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Os Servos de santo Inácio a serviço do
Imperador:
Demografia e relações sociais entre a escravaria da Real Fazenda de
Santa Cruz, RJ. (1790- 1820)
Carlos Engemann
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Mestrado em história social
Orientação
Prof. Dr. Manolo Florentino
Rio de Janeiro
2002
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i
Apresentação:
Vários estudos já foram dedicados à fazenda de Santa Cruz. Seus
aspectos econômicos e sua importância para o sudeste colonial e imperial
também já foram arrolados em vários trabalhos. O que justifica, então, voltar a
envolvê-la em novas investigações? É que desta feita, menos que a fazenda em
si, estaremos tratando de aspectos sociais inerentes a sua existência. Pelo fato
de ser o que era, e mais, de ser de
quem
era, Santa Cruz vivenciou contextos
sociais por demais expressivos para serem negligenciados. Principalmente no
que tange a seus escravos.
Pouco se falou, até agora, sobre a pequena multidão de cativos que a
habitava. A alegação de extrema especificidade talvez tenha obliterado os
estudos a seu respeito. Exceto um capítulo publicado por Richard Graham
1
-
que com a pretensão de dar conta da família escrava no Brasil, explora apenas
alguns aspectos demográficos gerais - apenas algumas notas ou menções a
essa população aparecem aqui e acolá, com cheiro de “notícias pitorescas”.
A bem da sua singularidade, é certo que um plantel como esse tenha
apresentado características que o correlacionaram com outros plantéis, seja
pelo modelo administrativo, seja pela proporção. Uma escravaria que foi forjada
pelo arguto senso administrativo dos padres inacianos, supostamente com
1
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Editora Perspectiva.
1979.
ii
esmerada organização e controle, e que depois passa às mãos um tanto
desleixadas dos representantes do estado, pode parecer excessivamente
peculiar para valer um estudo mais detalhado. Mas, eram escravos. Suas vidas
não lhes pertenciam e era com essa realidade que tinha de se haver todos os
dias.
Aí reside o valor histórico de um plantel aparentemente único. Seus
cativos, tanto quanto quaisquer outros, queriam amenizar os seus fardos, seja
por negociação, seja por conflito. Mas a escolha do caminho a ser seguido
dependia totalmente do escravo. Não era ele o único elemento da relação, por
tanto a decisão de negociar ou confrontar era gerada pela postura que ambas
as partes, senhor e escravo, tomavam diante de seus interesses.
Mahoma Gardo Baquaqua, um africano que foi escravo no Brasil e
posteriormente se refugiou nos EUA, evidencia em suas memórias
2
que sua
primeira tentativa foi a de se tornar um “bom escravo” para escapar a ira
descabida de seu algoz. Diante do fracasso total dessa estratégia, o confronto
foi tomado como alternativa, variando sua intensidade do alcoolismo ao
suicídio.
Obviamente que nem todos os proprietários de escravos eram
destemperados como o que comprou Baquaqua. Principalmente os donos de
grandes plantéis, onde a relação entre o senhor e o cativo era mais distanciada.
Além disso, a perspectiva da produção e a resistência dos cativos poderiam se
sobrepor às desmedidas do temperamento de donos e capatazes. Ao que tudo
2
BAQUAQUA, Mahommah Gardo. Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro. Brasília:
Editora Universidade de Brasília. 1977.
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iii
indica, alguns tinham efetivamente que negociar com suas propriedades, o que
revela um inusitado limite na posse de homens sobre outros homens.
Um dos casos mais conhecidos é o dos cativos do engenho Santana, na
Bahia, de propriedade de Manuel da Silva Ferreira. Seus escravos tomaram o
caminho dos levantes, dos quais se tem notícias de dois, um em 1789 e outro
em 1828. Neste último, chegando à ocupação das terras do engenho por três
anos. Da primeira rebelião, resultou uma pauta reivindicatória
3
a ser cumprida
como condição para o retorno ao trabalho. Muitos itens desse documento se
destacam, como as reduções da carga de trabalho e melhorias nas condições
de vida, principalmente pela concessão de novas áreas de cultivo e apetrechos
de pesca, e pela possibilidade de comércio livre de artigos da produção dos
cativos fora do engenho; mas o mais revelador é, sem dúvida, que eles
queriam “brincar, folgar e cantar em todos os tempos”, e mais, “sem que nos
impeça e nem seja preciso licença”.
É de se notar que o documento foi produzido na primeira rebelião, o que
pode sugerir que a segunda derivou do não cumprimento das cláusulas
estipuladas. Para a maioria de nós, ignorantes das tramas da sociedade
escravista, causa uma certa estranheza a ausência do quesito liberdade nestas
tais negociações. O que se pode dizer? Queriam estabelecer a sua vida com os
elementos com os quais já haviam se familiarizado e dos quais tinham por
seguro extrair o de viver. As terras, o rio, o mercado, seja lá o que for, estava
ali. O problema do cativeiro se agrava em função das condições impostas por
3
O texto foi publicado em: REIS, João José e SILVA, Eduardo, Negociação e conflito. Rio de
Janeiro, Cia das Letras, pp. 123-124
iv
Manuel da Silva Ferreira que não eram aceitáveis para os seus cativos, por isso,
ou negociar, ou enfrentar.
Em Santa Cruz não era muito diferente. A política senhorial dos jesuítas
era basicamente uma negociação, aos cativos era facultada a posse de um lote
de terra e de cabeças de gado, porém lhes era exigida a disciplina e a moral
que ordenavam a vida e que induzia a formação do pequeno império de Santa
Cruz. A administração estatal não diferiu muito nesse sentido específico, ao
contrário, se proclamava sua herdeira direta.
Tal como se vivia lá, deveria ser a vida em outras fazendas de grande
porte, com plantéis de um certo nível populacional. Embora não seja possível
determinar qual seria esse nível - se cem, duzentos ou mais escravos – mas
certo é que uma população de grande porte tende, em geral, a manter seus
níveis populacionais por crescimento vegetativo, isto é, sem o necessário
ingresso de estrangeiros. Dito de outra forma, se o senhor fosse sensível o
suficiente para negociar uma existência pacífica com seus cativos, sem tornar-
lhes a vida por demais sofrida a ponto de evitar o seu desejo de se perpetuar,
obteria uma população crescente, sem o investimento da compra de grandes
quantidades de negros. Talvez sejam esses os pretensos “criadouros de
escravos”, plantéis nos quais se chegou a um volume demográfico suficiente
para o crescimento endógeno e onde se estabeleceu uma
práxis
que atende
minimamente aos interesses básicos dessa população.
Assim, caminhando entre o singular e o ordinário de Santa Cruz,
procuramos construir um estudo que privilegia as ações coletivas do seu plantel
frente ao seu contexto histórico.
Índice
1. O CORSO DO REI CONTRA OS PADRES DE SANTO INÁCIO 1
2. UMA GRANDE GALERIA A SER VISITADA 10
2.1. OS VIAJANTES E O CATOLICISMO PRÓ-CATIVEIRO 12
2.2. O SÉCULO XIX: ENTRE A ESCRAVIDÃO E A ABOLIÇÃO. 18
2.3. O SÉCULO XX - INTERPRETANDO O PASSADO. 30
3. ALGUMAS IDÉIAS TEÓRICAS... 41
3.1. AS CONTRIBUIÇÕES DA MICRO-HISTÓRIA 45
4. DEMOGRAFIA E ESCRAVIDÃO EM SANTA CRUZ 50
4.1. TODA HISTÓRIA TEM SUAS FONTES 50
4.2. DOS NÚMEROS DA ORIGEM 54
4.3. DOS QUE SE FORAM... 63
4.4. E DE COMO SE VIVE SEM ELES 76
4.5. O QUE SE FAZ EM SANTA CRUZ 84
5. SOCIALIALIZAÇÃO PARENTAL E ESCRAVIDÃO EM SANTA CRUZ 93
5.1. NO FINAL DO SÉCULO XVIII 97
5.2. NO INÍCIO DO SÉCULO XIX 108
5.3. DA PERMANÊNCIA E TRANSMISSÃO DA POSSE DAS HABITAÇÕES 112
6. UM POSSÍVEL COTIDIANO EM SANTA CRUZ 121
ANEXOS: 135
BIBLIOGRAFIA E FONTES: 138
I. FONTES 138
II. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 139
1
1. O corso do rei contra os padres de Santo Inácio
Era o ano de 1759. O marquês de Pombal havia obtido junto ao rei D.
José I a expulsão dos padres da Companhia de Jesus de todas as terras sob
seu domínio. Desejava, então, livrar o Estado português da temível influência
dos inacianos, sem dúvida a maior ordem religiosa em ação no Império luso.
Na colônia, mais especificamente na província do Rio de Janeiro, um grupo
assaz numeroso de padres preparava-se para abandonar as suas obras
erguidas através de anos de trabalho - não necessariamente seu. É possível
imaginar a tristeza e o pesar dos padres ao abandonarem o majestoso colégio
Rio de Janeiro, solidamente incrustado sobre o morro do Castelo e ladeado por
algumas das primeiras construções da cidade, como a cadeia e a igreja de São
Sebastião.
Tristeza ainda maior podem ter sentido os curas de Santo Inácio que
residiam na Fazenda de Santa Cruz. Lá, eram senhores de uma estrutura auto-
suficiente que contava com várias oficinas, escola, cadeia, hospital, botica,... É
fácil imaginar algum dos últimos padres a sair do convento, dirigindo-se ao
comboio que o levaria ao porto da Praça XV, tristonho, pensando enquanto
observava o pó erguido com seus próprios passos. Estaria lembrando as
histórias que ouvira recém-chegado sobre as origens da monumental fazenda,
orgulho da ordem no Rio de Janeiro. Provavelmente ouvira falar, desde os seus
primeiros dias ali, da generosidade de um certo Cristóvão Monteiro, ouvidor-
mor da câmara carioca, casado com a Marquesa de Ferreira e pai de Eliseu e
2
Catarina. Cristóvão recebera, em 1567, por sesmaria as terras que iam de
“Sapegoara, aldeia que foi dos índios, até Guaratiba, que são quatro léguas
boas, ao longo da costa do mar, e estarão oito léguas boas, da bôca do Rio de
Janeiro, para cá, contra Angra dos Reis”.
4
Certamente os detalhes dessa história se perderam nos quase duzentos
anos de descaminhos da memória dos sacerdotes de Santa Cruz. O que se
sabia é que o desejo de Cristóvão, quando vivo, era de que suas terras fossem
herdadas pelos padres da Companhia de Jesus. Ao que tudo indica, uma
certeza repousava no coração de Cristóvão: a de que esse seu gesto de
benevolência seria a garantia de compaixão na Eternidade. Que Deus o tenha!
O nosso hipotético e retardatário padre talvez soubesse que a Marquesa
de Ferreira - pela alma de quem, quiçá, rezara algumas vezes, em especial no
Tempo do Advento quando ela faleceu, há cento e setenta anos - havia
cumprido a vontade de seu marido, e que sua filha, herdeira da outra metade
acabara assentindo em ceder suas terras aos jesuítas. Em troca do seu
quinhão, os padres ofereceram umas terras lá pelas bandas de Bertioga, na
ilha de Santo Amaro e mais quarenta braças de chão na vila de Santos,
caminho de São Vicente. Sendo estas, porém, de valor muito inferior ao terreno
que recebiam, a transação conservou o título de doação, no lugar de troca,
como seria de se esperar.
5
Mas isso dificilmente passou pela cabeça de nosso
imaginário e cabisbaixo sacerdote.
Quando a tristeza nos assalta a alma e a incerteza vem enevoar o
horizonte do futuro, o tempo parece seguir com passos sólidos e cadentes
4
Carta de doação de sesmaria de Cristóvão Monteiro. In “Tombo ou cópia fiel da medição e
demarcação da Fazenda de Santa Cruz...”. Arquivo Nacional. RJ.
5
VIANA, Sonia Baião Rodrigues. Fazenda Santa Cruz e as transformações da política real e
imperial em relação ao desenvolvimento brasileiro. 1790-1850. Dissertação de Mestrado, UFF,
1974. p. 87.
3
rumo ao inexorável. No entanto, parece fazê-lo com mais vagar. Isso nos dá a
oportunidade de inserir nas memórias do caminhante jesuíta mais algumas
lembranças. Provavelmente, quem quer que ele fosse, teria conhecimento de
que, fazia um par de décadas, um tombo minucioso havia sido realizado, e às
terras de Cristóvão, outras vieram se juntar. Eram as terras de Manoel Velloso
de Espinha que possuía uma sesmaria na cabeceira do rio Guandu, fronteiriça
à dos padres inacianos.
6
No Tombo de 1731, do qual talvez ele mesmo tenha participado, os
limites da fazenda foram dados pelos seguintes marcos: a Freguesia de Sacra
Família do Tinguá, em Vassouras; a linha do Curral Falso, contígua à
Freguesia de Mangaratiba até o mar; os terrenos de Marabicu, a leste; e as
terras de Mangaratiba, a oeste.
7
Em meio ao pó que subia da estrada, o imaginário cura, já devidamente
acomodado, num suspiro vislumbrou um dos bairros de senzalas. Nem que
desejasse poderia se despedir pessoalmente de todos os escravos, somavam,
então, mais de setecentas almas que agora estavam, compulsoriamente,
sendo abandonadas.
6
Id.
7
Id.
4
Figura 1: Mapa com os limites aproximados da Real Fazenda de Santa Cruz segundo o Tombo
1731
1 – Terras de Cristóvão Monteiro e da Marquesa de Ferreira
2 – Terras de Manoel Velloso Espinha e seus filhos
2
1
Rio de Janeiro
5
Figura 2: Mapa do Povoado da Imperial Fazenda de Santa Cruz, 1848.
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7
1. Paço Imperial (construído no lugar da antiga igreja) e cruzeiro.
2. Terreiro central.
3. Largo do Teatro.
4. Igreja Nova.
5. Estrada para a Corte.
6. Cadeia.
7. Hortas.
8. Plantações de capim.
9. Hospital.
10. Botica.
11. Hospedaria.
12. Conjunto com armazém, telégrafo e escrivão.
13. Habitações dos escravos.
14. Casa do vigário.
Figura 3: Paisagem da Real Fazenda de Santa Cruz
Jean-Baptiste Debret. “Fazenda dse Santa Cruz” (1823? 1818?). In Voyage pitoresque et historique au Brésil. v. 3. Paris, 1834.
8
Entre suspiros e imprecações é possível imaginar o cortejo dos
sacerdotes deixando com má vontade as terras da fazenda. Com o máximo de
pertences atados às carruagens e animais de carga, tem início a derradeira
procissão dos inacianos em Santa Cruz. Tomando o rumo oposto ao habitual,
seguiam agora da igreja para fora, atravessando morosamente o terreiro
central.
Xingamentos que vazavam pelos cantos das bocas habituadas a Te
Deum, certamente houve. Um sentimento de injustiça os temperava com um
sabor ainda mais acre. Estava nos planos de Pombal que as propriedades dos
padres fossem seqüestradas pelo Estado português. Assim, a Fazenda de
Santa Cruz, com todo o seu mundo à parte, autônomo e auto-suficiente,
passou para as mãos da Coroa. Um roubo, diriam os curas. Uma questão de
Estado, retorquiria Pombal.
A partir daí, o que foi feito de Santa Cruz? As opiniões são divergentes.
Certamente o nosso sacerdote fictício acharia uma lástima, assim como, quase
cem anos depois, o deputado Rafael de Carvalho, membro da Comissão de
Contas da Tutoria de S.M. AA. Imperiais, taxaria a fazenda de “viúva aflita”
pelos desmandos e pela ingerência com que seus negócios eram conduzidos.
Tanto nos importa o que o rei e os seus fizeram de Santa Cruz, quanto como
os seus mais numerosos habitantes perceberam e sentiram essas mudanças.
Interessa-nos, enfim, como aqueles que se diziam servos de Santo Inácio se
puseram a serviço do Imperador.
Tarefa difícil a que escolhemos. Não há um único relato de escravos que
nos conte como isso se deu, nem sequer observadores a nos dar suas
9
impressões. O que se tem são os inventários onde os escravos figuram, graças
ao seu status de mercadoria. No ano de 1971 foi realizado um grande
inventário, o qual pudemos ler, assim como o de 1817 que foi atualizado até o
ano de 1821. Destarte, temos as informações sobre nascimentos, batismos e
óbitos ao longo de cinco anos. Além destes inventários, temos ainda relatórios,
cartas e resumos estatísticos que vão nos auxiliar a compreender o que se
passou em Santa Cruz de 1791 a 1821.
Vejamos o que é possível fazer.
10
2. Uma grande galeria a ser visitada
Ao inventariar as idéias que nortearam aqueles que nos precederam no
trato com o mesmo objeto de estudo, é necessário que tracemos um roteiro;
que escolhamos um critério para presidir o percurso pelas idéias afora. José
Murilo de Carvalho, em um texto publicado na Topoi - Revista de História,
8
trata
exatamente desta escolha. Neste artigo, são apresentadas algumas
possibilidades para a história das idéias.
Tradicionalmente, segundo o autor, ao fazer-se uma incursão pelo
exame de idéias, o processo de montagem do roteiro seguia dois critérios
básicos: ou bem se seguia apenas um elenco de autores, um tanto estanques
entre si, ou bem se os enfeixava em correntes de afinidades. No primeiro caso,
o pensador é o centro da análise, as idéias são compreendidas ligadas à
personalidade que as produziu e descritas basicamente em conexão exclusiva
com o seu autor. Alguns trabalhos de história que partem deste critério ainda
recorrem a uma contextualização dessa autoria, tentando apreender a
produção intelectual como resultado de sua perspectiva do desenrolar dos
acontecimentos a sua volta, ou de influências recebidas ao longo de sua
biografia.
No segundo caso a busca seria por um, ou alguns, pontos em comum
entre grupos de autores. Desse modo, as idéias só seriam plenamente
cognoscíveis a partir do contexto histórico, gerando correntes de pensamento,
como as liberais, fascistas, marxistas,... Essas afinidades trariam em si a
8
Cf. CARVALHO, J. Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”.
Topoi - Revista de História. No. 1. Ano I. 2000. pp.123-152.
11
essência do pensamento, produto, no mais das vezes, das circunstâncias
históricas. Abandona-se a análise individual e opta-se por uma análise onde o
autor, isoladamente, não pode ser plenamente compreendido.
Mas há ainda uma outra possibilidade, alerta-nos José Murilo de
Carvalho, que seria um esforço para compreender os textos também a partir da
recepção, dos argumentos, do texto e do estilo. Trata-se de um exame muito
mais abrangente, já que investiga múltiplos aspectos da produção intelectual,
por isso mesmo mais difícil e, por vezes de resultado incerto.
Ainda assim tentaremos avaliar o debate acerca da escravidão de modo
a incorporar, quando possível, um exame mais amplo dos textos. Daremos
ênfase aos autores católicos do século XVIII e ao debate do século XIX, pela
maior relação que estas idéias têm com o corte temporal estabelecido em
nossas fontes. Por se tratar de uma propriedade real, e posteriormente
imperial, interessa-nos também avaliar o pensamento das figuras politicamente
relevantes, de certo modo representantes dos grupos ligados à administração
dos domínios reais.
Quanto ao século XX, interessa-nos analisar alguns tradicionais como
Gilberto Freyre e Caio Prado, e a repercussão destes em determinados
escritos posteriores. Por fim, chegaremos às mais recentes interpretações da
escravidão, privilegiando autores que se dedicam à investigação da formação
de núcleos familiares e outros laços de parentesco entre os cativos do sudeste.
12
2.1. Os viajantes e o catolicismo pró-cativeiro
A querela escravista que se desenvolve no final do século XIX,
principalmente pelas inevitáveis interrogações - tácitas ou não - geradas com o
fim da Guerra do Paraguai e que culminaram na abolição do cativeiro, liga-se
às manifestações anteriores não apenas pelos argumentos, mas pelo próprio
uso do estilo retórico. Nos séculos anteriores, os principais expoentes da
retórica jesuítica no Brasil lograram estipular um cânon de argumentos básicos
e comuns à maior parte deles. Segundo Ronaldo Vainfas,
9
os principais
autores que espelham esta ordem de argumentos seriam: Antônio Vieira, João
Antonil, Manuel Ribeiro da Rocha e Jorge Benci.
A fonte básica de autoridade neste caso é a religião, espelhada na
doutrina católica. Em última instância, a fonte apresentada é a mais inconteste
possível, a Bíblia - a palavra de Deus - e a Patrística - o legado dos Padres da
Igreja. Daí deriva uma íntima relação entre o cativeiro e o pecado original,
obtida de Santo Agostinho. Um erro pretérito como causa da condição dos
negros também é encontrado na maldição de Can.
10
Dentre os filhos de Noé,
Can, que teria dado origem aos etíopes, foi o que violou a nudez e embriaguez
de seu pai, fazendo jus à punição que viriam receber seus descendentes. Daí a
condição de penúria e nudez dos negros no Brasil.
De certo modo, esta perspectiva de escravidão-castigo permitiu a
Antônio Vieira deslocar o sentido do Salmo 87
11
até transformá-lo na base
9
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão. Petrópolis: Ed. Vozes. 1986. pp. 87-91.
10
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo.
1977. p. 65.
11
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão. Petrópolis: Ed. Vozes. 1986. p. 96.
13
argumentativa para uma escravidão-redenção. Se a escravidão era produto do
pecado, seus padeceres poderiam se converter em fonte de redenção para os
cativos que não apenas deveriam aceitar o jugo, mas serem gratos por ele.
Neste jugo, segundo Vieira, os etíopes se assemelhariam a Cristo nos seus
sofrimentos e seriam recebidos na Cidade Celestial.
A idéia de um cativeiro redentor também é observada na obra de um
outro sacerdote. Secular, mas educado por jesuítas, Manuel da Rocha
escreveu o Etíope resgatado, empenhado, sustentado, instruído, corrigido e
libertado, que expressa, já no seu título, a idéia de que a escravidão era veículo
de crescimento para os cativos. A marca diferencial de Manuel da Rocha é a
indicação teleológica da manumissão, redenção terrena, ainda que remota, do
cativo.
Ao cabo de tudo, a versão cristã da escravidão transforma o cativo em
alguém a ser considerado, alguém cujo interesse último, a conversão e
salvação, devem ser cuidados, mesmo que eles não concordem com isso. O
que contrasta com a versão clássica, baseada no despotismo, do predomínio
exclusivo dos interesses dos senhores. Poderemos observar, mais adiante, os
reflexos que estas duas fontes terão nas reflexões do século XX,
especialmente na obra de Gilberto Freyre, que as põe em contato.
Do final do XVIII para o início do XIX, o bispo Azeredo Coutinho
extrapolou a argumentação retórica tradicionalmente usada pelos seus
predecessores. Em primeiro lugar, rompeu com a estrutura mais
freqüentemente usada nos textos, articulando as suas idéias em sentenças
seqüenciais, buscando uma lógica impecável. Em segundo lugar, há um grupo
interlocutor claramente definido: os filósofos iluministas. Azeredo Coutinho
14
estava empenhado em desarmar os membros da “nova seita filosófica” e o
campo desejado para tanto era a lógica.
O conceito de pacto social foi o primeiro a ser atacado, já que para o
autor a sociabilidade é parte da natureza humana, independente de pactos.
Além disso, os chamados direitos naturais foram igualmente desqualificados
pela contestação da “razão natural”. De tal modo, a liberdade como direito
natural seria uma falácia. Não apenas isso. A natureza também serviu de
parâmetro para a manutenção do cativo nos seus “grilhões-libertadores”. Isto é,
volta à cena o argumento da escravidão redentora, dessa vez como
civilizadora. Se a natureza não trabalha por saltos, o processo de erguer e
civilizar o africano não poderia se dar de um só golpe.
O mais curioso no texto de Azeredo Coutinho é que a lógica entra como
um argumento de autoridade. Nas suas sentenças, a figura divina é substituída
pela natureza, segundo o autor, para que possa ser mais bem compreendido
pelos adeptos da “nova seita filosófica”. É como se dentro da tradição retórica
luso-brasileira, Coutinho estipulasse uma variante pelo uso da lógica que a
princípio destoa, mas que em certo sentido o insere nesta mesma tradição, na
medida em que a lógica foi utilizada, em última instância, para dar autoridade a
seus argumentos.
Mas uma outra lente observaria também a escravidão, dando-nos uma
perspectiva diferente. Com o declínio das relações monopolistas entre Portugal
e Brasil, o século dezenove inaugura um período de múltiplas interpretações da
vida brasileira. A maior freqüência com que os estrangeiros desembarcavam e
viajavam pelo interior, associada a uma maior penetração das idéias liberais,
15
criaram condições favoráveis ao incremento do escopo de descrições e
interpretações do nosso cotidiano. E, bem no meio deste, a escravidão.
O trabalho da professora Ilka Boaventura Leite
12
nos mostra que os
diversos viajantes que aqui aportaram criaram, ao longo do século XIX, um
vasto repertório de observações. A profusão de escalas de mestiçagem e a
crescente população “não-branca” causara impressões distintas nas retinas
dos europeus que aqui passaram, pesquisando, observando, anotando,...
Baseado nos resultados obtidos pela professora Ilka B. Leite, é possível
perceber que para alguns destes viajantes, como John Mawe, Johann Emanuel
Pohl ou George Gardner, o relacionamento entre senhores e escravos era
bom, com apenas algumas exceções. Ainda mais, Pohl acredita que não
apenas os escravos no Brasil são mais bem tratados do que em outras partes
do mundo colonial, como ainda crê que suas lidas são menos árduas que as de
um trabalhador braçal europeu.
Há ainda os que, como Saint-Hilaire, Bunbury e Freireyss, vêem com
desconfiança este relacionamento, apelando para algumas pistas disponíveis
no seu campo de observação para colocar em xeque tal idéia. Bunbury
questiona:
... Não sei, de fato, se as leis ostensivamente concedem ao senhor o
poder de vida e de morte; aliás, creio que não; mas se as leis são tão
ineficientes mesmo para a proteção dos cidadãos livres, é claro que
não podem oferecer segurança alguma a uma infeliz raça de homens
que são privados de todos os direitos sociais e políticos. Uma
circunstância que parece indicar que a condição dos escravos se
torna, muitas vezes, insuportável é o número elevado de fugitivos
...
13
12
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem. Belo Horizonte: Editora UFMG. 1996. pp.
106-129.
13
BUNBURY. apoud. LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia de viagemI.Belo Horizonte: Editora
da UFMG.1996. p. 212.
16
Paira também no relato de Freireyss, uma desconfiança de que os
abusos do poder senhorial eram freqüentes, e indicavam os crimes cometidos
por escravos contra os seus senhores.
Mas de uma forma geral, para estes europeus o âmago da questão está
na mistura das raças: a miscigenação seria, como benção ou maldição, a
herança da escravidão à sociedade brasileira. Assim inicia-se uma certa
polarização em relação à expectativa do que a escravidão produzirá com o
passar dos anos.
No que toca especificamente a formação de famílias entre os escravos,
as opiniões dos viajantes são díspares. Rugendas, Saint-Hilaire e Koster,
chegam a mencionar um incentivo dado pelos senhores ao matrimônio regular
de seus cativos. Outros são enfáticos na condição de promiscuidade e de
anomia que se instalava entre os escravos, impedindo que se formassem
uniões estáveis ou mesmo matrimônios. Charles Ribeyrolles é um destes
autores. Categórico, ele escreve sobre as senzalas: “Mas nelas não há
famílias, apenas ninhadas”. De certa forma, inicia-se nas divergentes opiniões
dos viajantes um longo debate que esteve de pé, embora em outros termos,
em dias que ainda não vão longe.
Talvez o consenso se estabeleça em relação às propriedades
eclesiásticas. Não é raro encontrar referências à escravidão nestes pontos em
particular.
14
Ali a tendência geral era a de que todos estivessem ligados a um
núcleo familiar. Mas não apenas isso; o tipo de tratamento dispensado também
era qualitativamente mais elevado que nas demais propriedades. Menor carga
de trabalho, maiores regalias, direito a pequenos rebanhos,...
14
Gilberto Freyre, por exemplo, assume a informação de Loreto Couto sobre o bom trato dos beneditinos
aos seus cativos. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2000. p. 492.
17
Posteriormente estas diferenças chegaram a ser interpretadas como
constitutivas de um criadouro de escravos. Destarte, todo o incentivo dado
principalmente pelas ordens religiosas detentoras de grandes propriedades,
estaria ligado a uma diferente concepção da escravidão. Diferença essa, não
de ordem moral, mas de ordem econômica. Com estes cuidados, os curas
estariam em busca de um cativo ainda mais barato do que os que eram
oferecidos pelo tráfico.
Uma tal interpretação das intenções sacerdotais, nos revela uma
perspectiva muito bem definida na conceitualização do escravo. Definida pela
animalidade e pela já relatada anomia. Assim, qual “gado humano”, posto junto
e em condições favoráveis, os escravos se reproduziriam literalmente “em
cativeiro”, presumidamente guiados pelos seus instintos mais primitivos. Por
outro lado revela uma longa tradição da interpretação dos religiosos como os
mais perspicazes e laboriosos dos colonos do Brasil, talvez até além do que
pudessem sê-lo.
18
2.2. O século XIX: entre a escravidão e a abolição.
Em termos mais amplos, um outro motor das discussões sobre o
cativeiro no século XIX, são as transformações geradas pela independência do
Brasil em relação a Portugal. A partir daí, alguns autores passam a descrever a
escravidão como um obstáculo à formação de uma nação civilizada, ou
mesmo, liberal. Certamente esta perspectiva não era em absoluto unânime,
pois muitos não viam oposição concreta entre a civilização ou o liberalismo à
brasileira e a escravidão.
Neste debate destaca-se, ainda no início do século, a figura de José
Bonifácio. Em sua tese de doutorado, Ana Rosa Cloclet da Silva
15
mostra que
apesar de ter ingressado na Universidade de Coimbra após o período
reformista de Pombal, em plena “Viradeira”, suas influências e seus
posicionamentos se vinculam diretamente ao reformismo ilustrado português.
Os reflexos disto podem ser percebidos no seu pensamento posterior, no que a
autora chama de fase nacional.
É nessa etapa que seus escritos acerca da formação nacional
mencionam freqüentemente o problema da escravidão, e como esta se
colocava qual um obstáculo à construção de uma nação moderna e liberal. O
Andrada chega a enviar uma Representação à Assembléia Geral Constituinte e
Legislativa sobre a escravatura, em 1823. Nela, arrola uma série de motivos
pelos quais o Brasil deveria se livrar o quanto antes da escravidão.
15
SILVA, Ana R. C. da. Construção da Nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio: 1783-
1823. São Paulo: Editora da Unicamp. 1999.
19
Do amplo escopo de argumentos levantados por José Bonifácio em prol
da extinção da escravidão, destacamos os de ordem moral e religiosa, os de
ordem econômica e os que dizem respeito à segurança dos próprios senhores.
No primeiro grupo, temos o seguinte trecho onde o autor levanta os
argumentos tradicionalmente usados para defender o uso da mão-de-obra
escrava:
Para lavar-se pois das acusações que merecia lançou sempre
mão e ainda agora lança de mil motivos capciosos, com que
pretende fazer apologia: diz que é um ato de caridade trazer
escravos da África, porque assim escapam esses desgraçados de
serem vítimas de despóticos Régulos; diz igualmente que, se não
viessem esses escravos ficariam privados da luz do Evangelho
[...] diz que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e
horrível para outro doce, fértil e ameno; diz, por fim, que devendo
os criminosos e prisioneiros de guerra serem mortos
imediatamente pelos bárbaros costumes é um favor que lhes faz,
conservar a vida, ainda que seja em cativeiro.
16
Neste inventário de argumentos percebe-se o fundo da escravidão-
redentora utilizado pelos padres e religiosos que outrora dominavam o debate
sobre a condição do escravo no Brasil, que é totalmente desmontado logo em
seguida.
Homens perversos e insensatos! Todas essas razões
apontadas valeriam alguma cousa, se vós fôsseis buscar negros
à África para lhes dar a liberdade no Brasil [...] mas perdurar a
escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que
seriam, se alguns fossem mortos pela espada da injustiça [...]é de
certo um atentado manifesto contra as Leis eternas da Justiça e
da Religião. E por que continuaram e continuam a ser escravos
os filhos desses africanos [...] Fala contra vós a justiça e a
Religião.
17
16
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. organizado por Miriam
Dolhnikoff. São Paulo: Cia. das Letras; Publifolha . 2000.
17
Id.
20
Não há, segundo Andrada, nenhuma razão moral ou religiosa que
justifique o cativeiro, portanto a manutenção da escravidão constitui um erro
contra a humanidade. Neste sentido o autor assume em nome de Portugal e do
Brasil um pesado fardo. “Com efeito, Senhores, Nação nenhuma pecou mais
contra a humanidade do que a Portuguesa de que fazíamos outrora parte.”
18
José Bonifácio ainda tem em mente outros problemas causados pela
escravidão. De maneira bastante ampla, transparece no pensamento do autor
uma profunda preocupação com a condição de civilização que o país deveria
assumir. E novamente a escravidão se coloca como um obstáculo. Os hábitos
e costumes “inoculados” pelos cativos na sociedade branca a corrompem e lhe
põem a perder.
[...] nós tiranizamos os escravos, e os reduzimos a brutos
animais, e eles nos inoculam todos os seus vícios.
[...] As famílias não têm educação, nem a podem ter com o tráfico
de escravos, nada as pode habituar a conhecer e amar a Virtude,
e a Religião [...] E então, Senhores, como pode grelar a justiça e
a virtude, e florescerem os bons costumes entre nós?
19
A inferioridade moral que o autor confere aos cativos parece ser fruto do
próprio cativeiro, mas de qualquer modo, não pode haver nação civilizada sem
que haja primeiro o fim da escravidão. Um segundo e inevitável passo seria o
de instruir e civilizar os negros libertos, a fim de homogeneizar a sociedade
brasileira segundo o modelo europeu de civilidade. O ponto de partida para
esta empreitada seria o fim do tráfico, a exemplo do que fez a Inglaterra. “Pois
18
Id.
19
Id.
21
somos a única Nação de sangue Europeu que ainda comercia clara e
publicamente em escravos Africanos”.
20
Como dissemos anteriormente, não são apenas argumentos de ordem
moral que norteiam Andrada em seu combate contra a barbárie da escravidão.
O sistema escravista é apresentado como absolutamente improdutivo e
prejudicial à economia do país. Para Andrada, a escravidão subtraía a iniciativa
e o caráter empreendedor da elite brasileira.
... o luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e
da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão
espantoso? A escravidão, Senhores, porque o homem que conta
com os jornais de seus escravos vive na indolência, e a
indolência traz todos os vícios.
21
A crer no autor, sem a escravidão a elite brasileira seria amplamente
mais dada às grandes iniciativas, às ‘indústrias’ de vulto para economia do
país.
Além disso:
... a lavoura do Brasil, feita por escravos boçais e preguiçosos,
não dá os lucros com que os homens ignorantes e fanáticos se
iludem. Se calcularmos o custo anual da aquisição do terreno, os
capitais empregados nos escravos que o devem cultivar, o valor
dos instrumentos rurais com que devem trabalhar cada um destes
escravos, sustento e vestuário, moléstias reais e afetadas, e seu
curativo, as mortes numerosas, filhas do mau tratamento e da
desesperação, as repentinas fugidas aos matos e quilombos,
claro fica que o lucro da sua lavoura deve ser mui pequeno no
Brasil, ainda apesar da prodigiosa fertilidade de suas terras, como
mostra a experiência.
22
Em seu esforço contra a escravidão, Bonifácio apresenta como
economicamente enganoso o proveito que se tira da mão-de-obra cativa.
20
Id.
21
Id.
22
Id.
22
Certamente esta contestação se dirige aos que, como Antonil, pensavam que
os cativos eram “os pés e as mãos” da economia brasileira e os que, mesmo
mais tarde como José de Alencar, afirmam que o fim da escravidão se daria
“naturalmente” no momento em que a economia prescindisse dela.
Quanto aos argumentos religiosos, Andrada não cita o catolicismo,
manancial de defensores do escravismo, como fonte autoridade. A sua base é
a “sã religião” e seus argumentos muito mais próximos daqueles que o
cristianismo “quaker” saxão utilizou para condenar a escravidão. Mas seriam
apenas essas as razões para condenar o cativeiro?
Ao que tudo indica, não. Em alguns trechos de seus escritos transparece
um certo temor. Um medo da reação escrava. José Bonifácio crê que a
escravidão implica em um quantum de violência. Violência esta que partia
muitas vezes do senhor, mas poderia, em outras tantas, partir dos escravos.
“Querer fazer escravos, e por tanto que estes sejam mansos como cordeiros, é
um absurdo terminal”.
23
Para Andrada, seria apenas uma questão de tempo. Em breve estariam
se multiplicando os horrores produzidos por “uma multidão imensa de homens
desesperados que já vão sentindo o peso insuportável da injustiça que os
condena a uma vileza e miséria sem fim”.
24
Um motivo a mais para se pôr a
termo, em primeiro lugar, o comércio, e mais tarde, a existência de escravos
será a própria segurança dos senhores.
O fato de que tal ordem de argumentos tenha sido levantada, nos indica
que a segurança desses senhores estaria permanentemente ameaçada pela
23
Manuscrito de José Bonifácio. Coleção José Bonifácio do Museu Paulista apoud. SILVA, Ana
Rosa Cloclet da. Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio 1783-
1823. São Paulo: Editora da Unicamp. 1999. p. 199.
24
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. organizado por Miriam
Dolhnikoff. São Paulo: Cia. das Letras; Publifolha . 2000.
23
existência de cativos a lhe rodear. José Bonifácio está equacionando a
probabilidade de reação dos escravos. O exemplo de Palmares, tantos anos
depois, ainda permanece na memória dos senhores. “Tema o Brasil que se
formem novos palmares de negros!”.
25
Seguindo a necessidade de construir a nação, também se forma a
escrita de Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Escrita
esta, permeada pela preocupação da composição econômica, territorial e
étnica da pueril nação brasileira. Em sua História Geral do Brasil, trata a vinda
dos “colonos negros cativos” como um problema ainda por ser resolvido:
... mas fazemos votos para que chegue o dia em que as cores de
tal modo se combinem que venham a desaparecer totalmente no
nosso povo os característicos da origem africana, e por
conseguinte a procedência de uma geração, cujos troncos no
Brasil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro...
26
A introdução dos vigorosos braços que moveram a economia colonial do
açúcar, e mais recentemente, a imperial do café, tinha como efeito perverso a
inserção de uma massa de homens e mulheres marcados pela condição do
cativeiro. Condição a qual - não obstante o que já se anunciava - oxalá não
deixasse marcas na composição nacional. Assim, reconhecendo que a
miscigenação era um fato, Varnhagen limitava-se a torcer para que no futuro a
“combinação de cores” se revelasse pródiga para com o povo brasileiro e
atenuasse o passado cativo marcado na pele da nossa gente.
Chama a atenção que o cativeiro surge como um mal para a composição
do povo brasileiro, mas é imaginado como proveitoso para o cativo. Para o
Visconde - a bem da injustiça da captura de um africano, um insulto a sua
25
Id.
26
Id.
24
humanidade, a de sua família e a de sua pátria
27
- estes ao serem introduzidos
no Brasil, melhoram de sorte. Para comprovar tal hipótese, acrescenta:
E o certo é que passando à América, ainda em cativeiro, não só
melhoravam de sorte, como se melhoravam socialmente, em
contato com gente mais polida, e com a civilização do
cristianismo. Assim a raça africana tem na América produzido
mais homens prestimosos, e até notáveis, do que no Continente
donde é oriunda.
28
Neste raciocínio, o maior prejudicado com o processo de escravidão
teria sido o branco maculado pela miscigenação em sua índole européia, ao
passo que o negro teria sido beneficiado, coberto pelo verniz cultural que lhe
teria abrilhantado como nunca se fizera antes. A “escravidão-redentora” ganha
mais um argumento, desta vez comparativo.
Para além das benesses recebidas pelos negros aportados no Brasil,
ainda segundo o autor, estes teriam sido também agraciados com a escravidão
mais branda de todo o continente americano.
29
Neste ponto há uma
comparação com a escravidão, e mais com o racismo norte-americano, ”onde o
anátema acompanha não só a condição e a cor como todas as suas
gradações”.
Aqui vemos uma precoce menção, não apenas à suavidade do cativeiro,
bem como uma ausência de preconceitos mais rígidos para com as gradações
de cores geradas a partir da miscigenação. Ao que parece, o autor identifica
entre os brasileiros uma maior aceitação do mestiço. A princípio, seria de
estranhar, uma vez que ele próprio torce para que as marcas da origem negra
sumam e, portanto o próprio mestiço também.
27
VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil. 7a. Ed. São Paulo: Ed.
Melhoramentos. s/d. p.224.
28
Id.
29
Id. p. 223.
25
A solução para o aparente paradoxo no pensamento do autor seria
indicar a mistura como um caminho para a eliminação dos traços
característicos da herança negra. Enfim, estaria o autor apontando, por outras
vias, para um processo de branqueamento. Salva-se o mulato não pela metade
negra, quiçá nem pela metade branca, mas talvez pela promessa de superação
dos traços negros pelos traços brancos que traz em si.
Por esta inversão estaríamos redimidos do “pecado contra a
humanidade” perpetrado por Portugal (e conseqüentemente pelos brasileiros)
conforme prescrito por José Bonifácio.
Ainda durante o transcorrer do século XIX, com o avanço das pressões
da diplomacia inglesa e com o crescimento da oposição à escravidão, toma
vulto o movimento Abolicionista. Aqui no Brasil, as razões que se colocaram na
base de sua argumentação estavam muito mais ligadas ao problema de
constituição social da nação.
30
De certa forma, os argumentos fundamentais do
abolicionismo anglo-americano dos quakers, ligados a moral cristã e a noção
da escravidão como pecado, assim como a base filosófica do “direito natural”
do abolicionismo francês, parecem ter sido meros acessórios.
De qualquer modo, o abolicionismo forjou o pensamento de homens
como Joaquim Nabuco, autor de O Abolicionismo
31
, obra que é considerada a
mais expressiva do pensamento de Nabuco e um texto fundador da sociologia
brasileira. Trabalhando durante seu desterro em Londres, Nabuco parece ter se
empenhado em transmitir - e a distância o favorecia nisso - um relato do que
considerava as maiores mazelas da sociedade brasileira.
30
Essa discussão encontra-se em CARVALHO, José Murilo. “Escravidão e razão nacional”. in
____ Pontos e bordados - escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora UFMG.
1999.p.35-63
31
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Publifolha.
2000.
26
Na melhor tradição do abolicionismo brasileiro, seu intuito é demonstrar
a inviabilidade do progresso nacional sobre bases escravistas. Isso se coaduna
com o contexto do movimento abolicionista que embora contasse com amplo
apoio estrangeiro, não abria mão do arrazoado liberal para contestar o
cativeiro.
No capítulo intitulado “A escravidão atual”, o autor utiliza um artifício
extremamente interessante e expressivo. Uma vez que fala de fora do país,
imagina qual seria o melhor instrumento para dar a conhecer o Brasil aos
estrangeiros. Ei-lo: os jornais.
Sobre a escravidão, Nabuco postula serem os anúncios suficientes para
dar uma boa idéia do que significa o cativeiro no Brasil. Compra, venda,
aluguel. Os negros são anunciados comomucama, moleque, bonita peça,
rapaz, pardinho,...” para todo o tipo de serviço.
As fugas, cujos anúncios quase sempre são “acompanhados da vinheta
do negro descalço com a trouxa no ombro”, trazem descrições que, segundo o
autor, muitas vezes são baseadas em marcas de castigos empreendidos no
próprio cativeiro, recompensam e alimentam a profissão de capitão-do-mato.
Ainda figuram nas páginas da imprensa, narrativas de crimes cometidos por
escravos contra os seus senhores e de bárbaros e, por vezes, fatais castigos
desferidos por estes para se vingar daqueles.
Nabuco constrói uma descrição da sociedade escravista que parte da
desumanização dos cativos anunciados a título de mercadoria, sem nome, só
com atributos de utilidade, e chega na barbarização da sociedade, indiscutível
fruto da manutenção do cativeiro. No entanto, os mesmos jornais de onde
27
foram tiradas estas ilações do deputado pernambucano, proclamam que a
escravidão no Brasil é a mais branda de todas. Nabuco ironiza:
... de fato melhor para este [o escravo] do que para o senhor, tão
feliz pela descrição, que se chega a supor que os escravos, se
fossem consultados, prefeririam o cativeiro à liberdade; o que
tudo prova, apenas, que os jornais e os artigos não são escritos
por escravos, nem por pessoas que se hajam mentalmente
colocado, por um segundo, na posição deles.
32
O deputado desdenha da brandura atribuída ao cativeiro. Destarte, tal
brandura precisa ser contestada sob pena de não lograr os objetivos
abolicionistas. Se a escravidão brasileira fosse benéfica ao negro como se
argumentava na visão da “escravidão-redentora”, e branda como aventam os
artigos dos jornais, não haveria a necessidade moral de extinguí-la, antes
deveria ser incentivada. Mas, além deste, o deputado apresenta outros
argumentos em prol do abolicionismo.
A Constituição Outorgada de 1824 apresentava, além da centralização
de poderes nas mãos despóticas de D. Pedro I, uma face liberal. Em seu
conteúdo figuram artigos que resguardam o indivíduo de uma série de práticas
que atentam contra a sua integridade. Por exemplo: estavam abolidos “os
açoites, a tortura, as marcas de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”, e
mais: “Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude da lei”.
Joaquim Nabuco salienta que a brecha, diante de tais garantias
individuais, que a Constituição deixava para a existência da escravidão se
assentava na omissão - uma vez que não havia menções ao cativeiro, ou
qualquer regulamentação da posse de escravos - e na garantia da propriedade
privada. De algum modo, o autor tem razão quando denuncia que pela
32
Id. p. 88.
28
constituição de 1824 não havia a escravidão. Tal omissão viria da vergonha e
opróbrio que o cativeiro lançaria sobre a nação, pesados demais para
figurarem em Carta Magna. Sobre o cativo, diz Nabuco: “A constituição não se
ocupou dele.”
A Constituição fora feita para a eternidade, não importa quão transitória
esta seria; mas o cativeiro era, bem se sabia, provisório. Deste descompasso
surge uma prática múltipla, o nosso “não-código negro” identificado na
multiplicidade decisória do Judiciário nas questões envolvendo o Direito e a
escravidão.
33
Como dissemos antes, o pensamento abolicionista, e em especial as
letras do deputado, tratam a escravidão como um obstáculo à formação
nacional. De certo modo, os vários tipos de evolucionismo e a perene crença
que este pensamento traz de que o futuro precisa superar o passado, impõe
àqueles que pensam o Brasil na sua formação uma questão: O que vai
representar, em alguns anos, a marca do passado cativo? Ou ainda, poderia o
Brasil se desenvolver quando uma parte de sua população foi lançada ao
desespero e a desumanidade e, ao mesmo tempo, inoculou toda sorte de
cios nos mais tenros anos da formação nacional?
Sem dúvida alguma, as preocupações que se articulavam coevamente
em torno da escravidão são mais a respeito de seus efeitos, embora Nabuco
tenha mergulhado na sua constituição e essência. Neste final de século XIX, a
escravidão se alinha com a questão da constituição étnica do brasileiro.
Pairava no ar uma vaga esperança, catalisada por Sílvio Romero às vésperas
da abolição da escravidão:
33
Cf. GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambigüidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
1994.
29
Pela seleção natural, todavia, depois de [o negro ter] prestado o
auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a
preponderância até mostrar-se puro e belo como no velho
mundo.
34
Quiçá fosse possível voltar às origens que, de fato, pouco existiram.
Pensar a escravidão no século XIX, como o é ainda hoje - já século XXI -
é tentar entender como funciona a sociedade brasileira e como se poderia
formar uma nacionalidade a partir de “tanto metal heterogêneo” numa
amálgama cujo cadinho ainda está quente.
34
Apud. SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1976. p. 53.
30
2.3. O século XX - interpretando o passado.
“Naturalmente o que antes de mais nada, e acima de
tudo, caracteriza a sociedade brasileira de princípios do
séc. XIX é a escravidão. Em todo lugar onde encontramos
tal instituição, aqui como alhures, nenhuma outra levou-
lhe a palma na influência que exerce, no papel que
representa em todos os setores da vida social.”
Caio Prado Júnior.
No início do século XX foi lançado um marco da reflexão acerca do
passado colonial, inclusive no que respeita à escravidão. Casa grande &
senzala,
35
de Gilberto Freyre, chegava com a promessa de separar raça e
cultura na análise sociológica da formação brasileira. Inaugurava, portanto,
uma via alternativa de investigação do passado colonial e escravista do país.
Freyre buscou valorizar o fundamento híbrido, elástico e adaptável da
colonização portuguesa. Para o autor, ao contrário dos ingleses mais
assépticos nos seus contatos, os portugueses seriam muito mais propensos a
toda sorte de intercursos - sejam eles culturais, sociais ou sexuais. Na verdade,
Portugal já seria um caldeirão onde se fundiam diversas origens: européia,
judaica e moura.
Mesmo que mantenha a idéia de raça presente em vários momentos do
seu texto - por exemplo, na descrição dos judeus - o autor procura valorizar a
mestiçagem, tirando dela o sentido de degeneração. Neste mesmo movimento,
parece minimizar os conflitos e, ressaltando a adaptabilidade, acaba forjando
uma impressão um tanto idílica do escravismo colonial. Ao menos é o que
levantam os mais contundentes críticos de Freyre, freqüentemente se valendo
de passagens onde o autor fala de uma solidariedade entre senhor e escravo
que os unia na familiaridade dos ranchos, para desferirem suas imprecações.
35
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record. 2000.
31
Seria, então, esta a mais clara e evidente interpretação das páginas de
Casa Grande & Senzala? O sadismo do senhor e o masoquismo do escravo,
imaginados por Freyre, seriam a expressão de uma sociedade alheia a
antagonismos? Ao que parece, há nas mesmas páginas de Freyre elementos
que apontam para uma visão não tão paradisíaca da sociedade colonial e do
cativeiro.
Ao contrário. Antes do mais, o mundo colonial luso-brasileiro se articula,
para Freyre, segundo um intenso jogo de antagonismos que se
complementam. É o antagonismo que sustenta a sociedade escravista,
constituída entre a dor e o prazer, entre a opulência e a miséria, entre o
cativeiro e a liberdade. Antagonismos estes, fruto da dupla vertente de
concepções da escravidão perceptíveis em Casa-Grande e Senzala.
Ricardo Benzaquem de Araújo
36
mostra que interagem no pensamento
de Freyre, além da concepção cristã, patriarcal, que coloca o escravo como
responsabilidade cristã de seu senhor, na dita camaradagem, também a
clássica, fundamentada no despotismo, no mando e no predomínio dos
interesses dos senhores. A reflexão cristã sobre o cativeiro, como vimos,
justifica-o, em grande parte, pela sua função redentora. De certo modo, isso
traz o escravo para o âmbito dos cuidados de seu senhor, que lhe teria pelo
menos as obrigações cristãs a cumprir. A partir dessa face inclusiva, Gilberto
Freyre pôde trazer o escravo para dentro da casa-grande, mas também
reconheceu o que de despótico havia nessa relação.
Por ambíguo que pareça, é possível realmente perceber em vários
momentos da obra a violência do senhor sobre seus escravos. Na própria
36
ARAÚJO, Ricardo Benzaquem. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34. 1994.
32
argumentação acerca do sadismo senhorial, Freyre sustenta que este conduz a
um comportamento violento por parte dos senhores.
... Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente
no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de
negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença
capoeiras, galos e canários - tantas vezes manifestado pelo
senhor de engenho quando homem feito; no gosto de
mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho
bacharel quando no exercício de posição elevada , política
ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de
mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado
em casa-grande de engenho.
37
Destarte, as alusões a uma vida não tão penosa seriam justificadas pela
sujeição do escravo ao despotismo do seu senhor. Não sendo propriedade de
si mesmo, este receberia algumas regalias na medida em que estas
favorecessem, ainda que indiretamente, o seu senhor. É o próprio Freyre que
escreve:
É ilusão supor-se a sociedade colonial, na sua maioria uma
sociedade bem alimentada . Quanto à quantidade, eram-no
em geral os extremos: os brancos da casa grande e os
negros das senzalas. Os grandes proprietários de terras e
os pretos seus escravos. Estes porque precisavam de
comida que desse para os fazer suportar o duro trabalho da
bagaceira.
38
O trabalho dos escravos que se revertia em rendas para os senhores,
era o que lhes facultava uma alimentação. Freyre não fala da magnanimidade
dos senhores, muito menos cita alguma comoção senhorial como fator do
estabelecimento de solidariedades destes com os seus cativos.
De mais a mais, se Casa Grande & Senzala não cumpriu sua promessa
de separar raça e cultura, certamente vez grandes avanços nesta direção.
Como exemplo de tais avanços figura a argumentação acerca da sexualidade
37
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record. 2000. p.122.
38
Id. p. 105.
33
dos cativos, para Freyre, fruto do desequilíbrio sexual produzido pelo cativeiro
e não uma marca racial inata.
Na esteira do pensamento que já se entende nacional e busca sua
origem e formação, surge, ainda na década de trinta, a Formação do Brasil
Contemporâneo.
39
Nas reflexões apresentadas por Caio Prado, o sentido geral
da colonização e a concepção teleológica da história que o supõe, assinalam o
cativeiro como motor da lógica econômica colonial. Nenhuma importância
própria teria a escravidão, senão a de força motriz da economia colonial.
Entretanto quando lemos os capítulos finais, nos quais o autor discute a
vida social brasileira, temos a impressão de que, de alguma forma, a
escravidão representou mais que isso para o autor. A primeira afirmativa que
faz, neste ponto do texto diz exatamente:
Naturalmente o que antes de mais nada, e acima de tudo,
caracteriza a sociedade brasileira de princípios do séc. XIX é a
escravidão. Em todo lugar onde encontramos tal instituição, aqui
como alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na influência que
exerce, no papel que representa em todos os setores da vida
social.
40
Seria esta influência apenas a barbárie e ineficiência do sistema de
trabalho - tal como apresentadas quando o autor trata dos latifúndios? Parece
que não. Em primeiro lugar, Caio Prado distingue a escravidão moderna da
antiga, colocando-a como fruto do egoísmo e da ganância dos colonizadores.
Ganância pela qual, pagar-se-ia elevado preço.
Se na Antigüidade os cativos eram “recrutados em todas as partes do
mundo conhecido, e que nela se concentrava o que então havia de melhor e
39
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense;
Publifolha. 2000.
40
Id.p. 277.
34
culturalmente mais elevado”, na escravidão moderna os ibéricos primaram por
recrutarem povos bárbaros, “de nível cultural ínfimo, comparado ao de seus
dominadores”.
41
Mas não apenas isso. Ao trazê-los de seu habitat original, os
europeus queriam apenas a sua porção inumana: a força muscular dos
homens ou a “passividade da fêmea na cópula”.
Se por um lado os europeus não solicitavam senão a mais rasteira
contribuição dos negros cativos, estes, por seu turno, se fizeram presentes,
ainda segundo Prado, apenas na passividade de sua mera existência. Em
outras palavras estaríamos diante de um cativeiro máximo, um jugo desmedido
de brancos sobre negros. Destes, só se obteria o que fosse solicitado, já que
lhes é imputada uma passividade que explica, inclusive, o domínio do
contingente populacional de menor peso, o branco, sobre o restante da
população colonial.
De um modo geral, as abordagens que pudemos inventariar até aqui se
referem à escravidão não como um objeto em si, mas como um gerador de
problemas raciais a serem resolvidos ou como uma parte do conjunto que
justifica o que somos modernamente - para o bem ou para o mal. Na segunda
metade do século vinte, no entanto, emerge a escravidão colonial como um
objeto legítimo de estudos. A partir daí, a busca será compreender os
mecanismos e características do cativeiro moderno, deixando de lado o juízo
do inevitável: que somos fruto de uma sociedade escravista.
Nesta nova etapa de discussões a obra de Gilberto Freyre assume um
papel central. Forma-se em torno de Casa grande & senzala, um debate
alimentado pelas várias interpretações das idéias de Freyre do que seria a
41
Id. p. 280.
35
escravidão. Assim, concordantes e discordantes se alinham munidos de toda a
sorte de argumentos para defender suas posições. Além do mais o cativeiro
moderno vai se constituindo cada vez mais em tema central das discussões,
deixando de ser tema acessório da colonização ou da formação étnica
brasileira.
Nos anos 50 e 60 os estudos da escravidão ganham um sentido mais
hodierno, na medida em que se aprofundam as tensões sociais com o
surgimento e crescimento dos movimentos de direitos civis - em especial o dos
negros. No Brasil, as patentes desigualdades sociais e especialmente os
discursos desenvolvimentista e reformista, marcam a vida acadêmica. Desse
modo estudar a escravidão é, além do mais, investigar as razões do atraso
econômico e das dificuldades em superá-lo. Por outro lado, a questão que
polariza propriedade privada e reforma agrária, se torna a cada dia mais
candente. Seria esta uma reforma que espelharia aquela, gradual, que
culminou no 13 de maio?
Alinha-se na chamada escola paulista, Florestan Fernandes, Otávio
Ianni, Emília Viotti da Costa e Fernando Henrique Cardoso, entre outros. A
escravidão nas obras destes autores, embora estivesse profundamente
identificada com a moção do sistema mercantil colonial, também era
evidenciada pela violência como sua mais expressiva forma de reprodução.
Essa marca bem como a condição jurídica e identidade de “peça” - no dizer de
Fernando Henrique “sua auto-representação como não-homem”
42
- formaria a
base das relações sociais em torno do cativeiro.
42
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1962. p. 155.
36
Emília Viotti da Costa chega a considerar esta marca como interdito a
um relacionamento cultural efetivo, e segundo a autora
... as duas camadas raciais permaneciam, a despeito de toda sorte
de contatos, intercomunicações e intimidades, dois mundos cultural e
socialmente separados, antagônicos e irredutíveis um ao outro.
43
O antagonismo, motor da história para os enfoques que se aproximam
da matriz marxista, se estabelecia, assim, de forma inequívoca.
Grosso modo, o conceito que subjaz a reflexão destes autores é o de
uma vida anômica. A ausência de regras ou de normas sociais e culturais se
transporia entre o escravo e toda uma séria de atitudes que dele se poderia
esperar. Assim, as fugas, a formação de famílias ou as práticas de resistência,
não seriam expressões de uma formação social. Como destaca Fernando
Henrique Cardoso:
Sua luta, quando houve, nada teve em comum sequer com os
“rebeldes primitivos” da Europa. (...) As lutas dos quilombos (...) e a
revolta pessoal do escravo que matava algum senhor e fugia não
eram embriões de uma luta social maior, capaz de pôr em causa a
ordem senhorial.
44
A contraposição ao cativeiro paradisíaco era a desumanização em um
cativeiro absoluto, onde o senhor tinha poderes de vida e de morte sobre o
escravo. Tinha poderes de torná-lo diferente do que ele realmente era.
Outra voz que engrossava o coro dos críticos a Freyre era a de Jacob
Gorender, especialmente em O escravismo colonial.
45
Um dos pontos centrais
da censura de Gorender à análise de Casa grande & senzala estava na
43
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966. p.
280.
44
CARDOSO, F. H. apud. SLENES, Robert W. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1999. p. 32.
45
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
37
pretensa amistosidade das relações entre senhores e escravos. Para o autor, o
cativeiro no Brasil redundava na morte como conseqüência de violentos
processos pedagógicos, “não menos iníquos [aqui] que em outras regiões
escravistas”.
46
No final da década de 70 e início dos anos 80, constroem-se outras
possibilidades de observação da vida escrava. Kátia Mattoso é uma das
primeiras autoras a tentar relativizar o cativeiro. Ao escravo passa a ser
atribuída uma vontade, um desejo de liberdade, ainda que a alforria não seja
plenamente sinônimo dela. Ser escravo no Brasil
47
é uma obra que tenta dar
conta da vida do escravo em suas diversas dimensões, desde a captura até a
eventual alforria.
Na obra de Mattoso há um espaço para que o escravo possa entrar no
jogo colonial. Embora não seja ele que dite as regras, a autora entrevê “toda
uma gama sutil de reações, invenções, adaptações originais ou repulsas
disfarçadas” por meio das quais os cativos buscam seu espaço no jogo,
certamente não muito amplo, mas existente. A se crer na autora, no entanto, a
família escrava não parece ter sido parte destas invenções.
Na sua análise, Mattoso parece concordar com os que a precederam de
que a vontade do senhor era elemento por demais proibitivo para que se
constituíssem famílias entre os cativos. Além disso, a diferença entre os
contingentes masculino e feminino também teria sido um obstáculo
intransponível para a constituição familiar escrava. De tal forma esta condição
seria impeditiva que os cativos insistiriam, a todo custo, em evitar a procriação,
ceifando os laços de maternidade e de paternidade da vida escrava. As poucas
46
Id. p.356-357.
47
MATTOSO, Kátia Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense. 1982.
38
crianças nascidas, também não conheceriam, segundo Mattoso, estes mesmos
laços.
Mas a questão não se encerra aí. A paz das senzalas
48
, de Manolo
Florentino e José Roberto Góes, é um dos estudos recentes que vem tentando
investigar a questão da formação de relações sociais cativas - de forma
particular a formação de parentesco.
Os autores apresentam um modelo teórico bem construído. Em primeiro
lugar considera-se que a população cativa estava sujeita a permanentes
entradas de novos elementos em seu meio. Dito de outra forma, algo que
necessariamente deveria influir na vida e na sociabilidade dos cativos seria o
tráfico atlântico de almas e suas flutuações. Neste caso, o estrangeiro seria tão
comum a ponto de produzir uma espécie de tensão social, gestando
permanentemente um conflito potencial. Assim, urgia a criação de mecanismos
que possibilitassem a pacificação, ou seja, que viabilizassem a convivência que
se lhes outorgava.
A formação de laços de parentesco seria, então, uma maneira de tornar
o estranho mais próximo, e portanto passível de convivência. Obviamente,
estes laços obedeceriam a regras próprias, como por exemplo a preferência
pela endogamia que seria relativamente abandonada em períodos de pico no
tráfico, quando, segundo os autores, haveria uma urgência em se aparentar.
Ao mesmo tempo, a formação de tais laços favoreceria ao senhor com a
pacificação de seu plantel. Pacificação esta que o permitiria recorrer ao tráfico
novamente, reintroduzindo novos estrangeiros que se integrariam ao plantel
por meio de novos laços parentais. Este mecanismo estaria, na realidade
48
FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1997.
39
transformando alguém que a princípio seria um prisioneiro, em escravo. O que,
por fim, permitiria a própria existência do cativeiro.
A conclusão que se chega é que a construção da identidade de escravo
estaria totalmente vinculada à possibilidade destes se relacionarem entre si na
condição de cativos. A julgar pelos resultados das pesquisas de Florentino e
Góes, da mesma forma que a diferenciação social gerada entre os senhores
era a essência do cativeiro na face branca, o parentesco o era na face negra.
Aos senhores, uma hierarquização dada pela apropriação da renda gerada
pelo trabalho cativo. Aos escravos, a possibilidade de viver enquanto tais pelo
estabelecimento de relações autônomas no ventre do cativeiro.
Também abordando o cativeiro pelo que este apresenta de político,
Robert Slenes, apresenta sua versão da família escrava em Na senzala, uma
flor
49
,um trabalho igualmente permeado de influências da antropologia. Para
Slenes, as dissensões entre os escravos, mesmo os de etnias diferentes, não
seriam tão relevante quanto para Florentino e Góes. Desse modo, a família
escrava seria mais uma forma estabelecida pelos escravos de manter uma
certa “resistência cultural”, ou seja, de frustrar as tentativas do senhor de
submetê-los por completo.
Para Slenes, o caráter pacificador seria secundário, como seria diminuta
a importância da renda política obtida pelos senhores, na consecução de
matrimônios e outros laços familiares. As forças essenciais que acabariam se
sobrepondo às demais seriam as trazidas da África sob a forma de lembranças
e heranças. Estas seriam a flor que teimou em sobreviver no meio inóspito do
cativeiro, e talvez tivesse sobrevivido exatamente por esta adversa condição.
49
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1999.
40
O percurso que foi feito até aqui demonstrou uma série propostas que
ampliaram a compreensão da sociedade escravista em questão e,
ultimamente, das redes que se instauraram relacionando os seus membros.
Mais do que isso, os estudos mais recentes buscaram compreender os
mecanismos que constituíam senhores e escravos enquanto sociedade. Sem
dúvida, o que mais interessa é compreender a escravidão fluminense e as
possibilidades de explicar os mecanismos que transformavam os prisioneiros
africanos em escravos.
Claro está que a família está no centro de várias das discussões sobre a
relevância das relações sociais. Seu papel na constituição de uma identidade
escrava vem se revelando cada vez mais fundamental, ainda que não se tenha
uma posição definida da sua utilidade (ou, se pelo contrário, era nociva) para
os senhores.
Talvez o estudo de plantéis isolado do tráfico, como os eclesiásticos ou
os plantéis reais, possa apontar de forma mais completa para mecanismos
familiares sustentáveis e perenes. Estes, se comparados com os padrões das
propriedades ligadas ao tráfico, poderão demonstrar o seu peso relativo, bem
como das lembranças e das reelaborações neste complexo jogo de forças.
41
3. Algumas idéias teóricas...
Chega, então, a nossa vez de tratar do tema. Após tantas idéias e
interpretações possíveis, difícil é tentar se inserir em tão seleta galeria. Mas
nos propomos a tentar produzir conhecimento e para tanto, devemos mostrar
como entendemos a construção do passado.
Diante de uma massa de dados empíricos como a que temos, o que se
impõe é a necessidade de criar meios que permitam tornar o aparente caos do
mundo vivido em algo inteligível. Qualquer taxionomia tem por compromisso
primeiro espelhar com o máximo de confiabilidade possível, descontados os
limites e as generalizações inerentes a qualquer processo analítico, a
realidade observada pelo pesquisador por meio da documentação.
Talvez resida aí uma tensão. Por um lado, temos a imperiosa
necessidade de correlacionar, aproximar e comparar os dados que lemos nas
fontes. Por outro, a tentativa às vezes bem sucedida, outras fracassada, mas
sempre complexa, de não cometer as rasteiras generalizações que dão
sentido, num único e curto golpe, a vários elementos aparentemente
desconexos. Generalizações que, ao cabo de tudo, traem o leitor,
apresentando-o a ilusão, nem sempre verossímil, de que a realidade é tão
simples e clara quanto o que se descreve.
Neste dilema parece se deparar, por exemplo, Max Weber, quando
tenta descrever a situação material dos trabalhadores rurais da Alemanha nas
42
províncias do Além-Elba.
50
Nesta tentativa de conhecer o meio rural,
especialmente do ponto de vista de seus trabalhadores, uma das primeiras
constatações que Weber apresenta ao seu leitor é que
... as diferenças na constituição do trabalho e no tipo de
assalariamento são extraordinariamente grandes dentro de cada
distrito, tente-se eliminá-las como se queira; e estas diferenças
aparecem mesmo entre propriedades quase contíguas.
51
Assim, difícil seria agrupar todos os trabalhadores do agro alemão sob
uma rubrica como “operariado rural” ou “camponeses”, sem cair nas
enganosas generalizações. Refinando a sua análise, o jovem Weber procura
classificar a situação material dos trabalhadores por meio de eixos de
interesses, isto é, por meio do comportamento do seu orçamento frente às
intempéries conjunturais. Claro está que aspectos subjetivos tiveram que ser
levados em consideração nesta análise, já que são muitos os fatores que
entram nesta equação. É o próprio Weber quem destaca:
... O importante aqui não é tanto determinar o montante efetivo da
receita do trabalhador, mas sim, de acordo com o tipo da mesma,
se é possível uma economia ordenada; se ele e o empregador se
julgam em uma situação boa, ou porque não, segundo suas
opiniões subjetivas, justificadas ou não; e que tendência existe
por tanto no interior das aspirações e interesses subjetivos de
ambas as partes, pois disto dependem os passos seguintes do
desenvolvimento futuro.
52
A idéia que um trabalhador faz de si mesmo, muito mais do que o que
se poderia chamar de realidade objetiva, é o que move os seus eixos de
interesse. Ampliando esse pressuposto, poderíamos deduzir que, para o autor,
50
WEBER, Max. “A situação dos trabalhadores rurais da Alemanha nas províncias do Além-
Elba - 1892”. in SILVA, José Graziano da e STOLCKE, Verena. São Paulo: Editora Brasiliense.
1981.
51
Id. p. 15.
52
Id. p. 17.
43
os critérios de ação no meio social são subjetivos, ligados à concepção que
cada indivíduo faz de si, do mundo que o cerca e da rede de relações na qual
está imerso. De certo modo, Weber está fugindo de um sistema classificatório
direto, com critérios geográficos ou baseados na renda bruta, por exemplo, e
buscando nuanças da vida camponesa.
Em um outro cenário completamente diverso do de Weber, escreve Karl
Polanyi. Seu trabalho gira em torno dos “estimulantes altamente artificiais
administrados ao corpo social”
53
para a formação de uma sociedade de
mercado no século dezenove e os efeitos desastrosos destes “estimulantes”
para a vida das pessoas comuns. A grande transformação nos chama atenção,
em primeiro lugar, para o fato de que o sucesso de uma tendência histórica
não representa a impossibilidade das demais em lhe fazerem oposição. Logo,
o estabelecimento de economia de mercado no século dezenove não
significou diretamente que nada foi feito a respeito pelas correntes que lhe
eram contrárias.
Mas o ponto central da obra de Polanyi é o uso de uma abordagem de
cunho antropológico para mostrar que, até o recente estabelecimento total de
uma sociedade de mercado, as ações, inclusive as econômicas, estavam
impulsionadas por motivações não-econômicas. O trabalho de antropólogos
como Marcel Mauss sustenta a argumentação de Polanyi. Segundo eles, as
sociedades em que o mercado não se auto-regulamentava, regiam suas
relações econômicas por outros princípios que não os da permuta, compra ou
venda.
53
POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Editora Campus. 1980. p.72.
44
Muito maior influência tinha, nessas sociedades, padrões como a
simetria, a centralidade e a domesticidade. Tais princípios garantiam a
circulação e a redistribuição de bens e serviços, fazendo com que o mercado
tivesse uma importância secundária, estando, portanto, as trocas
regulamentadas por princípios sociais.
Desse modo, Polanyi pôde compreender o século XIX inglês não
apenas como um momento em que se estabelece a organização de um
mercado a partir de mercadorias reais (produtos industrializados), mas
também como um ponto de resistência à formação de um mercado completo
daquilo que ele chama de mercadorias imaginárias, ou seja, terras, trabalho e
dinheiro.
Vários trabalhos de grande importância foram pautados na
argumentação de Polanyi. De certo modo, tornou-se possível interpretar de
uma forma mais profunda a dinâmica de sistemas de relações sociais até
então tidos como fruto da imperativa lógica de mercado. Essa quebra na
crença da onipotência e da onipresença do homo economicus na história, abre
um espaço para que se procure outros mecanismos que estariam se movendo
junto com as suas manifestações econômicas.
Os estudos da micro-história, em especial os de Giovanni Levi,
exemplificam o que estamos tratando. Mas não apenas ele. Estudos
desenvolvidos no Brasil, e acerca da vida colonial brasileira, também
demonstram o alcance desta concepção da construção histórica.
45
3.1. As contribuições da micro-história
Do ponto de vista da abordagem historiográfica, as últimas décadas se
mostraram profícuas. Na verdade, desde os tempos da “Escola dos Annales”,
cada vez mais os historiadores passaram a buscar novas formas explicativas
para fundamentar as suas pesquisas levando em conta fatores até então
desprezados. Mentalidades, imaginário, símbolo, cotidiano e estratégias
tornaram-se cada vez mais importantes para o tipo de compreensão do
passado que se buscava.
Mais recentemente temos duas correntes que vêm se revelando
bastante fecundas. Uma delas é nova história social inglesa, com destaque
para obra de Thompson que tem nos mostrado várias influências dos padrões
culturais e das relações sociais interferindo na lógica econômica. O conceito de
“economia moral” tem possibilitado a reinterpretação de uma série de ações de
movimentos populares.
Uma segunda vertente é a abordagem micro-histórica que analisaremos
aqui mais detidamente. Nem sempre dissociada dos conceitos manipulados
pela história social inglesa, esta abordagem, segundo um de seus principais
autores, foi construída a partir de referências teóricas variadas e se
estabeleceu inicialmente como uma prática em
...busca de uma descrição mais realista do comportamento
humano, empregando um modelo de ação e conflito do
comportamento do homem que reconhece sua - relativa -
liberdade além, mas não fora, das limitações dos sistemas
normativos prescritivos e opressivos.
54
54
LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”, in BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo:
Editora da UNESP. sd. p. 175.
46
Com isso fica mais ou menos claro que a micro-história se constitui no
fio da navalha entre a autonomia individual e a total determinação das
estruturas sociais que constrangeriam os indivíduos. Mais uma vez, o que
temos é o enfrentamento dos limites analíticos, dessa vez alargados por um
exame exaustivo nas fontes. O resultado é uma aproximação das partes
componentes dos complexos sociais analisados, não tanto pelas similaridades
do status social, mas pela posição nos sistemas de relação.
Um exemplo expressivo desta abordagem é o trabalho de Giovanni Levi,
A herança imaterial.
55
À primeira vista o estudo se apresenta quase biográfico,
centralizando a sua narrativa na trajetória de Giovan Battista Chiesa, um
exorcista desviante da autoridade católica, que insiste em se manter em
atividade a bem das advertências de seus superiores. Como pároco de
Santena, Chiesa não se contenta com suas atividades tradicionais, dando início
a uma carreira de pregações inflamadas, repletas de curas e expulsões dos
demônios que atormentavam a gente que o seguia e o aclamava.
À medida que o trabalho avança, percebemos que o interesse de Levi
vai se desviar para o desvendamento das redes de relações e das estratégias
sociais estabelecidas pelos habitantes de Santena e do universo agrário que a
cerca. Do ponto de vista da classificação social, a análise de Levi extrapola o
óbvio da simples constatação da posse da terra por cada indivíduo. O que é
absolutamente necessário, uma vez que o que está em jogo são estratégias
familiares e não ações individuais regidas pela lógica puramente financeira.
55
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000.
47
A base das estratégias se encontra no estabelecimento de relações -
sejam estas solidárias ou de dependência. Há, no entanto, um problema de
ordem metodológica a ser resolvido pelo autor. A documentação disponível é,
em geral, derivada de apontamentos oficiais, realizados sob os auspícios de
entidades reguladoras, como a Igreja e o Estado. Tais entidades, com suas
chancelarias e burocracias, tendem a organizar de forma monolítica a
sociedade, propendendo à uniformização e ao controle.
Ora, as estratégias as quais Giovanni Levi se refere são estabelecidas,
no mais das vezes, para fugir a este controle. A questão então seria como
perceber nas fontes as redes de relações que se formam na tentativa de se
furtar aos olhares de seus escribas. Estariam estes, de algum modo, anotando
mais do que percebiam?
Aparentemente sim, sendo possível a Levi, contornar esta dificuldade
mudando o foco do conceito de família. Não tanto como unidade doméstica - o
grupo de pessoas que se reúne em torno do mesmo fogo - a família se revelou
uma ampla rede de solidariedades com regras definidas e que só pôde ser
apreendida pelo cruzamento sistemático de registros acerca de seus membros
e da composição de árvores genealógicas.
Foi possível ao autor perceber um conjunto de características que se
revelaram como base das estratégias familiares empreendidas pelos grupos
arrendatários, mas não apenas por eles. A princípio, como já dissemos, os
laços são formados no sentido de ligarem grupos não-co-residentes. Além
disso, é parte das estratégias sociais a diversificação dos negócios, mantendo
o arrendamento e uma certa quantidade de terras como propriedade, e
eventualmente, o investimento na carreira de um ou outro membro do grupo.
48
Se este fosse sacerdote, poderia concentrar em seu nome maior quantidade de
propriedades, favorecendo o grupo com os privilégios de seu ofício.
A endogamia também aparece como característica estrutural destes
grupos familiares. Este comportamento tende a manter a estabilidade do grupo
e a coesão das propriedades nas partilhas por herança. Desta forma zela-se
pela não-disperção dos bens acumulados pelo grupo. De um modo geral, estes
laços consubstanciados pela propriedade parecem ter sido por demais sólidos
e estáveis, perdurando toda a vida e abrangendo as descendências - que no
mais das vezes também eram ligadas pelos inúmeros laços de
consangüinidade gerados pela endogamia.
A partir do trabalho de Giovanni Levi, podemos perceber o quanto esta
abordagem micro-histórica pode favorecer no desvendamento daquilo que
Carlo Ginzburg chama de indícios, paradigma pelo qual, cada vez mais
historiadores vêm construindo suas interpretações, percebidas, em geral, a
partir de uma análise de diversas fontes.
A alta concentração e a ampla sedimentação social dos escravos na
Real Fazenda de Santa Cruz possibilitou a formação de uma rede de relações
muito ampla, e o seu estudo pormenorizado nos revela a sua complexidade.
Mas esta não era uma “célula” isolada do seu contexto histórico, ao contrário,
por ser uma fazenda de um porte pouco usual, para não dizer único no Rio de
Janeiro, freqüentemente estava no centro das atenções. Das atenções dos
jesuítas, dos que os expulsaram, dos que insistiam em desmembrá-la, dos que
a usavam de modo ilícito e principalmente dos que a habitavam.
Em primeiro lugar, pela sua própria necessidade, em segundo pelas
intempéries que os atingiam, os escravos de Santa Cruz forjaram, ao longo dos
49
mais de quatro séculos que atravessaram, formas próprias de organizar a sua
vida cotidiana. Criaram regras sociais que permitiram uma coexistência
ordenada e que os permitiu usufruir os recursos da fazenda a bem de sua
condição cativa.
50
4. Demografia e Escravidão em Santa Cruz
4.1. Toda história tem suas fontes
Em virtude da necessidade permanente de controle do patrimônio da
fazenda e das responsabilidades que sobre ele recaiam, parece que era
comum que fossem realizados inventários e resumos estatísticos. Com isso
ficava registrado o montante global dos bens com que a propriedade contava
em determinados momentos. Ocorre que de toda essa rica documentação,
somente chegaram até nós dois resumos estatísticos (1790 e 1799) e apenas
dois inventários completos: o primeiro realizado em 1791 e o segundo, embora
a indicação do arquivo conste 1818, foi concluído certamente em meados de
1817.
Outra forma de mapear a escravaria da fazenda era com os relatórios de
distribuição dos escravos segundo sua ocupação. Desses, nós localizamos
dois bastante completos, o de 1815, extremamente importante por se tratar do
período estudado, e o de 1849 ainda mais preciso em suas informações.
Também foram localizados quatro resumos contendo informações básicas
acerca do destino dos escravos, dois de 1855, um de 1856 e um de 1858.
A minuciosa anotação que envolveu a transição administrativa de 1791
nos revela alguns aspectos interessantes da Fazenda e, de modo mais
próximo, sobre os seus escravos.
Os assentamentos realizados nesta ocasião referem-se às várias
dependências da fazenda, descrevendo e catalogando todo o seu conteúdo.
Assim, abrem a lista dos bens, a capela e seus objetos: painéis, imagens,
51
paramentos,... Localizada no centro social da fazenda, estava mais para igreja
matriz do que para capela ou ermida. No seu interior havia uma série de
imagens, sendo a mais pitoresca a de Nossa Senhora do Rosário, uma bela
peça esculpida em madeira que, segundo consta, pertencia aos escravos.
Segue a casa, com a mobília, a prataria, e outras quinquilharias que por
lá existiam. Grandes peças de mobília em madeira maciça, algumas
provavelmente construídas lá mesmo pelos habilidosos artesãos. A esta
sucedem, ainda, as diversas oficinas, o engenho, os vários currais existentes e
chega-se, finalmente, à lista nominal dos cativos de Santa Cruz.
A lista é composta do nome, relação familiar, eventualmente ofício e
estado de saúde, além da idade do escravo em questão. Como, no mais das
vezes, essa fonte nos revela, em primeira instância, a impressão do seu autor
sobre a realidade que vislumbrava. A nós resta garimpá-la em busca de
indícios que falem da escravidão em Santa Cruz.
Não há como saber ao certo quais foram as condições de confecção
desta lista. Ocorre, porém, que todo o corpo documental do inventário se
estrutura por meio de lugares físicos onde os bens inventariados estariam
alocados. A espacialidade se mantém presente em todos os apontamentos,
auxiliando nas descrições da situação do patrimônio. Assim, ao que tudo
indica, com os cativos deve ter-se dado o mesmo.
Nos parece que seria impossível imaginar uma única e gigantesca
senzala que comportasse a totalidade dos 1.342 cativos. Também não há na
fonte qualquer menção sobre a existência de compartimentos coletivos, algo
que se assemelhasse aos vários currais existentes na fazenda. Como, então,
52
essa espacialidade que caracteriza todo o inventário se faria perceber na lista
dos seus cativos?
Seu formato sugere tratar-se do resultado de uma coleta de dados feita
por unidades domésticas como num recenseamento: o mais corriqueiro dos
inventários de massas humanas. A existência de chaves na margem esquerda
do papel, possivelmente postas pelo próprio inventariante, une os elementos de
um mesmo grupo. À guisa de ilustração, descrevemos as duas primeiras
famílias, tal como a fonte apresenta:
Domingas Correa .......... Viúva ............................................................. 36
Manoel Antonio .............. Filho ............................................................ 12
Florencio Teixeira ........... Filho ............................................................ 04
Feliciano de Barros ....... Marido ......................................................... 5
Joana da Silva ............... Mulher ......................................................... 32
Joze da Silva ................. Filho ...................... quebrado das costas ... 13
Ora, com base nestes indícios, podemos postular que a população
escrava de Santa Cruz habitava unidades domésticas; pequenas senzalas
onde residiam, em tese, um grupo familiar. A gravura disponível, um quadro de
Debret, confirma esta hipótese, e nela aparecem várias unidades ladeando o
terreno principal em frente à igreja.
Outros documentos como cartas de pedido de alforria encaminhadas ao
Imperador D. Pedro II, e que agora se encontram depositados no arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis, indicam que o número do grupo familiar
compunha um sistema de endereçamento pelo qual, associando-se o nome e o
número da unidade, seria possível singularizar inequivocamente um cativo
dentre os mais de mil que habitavam o centro de Santa Cruz.
53
O segundo inventário, datado nos registros do Arquivo Nacional pelo ano
de 1818, traz uma série de informações acerca deste grupo durante o
desenrolar dos anos de 1817 até meados de 1821. Sua concepção já previa
alterações, de tal forma que funcionassem como assentamento de um “livro
caixa” da população de escravos. Tendo-o aberto diante de si, o leitor encontra
uma divisão funcional entre as páginas, a da direita contém um número para o
escravo, o número do grupo ao qual pertence, sua posição no grupo (a
exemplo do inventário anterior se é casado, esposa, filho, neto, enteado,...) e a
idade. Na página à esquerda é possível ver, no alto, a palavra “Observações” e
abaixo dela, comparecem informações complementares como profissão,
alforria, de que grupo é procedente (em caso de casamento celebrado entre
1817 e 1821), data de nascimento ou de batismo (excludentemente, isto é, se
aparece nascimento, nunca aparece batismo; se figura a data de batismo, não
consta a data de nascimento - tornando impossível estimar um prazo entre o
nascimento e a celebração do batismo).
Este rico conjunto de informações nos permitirá acompanhar a dinâmica
populacional dos escravos do rei em Santa Cruz por pelo menos 3 anos.
Embora figurem nestas páginas as informações referentes aos anos de 1817 e
1821, eles podem estar minados pela sub-numeração. Isto se deve ao fato de
que o inventário ficou pronto em meados de 1817, já contando todos os que
nasceram ou chegaram; e descontando os que morreram ou se foram. De
modo análogo, o ano de 1821, também está incompleto, só que de modo mais
radical, já que apresenta apenas as mudanças até a metade do ano.
54
4.2. Dos números da origem
De certo modo, o que nos propusemos foi analisar as estratégias de vida
da população de Santa Cruz. O objetivo é descobrir que tipo de artifícios esses
habitantes utilizavam para lidar com o seu contexto histórico, procurando
maximizar as vantagens e minimizar as perdas geradas pelos movimentos
históricos.
Alguns autores, como Mary Karasch, por exemplo, acreditam ser
possível definir o escravo “médio”, postulando que se alguém fosse um escravo
desembarcado no Rio de Janeiro em meados do século XIX, seria
provavelmente um menino pequeno ou um adolescente. Seria então este o
agente das estratégias escravas?
O método usado por Karasch apresenta alguns problemas. O primeiro, é
a amostragem que ela utiliza para basear as suas afirmativas. O universo de
análise é de quatro navios apreendidos; um depois de 1831, data da lei
regencial contra o tráfico, e três depois de 1850, quando esta legislação se
torna mais rígida. Além disso, tentar desvendar um escravo típico pode ser de
pouca valia do ponto de vista metodológico, já que tal “peça” nada mais é do
que o indivíduo mais estatisticamente freqüente dentro de uma população. Em
outras palavras, ele é um dos pontos dentro da malha social formada pela
população escrava.
Decerto, este “típico” cativo não está só. Por isso, para identificar o ator,
ou antes, o elenco que encena a trama que reconstruímos na história, talvez
seja mais interessante tentar compreender a estrutura populacional. Seria mais
eficaz identificar o peso que cada parcela da população tem perante a
55
totalidade, do que nos deixarmos levar pelo cálculo de um indivíduo típico que,
dependendo do caso, pode nos fornecer o que representa uma parcela que se
quer compõe mais de 50% do grupo.
Certamente este recurso não pode ser utilizado em cem por cento dos
casos. Freqüentemente estamos falando de um grupo composto apenas por
homens, ou apenas por mulheres, ou nos interessam apenas as crianças; em
outros casos as fontes não permitem uma tal reconstrução; enfim vários são os
motivos que podem evitar o recurso. Mas se for possível...
Sendo possível construir uma estrutura etária-sexual será de grande
valia para a captura do perfil não apenas do grupo majoritário, mas da
população como um todo, e um todo orgânico. Em geral, utiliza-se um gráfico
para expressar o peso relativo de cada uma das faixas etárias em ambos os
sexos, de tal modo que a partir da origem, temos um lado masculino
(esquerda) e um feminino (direita). Seu formato é, no mais das vezes,
piramidal, daí o nome: pirâmide etário-sexual.
A partir dos inventários post-mortem dos grandes proprietários de
escravos falecidos entre 1810 e 1830, depositados no Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro,
56
foi possível calcular o peso percentual de cada coorte perante a
população destes grandes plantéis. A idéia aqui é compor a estrutura
demográfica dos plantéis de escravos com 50 ou mais indivíduos.
O Grafico 1 apresenta a pirâmide destes plantéis.
56
Os dados desses inventários nos foram cedidos pelo Dr. Manolo Garcia Florentino, a quem
agradecemos pela generosidade.
56
Gráfico 1: Estrutura Sexo-Etária dos Escravos das Fazendas de mais de 49
Escravos do Agro Fluminense entre 1810 e 1830
-15 -10 -5 0 5 10 15
%
de 0 a 4
de 5 a 9
de 10 a 14
de 15 a 19
de 20 a 24
de 25 a 29
de 30 a 34
de 35 a 39
de 40 a 44
de 45 a 49
de 50 a 54
de 55 a 59
de 60 a 64
de 65 a 69
+ de 69
Homens Mulheres
Fonte: Inventários Post-mortem. Arquivo Nacional. RJ.
Ocorre que o gráfico acima não tem o aspecto triangular do qual deriva o
seu nome. Em primeiro lugar, sua base é relativamente menor que várias
faixas do corpo, o que indica um peso menor da infância nesta população.
Além disso, existe uma desproporção entre os percentuais dos adultos e ela
pode ser percebida na dilatação do lado masculino.
A causa da menor proporção de infantes pode estar ligada a dois fatores
básicos: baixa natalidade ou alta mortalidade infantil. O primeiro é a expressão
de uma perda na capacidade reprodutiva pela queda na taxa de fecundidade
do grupo que estaria tendendo a conter a reprodução, voluntária ou
compulsoriamente. Isso poderia se dar caso o número de celibatários
crescesse demasiadamente, ou as regras morais que regulamentam as
relações sexuais fossem tão rígida e eficiente que estariam logrando distanciar
57
os membros desta população da procriação. Uma alternativa explicativa seria o
uso de métodos contraceptivos que permitiriam os intercursos sexuais sem que
deles redundassem descendentes.
A outra causa de uma base estreita seria a morte prematura em grande
escala. Uma alta taxa de mortalidade infantil, a rigor aquela que ceifa até um
ano depois do nascimento, também poderia ser responsabilizada pela
pequenez relativa das coortes da infância. Assim, a população estaria se
reproduzindo, porém a morte lhes estaria confiscando os rebentos em tal
escala que, a bem de um razoável número de nascimentos, esta população
teria dificuldades de se manter no tempo.
No período colonial, uma alta mortalidade infantil não seria apanágio da
população escrava, pois as taxas eram elevadas para toda a população. Porém
as dificuldades do cativeiro podem tê-la ampliado. Além disso, as taxas de
fecundidade e natalidade entre os cativos são relativamente pouco
expressivas, o que gerava uma população infantil de menor peso proporcional.
Se imaginarmos esta população como fechada, isto é, sem o ingresso
de estrangeiros, a permanência desse quadro conduziria aos dobres de finados
do grupo, uma vez que as gerações vindouras seriam menores que as
anteriores. Quer seja pela baixa natalidade ou pela alta mortalidade infantil,
este agrupamento não teria, por si só, como se perpetuar.
Outro dado importante a respeito destas coortes, é o equilíbrio em que
se encontram do ponto de vista sexual. As proporções entre meninos e
meninas até os dez anos aproximadamente, são praticamente as mesmas. Isto
revela que, se por um lado, o pequeno crescimento endógeno poderia levar à
extinção desta população, levaria antes a um maior equilíbrio sexual.
58
Isso nos leva a analisar as coortes superiores a dez anos. Como
dissemos, basicamente a partir deste ponto tem início uma vertiginosa
desproporção sexual. O volume relativo de homens tende a crescer até
ultrapassar a cifra de 8%, enquanto no lado feminino, as mesmas coortes não
alcançam 5%. Ora, se como vimos anteriormente, os nascimentos, ainda que
pouco expressivos, conduziam a um equilíbrio sexual, tal desequilíbrio não tem
origem endógena. A explicação para esse fenômeno deve ser buscada fora do
grupo, ou melhor, de fora para dentro.
A população cativa estava sujeita ao permanente ingresso de
estrangeiros vindos da África, atravessando a calunga do Atlântico aferrados
no tráfico de almas, transformados em prisioneiros, mercadoria e lucro, antes
de serem efetivamente escravos.
57
Aos senhores laicos e privados da província
do Rio de Janeiro, como de resto quase toda a colônia, o tráfico servia como
principal fonte de mão-de-obra, gerando em suas senzalas plantéis nos quais
as taxas de crescimento endógenas pouco contribuíam para a manutenção do
nível populacional.
Seria o tráfico, então, o responsável pelo desequilíbrio etário sexual da
escravaria do agro-fluminense. Mas, como? A primeira hipótese é baseada em
uma demanda colonial por braços masculinos e em idade produtiva. Aponta
para isso, o elevado preço que um cativo africano nesta idade alcançava nas
avaliações dos inventários post-mortem, no meio rural fluminense. Segundo
Manolo Florentino, este valor poderia superar o das escravas em iguais
condições em até 25%.
58
57
Essa discussão se fundamenta em: GÓES, J. R. e FLORENTINO, M. A paz das senzalas.
Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. 1997.
58
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. São Paulo: Cia. Das Letras. 1997. p. 60.
59
Mas seria apenas isso? Além da demanda colonial é possível imaginar
fatores inerentes à África, como os que foram apresentados por Klein e
Engerman,
59
tenham contribuído para isso. As mulheres seriam a principal
força de trabalho agrícola em grande parte da África, além disso,
representariam capacidade genésica para a população local. Outros fatores
podem ter contribuído para uma eventual escassez na oferta de escravas na
África, como, por exemplo, o papel preponderante que elas desempenhavam
no comércio em várias regiões da África, dando às mulheres acesso a bens
que lhe poderiam valer um resgate. Há ainda o desvio de mulheres para a
escravidão no Islã que também pode ter exercido influência nesse quadro.
No entanto, como poderia uma eventual menor oferta de mulheres não
redundar em um aumento de seu valor no mercado colonial. Pode ter havido
uma confluência de interesses de tal modo que a demanda preferencial colonial
tenha se coadunado a oferta mais abundante na África. De mais a mais,
tratava-se de uma sociedade em que a lógica de mercado ainda não estava
plenamente estabelecida.
Acresce-se a tudo isso, a condição de cativo, isto é, ser propriedade de
outrem, que também conferiu à população em questão uma curta expectativa
de vida, o que confirma a estreiteza do cume de sua pirâmide. Após a dilatação
das idades preferenciais na produção, o gráfico tende a uma redução bastante
acentuada, indicando que relativamente poucos chegavam à velhice. Dito de
outro modo, quanto mais avançava a idade do escravo, mais vertiginosamente
crescia a probabilidade da sua morte, configurando uma expectativa média de
vida relativamente curta.
59
KLEIN, Herbert e ENGERMAN, Stanley L. “A demografia dos escravos americanos”. In
MARCÍLIO, Maria L. (org.)
População e sociedade. Petrópolis: Vozes. 1982. pp. 208-227.
60
Essa era a situação da escravaria dos grandes plantéis do agro-
fluminense. Mas, trata-se de propriedades particulares, regidas pelos desígnios
e interesses dos senhores laicos e privadas da Província do Rio de Janeiro.
Nossa investigação se dirige no sentido de recompor a vida de um grupo de
cativos muito específico: os escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. Situada
no contexto agrário da Província, esta fazenda possuía um elevado número de
escravos.
Estariam eles distribuídos segundo as características dos demais
plantéis que os circundavam? O Gráfico 2 mostra a estrutura populacional do
primeiro inventário.
Gráfico 2: Pirâmide etária-sexual dos Escravos da Real Fazenda de Santa
Cruz, 1791.
-15 -10 -5 0 5 10 15
%
de 0 a 4
de 5 a 9
de 10 a 14
de 15 a 19
de 20 a 24
de 25 a 29
de 30 a 34
de 35 a 39
de 40 a 44
de 45 a 49
de 50 a 54
de 55 a 59
de 60 a 64
de 65 a 70
acima de 70
Homens Mulheres
Fonte: Inventário da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791. Arquivo Nacional. RJ.
61
A crer na contagem do escriba do inventário de 1791, a população de
cativos de Santa Cruz apresentava uma formação bastante peculiar,
principalmente se tratando de escravos.
De modo oposto ao dos grandes plantéis de escravos do Rio de Janeiro,
a base da pirâmide referente à Santa Cruz indica uma grande presença de
crianças. Os nascimentos e a infância, ou seja, os escravos de 0 a 14 anos,
eram responsáveis por 40% da população em 1791. Para esse plantel é
possível que o crescimento endógeno tenha sido crucial para o incremento do
seu nível populacional. Dessa forma o tráfico teria um peso abissalmente
menor para essa fazenda específica do que para o agro-fluminense em geral. É
pouco provável que houvesse estrangeiros em número significativo nesse
plantel. Deriva daí que Santa Cruz pode ter se desenvolvido, ao menos durante
os anos próximos de 1791, como uma comunidade fechada no que diz respeito
ao ingresso de estrangeiros. Era um lugar de arraigados, chão de raiz.
Também aponta para isso a existência freqüente de sobrenomes entre
os escravos da Fazenda, o que constitui um poderoso indicativo de
sedimentação social, sugerindo a existência de uma comunidade. Ocorre que
mesmo os cativos mais velhos já tinham um sobrenome que não lhes
indicavam a procedência africana. Como se percebe em várias fontes
60
e em
obras diversas, como em Mary Karasch, os africanos tinham sua origem
manifesta na composição de seu nome. Isso ocorria de várias formas. O cativo
poderia ser chamado pelo nome seguido das expressões “de nação” ou
simplesmente “nação”, “Guiné” ou “gentio da Guiné”, em oposição ao “gentio
da terra” como eram tratados os índios. Numa classificação mais detalhada, a
60
No inventário de 1818 constam alguns escravos africanos, o segundo nome ou um
acréscimo indica a procedência africana. Assim, João Cabinda e Anna Izabel, escrava da
Costa, são facilmente identificados como vindos da África.
62
origem ou o porto de embarque poderia compor o nome do africano, formando
uma legião de “manoéis congo”, “marias mina”, “antonios calabar”, “josés
cassange”,...
Aos nascidos na colônia, no mais das vezes lhe era atribuído o
qualitativo de “crioulo”. Com muito mais raridade vemos escravos com
sobrenome, sendo mais comum que assumissem um após a alforria. Em
Santa Cruz os sobrenomes são absolutamente comuns, contemplando
escravos de todas as idades e sexos. Na verdade, todos os escravos são
nomeados com um nome composto, não se podendo afirmar que sejam todos
sobrenomes. Porém, existiam lá vários “teixeiras”, “pereiras”, “ferreiras”,
“costas”, “fernades” e outros, indicando uma complexa rede de parent0esco
instituída há muito e que ligava os cativos da fazenda uns aos outros há
gerações.
63
4.3. Dos que se foram...
Uma outra tendência é perceptível na pirâmide etário-sexual da
Fazenda. Novamente na contra-mão da população escrava da região agrária
fluminense como um todo, Santa Cruz tem a proporção de homens em idade
produtiva menor. No caso dos plantéis laicos e privados, o volume populacional
concentrado nos homens em idade produtiva se deve ao tráfico atlântico que,
como dito anteriormente, agia de modo seletivo na travessia, primando pela
presença de homens entre 15 e 30 anos. Santa Cruz apresenta um quadro
inverso. Se por um lado, o contorno da pirâmide etário-sexual sugere que a
comunidade de escravos se reproduzia sem o auxílio do tráfico; ao mesmo
tempo indica uma “ausência” de homens em idade produtiva.
Isso se dá não apenas no inventário de 1791. Vinte e cinco anos depois,
é possível observar uma deformação semelhante, sendo ainda mais acentuado
o estrangulamento da pirâmide. O gráfico 3 mostra a distribuição populacional
dos negros da Fazenda segundo o inventário de 1818. A julgar pela sua
configuração, neste momento não apenas os homens estariam sendo
deslocados com maior intensidade, mas um considerável número mulheres,
aproximadamente na mesma faixa etária também.
Atualizando-se as informações do inventário original de 1817, com base
nas anotações nele inseridas posteriormente, chegamos à população de
escravos que habitavam Santa Cruz em 1821, isto é, cinco anos depois.
64
Gáfico 3: Pirâmide Etário-Sexual dos Escravos da Real Fazenda de Santa
Cruz, 1818.
-15 -10 -5 0 5 10 15
de 0 a 4
de 5 a 9
de 10 a 14
de 15 a 19
de 20 a 24
de 25 a 29
de 30 a 34
de 35 a 39
de 40 a 44
de 45 a 49
de 50 a 54
de 55 a 59
de 60 a 64
de 65 a 69
Acima de 69
Homens Mulheres
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1818 Arquivo Nacional. R.J.
Gráfico 4: Pirâmide Etário-Sexual dos Escravos da Real Fazenda de Santa
Cruz, 1821.
-15 -10 -5 0 5 10 15
de 0 a 4
de 5 a 9
de 10 a 14
de 15 a 19
de 20 a 24
de 25 a 29
de 30 a 34
de 35 a 39
de 40 a 44
de 45 a 49
de 50 a 54
de 55 a 60
de 60 a 64
de 65 a 69
acima de 70
HOMENS MULHERES
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1818. Arquivo Nacional. R.J.
65
O gráfico 4 apresenta os resultados desta operação. Ele também nos
indica que este possível movimento de evasão populacional não era uniforme
quanto à duração. A situação expressa no gráfico 1 se apresenta na coorte
masculina de 45 a 49 anos do gráfico 3 e na coorte masculina de 50 a 54 anos
do gráfico 4. Do mesmo modo, o estrangulamento que se destaca no gráfico 3,
aparece ainda no gráfico 4 uma coorte acima. São em ambos os casos,
reflexos do mesmo movimento original que se estende pela história
demográfica do grupo.
Há que haver uma explicação para isso. Duas hipóteses lógicas se
impõem por sua obviedade: ou estes cativos morreram, ou saíram de lá, por
algum motivo. Neste caso, poderiam ter obtido suas alforrias, fugido ou
transferidos para trabalhar em outros lugares.
Quanto a primeira hipótese, observe-se o que diz a tabela 1. Nela
constam os cálculos que se pôde realizar com base nos dados anotados no
inventário de 1817. Seu propósito é auxiliar na investigação da parcela da
população que desapareceria com maior probabilidade pela morte. Ainda que
estejam calculadas porcentagens em universos inferiores a cem, é possível,
por meio destes dados, inferir que a mortalidade ceifa em grande medida as
crianças escravas, na essência, aqueles até quatro anos de idade. Claro está,
que entre os idosos a mortalidade também é elevada, como seria de esperar.
66
Tabela 1: Morte e Mortalidade na Escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz,
1817-1821.
1817 1818 1819 1820 1821
# % # % # % # % # %
Óbitos de 0 a 4 anos 4 25 16 48 19 32 62 74 13 54
Óbitos de 5 a 15 anos 2 12,5 3 10 5 8 4 5 1 5
Óbitos de 16 a 39 anos 2 12,5 6 18 11 18,5 7 8 8 32
Óbitos de 40 ou mais anos 8 50 8 24 24 40,5 11 13 2 10
Total de óbito 16 100 33 100 59 100 84 100 12 100
Total da população ao
final do ano
1169 1197 1210 1174 1185
Taxa Bruta de Mortalidade 1,4 2,8 4,9 7,2 2,0
Percentual de mortes
ocorridas até 1 ano de vida
12% 21,3% 27,1% 37% 33,3%
Taxa Específica de
Mortalidade de 0-4 anos
0,9 3,3 3,9 14 2,9
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818. Arquivo Nacional, RJ.
A bem da verdade, a taxa de mortalidade em Santa Cruz neste período
era caudatária de uma morte na infância – a sua proporção determina o peso
da mortalidade dos idosos que oscila dentro de uma faixa bem menor de
ocorrência. Embora tal situação não fosse apanágio deste grupo específico, na
Fazenda o índice parece ter sido bastante expressivo.
O gráfico 5 expressa a representatividade da morte nas grandes faixas
etárias para os cativos de Santa Cruz. A mortalidade nas idades inferior aos
cinco primeiros anos corresponde à aproximadamente metade dos óbitos. O
percentual extremamente elevado se deve, em parte, ao abissal índice de
mortalidade verificado no ano de 1820. Talvez, epidemias de tétano ou
tuberculose, ou as “febres”, ou ainda a disenteria tenha contribuído para que
14% das crianças que perambulavam pela vila dos escravos fossem ceifadas
naquele funesto ano. A capacidade de contágio na vila dos escravos, ao que
67
tudo indica, era bastante elevada, provavelmente devido à alta concentração
populacional (semi-urbana) e a possível circulação dos cativos em diversas
esferas pouco salubres, como as ruas do Rio de Janeiro, colocando esses
cativos expostos a endemias.
Gráfico 5: Mortalidade entre os Escravos da Real Fazenda de Santa Cruz,
1817-1821.
0
10
20
30
40
50
60
até 04 de 05 a 39 acima de 40
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818. Arquivo Nacional - RJ.
Tabela 2: Distribuição sexual dos nascimentos e óbitos entre os escravos da
Real Fazenda de Santa Cruz, 1717 - 1721.
1817 1818 1819 1820 1821
H M H M H M H M H M
Nascimentos 11 15 28 33 36 35 17 30 11 8
Óbitos em idade inferior a 5
anos
4 0 8 8 9 12 31 34 5 7
População total 1169 1197 1210 1174 1185
Crescimento populacional
(por mil)
6 13 17 21 22 19 -12 -3 5 0,1
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818 (sic.) Arquivo Nacional,
RJ.
68
Médias de crescimento populacional entre 1817 e 1821:
- População masculina: 7,6 p/mil.
- População feminina: 10 p/mil.
Na analise da divisão sexual da mortalidade dos escravos da Fazenda, o
que temos está apresentado na tabela 2. A princípio ela possui um equívoco:
na contagem da natalidade o número de batizados foi computado junto com os
nascimentos. Isto se deve ao fato de que a fonte não registra um único caso
em que figurem, simultaneamente, as datas do nascimento e do batismo. De
fato, por um mecanismo que ainda permanece desconhecido, os registros da
existência de nascidos se davam alternativamente por nascimento ou batismo,
com uma ligeira preferência pelo segundo.
Esse é um erro que bem poderia ser descrito como erro padrão. O
problema se constitui basicamente em contar, num determinado ano, os
escravos nascidos no ano anterior e batizados neste. Porém o equívoco se
estabiliza, uma vez que não contamos, neste tal ano, os que nasceram nele e
serão batizados no seguinte.
Segundo os dados, a população masculina parece ter que enfrentar
maiores dificuldades para se manter. Não apenas contava com um número
geral de nascimentos cerca de 15% menor, como ainda tinha que se haver com
uma taxa de mortalidade praticamente igual à feminina, o que lhe acarretava
um crescimento populacional equivalente a ¾ do crescimento feminino. Chama
a nossa atenção, ainda na tabela 2, o fato de que no ano crítico de mortalidade,
69
1820, o decréscimo populacional masculino tenha sido quatro vezes maior que
o feminino.
No entanto, esta seria a explicação para a formação demográfica como
a observada? É difícil dizer. É de estranhar que não apareçam fraturas
demográficas nas coortes da infância, onde mais da metade das mortes
ocorrem. Embora isso pudesse ser indício de um ciclo epidêmico de larga
distância entre um pico e outro, não parece ter sido essa a origem da
deformação na pirâmide etário-sexual da escravaria.
Quanto à segunda hipótese colocada anteriormente, é necessário
desmembrá-la nas suas diversas possibilidades. As manumissões, as fugas, os
presos e o deslocamento de mão-de-obra podem, em conjunto, mas não
necessariamente com o mesmo peso, fornecer algumas evidências quanto à
evasão de população em Santa Cruz.
Nas atualizações feitas no inventário de 1818 aparecem oito alforrias
registradas. Além dessas, repousam no livro de registros do Cartório do 1
o
Ofício mais dez alforrias, que segundo Debret,
61
teriam sido ordenadas por D.
Pedro I quando ainda era Príncipe Regente, entre 1821 e 1822. No entanto, no
documento consta como tendo sido ordenadas pela Princesa D. Maria Pereira
e executadas pelo Marquês de Valadares (uma) e pelo Visconde de Magé
(nove).
Não se pode de maneira nenhuma afirmar que essas sejam todas as
alforrias concedidas durante os anos de 1818 até 1821. O que também não
significa que não seja uma razoável amostra delas. Desses registros temos
apenas 8 homens, dentre eles conhecemos as idades de apenas três. Suas
61
DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pitoresque et historique au Brésil. v. 3. Paris, 1834.
70
idades correspondem às extremidades da faixa etária produtiva, e mesmo entre
as mulheres, totalizando 14, a exceção seria a liberta Maria Izabel, a única que
pagou pela sua liberdade. Embora reduzida, a amostragem que dispomos
aponta para uma freqüência maior de alforrias femininas um privilégio para os
mais jovens, até 13 anos, e os mais velhos, acima de 40 anos. Portanto as
alforrias poderiam contribuir muito pouco com o fenômeno demográfico que
estamos investigando.
Tabela 3: Manumissões de escravos residentes em Santa Cruz entre
1818 e 1822
Data Registro Escravo Id. Obs.
Santa Cruz Maria da Conceição 4 Veio da Quinta liberta
Santa Cruz Bernardo Telles - Comprado por 256$000
Santa Cruz Quintilliano Joaquim 4
Santa Cruz Ursula Antunes 47 Casada com Flugencio Dias
14/03/1818 Santa Cruz Maria Izabel 22 Alforria paga: 153$600
23/03/1818 Santa Cruz João Marianno 9
05/04/1819 Santa Cruz Maria Joze 13
03/04/1821 Santa Cruz Flugencio Dias 42 Liberto com a esposa por
ordem de El Rey
18/04/1821 1
o
Ofício Venceslau Marques 40 Consta no inventário de 1818
25/04/1821 1
o
Ofício Manoel Garcia e sua filha -
25/04/1821 1
o
Ofício Maria das Neves 62 Consta no inventário de 1818
25/04/1821 1
o
Ofício Sebastião de Lima -
27/04/1821 1
o
Ofício Joana Aoria e as filhas Cristina
e Maria
-
27/04/1821 1
o
Ofício Maria do Espírito Santo 1 Consta no inventário de 1818
27/04/1821 1
o
Ofício Arcângela de Jezus 1 Consta no inventário de 1818
28/04/1821 1
o
Ofício Maria de Jezus Barcellos -
19/05/1821 1
o
Ofício Ignácio da Alegria e sua esposa
Felícia Maria
-
21/03/1822 1
o
Ofício Florinda Thereza 11 Consta no inventário de 1818
Fontes: Inventário da escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz, 1818 e Livro de Registros do
Cartório de 1
o
Ofício – Arquivo Nacional (RJ).
As fugas, ou deserções como eram chamadas, constituem uma outra
alternativa a ser investigada. Em maio de 1808, o coronel Couto Reys troca
71
correspondências com João Abreu de Miranda Varejão.
62
Nelas constam listas
de escravos ausentes da fazenda por vários motivos, dentre os quais a
deserção e a prisão. Trata-se, ao todo, de 71 escravos, sendo 43 desertados
(41 homens e 2 mulheres) e de 28 presos, a maioria deles na fortaleza de
Santa Cruz. Se computarmos pela população de 1817, teremos cerca de 6%
da população geral e mais ou menos 12% dos homens. Essas cifras nos
parecem bastante consideráveis.
Além disso, nos anos de 1817 a 1821 foram registradas no inventário
mais quatro fugas. O primeiro caso é o de Manoel da Cruz Barbado, um viúvo
de 42 anos que morava com sua filha Angélica de 16 anos. No campo de
“observações” do seu registro no inventário consta simplesmente a palavra
“desertado”.
O segundo caso é Victorino Marques, um viúvo de 42 anos de idade que
compunha solitário a unidade 398 do inventário de 1818. Encontra-se no
campo “observações” desse escravo a seguinte sentença: “Apresentado pelo
perdão de Sua Majestade em 23 de junho de 1817”. Ao que parece, tal perdão
se refere a uma fuga pretérita mal sucedida. Mas as desventuras de Victorino
não se encerram aí, em 21 de junho de 1818 há uma nova fuga que termina
em um retorno aparentemente pacífico.
Não é o que se dá com Manoel Joaquim, do domicílio 72 onde morava
com sua mãe, a viúva Anna Joaquina. Nas observações pertinentes a esse
cativo foi redigida uma breve história dos acontecimentos recentes de sua vida.
Segundo consta, Manoel Joaquim havia desertado anteriormente, sendo
apresentado pelo perdão de Sua Majestade El Rey em 15 de julho de 1817.
62
Ofício de Manuel Martins do Couto Reis remetendo os escravos requisitados para
trabalharem na quinta de S.A.R. Fazenda de Santa Cruz. 30.05.1808... Biblioteca Nacional.
72
Em março do ano seguinte foi enviado para a Quinta, de onde retornaria menos
de um mês depois. Não há como saber o que de fato ocorreu na breve
passagem de Manoel pela Quinta, mas o que se tem por certo é que em março
de 1819 é dado por desertado uma segunda vez. Se descontarmos os seis
meses de carência para que se classifique um escravo como desertado, é
possível que em setembro de 1818, ou seja, cinco meses após regressar da
Quinta, ele estivesse abandonando a Fazenda novamente. Ao contrário de
Victorino, não há registro de retorno de Manoel.
Por fim, temos Francisco Gomes que abandonou Santa Cruz em junho
de 1817. Era solteiro, 22 anos, morava com sua mãe, a viúva Victorianna
Pereira. No seu caso consta apenas a observação de sua deserção e a data da
fuga. Como ele, outros escravos foram igualmente reapresentados pelo perdão
de Sua Majestade – todos homens e a maioria entre 20 e 35 anos, não
destoando muito do padrão geral de fuga de cativos. Há registro de que em
1849, isto é, 28 anos depois, o número de desertados é razoavelmente maior.
Havia 18 foragidos,
63
sendo 17 homens e uma mulher. Isso indica que a média
daqueles que abandonavam Santa Cruz poderia oscilar em torno do 10 a 20
escravos.
É possível que as fugas e as prisões fizessem a diferença na pirâmide
etária que analisamos? É provável que sim, contribuindo para acentuar a
ausência de homens na Fazenda, mas não explicaria a amplitude e nem o fato
do lado feminino ser atingido a partir de 1817.
A outra forma de evasão de população seria o deslocamento de mão-de-
obra para outros lugares. Quanto a isso, é possível dizer que posteriormente ao
63
Mapa da totalidade da Escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz. Datado de
30/06/1849 e assinado pelo escrivão Pedro Nolasco da Silva. Arquivo do Museu Imperial.
Petrópolis.
73
seqüestro dos bens dos jesuítas, a Fazenda tornou-se propriedade da coroa e,
portanto, seus escravos, escravos do rei. Não seria, então, absurdo postular
que o deslocamento de mão-de-obra de Santa Cruz para o serviço
governamental tenha ocorrido em razoável escala, como afirmam as memórias
do coronel Reys.
64
Braços de lá trabalharam “... nos serviços do esquadrão em
ofícios do trem, no laboratório da Conceição e nas fortalezas...”, computando
aproximadamente 50 negros. Além disso, sabe-se pela mesma fonte, que o
Conde do Rezende, quando vice-rei, deslocou escravos para seu serviço. É
possível que outros tantos tenham sido usados na instalação da fábrica de
pólvora e na sua produção, na manutenção do aqueduto da Lapa, construção
de igrejas, edifícios públicos e outras obras realizadas na cidade do Rio de
Janeiro, dentre outros possíveis afazeres.
Ao observarmos o comportamento desta população após a vinda da
Corte lisboeta para o Rio de Janeiro, vemos que esse desnível populacional se
acentuou bastante. Nos anos que se seguiram à instalação da sede do Império
português no Brasil, uma série de mudanças foram realizadas na capital. Por
certo, tais obras consumiram um sem número de escravos, dentre os quais, ao
menos uma parte, pode ter saído de Santa Cruz.
É o que nos indica as listas trocadas entre Couto Reys e Miranda
Varejão.
65
As listas, datadas de 1808, apresentam os seguintes destinos de
trabalho para os escravos:
64
REYS, Manoel Martins do c. “Memórias de Santa Cruz”. In Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro
. Tomo V. 1843. p. 178.
65
Ofício de Manuel Martins do Couto Reis remetendo os escravos requisitados para
trabalharem na quinta de S.A.R. Fazenda de Santa Cruz. 30.05.1808... Biblioteca Nacional.
74
Na lista elaborada pelo capitão administrado João Fernandes da Silva:
- No Arsenal: 8 escravos
- Na Conceição: 11 escravos
- No Trem: 22 escravos
- No serviço do Regimento de Cavalaria de Linha da Cidade ou
Cavalariças de S. A. R.: 21 escravos
- No hospital (aprendendo cirurgia): 2 escravos
No pedido de escravos de João Abreu de Miranda Varejão:
- Carpinteiros: 4 escravos (sendo 1 com mulher e filhos)
- Pedreiros: 4 escravos
- Ferreiros: 3 escravos
- Carreiros: 3 escravos
- Aprendizes: 17 escravos (moleques entre 12 e 16 anos)
- Trabalhadores: 50 escravos (alguns com suas famílias)
No total temos cerca de 145 escravos, isto é, 12,4% do total dos cativos
contados em 1817. Se os números não forem por demais levianos, Santa Cruz
serviu como fornecedora de escravos para o serviço de Sua Majestade, o
Príncipe Regente. Um possível exemplo disso, em menor escala, seriam os
pelo menos 15 rapazes e raparigas foram enviados para a Quinta, durante os
cinco anos que se seguiram a 1817.
Além disso, há no Arquivo do Museu Imperial um documento produzido
em meados do século XIX, onde consta a relação dos escravos pertencentes a
75
Imperial Fazenda de Santa Cruz destacados para a feitoria de Santarém em
troca de 17 escravos pertencentes ao inventário da mesma feitoria que se
acham destacados para a Quinta da Boa Vista.
66
Em outro documento datado
de 1849,
67
constam 102 homens, 75 rapazes, 98 mulheres e 70 raparigas cujo
destino registrado eram as “Quintas e outras”. Ainda que o período seja
posterior e não saibamos com precisão para quais quintas foram os escravos,
sabemos que haviam sido destacados por determinação de sua administração.
É possível perceber também que o número de homens destacados é
ligeiramente superior ao de mulheres, enquanto o estrangulamento das
pirâmides de 1817 e 1821 é bem mais acentuado no lado masculino. Mas se
ao deslocamento de trabalhadores somarmos as fugas, estaremos bem
próximos de conhecer o destino dos cativos que demos por falta nas pirâmides.
É claro que a importância do trabalho dos escravos possuía dimensões
bem mais amplas do que as que aqui foi lhe destinado. Porém corrigiremos
essa falta mais adiante, procurando construir um estudo do sentido social do
trabalho escravo em Santa Cruz.
66
Relação dos escravos pertencentes a Imperial Fazenda de Santa Cruz destacados para a
feitoria de Santarém em troca de 17 escravos pertencentes ao inventário da mesma feitoria que
se acham destacados para a Quinta da Boa Vistas. 1855. Arquivo do Museu Imperial,
Petrópolis.
67
Mapa da totalidade da Escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz. Datado de
30/06/1849 e assinado pelo escrivão Pedro Nolasco da Silva. Arquivo do Museu Imperial.
Petrópolis.
76
4.4. E de como se vive sem eles
Há ainda um paradoxo que nos exigirá mais atenção. Quer a explicação
postulada seja próxima da realidade ou do absurdo, o que se verifica é uma
redução proporcional do universo de habitantes em idade reprodutiva. No
entanto, o que se observa é que os nascimentos continuam a acontecer, e
mais, em maior quantidade. A comunidade mantém taxas de crescimento
vegetativo positivas na maior parte do tempo.
Se observarmos a taxa geral de fecundidade - isto é, na razão entre o
número de mulheres férteis e a quantidade de nascidos vivos num determinado
ano – veremos que em 1791, a taxa de fecundidade geral era de 0,13, no
quarto de século que se seguiu, este índice mais que dobrou, chegando a 0,28.
Na Tabela 3 é possível notar alguns indicadores de alterações no
comportamento matrimonial e sexual entre os cativos da Fazenda.
Tabela 3: Indicadores básicos da relação entre maternidade e filiação dos
escravos da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791 e 1817.
Indicadores 1791 1817
1. Mulheres com 15 anos ou mais (possíveis mães) 463 383
2. Mães (item 1 = 100%) 245 (53%) 222 (58%)
3. Mães alguma vez casadas (item 2 = 100%) 224 (91%) 171 (77%)
4. Mães menores de 20 anos (item 2 = 100%) 1 (0,4%) 37 (17%)
5. Mães que ainda moram com os pais (item 2 = 100%) 13 (5,3%) 40 (18%)
Fonte: Inventários de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz: 1791 e 1818 (sic.) Arquivo
Nacional, RJ.
77
Os dados coletados para a montagem desta tabela se baseiam nas
informações disponíveis nos inventários, de tal sorte que os rebentos e,
portanto, as relações de maternidade podem não representar a totalidade do
que houve, mas certamente representam uma amostra eficaz. De qualquer
modo, a distorção é comum aos dois inventários, reduzindo seus efeitos nas
comparações a níveis aceitáveis.
Temos então que, curiosamente, mediante a queda do número menor de
escravos em idade fértil como um todo, e especialmente com a redução de 3%
das possíveis mães frente ao total, o percentual das mulheres que concebem e
mantém seus filhos, perante o universo daquelas que alguma vez tiveram a
chance de fazê-lo, aumenta consideravelmente. Em 1791, 53% das mulheres
com mais de 15 anos, isto é, estando ou já tendo passado pela idade fértil, são
tutoras de pelo menos um filho. Em 1817, não obstante a queda dos pais
possíveis, esse percentual sobe para 58%.
Obviamente este movimento teria um preço. De algum modo, os cativos
tiveram que alargar o escopo de possíveis mães para obter um aumento de
natalidade. O percentual de mães que alguma vez passou pela experiência do
matrimônio, e com isso pôde ter filhos sancionados pela norma, caiu de 91%
para 77%. O que equivale dizer que a proporção de mães solteiras cresceu de
9% para mais de 20%. Correlativamente, as mães que moram ainda com seus
pais - pai, mãe ou, eventualmente, ambos - que equivaliam a pouco mais de
5% no primeiro inventário, em 1817 respondem por 18% das mães.
Também a média de idade das mães caiu consideravelmente. Em fins
do século XVIII, estava em torno dos 36, já na segunda década do XIX, caiu
para 32 anos. Coerente a esta queda, há um aumento do número de mães
78
abaixo dos 20 anos. No primeiro inventário só havia uma (0,4%), ao passo que
no segundo, essas jovens mães representam 17%, ou seja, 37 casos.
Por fim, em 1791, havia 26 filhos que não estavam sob a tutela de suas
mães, sendo que 22 estavam com os pais e 4 com os avós. Já em 1817, a
situação se alterou completamente, temos 63 filhos que viviam longe de suas
mães, provavelmente mortas, libertas ou deslocadas para a Quinta. Destes, 20
estavam com os avós e 43 com os pais.
Essa última alteração descrita, aparentemente contradiz a hipótese de
que tais mudanças seriam caudatárias, dentre outros fatores, por uma ausência
de população em idade reprodutiva e em especial a porção masculina desta
população. Assim, teríamos mais homens cuidando de sua prole do que no
inventário de 1791. Ocorre que a média de idade destes homens é bem mais
elevada que das mulheres que cumprem o mesmo papel. Os homens tutores
de filhos têm 38 anos de idade em média, enquanto as mulheres, casadas ou
não, têm, também em média, 32 anos. Destarte, os pais que tutelam seus filhos
na ausência das mães são de uma geração anterior, ficando, em geral, fora da
faixa de estrangulamento.
A conseqüência nefasta dessa alteração é que algumas famílias muito
provavelmente foram separadas com a retirada de escravos da fazenda. É
igualmente provável que os laços internucleares tenham se fortalecido ainda
mais já que a primeira e a terceira geração teriam seu convívio estreitado.
O que temos aqui é, muito provavelmente, uma comunidade se
moldando às contingências históricas segundo seus próprios critérios e a sua
percepção. Aqui é possível fazer uma pequena digressão a respeito dos
padrões de conduta que podem ter se instaurado naquele lugar.
79
O que se tem, em primeiro lugar, é cerca de um século e meio de
cuidados dos curas de Santo Inácio. Em praticamente todas as obras
consultadas acerca da administração jesuíta, percebe-se uma conduta
benevolente, porém disciplinada. O sistema de regalias concedidas aos
escravos funcionava como um poderoso meio de controle social sobre a massa
cativa, de modo que o indisciplinado poderia ser vendido. Algo que deveria
equivaler a um degredo. Mas, paralelamente às benesses, havia a pregação,
iniciada na escola de rudimentos e catequese e mantida ao longo de toda a
vida dos escravos. Tão cadente e repetitiva quanto a batida do tambor que
marcava as horas da vila, deveria ser a voz dos padres na escola, nos ofícios
religiosos, no trabalho,... Tal procedimento parece ter surtido algum efeito. Algo
entre 20 ou 30 anos depois, cerca de uma geração além, os padrões de
conduta ainda parecem razoavelmente fortes. Basta dizer que em 1791 apenas
nove mulheres – menos de uma em cada 10 - poderiam receber a pecha de
mães solteiras, enquanto que em 1817 esse qualitativo caberia a 23%, ou seja,
praticamente uma em cada quatro.
Isso pode ter sido fruto do afrouxamento nas regras ou, ao menos, na
vigilância. Quando a administração real assumiu a Fazenda, um de seus
maiores desafios certamente foi manter sob controle social uma escravaria tão
numerosa. Para tanto, o modelo jesuítico de trato pareceu o melhor a ser
adotado. De fato, não havia muito que pensar, e sim, uma multidão socialmente
habituada a um conjunto de práticas que constituíam uma dominação aceitável.
Mudar isso seria muito temerário. Como diria o deputado Rafael de Carvalho
posteriormente: “Ora com taes hábitos toda a reforma exige prudencia”.
80
O controle moral e religioso exercido pelos inacianos, uma vez extinto,
abriu espaço para que os escravos pudessem explicitar interesses e relações
até então latentes. Não que esses cativos tenham abandonado o catolicismo,
posto que eram conhecidos por mui piedosos, mas puderam flexibilizar as
regras de conduta com mais espaço. Espaço esse, outrora preenchido pelos
cuidados de Santo Inácio.
Embora não seja certo que assim tenha se dado, mas convém citar que
Serafim Leite fala de pouco mais de 700 escravos em 1759, na saída dos
jesuítas, e no inventário de 1791 constam 1342 cativos. Temos quase o dobro.
Se a incúria dos administradores foi, em algum momento, traduzida em ruína
dos negócios da fazenda, parece também ter redundado numa maior
natalidade entre os escravos. Se tomarmos por pressuposto que tal natalidade
é caudatária da conjunção do afrouxamento das regras morais com o
incremento da acumulação de fortuna, teremos que a ruína da fazenda foi
transformada em prosperidade para os seus cativos.
Tabela 4: Cabeças de domicílio entre os escravos da Real Fazenda de Santa
Cruz, 1791 e 1817.
1791 1817
Domicílios encabeçados por homens 251 (70%) 205 (60%)
Domicílios encabeçados por mulheres 110 (30%) 134 (40%)
Total de domicílios 361 (100%) 339 (100%)
Mulheres solteiras encabeçando domicílios 21 (6%) 25 (7%)
Mães solteiras encabeçando domicílios 7 (2%) 11 (3,2%)
Mulheres viúvas encabeçando domicílios 81 (22%) 83 (25%)
Mulheres casadas* encabeçando domicílios 8 (2%) 26 (8%)
* Sem marido mencionado ou com marido ausente
Fonte: Inventários de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz: 1791 e 1818 (sic.) Arquivo
Nacional, RJ.
81
A tabela 4 mostra alguns indicadores acerca da vida dos que foram
classificados como cabeças de domicílio. É bem provável que o conceito em
questão seja o de cabeça de um fogo, ou seja, uma unidade domiciliar e
produtiva, onde se congregavam os que trabalhavam e partilhavam do mesmo
teto, reunidos em torno do mesmo fogo. De qualquer modo, ainda coerente
com tudo o que foi exposto acima, as mulheres assumiram de modo mais
efetivo essa posição. Em 1791, as mulheres assinaladas no topo da lista de
habitantes de uma destas unidades representava menos de 1/3 do total. No
transcorrer da segunda década do século XIX, essa proporção se eleva para
40%.
O mais curioso é que os demais indicadores tendem a mostrar um
aumento da independência feminina em medidas bem mais modestas. O
diferencial parece estar nas relações externas ao grupo. Um número
significativo de mulheres aparece, em 1817, casadas com homens que não
pertencem ao mundo de Santa Cruz. Dentre os 26 casos, isto é, 8% das
mulheres casadas, pelo menos 9 trazem indicações de quem seja o marido.
É o que se deu com Rita Maria de 19 anos que após se casar com o
liberto João Manoel, também logrou obter sua alforria no dia 8 de junho de
1818. Outro exemplo é Joana Ferreira, de 34 anos, originária da família 3, onde
vivera com sua mãe, Cecília Vieira, uma viúva de 75 anos - seu pai, Manoel da
Paixão, faleceu num ponto qualquer do tempo, entre 1791 e 1817 - e com seus
outros quatro irmãos. Joana, embora não tenha obtido a liberdade até o
momento em que o inventário foi atualizado, saiu de seu grupo original para
formar uma nova unidade, a de número 498, onde figura sozinha, tendo a
82
indicação de seu esposo, o liberto Joaquim de Santanna, sido assentada nas
observações.
Chama mais atenção ainda os casos de escravas de Santa Cruz
casadas com escravos que estão na Quinta. A relativa precocidade das
esposas se comparadas ao quadro do inventário de 1791, confere uma certa
singularidade a matrimônios como o de Ignacia Cândida, de 16 anos. Ignacia
veio da família 22, onde morava com os pais, Jerônimo Rodrigues e Joanna
Rodrigues. Lá, ainda com seus pais, Ignácia deu a luz, numa data incerta entre
o final do ano de 1818 e o início de 1819, a Pedro Soares. Por certo, temos que
este foi inserido no grêmio da Santa Igreja, pelo sacramento do Batismo, em
fevereiro de 1819, e que assim permaneceu por pouco tempo. O pequeno
Pedro, veio a falecer em novembro do mesmo ano. Após a perda do filho,
Ignacia e Jozé Soares resolveram unir-se sob os laços do matrimônio católico,
não obstante o noivo estivesse a alguns quilômetros, na Quinta, a serviço de
Sua Majestade.
Também dotado de relativa precocidade, foi o matrimônio de Anna
Catharina que aos 14 anos já consta no inventário como casada com o escravo
Jozé Aniceto, que é da Quinta. Dela, não se sabe nem ao menos o domicílio de
origem.
Estes matrimônios podem ser evidências de um afrouxamento nas
tendências endogâmicas, ao mesmo tempo em que também podem significar
uma maior circulação dos escravos de Santa Cruz com outros ambientes
também ligados ao domínio real. De tal sorte que esta circulação ampliaria,
ainda que modo relativo, o escopo de opções matrimoniais aos quais estariam
sujeitos os cativos da Fazenda. Isto seria, então, mais evidente e notório entre
83
as mulheres, dada a desproporção entre os sexos, principalmente em idade
reprodutiva.
Será que as jovens escravas punham-se a pensar concretamente nesta
possibilidade? Talvez, ao final do dia, algumas rodas de raparigas pudessem
ser vistas comentando o assunto. Rodas, onde cada uma opinava sobre os
requisitos para estar em melhores condições para obter as atenções de um
liberto dos arredores - que caso fosse letrado, poderia ajudá-la a redigir uma
carta ao Príncipe Regente solicitando a sua própria alforria. Ou talvez, pelo
contrário, tais pensamentos assaltassem-nas no auge do dia, quando o labor
era menos suportável. Aí poderíamos imaginar uma ou outra mocetona a
pensar numa companhia que valesse o alento para as dores da vida. Quiçá,
que lhe tirasse a dor maior, a dor do cativeiro.
Os homens de lá... Esses, como todos os demais ao longo da História,
se esmerariam para subtrair às mulheres seus devaneios, apresentando-lhes
algo de seu próprio interesse. Factível como a ambição. A terra, os animais, o
direito ao enxoval, as vantagens de se casar o quanto antes. Ali mesmo, à
sombra de Santa Cruz.
84
4.5. O que se faz em Santa Cruz
Mesmo sendo produto das mãos jesuítas, que certamente a marcaram
com seu estilo próprio de trato, é preciso que se diga que a principal atividade
da Fazenda de Santa Cruz era a pecuária. Quando os padres foram expulsos
contava com mais de dez mil cabeças, não obstante houvesse lá cana, feijão,
arroz,... Ao contrário do que apurou Eugene Genovese
68
para o sul dos
Estados Unidos, onde a negligência e os maus-tratos dos negros eram
apontados como um dos responsáveis pela ruína da pecuária sulista, em Santa
Cruz os escravos campeiros eram relativamente eficientes. Genovese chegou
a encontrar testemunhos de época que atestavam ser, nas áreas de pecuária,
de pouca utilidade a posse de escravos. Na fazenda, o gado havia se
multiplicado sob o cuidado dos campeiros negros e sua ruína foi atribuída ao
desleixo dos administradores, alguns interessados em desmembrar a fazenda.
Certamente a primazia desta atividade se refletiu na constituição original
do plantel de escravos, definindo um trabalho muito menos árduo do que a
colheita de cana ou algodão, por exemplo. No entanto, dado o porte da
propriedade e o fato de ser pública, acreditamos que o predomínio da pecuária
tenha decrescido razoavelmente durante a administração publica.
Em que, então, uma escravatura tão extensa se ocuparia? Sabemos que
não estavam apenas a serviço de Sua Majestade e seus administradores, mas
também tinham seus próprios interesses para cuidar. O relatório do Deputado
Rafael de Carvalho afirma que os cativos detinham lotes de terra bem
consideráveis e que deles tiravam bons rendimentos, já que os cultivavam nos
68
GENOVESE, Eugene. A economia política da escravidão.Rio de Janeiro: Pallas. 1976. pp.
95-107.
85
sábados, domingos e dias santificados, ou seja, uma boa parte do ano. Não
trocaram essa regalia por outra, como o fornecimento das vestimentas; alguns
investiam ainda mais. Nos Mapas da ocupação da escravatura da Imperial
Fazenda de Santa Cruz, do Arquivo do Museu Imperial, constam, entre 1855 e
1858, de 5 a 20 escravos alugados a si.
69
Ou seja, pagavam para trabalhar nas
suas próprias ocupações, obviamente mais rentáveis que os jornais pagos à
fazenda.
Temos na Biblioteca Nacional um relatório datado de 1815, que ilustra
de modo geral em que se ocupavam os escravos da Fazenda. Neste relatório
figuram apenas os cativos que se encontram na Fazenda sem contar os de sua
propriedade deslocados para outras labutas. Seu conteúdo está expresso na
tabela 5.
Esta lista impressiona não apenas pelas minúcias, mas principalmente
pela idéia de auto-suficiência que ela é capaz de gerar. Santa Cruz
aparentemente produzia praticamente tudo o que necessitava e era
plenamente capaz de cuidar dos seus. A existência de cirurgiões, enfermeiros,
amas, parteiras,... revela que os cativos eram como que amparados pela
administração, quiçá para que tivessem plenas condições de trabalhar. Ao
mesmo tempo, é de se notar que apenas 34 escravos estão destacados para
aquela que tradicionalmente era tida como atividade principal da Fazenda: a
pecuária. Os 26 homens, auxiliados por 8 rapazes, aparentemente podiam
cuidar dos milhares de cabeças de gado criadas ali.
69
Mapas da ocupação da escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz, para os anos de
1855, 1856 e 1858. Arquivo do Museu Imperial. Petrópolis.
86
Tabela 5: Distribuição dos escravos de serviço da Real Fazenda de Santa
Cruz (1815)
Homens
Funções Homens Rapazes
Carpinteiro:
Oficiais 6
Aprendizes 14 19
Pedreiro:
Oficiais 6
Aprendizes 5
Serventes 5 7
Ferreiros:
Oficiais 5
Tocadores de fole 2
Sapateiros:
Oficiais
Aprendizes 1 3
Outros serviços
Oficiais curtidores 8
Oficiais manteigueiros 1
Oficiais tecelões 4
Oficiais oleiros 8
No hospital
Cirurgiões 1
Barbeiros 2
Enfermeiros 2
Cozinheiros 2
Carreiros 13
Candeeiros 12
Carroceiros 3
Campeiros 26 8
Centeiros enteireiros 4
Hortelões 2
Sacristãos 2 1
Com os empregados 2 6
Guardas de roças 9
Feitores 1
Nos caminhos 2
Com licenças 3
Na cavalariça 1
No armazém 1
A dispor diariamente 57
Soma 193 61 (254)
87
Mulheres
Funções Mulheres Raparigas
No fabrico de manteiga 1
Nas oficinas de teares 15 20
Na olaria 5
No armazém 8
Com os empregados 4
No Paço 1
Enfermeiras 4
Parteiras 2
Amas de cegos 10
Amas de crianças 11
Na horta 7
Colhendo mamonas 11
Paridas 26
Dispensadas por estarem próximas de parir 9
Nos caminhos 40 8
A dispor diariamente 164 22
Soma 318 50 (368)
Fonte: Observações sobre a administração da Real Fazenda de Santa Cruz, pelo tenente
coronel Francisco Cordeiro da Silva Torres. Acompanha uma relação dos escravos a serviço
naquela fazenda,1815 – Biblioteca Nacional (II - 34, 33, 8)
Se fizermos um cálculo duro de produtividade, teremos cerca de 5,5%
de investimento de trabalho na atividade-fim contra um absurdo índice de
94,5% de investimento de força potencialmente produtiva em atividades outras.
Não que os pastos tenham chegado ao seu limite de produtividade, muito pelo
contrário, continham menos de 2/3 das cabeças de gado deixadas pelos
jesuítas.
Ora, poderia a fazenda ter deslocado o seu centro de atividades da
criação ao cultivo? Toda a sua existência está ligada à pecuária e ao abate
como principal meio para gerar rendimentos e até recentemente era conhecida
como Abatedouro Nacional. Além disso, discriminados em atividades agrícolas,
encontram-se apenas 18 escravos, menos de 3% do potencial de mão-de-obra.
Se acrescentarmos a esses as 11 mulheres da colheita de mamona, teremos
29 cativos, menos de 5%.
88
Associando as duas atividades presumíveis de uma fazenda, agricultura
e pecuária, não ocuparíamos 10% da escravaria. Isso poderia ser explicável
pelo período do ano em que a lista foi montada. Caso não se tratasse do
período de plantio nem do de colheita, os escravos da lavoura poderiam estar
ociosos. Essa hipótese é plausível considerando-se os 243 escravos ditos “a
dispor diariamente”, que representam algo em torno de 40% da capacidade de
trabalho da escravaria, mesmo não sendo certo que seus labores estivessem
ligados à agricultura ou à pecuária. Mas ainda assim, somando tudo teríamos
no máximo 50% dos escravos com potencial de trabalho sendo possivelmente
destinados às atividades econômicas primárias.
Com isso fica mais ou menos claro que a Fazenda durante a sua
administração pública, foi progressivamente descaracterizada como unidade
produtiva nos moldes tradicionais, para se acrescentar aos seus produtos
outras fontes de lucros indiretos. É o que constata Manoel Martins do Couto
Reys
70
conforme descrito em suas memórias, e a presença de um elevado
número de escravos especializados o confirma. Entre os homens, o índice de
especialização é de 40%, contando os carpinteiros, pedreiros, ferreiros,
sapateiros, curtidores, manteigueiros, tecelões, oleiros, e os aprendizes que
com eles trabalhavam. Estariam todos eles envolvidos apenas na manutenção
da enorme estrutura da fazenda?
Seria difícil imagina-lo. Na relação dos 17 escravos pertencentes à
Imperial Fazenda de Santa Cruz e destacados para a feitoria de Santarém em
troca dos escravos pertencentes ao inventário da mesma feitoria que se acham
70
REYS, Manoel Martins do Couto. “Memórias de Santa Cruz”. In Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Tomo V. 1843. p. 152
89
destacados para a Quinta da Boa Vistas, encontram-se nada menos do que 7
especializados. São dois carpinteiros, três pedreiros, um oleiro e um curtidor.
Então temos que em Santa Cruz, um elevado percentual de sua
escravaria detinha algum conhecimento profissional e esses cativos, tanto
quanto os não qualificados eram destacados para suprir as demandas por
mão-de-obra. É possível que o plano de Couto Reys tenha sido posto em
prática. Dizia ele:
Com estas considerações, tantas vezes conferidas e analysadas na minha
memória, me pareceu que, entre tantos artigos de que recordava, dois
mereciam uma particular attenção para serem adoptados, e seriam bem
aceitos na justiça dos gênios cordados imperiais. O primeiro, a educação
de um certo número de rapazes escravos, mais geitosos, e de provada
habilidade, applicando-os a ofícios mecanicos, debaixo da doutrina, e
insinuaçõa de bons mestres, formando com este expediente um
congregado de hábeis carpinteiros da ribeira e obra branca, de calafates e
tanoeiros de ferreiros e serralheiros, de pedreiros, caboqueiros, &c., para
se occuparem indefectivelmente nas obras reaes, como nos arsenaes,
trem, e casa de armas: cujos jornaes avultadissimos, em que a fazenda
real faz annualmente consideráveis despezas, ficando nos cofres do Erário,
eram consequente e indubitável rendimento da fazenda de Santa Cruz, que
entraria na conta de seus lucros.
71
Também corrobora a efetivação desse expediente, o relatório de
distribuição da escravaria da fazenda em 1849,
72
que apresenta um índice de
31% da população masculina ativa em atividade ou em preparação para o
exercício de um ofício. Ainda que esse índice seja menor do que o de 1815, é
três vezes maior do que o percentual encontrado por Florentino e Góes para o
agro-fluminense como um todo.
73
É provável que o incentivo a formação profissional transparecesse para
a Coroa e para a administração como parte integrante e importante da
71
Id. pp. 157-158.
72
Mapa da totalidade da Escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz. Datado de
30/06/1849 e assinado pelo escrivão Pedro Nolasco da Silva. Arquivo do Museu Imperial.
Petrópolis.
73
FLORENTINO, Manolo e GÓES, J. Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1997. p. 109.
90
lucratividade gerada pela fazenda, tanto quanto suas colheitas de grãos da
terra - arroz, feijão, milho,... - e tanto quanto a carne verde saída de seus
abatedouros para saciar o Rio de Janeiro. Porém, por certo não era essa a
perspectiva que os escravos tinham de seu próprio trabalho.
Se o exercício de um determinado ofício poderia lhe valer uma ausência
da fazenda, o que significa abandonar suas fontes de renda, qual seria a
vantagem de ser um escravo artesão? Stuart Schwartz nos mostra como
determinados tipos de ocupação costumavam render ao escravo tempo extra
para cuidar de sua própria produção, além de uma diferenciação social advinda
da sua capacidade de gerir os seus próprios investimentos.
74
Um maior
controle do seu tempo, ou melhor, um maior tempo sob seu controle parece ter
sido uma das vantagens de exercer um ofício para os cativos.
Em Santa Cruz para cada ausência que se prolongasse a ponto de
arruinar suas terras, correspondia um período de folga para que o dito cativo
colocasse suas coisas em ordem. Tal período era de um ano.
75
Mesmo sendo
uma determinação aplicada indistintamente, ser um artesão poderia lhe
proporcionar alguns anos de folga na vida, já que para arruinar uma roça
bastam poucos meses de descuido.
Seja por isso, seja por se tratar de um trabalho melhor que o ordinário, o
fato é que em torno de 1818, havia 174 cativos com ocupação que lhe exigia
uma habilidade a ser aprendida, e desses, 70 escravos, ou seja, mais ou
menos 40%, cuidavam para que outro membro de sua família seguisse a
mesma trilha.
74
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: EDUSC, 2001.
75
Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho membro da
Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis - R. J.). p. 3.
91
Mesmo não correspondendo à totalidade dos casos, é importante
mencionar algumas histórias de sucessão dos conhecimentos profissionais.
Um exemplo disso é Francisco de Almeida, tecelão no inventário de 1818.
Francisco tem por aprendiz ninguém menos que seu filho Luís José, de apenas
oito anos. Chama ainda mais atenção o caso de Domingos Ramos, um
caboqueiro de 51 anos casado com Maria da Penna. Seus três filhos,
Francisco de Souza de 16 anos, José Isidoro de 14 anos e João de Souza de
11 anos, são todos eles aprendizes de carpintaria.
Outros casos chegam a ser curiosos como o de Francisco do Desterro,
um oleiro que possivelmente providenciou para que seu filho se tornasse
músico. Feliciano Teixeira conseguiu se manter no “ofício” da música, apesar
de sua notória inaptidão para a coisa, tão notória que valeu a observação: “não
tem jeito para a Quinta”. Diferente foi o acontecido com Anna do Rosário
Pimenta, uma jovem de 25 anos, casada, embora o marido não esteja
assinalado. Seus filhos, Vicência Ferreira de oito anos e Targine José de pouco
mais de um ano, estão destinados à música na Quinta. É bem provável que o
pai não registrado possa ter obtido, ainda que precocemente, o direito de seus
filhos serem classificados como músicos.
Certamente estes casos mostram que, de alguma maneira, o ofício era
algo desejado pelos cativos, e portanto, algo que lhes conferia vantagens e
algum status frente aos demais. Os músicos citados indicam que a música, e
quiçá os ofícios em geral, não tinham necessariamente uma ligação com a
aptidão, com os “mais geitosos, e de provada habilidade” dos quais falava
Couto Reys. Antes, tratava-se de algum tipo de arranjo da política cotidiana
92
que facultava, mesmo aos inaptos, a possibilidade de se furtar ao trabalho
braçal.
Nos relatórios de distribuição das tarefas também aparecem também os
escravos “a dispor diariamente” (1815) e “nas esquadras ambulantes” (1817), o
que equivale dizer, os que cuidam dos serviços mais pesados e não-
especializados dentro da Fazenda. Em ambos os casos eles representam 40%
da mão-de-obra classificada destes braços para todo serviço. Mais uma vez em
ambos os relatórios, aproximadamente 80% são mulheres; para ser mais
exato, em 1815 as mulheres representam 76,5% e em 1849 são 80%.
De um modo geral, é possível imaginar as mulheres escravas de Santa
Cruz, se pondo a trabalhar pesado, certamente mais pesado do que gostariam,
dada a escassez de homens. A elas era negado o acesso à praticamente todos
os ofícios, exceto a musica. Poderiam ter trabalhos específicos como ser ama,
enfermeira, trabalhar na olaria, ou no fabrico de manteiga, ser parteiras ou
trabalhar nos teares. Mas, não eram consideradas detentoras do ofício de seu
trabalho.
93
5. Socialialização Parental e Escravidão em Santa Cruz
De um ponto de vista estritamente teórico, poderíamos tentar definir
parentesco como uma identificação profunda entre os indivíduos. Aparentar-se
seria, antes do mais, a obtenção de aliados de tal feita que o parente esta
diametralmente oposto ao estrangeiro. Deriva daí uma necessidade - branda
ou urgente - conforme a situação vivida, de articular o maior número possível
de parentes. Os meios para isso são basicamente a consangüinidade e a
consecução de cônjuges.
Mas outros mecanismos podem ser implementados, dado a um
acréscimo na necessidade de se articular parentalmente. Um outro meio de se
conquistar aparentados seria instituir um rito que sancionasse uma aliança
forjada anteriormente. O compadrio na sociedade luso-brasileira funcionou
como um desses mecanismos de aparentar, constituindo alianças desejadas
por ambas as partes, pais e padrinhos, estendida a uma terceira parte o
batizado.
Um exemplo claro das alianças possíveis com o compadrio é o difundido
habito de entregar os filhos para os "coronéis" batizarem. Aos pais interessa
aproximar-se do elemento poderoso do seu lugar e o coronel manteria, desse
mesmo modo, o clientelismo que lhe caracteriza. Ao batizado facultaria a
"proteção" - melhor traduzida pela manutenção de sua dependência.
94
O parentesco consangüíneo estabelece a primeira e mais fundamental
das relações sociais, a que se firma entre mãe e filho,
76
e desta derivam as
relações de proteção advindas de uma eventual figura paterna. As relações
conjugais que a princípio seriam preferencialmente obtidas desta célula, se
deslocam para seu exterior pela - praticamente universal - existência do tabu
do incesto. Provavelmente as características demográficas dos primeiros
grupos sociais humanos impediam, ou ao menos dificultavam, as relações
matrimoniais intracelulares. A pequena expectativa de vida, associada a um
intervalo intergenésico razoavelmente elevado, acarretaria uma situação
familiar em que a maturidade sexual dos filhos não se daria dentro do período
de vida dos pais.
Entre os irmãos, de modo semelhante, seria mais factível buscar uma
parceria matrimonial fora, do que esperar os anos relativos à diferença etária
para a próxima geração do sexo oposto. Este padrão se infundiu de tal modo
na formação cultural desses pueris grupos humanos e se soldou na sua praxis
tão solidamente que logrou sobreviver às mudanças demográficas.
Em Santa Cruz havia um grande número de cativos – entre 700 e 1600,
dependendo da época e do registro – que dividam o espaço da fazenda. A
coexistência forçada entre estes indivíduos proporcionou a ocasião para o
intercurso sexual. Porém não apenas isso. Dado que falamos de seres
humanos, não obstante as classificações (peça, semovente, gado humano,...)
as relações sexuais obedeciam determinados preceitos sociais e produziam
novos laços de solidariedade. Seja pela geração de descendentes comuns ou
pela troca de indiduos entre os grupos, o fato é que além de famílias
76
Cf. FOX, Robin. Parentesco e Casamento - uma perspectiva antropológica. Lisboa: Vega.
s/d.
95
nucleares - lares ou fogos – é possível encontrar padrões de socialização
extracelulares. As regras sociais, provavelmente tácitas, eram produto da
confluência de um sem número de fatores como as heranças culturais dos
negros, a pregação jesuítica e as conjunturas históricas. A existência de tais
padrões ou estratégias indica uma organicidade comunal. Certamente esses
aspectos tornaram as relações extracelulares perceptíveis, indicando que o
parentesco era uma força social poderosa neste meio.
Uma das pistas que nos conduziram a esta busca foram as observações
do Deputado Rafael de Carvalho. No seu texto, o deputado se refere a uma
rede de parentesco que envolvia todos os membros da comunidade. Diz o
deputado a respeito do “povo jesuítico”: “Estes escravos reproduzindo-se em si
mesmos desde os Jesuítas, formão hoje huma associação de parentesco mixto
e complicado, apresentando huma raça de gente muito feia.”
77
O mais sintomático dos indícios deste parentesco é que não é possível
montar muitas genealogias completas. A princípio a tarefa parece simples, já
que temos registros distando aproximadamente uma geração um do outro. Em
tese seria uma tarefa banal construir genealogias de três, quatro, ou até
mesmo cinco gerações. Só depois de um bom tempo investido nesta inglória
tarefa é que se percebe que uma genealogia completa envolveria praticamente
todo o plantel. Nos estudos de famílias escravas, normalmente o limite da
família é dado pela escassez de fontes, aqui não. Há sempre uma nova união
matrimonial que abre todo um novo leque de aparentados, e assim se sucede
ad nauseum.
77
Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho membro da
Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do
Museu Imperial de Petrópolis - R. J.). p. 3.
96
De todo modo cumpre-nos a árdua tarefa de seguir os vestígios deste
“parentesco mixto e complicado” estabelecido por essa gente que o deputado
apreciava por “muito feia”. Em função das diferenças entre os inventários é
possível postular que as mudanças encontradas até aqui tenham um
desdobramento pelos modos de socialização. Para averiguar tal hipótese a
exposição da complexa análise das redes parentais, os inventários serão
analisados separadamente, começando com o de 1791, para posteriormente
comparar os resultados com o que foi obtido da lista de 1818.
97
5.1. No final do século XVIII
5.1.1. Dos sobrenomes às relações
Um aspecto relevante da sedimentação social em Santa Cruz, já
anteriormente citado, é o fato de que em 1791, exceto um único caso, todos os
escravos possuem um nome composto, isto é, um nome com dois termos.
Num plantel de 1342 escravos dar um nome simples não permitiria que
este cumprisse uma das suas principais funções, diferenciar alguém dos
demais. No entanto, isso não invalida uma pesquisa a esse respeito, já que a
praticidade está no uso de dois termos no nome, e não na escolha de que
termos seriam esses. Uma vez que muito dificilmente uma tal tarefa seria
aleatória,
78
a questão que se nos impõe é: quais critérios teriam presidido a
escolha de nomes entre os cativos de Santa Cruz?
Algumas vezes os cativos adotavam sobrenomes após sua alforria. É o
caso de Francisco Nunes de Moraes, um africano liberto, originário da Costa da
Mina, que lavrou seu testamento na Bahia, em 6 de setembro de 1790. Nele
declara que havia comprado sua liberdade dos seus senhores, os herdeiros do
Capitão-Mor Antônio Nunes de Moraes, pela quantia de duzentos e cinqüenta
mil réis. Por esse trecho do testamento já é possível perceber uma prática
muito significativa, a adoção do sobre nome dos senhores pelos escravos.
Francisco pôde, e mais, quis adotar o sobrenome do Capitão-Mor Antônio.
78
“... atribuir um nome resume experiências pessoais, acontecimentos importantes, visões de
mundo e valores culturais.” FLORENTINO, Manolo e GOES, J. Roberto. in “Comércio negreiro
e estratégias de socialização parental entre os escravos no agro-fluminense”. Anais do IX
Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambú: ABEP. 1994. p. 369.
98
Antes que se pense apenas na adesão ou devoção desses aos seus
senhores, é possível postular que essa foi uma “herança” tomada ao antigo
senhor. Um nome, uma identidade no mundo luso-colonial. Algo que permitisse
a construção de relações livres. Algo difícil ao Francisco Mina, é certamente
mais factível ao Francisco Nunes de Moraes. Enfim uma estratégia, sem dolo,
mas com ganho.
No caso que temos nas mãos a situação é bem diversa. Trata-se de um
grupo substantivo e não de um único indivíduo. Também as relações que
seriam viabilizadas pelo uso de sobrenomes estariam se estabelecendo num
mundo escravo - e, no caso, relativamente circunscrito - e muito pouco diante
da sociedade livre. Os fatores que levaram a definir quais seriam os
sobrenomes de cada indivíduo, provavelmente estavam ligados às próprias
relações internas ao plantel.
É o que também percebeu Carla Casper Hackenberg,
79
quando analisou
os grupo de escravos pertencentes à fazenda do Cabussú. Carla postula que a
nomeação é, também entre os cativos, uma forma de homenagem a
antepassados ou parentes próximos. Embora uma elevada percentagem de
sua amostra, 35% dos casos, estejam relacionados aos proprietários, 62% se
referem a parentes e padrinhos. Em Cabussú o que estava em questão era o
primeiro nome, que em Santa Cruz não apresenta a mesma regularidade. Mas
entre o “povo jesuítico” o que se destaca é o uso de sobrenomes.
De fato, nem sempre é possível afirmar que o segundo termo do nome
se trate de um sobrenome com todo o rigor e nem que seja o último nome do
cativo. Muitos deles parecem ser apenas nomes compostos, do tipo Maria
79
HACKENBERG, Carla Casper. Famílias em cativeiro. Dissertação inédita. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná. 1997.
99
Francisca, Manoel Antonio,..., o que pode deixar dúvida de que seja o nome
completo.
O primeiro passo necessário seria estabelecer alguns critérios que nos
permitissem definir com um mínimo de confiabilidade, quais seriam
sobrenomes e, por conseguinte, os termos que apontassem para existência de
algum tipo de agrupamento entre os cativos. Talvez o mais apropriado seja
defini-los pela via negativa, isto é, quais seriam os nomes compostos. Para
tanto, ao menos dois critérios já se impõem: o primeiro, seria dado pelo fato de
que um nome composto permite flexão de gênero, ou seja, se há um Antônio
Francisco, e pode haver uma Maria Francisca, Francisco(a) não pode ser, de
forma alguma um sobrenome. O segundo, deriva do primeiro, e decorre de que
se o segundo termo do nome pode ser usado como primeiro, este é, por isso
mesmo, definidor de gênero. Há ainda os casos específicos do uso do nome
‘Jesus’ no segundo termo e dos títulos dados ao nome Maria, que por motivos
óbvios, não nos permitem tratá-los como sobrenome.
A partir do tratamento proposto para os dados do plantel de Santa Cruz,
observamos que apenas 797, dos 1342 cativos podem, com segurança, serem
tidos como membros de grupos de sobrenomes.
Mas como explicar a escolha de um determinado sobrenome se, como
sabemos, sobrenomes não determinam o parentesco direto nos moldes
nucleares já que pais, mães e filhos aparecem, na grande maioria dos casos,
com os nomes mais diversos?
Um primeiro critério que se revela é o da proximidade espacial, posto
que 424, isto é, 53% dos cativos considerados, possuem um semelhante com o
mesmo sobrenome em até nove grupos familiares dispostos antes ou depois
100
do seu, na organização da fonte. Como já foi dito, nada impede, e ao contrário,
a lógica aponta, que esta disposição tenha relação direta com a organização
física dos escravos. Isso nos mostra, em primeiro lugar, que para mais da
metade dos cativos em questão, havia um outro indivíduo com o mesmo
sobrenome nas proximidades.
Para empreendermos uma análise mais fina, subdividindo esse espaço
circundante em faixas de proximidade, como mostra o gráfico 1, perceberemos
que havia uma forte tendência de agregação entre esses indivíduos. Logo, não
apenas a escolha do nome não era aleatória, mas também a divisão e a
ocupação do espaço não o eram.
Gráfico 8: Número de pessoas portadoras do mesmo sobrenome por local
relativo de moradia, Santa Cruz, 1791.
0
20
40
60
80
100
120
140
I
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ediatos
Ad
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Fonte: Inventário da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791. Arquivo Nacional. RJ.
101
Ao que tudo indica, a divisão do espaço se dava de forma a aproximar,
na medida do possível, pessoas que mantinham alguma afinidade entre si. Se
os homens organizam seu espaço por meio de suas relações socio-culturais, a
expressão social dessa relação pode ter se dado pela troca de sobrenomes.
Por outras vias, a leitura do gráfico também nos aponta para uma preferência
pela manutenção de núcleos, onde se reproduziam esses laços.
Lembrando que esta Fazenda era estatal e se mantinha relativamente
distante do tráfico atlântico, é possível que este gráfico esteja mostrando
alguma forma de relação social desenvolvida no seio da escravaria, e que
escapou às letras do autor do inventário. Assim, os cativos que tinham longa
convivência, não apenas pessoal, mas familiar, isto é, por gerações a fio,
precisavam desenvolver modelos relacionais que possibilitassem o convívio e a
organização política em tão extensa comunidade.
Ora, essa tendência à aproximação esbarra na própria proliferação de
famílias. Com a sucessiva formação de novas unidades, os cativos, em alguns
momentos, se veriam impedidos fisicamente de manter a distribuição desejada.
Talvez, por isso, tenham que ter estabelecido outras formas de manutenção
destes vínculos. O primeiro critério que expomos, só dá conta de pouco mais
da metade dos cativos que consideramos portadores de um sobrenome. Isso
pode indicar que algum outro tipo de critério também passou desapercebido até
agora.
Podemos pensar que muitos eram os modos de materializar um
parentesco tão plural quanto o que descreveu o deputado Rafael. Assim,
haveria de existir um outro critério que mantivesse os vínculos para além da
dispersão espacial. A observação dos indivíduos que possuem o mesmo
102
sobrenome, quando também ordenados pelas suas idades revela que
freqüentemente existem grupos de pessoas que além do sobrenome
compartilham a idade. Se incluirmos aqueles que são registrados com um ano
de diferença, o que pode representar meses de distância entre os nascimentos,
esse número se revela surpreendente. Cerca de 438 cativos podem ter sido
batizados com o mesmo sobrenome para firmar uma aliança, possivelmente
entre seus pais ou padrinhos.
Existem ainda os que se enquadram em ambos os critérios, o espacial e
o temporal, e que configuram mais de 1/3 dos cativos considerados. Assim,
distribuídos por esses critérios temos:
. Cativos com sobrenome: 797 cativos (100%)
. Somente pelo critério espacial: 142 cativos (18%)
. Somente pelo critério temporal: 156 cativos (20%)
. Por ambos os critérios: 282 cativos (35%)
. Total 580 cativos (73%)
Este quadro nos informa sobre duas possibilidades que rondam a
análise dos sobrenomes. É possível pensar que na origem do nome, o detentor
anterior fosse o mesmo em ambos os casos. Alguém tido como social e
afetivamente relevante, e que por isso poderia ser homenageado tanto pelos
circunvizinhos, quanto por aqueles que lhe herdam o nome no mesmo
momento. O fato é que esse uso, agora sabidamente sistemático, não
103
aleatório, representa a construção de uma ordem social relativamente sólida, já
que engendrava suas malhas por toda a extensão do espaço que abrigava a
comunidade.
Ainda que não possamos definir qual a origem efetiva do sobrenome, se
de um padrinho, ou de uma madrinha, ou outra coisa qualquer, a definição de
critérios lógicos que cubram a quase totalidade dos casos, aponta para um uso
cultural do nome, ou seja, uma forma de manter identidades e preservar
ligações de ordem social e afetiva.
104
5.1.2. A ocupação do espaço e as relações cativas
Como dissemos antes, as relações parentais indicadas pelos nomes,
podem ter definido a ocupação do espaço disponível para as moradias dos
escravos. Assim, é possível que se disponha de forma ordenada, o conjunto
da fonte de 1791, de tal modo a atender aos critérios de ocupação e de
produção do inventário simultaneamente. O centro da propagação das
gerações de famílias presentes no inventário é, possivelmente, o núcleo de
famílias entre os grupos 247 e 276, onde estão todos os quatros escravos
assinalados com mais de 100 anos.
Se dividirmos os grupos, e por suposição o espaço com o mesmo
tamanho do subgrupo sugerido pela ocupação destes cativos centenários,
80
será possível intuir o fluxo de difusão das gerações de que dispomos. Para
tanto é preciso combinar a disseminação de pessoas idosas - nesta etapa do
trabalho, consideradas todas as que têm acima de 60 anos - com a ordenação
dada pelo inventário.
Assim podemos chegar ao diagrama do gráfico 9, que estabelece dois
fluxos distintos, um de ocupação outro de inventário. Neste diagrama, o nível
representa o ponto na escala de gerações entre 60 e 112 anos e, por suposto,
a ordem na difusão das gerações. A área, determinada por uma letra (A-M),
80
Mesmo que as idades assinaladas não correspondam à idade verdadeira, não torna inválido
o raciocínio. Ao contrário, se estamos admitindo a idade como fator de ancestralidade, a
credibilidade desta informação se mantém, já que só seria verossímil uma idade tão avançada
se correspondesse à idade aproximada ou a idade “social”. Em outras palavras, ou eram
mesmo centenários, ou a comunidade os considerava como em condição semelhante.
105
expressa um núcleo de famílias agrupadas segundo o tamanho do grupo de
indivíduos mais velhos, isto é, 36 famílias. O que corrobora essa divisão é a
incrível regularidade com que os idosos aparecem em cada um destes núcleos
numericamente iguais entre si. É como se pudéssemos fatiar o espaço social
de Santa Cruz e observar que em cada uma das fatias há um núcleo com
alguém com mais de 60 anos de idade, impedindo a aceitação da idéia de
confinamento dos velhos nessa propriedade. E finalmente, o fluxo de inventário
expresso pelas setas largas e dado pela ordem em que as famílias são
transcritas no inventário.
Obviamente não se trata de uma distribuição absoluta, mas relativa, ou
seja, a julgar pela combinação desses dois critérios, as posições relacionais da
ocupação dos grupos de famílias era aproximadamente como a descrevemos
no gráfico 9, segundo os níveis:
Nível 1: A geração mais velha tem 100 anos ou mais
Nível 2: A geração mais velha tem entre 90 e 99 anos
Nível 3: A geração mais velha tem entre 80 e 89 anos
Nível 4: A geração mais velha tem entre 70 e 79 anos
Nível 5: A geração mais velha tem entre 60 e 69 anos
Parece ficar pouco convincente o caminho de ida e volta feito pelo
inventariante no seu percurso. Por que não teria ele seguido numa espécie de
varredura toda a região, preferindo ir ao fundo e retornar? Tal questão parece
ter solução quando analisamos a planta da distribuição espacial das senzalas
106
de Santa Cruz. O diagrama que segue
81
nos mostra que o espaço das
senzalas era dividido em dois bairros, à esquerda do terreiro central estava o
bairro da Limeira, e à direita, o da Pacotiba.
Se nossas suposições estiverem corretas, é provável que as famílias
dos grupos de A até F estivessem em um dos hemisférios, enquanto as
famílias dos grupos de G a M, no outro. Embora não nos seja possível, com as
informações de que dispomos afirmar quem estaria onde, é patente que o
espaço público de Santa Cruz era ordenado. Longe, portanto, da anomia.
81
Baseado na planta encontrada em: TELLES, Maria L. M. S. “A conquista da terra e a
‘conquista’ das almas”. in
A forma e a imagem - arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro
colonial. Rio de Janeiro: s.n., s.d.
107
área C / nível 3
67-96
Gráfico 9: Quadro das Posições Relativas das Unidades Familiares dentro da
Real Fazenda de Santa Cruz.
Igreja
Bairro 1 Bairro 2
Iníco do Fim do
inventário Inventário
4
Fluxo das anotações dos Inventários
Provável fluxo de disseminação das gerações
área I /nível 1
247-276
área B / nível 2
37-66
área A / nível 3
1-36
área E/ nível 5
127-156
área F / nível 4
157-186
área H / nível 2
217-246
área D / nível 2
97-126
área M/ nível 2
337-366
área J / nível 4
277-306
Área L / nível 3
307-336
área G / nível 3
187-216
108
5.2. No início do século XIX
Vimos que, segundo o inventário de 1791, os cativos da Real Fazenda
de Santa Cruz lograram estruturar uma complexa rede de parentesco, como
dizia o deputado Rafael de Carvalho. Vimos que este parentesco se plastificava
na atribuição de sobrenomes, de tal modo que os vizinhos e os que nasceram
na mesma época recebiam os sobrenomes como forma de sedimentar a
relação.
Passados 25 anos, o novo inventário feito apresenta alguns problemas
para esse tipo de análise. O primeiro deles é a presença de um certo numero
de cativos com um nome simples - isto é, provido de apenas um termo. O
surgimento desses cativos pode indicar uma alteração na acuidade das
anotações, mas, por se tratar, na maioria dos casos, de menores de 10 anos,
podemos imaginar que de fato estaríamos diante de uma alteração em um dos
modelos de plasticidade das relações sociais em Santa Cruz.
Praticamente todos os cativos sem sobrenome estão, entre 1817 e 1821,
com menos de 20 anos. Estamos falando de 5,4% dos cativos, ou seja, 78 dos
1456 nomes arrolados entre 1817 e 1821. Desses, 30 tinham menos de 5 anos
quando de seu registro, 32 estavam entre 5 e 10 anos quando tiveram seus
nomes assentados no inventário e os outros 16, estavam com idade acima de
10 e abaixo de 20 anos.
Os casos de sobrenome stritu sensu também são menos freqüentes do
que no primeiro inventário. Enquanto em 1791 havia 797 portadores de
sobrenomes segundo os critérios adotados, isto é cerca de 60% dos cativos,
em 1817 chegam apenas a 40% (591 cativos). É possível que estas alterações
109
estejam apontando para um paulatino desuso dos sobrenomes como emblema
de relações.
Outro índice deste possível movimento é a diferença de idade observada
entre os portadores de sobrenomes e os demais cativos. Os indiduos ligados
aos sobrenomes têm, em média, 27.4 anos; enquanto seus correlatos
alcançam apenas a média de 16 anos de idade. Os mais jovens parecem se
servirem cada vez menos dos sobrenomes para materializar os seus laços de
afinidade.
Mas esse prenúncio de mudança não nos impede, nem nos exime, da
tarefa de investigar a permanência dos portadores de sobrenome no inventário
de 1817. Nesse sentido, a primeira observação que pôde ser feita é de que ele
não apresenta a mesma regularidade do de 1791. Ao contrario, o segundo
inventário apresenta os portadores de sobrenomes quase tão distantes entre si
quantos os demais cativos.
Isto colocaria em xeque o procedimento tomado quanto aos dados de 1791?
Não necessariamente. É provável que o abando do uso de sobrenomes fosse
abrindo “buracos” na lista nominal. Não que os parentes não estivessem lá, é
possível que estivessem, só que agora não mais reconhecíveis pelo seu
sobrenome.
O outro critério identificado para a proximidade entre os portadores de
sobrenomes sofreria a mesma ação imperativa. No entanto, quanto às idades,
o que se dá é um pouco diferente. Em 1791, havia 438 portadores de
sobrenomes nascidos aproximadamente na mesma época, o equivalente a
aproximadamente 55% da população com sobrenomes. No segundo, esta cifra
alcança mais de 40%. A diferença no decréscimo é substantiva. Para o critério
110
do local de moradia a redução é de 1/3 enquanto no critério das idades a
redução alcança apenas 1/5.
Gráfico 10: Redução na aplicação dos critério de escolha de sobrenomes.
0
10
20
30
40
50
60
Por local Por idade
1791 1817
Fonte: Inventários de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz: 1791 e 1818 (sic.) Arquivo
Nacional, RJ.
Como e porquê tais mudanças ocorreram não sabemos ao certo. É
possível que a maior circulação dos cativos em ambientes diversificados e a
intensificação das relações com indiduos destas esferas sociais, tenham
contribuído bastante para que houvesse uma sensível alteração no modo de
materializar as relações parentais. È possível ainda, embora pouco provável,
que os índices fossem os mesmos entre os dois inventários e a nossa análise
estaria minada pela sub-numeração gerada com o recrutamento de um grande
número de habitantes para trabalhar em outros lugares.
Mas temos uma outra análise para fazer. Ocorre que o declínio
demográfico observado no transcorrer do intervalo entre os registros foi
acompanhado de um crescimento no número de habitações. Em 1791,
111
descontadas as distorções, temos 1330 habitantes em 361 unidades
domiciliares, perfazendo uma média de 3,7 habitantes por unidade. No quarto
de século que se seguiu, temos, em 1817, 1094 habitantes em 398 unidades,
chegando apenas a 2.7 habitantes por domicílio. Isso pode nos indicar que,
além de um maior acesso dos cativos à construção destas unidades, há uma
permanência dos domicílios já construídos, possivelmente legado por
gerações. Uma das evidências que levam a tal hipótese é o fato de que a área
I, de nível 1, isto é, onde estavam cativos acima de 100 anos, e a área H, de
nível 2, cativos na faixa dos 90 anos, são constituem 2 das 3 que em 1817
apresentam escravos da faixa dos 70 anos. E mais, a única escrava com mais
de 80 anos no inventário de 1817 está exatamente na mesma área dos cativos
centenários em 1791.
112
5.3. Da permanência e transmissão da posse das habitações
O Deputado Rafael de Carvalho nos dá algumas dicas preciosas sobre a
vida em Santa Cruz. Uma das "deixas" que aparecem no texto do deputado já
pudemos conferir: a existência de um intrincado sistema de parentesco entre
os cativos. Uma outra que talvez possamos inferir a partir de alguns indícios, é
a existência de legados em herança.
Como visto anteriormente, os cativos da Fazenda obtinham uma certa
acumulação de posses, seja pela sua produção agrícola, obtida pela posse de
pedaços de terra e pela possibilidade de cultivá-los nos sábados, domingos e
dias santificados - segundo o mesmo deputado, uma boa porção dos dias do
ano -; seja pelo exercício de alguma outra atividade lucrativa implementada
nesses mesmos dias.
Se era possível a acumulação de bens, deveria ser igualmente possível
a diferenciação social entre os membros da dita comunidade. Desde os tempos
jesuíticos já havia indícios de que a comunidade de Santa Cruz não era
homogênea do ponto de vista da distribuição de bens. Segundo as pesquisas
de Serafim Leite
82
as senzalas poderiam ser divididas em dois tipos: as
construções de parede e telha e as de sapê. É provável que esta distinção
indique uma diferença entre os seus moradores, estabelecendo algum tipo de
hierarquia econômica entre eles.
Se havia acúmulo de posses e hierarquia econômica, é lógico supor que
houvesse critérios, explícitos ou tácitos, para a circulação destes bens do qual
82
LEITE, Serafim S. I. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro. 1945.p. 59.
113
fazia parte algum padrão no legado de heranças. Se assim for, talvez
possamos capturar algo a esse respeito na transmissão da única posse dos
cativos cujos registros nos chegaram às mãos: as unidades domiciliares.
Como vimos anteriormente, algumas famílias ao se constituírem
acabavam buscando domicílio longe de seu grupo de origem, quiçá na orla do
espaço de habitação. Mas esta não era a única alternativa. Havia outros que se
formavam próximo ao centro geográfico da comunidade. Vejamos o que foi
possível fazer com o valor da diferença entre o número do domicílio em que os
cativos estavam em 1791 (origem) e o número da unidade na qual foram
assentados em 1817 (destino).
Dos 1342 escravos lavrados no inventário de 1791, 395 cativos, isto é,
cerca de 30%, ainda estavam presentes no inventário de 1817. É provável que
esse percentual seja na realidade bem mais elevado, já que em alguns casos
não foi possível fazer uma identificação positiva com confiabilidade. As
identificações feitas levavam em conta três critérios fundamentais: o nome, a
idade e o círculo de familiares mais próximos - esse último muito pouco eficaz
dadas as mudanças na estrutura do domicílio ao longo dos 25 anos que
separam os registros.
As unidades domiciliares de que falamos são, a bem da verdade,
pequenos edifícios ou subdivisões de edifícios maiores que supomos
acompanhados de pedaços de terra. Quanto ao legado das terras, nada
poderemos saber, quanto ao espaço de moradia é possível que capturemos
alguns indícios sobre tendências na herança das senzalas.
114
Robert Slenes apresenta um bem fundamentado estudo sobre as formas
das senzalas em Na Senzala Uma Flor.
83
Neste trabalho, Slenes mostra duas
modalidades básicas de senzalas: uma em forma de galpão, dividida em
cubículos, e outra como cabanas individuais. O único registro iconográfico da
paisagem da Real Fazenda de Santa Cruz nos foi deixado por Debret. Embora
este não seja um registro muito claro, a impressão que se tem é de que as
cabanas eram a habitação mais freqüente. Os escritos sobre a fazenda que
freqüentemente se referem a "vila dos escravos" ou “às cabanas dos
escravos”, também apontam nesta mesma direção, assim como a descrição do
número de cabanas dada por Serafim Leite.
Sendo este espaço, ainda que diminuto, um âmbito privado, em certo
sentido se constituía como uma fronteira para o cativeiro que se mantinha
confinado do lado de fora. Se realmente, como temos visto, os cativos de Santa
Cruz gozavam de certa autonomia, a casa, "domus" do cativo, não seria um
bem, tanto do ponto de vista concreto quanto do simbólico, de menor
importância. Ainda que muitos cativos que não dispusessem por meio de
herança de uma unidade dessas, ela pode por isso mesmo ter se constituído
como um diferencial, já que não poderia ser dividida entre os herdeiros como
eventualmente os rebanhos e as terras.
A partir daí foi possível imaginar três pontos chaves para aferição dos
legados privilegiados: a faixa etária, a posição em relação aos irmãos
conhecidos e o estado civil. Na verdade, o primeiro e o último ponto tratam
muito mais da aferição dos fatores de permanência dos elementos em seus
grupos domiciliares do que da transmissão deles aos descendentes.
83
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1999. p.
115
É preciso que se diga que em nenhum caso, o número do domicílio no
primeiro inventário coincide com o do segundo, já que entre eles foram
inseridos outros, até a saturão do espaço. Portanto descontada uma
alteração padrão, os números que analisaremos adiante podem nos oferecer
algumas tendências possíveis no que diz respeito à permanência e à
transmissão da posse das unidades familiares.
Tabela 7: Distância média entre os domicílios de origem e destino por faixa
etária (idade em 1791).
Faixa Etária Homens Mulheres
0-9 122 132
10-20 136 91
20-30 57 47
30-40 65 26
40-50 29 23
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818. Arquivo Nacional - R.J.
Tabela 8: Distância média entre os domicílios de origem e destino pelo estado
civil
Estado Civil Homens Mulheres
Casado/Viúvo 43 36
Solteiros 121 97
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818. Arquivo Nacional - R.J.
A tabela 7 nos mostra que, tendencialmente, a idade era um fator de
permanência no mesmo domicílio. Os cativos com mais de 20 anos em 1791
tendiam a se deslocar menos, ou mesmo a não se deslocar das suas unidades
domiciliares, ainda que se passasse um quarto de século. E mais, as mulheres
116
tendem a ter uma média de deslocamento menor do que os homens na mesma
faixa etária.
De modo semelhante, conforme mostra a tabela 8, os escravos
assinalados como casados em 1791 tendem a apresentar uma média de
diferença do número de domicílio sensivelmente menor do que os solteiros.
Certamente as duas tendências apresentam o mesmo fenômeno: os cativos
alteravam o seu domicílio fundamentalmente quando do seu casamento, fora
isso, a tendência era a estabilidade.
Tabela 9a: Distância média entre os domicílios de origem e destino pela
posição conhecida do filho.
Posição do filho dentro da prole Homens Mulheres
Primeiro filho 119 83
Segundo filho 114 88
Terceiro filho 116 99
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818. Arquivo Nacional - R.J.
Tabela 9b: Distância média entre os domicílios de origem e destino pela
posição conhecida do filho – subtraído o padrão médio de 84 domicílios.
Posição do filho dentro da prole Homens Mulheres
Primeiro filho 35 -1
Segundo filho 30 4
Terceiro filho 32 15
Média 32,3 6
Fonte: Inventário de escravos da Real Fazenda de Santa Cruz. 1818. Arquivo Nacional - R.J.
117
Como é possível observar na tabela 9a, há um padrão inverso entre os
homens e mulheres. Os homens primogênitos tendem a se deslocar mais do
que seus irmãos mais novos. Com as mulheres o que se dá é exatamente o
oposto. As mais velhas se deslocam menos do que as suas irmãs. Se
considerarmos a tabela 9b, podemos constatar que as mulheres mais velhas
tendiam a ficar com o domicílio dos pais.
É possível que ao receber um novo homem em seu grupo familiar, as
mulheres oferecessem as suas casas ou uma unidade construída contígua,
quando possível. É bom lembrar que o escopo matrimonial para os homens era
bem mais dilatado do que para as mulheres, dada a desproporção entre os
sexos. Deriva daí que uma forma de tornar uma mulher mais interessante para
os seus possíveis pretendentes seria acompanhá-la de uma habitação, ainda
que não fosse no exato momento da consecução do matrimônio. Disso, trata o
deputado Rafael: “a filha á quem coube por doação uma potra, conta estar
casada; pois o dote convida, e logo seduz algum rapaz.”
Estamos pisando em terreno instável, é verdade. No mais, o que temos
são conjecturas amparadas por alguns tênues indicadores. Mas um eventual
privilégio das mulheres no legado das casas de seus pais não destoaria do
quadro geral visto em nosso percurso.
Mais uma vez, temos um caso que ilustra a idéia. Se realmente as
mulheres tinham precedência na herança e as primogênitas mais
especificamente, poderíamos entender como uma escrava em especial
acumulou alguma riqueza que lhe permitiu se distinguir dos demais escravos
em amplos sentidos.
118
Estamos falando de Maria Izabel, a única escrava que conhecemos a
pagar pela sua alforria. Em 14 de março de 1818, Maria Izabel desembolsou a
quantia de 153$600 para pagar por sua liberdade, um caso praticamente único
nos registros examinados que encontra um par apenas na carta de Lucrecia do
Espírito Santo, que em 1842 recorria a “inata piedade” do jovem Imperador
para libertar sua filha. Lucrecia, como Maria Izabel estava disposta a pagar o
preço pedido, no seu caso: 40$000.
A história da família de Maria Izabel, tal como pudemos apurá-la, tem
início no inventário de 1791. Nele estão assentadas no domicílio 234, Marinha
Mata, uma viúva com apenas 37 anos, na época, e suas duas filhas, Caetana
do Carmo, com 20 anos e Ignacia de Jezus com apenas 2 anos. No inventário
seguinte, consta uma família de três gerações formada a partir de Caetana do
Carmo no domicílio 208, possivelmente o mesmo local do 234 do inventário
anterior.
No grupo 208, estava assentada a nova matriarca Caetana do Carmo
com dois filhos, Saturnino Honorato e Maria Izabel. Esta, por sua vez, estava
com seus três filhos Francisco Damaz, Ana Vieira e Roza Maria. Além deles,
moravam também os dois únicos escravos de escravos registrados em Santa
Cruz, João Cabinda, de 23 anos e Anna Izabel, de 13 anos, escrava da Costa.
Curiosamente, tirando o irmão e o filho de Maria Izabel, não há homens
registrados nesta família há quatro gerações. Após a viuvez, Marinha da Mata,
não ingressou nenhum homem por matrimônio nesta família, as filhas e a neta
permaneceram solteiras com seus filhos. Provavelmente Izabel tinha uma
relação estável, já que seus filhos nasceram mais ou menos próximos, em
119
1812, 1814 e 1815, e depois cessam os nascimentos até a sua alforria em
1818.
Se nossas especulações estiverem corretas, Caetana do Carmo pode
ter concentrado bens por ser a mais velha das filhas. Maria Izabel pode ter se
beneficiado primeiramente do acúmulo da família em detrimento do irmão.
Assim Maria Izabel, membro privilegiado da família de escravos que
provavelmente mais acumulou bens em Santa Cruz, pôde dispor da quantia
que lhe quitou a liberdade.
Mais do que simplesmente um capricho, este padrão de heranças pode
ter constituído uma estratégia que atenderia a duas necessidades simultâneas
da comunidade. Em primeiro lugar, obter um cônjuge em um contexto de
escassez de parceiros seria uma urgência para qualquer família que quisesse
garantir o encaminhamento de suas filhas. Por outro lado, esse mesmo padrão
garantia a manutenção da riqueza acumulada em Santa Cruz o máximo
possível dentro de suas fronteiras. A menor circulação de mulheres pelos
domínios reais tornava-as um depositário mais seguro do que os voláteis
trabalhadores masculinos, que se ausentando poderiam dispor de seus bens
em outras paragens. Se realmente havia alguma garantia de herança para as
mulheres, isso pode significar que outras como Maria Izabel e sua mãe podem
ter optado por permanecerem solteiras, a bem de suas relações estáveis, como
forma de não dilapidar o seu patrimônio.
9
Gráfico 11: Genealogia da Família da escrava Maria Izabel
Marinha Mata
Viúva
?
Caetana do
Carmo
Solteira
Ignacia de
Jezus
Solteira
Saturnino
Honorato
Solteiro
Maria Izabel
Solteira
Francisco
Damaso
Solteiro
Anna Vieira
Solteira
Roza Maria
Solteira
Domicílio 234
em 1791
Domicílio 208
em
1817
Mais os escravos João Cabinda e Anna Izabel, escrava da Costa
121
6. Um possível cotidiano em Santa Cruz
Com o tempo de pesquisa nos aproximamos de nosso objeto, intangível
pela sua natureza, mas almejado pela nossa febre de saber. Algumas vezes
nos sentimos tentados a imaginar uma realidade que seja uma entre tantas
possíveis, mas que seja, ao mesmo tempo, a que pudemos apreender.
Conosco não foi diferente. Quase foi possível visualizar a partir da aquarela de
Debret, o movimento, ora frenético, ora vagaroso, dos habitantes de Santa
Cruz.
Ocorre que existiu não apenas uma, mas muitas fazendas de Santa
Cruz nos séculos que a atravessaram. Nestes anos tantos repletos de
movimento e vida, muitas faces históricas se apresentaram à "gente muito feia"
que o deputado Rafael de Carvalho viu nos anos de 1830. Poucos registros
foram deixados sobre essas vidas, menos ainda nos chegaram às mãos, mas
com o que tivemos tentamos abrir uma janela para mostrar a paisagem
documentada da fazenda. Como um quebra-cabeça no qual várias são as
peças ausentes, a análise que empreendemos ainda tem alguns buracos que,
talvez, só possam ser tapados com um pouco de imaginação. É o que nos
propomos a fazer, ao menos por um instante.
Nenhum dos viajantes que se hospedou na fazenda deixou um relato
que nos contasse como os escravos se ajeitavam nos seus afazeres diários.
No entanto as várias fontes consultadas acabaram nos dando uma idéia, ainda
que com as distorções costumeiras, do possível cotidiano destes homens e
mulheres unidos pelos seus laços sociais e pelas correntes do cativeiro. Talvez
122
um viajante que visitasse Santa Cruz preocupado em retratar a vida dos
escravos visse algumas coisas interessantes, as quais bem poderíamos ler em
algum relato perdido. Ainda que nos parecesse um tanto exagerado, como
exagerados pareceram alguns elementos das fontes, que ainda assim
mencionaremos a seguir, o exagero não seria inocente, quem sabe fosse a
expressão do pasmo ou até da confusão do autor frente ao que via, mas não
entendia.
Quiçá fosse alguém que estivesse apenas de passagem, para um
pousio numa jornada maior. Um tal viajante, tão hipotético como o padre que
expulsamos de Santa Cruz, certamente se encantaria com o cenário que se
descortinaria diante de seus olhos após a curva do alto do Morro dos Chinas.
Morro que recebeu esse nome pela presença, desde o início do século XIX, de
uma colônia de chineses, usados como experiência do uso de mão-de-obra
oriental na substituição dos cativos. Ao iniciar a descida, o imaginário viajante
se depararia com uma enorme baixada, compondo um vasto campo limitado ao
longe por um par de montanhas. Boa parte destas terras era destinada ao
pasto dos diversos gados, mas em vários pontos dessa paisagem seria
possível ver cercados de terra com algum cultivo. Se fosse um dia santificado,
como o domingo ou outra data com preceito de guarda pela fé católica, os
escravos estariam trabalhando nestes cercados, cuja posse lhe fora concedida.
No meio da baixada, o maior sinal da presença humana, um pequeno
povoado, organizado à moda dos antigos aldeamentos jesuítas. Ao fundo,
dominando todo o cenário, ladeada pela torre do campanário, a imponente
igreja dotada de uma maciça porta central com três vitrais eqüidistantes por
sobre ela, conforme o sólido estilo arquitetônico jesuítico. Ao seu lado o que já
123
fora o convento dos jesuítas, agora, desde 1808, transformado em palácio,
residência de verão para a Família Real. À frente deste conjunto, dois bairros
de senzalas emoldurando o terreiro central. À direita, o bairro de Pacotiba e a
esquerda o bairro Limeira. Do alto da serra, certamente poderia ser ouvido o
murmúrio, ainda que distante, do borbulhar da vida na fazenda.
Ao descer pela estrada sinuosa, o viajante começaria, paulatinamente,
distinguir os sons que de lá emanavam. Ao fundo o murmúrio constante dos
canais de drenagem dos pastos, constrdos sob a égide de Santo Inácio e
mantidos abertos pelos mais zelosos dos seus administradores. Sobrepondo-
se a esse, provavelmente seria ouvido o conjunto de vozes, algo indefinido, da
escravaria da fazenda. Algumas vozes femininas, em cantorias a embalar o
seu serviço, outras infantis, na festiva comemoração da vida, típica da tenra
idade.
Aproximando-se pelo terreiro, o coche de nosso possível viajante se
tornaria alvo de olhares, um tanto curiosos, mas já habituados ao movimento
de chegada freqüente de visitantes. Quiçá a indagação fosse apenas: quem
será dessa vez? Ou algo assim. Se fosse numa tarde de sexta-feira,
84
haveria
um grande número de cativos por lá, evitando o trabalho da fazenda e
preparando-se para outras atividades, como o trabalho na sua própria
exploração agrícola ou a folga do fim de semana. Se fosse uma segunda-feira
pela manhã, igualmente estariam lá os tantos cativos, relutando às
imprecações dos feitores, que os empurravam para o trabalho. Suponhamos
que se tratava de uma sexta-feira, digamos, pela manhã.
84
Estas informações constam em uma carta ao administrador solicitando maior controle sobre
os escravos na manhã de segunda e na tarde da sexta, quando esses buscavam se ausentar
do trabalho. Caixa 507 Arquivo Nacional, RJ.
124
Certamente os responsáveis pela administração estariam de prontidão a
receber o novo hospede, trocar alguma conversa e conduzi-lo para o almoço. À
tarde, após um bom descanso, numa espécie de passeio guiado pelos
arredores imediatos do Palácio, estarrecido, o ilustre visitante constataria que a
fazenda estava dotada de grande autonomia. Ao passar pelas oficinas poderia
ver os vários mestres - carpinteiros, ferreiros, falquejadores - e seus aprendizes
encerrando morosamente suas atividades. Assim também, poderia conhecer os
teares, local de trabalho de aproximadamente 40 mulheres coordenadas por
um mestre tecelão, onde eram produzidos os tecidos que vestiam a escravaria
de Santa Cruz nos seus mais corriqueiros dias. A botica causaria estranheza
ao hipotético estrangeiro, já que ela também era controlada por um escravo
que, até por força do ofício, era alfabetizado, lendo e escrevendo com precária
desenvoltura, mas ainda assim, fazendo-o.
85
E este não era um apanágio do
boticário de Santa Cruz, lá havia uma escola de rudimentos para os meninos
que lá aprendiam as primeiras letras até os sete anos, período no qual eram
também alimentados pela cozinha das crianças. Provavelmente, o abrigo
fornecido pela fazenda aos infantes menores de sete anos constituía-se num
meio para liberar as suas mães, que em certas épocas compunham a maior
parte das esquadras móveis, responsáveis pelos trabalhos da fazenda.
Talvez este desequilíbrio sexual fosse percebido pelo nosso hipotético
observador. Podemos imaginá-lo comparando a paisagem humana desta
fazenda com as demais observadas ao longo de visitas em outras
propriedades. Suas retinas, habituadas ao predomínio masculino na população
escrava poderiam estranhar a freqüência feminina neste grupo. Provavelmente
85
Não é certo que todos os boticários escrevessem com precária desenvoltura, mas a débil
assinatura do boticário no inventário de 1791, nos levou a inferir que apesar de alfabetizados,
os escravos não escrevessem com freqüência.
125
suporia estar em um criadouro de escravos, como alguns néscios ainda hoje o
fazem. Arriscado seria supor a resposta do administrador, caso fosse indagado
sobre o destino dos homens do lugar. Corramos o risco de vislumbrá-lo
chutando um pouco de poeira do chão, com as mãos no bolso e levantando o
rosto a comentar sobre a ida de homens a reparar o aqueduto da Lapa ou para
obras no Rio de Janeiro, talvez alguns tenham obtido a sua liberdade e outros
tenham fugido, mas no geral estão eles trabalhando em outras obras de El Rey
de Portugal, afinal são escravos do rei.
Se o estrangeiro ousasse vagar entre as casas da vila dos escravos, é
possível que se deparasse com algumas construções de parede sólida com
várias portas, tantas quantas eram as moradias obtidas de sua subdivisão. A
julgar pelo que captou Debret, essas construções eram providas de janelas,
algo que talvez diferisse de outras possíveis observações anteriores. Quanto a
seus habitantes, a esses podemos imaginar que as impressões não seriam
muito diferentes das que já nos foram dadas, tanto pelo escrivão dos autos do
seqüestro dos bens, por ocasião da expulsão dos jesuítas, quanto pelo
deputado Rafael de Carvalho, quase 100 anos depois: os acharia “uma gente
muito preta e muito feia”.
Mas a tarde já declina, aproxima-se a hora da Ave-Maria, e mesmo que
fosse de um país protestante, ao menos pela curiosidade, podemos tomar o
nosso hipotético visitante e conduzi-lo até a igreja para os ofícios religiosos que
ali teriam lugar. As seis da tarde, aproximadamente, tem início a oração do
"Angelus". Hoje – imaginemos - ainda mais solene por ser o Tríduo da festa de
Nossa Senhora do Rosário, padroeira de uma das três irmandades dos cativos,
a saber: a do Rosário, a das Almas e a do Santíssimo Sacramento.
126
Os confrades do Rosário entrariam pomposamente pela nave repleta
dos negros de Santa Cruz, obviamente todos bem vestidos e paramentados.
Os reis da irmandade se dirigiriam para o fundo onde se sentariam nas
cadeiras que ladeavam o altar. Viriam, logo a seguir, outros membros
eminentes que tomariam lugar na nave principal, próximos à grade que a
separava do altar. Certamente estes lugares já estariam separados nesta
ocasião. Por último viria o sacerdote que, vendo as duas filas de escravos que
seguiam paralelas a sua frente se separarem, chegaria ao altar. Após
cumprimentá-lo se dirigiria à congregação, quem sabe até repleta.
Seria ingenuidade supor que todos os presentes estivessem
ensimesmados em orações fervorosas. Boa parte dos fieis estaria, certamente,
comentando os detalhes das vestes das rainhas ou, talvez, calculando quanto
gastariam para a próxima festividade. Outro grupo possivelmente estaria
comentando sobre negócios, algumas compras e vendas poderiam ter lugar no
eco do "Dominus te cum" proferido pelo sacerdote e seguido pelos murmúrios
dos seus negros fiéis. Ao final de tudo, a festa prosseguiria na vila dos
escravos, mas isso não era para os estrangeiros olhos de nosso suposto
viajante. Para ele um jantar, um tanto enfadonho, onde o principal assunto à
baila talvez fosse as virtudes econômicas e o potencial produtivo da fazenda.
Conversa esta que se estenderia ainda pela roda de licores, entretenimento um
tanto moroso até a hora de retirar-se.
Ao recolher-se, o imaginário estrangeiro certamente ainda ouviria os
cantos e as celebrações dos cativos diante de suas casas, cantando e
dançando aproveitando a sua cota de diversão, numa vida não de todo carente
de dores e infortúnio. Ali, no íntimo do seu aposento, ele teria a oportunidade e
127
a privacidade necessária para por seu diário de viagem em dia, anotando as
impressões tomadas durante o dia. Quiçá a altas horas da noite, entre o sono e
a vigília, ainda fosse embalado nos cantos da tal gente, que ele julgava "preta e
feia", de Santa Cruz.
O sábado começa cedo. Neste dia o trabalho era realizado para os
próprios cativos, em suas terras, com seus rebanhos e nas mais atividades que
pudessem lhe render algum lucro. Isso posto, podemos imaginar que havia
alguma circulação monetária entre os negros e, provavelmente, algum acúmulo
pecuniário.
Ainda pela manhã, de acordo com o interesse de nosso hipotético
visitante, ele poderia tomar conhecimento de que algumas escravas foram para
a Corte. Seria uma fuga? Não, lhe tranqüilizaria um dos funcionários, as fugas
ocorriam, mas eram chamadas de deserções e só eram assim consideradas
após seis meses de ausência do dito escravo. Então, afinal, que negócios
poderiam ter as negras de Santa Cruz na Corte? Foram buscar seus vestidos,
mandados fazer nas lojas da rua da Alfândega, com as francesas que costuram
para a alta sociedade. Amanhã seria o ponto alto da festa da Senhora do
Rosário, uma grande oportunidade para a visibilidade social. O que poderia
chocar o nosso hipotético observador seria o putativo desperdício de dinheiro,
de recursos. Muito mais para um povo cativo, maior proveito - talvez fosse esse
o juízo a ser feito - teriam se acumulassem até a última dracma para a alforria
e, posteriormente, para algo lhes proporcionasse uma prosperidade material
segura, algum investimento. Nota-se que, se existisse, tal viajante seria um
ignorante no que tange a alma luso-brasileira.
128
A parte da tarde do sábado poderia reservar pelo menos uma surpresa
para um provável forasteiro. Em meio ao agito da vida vespertina, entre
trabalhos próprios, possíveis negócios e preparativos para as festividades
próximas, um som se destacaria. Uma buzina rasgaria o burburinho da tarde. E
percorrendo as ruas e vielas da vila dos escravos, munido de um carrinho, um
peixeiro. Isso porque alguns escravos iam a Sepetiba ou a Guaratiba pela
manhã, compravam peixes e depois circulava por entre as ruas da cidadela dos
cativos a anunciar o seu produto com a dita buzina. Certamente o regateio se
fazia presente a cada requisição de sua presença e ao final de alguns minutos
de negociação acertava-se o valor a ser pago pela quantidade desejada.
Novamente as seis da tarde repetia-se o ritual da véspera com a mesma
pompa. E depois o mesmo enfado dos jantares, quase intermináveis, onde se
alongavam e repetiam os termos da prosperidade da Real Fazenda de Santa
Cruz, em grande parte atribuídos ao empenho e competência daquele que as
narrava. Uma vez livre do ritual dos licores, nosso viajante hipotético poderia se
entregar às suas anotações, onde certamente figurariam o complexo sistema
de parentesco desenvolvido pelos escravos. Também seria alvo dessas
observações o zelo com que estes cuidavam de suas terras e de suas casas, a
ponto de disputarem entre si por fronteiras de roças. Nestas situações o
administrador funcionaria como arbitro dos litígios.
Com o alvorecer do domingo, anunciado pelas longas batidas dos
pesados sinos do campanário, teria início a solene festa de Nossa Senhora do
Rosário. Ao chegar na praça entre as senzalas, o nosso fictício estrangeiro
provavelmente já se depararia com uma pequena multidão. Um grande
alvoroço precederia as pouco frutíferas tentativas dos mais velhos em por
129
ordem na procissão que atravessaria toda a extensão do terreno central,
entrando na igreja com seus estandartes e paramentos. Ao meio, toda ornada
com flores a estátua de Nossa Senhora do Rosário, uma bela peça de madeira
pertencente aos próprios escravos.
86
À entrada da nave principal, uma benção
especial para os cativos da Irmandade que conduziriam boa parte do
transcorrer litúrgico, entoando desde o Kirie Eleison inicial até as prolixas
ladainhas ao final da celebração.
A festa que se seguiria traria uma rara oportunidade para que o
estrangeiro se aproximasse um pouco mais dos cativos e, quiçá tivesse a
oportunidade de conversar com um ou outro. Das muitas coisas que, digamos,
Mathias Xavier, um escravo nascido em 1741, poderia contar-lhe, uma
certamente viria à memória do velho escravo. Foi antes da Família Real
chegar, mas bem depois dos padres serem mandados embora, e sabia disso
porque ainda era menino quando os padres se foram. Talvez já se fossem
passados uns 20 anos do acontecido. Isso mesmo. Foi um ano depois de um
companheiro seu ser assassinado com uma facada certeira no coração por um
“escravo mau”. O motivo do crime não se lembrava bem, mas deveria ser ou
mulher, ou dinheiro, ou terras.
87
Três coisas que levam um homem a perdição.
O fato é que vieram para Santa Cruz dois escravos fugidos do Rio de
Janeiro. Ao que se lembra Mathias, um dos ditos escravos havia roubado uma
grande quantidade de ouro de seu senhor. Este deveria ser ourives, já que
algumas peças vieram soltas, como fivelas e botões. Mathias talvez lembrasse
de ter visto uma fivela ou alguns botões desligados de seus usos normais. Pois
bem, os dois vieram do Rio de Janeiro e se instalaram nas proximidades,
86
A estátua consta do inventário de 1791.
87
Ambos os relatos constam em um conjunto de cartas de Manuel Martins do Couto Reys.
Caixa 507. Arquivo Nacional, RJ.
130
comprando o abrigo e a comida com o ouro roubado. Após muita confusão, o
administrador chamou alguns escravos mais velhos, dizendo que já sabia do
acontecido, visto que chegaram cartas da cidade
88
e que o melhor a fazer era
entregar os dois sujeitos para não macular a reputação dos escravos da
fazenda. É claro que outras ameaças também devem ter sido usadas. Talvez a
mais temível, o degredo. Caso os ladrões não fossem entregues é provável
que diligências acontecessem e os envolvidos seriam vendidos, pelo melhor
preço, para algum serviço indesejável, como a produção de cal no Continente
do Rio Grande de São Pedro, onde foi localizado um cativo sendo oferecido ao
quem pagasse melhor.
Antes de partir talvez o hipotético viajante tivesse algumas idéias
interessantes a respeito dos escravos e da vida na Fazenda de Santa Cruz. Se
fosse perspicaz, já teria avaliado que a vida do lugar se constituía em função
de uma memória: a memória dos jesuítas. Porém, como toda memória, esta
era um bem simbólico a ser negociado pelos diversos agentes sociais deste
microcosmo. Para os que queriam desmembrar e vender a propriedade, essa
era a memória do inatingível, que torna inviável a retomada das atividades
lucrativas. Para os administradores como o Coronel Manuel Martins do Couto
Reys, era a memória do almejado, daquilo deveria ser implementado o quanto
antes. Para os escravos era a memória de um tratamento bem negociado.
Para estes últimos, o valor da marca jesuítica era muito mais eficaz
quando acreditado pelos seus senhores. É possível que a manutenção de
certos comportamentos tenha ocorrido, dentre outros fatores, pelo ganho que a
imagem de "povo jesuítico" poderia produzir.
88
Manuel Martins menciona cartas do alferes Manuel Borges de Sampaio, pedindo apoio para
efetuar a prisão dos foragidos. Cartas Avulsas. Arquivo Nacional. Caixa 507.
131
Assim, a identidade de “servos de Santo Inácio a serviço do Imperador”
lhes facultava um relacionamento permeado pela memória que os
administradores construíram acerca do “modo jesuíta de produção”. Ser
devoto, ser fiel a algumas tradições jesuíticas era, então, manter abrasada a
crença dos seus feitores na eficácia do método pretensamente herdado dos
jesuítas. Acontece que para os cativos o novo relacionamento deveria ser
muito mais proveitoso do que com os “veneráveis” antigos senhores de Santo
Inácio.
Cabe perguntar: como os cativos pareciam - aos olhos dos agentes reais
e imperiais - tão saudosos e fieis à memória dos tempos da Cia. de Jesus?
Esse comportamento possivelmente foi forjado no lidar com os
administradores, crentes no poder do método jesuítico. Na medida em que a
evocação dessa memória era capaz de amortecer parte dos conflitos inerentes
à vida na fazenda, ela foi se plastificando numa identidade relativamente sólida,
que distinguia os “Servos de Santo Inácio” dos demais escravos, passíveis de
punições mais rígidas e a quem se concedia poucos privilégios. Escravos que
eram mais rebeldes, ainda que os de Santa Cruz fossem, ao que tudo indica,
apenas imaginariamente mais dóceis.
Assim também seria possível perceber que a tensão estabelecida entre
a escravaria e os jesuítas provavelmente foi amortecida pela concessão de
benesse aos cativos. Mas, ainda assim, a tensão existia, quiçá sob a sombra
do degredo. Ser vendido, retirado de uma propriedade onde a vida era menos
sofrida que nos casos mais gerais, não seria punição das menores. Além do
que, dentre os edifícios que circundavam o convento, havia uma cadeia,
cumprindo seu papel repressor.
132
Com o advento da administração real, o descontrole e o desmando
parecem ter grassado nos campos da fazenda. Descontrole este, que pode ter
gerado uma paulatina autonomia para a vida escrava, não obstante os
deslocamentos que retiraram uma parte da mão-de-obra da fazenda. Algum
tempo depois, chegou à fazenda o Coronel Manuel Martins do Couto Reys, um
administrador que apostou na viabilidade do modelo jesuíta de administração.
Segundo suas próprias memórias sobre a fazenda, o coronel usou
alguns elementos herdados dos jesuítas para a lida com os escravos, embora a
pregação e a doutrina religiosa desde os primeiros anos de vida, não fizessem
parte deste trato. Esse quinhão do legado inaciano pode ter dado ao coronel o
relativo controle que desejava - relativo até pelas dimensões do plantel. Porém
aos cativos, a ausência desta pregação facultou uma maior independência
moral frente à fé católica. Possivelmente, após alguns anos corridos desde a
expulsão dos inacianos, os cativos forjaram uma vida cultural cada vez menos
permeada pelo habitus instaurado pelos padres.
O controle real era para o labor, pouco interessado numa eventual
moralidade dos negros, até por não acreditar que esta fosse possível. Como
vimos anteriormente, mesmo os homens mais ilustrados da Corte não
distinguiam a vida escrava dos vícios e instintos que maculavam a nação
pueril.
De tal modo as coisas correriam que ao se despedir do lugar, o nosso
hipotético estrangeiro sairia com a sensação de estar abandonando uma
comunidade em transformação que se distanciava do padrão moral rígido e
supervisionado de perto pelos padres, e adotava um outro diferente, moldado
133
por escolhas e experiências vivenciadas dentro da própria comunidade,
instrumentalizando a memória de uma herança jesuítica.
O fato de Santa Cruz ser uma fazenda do Estado, a partir de meados do
século XVIII, pôs diante dos seus escravos um certo quadro ao qual eles
souberam se adaptar com relativa presteza. Apesar das vozes destoantes,
como a que vimos em José Bonifácio, a omissão por parte do Estado foi regra
no trato com a questão da escravidão. Diante de tal ausência, os escritos dos
padres jesuítas se transformaram na principal fonte de reflexões sobre a
manutenção e o trato com a escravidão. Em terras de abolicionismo tardio, os
principais agentes da reflexão e da tentativa de normatização, ainda que por
vias morais, eram os padres da Companhia de Jesus.
Santa Cruz teve de ambos um pouco, dos padres primeiro, do Estado
depois. Seu microcosmo surge como reflexo do pensamento escravista
brasileiro, onde o Estado parece estar à sombra do que diz o clero. Os
senhores laicos, dotados de relativa autonomia perante seus cativos agiam
segundo sua própria prática, assim como também deriva dos “costumes” as
decisões judiciais. Diante deste cenário aparentemente caótico, a escravidão
no Brasil se mantém muito mais pelos maleáveis “costumes” do que por
qualquer rígido artifício legal. Na fazenda “os costumes”, estabelecidos desde
os tempos dos padres, também se transformaram em jurisprudência; direito
adquirido e respeitado. Destarte, o regime estatal se mira no eclesiástico tanto
pelo sucesso deste quanto pela inépcia daquele no trato com a questão.
Em função disso, os cativos aproveitavam as heranças dos padres para
se impor aos administradores claudicantes. Os maiores aliados que possuíam
eram o seu número, assombroso, e a sua fama, tranqüilizadora, ambos
134
associados à manutenção do que havia sido estipulado “no tempo dos padres”.
Só que muita coisa que foi acrescida ou transformada acabou se consolidando
politicamente como sido estabelecido “no tempo dos padres”. De tal modo, que
o “tempo dos padres” foi dilatado o quanto se pôde.
Internamente à escravaria, dadas as condições, os relacionamentos
foram se tornando cada vez mais complexos, forjando conflitos, alianças,
irmandades, fujões, afortunados, enfim toda a diversidade que vimos ao longo
deste trabalho. No entanto, os artifícios que utilizavam não eram de todo
estranhos aos demais escravos, embora o seu uso fosse, sem dúvida, mais
amplo.
Ao escrever sobre as famílias de Santa Cruz, Richard Graham afirmava:
“Pode-se presumir, pelo que se conhece da vida escrava em geral, que muitos
destes casais representavam somente uniões temporárias”.
89
Com isso,
revelou não apenas quão pouco se conhecia da vida escrava naqueles anos,
mas como essa perspectiva embotou sua análise. Mesmo diante de um
número considerável de viúvos – e a viuvez é, por definição, espelho de uma
relação que sobreviveu à morte de um dos cônjuges, que literalmente
transcende a própria existência de uma das partes - Graham preferiu acreditar
que as relações eram instáveis e voláteis, sem nenhum significado maior.
Diante de tudo o que pudemos ver, percebe-se o quão amplo era esse
significado e como ele açambarcava todos os habitantes da “vila dos escravos”.
89
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e Imperialismo. São Paulo: Editora Perspectiva.
1979. p. 43.
135
Anexos:
Anexo1: Distribuição da escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz de acordo
com a ocupação e grandes faixas etárias, 1849.
Ocupação Hom. Rpzes. Mul. Rpgas. Mnos. Mnas. Total
Carpinteiros 31 22 0 0 0 0 53
Falquejadores e serradores 9 0 0 0 0 0 9
Pedreiros 32 7 0 0 0 0 39
Tanoeiros 2 0 0 0 0 0 2
Ferreiros e serralheiros 16 2 0 0 0 0 18
Lombilheiros 1 1 0 0 0 0 2
Cortidores 2 0 0 0 0 0 2
Oleiros 20 8 0 0 0 0 28
Cavoqueiros 9 0 0 0 0 0 9
Sacristão 2 0 0 0 0 0 2
Enfermeiros 11 4 5 0 0 0 20
Serviço de Campo 25 9 0 0 0 0 34
As ordens do superintendente 0 0 0 0 0 0 0
No armazém 1 1 0 0 0 0 2
Na cozinha das crianças 0 0 2 0 0 0 2
Carreiros e candeeiros 12 7 0 0 0 0 19
Feitores 8 0 9 0 0 0 17
Esquadras ambulantes 39 88 323 152 0 0 602
Parteiras 0 0 2 0 0 0 2
Em serviços passivos por
valetudinários
29 0 22 0 0 0 51
Nos teares 0 0 43 0 0 0 43
Amas de cegos e crianças 0 0 27 0 0 0 27
Inúteis por velhos e achacosos 17 0 50 0 0 0 67
Menores de 7 anos 0 0 0 0 165 170 335
Aprendendo as primeiras letras 0 22 0 5 0 0 27
Músicos 1 0 0 0 0 0 1
Aprendizes de músicos 1 13 1 6 0 0 21
Destacados nas Quintas e outras 102 75 98 70 0 0 399
Desertados 17 0 1 0 0 0 18
Tambor 2 0 0 0 0 0 2
Total 389 259 583 233 165 170 1853
Existem ainda 273 idosos que pertencem às Feitorias anexas.
Fonte: Relatório de ocupação dos escravos da Imperial Fazenda de Santa
Cruz, 1849. Petrópolis. Arquivo do Museu Imperial.
136
Anexo 2: Mapa da ocupação da escravatura da Imperial Fazenda de Santa
Cruz entre 1855 e 1858. (AMI)
Tipo de ocupação
28/01/1855 26/03/1855 14/03/1856 07/03/1858
1- Escravatura em serviço ativo 595 566 640 642
2- Inúteis 105 103 86 76
3- Menores de 7 anos 410 415 369 369
4- Destacados para a Quinta e
outros
441 477 664 664
5- Alugados para si 20 18 5 5
6- Alugados para particulares 85 82 38 38
7- Doentes no hospital, a serviço
de empregados, aprendizes de
costureira, amas efetivas e
provisórias, dispensados, em
serviço de parto, presos,
desertados, de folga ou em
serviços não especificados.
343 345 408 403
Total 1999 2006 2210 2197
Anexo 3: Mapa da População de Escravos Ativos da Imperial Fazenda de Santa
Cruz entre 1855 e 1858. (AMI)
Mês/Ano Homens Rapazes Mulheres Raparigas Meninos Meninas Total
01/1855 157 112 188 60 34 37 588
03/1855 161 103 237 70 33 35 639
03/1856 146 98 189 57 33 43 566
03/1858 145 95 171 62 76 91 640
137
Anexo 4: Relação dos escravos pertencentes a Imperial Fazenda de Santa
Cruz destacados para a feitoria de Santarém em troca de 17 escravos
pertencentes ao inventário da mesma feitoria que se acham destacados para a
Quinta da Boa Vistas. (AMI)
Nome Idade Est. Civ. Obs
João Fiel 29 S Carpinteiro
João Evangelhista 20 S Idem
Manoel de Cristo 30 S Pedreiro
Ignácio dos Santos 20 S Para todo serviço
Romualdo Francisco 40 V Pedreiro
Joaquim Francisco Primeiro 38 C Pedreiro/para todo serviço
Antonio dos Santos 18 S Oleiro/ para todo serviço
Pedro Nolasco 35 C Para todo serviço
Manoel Passo 18 S Curtidor/ para todo serviço
Joseffa Patrocínio 17 S Para todo serviço
Nicencia dos Reis 31 V Para todo serviço
Ignacia de Jesus 22 S Para todo serviço
Belmira Francisca 1 ½ S Filha da dita
Francisca da Glória 22 S
Florentino do Espírito Santo 4 meses S Filho da dita
Virgínia da Glória 22 S
Ananias Freitas 4 meses S
Filha da dita
138
Bibliografia e Fontes:
i. Fontes
i.1. Fontes Primarias Manuscritas:
1. Inventário dos Bens da Real Fazenda de Santa Cruz, RJ, 1791. Arquivo
Nacional, Códice 808, Volume 4.
2. Inventário da Escravaria de Santa Cruz, RJ, 1818. Arquivo Nacional, Códice
3277, Depósito 208.
3. Correspondências e documentos diversos da Real Fazenda de Santa Cruz,
RJ, 1790-1820. Arquivo Nacional, Caixa 507.
4. Resolução nº 144 de 1837, de autoria do Deputado Rafael de Carvalho
membro da Comissão das Contas do Tutor de S. M. e AA. Imperiais e tutor de
S.M. e AA. II. (I-PAN-14.8.837-Car.rs - Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis
- R. J.)
5. Mapa da totalidade da Escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz.
Datado de 30/06/1849 e asssinado pelo escrivão Pedro Nolasco da Silva.
6. Mapas da ocupação da escravatura da Imperial Fazenda de Santa Cruz,
para os anos de 1855, 1856 e 1858. Arquivo do Museu Imperial. Petrópolis.
7. Ofício de Manuel Martins do Couto Reis remetendo os escravos
requisitados para trabalharem na quinta de S.A.R. Fazenda de Santa Cruz.
30.05.1808. Biblioteca Nacional – Setor de Manuscritos (II – 35, 11, 7 n1-3)
8. Relação dos escravos da Real Fazenda de Santa Cruz que se acham
empregados na cidade em vários destinos, presos em outros e desertados
(Fazendo de Santa Cruz 30 de maio de 1808 assinado pelo capitão
139
administrado João Fernandes da Silva) e cópia da rellação dos escravos que
devem vir da Fazenda de Santa Cruz para a quinta de S. A. R. Secretaria de
Estado 26 de maio de 1808 assinado por João Abreu de Miranda Varejão.
Biblioteca Nacional – Setor de Manuscritos (II – 35, 11, 7 n1-3)
i.2. Fontes Primarias Impressas:
1. REYS, Manuel Martins do Couto. “Memórias de Santa Cruz”. Revista do
IHGB. Tomo V, 1843.
2. REYS, Manuel Martins do Couto, “Lucro geral da Fazenda de Santa Cruz
nos 13 anos incompletos contados de Julho de 1791 a Dezembro de 1804”. In
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo V. 1843.
3. GAMA, José Saldanha da. “História da Imperial Fazenda de Santa Cruz
Primeira Parte”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo
38. Parte II. 1875.
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Campinas: Ed. da UNICAMP, 1993.
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Imprensa Régia, 1820.
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brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1977.
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escravos em Minas Gerais (século XIX): uma hipótese, in: Cadernos IFCH-
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26. GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo,
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