiosa: a vida concebida
como a luta entre dois princípios opostos, entre os imaculadamente puros e os
irremediavelmente perversos. Nesse universo maniqueísta não há lugar para
contingências históricas, circunstâncias sociais, toda essa delicada e complexa
textura que determina o modo de ser de uma comunidade. Os negros são
217
SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros ensaios. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.83.
218
Ibidem, p.81.
102
idealizados como os índios o foram durante o romantismo. No fundo é a visão
tradicional da sociedade mas com os papéis permutados: os que eram
considerados bons os brancos passam a ser maus e vice-versa
219
.
O autor condena o maniqueísmo e cobra as sutilezas, as nuances e os
conflitos internos que compõem o homem. Porém parece não levar em conta que se
trata de uma opção assumida em função das condições que o regime militar
possibilitava para a arte política, que sempre pautou seu trabalho no combate às
injustiças, na denúncia das mazelas sociais. E vai além em sua crítica:
“Acreditam que a luta social se faz através de gigantescas simplificações, cuja
finalidade é fortalecer o ardor dos combatentes. E é exatamente isso que não nos
agrada em Arena conta Zumbi. A esquerda brasileira tem vivido neste últimos
anos num infeliz conúbio com a demagogia, sempre na esperança de surrupiar-lhe
as massas eleitorais, mas tendo de se contentar de fato com o papel subalterno e
pouco sugestivo de sustentáculo intelectual de um populismo de péssima
qualidade. Em vez de servir-se da demagogia em seu próprio proveito, como
pretende, ela é que tem servido de retaguarda ideológica à demagogia. Talvez
fosse agora a oportunidade de recomeçar em outras bases, de interessar-se um
pouco mais pelos fatos e um pouco menos pelas abstrações, um pouco mais pela
verdade e um pouco menos pelas distorções deliberadas ou inconscientes da
propaganda. (...) Há uma certa distância entre o ‘cabaré literário’, à maneira
alemã, que vive de alusões aos fatos do dia, e a peça de teatro que, mesmo sendo
engajada, deve pairar a uma altura um pouco mais elevada, tirando daí a sua
força de convicção.
Arena conta Zumbi lembra freqüentemente um comício político cantado e
dançado: um frenesi de movimentos, de rumor, com muito poucas perspectivas
realmente novas. Sound and fury será esse por acaso o novo ideal do nosso
teatro de esquerda?
220
.
O crítico parte de pressupostos estéticos já estabelecidos para o que seria a
melhor estrutura de uma peça, de uma teoria de teatro diversa da assumida pelos autores
do musical para analisá-lo e com isso cobra posturas estéticas e políticas externas aos
conceitos e ideais que nortearam a obra. Ao divergir politicamente, o autor opta por
classificar o espetáculo como “panfletário”, “demagógico” do que discutir a validade de
um teatro engajado “que vive de alusões aos fatos do dia”, em pleno regime militar.
Quanto à pergunta que o crítico nos deixa, Caetano Veloso ao comentar
Zumbi, anos mais tarde, traz uma resposta pertinente:
Recentemente a atriz Fernanda Montenegro, freqüentemente considerada a maior
atriz brasileira, (...) disse numa entrevista que fala-se muito na importância do
teatro tropicalista de José Celso Martinez Corrêa e que a memória sempre celebra
sua montagem O rei da vela mas que o espetáculo mais importante da
219
PRADO, D. de A. “Arena conta Zumbi”. O Estado de S. Paulo, 09.05.1965. In: PRADO, D. de A.
Exercício Findo. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 66.
220
Ibidem, p. 67.
103
modernização do teatro brasileiro tinha sido Arena conta Zumbi. A mera
demonstração do desejo de compensar essa injustiça histórica de que o Zumbi era
vítima apresentou-se-me como algo louvável: senti uma grande e imediata alegria
diante das palavras de Fernanda. De fato, não é pouca coisa que se tenha
realizado um musical coerente e bem amarrado no Brasil (...) A glamourização da
heroicidade do personagem central (...) realçada pela graça da música, abria
como que uma clareira agradável em nossas mentes. À época, teria soado como
uma verdadeira blasfêmia ou um esnobismo alguém dizer bem do Zumbi nesses
termos: eu próprio me dava motivos politicamente mais corretos do que esse para
meu entusiasmo (...) Um espectador culto de esquerda teria preferido uma
desaprovação da peça motivada pela irresponsabilidade historiográfica dos
autores ou pela simplificação maniqueísta (a palavra aparecia muito no período)
dos enfrentamentos do povo heróico com seus algozes do que esse tipo de
louvor
221
.
Assim como as manifestações culturais passavam por variadas
transformações, em reação ao golpe de 64, os movimentos políticos os partidos
também sofriam mudanças. E como vimos, a arte do período do regime militar oferece
importantes indicações a respeito das prováveis ações da esquerda e dos valores ético-
morais que as embasaram.
A esquerda, no pós-golpe, sofre inúmeras divisões, conflitos entre os grupos
que se posicionavam em relação à luta armada, por considerá-la mais eficaz e que
rechaçavam as orientações do PC, e aqueles que optavam pela construção da resistência
democrática, como foi discutido no capítulo anterior. A esse respeito, Boal pondera:
Em 1966 grupos armados começaram a se estruturar. Religiosos sinceros
aderiram à tese da luta armada: forma imediata de servir ao Cristo (...) O
Partidão perdeu militantes importantes, descrentes na tese de duas burguesias,
uma nacional, outra estrangeira: Marighela e o Velho Joaquim Toledo, meus
amigos, fundaram a ALN; João Amazonas e o velho Arruada o PC do B. Tantos
mais foram-se embora, desgostosos. Estudantes e operários, perdidas suas
estruturas estudantis e sindicalistas, perdiam tudo, menos a esperança. Expulsos
dos seus território habituais, em algum lugar tinham que se encontrar.
Havia demasiados partidos e dissidências, dissidências das dissidências e
dissidências das dissidências dissididas, frações e microfrações, microfrações das
dissidências fracionadas. Meus companheiros que me perdoem: era difícil saber
quem estava em que organização, quem era aliado de quem, qual a organização
mais marxista, mais maoísta, mais trotskista, qual a mais guevarista. E qual seria
a mais brasilianista?
222
.
Após o golpe, que recebe com perplexidade e despreparo, a esquerda passa
por um momento de auto-crítica:
221
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 82-84.
222
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 242-243.
104
na raiz de nossos erros está uma falsa concepção, de fundo pequeno-burguês e
golpista, da revolução brasileira, a qual se tem manifestado de maneira
predominante nos momentos decisivos de nossa atividade revolucionária,
independentemente da linha política, acertada ou não, que tenhamos adotado. É
uma concepção que admite a revolução não como um fenômeno de massas, mas
como resultado da ação das cúpulas ou, no melhor dos casos, do Partido. (...). è
indispensável que todo o Partido adquira a convicção de que cabe aos comunistas
um papel de vanguarda na luta para derrotar a ditadura, o que exige espírito
revolucionário, desprendimento e capacidade de sacrifício. (...). Nas condições
atuais, só cumpriremos nosso dever se formos capazes de fazer de nosso Partido a
força organizadora e dirigente do movimento pela reconquista das liberdades
democráticas. Isto requer de cada militante grande sentido de responsabilidade e
não menor combatividade
223
.
Em meio a tantas dissidências, o PCB, em seu VI Congresso (1967), expõe
sua posição e conclama à resistência e à prática de ações que, grandes ou pequenas,
vitoriosas ou derrotadas, levem a acumulação de forças pela população para a
transformação democrática:
(...) o essencial no momento é estreitar suas ligações com as grandes massas da
cidade e do campo, é ganhá-las para a ação unida contra a ditadura.
Evidentemente, não é chamando-as a empunhar armas que, nas condições atuais,
delas nos aproximaremos. A luta armada só poderá ser, como forma
predominante, e decisiva, a combinação de um processo sumamente complexo,
onde se alternam e se conjugam os mais diversos métodos de luta. E é necessário
que as massas já estejam dispostas a todos os sacrifícios, de preferência a
continuar no regime que os oprime, para que um partido de vanguarda possa
conclamá-las à ação armada. (...). Na situação atual, nossa principal tarefa
consiste em mobilizar, unir e organizar a classe operária e demais forças
patrióticas e democráticas para a luta contra o regime ditatorial, pela sua derrota
e a conquista das liberdades democráticas. (...). Cada vitória, pequena ou grande,
ou mesmo derrota na luta pelas liberdades, incorpora-se à experiência das
massas. É a própria experiência de luta que levará as massas a avançar em seus
objetivos, formar e prestigiar suas organizações e seus líderes, intervir
decisivamente nas ações políticas, que conduzirão à derrota do regime
ditatorial
224
.
Os que abandonavam o partido recebiam críticas:
(...). Outra tese a ser combatida é a que vê a revolução não como a obra das
massas de milhões, como afirmava Lenine, mas como o resultado da ação heróica
de alguns indivíduos (expressa no lema: o deve dos revolucionários é fazer a
revolução), ou de pequenos grupos audaciosos.
Esta posição voluntarista (...) é a propugnada por todos os que hoje insistem em
ver na criação de ‘focos’ guerrilheiros no interior do país o passo inicial da
revolução. Afirmam que tais ‘focos’ de luta armada podem desencadear o
223
CARONE, E. APUD: PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São
Paulo: HUCITEC, 1999, p. 116.
224
Ibidem, p. 121.
105
processo revolucionário no país e arrastar as massas populares à revolução,
independentemente das condições objetivas
225
e subjetivas indispensáveis (...)
226
.
Assim pela ótica dos que compunham a frente democrática, como aponta
Rosangela Patriota, em análise sobre a ação dos intelectuais e a resistência democrática
na ditadura militar, “o tema dos intelectuais e da cultura tornou-se prioridade nas
discussões do PCB, sobretudo a partir do golpe de 1964. Sem dúvida, este
acontecimento exigiu que o Partido repensasse suas estratégias de atuação política e
suas relações com segmentos culturais, já que, a partir de então, as análises puramente
‘economicistas’ não respondiam mais aos impasses vivenciados, nem à necessidade de
organização da resistência articulada em setores não vinculados à produção. De
acordo com esta perspectiva, o espaço da ‘resistência’ e da ‘luta pela democracia’ teve
na cultura a sua arena (...) Deste modo, foram realizadas considerações com o objetivo
de ‘condenar’ atitudes e práticas que não contribuíssem para a construção de uma
‘hegemonia tendencial de esquerda na cultura brasileira’ no período dos governos
autoritários. Para tanto, estas reflexões, produzidas no PCB, procuraram articular o
trabalho intelectual como núcleo fundamental da resistência. Por isso, tornava-se
importante resgatar a atuação dos intelectuais, em diferentes momentos da história do
Partido (...) bem como reconheceu-se a necessidade de um trabalho teórico que
fundamentasse e orientasse a militância
227
.
Em Arena conta Tiradentes há críticas aos intelectuais, mas àqueles que
resolvem entrar numa ação revolucionária de tomada do poder, quando na verdade não
possuem formação para tal, encontram-se despreparados. Existe também uma exaltação
225
A esse respeito Augusto Boal comenta: “Guerrilha literária: Regis Debray, sem ter culpa, foi causa de
equívocos graves. Seu livro sobre a teoria dos focos, baseada em diálogos bolivianos com o Che, fez
imenso mal à luta armada no Brasil. Foi tomado ao pé da letra. A Batalha de Santa Clara, para alguns
combatentes brasileiros, poderia ser aqui reproduzida: bastaria dividir nosso país em dois, criando-se
focos e focos, até que ficasse metade do país de cada lado e então... em sonhos... seria fácil. Acordados,
percebíamos que Cuba era longa lingüiça e o Brasil, arredondado; ela pequenina, nós gigantescos. Sonhar
era cômodo... pra que abrir os olhos? Eu me lembro que um importante líder guerrilheiro que, querendo
me convencer da justeza de suas estratégias, abriu em cima da mesa um colorido mapa do Brasil cheio de
montanhas e rios, mostrou a progressão inexorável das conquistas populares: focos e focos, faltando só
atravessar o rio São Francisco para que todas as forças revolucionárias se reunissem num glorioso
Exército de Libertação Nacional, marchando sobre Pequim, digo, Brasília. Lembro de que fiz pergunta
sincera: nesse rio não tinha jacaré, crocodilo, perigo? Tão fácil atravessá-lo? Nos mapas, jacaré não
existe, nem malária, tifo, mosquito, febre amarela: apenas cores azuis, amarelas e verdes. Nos mapas, as
guerras são rosas...”. (BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 243.).
226
CARONE, E. APUD: RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção um
estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em
História) FFLCH, USP, p. 184.
227
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC,
1999, p. 149-151.
106
da figura de Tiradentes “verdadeiro herói revolucionário” que fracassa por se aliar a
companheiros errados, enquanto deveria estar junto da massa, do povo agente
revolucionário/transformador. Pois, então, o que os autores queriam dizer? Talvez
compactuasse da perspectiva do partido: revolução só quando as massas estivessem
preparadas, porque, antes disso, qualquer ação seria mais um golpe. Porém os artistas,
intelectuais, grupos organizados deveriam incitar o povo a ter atitudes, fossem
pequenas, cotidianas, mas contínuas, que lhes oferecessem forças, que um dia reunidas,
serviriam para se atingir o objetivo maior: a derrubada dos militares do poder.
Anos mais tarde, Boal faz uma análise clara do momento, do conflito de
posicionamento que viviam, evidenciando como, no desejo de resistir, contribuíam para
a construção do processo histórico ao lado dos que compunham a frente democrática:
Dois tipos de polêmica se instalaram. A primeira, sobre o papel dos intelectuais
em tempos de turbulência ou de paz. As cenas dos inconfidentes foram inspiradas
pela noite de 31 de março de 1964, na casa do Professor.
Aquela noite inútil tinha ficado em nossa memória como simbólica: intelectuais
davam-se o direito de indicar caminhos e... cruzar os braços. Como se ser
intelectual significasse o direito adquirido de não fazer nada além de pensar. Em
Cuba, intelectuais cortavam cana. Que direito tínhamos nós de exigirmos que os
outros fizessem tudo? Não seríamos nós parte desses outros? Fôssemos à luta!
Dúvida: deve um pianista cortar cana? Um cirurgião? Sou mais útil fazendo
aquilo que qualquer um pode fazer ou aquilo que só eu sei?
Fomos dramaturgos cruéis, sem maldade. Críticos impiedosos, sem ironia.
Convidamos participantes da noite de 31 para leituras de Tiradentes, sem
armadilhas vieram sem se dar conta. Alguns se reconheceram sem se incomodar.
Outros nem se deram por achados. Hoje, com o tempo distante e a memória
esfumaçada, ainda menos se hão de achar.
Éramos contraditórios: acusávamos intelectuais de promoverem revolucionários
bate-papos mas não fazíamos mais do que isso. Éramos intelectuais. Como nossos
criticados: escrevíamos, mas... ninguém pegava em armas.
Onde as armas? A curiosidade se acendeu em nós. A partir de Tiradentes, alguns
de nós começaram a pensar em ação efetiva: amaldiçoar ditaduras mentecaptas e
carrascas era pouco! Alguns queriam cumprir o que julgavam dever (grifos
nossos)”
228
.
Com relação a Arena conta Tiradentes, Guarnieri se mostra menos
entusiasmado e aponta o fim do grupo
229
, devido ao estrangulamento cultural e artístico,
sofrido no embate com a ditadura militar:
228
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 240-241.
229
O Teatro de Arena encerra suas atividades, em 1970, após contrair inúmeras dívidas que não consegue
sanar e ter seu principal administrador e diretor, Augusto Boal exilado. Porém o teatro (a sede) existe até
hoje, tendo sido comprado pelo SNT (Serviço Nacional de Teatro) e nomeado “Teatro Eugênio Kusnet”,
e abriga diversificados espetáculos teatrais.
107
Já durante Tiradentes as coisas não estavam bem paradas. Começamos a
divergir! Já estávamos sofrendo um pouco com todo o processo político e
começou-se a pensar em fazer um teatro que atuasse mais. Então é criado o
Núcleo Dois do Arena, e o Boal propõe o Teatro Jornal. Com isso, no próprio
elenco começa a surgir uma divisão de conceitos. Havia, de um lado, a acusação
de desvio formalista... agora, essas diferenças, essas divergências numa situação
de liberdade, acho que são muito úteis e levam todos para frente; numa situação
de sufoco, como aquela que a gente estava vivendo em 1967, 1968, em que a
realidade estava explodindo, tínhamos que permanecer unidos; mas não foi o que
aconteceu! O Teatro Jornal não deu certo... foi proposta a Feira Paulista de
Opinião, realmente a última grande proposta do Arena, bolada pelo Boal, que
eram peças curtas baseadas numa só pergunta: ‘O que acha do Brasil de hoje?’.
Esse era o tema. Quem responderia essa pergunta era o próprio povo, gente do
povo, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, poetas, etc. (...) Ficou um
espetáculo muito polêmico e foi praticamente a última coisa que conseguimos
realizar. (...) Antes do Arena acabar, fizeram uma viagem, eu não fui... Eles foram
até os Estado Unidos, vieram para a América do Sul fazendo Zumbi e Simon
Bolivar
230
. Essa última foi proibida aqui no Brasil. Isso já estávamos em 1968,
230
A peça, que segue a mesma estrutura dramática e de encenação que Tiradentes e é assinada por
Augusto Boal, tanto o texto quanto a encenação, começa com o elenco entrando em cena, em que o
Coringa se destaca e apresenta o trabalho e o grupo, além de falar da dedicatória a José Marti: “Nós
somos o Teatro de Arena de São Paulo. Contamos histórias, quando, como e onde podemos contar
histórias. Vamos contar a vida de Simon Bolívar, o Libertador. Este espetáculo és dedicado al poeta latino
americano JOSÉ MARTI, que sobre Bolívar há dicho: ‘En calma no se puede hablar de aquel que no
vivió jamás en ella; de Bolívar se puede hablar con una montana por tribuna, o entre relámpagos y rayos,
o com um manojo de pueblos libres en el puno y la tirania descabezda a los piés.’ José Marti Quando
Bolívar morreu, avisou: tudo que já foi feito ficou de novo por fazer, tem que ser feito outra vez. Preste
bastante atenção: a vida de Simon Bolívar é muito instrutiva. A vida, a morte e a ressurreição!”
A obra está escrita em cinco episódios. No 1º Bolívar está na corte de Carlos IV, depois em Paris, na casa
da condessa Tereza Alaiza Toporrucha Ustariz y Torquemal; em Milão, assiste à coroação de Bonaparte;
e na Inglaterra encontra Miranda e Lord Wellesley. No 2º episódio, em Caracas se proclama a
Independência da Venezuela, em que o povo fala não compreender a independência que não liberta.
Bolívar ao ser entrevistado pelo Coringa, diz ter aceitado a imposição de considerar ‘povo’ tão pouca
gente, porque achava que era questão de tempo, de processualmente ir conquistando outras coisas. O
general Monteverde inicia a luta pela recuperação de Caracas. Na seqüência há a cena em que pai e filho,
ao matar o cavalo de Monteverde, são castigados. O pai escapa inicialmente, mas o filho é pego, torturado
e morto. O outro procura os amigos para que o abriguem em sua fuga e todos lhe negam ajuda. É então
encontrado e torturado. Monteverde recupera Caracas. No 3º episódio, os ingleses prometem nova ajuda,
outra vez Bolívar invade Caracas. Porém a Inglaterra recua ao ser pressionada pela França que ameaça
cortar sua ajuda. Acontece um terremoto na cidade, que é quase completamente destruída. Bolívar prende
Miranda e o entrega a Monteverde. Reúne tropas para retornar a Caracas, onde recebe o título de
Libertador. No entanto, os Llaneros, chefiados por Boves, armam uma batalha e retomam a cidade. No
segundo ato, no 4º episódio, Bolívar estando no Haiti, conversa com o presidente Petion sobre o que é
‘revolução’, ‘independência’, ‘verdadeira participação do povo no movimento’. Elenca as sete maneiras
de se entrar na briga certa contra as espanhóis: 1) ser soldado, combater; 2) sabotagem; 3) espionagem; 4)
dar abrigo a quem vai lutar; 5) infiltrar-se no campo inimigo para liquidá-lo; 6) desmoralizar o inimigo; 7)
honestidade com o povo. Dá-se um novo embate com os llaneros, mas Bolívar vai conquistando várias
cidades com seus soldados. Cruzam os Andes, vencendo muitas batalhas.
No último episódio, volta a Venezuela, depois da expulsão dos espanhóis. A peça trabalha com a mesma
temática que os outros musicais: a luta pela liberdade, pela democracia, pela justiça, contra o
imperialismo. Porém, aponta mais enfaticamente para a validade da luta armada. Este texto e sua
encenação não foi analisada pelos pesquisadores, não tendo dentro da historiografia por nós estudada,
nenhuma análise. Vale destacar que foi encenada, pelo Teatro de Arena, com direção de Augusto Boal,
em 1970, nos Estados Unidos e alguns países da América Latina.
108
veio o AI-5, logo depois Augusto Boal foi preso e teve que deixar o país... e o
Arena terminou!
231
.
A crítica, por sua vez, agora recebe a peça com maior aceitação do que
Zumbi. Mas ainda pela sua qualidade dramática e não pelo que representa enquanto
instrumento de luta, de intervenção política:
O que se pede a uma peça de teatro são imagens convincentes, a passagem feita
com habilidade do geral ao particular, do abstrato ao concreto. E é neste ponto
que Arena conta Tiradentes mais se afirma: concordemos ou não com as suas
análises políticas, ou com o quadro histórico que traça, não se pode deixar de
admirar a maestria, diríamos artesanal, com que as personagens e as cenas são
rapidamente esboçadas, de tal modo que, abolido o conteúdo ideológico ainda
assim ficaria de pé o retrato de situações humanas, de confrontos entre diferentes
tipos de personalidade, de comportamentos sociais padrões (...), que nos
surpreendem, fazendo-nos sorrir, pela acuidade da observação, em geral satírica.
Bons olhos para ver como agem os homens, bons ouvidos para escutar o que eles
dizem habitualmente, justificando-se perante si mesmos ou perante os outros, são
as qualidades próprias da peça. O que é outra maneira de dizer que ela vale por si
mesma, como obra de arte autônoma, e não apenas como veículo de idéias
políticas.
O que Boal e Guarnieri parecem não desculpar nos árcades mineiros (...) é
fazerem versos no momento de fazer revolução. Não haverá por acaso nestas
recriminações, por parte dos autores, um sentido inconsciente de autopunição, o
resultado daquele sentimento de culpa típico do intelectual de nossa época, que
não perdoa a própria atividade literária e artística em face da fome e da miséria
de milhões de homens? (grifo nosso)”
232
.
A razão da escolha de Zumbi e Tiradentes como heróis revolucionários, dois
marcos da História, levanta a discussão do fato de serem importantes para a construção
da identidade nacional e latino-americana, e nos faz repensar a questão da
hierarquização, da periodização, que talvez seja importante, desde que se perceba “a
diferença entre viver passivamente um conteúdo mítico e procurar dar-lhe uma
interpretação crítica o mais ampla e abrangente possível
233
. É verdade, no entanto,
que a figura de Tiradentes e sua simbologia de “libertador nacional”, serviram aos dois
lados na década de 60: tanto aos próprios militares, como seus opositores, no caso a
esquerda, que o utilizava como representante do militante ideal das décadas 60/70.
Neste sentido, se Tiradentes aparece como o único dos Conjurados que tinha um
231
“Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1983, p. 49-50.
232
PRADO, D. de A. “Tiradentes Contado pelo Arena”. O Estado de S.Paulo, 07.05.1967. In: PRADO,
D. de A. Exercício Findo. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 169.
233
GINZBURG, C. Freud, o lobo dos lobos e os lobisomens. In: Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo:
Cia das Letras, 1989, p.217.
109
sentido prático e estava totalmente voltado para a tarefa de fazer a revolução, ele é, sem
dúvida, a representação de todos aqueles que, na conjuntura dos anos 60/70, também
se propuseram a fazer a revolução. (...) Não se trata mais do símbolo da resignação
diante do poder vitorioso, tampouco a encarnação da idéia de independência/república
com contornos cívico-patrióticos, tão cultuado pelas classes dominantes pós-
Proclamação da República.
234
.
A esse respeito, Augusto Boal justificou:
Em Tiradentes, os críticos condenavam o culto ao herói. Brecht: Feliz o povo que
não necessita de heróis. Eu concordava, gênero e número, mas não em grau.
Acrescento: o Brasil não é feliz, por isso, caro Bertoldo, necessitamos de heróis!
Em toda parte, a toda hora! Que proliferem, prolíficos! Heróis a mancheias!
Urgente!
Para mim, o mito não é, em si, mistificador. Mito é a simplificação do indivíduo
histórico, guardando-se os traços essenciais do seu caráter, sua vida que, assim,
aparece magnificada no que se lhe atribui como essência. Torna-se mistificação
quando se magnificam circunstâncias não essenciais e joga-se no lixo da História
o que é importante. Guarda-se o pitoresco, perde-se oprincipal.
Cristo. Se mostrarem apenas seus padecimentos na cruz, esoticismo, se
esconderem seu poder mobilizador popular, estarão mistificando o mito. Che,
mostrando o cadáver, olhos entreabertos, rodeado de assassinos, isto é
mistificação: o homem derrotado. Mostrando-se o Che herói de Santa Clara, o
homem que venceu Batista, será então o mito sem mistificações. Num e noutro
caso, não é necessário contar a vida inteira do herói, falar na marcenaria paterna
de Jesus ou da medicina do Che no entanto, é imprescindível selecionar o que se
quer mostrar nessa escolha, estará o mito ou... a mistificação”
235
No que diz respeito, a relação passado-presente, utilizando análise de
Alcides Freires Ramos, podemos dizer que “a vontade de falar a respeito do presente
levou-o, considerando a estratégia que adotara, a propor uma relação entre passado-
presente em que, sem dúvida, não é, apenas, o passado que estaria ajudando a entender
o presente, mas os problemas enfrentados no presente é que orientam a
retomada/releitura do passado
236
. O passado tornava possível uma leitura do presente,
utilizando-se um tema histórico, que era apresentado à luz de uma análise política atual,
através da função analógica.
234
RAMOS, A.F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção um estudo de “Os
Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História)
FFLCH, USP, p.202.
235
BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 200, p. 241.
236
RAMOS, A.F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção um estudo de “Os
Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História)
FFLCH, USP, p.200.
110
A partir de tudo o que discutimos aqui, pode-se concluir que o ano de 1964,
com seus terríveis acontecimentos, é um marco na história do Teatro de Arena, que
trazia em suas representações um projeto político de uma nova sociedade e de luta pela
democracia ampla a todas as classes sociais e que se perde com a tomada do poder pelos
militares. Diante de tal derrota política, as lutas e propostas estéticas tiveram que ser
redefinidas, o que evidencia que sua trajetória não foi linear, isto é, não havia uma
perspectiva traçada a priori. Em conjunturas diferentes, as obras estiveram em sintonia
com o seu momento histórico, com as questões socio-políticas de sua época. Por isso
devem ser pensados como documentos de luta.
111
CONCLUSÃO
Este estudo, que se estruturou a partir do processo de recuperar a
historicidade do Teatro de Arena e sua produção, em particular os musicais, possibilitou
uma revisão das interpretações já consagradas, qualificadas como a voz da verdade,
acerca dessa história e permitiu resgatar os pressupostos teóricos e estéticos que
nortearam essa produção artística, além dos debates e lutas, nas quais seus agentes
(autores, diretores, atores) estavam envolvidos.
A importância em se fazer uma releitura desses trabalhos acadêmicos reside
no fato de que, também esses estudiosos, possuem seus referenciais teóricos e estéticos
e, muitas vezes, partem deles para uma análise sobre o Arena em busca de um sentido,
uma unicidade que delegue a esse grupo e suas atividades um lugar definido e definitivo
(o que nos parece mais grave, pois é como se encerrasse novas discussões e suprimisse a
capacidade de sua trajetória dialogar com o presente, desenvolvendo novos papéis), na
História do Teatro Brasileiro. É claro que para a realização de nossa pesquisa, partimos
do estudo crítico dessas interpretações, mas cientes de que essas narrativas compõem
parte da história construída; há outros caminhos, outras perspectivas, outros olhares.
Sob esse aspecto, decidimos caminhar por outra trilha: a da investigação
histórica sobre manifestações artísticas que, sob o ponto de vista que seguimos,
representam a luta de determinado grupo social que está inserido no processo histórico
como sujeito atuante e que tem a arte como mediação para suas angústias, dúvidas,
questionamentos, reivindicações, traçando assim um intenso diálogo com a conjuntura
socio-política, econômica e cultural do período os anos 60.
Dessa forma, acreditamos que, estudos que se atêm a hierarquizações
estabelecidas, perdem a oportunidade de perceber as reais questões que motivaram a
construção da obra. Assim, classificações como “esquemáticas”, “paternalistas”,
“didáticas”, “pragmáticas”, “maniqueístas” e tantas outras, referendadas nas abordagens
aos musicais do Arena, tendo sido este o quadro interpretativo encontrado no início de
nossa pesquisa, apresentam-se para nós como uma pequena fração da análise a ser feita,
pois é fundamental não perder de vista que essas peças são documentos de luta, ou,
como já dissemos, representações elaboradas em um dado momento e em lugar
específico, que não carregam evidências de verdade, mas posições assumidas frente a
recentes acontecimentos da História do Brasil.
112
O Teatro de Arena filia-se, desde o princípio de sua trajetória, a uma
concepção de engajamento, que significa trazer para o palco problemáticas inerentes à
sociedade brasileira, com a possibilidade de intervir nos embates políticos e
conscientizar o público para também desenvolver uma efetiva participação nas questões
políticas imediatas. Sendo assim, o grupo não titubeia em expor opiniões, pensamentos,
assumir posições, defender pontos de vista e sobretudo marcar seu trabalho com esse
perfil, que lhe confere, a nosso ver, a realização da mais nobre função da arte: suscitar
na platéia atitudes de transformação da ordem vigente.
Todavia, o Arena se torna também alvo de críticas e rejeições, por parte
daqueles que condenam espetáculos em que a forma, a estética serve como veículo para
o discurso político, como se fosse inconciliável o compromisso político com o
compromisso artístico. Passa a ser qualificado como “datado” por, explicitamente, se
comprometer com as lutas de seu tempo, como se a não explicitação de um conteúdo
ideológico significasse a ausência dele. “Ao contrário, o que ocorre é a não-revelação
dos princípios que nortearam a elaboração da obra
237
.
Há, a partir desse ponto de vista, uma cobrança de que a obra artística retrate
mais fielmente a realidade, como se a filiação ao projeto de um teatro político, engajado
terminasse por distorcer/obscurecer o panorama social que procura desvendar.
Pressuposto que elide as referências teóricas, políticas e estéticas que formam o artista,
sua visão de mundo, sua subjetividade. Diante de tal questão, um texto, já citado por
nós, vem à tona. Sobre o procedimento dos Historiadores da Cultura em relação aos
diálogos interdisciplinares, Hunt escreveu: “ não devem substituir uma teoria redutiva
da cultura enquanto reflexo da realidade social por um pressuposto igualmente
redutivo de que os rituais e outras formas de ação simbólica simplesmente expressem
um significado central, coerente e comunal. Tampouco devem esquecer-se de que os
textos com os quais trabalham afetam o leitor de formas variadas e individuais. Os
documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são textos inocentes e
transparentes; foram escritos por autores com diferentes intenções e estratégias, e os
historiadores da cultura devem criar suas próprias estratégias para lê-los. Os
historiadores sempre foram críticos com relação a seus documentos e nisso residem
os fundamentos do método histórico
238
.
237
PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.
19.
238
HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 18.
113
Torna-se pertinente dizer que a prática do historiador carrega, em certa
medida, uma subjetividade, não sendo possível uma imparcialidade, já que suas
escolhas não são inocentes, neutras, mas motivadas pela sua visão peculiar de mundo,
seu grau de compromisso com a realidade social, seus referenciais. No entanto, isso não
torna seu trabalho menos válido, apenas confere-lhe historicidade, como possuem as
obras do Arena, os trabalhos acadêmicos a seu respeito, esta dissertação.
E ainda: tais críticas referentes ao Arena refletem a idéia de que a arte
deveria ser vista como um fim em si e não como um meio. Sob essa perspectiva a
postura do grupo era tida como pragmática, considerando que seu projeto artístico
estava submetido a estruturas fechadas, calcadas em mensagens definidas e acabadas,
não sendo por isso “revolucionário”, pois não era vanguarda no aspecto estético.
Ao contrário, acreditamos que o teatro “é um instrumento poderoso para a
reflexão crítica: uma manifestação do homem em sua historicidade concreta, espaço de
discussão de comportamentos e atitudes vinculados às relações de produção
239
. E
além disso: pode provocar a atividade política do público, despertando a consciência em
grupos sociais, formando opiniões, estimulando ações efetivas. É claro que um
espetáculo não consegue, por si mesmo, promover a transformação da sociedade. Mas é
evidente também que não são essas as propostas do teatro engajado e sim intervir na
luta, não substitui-la, instrumentalizando os sujeitos que compõem seu público.
Então, comungando dessa teoria e motivadas pela legitimidade do
engajamento no campo estético, percebemos o Arena como revolucionário, pois
arregimentou forças e condições para, sob um regime militar que censurava, torturava,
matava, continuar denunciando as mazelas e injustiças de seu tempo e propor
perspectivas otimistas de uma sociedade verdadeiramente livre, democrática, igualitária.
Construiu, dessa forma, uma cultura de oposição, que continha na obra, evidentemente,
a discussão política, porém, dentro de uma dimensão estética. Em nenhum momento
abriu mão da qualidade estética dos trabalhos.
O Teatro de Arena, que estava inserido num período de extrema
efervescência política e cultural, em que todos os setores da atividade artística cinema,
música, literatura buscavam novas formas, novas linguagens, em função do golpe de
64 que interrompe um projeto nacional de desenvolvimento, democracia e
independência econômica, reformula a concepção de teatro vigente até o momento,
239
PEIXOTO, F. Teatro em Questão. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 255.
114
criando o Sistema Coringa, promovendo uma articulação intensa da arte teatral com a
música de protesto, incentivando, a partir do estudo de diversos teóricos, em especial
Stanislavski e Brecht, o ecletismo de gênero, que confere liberdade na formulação da
montagem cênica. Sobretudo o Arena não se tornou escravo de nenhum método nem
retórica. Conheceu sim fronteiras ideológicas, mas não limitações estéticas.
Conforme é demonstrado, não é possível se falar em linearidade quando o
assunto é a trajetória do Arena, pois este abarcou diferentes pessoas, projetos, intenções,
propostas de atuação, sendo suas criações multiplicidades estéticas e políticas, que
representam diversos momentos da história brasileira.
Assim, chegado ao final, porém, cientes de que esta análise não esgota o
assunto, evidenciamos o que a pesquisa nos mostrou: o referencial teórico e estético dos
autores, diretores e atores, bem como suas intenções nas produções artísticas.
Todavia, nosso maior interesse é que essas análises sejam debatidas e
estendidas para as manifestações artísticas atuais.
Estamos vivendo um momento de perplexidade: apesar de termos nos
libertado da cruel ditadura, ainda não conseguimos construir um país democrático no
que tange às questões sociais, vivendo em um quadro de profundas desigualdades e
injustiças, resultado de uma economia dependente, de relações submissas com nações
(especificamente os Estados Unidos) imperialistas. O teatro, que já foi mais
conseqüente e atuante, apresenta-se despolitizado, no sentido de ter se afastado de
temáticas ideológicas e sociais, e o próprio artista ter perdido aquele diálogo intenso,
questionador, reflexivo. Estamos vivendo um momento de descompromisso na arte.
Não podemos ignorar que o teatro político está fora das salas de espetáculo. Como bem
aponta Rosangela Patriota, temas como “justiça social”, “igualdade”, “participação”,
“consciência política”, parecem idéias utópicas distantes da necessidade do mercado,
palavras vazias que, juntamente com a queda do que representava o muro de Berlim
todo o projeto socialista , perderam de vez seu significado
240
. Acreditamos que,
atualmente, a arte viva a ditadura da lei de mercado, sendo, cada vez mais, solapada
pelo neoliberalismo, que faz mecenato com as estrelas “globais”; pela falta de formação
de público, que se vê afetado pela crise econômica, educacional, cultura; pelas leis de
incentivo que atendem aos mesmos grupos já favorecidos, sendo, com efeito, “uma
ilusão pensar que o Estado sustenta (quando o faz) um empreendimento teatral na mais
240
PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999.
115
total abnegação. Mesmo sem confessá-lo, ele espera receber por esse amparo uma
retribuição simbólica: não propriamente uma adesão ou celebração mas, mais
sutilmente, um reforço de sua imagem, do seu prestígio. (...) o poder opta por
privilegiar, no plano cultural, a burguesia que constitui a sua base eleitoral. Ou seja,
opta por atender à sua demanda, aos seus gostos. (...) Pois não há como deixar de
constatar que o teatro sem estrelas, os jovens grupos e os centros dramáticos, todo esse
setor está sendo cada vez mais tratado a pão e água (grifos nossos)”
241
. Tudo isso,
muitas vezes, sem um enfrentamento, sem oposição, caindo numa arte alienada e
alienante. O teatro precisa retomar sua função social, entendida aqui como o papel que a
obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na preservação ou
transformação da ordem vigente. Deve ser um espaço seja qual for onde se fale do
presente, onde se conteste, denuncie, acuse. O artista não pode perder o seu espírito de
contestação e mudança, que o impulsiona a participar das lutas de seu povo, reconhecer
seus problemas e compartilhar suas reivindicações, com o ideal de conquistar a
libertação e felicidade de grupos sociais, estando assim, em oposição a todos os
mecanismos de controle que possuem o governo e a classe burguesa e que acaba por
domesticar o indivíduo, sua consciência, seus sentimentos.
Diante de tais questões, a razão de nosso trabalho: a história do Teatro de
Arena provoca, ainda hoje e sempre que se apresentarem tais problemas, reflexões e
estímulo na construção de um teatro participante e articulado com o presente.
241
ROUBINE, JJ. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 196-198.
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