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SÍRLEY CRISTINA OLIVEIRA
A Ditadura Militar (1964-1985) à luz da Inconfidência Mineira nos Palcos
Brasileiros: Em Cena “Arena Conta Tiradentes”(1967) e “As Confrarias ” (1969)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UBERLÂNDIA-MG
2003
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SÍRLEY CRISTINA OLIVEIRA
A Ditadura Militar (1964-1985) à luz da Inconfidência Mineira nos Palcos
Brasileiros: Em Cena “Arena Conta Tiradentes”(1967) e “As Confrarias ” (1969)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia, como exigência parcial para a obtenção
do título de Mestre em História.
Orientadora: Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UBERLÂNDIA-MG
2003
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SÍRLEY CRISTINA OLIVEIRA
A Ditadura Militar (1964-1985) à luz da Inconfidência Mineira nos Palcos
Brasileiros: Em Cena “Arena Conta Tiradentes”(1967) e “As Confrarias ” (1969)
Banca Examinadora
_________________________________
Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos
(Orientadora)
_________________________________
Prof. Dr. Luiz Eugênio Véscio
Universidade Federal de Santa Maria
_________________________________
Prof. Dr. Alcides Freire Ramos
Universidade Federal de Uberlândia
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UBERLÂNDIA-MG
2003
Dedicatória:
Aos meus pais João Batista e Maria
Helena, à minha avó Maria Basílio
do Nascimento e ao meu namorado
Carlos Omena, sem os quais não
haveria motivação para criar, para
escrever, enfim, não haveria
inspiração. Obrigado pelo incentivo,
alegria e confiança revelados no dia-
a-dia.
Agradecimentos:
Várias pessoas, de forma direta ou indireta, contribuíram para este trabalho.
Portanto, torna-se importante compartilhar com elas as alegrias de sua concretização.
Meus agradecimentos iniciais são para a Profª. Drª. Rosangela Patriota, minha
orientadora, que contribuiu de forma sistemática para a minha formação intelectual e
minha aprendizagem desde a época da graduação. A você devo o meu interesse pela
pesquisa e, em especial a descoberta do teatro, que fez meus estudos ficarem mais
prazerosos e instigantes. Muitas das minhas conquistas são frutos de suas reflexões
sempre inteligentes e criativas, que propiciam um novo olhar para o campo da História.
Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos sou grata pelo interesse que sempre
manifestou pelo meu trabalho. Obrigada pelas sugestões valiosas não só no Exame de
Qualificação, mas ao longo da realização desta pesquisa. Também não posso deixar de
agradecer as gentilezas prestadas, especialmente o empréstimo de obras clássicas do seu
valioso acervo sobre a Inconfidência Mineira.
À Profª. Drª. Kátia Rodrigues Paranhos, pela leitura atenta que fez do Relatório
de Qualificação e pelas ricas sugestões que ajudaram a formatar a finalização desse
trabalho.
À Profª. Drª. Maria Clara Tomaz Machado, coordenadora do Curso de Mestrado,
obrigada pela atenção e sugestões manifestadas nas aulas de Seminário de Pesquisa.
A minha mãe, por ser minha grande amiga, pela confiança que construímos
juntas, principalmente pelos gestos de carinho e pelas palavras de estímulo que me dão
força e me enchem de alegria. Ao meu pai, amigo e protetor, obrigado por me ensinar o
valor da palavra responsabilidade.
Ao meu namorado Carlos Omena, agradeço pela companhia agradável de todas
as horas e cuja presença, compreensão, paciência e afeto tornaram-se essenciais para a
concretização desse trabalho.
A minha avó Dindinha (Maria Basílio do Nascimento), obrigada pelo bom
exemplo de sua conduta. Sua disposição, inteligência e gestos de bondade servem de
inspiração para todos levarem a vida.
Aos meus irmãos, Cátia, Fernanda e Wellington - meus amigos de sempre -
obrigada pelas brincadeiras, amizade e a confiança construída ao longo de nossa vida.
Agradeço, ainda, as minhas adoráveis sobrinhas Maria Clara e Júlia, que pela
beleza, inteligência, sabedoria e gestos fraternos, nos fazem acreditar em um mundo
melhor.
Não poderia deixar de mencionar os nomes dos meus cunhados (Euler e Júnio) e
cunhada (Fernanda), além dos meus primos, companheiros de festas e sonhos de vida:
Fernando Afonso, Cristiano César, Danilo, Julyene Cristina, Bianca e Wesley.
À Carmem de Oliveira, minha estimável amiga, obrigada pelos longos
momentos de conversa, pelas constantes trocas de idéias e, principalmente, pelas
palavras acolhedoras nos momentos difíceis.
À Ana Paula Gomide, Cláudia Regina e Rosângela Petuba, amigas de todas as
horas, referências importantes na minha vida, obrigada por compartilhar comigo sonhos,
aflições e perspectivas de um mundo melhor.
Ao professor e amigo Luiz Humberto Martins Arantes, sou grata pela atenção e
gentilezas prestadas, especialmente pelo empréstimo de materiais importantes,
essenciais para a concretização desse trabalho.
À Cláudia Cruz, pela amizade construída nesses dois anos de pesquisa e em
especial pelas gentilezas e compreensão reveladas.
Os demais amigos e colegas, com os quais eu sei que posso sempre contar:
Marcelo Mamede (Bife), Mário (Peter), Arielson (Pity), Iara Toscano, Nara Omena,
Patrícia Omena, Adalgisa Derlei, Edva Regis, Ivone Caixeta, Valéria Ochôa, Kátia
Eliane, Nádia Cristina, Alexandre Pacheco.
Aos colegas do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura
(NEHAC), com quem dividi leituras e frutíferas discussões. Especialmente ao Miguel,
Ludmila e Thaís, pelas gentilezas e informações prestadas.
À Beatriz Vilela, pela amizade, paciência e inteligência na correção dos
originais. Obrigada pelos inúmeros favores já prestados.
Aos secretários do Curso de Mestrado e de Graduação em História da UFU,
Sandra Fiúza, Gonçalo e Maria Helena, obrigada pelos favores constantemente
requisitados.
Ao CNPq, pela concessão de uma bolsa de estudos, permitindo assim, a
dedicação exclusiva à realização deste trabalho.
SUMÁRIO
Resumo......................................................................................................................
viii
Introdução.................................................................................................................
002
Capítulo I Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a
Construção da Memória Histórica.........................................................................
015
- O Herói Encontra-se Ausente: Tiradentes no Brasil Império .................................
015
- O Herói Faz-se Presente: Tiradentes e os Ideais Republicanos .............................
028
Capítulo II - O Teatro Paulista nas Décadas de 1950/1960: Temas, Idéias e
Trajetórias................................................................................................................
056
- A Questão da Modernidade no Teatro Brasileiro....................................................
056
- O Golpe de 1964: A Construção da Arte de Resistência e o Contexto de
Produção de Arena Conta Tiradentes e As Confrarias.............................................
073
Capítulo III - Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e
Representação Política.............................................................................................
096
- Interpretações Acerca do Musical Arena Conta Tiradentes ...................................
109
- Arena Conta Tiradentes: Construção Dramática e Temas......................................
120
Capítulo IV - Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade.................
153
- EAD e TBC: As Bases Intelectuais e Artísticas de Jorge Andrade.........................
156
- Interpretações Acerca de As Confrarias..................................................................
175
- As Confrarias: estrutura dramática, temas e historicidade .....................................
183
Conclusão..................................................................................................................
208
Bibliografia...............................................................................................................
217
Resumo
viii
OLIVEIRA, Sírley Cristina. A Ditadura Militar (1964-1985) à Luz da Inconfidência
Mineira nos Palcos Brasileiros: Em Cena Arena Conta Tiradentes (1967) e As
Confrarias (1969). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação
em História Social. Instituto de História. Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia/MG, 2003, 224 p.
Na relação interdisciplinar entre História e Teatro, procurou-se no presente trabalho
realizar um debate acerca da representação da Inconfidência Mineira a partir de dois
objetos de estudo privilegiados, os textos teatrais Arena Conta Tiradentes (1967), de
Gianfrancesco Guarnieri, e As Confrarias (1969), de Jorge Andrade, tendo em vista que
as obras, ao interpretarem os anos de 1960, época em que o Brasil vivia os impasses da
ditadura militar, recorrem ao cenário político, econômico, social e cultural do século
XVIII. Dessa forma, a Inconfidência Mineira, ao ser relida pelos textos teatrais, aponta
uma correspondência de idéias entre os episódios políticos do passado e do presente,
associando a questão da liberdade, participação e soberania nacional, tema que
concentra o enredo das peças. Embora, na criação de suas obras, os dramaturgos tenham
escolhido posicionamentos políticos e opções estéticas diferenciadas, substancialmente
Arena Conta Tiradentes e As Confrarias são textos que inseriram os dramaturgos na
luta política de seu tempo, isso é, na resistência aos acontecimentos políticos
inaugurados pelo Golpe Militar. Sendo assim, nas circunstâncias metodológicas
adotadas no trabalho, os referidos textos teatrais não foram tratados como documentos
inocentes e transparentes. Aos olhos do historiador de ofício, são compreendidos como
objetos socialmente construídos, elaborados por autores, que ali depositaram seus
valores e suas visões de mundo, o que torna necessariamente importante observar quem
produz uma dada linguagem, quando produz, e para quem produz. Arena Conta
Tiradentes e As Confrarias são textos que permitem diagnosticar a atuação de diferentes
segmentos do teatro brasileiro no campo da resistência democrática no Pós-1964.
Introdução
2
A história se manifesta sob diferentes formas de gênero e linguagem. Desde os
tempos mais antigos vêm sendo utilizados poemas, crônicas, tratados militares,
memória política, documentos de arquivos e materiais de antigüidade em sua
construção. Porém, a forma mais evidente e tradicional ainda tem sido a narrativa dos
grandes acontecimentos políticos e econômicos, voltada para os grandes “feitos
históricos”, para a linearidade histórica e para a verdade absoluta dos fatos. Mas essa
forma de escrita da história vem gradativamente sendo superada pela renovação dos
métodos de análise, dos objetos e das práticas de abordagem.
No século XIX, muitas autores se destacaram, mobilizando-se para a construção
de uma história mais ampla, que não se voltasse apenas para a abordagem econômica e
política da sociedade, mas que também se preocupasse com os aspectos culturais e
sociais presentes nos hábitos, nos costumes, nas tradições das pessoas. Entre esses
autores que romperam com os escritos e as formas de abordagem da historia rankeana,
estão Michelet e Burckardt. Ambos,
que escreveram suas histórias sobre o Renascimento mais ou menos na mesma
época, 1865 e 1860, respectivamente, tinham uma visão mais ampla da história
do que os seguidores de Ranke. Burckardt interpretava a história como um
campo em que interagiam três forças o Estado, a Religião e a Cultura
enquanto Michelet defendia o que poderíamos descrever como uma ‘ história
da perspectiva de classes subalternas’, em suas próprias palavras ‘a história
daqueles que sofreram, trabalharam, definharam e morreram sem ter a
possibilidade de descrever seus sofrimentos’
1
.
Desse processo, resultou a possibilidade de utilização de novos objetos para a
pesquisa histórica. Ainda no século XIX, a Escola Metódica de Langlois & Seignobos já
apontava a possibilidade de utilizar documentos artísticos para fatos e períodos em que
a documentação fosse escassa
2
. Sendo assim, a utilização de romances, poemas épicos e
peças de teatro passou a ser considerada, mas desde que o historiador analise
criticamente esses documentos, filtrando deles todos os processos subjetivos, todas as
formas literárias, para chegar à construção do fato “puro”, “objetivo” e “verdadeiro”
3
.
1
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989) A Revolução Francesa na Historiografia. Trad.
Nilo Odalia. São Paulo: Ed. UNESP , 1997, p.19.
2
LANGLOIS C.H. & SEIGNOBOS. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
3
Segundo os positivistas, o processo não é ilegítimo, desde que o historiador se subordine a algumas
regras, que infelizmente está sujeito a esquecer. A primeira é que “a concepção moral ou estética de um
documento exprime, quando muito, o ideal pessoal do autor”, portanto ele não pertence ao gosto e
escolhas estéticas do seu tempo. A Segunda é que “pode a descrição dos fatos materiais resultar de uma
combinação pessoal do autor, produzida em sua imaginação com elementos tirados da realidade
3
”.
Nesse caso só se pode afirmar a existência separada de cada elemento irredutível, forma, cor, matéria,
número. A terceira, “a concepção de um objeto ou de um ato prova que ele existiu, mas que não tenha
sido freqüente: talvez se trate de um objeto ou de um ato único”(...). Necessariamente, os poetas,
Introdução
3
Nesse contexto, a idéia de que a história de uma sociedade pode ser construída
por meio de diferentes documentos, inclusive as manifestações artísticas, fez com que o
texto teatral fosse eleito como objeto deste estudo. Serão enfocados, assim, sua estrutura
dramática, sua temática e o seu contexto no âmbito de um processo histórico. Para tanto,
algumas especificidades necessitam ser pontuadas, uma vez que o processo
interpretativo de uma peça de teatro situa-se no campo da História e da Estética, aliança
que, além de inovadora, revela-se bastante complexa no interior dos embates
historiográficos.
Assim, do ponto de vista da historiografia internacional, o debate acerca da
conexão entre História e Teatro tem o seu representante máximo em Roger Chartier, que
expôs em sua obra Do Palco a Página, um trabalho comparativo entre o teatro clássico
francês - em particular o teatro de Molière -, o teatro espanhol e o teatro elisabetano,
revelando como uma mesma peça podia ser interpretada de diversas formas. Ao mesmo
tempo, destacou as variações entre uma peça encenada frente à Corte e nos teatros
urbanos
4
.
Nessa obra, o autor considerou o texto teatral como uma construção social, em
que a produção e a constituição de significados dependem das diferentes formas de sua
transmissão, que passa essencialmente pela redação, transcrições manuscritas, decisões
editoriais, correção, representação e leituras. Ao lado disso, o autor ressalta que o texto
teatral está inserido no contexto histórico de sua época, sendo, portanto, fruto das
diferentes situações políticas do seu momento de produção e construção. Diante dessas
argumentações, o autor considera os textos teatrais, assim como qualquer outro
documento utilizado na pesquisa histórica, como:
produções coletivas e como resultados de “negociações” com o mundo social.
Estas “negociações” não são somente apropriação de linguagens, de práticas
ou de rituais. Eles remetem, em primeiro lugar, às transações, sempre instáveis
e renovadas, entre a obra e a pluralidade de seus estados. A historicidade de
um texto vem, ao mesmo tempo, das categorias de atribuição, de designação e
romancistas servem-se de modelos tirados de um mundo excepcional, único. E, por último, “os fatos
conhecidos por êste processo não estão localizados, nem no tempo, nem no espaço, o autor pode havê-los
tomado em outra época ou em país que não seja o seu”. Diante dessas restrições, Langlois e Seignobos
ainda ressaltam que o historiador só realiza seu trabalho através de processos subjetivos, fatos materiais,
atos humanos individuais e coletivos, fatos psíquicos, objetos do conhecimentos histórico, que não se
observam diretamente, pois são, todos, imaginados. Embora sejam forçosamente subjetivos, não são
irreais. Uma lembrança é apenas uma imagem, mas longe está de ser uma quimera, pois é a representação
de uma realidade passada. Idem, p. 136, 154.
4
CHARTIER, Roger. Do Palco à Pagina. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
Introdução
4
de classificação dos discursos peculiares à época e ao lugar a que pertencem, e
dos seus próprios suportes de transmissão
5
.
Já no interior do debate historiográfico brasileiro, entre as diferentes linguagens
artísticas que fazem parte do universo de pesquisa do historiador, o teatro, com toda
certeza, foi a manifestação menos requisitada nas reflexões. A demora de um encontro
entre a História e o Teatro fez com que esse último tivesse a sua história contada
basicamente por críticos e diretores teatrais, nomes importantes, como os de Décio de
Almeida Prado, Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Edélcio Mostaço e Yan Mishalski,
que, com suas reflexões, fundamentaram histórias, marcos e temporalidades que se
consagraram como sendo a história oficial do Teatro Brasileiro.
Assim, o primeiro trabalho envolvendo a relação História e Teatro junto ao
programa de Pós Graduação em História da Universidade de São Paulo, foi a tese de
doutoramento de Rabetti Giannella, Contribuição para o Estudo do Moderno Teatro
Brasileiro: a presença italiana
6
, mas foi com a publicação da significativa obra
Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo
7
, que a relação entre História e
Teatro ganhou maior visibilidade. Ao procurar elucidar possíveis contribuições entre
essas duas áreas do conhecimento, Rosangela Patriota voltou-se para a interpretação do
texto Rasga Coração (1972- 1979), de Oduvaldo Vianna Filho, com o objetivo de
resgatar a historicidade do trabalho desse dramaturgo.
Com essa perspectiva, PATRIOTA procurou romper com as reflexões
veiculadas ao longo do tempo pela História do Teatro Brasileiro, questionando a
unanimidade das interpretações que cercam o texto Rasga Coração, consagrado como
símbolo da redemocratização da política brasileira, obra-prima do dramaturgo Vianna
Filho.
Ao longo da obra, demonstrou como os escritos dos críticos teatrais sobre Rasga
Coração são documentos utilizados como voz de autoridade para justificar e
posteriormente cristalizar determinadas interpretações. Ainda destaca que o trabalho
desses críticos teatrais indica tema, lugares em que a história do teatro deve ser pensada,
realizando uma seleção, estabelecendo o que deve ficar para posteridade ou não.
5
Idem, p. 10-11.
6
GIANNELLA, Rabetti. Contribuição para o Estudo do Moderno Teatro Brasileiro: a presença
italiana. Dissertação (Mestrado em História), Departamento de História da FFLCH-USP, 1989 (mimeo).
7
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec,
1999.
Introdução
5
Sendo assim, nas reflexões de PATRIOTA, a construção da dramaturgia de
Oduvaldo Viana Filho não foi analisada sob a única perspectiva de vinculação entre
texto e autor. Mais que isso, o texto é pensado a partir da crítica da memória, produzida
por diversos agentes políticos. Acima de qualquer instância, o texto foi entendido como
um documento socialmente produzido, que traz no seu âmago as lutas políticas de sua
época. Portanto, sua obra Rasga Coração será entendida como uma “obra aberta”, no
interior da qual surgem os impasses, as incertezas que a esquerda brasileira enfrentava
depois de instaurada a Ditadura Militar no País.
Depois de Vianinha: um dramaturgo no coração do seu tempo, outro importante
trabalho envolvendo História e Teatro visita a historiografia: Teatro da Memória:
história e ficção na dramaturgia de Jorge Andrade
8
, do historiador Luís Humberto
Martins Arantes. A obra torna-se uma referência importante, pois o autor ao refletir
sobre o tema memória e história toma como objeto de reflexão quatro textos de Jorge
Andrade, O Telescópio; A Moratória; A Escada e Os Ossos do Barão. Nas reflexões do
autor, as fontes teatrais são “peças socialmente produzidas por um autor com intenções
e estratégias. Aos olhos do historiador, não são documentos inocentes e transparentes,
pois descrevem todo um passado e sua carga simbólica”
9
.
O teatro sob outra perspectiva também foi objeto de estudo para a historiadora
Regina Horta, em seu trabalho Noites Circenses
10
. A obra pretende analisar a vida
cultural oitocentista em Minas Gerais e, para isso, recorre aos espetáculos de teatro e
circo, que foram bastante expressivos no cotidiano dos habitantes de diversas
localidades mineiras. O segundo capítulo da obra aborda o teatro em Minas,
“mostrando a explosão de discursos que buscavam racionalizá-lo e instrumentalizá-lo
como difusor de hábitos civilizados
11
”. O caráter marcante dos espetáculos teatrais em
Minas no século XIX expressa-se já numa das principais fontes utilizadas nessa obra.
Posto isso, nota-se que o texto teatral vem gradativamente conquistando seu
espaço como objeto de reflexão para o historiador. No curso de Mestrado em História
Social da Universidade Federal de Uberlândia, em especial na linha História e Cultura,
8
ARANTES, Luís Humberto Martins. Teatro da Memória - História e ficção na dramaturgia de Jorge
Andrade. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.
9
___. Teatro da Memória: história e ficção na dramaturgia de Jorge Andradre, Franca, 1999.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus
de Franca-SP, p. 05.
10
HORTA, Regina. Noites Circenses - Espetáculos de Circo e Teatro em Minas Gerais no Século XIX.
Campinas SP: Ed. da UNICAMP, 1995.
11
Idem, p.20.
Introdução
6
vários trabalhos privilegiando o interdisciplinar entre História e Teatro vêm sendo
desenvolvidos. Um deles, A Personagem Vicentina: Uma Representação do Portugal
dos Quinhentos, de Silvana Pittilo, toma como objeto de estudo três autos de Gil
Vicente o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da
Barca da Glória -, para discutir aspectos políticos, sociais e culturais da sociedade
portuguesa no século XVI
12
.
Outro, da historiadora Cláudia Regina dos Santos, abordou os impasses da
modernização autoritária na época do Regime Militar a partir do texto Opera do
Malandro do cantor e compositor Chico Buarque
13
. Já o teatro russo inspirou o
pesquisador Juscelino B. Ribeiro, que discutiu o tema arte e política no período
revolucionário da Rússia de 1917, através da dramaturgia de Vladimir Maiakóvski
14
.
Os musicais Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes de Gianfrancesco
Guarnieri e Augusto Boal, permitiram à Michele Soares não só refletir sobre os aspectos
políticos e estéticos da sociedade brasileira da década de 1960, mas também discutir o
papel da esquerda na construção da “resistência democrática” depois do Golpe de
1964
15
.
Contudo, o historiador que se propõe a pensar as produções artísticas como
objeto de pesquisa, em especial o texto literário teatral, depara-se com algumas
dificuldades, pois os objetos artísticos carregam certas especificidades que devem ser
levadas em conta. Assim, um dos impasses enfrentados pelo historiador é que ele não
será nunca o primeiro leitor do documento, pois, antes do seu olhar, já existe um sistema
de referência, uma história tida como “pronta”, “acabada”, seja da música, da literatura,
do teatro e outras mais. E assim, como constata o francês Robert Paris:
À diferença de seu colega que exuma uma peça inédita de arquivo, o
historiador, aqui, não é nunca o primeiro leitor do documento. Ele aborda esse
documento através de uma escala, um sistema de referências, uma ‘história da
literatura’, que separou o joio do trigo hierarquizando as escritas, as obras e
os autores. (...) Uma segunda dificuldade trata-se de mais uma armadilha, seria
a de tratar o documento literário como uma simples confirmação o que ele
12
PITILLO, Silvana Assis Freitas. A Personagem Vicentina: Uma Representação do Portugal dos
Quinhentos. Dissertação (Mestrado em História Social), Instituto de História - UFU - Uberlândia, 2002.
13
SANTOS, Cláudia Regina dos. Ópera do Malandro de Chico Buarque: História, Política e
Dramaturgia. Dissertação (Mestrado em História Social), Instituto de História - UFU - Uberlândia, 2002.
14
RIBEIRO, Juscelino Batista. Es tética e Política na Dramaturgia de Vladimir Maiakóvski.
Dissertação (Mestrado em História Social), Instituto de História - UFU - Uberlândia, 2001.
15
SOARES, Michele. Resistência e Revolução no Teatro: Arena Conta Movimentos Libertários (1965-
1967). Dissertação (Mestrado em História Social), Instituto de História - UFU - Uberlândia, 2002.
Introdução
7
também pode ser ou como uma ilustração de informação recebida das fontes
tradicionais
16
.
Mesmo levando em conta as especificidades e as dificuldades que carrega um
trabalho interdisciplinar, deve-se pontuar que, foi a partir das contribuições teórico-
metodológicas da Escola dos Annales que se tornou evidente a presença de novos
objetos para o trabalho do historiador, que começou a se interessar por toda e qualquer
atividade humana. Ao abrirem as portas para a nova história em 1929, Lucien Febvre e
Marc Bloc ampliaram o campo de atuação da história, que se voltou para o diálogo com
diferentes áreas do conhecimento, entre elas a Psicologia, a Antropologia e a
Sociologia. A partir desse movimento tudo passou a se constituir em objeto de
investigação, o campo historiográfico tornou-se mais rico e instigante.
Essencialmente, a nova história encontra-se associada à Escola dos Annales,
grupo de historiadores franceses que, liderados por Lucien Febvre e Marc Bloc,
tentaram romper com o paradigma tradicional de história, que se preocupava com os
fatos de natureza política, econômica e militar e tomava como princípio a cientificidade,
a objetividade e a verdade dos fatos históricos. Notadamente, é uma reação contra o
paradigma tradicional, a chamada “história rankeana”, preconizada pelo historiador
alemão Leopold Von Ranke (1795-1886), defensor de uma visão objetiva da história.
Para Ranke, a tarefa do historiador é apresentar aos leitores os fatos como eles
realmente aconteceram.
Assim, a história nova surge com novas suposições, defendendo a idéia de que
toda realidade é social ou culturalmente construída. Os documentos não são portadores
de verdades absolutas, mas encarados como discursos forjados, elaborados, construídos
por autores com estratégias e intenções, trazendo no seu interior as marcas, os impasses
políticos da época de sua criação.
À luz dessas reflexões, este trabalho, que transita em duas áreas do
conhecimento intimamente correlacionadas, História e Teatro, tem como propósito
realizar uma reflexão acerca da representação da Inconfidência a partir dos textos Arena
Conta Tiradentes
17
(1967), de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, e As
Confrarias
18
(1969), de Jorge Andrade, tendo em vista que as obras, ao abordarem
16
PARIS, Robert. A Imagem de um Operário no século XIX pelo Espelho de ‘Vaudeville’. In: Revista
da Civilização Brasileira, Vol. 08, nº 15, São Paulo: ANPUH/Marco Zero, Set./87 Fev/88, p. 85.
17
BOAL, Augusto. GUARNIERI, Gianfrancesco. Arena Conta Tiradentes. São Paulo: Sagarana, 1967.
18
ANDRADE, Jorge. As Confrarias. In: Marta, a árvore e o Relógio. São Paulo: Perspectiva, 1986, p.
21-70.
Introdução
8
fatos, temas e figuras históricas do século XVIII, em especial da Inconfidência Mineira,
estão criando representações sobre a sociedade contemporânea, especificamente sobre o
Regime Militar, contexto em que estão inseridas.
Nessas instâncias, a Inconfidência Mineira, por abarcar a responsabilidade de
mola propulsora do movimento de “independência no Brasil”, vem ocupando ao longo
dos tempos um lugar de destaque no interior da historiografia e no cenário político do
País. Seus ideais de liberdade e o heroísmo protagonizado por Tiradentes são
constantemente rememorados em diferentes presentes. Portanto, neste trabalho, torna-se
importante pensar quais as motivações que levaram Boal e Guarnieri - representantes de
um segmento teatral “engajado” e o dramaturgo Jorge Andrade que vê com
restrições os pressupostos estéticos e temáticos da “arte engajada”- a se apropriarem do
tema para dialogar com setores políticos da década de 1960. Com esta perspectiva,
procuramos compreender como esses dramaturgos estabelecem a relação passado-
presente em suas obras e qual a leitura que Arena Conta Tiradentes e As Confrarias
fazem de seu momento histórico.
Arena Conta Tiradentes e As Confrarias apresentam a mesma singularidade de
enredo. No entanto, possuem formas estéticas e leituras políticas bastante diferentes.
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri enxergam a arte como um instrumento de luta
que deve implicar à rápida transformação da sociedade. Estão comprometidos com a
produção de uma “arte engajada” próxima aos pressupostos políticos do Partido
Comunista Brasileiro. Já para Jorge Andrade, o teatro deve ser destituído de
engajamento partidário, visto ele não concordar com a idéia de palco como palanque.
No bojo dessas idéias conflitantes, torna-se importante ressaltar as considerações
do crítico teatral norte-americano Eric Bentley, que ao refletir sobre as diferenças entre
as noções de “político” e “engajado” ressalta que:
alguns tradutores de Sartre explicam que palavra francesa “engagement” tem
duas implicações: em primeiro lugar, a de que estamos mergulhados na
política, de bom ou mau grado, ou que não reconhecem que ele faça qualquer
diferença. Eles se acham, por outro lado, disposto a rejeitar uma determinada
posição política em virtude de circunstâncias desagradáveis que a cercam. Os
“não-engajados” gostam de afirmar que, ao aderir a uma causa política,
qualquer pessoa se torna cúmplice dos crimes e erros de seus líderes e
correligionários. Os autores engajados respondem que os não-engajados são
cúmplices dos crimes e erros de todos e quaisquer líderes aos quais eles se
limitaram a dar seu consentimento. Também a inação é uma atitude moral. O
simples fato de estar no mundo acarreta um vínculo de cumplicidade. Os não-
engajados se consideram inocentes pelo fato de terem feito determinadas
Introdução
9
coisas. Eles se recusam a examinar a possibilidade de que a sua participação
poderia ter mudado o curso dos acontecimentos para melhor
19
.
Partindo dessas premissas, é possível concluir que toda atividade artística é
política, e em se tratando dos textos teatrais Arena Conta Tiradentes e As Confrarias,
esses estão intimamente ligados à sociedade e trazem em si as marcas da realidade
política de sua época. Portanto, assumem claramente um postura engajada frente o pós-
Golpe, porém, com níveis diferenciados, pois seus autores não compartilham das
mesmas táticas políticas e opções estéticas que povoaram o diversificado universo das
práticas teatrais da década de 1960.
Porém, no âmbito da história do teatro brasileiro, os dramaturgos Augusto Boal
e Gianfrancesco Guarnieri são identificados como os legítimos representantes do
“teatro-político”, enquanto Jorge Andrade apresenta-se no campo oposto, isto é, na
vertente do teatro “não-político”. Em tais condições, torna-se importante neste trabalho,
observar ou rever o conceito de “teatro político”, atribuídos exclusivamente às
produções teatrais cujos conteúdos são vinculados a um explícito conteúdo político e a
uma temática social fortemente destacada.
Sendo assim, a historiadora Rosangela Patriota, ao discutir as noções de “teatro
engajado” e “não-engajado”, ressalta que no século XIX os textos teatrais que
procuraram levar para o público problemas sociais e políticos encontraram na estética
naturalista uma das bases para a realização de seus projetos. Já no século XX, no
universo das práticas teatrais, surge uma perspectiva de engajamento da arte no
processo histórico, por meio de uma explicitação de seu conteúdo político. Nessas
circunstâncias, durante o processo revolucionário de 1917 na Rússia e no período pós I
Guerra Mundial, na Alemanha, consagraram-se representações teatrais voltadas para
“agit-props”, “jornais vivos”, “autoativismo”, que construíram uma “intervenção direta”
nas questões sociais, promovendo propostas de conscientização e transformação da
realidade, a partir das experiência engajadas de Erwin Piscator, V. Meyerhold e Bertolt
Brecht
20
.
Diante disso, ao longo dos tempos foram definindo-se as manifestações artísticas
que se engajaram e se comprometeram com projetos de transformação social,
19
BENTLEY, Eric. O Teatro Engajado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p.154-155.
20
PATRIOTA, Rosangela. Fragmentos de Utopias (Oduvaldo Vianna Filho um dramaturgo no
coração de seu tempo). Tese ( Doutorado em História Social), FFLCH - Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1995, p. 04-05.
Introdução
10
construindo a noção de que “teatro político” é apenas aquele comprometido com a
concepção histórica e as diretrizes partidárias da militância de esquerda. Nessas
instâncias, gradativamente, foram consagrando-se as divisões esquemáticas de ‘teatro
político’ e ‘não-político’, “desconsiderando que, no âmbito das mais diferentes
manifestações, inclusive as estéticas, a questão do político permeia toda a produção
21
”.
No bojo dessas discussões que diferenciam as manifestações artísticas a partir de
divisões esquemáticas e didáticas, hierarquizando de um lado os trabalhos vinculados ao
“teatro político” e de outro as produções comprometidas com o “teatro não-político”, é
permitido afirmar que:
esta divisão, comumente, surge quando se está diante de uma produção que,
explicitamente, assume uma perspectiva de abordagem temática e ideológica,
bem como para enfatizar que os trabalhos engajados são os superados pelo
tempo, ao passo que os que não se engajam podem almejar a perenidade. No
entanto, a defesa deste posicionamento elidiu um aspecto significativo da
discussão: o fato de que não assumir, explicitamente, posicionamentos e
perspectivas de análise não significa, em absoluto, ausência dos mesmos. Ao
contrário, o que ocorre é a não revelação dos princípios que nortearam a
elaboração da obra
22
.
À luz dessas considerações, nota-se que tanto Arena Conta Tiradentes quanto As
Confrarias constróem representações a respeito da realidade brasileira numa perspectiva
de engajamento político. Ambas foram produzidas na década de 1960, cuja conjuntura
histórica intensificou o debate em torno da arte e da política, fazendo com que o campo
estético assumisse a proposta de uma arte engajada. Nesse contexto, levando em conta a
esquerdização pela qual passava a arte brasileira - em especial o teatro -, os dramaturgos
Jorge Andrade, Gianfrancesco Guanrnieri e Augusto Boal foram bastante atuantes,
inserindo-se no debate por meio da criação de peças em sintonia com realidade social e
as dificuldades políticas por que passava a sociedade brasileira.
Nesse sentido, o enfoque à questão da liberdade no século XVIII em pleno
contexto político da década de 1960 instigou a pensar novas questões, a saber: as táticas,
estratégicas e impasses pelos quais passava a esquerda brasileira, num momento em que
se abriam as brechas para a organização da “resistência democrática” ocupar o vazio
deixado pelos projetos políticos derrotados e pelo frustrado “sonho revolucionário”.
Levando em conta essas considerações, deve-se ressaltar ainda que, ao enfrentar
a proposta da possível conexão entre História e Teatro, estamos trabalhando com
21
Idem, p. 05.
22
Idem.
Introdução
11
objetos socialmente produzidos, o que implica pensar a “peça de teatro” e a
“historiografia especializada”, cada uma delas como um texto carregado de significados,
lutas, contradições, resistências e modelos de uma determinada época e que, portanto,
nenhum deles tem autonomia explicativa, necessita de um diálogo com outras
referências do seu período, pois como os demais não deve ser encarado como espelho
da realidade, mas como representação do real”
23
.
Face a essas questões, “As Confrarias” e “Arena Conta Tiradentes,” não sendo
espelhos da realidade, mas a representação do real, trazem em seu bojo uma linguagem
própria, com posicionamentos e evidências de diferentes grupos sociais e de uma
determinada época histórica, por isso não podem ser entendidas como simples ilustração
do período histórico em questão. É preciso refletir sobre os elementos estéticos nelas
presente e o contexto histórico de sua produção:
Sendo assim, estudar as diferentes vertentes do teatro brasileiro na década de
1960 requer um mínimo de contextualização dos dramaturgos e de seus textos na época
da Ditadura Militar brasileira, pois o processo de interpretação de uma obra não se
restringe apenas aos seus elementos lingüísticos, psicológicos, religiosos e morais.
Necessariamente, o elemento social torna-se um fator da construção artística, da opção
estética e deve ser compreendido numa perspectiva explicativa, e não ilustrativa.
Sob esse ponto de vista, as contribuições de Antônio Cândido tornam-se
imprescindíveis, pois ele ressalta que, para apreender o valor e o real significado de uma
obra, é necessário que texto e contexto se fundam dialeticamente. Isso implica pensar
que a análise estética de uma obra não passa apenas pela sua interpretação interna
(construção de personagens, estrutura de narração, estilo de linguagem), mas,
necessariamente, pelas condições externas (contexto social, pressuposto políticos), que
acompanham a sua construção. Portanto não é permitido:
adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender
fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que
tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o
outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente,
se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos,
ainda, que o externo (no caso o social) importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno
24
.
23
PATRIOTA, Rosangela. Cultura e Arte: Perspectivas Teórico Metodológicas no Âmbito da Pesquisa
Histórica - Projeto de Pesquisa - NEHAC - Uberlândia, 1996, mimeo, p. 14.
24
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacioanl,1973, p. 04.
Introdução
12
Assim, ao evidenciar a interdiciplinaridade entre História e Teatro, estamos
concentrando nossos estudos no campo de reflexão da história cultural, uma vez que
entendemos o texto teatral como um objeto socialmente construído, num dado momento
e lugar, que traz marcas de uma determinada realidade. Para aprofundar essa relação
interdisciplianar, levamos em conta:
que os historiadores da cultura não devem substituir uma teoria redutiva da
cultura enquanto reflexo da realidade social por um pressuposto igualmente
redutivo de que os rituais e outras formas de ação simbólica simplesmente
expressam um significado central, coerente e comunal. Tampouco devem
esquecer-se de que os textos com os quais trabalham afetam o leitor de formas
variadas e tradicionais. Os documentos que descrevem ações simbólicas do
passado não são textos inocentes e transparentes, foram escritos por autores
com diferentes intenções e estratégias, e os historiadores da cultura devem
criar suas próprias estratégias para lê-los. Os historiadores sempre foram
críticos com relação aos seus documentos - e nisso residem os fundamentos do
método histórico
25
.
Nesse contexto, a história cultural surge com novas suposições, defendendo a
idéia de que toda realidade é social ou culturalmente construída. Para Roger Chartier,
“a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objetivo identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada e dada a ler
26
”. Dessa forma, a história cultural permite considerar
toda realidade como social ou culturalmente construída a partir da percepção de
diferentes grupos sociais e marcada por códigos de representação, símbolos a serem
decifrados pelos historiadores.
À luz dessas considerações, o Capítulo I deste trabalho tem por objetivo
recuperar o lugar em que o tema da Inconfidência Mineira ocupa no interior do debate
historiográfico, especialmente, a maneira pela qual é revisitado e apropriado em
diferentes circunstâncias políticas do País.
Já o Capítulo II, apresenta o cenário teatral paulista nas décadas de 1950/1960,
em que os dramaturgos Jorge Andrade, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri
estiveram presentes, estudando e escrevendo peças que contribuíram tanto para a
construção do Teatro Moderno no Brasil, quanto para pensar os impasses vividos na
sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, apresenta o contexto de produção dos textos,
25
HUNT, Lyn. A Nova História Cultural.. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.18.
26
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel, 1988, p.14-
15.
Introdução
13
isto é, as condições sociais, políticas e culturais da década de 1960 que permitiram a
construção de Arena Conta Tiradentes e As Confrarias.
Diante dessas questões, os capítulos seguintes têm a intenção de apresentar ao
leitor o universo de construção das fontes teatrais, sua estrutura dramática, seus temas e
a leitura peculiar que apresentam sobre a Inconfidência, numa época marcada pelos
impasses políticos do Regime Militar. Dessa forma, o Capítulo III, faz uma análise
atenta do texto Arena Conta Tiradentes, mostrando como os dramaturgos utilizam dos
pressupostos de liberdade da Inconfidência Mineira para criarem representações sobre a
sociedade brasileira, em especial sobre a organização da esquerda frente à “resistência
democrática” logo após a instauração do Golpe Militar de 1964.
Depois de explicitado o tema Inconfidência Mineira a partir do texto Arena
Conta Tiradentes, o Capítulo IV analisa as estruturas dramáticas e os temas de As
Confrarias. Especialmente, tem a intenção de avaliar de que forma os ideais de
liberdade do século XVIII foram retomados na peça andradina, para pensar a sociedade
brasileira na época do Regime Militar e quais as contribuições de As Confrarias para os
inquietantes debates políticos e estéticos que povoaram a década de 1960.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
15
O Herói Encontra-se Ausente: Tiradentes no Brasil Império
Reuniões envolvendo mistérios e surpresas nas caladas noites de Vila Rica!
Conversas políticas regadas a versos e poesias! Amores e ilusões! Ensejos e bravores à
liberdade!!! Quem não se encanta pela trama histórica da Inconfidência Mineira? Tendo
como palco uma das mais belas cidades de Minas Gerais, a Inconfidência pode ser
apontada com um dos temas mais estudados no interior da historiografia brasileira.
Passados mais de dois séculos dos acontecimentos, a Inconfidência Mineira
tornou-se um tema polêmico, suposições, dúvidas, perguntas e respostas ainda
compõem um campo rico de suposições. Historiadores mais entusiastas enxergam o
movimento como um conjunto de concepções políticas revolucionárias, racionais e
inteligentes
1
. Posições mais polêmicas afirmam ser o movimento nem inconfidência,
nem conjuração, apenas simples conversações poéticas, divagações de noites quentes de
verão
2
.
Mas a porta de entrada para os estudos que envolvem a Inconfidência Mineira
ainda tem sido a sentença conferida a Tiradentes pelos autos da devassa - a morte na
forca. O modelo da morte exemplar conferiu-lhe o caminho da glória: o corpo mutilado
exposto ao tempo, o desfile da cabeça degolada aos olhos curiosos e atemorizados, o
cadáver exposto à execração pública sem piedade dos governantes espantam e
assombram a nossa história, oferecendo, assim, o nascimento de um símbolo.
As obras que tomaram a Inconfidência Mineira como objeto de estudo datam
desde longínquas épocas. Depois do cumprimento da sentença editada pelos autos,
colocando um ponto final no demorado e conturbado processo da Inconfidência,
historiadores, dramaturgos, romancistas, cineastas, literatos e artistas plásticos têm-se
debruçado sobre as múltiplas e ricas possibilidades de estudos que essa temática
oferece, iniciando assim uma instigante batalha para que a sua importância permaneça
acesa na memória dos brasileiros
3
. É nessas circunstâncias que, quando nos deparamos
1
SALLES, Fritz Teixeira. Vila Rica do Pilar. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1982.
2
VARNHAGEN, Francisco A. Idéias e conluios em favor da independência em Minas. In: História
Geral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981.
3
No campo artístico, a Inconfidência Mineira tem fornecido temática a diferentes manifestações. Em
obras literárias podemos citar “O Romanceiro da Inconfidência Mineira”(1953), de Cecília Meireles. Na
dramaturgia o episódio foi retratado pelas peças “Gonzaga ou a Revolução de Minas”(1867), de Castro
Alves, “Tiradentes”(1939), comédia histórica de Viriato Correia, “Arena Conta Tiradentes”(1967), de
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
16
com a Inconfidência Mineira, já encontramos uma história marcada por “temas e
interpretações (...) definidos no momento da formação da memória de um determinado
passado”
4
.
As diferentes abordagens, a utilização exaustiva de símbolos consagrando a
Inconfidência e o seu protagonista contribuíram para o que podemos chamar de uma
construção da “memória histórica” em torno do acontecimento
5
. A Inconfidência
Mineira jamais é esquecida, em situações estratégicas da política nacional seus ideais de
liberdade e a personificação heróica de Tiradentes são retomados e revestidos de
significados, forjando ao longo dos tempos uma “identidade nacional” em torno do
“fato”.
A construção da memória e do mito que envolvem a Inconfidência Mineira
começou com as narrativas produzidas pelos contemporâneos do fato, testemunhas
oculares que presenciaram os acontecimentos e os registraram por escrito. A primeira
delas é a Memória do Êxito da Conjuração Mineira...
6
, cujo autor, para muitos
desconhecido, foi supostamente denominado de Frei José Carlos de Jesus Maria do
Desterro. Existe nesse documento uma preocupação explicita com a “sobrevivência”
dos fatos que envolveram a Inconfidência, e que, para vencer os séculos e chegar às
gerações futuras, teriam que ser comunicados de forma que não fossem “riscados para
sempre da memória dos homens” .
Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal e “As Confrarias”(1969), de Jorge Andrade. Na produção
cinematográfica, merecem destaque os filmes: ”Tiradentes ou o Mártir da Liberdade” (1917), de Paulo
Ariano e Perassi Felice; “Rebelião em Vila Rica”(1958), de Renato e Geraldo Santos Pereira; “Os
Inconfidentes”(1972), de Joaquim Pedro; O Mártir da Independência: Tiradentes (1977), de Geraldo
Vietri e “Tiradentes”(1999), de Oswaldo Caldeira. O líder da Conjura também foi mencionado em
documentários históricos, como “Os Inconfidentes” (1936), de Humberto Mauro, produzido pelo
Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), e “Painel” (1950), de Victor Lima Barreto, este último
um curta-metragem, em que um professor apresenta a um aluno o mural Tiradentes, de Cândido Portinari.
Na voz de Elis Regina, a Música Popular Brasileira também relembrou o tema, através da canção
Tiradentes, de Estanislau Silva e Décio Antônio CarlosPenteado.
4
MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: SILVA, Marcos Antônio da.
Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984, p. 47.
5
A definição de “memória histórica” utilizada nesse momento refere-se a concepção elaborada pelo
historiador Carlos Alberto Vesentini: “por memória histórica entendo uma questão bastante precisa,
refiro-me à presença constante da memória do vencedor em nossos textos e considerações. Também me
remeto às vias pelas quais essa memória impôs-se tanto aos seus contemporâneos quanto a nós mesmos,
tempo posterior especialistas preocupados com o passado. Mas com um preciso passado - já dotado,
preenchido, com os temas dessa memória”. Vesentini, Carlos Alberto. A instauração da temporalidade e a
(re)fundação na História: 1937 e 1930. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol.
1, outubro-dezembro/1986, p. 104. APUD PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração
de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.
6
MEMÓRIA do Êxito que teve a Conjuração e dos fatos relativos a ela acontecidos na cidade do Rio de
Janeiro desde 17 até 26 de abril de 1792. In: Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Brasília:
Câmara dos Deputados, 1977. V. 09 - p. 95-118.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
17
Sendo assim, o autor da Memória do Êxito marca a sua narrativa escolhendo
posições de grupos opostos envolvidos diretamente nos acontecimentos da
Inconfidência Mineira. Com elogios exacerbados, realça a clemência e o perdão da
Rainha ao permutar as penas dos inconfidentes. Sobre Tiradentes, destaca a sua postura
sofrida e resignada perante a punição exemplar que obteve pelos crimes cometidos. É
isto o que podemos verificar nas palavras do padre José Carlos do Desterro:
tivemos a consolação de ver brilhar - por um modo extraordinário e repentino -
a excessiva clemência de nossa augustíssima Soberana, quanto à conservação
da vida desses infelizes. É lícito conservar, para exemplo de uma lembrança
horrorosa assim das culpas como das penas, e conforma-se com as obrigações
de um bom vassalo, perpetuar, publicar e transmitir aos vindouros a memória
das grandes virtudes dos seus soberanos. (...) Os castigos em que vemos os
outros - são exemplos para nós; eles nos inspiram horror e - como não
podemos prescindir de amar a vida, a honra e outros bens de inocentes
qualidade que se gozam no mundo - somos obrigados a aborrecer a culpa como
causa que nos expõe a perder tudo. (...) que este homem se mostrava
convencido da gravidade de seus pecados e movido de uma dor assinalada,
com todas as condições de verdadeira; que recebeu com ânimo sereno a
sentença da sua morte, sentindo a dos outros - a que muitas vezes pediu perdão
(...) se mostrou dócil e fervoroso, rompendo por si mesmo em outros que faziam
acreditar os bons sentimentos em que estava
7
.
Outro relato - memória, referência clássica para todos aqueles que se interessam
pelo tema da Inconfidência Mineira, são os depoimentos de Frei Raimundo da
Anunciação Penaforte
8
, padre confessor que acompanhou Tiradentes até os últimos
momentos que antecederam a sua morte. Seus depoimentos foram recebidos com
bastante notoriedade pelo público, sendo constantemente utilizados pela historiografia
contemporânea. Consciente do “peso de seu testemunho”, Penaforte dá à sua narrativa
um colorido especial, contando com precisão e riqueza de detalhes o espetáculo
organizado pelas autoridades para a execução de Tiradentes. Defensor convicto da
Monarquia e contrário às idéias que levaram Tiradentes à forca, seu relato não
demonstra grande simpatia pelo Alferes. Elogios ao protagonista do Levante foram
sutilmente regateados, aparecem uma única vez no documento e ainda de forma muito
rápida:
Este homem foi um daqueles indivíduos da espécie humana que põe em espanto
a própria natureza. Entusiasta, com o aferro de um quaker; empreendedor, com
o fogo de um D. Quixote, habilidoso; com um desinteresse filosófico; afoito e
7
Idem, 97- 107.
8
PENAFORTE, Francisco Raimundo da Anunciação. Últimos momentos dos inconfidentes de 1789, pelo
frade que os assistiu em confissão. In: Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Brasília: Câmara
dos Deputados, V. 09, p. 95-118.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
18
destemido sem prudência às vezes, e temeroso ao ruído da recaída de uma
folha. Mas o seu coração era bem formado (...). Tirava, com efeito, dentes com
a mais sutil ligeireza; e ornava a boca de novos dentes - feitos por ele mesmo -
que pareciam naturais
9
.
Frei Raimundo da Anunciação Penaforte tinha a mesma convicção que o padre
franciscano José Carlos Desterro: a de que seus escritos serviriam à posteridade. Sendo
assim, construiu a imagem de Tiradentes que pretendia “deixar para a história”, um
homem resignado, triste, humilhado e arrependido de se sobrepor à soberania da Coroa:
No meio de tão vivos transportes de alegria, só o Tiradentes estava ligado de
mãos e pés - que justamente foi declarado por último sedutor - e testemunhou
esta não esperada metamorfose; mas tão corajoso como contrito respondeu ao
diretor que o confortava até aqui: - ‘Que agora morreria cheio de prazer, pois
não levava após si tantos infelizes a quem contaminara. Que isto mesmo
intentara ele, nas multiplicadas vezes que fora à presença dos ministros, pois
sempre lhes pedira que fizessem dele só a vítima da lei’.(...) Entrou o algoz
para lhe vestir a alva, e - pedindo-lhe como de costume o perdão da morte, e
que a cuja justiça é que lhe moveria os braços e não a vontade - placidamente
voltou-se para ele e lhe disse: - ‘Ó meu amigo, deixe-me beijar-lhe as mãos e os
pés’. O que feito com demonstração de humildade, com as mãos despiu a
camisa e vestiu a alva, dizendo: - ‘Que o seu Redentor morrera por ele, também
nu’.(...) Causava admiração a constância do réu e, muito mais, a viva devoção
que tinha aos grandes mistérios da Trindade e da Encarnação, de sorte que,
falando-se-lhe nestes mistérios, se lhe divisavam as faces abrasadas e as
expressões eram cheias de unção - o que fez com que o diretor não lhe dissesse
mais nada senão repetir com ele o símbolo de Santo Atanásio. (...)
Ligeiramente subiu os degraus; e sem levantar os olhos que sempre conservou
pregados no crucifixo sem estremecimento algum, deu lugar ao carrasco para
preparar o que era necessário; e por três vezes, pediu-lhe que abreviasse a
execução
10
.
Aos olhos de Penaforte, a morte de Tiradentes não foi inútil, ela afirmou o
destino de amor e lealdade do povo a uma “soberana tão pia e tão clemente (...) Deus
que lhe conserve a vida e o Império
11
.
Ao celebrar a “memória” de um acontecimento, a História opera um efeito
sedutor sobre os agentes sociais escolhidos para a função. Por se fundar em uma
coerência de investigação ou em uma “operação histórica”, acredita-se que o historiador
seja o credenciado “oficial” para olhar, pensar e reconstruir o passado. No entanto, os
relatos/memórias sobre os acontecimentos de 1789 em Minas, visualizados até então,
vieram jogar luz sobre essa questão, mostrando que o fato - Inconfidência Mineira -
9
Idem, p.178.
10
Idem, p.162-184.
11
Idem, p.176.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
19
sobreviveu porque assim quiseram seus contemporâneos memorialistas - porque
assim fizeram suas narrativas.
Nesse sentido, tanto o relato do Padre Desterro, quanto o de Penarforte
tornaram-se fontes matrizes para todos aqueles que se interessam pelo tema da
Inconfidência Mineira. E mesmo que os historiadores do século XIX tenham sido
alheios às insurreições ocorridas no bojo da crise do sistema colonial - especialmente à
Inconfidência Mineira - duas importantes obras surgem nesse contexto. A primeira
publicada no ano de 1857, pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, que ao
escrever a sua História Geral do Brasil dedica um capítulo ao tema da Inconfidência. A
segunda pertence ao historiador Joaquim Norberto de Sousa e Silva, que, em 1873,
entrega ao público a História da Conjuração Mineira. Para colocar o leitor em contato
com essas obras, ou para compreender o sentido político dessas narrativas no processo
de construção da “memória histórica”, em torno da Inconfidência de Minas Gerais, é
extremamente importante resgatar o lugar de onde elas falam, ou melhor, o lugar social
que ocupam no cenário político do século XIX.
Para tanto, torna-se necessário ressaltar que, na época do Império, toda a
produção do conhecimento e da cultura saíam de um importante órgão ligado à corte
“letrada” e “rica” da colônia. Era o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB),
inaugurado no ano de 1838, a mais acabada instituição cultural da vida monárquica. O
surgimento do IHGB ocorreu no bojo de reestruturação da sociedade brasileira por
ocasião da vinda da Família Real ao Brasil, em 1808: a corte, ao chegar à colônia,
acompanhada por uma elite lusitana estimada em 15.000 pessoas, encontra um País
“doente” e “feio”, incapaz de abrigar uma população “fina”, “letrada” e “sofisticada”. E
como não “se faz um território promissor sem homens saudáveis
12
”,a nação começa a
ser saneada, moldada, construída por diferentes instituições que estavam comprometidas
essencialmente com a difusão do saber e dos hábitos úteis, necessários à sociedade.
Assim, ao lado das escolas de Medicina e das faculdades de Direito criadas nessa época
por todo o País, surge o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), que visava
assegurar o poder da realeza e produzir uma memória, uma cultura de cunho
nacionalista.
12
SCHWARCZ, Lilian Moritz. De volta ao passado com as lentes focadas no presente. In: SIMAN, Lana
Mara de Castro & LIMA E FONSECA, Thaís Nívea. Inaugurando a História e Construindo a Nação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 07.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
20
Sob a égide do IHGB, foram realizadas obras de grande valor divulgando
manuscritos, até então esquecidos e esgotados, revelando cronistas que muito
contribuíram com informações sobre a vida colonial. Nessa época autores como Adolfo
de Varnhagen, Capistrano de Abreu, Joaquim Norberto de Sousa e Silva tornaram-se
referência na produção de obras sobre diferentes temas da História do Brasil
13
.
O Instituto tinha como premissa reconhecer e estimular uma cultura
autenticamente brasileira e por isso, ao longo do século XIX, tornou-se um centro vivo
de pesquisa histórica, literária, geográfica e artística, estimulando sempre o trabalho
intelectual de seus integrantes e funcionando, sobretudo, como um importante elo de
ligação entre esses intelectuais e os meios oficiais da Monarquia.
Lilia Moritz Schwarcz ressalta, em As Barbas do Imperador, que o surgimento
do IHGB esteve intimamente ligado à pessoa de D. Pedro II. Por ocasião de sua
inauguração, em 1838, o então Imperador foi logo convidado para ser o “protetor” da
instituição. No ano seguinte, é ele quem oferece uma das salas do Paço Imperial para a
realização das reuniões do Instituto. Entre os anos de 1842 e 1844, instituiu valiosos
prêmios para os melhores trabalhos apresentados no IHGB. Assim, a grande instituição
do Império agregava parte da “boa elite” da corte e alguns literatos selecionados. As
discussões firmavam-se numa questão essencial: “como deve ser escrita a história do
Brasil”. Nas palavras da autora, o IHGB, tinha como propósito:
fundar a história do Brasil tomando como modelo uma história de vultos e
grandes personagens sempre exaltados tal qual heróis nacionais. Criar uma
historiografia para esse país recente, ‘não deixar mais ao gênio especulador
dos estrangeiros a tarefa de escrever nossa história [...]’, eis nas palavras de
Januário da Cunha Barbosa a meta dessa instituição, que pretendia estabelecer
uma cronologia contínua e única, como parte da empresa que visava a própria
“fundação da nacionalidade”
14
.
13
O IHGB foi criado sob a inspiração do Institut Historique da França, fundado na cidade de Paris em
1834 por vários intelectuais já conhecidos no Brasil, como Monglave e Debret. Sendo assim, o
encaminhamento dos trabalhos no instituto brasileiro seguia piamente os pressupostos, as idéias, o viés de
interpretação e produção das obras realizadas no instituto francês. Nessas circunstâncias, por mais que o
IHGB tenha abrigado a elite econômica e literária do Rio de Janeiro, intimamente ligada a D. Pedro II,
existiam no seu interior muitas fissuras, que provocavam efervescentes debates e conflitos. Uma delas
refere-se ao grupo de intelectuais que não eram muito próximos do Imperador e que, por circunstâncias
diversas, rivalizavam quanto à produção intelectual realizada no Instituto. Entre esses autores, destacam-
se os seguintes nomes: Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Almeida Seabra e
Castro Alves. Para uma reflexão profunda sobre IHGB no cenário político e cultural do século XIX,
consultar as seguinte obras:
SCHWARCZ, Lilian Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
___. O Espetáculo das Raças cientistas, instituições e questão racial no Brasil no século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
14
___. Um Monarca nos Trópicos: O Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, a Academia Imperial de
BelasArtes e o Colégio Pedro II. In: As Barbas do Imperador. Op. Cit, p. 127.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
21
A partir de 1840, D. Pedro II dedicou-se com afinco ao projeto do IHGB, que
visava “imprimir um nítido caráter brasileiro à nossa cultura”. Para a sua realização,
tornou-se presença assídua nas reuniões realizadas no Paço e as sessões por ele
presididas chegaram a 506, no período de Dezembro de 1849 a Novembro de 1889.
Nesse sentido, a necessidade de produzir uma “cultura genuinamente nacional” por
parte do Imperador e da elite que compunha o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro
vem sistematicamente explicitar a preocupação da Monarquia em “registrar”,
“perpetuar” e “consolidar” uma certa “memória” do regime político na sociedade
brasileira. Tanto é assim, que:
seguindo o exemplo passado de Luís XIV, o monarca formava a sua corte ao
mesmo tempo que elegia seus historiadores para cuidar da memória, pintores
para guardar e enaltecer a nacionalidade, literatos para imprimir tipos que a
simbolizavam. Em uma situação de consolidação do projeto monárquico, a
criação de uma determinada memória passa a ser uma questão quase
estratégica
15
.
É nesse contexto que o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen cria sua obra,
História Geral do Brasil, onde, no capítulo “Idéias e Conluios em Favor da
Independência em Minas”, referenda o tema da Inconfidência Mineira
16
. Varnhagen foi
um dos autores do Império que mais participou dos trabalhos do IHGB, pertencendo ao
grupo intimamente ligado a D. Pedro II, portanto não causa nenhum estranhamento o
propósito de sua obra em defender explicitamente os valores e interesses políticos da
Monarquia.
Contudo, por mais que o historiador desconsidere o “caráter revolucionário” da
Conjuração de Minas, sutilmente deixa transparecer um rápido reconhecimento
“político” do movimento libertário e de algumas atitudes “simpáticas” e “positivas” do
alferes Joaquim José:
Pelo que respeita à sua heróica empresa, não a denominaremos conjuração.
Custa-nos até dar-lhe o nome de conspiração; embora concedamos que fosse
ele o verdadeiro conspirador. (...) Por essa ocasião foi, pelos que estavam
presentes, aplaudida a idéia do Tiradentes, mui devoto Dom mistério da
Santíssima Trindade, de tomar-se em armas um triângulo, representando o
mistério, à imitação de Portugal, que tinha as Chagas de Cristo; (...) O número
dos cúmplices foi crescendo, sendo uns estimulados pelo amor da pátria ou por
simples ambição, e outros pelo desejo de se libertarem do pagamento da
derrama. (...) e aparecendo em cena como principal vulto, pelo seu grande
15
Idem , p. 128.
16
VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Op. Cit.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
22
entusiasmo, pela sua expansão e indiscrição, e afinal, até pelo martírio, o
Alferes de cavalaria Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes. (...)
Só um chegou a entusiasmar-se pela idéia da revolução: foi o mencionado
alferes Silva Xavier(...). Desde que na alma lhe caiu a primeira centelha a favor
da independência, lavrou o incêndio por tal forma que não se pode mais
apagar. (...) o martírio no patíbulo conferiu ao alferes Silva Xavier, apesar de
pobre, sem respeito e louco como dele diz Gonzaga, a glória toda de
semelhante aspiração prematura em favor da independência
17
. (grifos nossos)
Entretanto, o historiador não é diferente dos homens ilustres do Império e, ainda
que de forma “discreta” anteceda a campanha republicana considerando a Inconfidência
um dos movimentos propulsores de Independência do Brasil, suas idéias convergem
essencialmente para a defesa do Estado monárquico. Alegando critério e rigor no exame
documental, Varnhagen restringe o alcance do “movimento revolucionário de Minas”
em gerar “novas situações” políticas, pois colocou em risco a soberania e a unidade
nacional do País. Nessas circunstâncias, o historiador do Império explicitamente
endossa a necessidade de atitudes “submissas” e “respeitosas” à Monarquia, o único e
eficaz caminho que levaria à construção e dignidade da nação:
Lamentando, como devemos, as vítimas que causou esta mal denominada
conspiração, que tantas simpatias inspira a todas as alma generosas, cremos
que o seu êxito, ainda quando a revolução chegasse a realizar-se, não podia ser
diferente do que foi; e que, portanto, quase parece ter sido um bem que ela não
estalasse, para não comprometer muito mais gente, e induzir a província em
uma guerra civil, que devastasse essas povoações, que começam a medrar. (...)
E supondo ainda que no fim de uma encarniçada guerra civil, que já por si só
seria um flagelo, triunfasse a revolução, estaria hoje o Brasil em melhor
estado? Essa pequena República, encravada no meio do majestoso império de
Santa Cruz, não teria sido um mal? Não teria alguma nação poderosa
procurado um pretexto de guerra para buscar ter nesse território uma Guiana?
Não teria ainda nele também outra Guiana o próprio Portugal? Curvemos a
cabeça ao decreto da providência, que à custa do próprio sangue dos mártires
do patriotismo veio a conduzir-nos à única situação, em que podemos, sem
novos ensaios, procurar ser felizes, e fazer-nos respeitar como nação
18
.
Francisco Adolfo de Varnhagen toma como principais fontes para as suas
análises, além dos Autos da Devassa, os relatos dos padres confessores, José Maria do
Desterro e Frei Raimundo da Anunciação Penaforte. O que o historiador de fato retém
dessas fontes é a contemplação, a humildade, a contrição do condenado Joaquim José,
que, diante da iminência da morte, abraça e pede perdão aos seus companheiros, beija
os pés dos carrascos - aqueles que de forma emblemática ofereceram a forca com as
honras de um mártir: “do Alferes (...) sabemos que ouvira a sentença com toda a
17
Idem, p. 307-328.
18
Idem, p. 322-323.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
23
serenidade; e que, com a maior abnegação de si, chegou a dizer quanto estimava vir a
pagar as culpas daqueles que ele havia comprometido. Por essa forma ele se adiantou
a aceitar para si a responsabilidade dessa nobre tentativa e as glórias do martírio que
hoje lhe confere a posteridade
19
”.
Com efeito, o posicionamento de Varnhagen repercutirá no futuro
historiográfico da Inconfidência Mineira, as obras que no século XIX sucederam
“conluios a favor da Independência de Minas” deram uma interpretação mais acabada
as idéias lançadas pelo autor especialmente àquelas que minimizaram o episódio nas
terras mineiras em 1789. Exemplo maior disso, foi a primeira edição da obra Capítulos
da História Colonial, do historiador Capistrano de Abreu, que, ao construir um
panorama da vida colonial no Brasil, omitiu por inteiro a existência do movimento
revolucionário em Minas
20
.
Porém, a obra mais polêmica da historiografia da Inconfidência Mineira no
século XIX surge em 1873, quando o historiador Joaquim Norberto de Sousa Silva traz
a público a História da Conjuração Mineira
21
, fruto de uma pesquisa fartamente
“documentada” e “comprovada”. Segundo o autor, a “publicação da obra foi saudada
por uma dupla bateria de aplausos e reprovações
22
. Ao responder às críticas em
defesa de seu trabalho, alega ter escrito a verdade histórica: “pode apresentar
apreciações menos simpáticas, mas não falsidades e mentiras, que nem um interesse
havia para deprimir um mártir
23
”.
A História da Conjuração Mineira chega ao leitor em meio as efervecências dos
ânimos políticos da República. Sua publicação é apressada a fim de contestar as
intenções de jovens republicanos, que segundo SOUZA SILVA, diante de uma
exaltação desmesurada, pretendiam construir um monumento ao Tiradentes. Na sua
opinião:
seu vulto era bastante secundário para ornar uma praça da capital do Império
e sobretudo da maneira por que projetara o artista, representando o Tiradentes
de alva e baraço no pescoço, como se o governo colonial quisesse eternizar a
sua lição de terror ao habitantes da capital do vice - reino!
24
.
19
Idem, p. 321.
20
Ver: PAULA, João Antônio de. A Inconfidência Mineira: Revolução e Limites. In: Análise e
Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, n° 2/3, maio/dezembro de 1989.
21
SOUSA SILVA, Joaquim Norberto. História da Conjuração Mineira. Imprensa Nacional: Rio de
Janeiro, 1948.
22
Idem, p. 229, tomo II.
23
Idem, p.235, tomo II.
24
Idem, p. 235-236, tomo II.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
24
Quanto a Tiradentes, Joaquim Norberto é incisivo, não consegue entusiasmar-se
pela personagem do Alferes. Ressalta que por muito tempo fora entusiasta de
Tiradentes, pois “os mártires atraem as simpatias como os algozes se tornam dignos
das maldições populares
25
”, mas à medida que se instruía na historia da “fracassada”
Conjuração Mineira modificou o seu entusiasmo:
A sua fisionomia nada tinha de simpática e antes se tornava notável pelo quer
que fosse de repelente, devido em grande parte ao seu olhar espantado.
Possuía, porém, o dom da palavra e expressava-se as mais das vezes com
entusiasmo; mas sem elegância nem atrativo, resultado de sua educação pouco
esmerada; ouvindo-o porém na rudeza de sua conversação, gostava de sua
franqueza selvagem, algumas vezes por demais brusca e que quase sempre
degenerava leviandade, de sorte que uns lhes davam característico de herói e
outros o de doido(...)
26
.
Consciente da posição social que ocupava no Império, membro ilustre do
Instituto Histórico Geográfico do Brasil, cujas sessões eram acompanhadas por D.
Pedro II, Joaquim Norberto de Sousa Silva construiu sua obra defendendo as lutas
políticas em que acreditava: a Conjuração Mineira “jamais passou de uma idéia
generosa quanto à essência, e mesquinha quanto à forma
27
. Para o historiador era
preciso apagar a repercussão das idéias republicanas divulgadas pela Inconfidência
Mineira e a capacidade da atuação “revolucionária” de Tiradentes da lembrança da
população. Nessas circunstâncias, cria o seguinte retrato do Alferes:
Soavam clarins, ruflavam as caixas de guerra, ouvia-se o rodar da artilheria, o
trotar dos cavalos, o tinir das armas, sem que a serenidade da alma do
Tiradentes se alvoraçasse, sem que o menor sintoma de susto lhe alterasse a
fisionomia. Estava contrito e confortado com a prática dos religiosos que o
assistiam. Não era o mesmo homem de idéias exaltadas e amigo de expandir-se.
Conseguira o cárcere, que o isolara por tantos anos, mudar-lhe o gênio e
modificar-lhe profundamente a índole. Condenado à morte nada mais lhe
restava que saber morrer. Deu-lhe a resignação essa coragem que a tantos tem
faltado em tão suprema hora. Somente uma idéia o atormentava, e era o
momento fatal que cada vez lhe parecia mais distante!
28
Aos olhos dos historiadores do Império, a humildade e a contrição do Alferes
perante a morte foi a prova maior de sua culpa: “traidor” e “subversivo” às ordens da
Soberana Rainha. Por isso seu corpo esquartejado, seus bens confiscados e seus
descendentes desmoralizados devem permanecer na memória dos homens como
25
Idem, p. 227, tomo II.
26
Idem, p. 80, tomo I.
27
Idem p. 223, tomo II.
28
Idem, p. 207-208, tomo I
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
25
punição, por contrariar as ordens políticas de uma época. Foi com esta perspectiva que a
personificação heróica de Tiradentes e a aclamação de liberdade encarnada pela história
da Inconfidência Mineira permaneceram no anonimato durante todo o Império.
Cabe salientar que o “desprezo” e a falta de “entusiasmo cívico” pela figura de
Joaquim José da Silva Xavier envolve a ardente batalha política travada entre os
defensores da República e os da Monarquia. Certamente o mais forte antagonismo
despertado pela mitificação da figura de Tiradentes surgiu por parte dos monarquistas
defensores de D. Pedro I. Assim, a luta entre a memória de D. Pedro I, promovida pelo
governo monárquico, e a de Tiradentes, símbolo dos republicanos, tornou-se aos poucos
instrumento distintivo das “instituições” políticas que compunham o cenário político do
País no século XIX.
Em 1862, ocorreu o primeiro conflito em torno da figura de Tiradentes, por
ocasião da inauguração da estátua de D. Pedro I, no Largo do Rocio ou Praça da
Constituição, na cidade do Rio de Janeiro. Nesse local, onde fora enforcado Tiradentes,
o governo erguia de forma bastante suntuosa a imagem do neto da rainha D. Maria I,
que condenou à morte o infame alferes SILVA XAVIER. Os republicanos, ofendidos
com a exaltação ao monarca, chamaram a estátua de “mentira de bronze”, expressão que
chega a virar grito de guerra do movimento da República. Pedro Luís Pereira de Souza
um liberal republicano ilustra o clima do conflito, compondo um poema que tinha por
finalidade única repudiar a figura que simbolizava os interesses políticos da Monarquia:
Nos dias de cobardia
Festeja-se a tirania
Fazem-se estátuas aos reis.
(...)
Hoje o Brasil se ajoelha
E se ajoelha contrito
Ante a massa de granito
Do Primeiro Imperador!
A insatisfação pela estátua perdura durante anos. Em 1893, os republicanos
tentaram encobrir a estátua de D. Pedro I para as comemorações do dia 21 de abril. Essa
manifestação provocou protestos exacerbados, causando o cancelamento das atividades
festivas em favor de Tiradentes
29
.
29
O conflito surgido em torno da “estátua de bronze” foi narrado por CARVALHO, José Murilo de. A
Formação das Almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 60-61.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
26
Mas a figura de D. Pedro I não foi o único símbolo utilizado pelos monarquistas
para inibir a utilização do menosprezado alferes como herói da República que nascia. O
estudo de Lilia Moritz Schwarcz, “O Império em Procissão: ritos e símbolos do
Segundo Reinado
30
”, confirma que a Monarquia foi uma das formas políticas que mais
utilizou aparatos teatrais, celebrações, rituais, costumes e símbolos para representar e
encenar o poder que efetivamente exercia na sociedade brasileira. Evidentemente, entre
as diversas insígnias que compunham o cenário político do Império, Tiradentes foi um
dos símbolos ausentes. Seu nome, sua imagem, seu pressuposto revolucionário foram
sutilmente esquecidos pela rica performance simbólica do Império.
À fim de ilustrar os mecanismos utilizados pela Monarquia para veicular e
constituir seu poder político frente à nação brasileira, a autora resgata a cerimônia
realizada na função da coroação, entronização e sacralização do primeiro monarca
genuinamente brasileiro, D. Pedro II. A festa durou quatro dias 16 a 19 de julho de
1841. O evento cívico da Monarquia resumiu-se em um espetáculo luxuoso, o “teatro da
corte”, que, seguindo em cortejo e fazendo procissão pelas ruas, exibiu com luxo e
ostentação seus símbolos e rituais diletos.
Lilia Moritz narra com bastante precisão e riqueza de detalhes os preparativos da
“festa monarca”. Nela nada podia falhar: todos a postos, iluminação suntuosa, bandeiras
ao vento, ramos verdes espalhados pelas ruas, colchas nas janelas e muita música. Entre
as obras realizadas para a festa, a construção da varanda (local onde o monarca acenaria
para a multidão) destaca-se pela suntuosidade e riqueza de seu aparato, ornamentada por
quadros que retratavam a família imperial, assoalho de madeira especial, torneações,
talhas, bordados, franjas, lustres de cristal, veludos, sedas, damascos, pedrarias e outros
requintes mais.
A criação de alegorias, rituais e símbolos tinha a intenção de representar os
anseios políticos do País, ou melhor, fazer reconhecer a Monarquia, realçando em todos
os sentidos a Independência Nacional, inaugurada em 1822. Mas, sobretudo, tinha a
função de refutar o exercício republicano que dava sinais de vida desde o período das
Regências. Portanto:
a maioridade e o ritual de coroamento e de sagração de d. Pedro II deviam ser
cercados de requintes e cuidados próprios aos negócios estratégicos do Estado. A
celebração era tão grandiosa que deveria superar o exemplo de Bragança e
30
SCHWARCZ. Lilian Moritz. O Império em Procissão: Ritos e Símbolos do Segundo Reinado. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
27
aproximar-se dos padrões de Habsburgo, que em termos de monarquia ditavam
normas nesse momento
31
.
Com esta perspectiva, os objetos, os símbolos, os emblemas e rituais deixaram
de ser simples representações cívicas, para se transformarem em mensagens e
instrumentos políticos da nacionalidade, comovendo e unificando a população em um
ideal comum: a preservação da Monarquia. Sendo assim, o rei não era o único símbolo a
ser cultuado; na falta dele, as “fantasias imperiais” ocupavam seu lugar com bastante
louvor e respeito. No desfile de coroamento, o manto do fundador do Império foi
colocado num estrado alto, prontamente erguido para causar efeito. A espada era
carregada em uma bandeja, de forma ostensiva. Ainda despontava-se o globo imperial:
seu significado geral lembra o poder universal dos reis. No desfile dos préstitos
imperiais, não podia faltar o anel que seria usado pelo Imperador, todo ornamentado de
brilhantes, ao seu lado as luvas cândidas feitas de seda e bordadas com as armas do
Império. O cetro também aprece no desfile, é um importante símbolo do Império,
representa o prolongamento do braço do rei. Feito de ouro maciço, mede um metro e
setenta e seis centímetros, é o atributo régio por excelência e o rei sempre o traz à mão
antes de iniciar um ritual. A coroa do rei aparece no final, interpretada como a mais
representativa insígnia da dignidade régia, significando exatamente o caráter sagrado e
sobrenatural do poder, na falta de coroamento é um símbolo por excelência
32
.
Por fim, pode-se dizer que a exuberância e a extravagância simbólica do Império
suplantaram a repercussão e a capacidade de divulgação política dos ideais de liberdade
da Inconfidência Mineira. Os inconfidentes foram sutilmente esquecidos pelas luxuosas
insígnias imperiais, que de forma emblemática divulgavam os valores políticos do
Imperador. Ao mesmo tempo, os acontecimentos de 1789 em Minas tornavam-se um
tema polêmico. Não era fácil exaltar a Inconfidência Mineira e muito menos Tiradentes,
pois o proclamador da Independência era neto de D. Maria I, contra quem os
inconfidentes tinham se rebelado. O Brasil, era até então uma Monarquia absolutista, ao
passo que os inconfidentes pregavam uma república americana.
Em tais circunstâncias, somente com a Proclamação da República é que a
Inconfidência Mineira volta aos palcos da História, revertida positivamente pela
historiografia republicana: da condição de “movimento subversivo”, torna-se mola
31
Idem, p. 29
32
___. As Insígnias Imperiais: testemunhos da existência da Monarquia. In: O Império em Procissão.
Op. Cit, p. 42-47.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
28
propulsora da Independência e dos ideais republicanos. O alferes Joaquim José da Silva
Xavier, o Tiradentes, da sua posição de “culpado” e “traidor” transforma-se em vítima
cruel de suas idéias, da situação de “condenado” torna-se um “mártir”, um “herói”.
O Herói faz-se Presente: Tiradentes e os Ideais Republicanos
Em 1889, o “povo assistiu bestializado” aos acontecimentos do “dia 15 de
novembro”, sem atos heróicos, sem combates e com um mínimo envolvimento da
sociedade civil. O “novo regime” nasce “apagado”, sem “brilho simbólico” capaz de
divulgar sua importância no cenário político da história do País. A Republica brasileira,
como ressalta José Murilo de Carvalho, em sua obra “A Formação das Almas”:
à diferença de seu modelo francês, e também do modelo americano, não
possuía suficiente densidade popular para refazer o imaginário nacional. Suas
raízes eram escassas, profundas apenas nos setores reduzidos da população,
nas camadas educadas e urbanas. O grosso da nação era-lhe alheio, se não
hostil. Sua proclamação por iniciativa militar também não contribuiu para
popularizá-la
33
.
A inesperada e rápida proclamação da República fez com que seus participantes
não dispusessem de imagens e rituais próprios para realizar com solenidade a sua
chegada. Nem mesmo os símbolos nacionais mais evidentes e de uso obrigatório em
qualquer forma política, a bandeira e o hino, foram utilizados para ornamentar e acolher
o cenário republicano. As tropas que “fizeram” a República não tinham bandeira, a
única que existia pertencia ao Império e foi jogada fora. Quanto ao hino, utilizava-se a
“Marselhesa”, música cantada pelos revolucionários da Revolução Francesa em 1789.
É nessas circunstâncias que se dá início à batalha pela construção de símbolos
nacionais e acima de tudo republicanos. A ação baseia-se no convencimento, impõe-se o
uso de imagens, emblemas, mitos, heróis na tentativa de tornar a Republica “um regime
não só aceito como também amado pela população
34
”. Foi no interior dessas
inquietações que se forjou a construção do hino nacional, instrumento utilizado como
canal para extravasar a emoção cívica de multidões, (...) traduzir o sentimento
coletivo, de expressar a emoção cívica dos membros de uma comunidade nacional
35
”.
33
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas - O Imaginário da República no Brasil. Op.
Cit., p. 128.
34
Idem, p. 129.
35
___. Bandeira e Hino: O peso da tradição. In: A Formação das Almas - O Imaginário da República no
Brasil. Op. Cit . p. 127.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
29
A bandeira brasileira também foi construída em sintonia com o novo regime.
Além de resumir as aspirações coletivas do momento político, deveria indicar o futuro
da nação. Assim como o hino, a bandeira também teve um caráter definido e uma
duração precisa, a mensagem emblemática “ordem e progresso” foi elaborada na
perspectiva de ser preservada para sempre. A utilização da bandeira como propaganda
republicana valoriza aspectos físicos da nação brasileira: as estrelas remetem ao céu
brasileiro, o verde representaria a paz e a esperança inauguradas pela Revolução
Francesa, a emblematização “ordem e progresso” deveria atingir o coração dos
brasileiros, finalidade única de uma bandeira nacional
36
.
Mas a tarefa do convencimento republicano não termina apenas com a criação
dos símbolos oficiais mencionados acima. O “novo regime” inaugurado em 1889 ainda
não dispunha de um herói, um homem capaz de expressar, conduzir os valores morais e
políticos de uma nova época. Nesse sentido, a campanha iniciada para ocupar a posição
mais ilustre da República provocará exacerbados conflitos, uma vez que o campo
político encontrava-se minado de personagens históricos à disposição da heroificação.
O primeiro nome cogitado para herói dos “novos tempos políticos” foi o do
Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente republicano. Porém, foi logo
descartado, uma vez, que sua figura física lembrava a do velho Imperador do Brasil (D.
Pedro II). Outro candidato ilustre que almejava ao título era Benjamim Constant, um
“republicano inatacável”. O único problema é que não possuía o carisma de um herói.
Além de não ser um líder militar, não possuía qualquer afinidade com as classes
populares. Ao lado desses nomes, cogitou-se também da figura respeitável de Frei
Caneca, herói de duas revoltas, a primeira pela independência, a segunda contra o
absolutismo de D. Pedro I. Contudo, sua imagem não foi bem aceita, pois havia morrido
como desafiador, subversivo, em luta sangrenta e violenta. A pressa dos republicanos
em arranjar um herói capaz de legitimar o novo “regime político” fez com que até
mesmo a figura do presidente “mão de ferro”, Floriano Peixoto, fosse pensada, porém as
atitudes despóticas e sanguinárias reveladas em algumas situações políticas não
combinavam com a República que estava sendo construída
37
.
Cabe salientar, no entanto, que a mobilização à fim de promover ou forjar um
herói para a República não obteve junto às camadas populares e aos setores políticos do
36
Idem, p. 114.
37
Para maior informação sobre a apropriação de Tiradentes como o herói da nação republicana consultar:
CARVALHO, José Murilo de. Tiradentes: Um Herói Para a República. In: A Formação das Almas - O
Imaginário da República no Brasil. Op. Cit., p. 55 a 73.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
30
País uma grande expressividade. A falta de entusiasmo cívico nos primeiros tempos
republicanos esteve intimamente ligada ao processo que desencadeou a sua origem: em
primeira instância, os acontecimentos do “dia 15 de novembro” obtiveram pouca
importância histórica apenas uma passeata inaugurou o novo regime, não houve
grandes festejos e a participação popular foi mínima. Nesse sentido, a fraca ou a nula
celebração do “dia 15” não propiciou um terreno fértil, favorável à germinação de
símbolos, mitos e heróis. Ao lado disso, a maioria dos candidatos a heroificação eram
homens públicos distantes das camadas inferiores da sociedade, não possuindo o
carisma, a expressividade política que tanto agradava o povo.
Em tais circunstâncias, a busca do “grande homem da República” acabou tendo
êxito onde menos se esperava: o herói popular, sofrido, político e revolucionário foi
resgatado do passado, especialmente de um movimento político fracassado, mas vivo na
memória dos brasileiros. Assim, diante das variadas figuras que concorriam ao título de
herói republicano, o único que atendeu as exigências da “mitificação” ao cargo,
convencendo o imaginário popular e os setores políticos ligados à República, não foi
ninguém que Joaquim José da Silva Xavier - Tiradentes o mártir da Inconfidência
Mineira.
Para José Murilo de Carvalho, vários fatores levaram à vitória do Alferes ao
cargo de herói: o primeiro deve-se ao fato de ele transitar por áreas já consideradas
centro político do país - Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo -, locais que por sinal
eram pólo das fortes propagandas republicanas. Outro fator importante que influenciou
bastante a preferência pela figura de Tiradentes é que este morrera como vítima, “como
portador das dores de um povo”, como um simples “mártir religioso
38
”. Mas, sem
sombra de dúvida, o segredo maior do êxito de Joaquim José deve-se a que o fato “de
não ter a conjuração passado à ação concreta poupou-lhe ter derramado sangue, ter
exercido a violência contra outras pessoas, ter criado inimigos. (...) A violência real
permaneceu aos carrascos. Ele foi vítima de um sonho, um ideal, dos loucos desejos de
uma sonhada liberdade
39
”.
Nessa perspectiva, logo após a Proclamação da República, o decreto n°. 22.647
de 1889 institui o 21 de abril, dia da morte de Tiradentes, como feriado nacional,
contribuindo para aumentar as celebrações cívicas, os monumentos e as comemorações
em torno do personagem heróico, o “Protomártir da Liberdade”. A partir daí “lugares de
38
Idem, p. 67.
39
Idem, p. 68.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
31
memória” foram largamente utilizados para produzir e registrar imagens que se
pretendiam perpetuar sobre a Inconfidência Mineira e sobre o protagonista do
movimento
40
: hinos, bandeiras, estátuas, quadros, desfiles tornaram-se instrumentos
emblemáticos no esforço de consolidar a nova ordem política e fazer de Tiradentes o
herói capaz de conduzir o fio dos novos valores republicanos.
No ano de 1894, a cidade palco da Inconfidência permitiu que exaltações e
louvores à memória de Tiradentes fossem realizados sem reservas. A primeira
manifestação aconteceu na cerimonia de posse do primeiro Governador de Minas, no
regime republicano:
a multidão engrossou-se e, (...) em direção ao Palácio dos Governadores,
passou na Praça da Independência e rodeou o marco alusivo a Tiradentes,
numa homenagem àquele que consideravam o protomártir da causa vitoriosa
41
.
Ainda em Ouro Preto, no dia 21 de abril, aniversário de morte do Alferes, a
cidade mobilizava-se para assistir à extraordinária glorificação à “memória
inconfidente”. Nesse importante dia, autoridades e população presentes inauguraram o
monumento representativo ao alferes Joaquim José. A obra destinou-se a transmitir à
posteridade à “memória da punição”, porém com uma conotação essencialmente
positiva, ressaltando a “atitude decisiva de quem espera, com valentia e cristã audácia,
a hora do enforcamento
42
”:
A estátua tem 2,85 m de altura e fica no topo de pedestal granítico de 19 metros
de altura. A base desse bloco de pedra traz, em suas quatro faces, significativas
inscrições: na frente, um triângulo cercado pelas palavras do dístico
usualmente dado como preferido pelos revolucionários mineiros: “libertas
quae sera tamem” e tendo no interior uma palma com os dizeres: Ao
protomártir da liberdade nacional de Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes; na face posterior: “21 de abril de 1792 21 de abril de 1892”, na
40
O termo “lugar de memória” foi utilizado por Pierre Nora, ao discutir as fronteiras entre história e
memória. Neste trabalho o termo também torna-se útil para pensar a própria cidade de Ouro Preto. Ao
servir de palco para os planos da Inconfidência no século XVIII, a cidade tornou-se um “lugar de
memória” por excelência, “preservando”, “memorizando” e “perpetuando” a imagem política desse “fato
histórico”. A cidade já é uma referência nas representações oficiais de eventos políticos que celebram 21
de abril. É nela que se movimentam as instituições de preservação da memória, como arquivos e museus.
Em Ouro Preto, nenhum outro lugar ocupa uma posição de excelência como a Praça Tiradentes. Nela está
presente o Museu da Inconfidência, espaço utilizado no século XVIII para a cadeia e o Senado da
Câmara, o monumento erguido à memória inconfidente, antes, provavelmente pelourinho, hoje
monumento a Tiradentes, a Escola de Minas, no passado Palácio dos Governadores. Para uma reflexão
mais detalhada sobre a preservação da memória em torno da Inconfidência Mineira e seu protagonista, na
cidade de Ouro Preto, consultar: LIMA E FONSECA, Thaís Nívia de. A Inconfidência Mineira e o 21 de
Abril: Discursos e Representações. In: Atas do Seminário Internacional - Dimensões da História
Cultural.. Belo Horizonte: UNICENTRO Newton Paiva, 1999, p. 56-65.
41
JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo,
1985, p. 200.
42
Idem.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
32
face direita: “Aqui, em poste de ignomínia, esteve exposta sua cabeça” e, na
face esquerda: “7 de setembro de 1822 7 de abril de 1831 15 de novembro
de 1889- 15 de junho de 1891 Mandado erigir pelo 1°- Congresso de Estado
de Minas Gerais(...)
43
.
Aos poucos a historiografia também vai criando a imagem do Alferes em
sintonia com as idéias em voga dos “novos tempos políticos”. Rocha Pombo, historiador
influenciado pelos valores republicanos, cria um quadro bastante interessante e diferente
daquele que até então fora construído no Império sobre Tiradentes
44
. Ao contrário de
Joaquim Norberto, que pintou a imagem do Alferes como a de um “louco”, “selvagem”
e “leviano”, o historiador republicano dá à figura do Alferes um colorido autêntico, a de
um novo herói cívico da nação brasileira:
por todo caminho do Rio vinha agora o Tiradentes como um arauto do novo dia
que vai suceder a longa noite colonial. Em toda parte, pelas fazendas, pelas
casas de negócio, pelas estalagens, pelas estradas, ergue a voz desassombrado
proclamando a boa nova, como um visionário em delírio. A sua palavra
inflamada espanta toda a gente. Os que o ouvem, ou ficam tomados de terror,
ou vencidos da mesma insânia
45
.
Ao analisar a Inconfidência Mineira a partir da sentença editada pelos autos e do
relato/memória de frei Raimundo da Anunciação Penaforte, Rocha Pombo não esconde
seu descontentamento e suas críticas ao “antigo regime”. Ao contrário dos padres
confessores e do historiador Joaquim Norberto, que traçaram suas narrativas
endossando o ponto de vista da Coroa e os diretos monárquicos, Pombo quer vislumbrar
a violência, a tirania do Império ao preparar e executar com tanta crueldade o espetáculo
da morte de Tiradentes:
Vem agora o epílogo da tragédia, com aquela cena de monstruosa selvageria,
que é preciso deixar sempre muito viva na consciência da posteridade, para
que sirva de estímulo a todos que detestam a tirania e confiam na justiça.
Assistindo em espírito àquele espetáculo, teremos muito clara, pelo menos a
medida da distância, de pouco mais de um século, que já nos separa daquele
regime sacrílego e brutal. (...) E no entanto não havia meio de disfarçar que
essas demonstrações nada significavam mais que simples manobras do torvo
espírito do regime. Tudo aquilo é comum a todas as sociedades políticas em
fase de transição, quando um poder ou uma instituição que morre, ou que
pressente a morte, se encontra com os primeiros sinais dos novos tempo. O
choque é sempre temeroso; pois antes de tudo desperta, nos que representam e
guardam a instituição combalida, as maiores anomalias morais, as
enormidades mais absurdas e estranhas que pareciam já relegadas para o
43
Idem, p. 201.
44
POMBO, Rocha. História do Brasil. 2ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1925.
45
Idem, p. 340.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
33
fundo das eras, mas que ressurgem da noite como em grande alarme, a ver
perigos em toda a parte, e pretendendo loucamente retardar a inevitável
eclosão do dia nascente
46
.
As considerações de Rocha Pombo aproximam-se das reflexões dos autores do
Império, na medida em que também revelam preocupação em manter “viva na
consciência da posteridade” a repercussão dos “acontecimentos de 1789 em Minas”.
No entanto, no que diz respeito à reação popular perante o espetáculo organizado para a
morte do alferes Joaquim José, a interpretação de POMBO afasta-se veemente da
memória que fora construída até o momento.
Para ROCHA POMBO, o espetáculo da morte não vai provocar em seus
espectadores a descontrolada curiosidade, tão bem detalhada pelo frei Penaforte - “o
povo foi inúmero (...) não fosse as patrulhas avulsas, (...) ele seria esmagado debaixo
do peso de sua imensa massa
47
- e nem mesmo a contrição e piedade coletiva daqueles
que, a fim de abreviarem o sofrimento da vítima, “ofereceram voluntariamente esmolas
para dizerem missas por sua alma
48
”. Ao contrário, todos aqueles que assistiam aos
últimos momentos da vida de Tiradentes, estavam ali cumprindo a determinação “de
que incorreria no desagrado da rainha quem se abstivesse de assistir àquele espetáculo
edificante
49
. Assim o “autor da República” constrói sua narrativa mostrando a
cumplicidade do povo com o homem que morria pela liberdade, a curiosidade pelo
espetáculo da morte suplantada pela obrigação da condição de vassalo que todos tinham
na sociedade, tanto, que, ao final do espetáculo, o povo, “em sinal de consternação,
começou a dispersar”. Os novos tempos políticos emitiam o seu sinal e Tiradentes, sob
a aura do sacrifício heróico, “ressurgia para sempre” como prova de liberdade e símbolo
da República.
Ao lado de Rocha Pombo, vários autores dedicaram “galanteios memoráveis” à
história da Inconfidência Mineira e aos seus protagonistas. Entre eles está o literato
Sílvio Romero, que, convicto dos princípios republicanos, expõe a público sua
narrativa, repudiando aqueles que tentaram minimizar o valor “histórico” e “político” da
Inconfidência Mineira. Sem demonstrar receio ou ponderação, as aversões do autor são
diretamente remetidas aos historiadores do Império: “esta gente, quando escreve nossa
história, toma-se de entusiasmo por todos os feitos praticados pela metrópole e seus
46
Idem, p. 340, 345.
47
PENAFORTE, Francisco Raimundo da Anunciação, Op. Cit. p. 175.
48
Idem, p.175-176.
49
Idem, p. 346.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
34
governos na colônia, e vomita o fel de suas cóleras quando se lhe depara entre nós
algum fato como a conjuração de Tiradentes
50
”.
Ao responder as proposições defendidas pelo historiador Adolfo de Varnhagem,
que declarou ser a Inconfidência uma “simples conversação hipotética”, custando até a
dar-lhe o nome de “conspiração”, Silvio Romero não hesita, tece duras críticas ao autor
e à forma autoritária de a Coroa portuguesa conduzir os assuntos políticos da época:
De uma cousa se esquece este lusismo póstumo, surgido do meio dos
historiadores do Segundo Reinado, de uma cousa se esquece e vem a ser: se
nada houve naquele delírio passageiro, o governo da metrópole foi mil vezes
déspota, inventando uma conjuração para ter o gosto de afogá-la em sangue, e
ainda mais radiante surgem aos olhos da posteridade as figuras das vítimas
inocentes. Não é esta a verdade da história, os conjurados não tinham ainda
lançado mão das armas; surpreendidos em seu pensamento, não havia este
tomado corpo em altos feitos para a libertação da pátria; mas na sua mente o
plano estava assentado; a libertas quae sera tamem tornar-se-ia uma
realidade
51
.
Ao lado desse desabafo, o autor não nega que os “heróis da República” - Cláudio
Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, Thomaz Antônio de Gonzaga, Joaquim José da
Silva Xavier, José Alvares Maciel, Francisco de Paula Freire - cometeram um crime,
“eles são culpados”. Portanto não precisam que a história divulgue justificativas
negativas de sua inocência, seu crime foi “desejarem a liberdade do Brasil
52
”. Nesse
sentido, “Ninguém deve diminuir de um milímetro o mérito das vítimas da Conjuração
Mineira. A Inconfidência não foi por certo um grande movimento, mas foi uma grande
aspiração, nobre aspiração expiada no cadafalso e no desterro
53
”.
Nessa perspectiva, o imaginário republicano, que foi exaustivamente povoado
pela idéia de consagrar o “menosprezado” Alferes em herói da República, também foi
visitado pelas artes plásticas, que se dispuseram a exaltar e consolidar a imagem de
Tiradentes como o grande herói da nação brasileira. Maria Alice Milliet faz um estudo
interessante sobre o papel da iconografia na personificação heróica de Joaquim José da
Silva Xavier
54
. Seu interesse converge para o ano de 1880 até o fim do Estado Novo,
período em que:
50
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira.. Rio de Janeiro: Ed. Livraria José Olympio,
1943, p. 96.
51
Idem.
52
Idem.
53
Idem, p. 95.
54
MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: O Corpo do Herói. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
35
O herói consagra-se pela imagem. A visualidade impõe-se sobre os
depoimentos da época, sobre os escritos da história, sobre os textos literários.
Através da imagem mobiliza-se o sentimento popular, passam-se idéias e
valores, firma-se o Tiradentes como símbolo da nacionalidade. A referência
maior continua sendo a do mártir, mártir da liberdade, porém com conotação
cristã
55
.
Ao analisar o trabalho do artista plástico Décio Villares, Milliet destaca que a
figura heróica de Joaquim José da Silva Xavier apresenta-se na versão cristianizada,
santa e piedosa. Em “Tiradentes
56
, obra produzida em 1890, o Alferes aparece
idealizado com uma aura de santidade, interpretado como sendo o próprio Cristo:
o rosto visto de três quartos é o de um homem de tez clara, traços regulares,
com pouco mais de 40 anos. A longa barba e os cabelos até os ombros
emprestam-lhe um ar de estudada negligência. Seu olhar evasivo não fixa o
observador, perde-se à distância. Com um único adereço, traz uma corda
enlaçada ao pescoço sem, contudo, ameaçar enforcá-lo. Abaixo do busto, vê-se
a palma e a Coroa de ramos de café enfeixadas por uma fita onde se lê: 1792 -
libertas quae será tamen e Ordem e Progresso 1889.
57
.
Ao lado da obra de Villares outras representações plásticas passaram a fazer uso
exaustivo da simbologia religiosa e aproximar o humilde Alferes da figura de Cristo.
Em meio aos acontecimentos políticos da época - crise da Monarquia e instauração da
República - a visão santa e cristianizada de Tiradentes se justifica plenamente: vem
confrontar a versão tendenciosa exposta em História da Conjuração Mineira pelo
historiador Joaquim Norberto, que o descrevera como “louco”, “leviano”, “feio”,
“espantado” e de uma “franqueza selvagem”. Ao mesmo tempo o apelo à tradição cristã
da população facilitava a aceitação do “Cristo cívico”, a imagem do herói que deveria
permanecer na República era a do “sofredor”, do homem “justo”, “santo”, “humilde”.
Nada mais é que a vitimização do herói: morreu por defender os ideais em que
acreditava e que iriam mudar a vida de um povo.
Outro trabalho analisado por Milliet e que merece relevância é “Tiradentes
Esquartejado” (1893), do artista plástico Pedro Américo
58
. A imagem escandaliza o
público ao exibir com tanto “naturalismo” o cadáver mutilado do Alferes. Nas
condições históricas do momento, a obra apresenta um significado puramente político:
55
Idem, p. 256.
56
Décio Rodrigues Villares. Tiradentes, 1890, Litografia, 46,4 X 27,8cm, Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
57
MILLIET, Maria Alice. Op. Cit. p. 140.
58
Pedro Américo de Figueiredo e Melo. Tiradentes Esquartejado, 1893, óleo s/tela, 262 x 162 cm,
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
36
quer alcançar a dimensão moral, mostrar o heroísmo da morte, ilustrar com o
sacrifício do mártir a grandeza da causa; (...) O corpo supliciado dá
testemunho do comprometimento incondicional do homem com sua crença. O
quadro não elude a crueldade do fato, antes a faz eternamente presente,
tornando-a moralmente relevante. Não é a lição repressora implícita na
punição que se coloca. À inutilidade da rebelião ante o poder colonial, opõe-se
a validade do sacrifício que a vitória da Independência e da República vem
confirmar. Eis a subversão de sentido: o horrendo castigo se converte em
sacrifício pela pátria
59
.
Em circunstâncias políticas do passado, o corpo dilacerado de Tiradentes
poderia soar como castigo de um vencido, o fim trágico e triste de um homem
derrotado. No entanto, aos olhos republicanos:
O cadáver que jaz aos pedaços, no quadro de Pedro Américo, não é o de um
homem qualquer, e sim o herói que a República quer consagrar (...) o corpo
representa a oferenda propiciatória da vitória, o preço que a nação teve de
pagar para se tornar independente. (...) A morte ritualizada sacraliza o
acontecimento. Em torno do sacrificado se une a nação. Inverteu-se o sentido:
inconfidente aos olhos da Metrópole, Tiradentes ressurge transfigurado no
mártir da emancipação nacional, o cadafalso convertido no altar da pátria, o
infame em herói, a culpa em redenção
60
.
Na década de 1930 a Inconfidência Mineira novamente entra em cena com toda
força política no governo de Getúlio Vargas. A oportunidade de retomar o tema surgiu a
partir da proposta de construção de um mausoléu digno dos mártires que morreram em
1789 pela liberdade da nação e que, dada a importância do sacrifício no universo
político do País, mereciam uma “reparação histórica”.
Em 1936, o historiador Augusto de Lima Júnior escreve o romance O Amor
Infeliz de Marília e Dirceu, cujo prefácio foi dirigido ao Presidente da República,
Getúlio Vargas, pedindo que o mesmo intercedesse a favor do repatriamento dos restos
mortais dos inconfidentes, exilados em Portugal e na África, argumentando ser isso um
“ato de justiça que constituirá uma lição de alto valor cívico para muitos dessa
geração, que se vão esquecendo de nossas glórias passadas para se afundarem no mais
grosseiro dos materialismos
61
”.
Getúlio Vargas, que se encontrava nas terras mineiras, atendeu ao pedido do
autor, criando um decreto que repatriava os despojos dos inconfidentes mortos no
exterior, autorizando ainda a publicação dos autos do processo da Inconfidência
59
MILLIET, Maria Alice, Op. Cit., p. 161.
60
Idem, p. 172-173.
61
LIMA JÚNIOR, Augusto de. O Repatriamento das Cinzas dos Inconfidentes Mortos no Degrêdo. In:
História da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte, Itatiaia, 1968, p. 187.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
37
Mineira. Em seis meses, “pôde conduzir para o Brasil, a bordo do navio Bagé, as
preciosas cinzas dos inconfidentes mortos no degrêdo
62
”. O cortejo dos restos mortais
dos inconfidentes foi marcado por grandes acontecimentos, discursos exaltados
mobilizaram e emocionaram o meio político e uma infinidade de homenagens cívicas e
religiosas realçou a satisfação do povo brasileiro por “ver repousar no Brasil os ossos
dos patriotas que sinceramente se sacrificaram pela sua independência
63
”.
Mas foi na década de 1960 que a Inconfidência Mineira passou a residir no “alto
escalão” das condecorações cívicas nacionais, sendo seu protagonista Tiradentes
escolhido para ocupar a posição de “Patrono da Nação Brasileira”. A escolha partiu de
um Presidente do Regime Militar. Em 09 de dezembro de 1965, o então general-
presidente Humberto de Alencar Castelo Branco sancionou a Lei Federal n°- 4.897, que
declarava:
Art. 1°- Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é declarado Patrono cívico
da Nação Brasileira.
Art. 2°- As Forças Armadas, os estabelecimentos de ensino, as repartições
públicas e de economia mista, as sociedades anônimas de que o Poder Público
fôr acionista e as empresas concessionárias de serviço público homenagearão
(...) a excelsa memória desse patrono (...) inaugurando, com festividades, no
próximo dia 21 de abril, efeméride comemorativa de seu holocausto, a efígie do
glorioso republicano.
Parágrafo único: As festividades de que trata este artigo serão programadas
anualmente.
Art. 3°- Esta homenagem do povo e do Governo da República em homenagem
ao Patrono da Nação Brasileira visa evidenciar que a sentença condenatória
de Joaquim José da Silva Xavier não é labeu que lhe infame a memória, pois é
reconhecida e proclamada oficialmente pelos seus concidadãos, como o mais
alto título de glorificação do nosso maior compatriota de todos os tempos
64
.
A partir daí, todas as repartições ligadas ao Governo foram obrigadas a fazer uso
exaustivo do retrato de Tiradentes. O modelo sugerido é uma antiga e conhecida
imagem do Alferes a caminho da forca: “a escolha oficial confirma mais uma vez a
predileção pela figura do mártir. Até os militares, por via do positivismo, preferem vê-
lo na alva do condenado a vê-lo na farda do regimento a que pertencia
65
”.
Nessa época a atualização do tema também encontra na historiografia boa
acolhida. Uma importante obra chega a público, História da Inconfidência de Minas
Gerais, do renomado historiador Augusto de Lima Júnior. Nela, o autor está interessado
62
Idem, p. 189.
63
Idem, p. 193.
64
JOSÉ, Oiliam. Op. Cit. p. 203.
65
MILLIET, Maria Alice, Op. Cit. p. 104.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
38
em responder àqueles que tentaram obscurecer os méritos legados pela Inconfidência,
atestando que esse movimento não passaria de um gesto de rebeldia de maus pagadores
do Fisco Régio. Na verdade o autor ainda está referindo-se à antiga e polêmica obra de
Joaquim Norberto, que definiu a Inconfidência Mineira como um mero “acidente
político”. Ao longo da obra, fica evidente o heroísmo atribuído aos pensadores da
Inconfidência. Quanto a Tiradentes, LIMA JÚNIOR não poupa elogios:
não foi apenas uma bela figura humana, sob seu aspecto moral e heróico, mas
também um magnífico exemplar dessa raça mineira dura e resistente, tenaz e
boa, que se constituiu na luta das aventuras do ouro e dos diamantes.
Eloqüente na pregação de suas idéias, defendeu-as até a morte, sem recuar
delas por nenhuma conveniência. Nem torturas de fome, sêde e frio nos
cárceres; nem as ameaças de castigos físicos que ele enfrentou sem abater-se,
nada o deteve nessa escalada para a glória, que se consagrou na sua alcunha
de ‘o Tiradentes
66
’.
Ao lado dos militares que optaram pela apropriação da figura de Tiradentes
como mártir, o autor de História da Inconfidência de Minas Gerais também confirma a
predileção pelo herói martirizado, que mesmo diante da tortura sustentou seu ideal de
liberdade, nada o “deteve nessa escalada para a glória”.
A esquerda também não abriu mão do Alferes. Ainda na década de 1960, surgiu
uma facção da luta armada intitulada “Tiradentes”: “o Movimento Revolucionário
Tiradentes (MRT), derivado da antiga Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil
(PC do B), atuante da década de 60 e exterminado pela repressão
67
”. Esse movimento
revolucionário foi fundado no aniversário de morte de Tiradentes, 21 de abril de 1962,
na cidade de Ouro Preto.
Entre as táticas políticas que defendia, a de maior importância era o fim do
Estado Ditatorial e a instauração imediata do Socialismo. Sendo amplamente
influenciado pelo foquismo cubano, adquiriu várias fazendas pelo interior do Brasil,
onde eram instalados campos de treinamento de guerrilhas, uma delas na cidade de
Dianópolis, no Estado de Goiás. Várias ações foram promovidas pelo Movimento
Revolucionário Tiradentes, entre elas o seqüestro do embaixador suíço Giovanni Enrico
Bucher (organizado juntamente com Carlos Lamarca) e assaltos a carros blindados,
66
LIMA JUNIOR, Augusto de. Op. Cit. p. 71.
67
BARROS, Edgar Luís de. Tiradentes. São Paulo: Moderna, 1985, p. 82.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
39
endo o dinheiro adquirido na maioria das vezes dividido entre as organizações
guerrilheiras, de acordo com as necessidades de cada uma
68
.
Na década de 1970, a Inconfidência Mineira foi revisitada por uma importante
obra, A Devassa da Devassa, do historiador inglês Kenneth Maxwell
69
. A obra desse
brazilianista, além de apresentar uma rica documentação sobre os acontecimentos de
1789 em Minas, traz interpretações extremamente polêmicas, até então pouco
exploradas no interior da historiografia, tornando-se, assim, um clássico para os estudos
que iluminam o tema da Conjuração Mineira.
Seu interesse não é apenas de reconstituir a história da Inconfidência. Antes
disso, os primeiros capítulos apresentam ao leitor os problemas da colonização
portuguesa no Brasil, face à difícil situação no contexto europeu. Ao contrário de vários
autores que consideraram o Conflito em Minas insignificante como Capristano de
Abreu, que, ao desenhar um panorama sobre a história colonial brasileira, omitiu por
inteiro a existência do movimento revolucionário em Minas -, Kenneth Maxwell,
demonstra uma firme convicção ao apresentar o caráter revolucionário da Inconfidência
Mineira e sua eficaz possibilidade de êxito:
Os inconfidentes estavam tão certos do êxito que, segundo se sabe, tinham até
elaborado as leis e uma constituição. Além disto os conspiradores tinham
chegado estarrecedoramente perto da realização de seus planos. Na verdade,
se Barbacena houvesse obedecido ao pé da letra as instruções de Melo e Castro
a revolução já teria, indiscutivelmente, ocorrido. Seu adiamento não fora mais
que um resultado não intencional e, para ele, fortuito de sua decisão de
suspender a derrama
70
.
Na opinião do brazilianista, a Inconfidência Mineira foi um movimento
essencialmente revolucionário e nacionalista, portador de um projeto consciente de
independência nacional. O autor expõe essa questão estudando a ideologia do
movimento, a partir da existência de três grupos sociais envolvidos diretamente nos
planos que levariam à sua concretização. Ao primeiro grupo, o autor chamou de
ativistas aqueles que tinham a função de realizar o levante e cujos integrantes eram os
membros da tropa paga de Minas Gerais, Coronel Francisco de Paula Andrade e o
próprio alferes Joaquim José, que seriam os coordenadores das estratégias práticas da
68
Poucas informações são encontradas sobre a atuação do Movimento Revolucionário Tiradentes. As
mencionadas nesse trabalho foram citadas por: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo:
Ática, 1987.
69
MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
70
Idem, p. 173.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
40
revolução: esperavam que a derrama fosse imposta (...) contando com a inquietação
geral do povo eles se propunham a instigar um motim sob cuja cobertura, e com a
conivência dos Dragões, o governador seria assassinado e se proclamaria uma
república independente
71
”. Ao segundo grupo, denomina ideólogos, responsáveis por
projetar o novo Estado político de Vila Rica, composto em sua maioria por intelectuais,
como Tomaz Antônio de Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e o Cônego Luís Vieira.
Nas palavras de Maxwell, a missão desses homens era “elaborar leis e a constituição
do novo Estado, articulando a justificativa ideológica do rompimento com Portugal.
Eram homens bem informados e tinham boas bibliotecas
72
”. O último grupo era
composto pelos homens mais ricos da capitania mineira, como João Rodrigues de
Macedo e o delator do movimento Joaquim Silvério dos Reis. Esses dois tinham
motivos de sobra para conspirar contra a Coroa portuguesa, pois esta, segundo Melo e
Castro, os acusava “como os mais notórios devedores da Fazenda, exigindo o
pagamento dos atrasados e determinando que não fossem feitos favores nem admitidas
desculpas
73
.
Quanto ao inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, Kenneth Maxwell destaca
que ele foi de fato um revolucionário, uma das figuras fundamentais da conspiração, um
homem importante que veio a se tornar o herói nacional do Brasil republicano:
o pretendo diminuir ou menosprezar Tiradentes. Ele foi, sem dúvida, o
catalisador da revolução na conturbada Minas de 1788. Um decidido
propagandista de uma Minas Gerais independente, republicana e auto-
suficiente, ele pretendia desencadear a revolta. Se as circunstâncias não o
tivesse impedido, não há dúvida de que, ao contrário de alguns companheiros
de conspiração, teria partido para a ação a que se propusera
74
.
Ao lado das questões teóricas e das ações práticas que levariam à concretização
dos planos revolucionários em Minas, o historiador inglês ainda entende que a
Inconfidência foi um movimento bastante profundo, permitindo levantar suspeitas até
mesmo sobre a atuação do governador Barbacena. Aliás, em A Devassa da Devassa, o
Visconde de Barbacena recebeu uma atenção minuciosa. O capítulo 06 - “A Farsa” - ao
mostrar os acontecimentos depois da suspensão da derrama, apresenta uma série de
“arranjos” entre o governador e os “capitalistas” da capitania de Minas Gerais:
71
Idem, p. 142.
72
Idem, p. 147.
73
Idem, p. 149.
74
Idem, p. 14.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
41
O governador (...) conclui que a urgência da situação e a insegurança de sua
posição não admitiam mais delongas. Convocou Silvério dos Reis e fez com que
pusesse a denúncia no papel. Deu-lhe então uma carta de apresentação e
determinou ao informante que comparecesse perante o vice-rei, no Rio. E,
enquanto isso, ampliou consideravelmente sua base de apoio, em parte devido
as suas investigações e em parte através da continuada exploração das divisões
já existentes na capitania. Bazílio de Brito Malheiros, antigo amigo íntimo de
Parada e Sousa e de Sousa Lobo, e inimigo declarado de Gonzaga e dos
magistrados do Distrito Diamantino, tornou-se seu informante e espião. Graças
aos bons ofícios de José Carlos da Silva e de Francisco Antônio Rabelo,
Barbacena persuadiu Inácio Correia Pamplona, rico negociante e
latifundiário, a passar a apoiá-lo. (...) O envolvimento do governador com
esses homens, alguns como Silvério e Bazílio notórios por fraudes e subornos,
implicava mais do que obtenção de promessas de lealdade à coroa. Barbacena
parece ter concordado em pleitear de Lisboa uma legislação especial para que
os complicados litígios de Bazílio fossem resolvidos favoravelmente a ele. (...)
Só se pode presumir que os compromissos do governador com os contratantes e
com os outros eram de tal ordem que persistiriam depois de ultrapassada a fase
que Barbacena precisava barganhar
75
.
Outra questão polêmica que o autor traz em sua obra é a interpretação acerca da
morte do poeta Cláudio Manuel da Costa. Segundo Kenneth Maxwell, esse inconfidente
era uma chave importante para desvendar os “segredos” conspiratórios, pois “ele sabia
muito”. Na devassa de Minas chegou a denunciar até mesmo seu amigo e companheiro
político Tomaz Antônio de Gonzaga, portanto sua causa mortis - o suicídio - tornou-se
bastante suspeita:
Saldanha e Manitti interrogaram Cláudio Manuel da Costa a 2 de julho de
1789. Dois dias depois o prisioneiro foi encontrado morto em sua cela
improvisada, na casa de João Rodrigues de Macedo. Dois médicos e os
magistrados incumbidos da devassa examinaram o corpo e seu relatório,
datado de 4 de julho, chegou à conclusão de que ele se enforcara. A 5 de julho
Inácio Pamplona deixou Vila Rica apressadamente. (...) Em correspondência
para Lisboa, a 11 de julho, o governador não se referiu à morte de Cláudio
Manuel da Costa, embora comentasse o depoimento do prisioneiro. O governo
falou no “suicídio” em outra correspondência datada em 15 de julho, que
incluía o relatório dos médicos. Muito mais tarde um destes médicos veio a
declarar que em seu primeiro relatório não atestara a causa da morte como
sendo suicídio - e sim assassinato. (...) Foi mesmo rezada missa pelo poeta
falecido, um privilégio negado aos suicidas, sendo a despesa coberta pela
Fazenda Real. (...) se houve necessidade de eliminar Cláudio Manuel foi por
algo que surgiu entre o momento da sua prisão e a chegada da comissão vice-
real: com toda a probalidade por alguma coisa que ele disse a 2 de julho. (...)
Incriminavam seu mais íntimo amigo, o desembargador Gonzaga, a um ponto
que nenhum outro prisioneiro o fizera ou faria. Cláudio (...) estava,
evidentemente, a par dos segredos da inconfidência. E não menos importante, o
famoso poeta demonstrava-se disposto a contar o que sabia
76
.
75
Idem, p. 175-176.
76
Idem, p. 182-183.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
42
À luz da leitura de A Devassa da Devassa, conclui-se que a Inconfidência
Mineira, antes de ser um movimento nacionalista com um nítido caráter de
independência, representou acima de tudo uma ação das “oligarquias” mineiras na
resolução de seus problemas financeiros. Não há dúvida que a classe abastada da
sociedade de Vila Rica, para sair da dominação e do pagamento de dívidas com a
metrópole, utilizou-se de uma “cobertura popular” para organizar uma sublevação
contra a Coroa portuguesa. Era necessária a participação popular, e Tiradentes, na
perspectiva dos “ricos inconfidentes”, era a pessoa certa para a tarefa de disseminar os
ideais do movimento. Tanto é assim que o historiador inglês, ao pontuar os motivos que
levaram determinados grupos sociais à sublevação, ressalta:
A iniciativa crítica e o êxito imediato do movimento dependiam dos Dragões,
em particular de Freire de Andrade e de Silva Xavier. O alferes parece ter
recebido a missão de convencer a cavalaria e de fazer a propaganda do
movimento. E era tarefa para qual era bem dotado. Sua profissão secundária
de dentista dava-lhe excelente pretexto para visitar as casas dos magnatas,
proporcionando-lhe também acesso a todos os níveis sociais onde seus
cúmplices não podiam se arriscar sem provocar comentários. Os seis homens
reunidos na casa de Freire de Andrade tinham, todos eles, motivos pessoais
para participar da conspiração. (...) Maciel via-se ameaçado de perder seu
patrimônio em virtude das ordens de Melo e Castro.(...) Abreu Vieira estava em
dívidas com a fazenda real: devia muito mais de 197.867$375 réis do preço do
contrato (...) envolveu-se na conspiração só por um motivo: porque ela
proporcionava um meio de eliminar suas dívidas. (...) A motivação de
Alvarenga Peixoto para se envolver no complô era mais direta. Há muito tempo
endividado, em 1788 estava diante de uma situação crítica. O fracasso das
caras instalações hidráulicas realizadas nas suas numerosas lavras auríferas, e
que não davam resultados compensadores, juntara-se à sua vertiginosa lista de
dívidas para prejudicar seu crédito. (...) João Rodrigues de Macedo e Joaquim
Silvério dos Reis (...) os dois eram devedores da Real Fazenda
77
.
Concentrando as atenções ainda na década de 1970, o Cinema Novo dedicou um
bonito e valioso filme à história da Inconfidência Mineira. Seguindo as convicções da
esquerda, em 1972 Joaquim Pedro de Andrade coloca em cena “Os Inconfidentes”. Para
João Antônio de Paula, a visão consagrada no filme é a de uma “Inconfidência Mineira
apenas como projeto das elites sem qualquer participação popular,(...) numa revolução
sem povo, feita de conversações elegantes, regada a versos e chás
78
. Para o olhar
atento do historiador Alcides Freire Ramos, o filme Os Inconfidentes vai além da
simples visão elitista da Inconfidência, pois sua riqueza consiste “na capacidade de
77
Idem, p. 142-149.
78
PAULA, João Antônio de. Op. Cit.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
43
dialogar criticamente com o ‘presente’, ou melhor, com as lutas políticas do momento
histórico em que foi concebido, produzido e exibido
79
”.
Foi com esta perspectiva que FREIRE RAMOS, em Canibalismo dos Fracos,
toma Os Inconfidentes como objeto de estudo. A obra tornou-se uma referência
importante para o presente trabalho porque, além da vasta e rica pesquisa que apresenta
sobre a Inconfidência Mineira, cria procedimentos metodológicos bastante pertinentes,
que ultrapassam o uso da fonte cinematográfica no universo de pesquisa do historiador,
servindo como referência para todos os trabalhos que buscam articular História e
linguagens artísticas.
Assim, o grande mérito do trabalho desse historiador foi empreender uma
análise que coloca o cineasta Joaquim Pedro de Andrade como agente do processo
histórico e, portanto, a construção de sua obra (Os Inconfidentes) se fez mediante a uma
luta política, razão pela qual é um documento socialmente produzido, que, a partir das
marcas de realidade, traz em seu bojo as lutas, os impasses políticos de sua época. Tanto
é assim que, para o autor:
a imagem isolada e descontextualizada não diz quase nada ao historiador. Ou,
em outros termos, sem informação a respeito de autoria, data de produção,
circunstâncias geográficas desta mesma produção, etc., é praticamente
impossível que o historiador faça uso profícuo da imagem cinematográfica
80
.
Nesse sentido, a obra Canibalismo dos Fracos mostra ao leitor Os Inconfidentes
em sintonia com a sua época, contribuindo de forma sistemática para o debate político e
estético da década de 1970, utilizando a trama da Inconfidência Mineira como forma
alegórica, metafórica para intervir nas situações políticas do regime militar, que, por
sinal, já se encontrava estruturalmente organizado, a partir da censura, autoritarismo e
repressão.
Para Alcides Freire Ramos, o universo do problema abordado por Os
Inconfidentes diz respeito à complexidade das relações sociais no interior dos
movimentos revolucionários e seus participantes. Nesse sentido destaca-se a atuação
dos poetas Tomaz Antônio de Gonzaga, Inácio José de Alvarenga e Cláudio Manuel da
Costa para, na verdade, discutir o papel dos intelectuais nos chamados “períodos
revolucionários”. O filme não está preocupado apenas com os acontecimentos, as
79
RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos: Cinema e História do Brasil. Bauru(SP): EDUSC,
2002, p. 25.
80
Idem, p. 29.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
44
particularidades históricas dos participantes do Levante em Minas. Ao contrário do que
pareça, sua intenção manifesta não é a de falar apenas sobre “o” passado
81
.
Nessa perspectiva, ao refletir sobre a construção das personagens envolvidas nos
planos “revolucionários” da Conjura, especialmente aqueles entendidos como a
representação dos intelectuais, o autor conclui que apresentam características bastante
semelhantes:
A primeira mostra que eles são homens eminentemente voltados para as idéias.
A segunda salienta o afastamento que os referidos homens de letras mantêm em
relação às camada sociais oprimidas. A terceira torna evidente que a
frivolidade é o traço mais marcante de seus discursos
82
.
Em Os Inconfidentes, os intelectuais - Tomaz A . de Gonzaga, Cláudio M. da
Costa e Alvarenga Peixoto se mostram “ambiciosos”, “vaidosos”, distantes da
realidade do movimento. Sobretudo são incapazes de realizar tarefas práticas da
“revolução”, apresentando habilidades revolucionárias restritas apenas no “plano das
idéias”.
Seguindo a lógica de construção das personagens, sobretudo a disposição destes
para as tarefas revolucionárias, um outro momento de Canibalismo dos Fracos é
dedicado à construção do protagonista da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva
Xavier. Levando em conta a especificidade do código cinematográfico, FREIRE
RAMOS procura visualizar quais são os passos do cineasta (escolhas bibliográficas,
episódios retomados da Inconfidência, diálogos com a historiografia, etc.) para a
construção do “ativista político”.
A partir das reflexões do autor, nota-se que no filme de Joaquim Pedro o Alferes
é o único que se dedica ao movimento sem reservas, é o propagandista das idéias
“revolucionárias”, é ele quem de fato está ligado à prática revolucionária, isto é, ao
“mundo da ação”. De acordo com o FREIRE RAMOS, no filme Tiradentes foi:
um homem ativo, (...) que (...) se caracterizou não pela produção das idéias
centrais do movimento a que pertenceu, mas pelo cumprimento do papel de
agitador que cuidava tão somente da propagação destas idéias. (...) ao invés de
ser apresentado ao espectador divulgando idéias junto aos poderosos ou junto
aos setores médios, o Alferes aparece fazendo pregação junto a tropeiros
(representação das camadas populares da Capitania). (...) é mostrado como
81
Idem, p. 132.
82
Idem, p. 150.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
45
alguém que procurou, sobretudo, ajustar o conteúdo de sua pregação ao
repertório daqueles que o escutavam. (...) No filme (...) o conteúdo da pregação
é muito diferente. Não se fala em “levante”, nem em “Independência de
Minas”, tampouco em “Proclamação da República” (...) fala-se em exploração
econômica (...). Portanto, Tiradentes é apresentado ao espectador, (...) não
como um formulador de idéias, mas como um dedicado ativista do movimento a
que pertenceu. (...) embora tenha se empenhado em adequar seu discurso ao
repertório (provável) daqueles que o ouvem, não obtém sucesso no seu contato
com as camadas sociais mais oprimidas e exploradas. Estas na verdade, se
mostram totalmente indiferentes em face do discurso pelo agitador. Mesmo
assim -- - cabe ressaltar!!! “ o animoso Alferes”, em Os Inconfidentes, não
perde o estímulo que o move, continua sua caminhada auto-confiante e não
esmorece. É como se o personagem tivesse perdido, em alguma medida, o
contato com a dura realidade que o cercava
83
.
Torna-se importante ponderar, neste instante, que o autor de Canibalismo dos
Fracos não interpretou Os Inconfidentes apenas como uma “alegoria do Golpe de 64”
como se intelectuais derrotados nas tarefas de conscientização e revolução indagassem
sobre os projetos políticos da esquerda, traçassem discursos e elaborassem formas de
resistir aos acontecimentos inaugurados pela Ditadura. Diferentemente, a época do filme
de Joaquim Pedro é outra, a ação efetiva (a luta armada ) já estava estruturada e focos de
guerrilha já se encontravam espalhados por todo o País.
Nesse sentido, pensando o “ativismo político” de Tiradentes, na relação
texto/contexto, FREIRE RAMOS lança o leitor à conjuntura dos anos 1960/1970,
quando muitos tinham em vista a perspectiva da luta armada. O historiador propõe uma
análise do filme repesando o papel dos militantes da esquerda que no “calor da hora”,
pegaram em armas para o combate com militares e que depois, presos, foram
violentamente torturados nos cárceres do Regime Militar.
Depois de Canibalismo dos Fracos, outra importante obra visita a historiografia,
O Manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira
84
, do
historiador João Pinto Furtado. Examinando as interpretações e (re)interpretações
construídas sobre a Inconfidência Mineira ao longo dos tempos, o autor parte do
princípio de que esse tema precisa ser submetido a um jogo de luz que examine e
distinga o que é próprio do acontecimento daquilo que foi construído ao longo da ação
do tempo. Para isso, FURTADO dialoga com importantes obras da historiografia
inconfidente, entre elas A Devassa da Devassa de Kenneth Mawxuell, Inconfidência
83
Idem, p. 207- 212.
84
FURTADO, João Pinto. O Manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de
1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
46
Mineira: uma síntese factual de Márcio Jardim, além dos próprios Autos de Devassa da
Inconfidência.
Em o Manto de Penélope, os protagonistas que desenvolveram a trama da
Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, Cláudio Manuel da Costa, Tomás
Antônio de Gonzaga, Inácio José de Alvarenga, Padre Rolim, Cônego Vieira e outros
tantos, não foram tratados como heróis, mártires e vilões, mas como agentes sociais
inscritos em seu próprio tempo. Nessas circunstâncias, o autor afirma que:
é preciso, em relação ao tema da Inconfidência Mineira de 1788-9, ir além das
aparências e visões consagradas e retomar outras possibilidades de explicação,
no presente sugeridas pelos novos conhecimentos disponíveis e pelas novas
abordagens historiográficas. Temos de considerar o movimento em seus
múltiplos aspectos e tentar refletir sobre seu alcance e sobre a natureza de suas
apropriações políticas; tentar identificar por que, afinal, os problemas relativos
à representação política, às liberdades individuais e à cidadania são tão
particularmente afeitos e vinculados ao discurso sobre a Inconfidência
Mineira, o que é recorrente na História do Brasil
85
.
Ao longo da obra, nota-se que João Pinto Furtado aprofunda uma série de
questões polêmicas, já iniciadas na década de 1970 pelo brazilianista Kenneth Mawell,
em A Devassa da Devassa. Sendo assim, no que concerne à ação dos protagonistas na
organização dos planos que levariam à Conspiração Mineira em 1789, o historiador
apresenta facetas dos inconfidentes incompatíveis com a visão heróica, fortemente
impregnada no imaginário nacional e divulgada pela historiografia:
O tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, (...) só tinha em
mente a própria projeção pessoal e a expectativa de alcançar status ainda
maior na possível nova ordem. (...) Joaquim Silvério dos Reis (...) a denúncia
de que foi responsável teria sido apenas uma estratégia para a obtenção de
lucro em sua trajetória de enriquecimento rápido e fácil, o que caracteriza
plenamente sua “tumultuosa ambição”. O alferes Joaquim José, (...) às
vésperas da sedição (...) estava às voltas com projetos que anunciavam sua
iminente “saída” da carreira militar rumo a outra, de empreendedor de obras e
dono de moinho, o que se justificava pelos baixos soldos e rendas percebidos e
pela “ambiciosa” expectativa de lucros vultosos no novo negócio. (...) Muitos
dos inconfidentes eram adeptos de práticas pouco cristãs, pequenos
peacadilhos e “desordens” de toda natureza (...). Cláudio Manuel da Costa
vivia com uma escrava que lhe deu cinco filhos. Rolim levava, publicamente,
uma vida dissoluta para um padre: já havia constituído extensa família por
ocasião do degredo e, após sua volta, apressou-se em retomar as relações
anteriores. Ainda existem (...) as incursões de Tiradentes pelas tabernas e casa
de prostitutas
86
.
85
Idem, p. 13.
86
Idem, p. 41,42,43.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
47
Ainda sobre os inconfidentes que protagonizaram a trama da Inconfidência
Mineira, FURTADO ressalta que esses, ao contrário do que prega a historiografia
inconfidente, não eram homens letrados, eruditos e possuidores de respeitáveis dotes
intelectuais, mas essencialmente rústicos, fazendeiros com poucos conhecimentos.
Notadamente, essa questão recai sobre a necessidade de rever a polêmica
heterogeneidade sócio-econômica dos inconfidentes. Nessas instâncias, João Pinto
Furtado conclui que a Inconfidência:
Do ponto de vista puramente estatístico, não se trata, portanto, de um complô
de “burocratas e intelectuais” (os burocratas são apenas 29% e os
“intelectuais”, 33%), nem de um levante de mineradores e oligarcas
endividados (são apenas 37% os mineradores, mas destes, 66% são também
credores), como quer Maxwell. A Inconfidência estaria mais para um levante
de fazendeiros (50%) e profissionais liberais avant la lettre (70%) e, ainda,
com forte enraizamento social (58%) na região de maior vitalidade e
diversificação econômica, a Comarca do Rio das Mortes
87
.
À luz dessas reflexões historiográficas, este capítulo vem realçar uma questão
importante, já mencionada em vários estudos - a de que a Inconfidência Mineira é um
dos fatos históricos do passado que mais projeta força política sobre o presente. Em
diferentes momentos políticos do País, tem-se a apropriação do seu legado: o Império, a
República, a Ditadura Civil do Governo Vargas, o Regime Militar, até as Diretas Já
referenciaram os ideais libertários da Inconfidência. Na comemoração do 21 de abril de
2001, o Governador de Minas Gerais, Itamar Franco, proclamou em outdoors
espalhados pelas cidades mineiras: “que em Minas o que se respira é a liberdade”. A
historiografia, da mesma forma, aponta a Inconfidência Mineira como o fato político
responsável pela construção de uma “memória nacional”, exaltadora de um passado de
glórias e acima de tudo divulgadora dos mitos criadores da nação.
Nessas circunstâncias, diferentes instrumentos foram utilizados para resguardar a
memória da Inconfidência Mineira. Ao lado de quadros, estatuetas, desfiles, medalhas,
bandeiras e emblemas, as narrativas tornaram-se um agente ativo de organização da
“memória inconfidente”, tendo, explicitamente, a intenção de transmitir e comunicar os
fatos, para que os mesmos não ficassem, como o disse frei José Maria do Desterro,
“riscados para sempre da memória dos homens”.
Sendo assim, ao propiciar um diálogo com os pósteros/leitores, as narrativas
construídas sob o jugo do Império ou no calor da efervescência republicana tornaram-se
87
Idem, p. 102.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
48
“símbolos de poder”, uma vez que determinaram o que deveria permanecer, perpetuar-
se, ser ensinado às gerações futuras sobre os acontecimentos de 1789 em Vila Rica.
Pensando nessa perspectiva, verifica-se que a memória que se quer construir
sobre a Inconfidência Mineira se reveste de uma natureza essencialmente política. O
Império, utilizando as narrativas de Frei José Maria do Desterro, Frei Raimundo da
Anunciação Penaforte e Joaquim Norberto, determina a formatação da figura de
Tiradentes conforme seus interesses imediatos: desqualifica a imagem do Alferes,
transformando o patriota em um humilde, contrito e arrependido cristão, apagando de
vez do imaginário monárquico a idéia de liberdade e transformação política que a
Inconfidência Mineira e seu protagonista podiam encarnar.
A República, por sua vez, também trilha os caminhos determinados pela política,
e a imagem de Tiradentes que deverá permanecer nos novos tempos políticos é a do
rebelde patriótico, o perfil religioso de um santo, que, dado o sacrifício oferecido à
nação, será lembrado sempre com tributos de um herói cristão. A idéia é exaltar os
valores políticos do “novo regime”, utilizando-se dos pressupostos políticos
“revolucionários” da Inconfidência Mineira.
A historiadora Eliana Regina de Freitas Dutra, ao discorrer sobre o papel dessas
narrativas na construção da “memória política” da Inconfidência Mineira, tece
considerações bastante pertinentes a esta reflexão:
O que são essas narrativas? São memória. Enquanto memória, elas são
expressão de um vivido e, na medida em que elas são expressão de um vivido,
essas narrativas foram susceptíveis às lembranças e ao esquecimento e, ao
mesmo tempo, estiveram sujeitas a certas deformações, foram vulneráveis de
utilizações e manipulações várias, e nós não podemos nos esquecer de que as
narrativas foram alimentadas de lembranças móveis, mutáveis e inconstantes,
mas sempre referidas ao universo social daqueles que lembraram. Enquanto
memória elas aproximam livremente o tempo passado e o tempo presente.
Nessa aproximação somos transportados para o momento em que a memória
foi construída para nos dizer o que foi a Inconfidência Mineira
88
.
À luz do pensamento da autora, uma questão fundamental torna-se evidente: a
escolha dos personagens, dos fatos e temas, sobretudo as interpretações sutis agradando
as autoridades políticas ora do Império, ora da República, estiveram em consonância
com a posição social e política de cada um dos depoentes e escritores. E, por
conseguinte, foram esses os agentes sociais responsáveis pela construção da memória
88
DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Anais - Seminário Tiradentes, Hoje: Imaginário e Política na
Republica Brasileira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p. 83.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
49
histórica da Inconfidência Mineira, determinando o “lugar”, o “modo” e o “tempo” em
que essa memória devia atuar: dando direito de voz a uns e silenciando outros,
desenhando e exaltando o perfil de alguns, apagando e desqualificando a imagem de
outros.
Diante do estabelecido, o que cabe ao historiador de ofício, é revisitar o tema
com outros olhos, questionar, averiguar e resgatar o “lugar” em que essas
narrativas/interpretações ocorreram. Quem nos dá as pistas para essa reflexão é o
historiador Carlos Alberto Vesentini, ao considerar que:
Como pressuposto de qualquer lembrança, como ponto comum a qualquer
análise, o fato apresenta-se como marco, ao qual se procura referenciar um
mundo de questões, as quais teriam tido previamente, no pensamento, algum
grau de realização e de existência lá. Sua instauração pode ser apresentada,
por outro ângulo, quando um eu é vinculado a um grupo -elite- e pela ação
desta o fato surge. Tal e qual (...) a variação não muda o fato. Outros agentes
são sugeridos tenentes - mostrando divergências apenas neste ângulo, o de
seu engendramento. O que interessantemente me chamou atenção foi a
indicação, põe estas perspectivas, de que somente nesses locais deveria dar-se
a volta da reflexão, da análise, em busca de uma compreensão do passado. Por
isso é assustadora a posição do agente quando assume a atitude de
distanciamento relativo, sendo sua isenção garantida pela procura da melhor
interpretação possível. Não a atitude em si mesma. Como deixar de aceitá-la?
Idem, quanto ao lembrar e refletir conjuntamente. Situar o problema, revê-lo
na perspetiva do tempo, criticá-lo ou recuperá-lo fazem parte da retomada da
função do agente. Mas esse situar supõe responder acertas questões como:
Qual problema? Onde se colocou? E o que clarifica, então é nada mais nada
menos, a expressão de perguntas desse teor. As representações, agentes,
problemas, estão dados no próprio fato, e a objetividade está ligada à
externalidade, a essa precisa posição externa elide este pequeno detalhe. O fato
solta-se das significações que ele contém, permitindo algo semelhante ao vê-lo
para melhor examiná-lo, dando margem tanto à idéia de seu estudo objetivo ( e
ele já está no pensamento de todos, nesse caso), isolado de versões
apaixonadas, ou podendo enfocar exclusivamente as realizações permitidas por
ele, quanto à separação entre o ato e tudo o soante como sua interpretação.
Variável e sujeita a correções, esta última
89
. (grifos nossos)
As reflexões de Vesentini são dirigidas especificamente para um outro momento
histórico brasileiro, que não é a Inconfidência Mineira. Seu objeto de reflexão é a
Revolução de 1930, porém as implicações teórico-metodológicas de suas idéias são
extremamente importantes e, se ampliadas para outros acontecimentos, permitem
questionar interpretações e periodizações cristalizadas ao longo do “tempo histórico”.
À luz dessas proposições, há que se ressaltar, que a “memória” que sobreviveu
não foi o “conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer
89
VESENTINI, Carlos Alberto. A Teia do Fato. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 44-45.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
50
pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade,
quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa(...)
90
”. Assim, os
homens que revisitaram o passado, ou melhor, a história da Inconfidência Mineira,
fizeram de seus relatos, mais do que fontes de informação, um “ato de celebração”, uma
auto-contemplação daquilo que serviria ao futuro.
Nessas instâncias, ao tratarmos do tema da Inconfidência Mineira, não estamos
simplesmente falando da construção de um passado, responsável pela formação da
identidade nacional dos brasileiros. Sobretudo, estamos estabelecendo uma reflexão
sobre memória, símbolos, imagens, construção de mitos e heróis. Nesse sentido, a obra
de Paulo Miceli, O Mito do Herói Nacional, torna-se uma referência importante, pois,
apresenta reflexões sobre a construção de figuras históricas que, marcam uma época e
permanecem para sempre no imaginário popular.
Nas palavras do autor, o herói tem uma finalidade essencialmente moralista,
servindo para avaliar e dirigir condutas, distribuir ensinamentos e pregar sua moral num
espaço onde é perigoso atuar. Essencialmente, ele aparece como o responsável pela
indicação dos caminhos que a humanidade deve seguir e dos papéis que são destinados
aos homens
91
.
Precisamente, essas considerações casam-se perfeitamente à trajetória da figura
histórica do protagonista da Inconfidência Mineira. Ao longo deste capítulo,
vislumbramos as variações de significados e importância que o herói nacional Joaquim
José da Silva Xavier assumiu em diferentes situações políticas do País, trabalhando,
dedicando ora sua vida, ora sua morte, para que os homens sejam salvos de situações
cosntrangedoras. Sendo assim, conclui-se que, na história da Inconfidência, Tiradentes
foi um personagem “condenado a escalar o patíbulo, ser enforcado e esquartejado
para ressuscitar a cada comemoração e, infinitamente, cumprir idêntico e trágico
destino, transformando-se numa espécie de morto-vivo, empregado para manter a força
simbólica da nação
92
”.
À luz dessas considerações, o que interessa nesse instante é saber: quais as
motivações ou condições históricas que possibilitaram a diferentes segmentos do teatro
brasileiro, na década de 1960, colocar nos palcos temas consagrados pela historiografia,
em especial a Inconfidência Mineira? Em que medida as imagens construídas em torno
90
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional,
Casa da Moeda, 1984, p. 95.
91
MICELI, Paulo. O Mito do Herói Nacional. São Paulo: Contexto, 1997, p. 10.
92
Idem, p. 12.
Inconfidência Mineira: Diálogos com a Historiografia e a Construção da Memória
Histórica
51
de Tiradentes ao longo da história serviram aos dramaturgos Augusto Boal,
Gianfrancesco Guarnieri e Jorge Andrade no momento de falarem ao público sobre as
questões políticas da década de 1960? Ao utilizar os fundamentos da Inconfidência
Mineira - tema da liberdade em pleno Regime Militar, com quais setores da sociedade
os dramaturgos estão dialogando?
Para dar vida a essas questões, deve-se levar em conta que as diferentes
abordagens sobre a Inconfidência Mineira, iluminadas pela historiografia, não
esgotaram os debates e as reflexões que ainda orientam o tema. Assim, Arena Conta
Tiradentes e As Confrarias também apresentam uma leitura peculiar sobre o Levante de
Minas. Aos olhos do historiador de ofício, são fontes produzidas sob determinada ótica,
com fins e propósitos específicos que indicam não só os pontos de vista sobre o
processo histórico em questão, mas, sobretudo, interpretações sobre o presente, em
especial o Regime Militar, inaugurado nos efervescentes anos de 1960.
Por essa via de questões, torna-se importante, primeiramente, iluminar o “lugar”
de produção em que os dramaturgos Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Jorge
Andrade fundamentaram seus projetos de escrita teatral. Especialmente o cenário
cultural paulista, que a partir da ação de diferentes grupos de teatro, sistematizou e
divulgou as diretrizes do Teatro Moderno no Brasil.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
56
A Questão da Modernidade no Teatro Brasileiro
É impossível recuperar, em um curto espaço, o panorama completo do teatro
brasileiro. Uma história longínqua, que começa à época da colonização brasileira e que,
ainda hoje, está com parte expressiva de sua trajetória para ser contada. Esse capítulo é
apenas uma tentativa de compreender momentos dessa história, especialmente o teatro
paulista, em que os dramaturgos Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Jorge
Andrade tiveram intensa participação.
As décadas de 1950 e 1960 são momentos significativos da história da Arte e do
Teatro no Brasil, porque na década de 1940, pessoas ligadas à arte teatral ansiavam pela
superação das técnicas e do repertório do teatro que até então se fazia no País. Atores,
diretores, cenógrafos e dramaturgos motivados com as transformações pelas quais a
sociedade paulistana estava passando, mobilizaram-se na construção do “teatro
moderno”
A cidade de São Paulo, que, desde os tempos da Proclamação da República, era
organizada pela aristocracia cafeeira, chega aos anos de 1940 vivendo os impasses da
“modernização”. Ao lado da indústria mola propulsora do desenvolvimento e do
crescimento econômico, o País também encontrava-se envolto no florescimento de
importantes instituições culturais. Nessa época, surgiu o Museu de Arte Moderna, a
Escola de Arte Dramática, o Teatro Brasileiro de Comédia, a Escola de Jornalismo
Cásper Líbero, o Museu de Arte, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, mais tarde o
Teatro Arena de São Paulo, o Teatro Oficina, e outras mais. Assim, além da disposição
e motivação que a classe teatral apresentava para promover mudanças na forma de fazer
e estudar teatro, ocorria ainda uma série de transformações econômicas, políticas,
sociais e culturais que possivelmente viabilizaram a construção do “teatro moderno
brasileiro”
1
.
A propensão para a mudança partiu dos grupos amadores que estavam em cena
no final da década de 1930. Esses grupos, além de ousados, tinham autonomia de
escolha. Eram, na sua maioria, desvinculados das preocupações com a bilheteria e
folhas de pagamento. Tinham, porém, a convicção de que lutavam pela melhoria do
1
Sobre o surgimento das diferentes instituições culturais na cidade de São Paulo, em fins da década de
1940, vale consultar:
Há Trinta Anos São Paulo... In: Revista Isto É, em 29/11/1979.
ARRUDA, Maria Arminda. Metrópole e Cultura. Bauru (SP): EDUSC, 2001.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
57
teatro brasileiro, promovendo uma renovação qualitativa e atingindo patamares elevados
de criação artística.
A grosso modo, pode-se dizer que a intenção dos amadores era a de mudar o
produção teatral que apresentava características ultrapassadas, a começar pela
centralização do chefe das companhias, que organizava os espetáculos e escolhia o texto
a gosto próprio. Ao lado disso, não havia encenadores e os atores não tinham contato
com o texto na sua íntegra, mas com fragmentos concernentes aos seus papéis. Em
relação ao cenário, existia apenas um, que seria retocado a cada peça. Era assim que se
organizavam as companhias teatrais de Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes, Jayme
Costa, Alda Garrido.
Em tais condições, os amadores tinham a pretensão de ocupar um lugar de
destaque no panorama cultural paulista. E mesmo atuando e convivendo com os
impasses ditados pelo Estado Novo e pela censura do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) do governo Vargas, vários grupos foram criados, entre eles o Grupo
do Teatro Experimental (GTE), o Grupo Universitário de Teatro (GUT), o Teatro do
Estudante (TE) e Os Comediantes (os dois últimos no Rio de Janeiro).
No que diz respeito ao repertório desses grupos amadores, a maioria apresentava
certa similaridade, exceto o GUT, que optou por uma dramaturgia essencialmente de
língua portuguesa (Gil Vicente, Martins Pena e Mário Neme). Já o GTE, TE e Os
Comediantes oscilavam principalmente entre os autores clássicos (Aristófanes,
Shakespeare, Molière ou Marivaux) e modernos (Pirandello ou Tennessee Williams),
mas também tinham a preocupação em levar para os palcos autores nacionais. O GTE
apresentou textos de Abílio Pereira de Almeida e Carlos Lacerda, os Comediantes
realizaram um dos espetáculos mais polêmicos da época, Vestido de Noiva, de Nelson
Rodrigues, na direção de Ziembinsk
2
.
O Grupo de Teatro Experimental, um dos mais destacados do meio
amadorístico, foi fundado por Alfredo Mesquita o futuro criador da Escola de Arte
Dramática em 1942. A sigla ficaria famosa pelos inúmeros trabalhos realizados. O
grupo, que era composto, entre outros, por Abílio Pereira de Almeida, Marina Freire,
Irene Bojano e Nydia Lícia, tinha como pressuposto deixar de lado a experiência de
mostrar românticos franceses na língua deles, melhorar o repertório teatral e a prática de
representação. Essencialmente, o ideal do GTE era levantar o nível do teatro
2
GUZIK, Alberto. TBC: crônica de um sonho. São Paulo: Perspectiva. 1986, p. 07.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
58
brasileiro, fazer um teatro cultural e educar o público para a aceitação de peças fora
do âmbito das possibilidades do teatro profissional da época
3
.
Uma parte expressiva do trabalho do GTE foi apresentada nos palcos do TBC.
As primeiras peças eram de autoria de Abílio Pereira. O enredo de Pif Paf, que unia a
dissolução de uma família ao vício do jogo, foi um dos maiores sucessos do grupo. A
Mulher do Próximo colocava nos palcos um tema polêmico, o adultério. Mas foi o texto
A Margem da Vida, de Tennessee Williams, que rendeu à casa de espetáculos um
público de três mil e quinhentas pessoas. Segundo Alberto Guzik, a qualidade do texto
somada à cuidadosa produção foram responsáveis pela boa acolhida do público
4
.
Paralelamente ao GTE, o Grupo Universitário de Teatro (GUT), organizado por
Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado, muito contribuiu para a
construção de um “teatro moderno” no Brasil. O elenco era composto por Cacilda
Becker, Hamilton Ferreira, Waldemar Wey, entre outros. A principal característica
desse grupo era a originalidade do seu repertório, sempre em língua portuguesa,
preocupação que, até então, os grupos amadores ainda não demonstravam.
De 1944 a 1948, o GUT produziu três importantes espetáculos. O primeiro era
formado pelo Auto da Barca do Inferno do dramaturgo Gil Vicente, Irmão das Almas,
de Martins Pena, e Pequenos Serviços para Casa de Casal, do contista e intelectual
Mario Meme. O segundo trabalho do grupo foi constituído por A Farsa de Inês Pereira
e Amapa de Carlos Lacerda. O terceiro espetáculo representado no palco do TBC, foi
Vaudeville O Baile dos Ladrões, de Jean Anouilh. Vários espetáculos do GUT, foram
apresentados pelo interior do Brasil. Para o meio teatral, o grupo atingiu um nível muito
elevado dentro de sua proposta de teatro universitário
5
.
No entanto, a modernização do teatro brasileiro não foi fruto apenas dos
trabalhos promovidos pelos amadores. Deve também ser levado em conta a participação
assídua de encenadores e cenógrafos europeus, que para cá vieram depois da Segunda
Guerra Mundial. Os nomes de Ziembinsk, Ruggero Jacobbi, Adolfo Celi, Gianni Ratto,
Alberto D’Aversa, Maurice Vaneau, entre outros, tornaram-se parte integrante e
indispensável de nossa história teatral.
Entre esses “homens de teatro”, destaca-se o nome de Ruggero Jacobbi. Italiano,
chega ao Brasil em 1946, por ocasião de uma tournée pela América do Sul. Ao se
3
Depoimentos II. Rio de Janeiro: MEC-SEC SERVIÇO NACIONAL DE TEATRO, 1977, p. 26.
4
GUZIK, A. Op. Cit. p. 18.
5
Depoimentos II. Op. Cit. p. 26-27.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
59
apresentar na cidade do Rio de Janeiro como diretor da Companhia Dramática Diana
Torrieri, foi convidado para dirigir um espetáculo no Teatro Popular de Arte, companhia
de Sandro Polloni e Maria Della Costa. A partir desse convite permaneceu no Brasil até
o ano de 1960.
A recente obra “Ruggero Jacobbi: presença italiana no teatro brasileiro
6
”, de
Berenice Raulino, vem a público mostrar que Jacobbi foi uma das pessoas que mais
colaborou para a modernização do teatro brasileiro. O livro ressalta que, além da intensa
atividade artística que desempenhou como produtor, diretor, crítico de teatro, literatura e
cinema, foi ainda um sensível intelectual, que se dedicou com afinco aos estudos de
teoria, crítica e ensino de teatro.
Em 1949, Ruggero Jacobbi muda-se para a cidade de São Paulo e, a convite de
Franco Zampari, integra-se ao quadro de diretores do Teatro Brasileiro de Comédia.
Logo após, torna-se professor da Escola de Arte Dramática, onde, em contato com o
intenso público estudantil, funda em 1955 o Teatro Paulista do Estudante, grupo que
abrigou nomes que se destacariam no teatro brasileiro, como Gianfrancesco Guarnieri e
Oduvaldo Vianna Filho.
Durante o tempo em que esteve no Brasil, Ruggero Jacobbi realizou diferentes
encenações de textos inspirados na commedia dell’arte. Seu autor preferido é Carlo
Goldoni. Segundo Berenice Raulino:
as montagens de Goldoni são um importante impulso para o desenvolvimento
do teatro nacional. O trabalho de Ruggero Jacobbi reúne, portanto, a
qualidade performática de um ator, o gosto brasileiro pela comédia e a
formatização em texto de uma prática improvisacional forjada em décadas de
tradição na Itália. Sem duvida, podemos inferir dessa iniciativa a importância
de Jacobbi na formação inicial de um teatro brasileiro moderno, que mesmo
não atingindo resultados artísticos bem sucedidos na sua totalidade,
contribuiu, de modo basilar, para a nossa formação artístico-cultural
7
.
Um dos grandes marcos no palco do TBC foi a realização do espetáculo O
Mentiroso, de Goldoni, dirigido por Ruggero. Na crítica de Décio de Almeida Prado, a
apresentação oxigenou o teatro brasileiro pela alta graça da poesia e da arte. Ruggero
sabia não só a parte do vestuário, mas também os gestos característicos de cada um dos
personagens
8
. O sucesso de O Mentiroso confirma mais uma vez a participação assídua
6
RAULINO, Berenice. Ruggero Jacobbi: presença italiana no teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva,
2002.
7
Idem, p. 91.
8
Idem, p. 103.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
60
do dramaturgo italiano na construção de uma estética, de uma cena, de um “espetáculo
moderno” no Brasil.
Entre os anos de 1951-1952, Ruggero Jacobbi integra-se ao quadro de
professores da Escola de Arte Dramática, onde segundo Armando Sérgio, com sua
sólida experiência teatral e infinita erudição, iniciará uma das mais brilhantes carreiras
ligadas ao ensino de teatro
9
. Os alunos que freqüentaram a EAD nesse período foram
privilegiados com profundos estudos sobre análise e interpretação de textos.
Precisamente, Jacobbi tinha a preocupação de dar aos alunos uma consciência da função
estética, social e política do teatro. Com essa perspectiva, foi um dos importantes guias
intelectuais de jovens dramaturgos que, nas décadas seguintes, fundamentaram sua
escrita teatral calcada no engajamento político.
Em 1948, São Paulo ganha um dos mais importantes centros de estudo de teatro
do País: a Escola de Arte Dramática (EAD), fundada por Alfredo Mesquita. Na época
de sua criação, a cidade apresentava condições favoráveis para uma nova vida social e
intelectual. Em 1933 havia sido fundada a Escola de Sociologia Política, no ano
seguinte, a Universidade de São Paulo. Ao mesmo tempo, vivia-se o apogeu do Teatro
Municipal e da Sociedade de Cultura Artística.
Para Alfredo Mesquita, a EAD não foi criada com o princípio único de formar
artistas, mais que isso, era fomentar o novo teatro que estava emergindo em todo o
Brasil e particularmente em São Paulo. Conforme suas próprias palavras, a Escola tinha
por base “a aplicação de um teatro cultura, em seus dois sentidos: como divulgação e
expressão cultural, já que todo país culto tem um bom teatro sem sombra de
dúvidas
10
”.
Com essa perspectiva, a Escola propunha a formação cultural do aluno. Além
das matérias teóricas obrigatórias, como a “História do Teatro Brasileiro”, ensinava-se
também o Francês, o Português e a Mitologia. Quanto à parte prática, os alunos
iniciavam suas apresentações cênicas somente no terceiro e quarto ano de curso. Antes
disso, passavam por longos exercícios para a educação da voz, do corpo e disciplina da
respiração. Para Paulo Mendonça, um dos nomes mais atuantes da EAD, esta ainda se
preocupava em elevar o nível do teatro:
9
SILVA, Armando Sérgio da. Uma Oficina de Atores: A Escola de Arte dramática de Alfredo
Mesquita. São Paulo: EDUSP, 1988, p 91-95.
10
Depoimentos II. Op. Cit., p. 29.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
61
melhorar a formação técnica e cultural dos que a ele pretendiam dedicar suas
vidas (...) O nível do teatro precisava mesmo ser elevado, em termos de
repertório, de gosto, de mentalidade, de qualidade da maioria dos autores,
atores, diretores, cenógrafos, críticos etc. Não pretendo desmerecer o esforço e
o talento de muitos que batalhavam nesse campo antes do aparecimento dos
amadores, do Grupo Experimental e do Grupo Universitário de Teatro,
dirigido por Décio de Almeida Prado, e antes que surgisse a Escola de Arte
Dramática.(...) Mas estava na hora de atualizar os padrões, de ousar, de situar
a nossa arte cênica à altura do que se fazia nos centros mais adiantados.
Depois viriam as condições para projetar a nossa identidade nacional
11
.
Sendo assim, os espetáculos deixaram de ser representados de forma ocasional,
mas com uma estrutura de ensino, de estudo, de técnicas, de repertório e principalmente
com instalações adequadas (sala de aula, secretaria, biblioteca e um pequeno teatro).
Quanto ao corpo docente, este era composto por nomes importantes, Décio de Almeida
Pardo, Alberto D´Aversa, Antunes Filho, Ruggero Jacobbi, Anatol Rosenfeld, Sérgio
Cardoso, Ziembinski, Gianni Ratto, Gilda de Melo e Souza e outros.
Outro ponto a ser considerado, quando se fala em EAD, é que esta não restringia
apenas à formação de atores. Existia também um importante curso de dramaturgia, do
qual saíram autores importantes do nosso teatro, como Lauro César Muniz e Jorge
Andrade. Da primeira turma formada pela Escola alguns nomes se destacam, como o de
Leonardo Villar, Geraldo Matheus (diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro), José
Renato (fundador e diretor do Teatro de Arena de São Paulo), Armando Pascol, Odilon
Nogueira, Geraldo Galvão e outros tantos.
O trabalho dessa importante escola de dramaturgia não ficou restrito à cidade de
São Paulo. Ao contrário do que se pensa, parte expressiva de suas apresentações pôde
ser apreciada pelo público de quase todo o Brasil. Antes de se anexar à Escola de
Comunicação da USP, a EAD visitou as principais cidades e capitais brasileiras:
Salvador, Curitiba, Recife, Maceió, Goiânia, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Rio
de Janeiro, Poços de Caldas, Niterói, Ouro Preto, Santos, Campinas, Taubaté, São José
dos Campos e muitas outras
12
.
Ao traçarmos um panorama dos diferentes grupos teatrais que povoaram o
11
MENDONÇA, Paulo. Fomos os primeiros. In: Dionysos Especial Escola de Arte Dramática
Brasília: FUDACEN, nº 29, 1989, p. 68-69.
12
De acordo com Alfredo Mesquita, somente em São Paulo foram realizados trezentos e oitenta e nove
espetáculos e no interior cento e vinte e cinco. Muitas peças encenadas pela EAD eram de autores
inéditos, desconhecidos nos palcos brasileiros, como Calderón de la Barca, Klest, Kafka, Brecht, Beckett,
Ionesco, Tardieu, Adamov, etc. Dos autores nacionais foram apresentados textos de José de Anchieta,
Adelina Cerqueira Leite, Ligia Fagundes Telles, Roberto Freire, José de Barros Pinto e Renata Palottini.
Ver: Depoimentos II. Op. Cit. p.31.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
62
cenário cultural de São Paulo nas décadas de 1940 a 1950, uma das companhias a
considerar é o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O italiano Franco Zampari é o
responsável pela sua fundação, ocorrida em outubro de 1948. Com habilidades
profissionais bastante afastadas do teatro (engenheiro e diretor administrativo das
empresas Matarazzo), Zampari dá ao TBC um caráter essencialmente empresarial: sede
própria excedendo conforto, elenco estável com salários fixos, rotatividade rápida das
peças e a qualidade sofisticada dos espetáculos.
A chegada do TBC ao cenário cultural paulista criou expectativa e um intenso
clima de euforia. Era, na época, um dos teatros mais bonitos e elegantes. Além de
cômodo, era todo iluminado. A inauguração foi um momento histórico para o meio
teatral e, sem sombra de dúvida, o arrojado empreendimento possibilitou a emergência
do teatro paulista em bases empresariais.
Para Sábato Magaldi, o TBC funcionou como sismógrafo das tendências do
teatro brasileiro. Sendo a base de seu trabalho essencialmente estetizante, procurava
realizar bonitos espetáculos, estribados em desempenhos e acessórios cujo padrão era a
sobriedade e finura européia. Os excessos anteriores - teatralidade desmasiada, calor
humano, violência -, comuns no drama e na comédia, eram tachados de mau gosto.
Segundo o autor, o repertório do TBC atendia precisamente aos interesses do público.
Daí a alternância, no repertório, de peças comerciais e de peças artísticas, num
ecletismo que visava equilibrar as finanças
13
. Com essa perspectiva de análise, Magaldi
ressalta ainda que o ideal da Companhia de Zampari era:
substituir Paris para o público paulista, já que a inflação dificultava a viagem
à Europa. Bastava uma peça receber o beneplácito do público, ali ou em Nova
York, para ser logo depois encenada no TBC. A certa altura, pensou a empresa
em conservar apenas alguns primeiros atores, aproveitáveis em qualquer
montagem (...) e substituir o elenco estável pelo sistema de produção isolada,
norma da Broadway
14
.
Diferente da opinião de Sábato Magaldi, Alfredo Mesquita, - um entusiasta do
TBC e fundador da Escola de Arte Dramática ressalta que a idéia de Zampari ao criar
a Companhia era unicamente de ajudar o teatro amador de São Paulo e incentivar a
elevação do nível teatral paulista. Tanto é assim, que:
Ele, a despeito de sua imensa fortuna, não tinha o menor interesse pela
bilheteria, somente o nível artístico dos espetáculos empolgava a ele. Seu maior
13
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Global, 1977, p. 210-211.
14
Idem, p. 212.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
63
sonho era reunir todo o teatro nacional em grande truste controlado por ele,
com dezenas de elencos atuando simultaneamente em São Paulo, no interior
paulista, no Rio de Janeiro, em todo o Brasil
15
.
Contudo, o que se deve ressaltar é que a historiografia do teatro minimizou a
importância da Companhia de Zampari no interior do teatro brasileiro. A imagem
construída e que perdura até hoje sobre o TBC é de uma companhia essencialmente
capitalista, luxuosa, alienada e desvinculada do trabalho dos autores nacionais. Na
maioria das vezes, as críticas recaem sobre a falta de um projeto político articulado à
realidade brasileira, sobre a necessidade de peças que promovessem uma reflexão sobre
a atualidade política do momento, sobre o grande número de dramaturgos, cenógrafos e
diretores estrangeiros importados da Europa, acabando com a tradição do teatro
brasileiro
16
.
Na obra TBC Crônica de um Sonho, Alberto Guzik destaca que durante muito
tempo a Companhia de Zampari ocupou um lugar de peso no processo de modernização
do teatro brasileiro, mas com o passar do tempo sua história foi sendo paulatinamente
esquecida e distorcida. Passou à condição de bode expiatório. Todos os males do palco
nacional derivavam dele, foi duramente atacado por diretores importantes do nosso
teatro, como Augusto Boal, José Celso Martinêz Corrêa, Fernando Peixoto e José
Renato. Muitas vezes passou-se sobre o que o TBC conquistou para condená-lo por
maneirismos
17
.
No entanto, para compreender a atuação do TBC no interior da história do teatro
brasileiro, deve-se recuperar a sua historicidade, isto é, remetê-lo ao seu tempo,
entendê-lo dentro do contexto de transformação política e econômica que tanto o País
quanto a cidade de São Paulo estavam passando nas décadas de 1940/1950. Na época de
sua fundação, além das várias instituições culturais que estavam nascendo, floresciam
também novos valores de consumo, novas relações sociais, advindos dos acordos
políticos e econômicos da recente industrialização. Como conseqüência, a sociedade
criou a expectativa da “modernidade”, buscando hábitos culturais mais sérios e
refinados. O TBC, ao lado de outros segmentos da sociedade, também divulgou essa
15
Idem, p. 29.
16
Críticas e restrições ao Teatro Brasileiro de Comédia podem ser encontradas nas seguintes obras:
PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaços. São Paulo: Hucitec, 1980.
Revista Dionysos, nº 25, setembro, Brasília: FUNDACEN, 1980.
17
GUZIK, Alberto. Op. Cit., p. 219.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
64
“modernidade”, através de espetáculos mais elaborados, refinados, em sintonia com
novos gestos, hábitos e valores que chegavam ao público.
Ao mesmo tempo, diferente do Teatro de Arena de São Paulo, do Teatro Oficina
e do Grupo Opinião, o Teatro Brasileiro de Comédia não foi construído na perspectiva
política da esquerda. Seus fundadores não eram estudantes universitários, intelectuais,
militantes do Partido Comunista Brasileiro que, envolvidos em projetos partidários,
buscavam a transformação imediata da realidade.
Contudo, isso também não significa que o TBC tenha sido essencialmente
alienado e apolítico. No final dos anos de 1950, especialmente quando Flávio Rangel
começava a fazer parte da Companhia, muitas transformações foram realizadas, uma
delas a valorização e apresentação de textos nacionais. A partir daí, nomes importantes
da teatro brasileiro passaram a ocupar um espaço maior no repertório da Companhia,
dramaturgos que por sinal estavam comprometidos com a função social e política da
arte. Entre tantos, estão Gianfrancesco Guarnieri, que encenou A Semente. Jorge
Andrade que levou ao palco textos importantes como: Pedreira das Almas, A Escada,
Os Ossos do Barão e Vereda da Salvação; Dias Gomes, que participou com O Pagador
de Promessas e A Revolução dos Beatos
18
.
Ainda que em pequena proporção, o TBC chegou a agregar pessoas
comprometidas com a função social e política da arte. Segundo Antunes Filho, um dos
diretores mais atuantes da Companhia de Zampari, mencionava Brecht muito antes de
Paris. Era o italiano Ruggero Jacobbi, “(...) um homem que falava de teatro político, um
18
À fim de ilustrar o diversificado e rico repertório que abarcou a atuação do Teatro Brasileiro de
Comédia, torna-se importante destacar:
-Abílio Pereira de Almeida: Em 1948, A Mulher do Próximo; em 1951,Paiol Velho; em 1955, Santa
Marta Fabril S.A.
-Anton Tchecov: em 1954, Um pedido de Casamento.
-Arthur Miller: em 1960, Panorama Visto da Ponte; em 1962, A Morte do Caixeiro Viajante.
-Clô Prado: em 1952, Diálogo dos Surdos.
-Dias Gomes: em 1960, O Pagador de Promessas; em 1962, A Revolução dos Beatos.
-Edgard Da Rocha Miranda: em 1952, Para Onde a Terra Cresce.
-Gianfrancesco Guarnieri: em 1961, A Semente.
-Gonçalves Dias: em 1954, Leonor de Mendonça
-John Gay: em 1950, A Ronda dos Malandros.
-Jorge Andrade: em 1958, Pedreira das Almas; em 1961, A Escada; em 1963, Os Ossos do Barão; em
1964, Vereda da Salvação.
-Jean-Paul Sartre: em 1954, Mortos sem Sepultura.
-Maxim Gorki: em 1951, Ralé.
-Sófocles e Anouilh: em 1952, Antígone.
-Tennessee Williams: em 1950, O Anjo de Pedra e Lembranças de Berta; em 1956, Gata em Teto de
Zinco Quente.
PEREIRA, Maria Lúcia. Fichas Técnicas do TBC. In: Dionysos Especial Teatro Brasileira de Comédia,
n° 25, setembro, Brasília: FUNDACEN, 1980, p. 199 a 265.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
65
homem que falava de todos os problemas do teatro(...) ele não estava nem aí com
espetáculo. O lance dele era outro: era falar de Brecht, era falar do teatro novo, da
nova dramaturgia alemã, coisas assim
19
”.
Nessas circunstâncias, em 1950 Jacobbi foi o responsável por uma das
apresentações mais polêmicas na Companhia de Franco Zampari. O texto “Ronda dos
Malandros”- adaptação de The beggar´s opera, de John Gay, desagradou
profundamente o dono da casa e os seus associados, que imediatamente cancelaram à
apresentação da peça. Diante do impasse, Ruggero Jacobbi desliga-se tanto do TBC,
quanto da Companhia cinematográfica Vera Cruz, retornando a Companhia de Zampari
somente dois anos depois para dirigir o espetáculo O Mentiroso, de Carlo Goldoni.
Por tudo isso, a contribuição técnica, profissional e dramática do TBC, não
merece ser esquecida pelo teatro brasileiro. Essa casa de teatro, além de sistematizar as
diretrizes do teatro moderno no Brasil, divulgando noções definidas de profissionalismo
e promovendo uma direção artística com nítidos princípios estéticos, foi também uma
das fomentadoras da dramaturgia nacional, viabilizando, reconhecendo e divulgando o
trabalho de dramaturgos brasileiros
20
.
Como pondera Alberto Guzik:
o TBC nos legou a imagem de uma companhia grã-fina, deslumbrada pelos
confetes fáceis, movida por fúteis propósitos. A parte de verdade (...), isso não
minora a função decisiva que o grupo desempenhou na história do teatro
brasileiro. E não leva em conta o grande número de tentativas que (...) levou a
cabo no sentido de se ajustar a uma realidade mutável. Foram muitas as crises
por que passou o grupo. E acusá-lo sem ponderação significa ignorar seus
processos internos, as contradições nas quais se debatia, as inúmeras tentativas
que esboçou para atuar numa realidade que o acusavam de desconhecer
21
.
À luz dessas reflexões, o TBC deve ser compreendido como um teatro rico em
alternativas, lições e atrativos, um teatro inteligente que soube dar ao seu profissional
técnica, estilo e profissionalização. Tanto é assim que o Teatro Brasileiro de Comédia
19
Revista Dionysos Especial Teatro Brasileira de Comédia. Op. Cit. p.138,140.
20
Levando em conta essas considerações, Mariângela Alves Lima, ao fazer uma reflexão atenta sobre o
TBC Dionysos, ressalta que toda uma geração de atores, diretores, dramaturgos e cenógrafos atuantes do
teatro nas décadas de 1950/1960 formaram-se sob a influência técnica e profissional do TBC. A lista de
nomes levantada pela autora, além de extensa, é bastante reveladora e sugestiva. Pessoas importantes do
teatro brasileiro, como Flávio Rangel, Antunes Filho, José Celso Martinêz Corrêa, José Renato,
Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Flávio Império, Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Queiroz Telles,
César Vieira e Renato Borghi, tiveram como referência para a realização de seus trabalhos o Teatro
Brasileiro de Comédia. LIMA Mariângela Alves. Teatro Brasileiro Moderno Uma Reflexão. In:
Dionysos Especial Teatro Brasileiro de Comédia, Op. Cit., p. 21 a 29.
21
GUZIK, Alberto. O Levantar do Pano. In: Dionysos Especial Teatro Brasileira de Comédia, Op. Cit.,
p. 5-6.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
66
não só influenciou as companhias que surgiram depois de sua existência, como também
as que atuaram ao mesmo tempo, disputando mercado e público, desenvolvendo
estéticas e acima de tudo estimulando a construção de um Teatro Nacional Moderno
22
.
Mas a criação de um teatro moderno do Brasil não foi fruto apenas das atuações
mencionadas até o momento. Nesse contexto efervescente da produção teatral, uma
série de companhias teatrais foi fundada, entre as quais o Teatro Popular de Arte, que
nasceu no Rio de Janeiro e se mudou para São Paulo com o nome de Companhia de
Teatro Maria Della Costa.
O TPA atuou entre os anos de 1948 a 1953. Nesse período foram criadas as
condições, ou melhor, as bases de trabalho da Companhia de Teatro Maria Della Costa,
que mais tarde mobilizaria as atenções do cenário cultural e teatral paulista. O TPA foi
uma das referências importantes do teatro carioca, produzindo espetáculos polêmicos e
ousados. A primeira montagem do grupo foi um texto de Nelson Rodrigues, Anjo
Negro. O espetáculo causou um grande impacto. Além da mobilização da imprensa
sobre o texto e a produção, suscitou ainda sérios problemas com a censura e protestos de
vários segmentos tradicionais da sociedade, como a Igreja Católica
23
.
Depois de vários impasses vividos pelo TPA, principalmente em relação à falta
de um espaço próprio para realização de seus espetáculos, o grupo transfere-se para São
22
Nas palavras do diretor teatral Antunes Filho, “nessa época todos nós Boal, Flávio, Zé Renato, Zé
Celso, todo mundo vivíamos brigando um com outro. Mas era sadio, era importante, era teatro. (...)
Existia mesmo bairrismo dentro do teatro: a turma do lado de lá, a turma do lado de cá. Um não gostava
do trabalho do outro, nunca! O Boal não gostava de espetáculo meu e eu jamais gostei de espetáculo
dele, e o Zé Renato e o Flávio a mesma coisa. Agora, do Zé Celso, eu já gostava mais. Foi o diretor que
eu mais admirei, desse pessoal todo, apesar de eu não concordar ideologicamente com ele”. Dionysos
Especial Teatro Brasileiro de Comédia. Op. Cit. p. 143-144.
23
A trama do texto de Nelson Rodrigues deve ser considerada, uma vez que foi ela o motor das reações
inflamadas do público: “a órfã Virgínia, vivendo com a tia, roubou o namorado da prima, que se enforcou
ao presenciar a cena amorosa. A tia, por vingança, obriga Virgínia a se casar com o negro Ismael, que
violenta a esposa todos os dias. Mesmo casada, Virgínia sente-se muito só. Ismael, que consegue uma
grande ascensão social torna-se médico e enriquece mantém a mulher prisioneira em casa, onde
ambos ficam trancados, permitindo a entrada somente de homens negros. Em revanche, Virgínia mata
todos os filhos que nascem negros. Ismael não a impede, pois o crime os uniu mais ainda e a mulher,
depois de assassina, tornou-se mais sensual. De forma surpreendente, Virgínia recebe a visita de Elias,
irmão de criação de Ismael, que ficou cego porque o irmão trocou propositadamente seus remédios
(vingança por Elias ser branco). Elias apaixona-se por Virgínia, a engravida e é morto com um tiro pelo
irmão. Da gravidez de Virgínia, nasce Ana Maria, que se torna-se vítima de Ismael, pois este também a
cega para que a enteada o retivesse na memória como o único homem do mundo. Com o tempo, Ana
Maria inclina-se por Ismael, que ensinou a suposta filha a odiar os negros e que ele era o único branco do
mundo. O desfecho da trama acontece com o sacrifício de Ana Maria por Ismael e Virgínia, que é
enterrada em túmulo transparente, igual à personagem Branca de Neve, presença eterna, que o Nelson
Rodrigues pretendeu simbolizar”. SILVA, Tânia Bradão da. Peripécias Modernas: Companhia Maria
Della Costa. Tese (Doutorado em História Social) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, RJ,
1998, p. 167. Depois de Anjo Negro, várias produções foram realizadas pelo TPA, como por exemplo,
Tobacco Road; dirigido por Ruggero Jaccobi; Woyzeck, e Lua de Sangue, ambos dirigidos por Ziembisk;
etc.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
67
Paulo. Pouco ou quase nada se conhece sobre a Companhia de propriedade do diretor
teatral Sandro Pollonio e da atriz Maria Della Costa. A historiografia do teatro pouco a
explorou e a esqueceu nas reflexões sobre a instauração do teatro moderno no Brasil.
Nesse sentido, o estudo da historiadora Tânia Brandão
24
dá importante
contribuição, ao mostrar que as atividades artísticas desenvolvidas no palco do Teatro
Maria Della Costa (TMDC) contribuíram de forma sistemática para a formulação e o
desenvolvimento do conceito básico de teatro moderno praticado no Brasil. Nesse
sentido, em 1954 ocorre a solenidade de inauguração, a construção tornou-se um
empreendimento irretocável, radicalmente moderno, com nítidos avanços tecnológicos.
Na avaliação de pessoas do meio artístico, o teatro era perfeito para montagem
de qualquer peça, pois contava com uma estrutura extremamente acabada e refinada: o
palco era de madeira, desmontável, as poltronas organizadas com inclinação, permitiam
visibilidade perfeita do espetáculo, abrigava quatrocentos e cinqüenta lugares e tinha
duas galerias para cinqüenta refletores suspensos no teto e dez na platéia.
A direção geral da nova Companhia, ficou a cargo de seus proprietários Sandro
Polônio e Maria Della Costa. Abaixo deles existiam os consultores, entre os quais
estavam Miroel Silveira e Mario Silva Clóvis Garcia. Como diretores, destacavam
nomes como os de Itália Fausta, Eugênio Kusnet, Ruggero Jaccobi e Gianni Rato. Na
cenografia, Eduardo Suhr, Laslo Meitner e Santa Rosa. Entre vários figurinistas, estão
Lili Junqueira e Darcy Penteado. Os assistentes de cena eram Geraldo Soares e
Fernando Torres. Para Tânia Brandão, este tipo de organização deve-se essencialmente
ao TBC, mas com pouco tempo de existência, fica evidente que o Teatro Maria Della
Costa tornou-se um explícito opositor da Companhia de Zampari
25
.
Na concepção da historiadora, a diferença existente entre o TBC e o TMDC, é
que esse último tem uma insistência no caráter social do teatro. Tanto é assim, que o
programa do primeiro espetáculo de estréia apresenta explicitamente o fundamento a ser
perseguido pela Companhia: “fazer um teatro de nível artístico destinado ao povo (...)
levar ao povo um teatro de inteligência, beleza e cultura
26
”.
Nesse sentido, a primeira produção ocorrida no palco do TMDC foi O Canto da
Cotovia, de Jean Anouilh. À luz das reflexões de Tânia Brandão, o espetáculo foi um
sucesso e a crítica foi essencialmente simpática, promovendo restrições de pequeno
24
SILVA, Tânia B. da. Op,Cit.
25
Idem, p. 240-242.
26
Idem, p. 240.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
68
alcance. Nas palavras de Sérgio Brito, o espetáculo foi considerado ao nível dos
melhores do TBC, ou melhor, o TBC raramente fez coisa assim. Para Gianni Ratto, a
estréia provocou um choque com o TBC, pois, assumidamente, o TMDC estava
ingressando no território do inimigo, porém, com armas afiadas e sofisticadas - uma
concepção de elenco mais moderna, um palco tecnicamente melhor e um diretor-
cenógrafo de alto gabarito
27
.
Mas o palco do Teatro Maria Della Costa, não contou apenas com o brilho do
espetáculo O Canto da Cotovia. Várias outras apresentações foram realizadas, entre
elas, Mirandolina de Carlo Goldoni, Com a Pulga Atrás da Orelha, de George Feydeau,
A Ilha dos Papagaios, de Sérgio Tófano, Moral em Concordata de Abílio Pereira de
Almeida, Gimba Presidente dos Valentes, de Gianfrancesco Guarnieri.
Em 1955, o TMDC mobiliza-se, para levar ao público um importante espetáculo,
A Moratória, de Jorge Andrade. O texto foi considerado pela crítica um forte elemento
de renovação da arte dramática no Brasil. Além da criativa e ousada direção de Gianni
Ratto, ocorria ainda a valorização de um dramaturgo nacional afinado dentro da
situação histórica e estética da poesia dramática.
Em 1956, o cenário paulista ganha uma outra casa de espetáculo: o Teatro Bela
Vista, de propriedade dos atores Nydia Lícia e Sérgio Cardoso. As instalações da sede
eram bastante estruturadas, contando com 662 lugares, galerias de arte e um amplo
palco.
O espetáculo de estréia da nova casa de teatro foi Hamlet, de W. Shakespeare,
dirigido por Sérgio Cardoso. Para o meio teatral a apresentação foi muito bem sucedida,
recebendo críticas positivas, que recaíram principalmente sobre a produção e a atuação
de Sérgio Cardoso, que nesse momento despontava não só como um dos grandes atores
brasileiros, mas também como um respeitado diretor de espetáculos:
Uma estréia como a de ontem envolve uma soma de trabalho que as pessoas
estranhas ao teatro jamais serão capazes de avaliar: numa só noite
inaugurava-se uma peça, uma nova companhia e um teatro (...) Sérgio
Cardoso, a exemplo de seus colegas de geração, fez tudo que os mais velhos
não puderam ou não souberam fazer: construiu um teatro, criou uma
companhia, partiu do zero, de amadores, de estudantes de arte dramática e
lançou-se com a maior coragem na aventura do grande repertório do teatro
universal de todos os tempos. É o primeiro ator-encenador brasileiro, da
27
Idem, p. 245, 246, 248.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
69
geração mais nova, a se fixar permanentemente num teatro na qualidade de
empresário
28
.
Depois do sucesso de Hamlet, vários espetáculos povoaram o palco do Teatro
Bela Vista. Entre tantos destacam-se Quando as Paredes Falam, de Ferenc Molnár; Nu
com Violino, de Noel Coward; Oração para uma Negra de Faulkner-Camus; de Repente
no Verão Passado, de Tennessee Williams; Esta Noite Improvisamos, de Pirandello.
Concomitante à apresentação de textos estrangeiros, a dramaturgia nacional também
fez-se presente e vários textos nacionais entraram em cena, fazendo com que o público
conhecesse cada vez mais o teatro brasileiro.
Um dos espetáculos nacionais mais expressivos ocorreu em 1957, com um texto
de Abílio Pereira de Almeida, O Comício. Segundo Sábato Magaldi, o espetáculo foi
montado às vésperas do pleito municipal e obteve um grande sucesso de público,
tornando-se a produção de maior êxito comercial até o momento
29
. Depois disso, foi
apresentado um texto de Ariano Suassuna, O Casamento Suspeito, e ainda Chá e
Simpatia, Quarto de Despejo, de Edy Lima (uma adaptação do Diário de Carolina de
Jesus).
É impossível pensar a construção do teatro moderno nacional sem considerar o
trabalho e a dedicação dos diretores do Teatro Bela Vista. Nydia Lícia e Sérgio Cardoso
sempre conduziram seus trabalhos com grandes dificuldades financeiras, mas mesmo
assim, deram ao teatro brasileiro novas formas de atuação cênica, novos gêneros de
dramaturgia. Tanto é assim que, ainda em 1966, Lícia, auxiliada por Líbero Miguel, cria
um novo departamento em sua companhia o Teatro do Jovem Independente - que
tinha por princípio estabelecer um diálogo com a juventude, não só através de textos,
mas fazendo uso expressivo da música. Dessa iniciativa, nomes importantes viriam a
fazer carreira na Música Popular Brasileira, como Milton Nascimento, Silvinha Góes,
Osmar Prado e César Roldão Vieira
30
.
É também fruto do trabalho de Nydia Lícia a fundação do primeiro teatro infantil
permanente da cidade de São Paulo. A sede se localizava à avenida Domingos de
Morais, uma ampla sala com novecentos lugares e um palco cujo tamanho era bastante
expressivo. Essencialmente, o Teatro Infantil Nydia Lícia procurava oferecer ao seu
público espetáculos de alto nível artístico e precisa orientação pedagógica.
28
MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo. São Paulo: Ed.
Senac, 2000, p. 252.
29
Idem, p. 253.
30
Idem, p. 255.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
70
Outra importante organização de teatro a considerar nessa época, é a Companhia
Tonia-Celi-Autran, que, embora escolhesse a cidade do Rio de Janeiro para sede oficial
da companhia, apresentou espetáculos nas principais cidades brasileira e cujos
integrantes eram na maioria ligados ao desenvolvimento do teatro paulista. A direção
artística dessa companhia ficou a cargo de um dos nomes mais expressivos do Teatro
Brasileiro de Comédia, o diretor e cenógrafo Adolfo Celi que, justificou a criação do
novo organismo teatral pela necessidade de colaborar para o desenvolvimento da
dramaturgia nacional:
Nossa decisão foi fruto da vontade de criação de um organismo novo, ágil e
correto, que pudesse ter fé nos próprios ideais de elevação do padrão do
espetáculo teatral e, ao mesmo tempo, contribuísse para a divulgação cultural
no interior do país, com espetáculos do mesmo nível das capitais. Julgamos que
o nosso propósito de criação de outro organismo teatral, fosse qual fosse o
resultado, não poderia senão colaborar para a melhoria do espetáculo
nacional, uma vez que se conserva o nível de repertório de uma apurada forma
cênica interpretativa
31
.
A conquista do público e a calorosa acolhida da crítica fez com que a CTCA
iniciasse a primeira e bem sucedida temporada na cidade São Paulo. O primeiro
espetáculo foi Otelo, de Shakespeare, que estreou no Teatro Santana. Em seguida
vieram à cena textos de Carlo Goldoni, A Viúva Astuciosa, e Sartre, Entre Quatro
Paredes. Nessa época, celebra-se o sucesso nos palcos de Tônia Carrero e Paulo Autran,
que arrebataram uma infinidade de prêmios. A segunda temporada na cidade de São
Paulo ocorreu em 1960, quando a Companhia encenou o texto Seis Personagens à
Procura de Autor, no Teatro Bela Vista. Em seguida o texto Calúnia de Lilian Hellman
que, segundo Magaldi foi um espetáculo salvo pelo primoroso exercício de verdade
cênica: entrosamento e estabilidade do elenco, exercícios contínuos e eficiente forma de
representação
32
.
Mas é em 1953 que o cenário cultural paulista se modifica substancialmente com
a chegada da Companhia de Teatro Arena de São Paulo, fundada por jovens formados
na primeira turma da Escola de Arte Dramática (EAD). Essa nova companhia teatral
nasce com uma proposta de representação inovadora, a arena, que possibilitava montar
espetáculos sem grandes custos financeiros e com um mínimo de recursos cênicos.
Precisamente, essa nova concepção de palco veio ao encontro das necessidades do
31
Idem, p. 256.
32
Idem, p. 275.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
71
grupo, além de ser uma prática criativa, permitia ainda, um contato próximo com o
público, possibilitando também gastos irrisórios para uma Companhia que já nascia
desprovida de recursos
33
.
Nas palavras de José Renato primeiro diretor do grupo - o que a Companhia
queria naquele momento era uma “dramaturgia nacional”, que valorizasse o homem
brasileiro, que tratasse da realidade social e política em que o País estava vivendo:
era uma gente que fosse para o teatro debater o Homem, debater os problemas
do Homem, sentir a essência dos problemas que estavam sendo levantados nos
espetáculos. E isso a gente pensava que fosse a classe média (...) estudantes,
enfim, operários mais especializados, industriais mesmo, bancários
34
.
Contudo, é importante ponderar que o projeto político do Arena foi construído a
longo prazo, levando em conta as necessidades do grupo e as condições históricas do
momento. Tanto é assim que o início de suas atividades é marcado por grandes
indefinições e questões como escolha do público, definição do conceito de classe,
repertório dos espetáculos ainda não faziam parte do rol de preocupações da
Companhia, que acabava de se instalar em São Paulo. Ao tomar um papel social e
político mais definido, o Arena leva aos palcos grandes espetáculos. Um dos muitos
momentos efervescentes de criação artística do grupo foi a realização de Eles Não Usam
Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, dirigida por José Renato em 1958. A peça
apresenta temas latentes da atualidade, a vida nos morros do Rio de Janeiro e a greve de
operários. A partir de 1964, a Companhia torna-se um dos mais importantes símbolos de
resistência do Regime Militar, produzindo peças em sintonia com as condições políticas
do momento, como Arena Conta Zumbi (1965); Arena Conta Tiradentes (1967) e Arena
Conta Bolivar (1970).
Concomitante ao sucesso de Black-Tie, entrava em cena uma outra companhia
teatral de grande importância no interior da História do Teatro Brasileiro, o Teatro
Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. O grupo nasce nas arcadas da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Em 1958, um grupo de
33
José Renato foi um dos grandes responsáveis pela realização de espetáculos em Arena no Brasil. Ainda
aluno da Escola de Arte Dramática, recomendou-lhe o Professor Décio de Almeida Prado a leitura de
Margo Jones, Theatre-in-the-Round”, autor que fez experiências interessantes sobre a utilização do
palco em arena na cidade de Dallas, nos Estados Unidos. As primeiras encenações ocorridas em palco de
arena ocorreram em 1953, no Museu de Arte. São elas: “Esta Noite é Nossa”, de Stafford Dickens, “O
Demorado Adeus” de Tennessee Williams, ambas dirigidas por José Renato, e “Judas em Sábado de
Aleluia”, de Martins Pena, sob a direção de Sérgio Brito.
34
ROUX, Richard. Interview d’ José Renato. In: Le Theatre de Arena (SP 1953-1977) - Du “theâtre en
rond” au “theâtre populaire”, Provence: Université de Provence, 1991, p. 629.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
72
estudantes, entre eles o próprio José Celso, Carlos Queiroz Telles e Hamir Haddad,
realizou a apresentação cênica de duas peças: Vento Forte Para Papagaio Subir e A
Ponte. Era o início da trajetória de um dos grupos teatrais mais atuantes e ousados da
década de 1960.
Mesmo sendo ligado à esquerda, o Oficina assumia pressupostos políticos e
estéticos bastante diferentes daqueles que até então eram divulgados pelo Arena: além
da veemente negação à moral burguesa e à Ditadura Militar, o grupo ainda tecia duras
críticas à postura engajada e à construção da resistência democrática, realizada por
diferentes setores artísticos, especialmente o teatro. Sendo assim, a intenção do Oficina
era a de chocar o espectador, colocá-lo em seu estado original, cara a cara com as suas
mazelas, com as suas dificuldades, enfim com sua realidade política e social. Nas
palavras de José Celso, o importante era:
colocar o público em termos de nudez absoluta, sem defesa, incitá-lo à criação
de um caminho novo, inédito fora de todos os oportunismos até então
estabelecidos (...) Não se trata mais proselitismo, mas de provocação. Cada
vez mais essa classe média(...) estará mais petrificada e no teatro ela tem que
degelar (...) O sentido da eficácia do teatro hoje é o sentido da guerrilha
teatral
35
.
A trajetória do Oficina foi marcada por grandes embates com censura. As
releituras de vários textos teatrais, revelava a criatividade, a ousadia estética e política
do grupo. Nomes importantes do teatro brasileiro passaram pelo Oficina, entre eles
Renato Borghi, Fernando Peixoto, Etty Fraser, Carlos Queiroz Telles, Amir Haddad,
Antônio Abujamra e Ítala Nandi.
Dois espetáculos teatrais realizados no palco do Oficina marcaram a trajetória
artística do grupo e a história do teatro brasileiro. São eles: “O Rei da Vela”, de Oswald
de Andrade, apresentado em 1967, e Roda Viva, de Chico Buarque, em 1968. Mas, ao
lado desses, ainda existiram importantes produções, como Fogo Frio; A Vida Impressa
em Dolar; Pequenos Burgueses; Galileu Galilei, Um Bonde Chamado Desejo, As
Moscas, Andorra, Os Inimigos e outros mais. O Oficina deixou de existir no ano de
1970, após a encenação de As Três Irmãs, do dramaturgo Tchecov. O Oficina existe
hoje somente como espaço para apresentações, mas ainda continua sendo um espaço de
luta. Um de seus maiores expoentes, José Celso Martinêz trava na justiça uma briga
com um forte grupo televisivo, o SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), de propriedade
35
HOLLANDA, Heloisa Buarque. Cultura e Participação nos Anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.
63.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
73
do apresentador e empresário Silvio Santos, que tenta apropriar-se do espaço para a
construção de uma megashopping
36
.
É nesse contexto rico e diversificado de produção teatral que os dramaturgos
Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Jorge Andrade estiveram presentes, criando e
estruturando a base de uma dramaturgia nacional, estudando e escrevendo peças
essencialmente modernas, colocando nos palcos novos temas e dando vida a novas e
ousadas cenas dramáticas. Mas, sobretudo, foi esse o meio teatral que possibilitou aos
dramaturgos a construção de peças em sintonia com a realidade brasileira, que falassem
ao público sobre seus problemas cotidianos, sobre os impasses da conjuntura social e
política que sociedade contemporânea enfrentava.
Nesse sentido, Arena Conta Tiradentes e As Confrarias não apresentam somente
a singularidade de enredos, essencialmente elas estão inseridas em uma mesma época de
produção teatral, em uma mesma situação política. Portanto, são peças que trazem
leituras sobre um mesmo momento histórico, a década de 1960. Posto isso, torna-se
necessário conhecer o contexto político, social e cultural em que se deu a produção
desses textos.
O Golpe de 1964: A Construção da Arte de Resistência e o Contexto da Produção
de Arena Conta Tiradentes e As Confrarias
Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64.Além
da tortura, de todos os horrores de que eu poderia
falar, houve um emburrecimento do país. A
perspectiva do país foi dissipada pelo Golpe. (Chico
Buarque 1999)
Resgatar os anos de 1960 é realizar um exercício difícil, mas ao mesmo tempo
instigante e prazeroso. As dificuldades estão presentes nas múltiplas definições que é
possível dar a esse período. O prazer, sem sombra de dúvida, consiste no contato com a
36
Ver: Revista Caros Amigos. São Paulo: Ed. Casa Amarela, ano IV, novembro de 2000.
Para uma análise mais sistematizada sobre a trajetória artística do Oficina frente o cenário político do
Brasil na década de 60, consultar:
NANDI, Ítala. Teatro Oficina: onde a arte não dormia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
RIBEIRO, Nádia Cristina. Galileu Galilei e Nas Selvas da Cidade: Resposta do Teatro Oficina às
Questões Políticas e Sociais no Brasil nos Anos 60. In: História e Cultura: Espaços Plurais. Uberlândia:
Asppectus, 2002, p. 85-100.
SILVA, Armando Sérgio da. Oficina: Do teatro ao te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Revista Dionysos Teatro oficina (org. Fernando Peixoto). nº 26; janeiro, MEC-SEC-SNT, Brasília:
FUNDACEN, 1982.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
74
vasta e bonita produção artística e cultural construída no interior dos embates políticos
da época.
No plano internacional, a década de 1960 foi um marco. Quem não conhece as
primeiras movimentações da juventude norte-americana, que contestavam a sociedade
estabelecida e os padrões de vida considerados “normais”. Ansiosas por mudanças na
estrutura da sociedade, desenvolveu um estilo próprio de vida, criando o movimento da
contracultura
37
, que, em sua essência, abarca vários segmentos, como o movimento
hippie, as artes plásticas, o cinema, o teatro e o rock, este último uma das maiores
expressões da época.
Na Europa, os anos 1960 foram marcados por grandes manifestações estudantis,
que exigiam mudanças no sistema repressivo, autoritário e nos padrões culturais
fortemente estabelecidos na sociedade. Um dos acontecimentos mais expressivos foi o
“maio de 68”, ocorrido na França. Embora em primeira instância visasse apenas a uma
contestação à reforma universitária pretendida pelo governo francês, ao ganhar
notoriedade e maior forma política tornou-se um dos maiores movimentos
políticos/culturais da época. Os coloridos muros de Paris exibiam grafites com
expressões de ordem, mobilizando multidões de jovens e intelectuais que exigiam
mudanças de comportamento, anunciando a chegada de uma nova consciência
38
.
Ao mesmo tempo, o movimento hippie fervilhava, colocando em cheque os
valores da sociedade ocidental, suas armas contra a violência. Era a liberdade de
comportamento e sensações: o amor livre, o uso de drogas como busca de novas
sensibilidades e formas de encarar o mundo, além da preferência por utilizar expressões
artísticas em detrimento dos tradicionais discursos políticos
39
.
Contudo, pode-se dizer que a década de 1960, tanto na Europa quanto nos
Estados Unidos da América, tornou-se um dos momentos mais efervescentes e
turbulentos da História Política e Cultural do Século XX. A ordem até então
estabelecida fez irromper diferentes movimentos de protesto, resistência e mobilização
37
Sobre o inquietante movimento de contracultura nos anos de 1960 consultar: PEREIRA, Carlos
Alberto. O Que é Contracultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.
38
Algumas reflexões sobre esse período na Europa podem ser encontrados em:
MATTOS, Olgária C.F. Paris1968 - As Barricadas do Desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981.
COHN-BENDIT, Daniel. Era Uma Vez. In: O Grande Bazar. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 25-54.
39
O panorama político e cultural que tanto marcaram o Brasil e o mundo na década de 60 pode ser
revisitado nas obras:
HOLLANDA, Heloisa Buarque. Cultura e Participação no Anos 60. Op. Cit.
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. São Paulo: Record, 2000.
CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da Rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: SENAC, 2001.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
75
política em todo o planeta. Exemplo maior disso foram as passeatas, shows e os
protestos pacifistas que marcaram a contestação da juventude contra a Guerra do Vietnã
(este, um país pobre, subdesenvolvido, sendo destruído pela maior potência mundial, os
Estados Unidos).
Na América, além dos fatores internacionais, esse período foi marcado por
regimes autoritários e um forte imperialismo norte-americano. No Brasil, especialmente,
os acontecimentos que levaram ao Golpe Militar na noite de 31 março de 1964
trouxeram surpresa e perplexidade a toda a sociedade, que, a partir de então, se vê
diante de uma forma política fundamentada exclusivamente na violência e na falta de
participação popular. Violência entendida no sentido mais amplo do termo, não apenas
física, mas castradora, retaliadora das manifestações coletivas e individuais da
expressão de liberdade.
O País, que antes de 1964 era reconhecido como “inteligente”, “livre” e
contrário ao imperialismo, surpreende-se com a chegada de atitudes arbitrárias dos
militares. A instauração da ditadura não interrompeu apenas o governo Goulart, mas
junto com ele foram embora as ilusões de desenvolvimento inauguradas pelas Reformas
de Base em 1962. Nessa época o debate político estava centrado em temas que
atendessem as necessidades de um desenvolvimento nacional essencialmente voltado
para os interesses das massas populares: “reforma agrária, imperialismo, salário
mínimo ou voto do analfabeto, e mal ou bem resumiria, não a experiência média do
cidadão, mas a experiência organizada dos sindicatos, operários e rurais, das
associações patronais ou estudantis, da pequena burguesia mobilizada, etc
40
”.
O governo do Marechal Castelo Branco inviabilizou esse movimento, colocando
na sociedade as formas mais tradicionais e arcaicas de poder. Aos poucos o Regime
Militar foi-se firmando, tomando corpo e criando suas feições mais acabadas, ao lado da
“modernização da economia”, que se integrava à ação imperialista. O regime completa
sua estabilidade centralizando o poder político :
No dia 17 de julho, completando essa etapa de redefinição da postura de
Castelo, os militares impuseram ao Congresso uma emenda constitucional
prorrogando o mandado do presidente por 14 meses (até 15 de março de 1967)
e adiando a eleição presidencial para novembro de 1966. (...) Ao ser derrotado
nas eleições estaduais em Minas Gerais e no antigo estado de Guanabara (...),
o governo editou o Ato Institucional número 2 (...) acabando com todos os
partidos políticos e dando poderes ao Executivo para fechar o Congresso
Nacional quando bem entendesse. O AI-2 que em sua introdução afirmava
40
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. In: O Pai de Família... São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 22.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
76
“não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará” também tornava
indiretas as eleições presidenciais e estendia aos civis a repressão da Justiça
Militar
41
.
Nessas condições, a institucionalização da censura tornou-se presente na
sociedade. A década de 1960, no Brasil, foi assumidamente marcada pela tortura aos
presos políticos, pela repressão e pelo clima de terror imposto pelo Estado ditatorial,
que, em nome da Segurança Nacional, combatia a “subversão comunista”
42
. Heloísa
Buarque de Hollanda, ilustra esse cenário, ressaltando que:
repentinamente o Brasil inteligente aparecia tomado por um turbilhão de
preciosidades do pensamento doméstico: o zelo cívico-religioso (...) a ameaça
de padres comunistas e professores ateus, a vigilância moral contra o
indecoroso comportamento “moderno” que, certamente incentivado por
comunistas, corrompia a família, o ufanismo patriótico, lambuzado de céu anil
e mata verdejantes, enfim, todo o repertório ideológico que a classe média, a
caráter, prazerosamente é capaz de ostentar
43
.
As circunstâncias históricas mencionadas até então foram paulatinamente
contestadas pela sociedade, formas diversificadas de resistência se organizaram e
explicitaram seu descontentamento pela maneira como eram conduzidos os assuntos
políticos do País. No campo cultural - especialmente naqueles setores ligados à
esquerda - foi visível o florescimento artístico, que a partir de diferentes linguagens
suscitou efervescentes debates entre arte e política. E, mesmo diante desse cenário
sombrio de repressão e censura:
a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá
para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns
campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia
cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio,
cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às
vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas
proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura
burguesa a esquerda dá o tom
44
.
41
BARROS, Edgar Luiz. Os Governos Militares. São Paulo: Contexto, 1998, p. 27.
42
Sobre os crimes de torturas e repressão exercidas pelos governos militares no Brasil, nas décadas de
60/70, vale destacar a obra Brasil Nunca Mais, organizada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns Arcebispo
Metropolitano da cidade de São Paulo. A obra estuda os crimes de repressão e tortura, a partir dos
documentos produzidos pelas próprias autoridades - os processos políticos - que tramitaram pela justiça
militar brasileira, no período de 1964 a 1979, especialmente os processos que chegaram ao Superior
Tribunal Militar. Os depoimentos comovem e chocam o leitor ao exibir com clareza e exatidão as formas
táticas e hábeis de violência exercidas por instituições ligadas ao governo militar.
43
HOLLANDA, Heloisa Buarque. Cultura e Participação no Anos 60. Op. Cit, p. 13.
44
SCHWARZ, Roberto. Op. Cit., p.07.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
77
Mesmo diante da rica e diversificada produção cultural e artística da década de
1960, a esquerda passava por momentos difíceis. No interior do PCB, abriram-se
brechas para repensar os desacertos e criar novos posicionamentos políticos na busca de
soluções para os problemas inaugurados pelo Golpe. Desde 1964 - data de implantação
do Regime Militar - o Partido vinha perdendo sua hegemonia no pensamento de
esquerda para novas organizações revolucionárias, orientadas pelo Partido Comunista
do Brasil (PC do B) dissidência do PCB. Entre as instituições revolucionárias desse
período destacam-se: Ação Popular (fundada por estudantes católicos e lideres
comunitários cristãos); POR/T (militantes trotskistas do Partido Operário
Revolucionário/Trotskista); POLOP (Organização Revolucionária Marxista-Política
Operária) e outras mais
45
.
Entre os anos de 1966 a 1968, entretanto, o PCB “rachou” verticalmente, sendo
exaustivamente repudiado, criticado e renegado por diversos segmentos da esquerda, em
função de sua tese anunciada publicamente, de uma “frente ampla unida” contra a
Ditadura Militar, envolvendo a participação de setores tradicionais da sociedade, como
o partido político MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e os sindicatos oficiais.
Em 1967, em seu IV Congresso, o PCB, deixava clara a sua posição:
o essencial no momento é estreitar suas ligações com as grandes massas da
cidade e do campo, é ganhá-las para a ação unida contra a ditadura.
Evidentemente, não é chamando-as a empunhar armas que, nas condições
atuais, delas nos aproximaremos. A luta armada só poderá ser, como forma
predominante e decisiva, a combinação de um processo sumamente complexo,
onde se alternam e se conjugam os mais diversos métodos de luta. È necessário
que as massas já estejam dispostas a todos os sacrifícios, de preferência a
continuar no regime que os oprime, para que um partido de vanguarda possa
conclamá-la à ação armada. (...) Na situação atual, nossa principal tarefa
tica consiste em mobilizar, unir e organizar a classe operária e demais forças
patrióticas e democráticas para a luta contra o regime ditatorial, pela sua
derrota e a conquista das liberdades democráticas. (...). Cada vitória, pequena
ou grande, ou mesmo derrota na luta pelas liberdades, incorpora-se à
experiência das massas. É a própria experiência de luta que levará as massas a
avançar em seus objetivos, formar e prestigiar suas organizações e seus líderes,
intervir decisivamente nas ações políticas, que conduzirão à derrota do regime
ditatorial
46
.
45
BARROS, Edgar Luiz. Op. cit. p. 47.
46
IV Congresso do P.C.B. (dezembro de 1967). Citado por Rosangela Patriota, Op. Cit., p. 120-121.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
78
Formadas as dissidências no interior do PCB, enquanto muitos optavam pela
“guerra efetiva” contra a Ditadura ação guerrilheira
47
- outros, especialmente artistas
e intelectuais, apontavam caminhos a partir da função social e política da arte,
enfatizando a necessidade de uma reflexão histórica atenta sobre o período em questão e
a instauração imediata de uma resistência organizada.
Nessas circunstâncias, o teatro foi um dos instrumentos que mais contribuiu para
esse debate, intervindo no processo de conscientização da sociedade, viabilizando a
resistência ao Estado autoritário implantado pelo Golpe e tentando resgatar valores
perdidos: “liberdade”, “justiça” “participação” e “democracia”. Muitos segmentos
artísticos optaram pela “resistência democrática”, como “o grupo Opinião. Filmes
como Desafio (1965, Paulo César Saraceni) e Terra em Transe (1967, Gláuber
Rocha)
48
”.
Na confluência de contestações provocadas pelo Golpe, torna-se importante
destacar a realização do Show Opinião
49
- primeira manifestação concreta de resistência
ao autoritarismo e à censura já explicitadas no início do Regime Militar. Para o meio
teatral, o Show foi “um protesto suprindo uma falta de algo: a possibilidade de dizer.
Um protesto sim, ainda que sob a forma espontânea, simples e improvisada de uma
47
Os impasses, os desacordos e o insucesso dos segmentos que optaram pela luta armada foram
amplamente tratados pelo historiador Alcides Freire Ramos na valiosa obra Canibalismo dos Fracos:
Cinema e História do Brasil. Bauru (SP): EDUSC, 2002.
48
PATRIOTA, Rosangela. Op. Cit. p. 119.
49
O Show Opinião estreou no dia 11 de Dezembro de 1964, na cidade do Rio de Janeiro, no teatro do
Shopping Center, da Rua Siqueira Campos. O texto final é do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, Paulo
Pontes e Armando Costa. A direção geral do espetáculo ficou a cargo de Augusto Boal. A direção
musical, de Dori Caymmi. O Show foi realizado em parceria com o Teatro de Arena de São Paulo. Depois
do sucesso do Show Opinião, o grupo em trabalho coletivo realizou grandes produções, formalizando-se
como grupo de teatro, que, por circunstâncias, levava o mesmo nome, Grupo Opinião. O núcleo
permanente do grupo era composto por: Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves,
Ferreira Gullar, Tereza Aragão, Denoy de Oliveira, Pichin Plá.
Entre os diversos espetáculos do Opinião, vale destacar: “Liberdade, liberdade” (Millor Fernandes),“Dr.
Getúlio” (Dias Gomes, Ferreira Gullar), “O Brasil Pede Passagem”(texto coletivo todos os integrantes
do grupo), Show musical “Samba Pede Passagem”, “Se Correr o Bicho Pega se Ficar o Bicho
Come”(Oduvaldo Vianna Filho). Em 1980, o teatro foi vendido, sob a pressão de vários protestos
resumidos nas palavras de um dos grandes expoentes do grupo, João das Neves: “O Opinião é coisa que
não se vende”. KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião. Para Ter Opinião. Rio de Janeiro:
Relume Dumará: Prefeitura, 2001.
Mesmo apresentando uma grande importância no cenário político e cultural do Brasil contemporâneo,
poucos trabalhos se debruçaram sobre a trajetória artística e política do Opinião no “pós-64”. Entre eles
vale destacar:
BOAL, Augusto. Opinião e Zumbi. In: Hamlet e o filho do padeiro memórias imaginadas. Rio de
Janeiro: Record, 2000, p. 221- 235.
KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Op. Cit.
MOSTAÇO Edélcio. O Golpe de 64: Surgem o Opinião e a Arte de Protesto. In: Teatro e Política:
Arena, Oficina e Opinião. (uma interpretação da cultura de esquerda).São Paulo: Proposta Editorial, 1982,
p. 75-88.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
79
Opinião
50
”. Mas, sobretudo, foi um trabalho coletivo de pessoas que, impossibilitadas
de participar, expressar, exercer a sua liberdade de expressão, frente às circunstâncias
políticas do País, encontraram na arte, na música, na literatura, no cinema, no teatro a
maneira engajada de estarem no mundo. Assim, o Show Opinião foi o ponto de encontro
dos ex-membros do CPC da Une, do Teatro de Arena, mostrando que a resistência
contra a ditadura já se organizava depois do susto do Golpe.
Nesse sentido, o Opinião nasce com um caráter definido: denunciar e resistir.
Por isso, procurou buscar com a sociedade um vínculo, uma forma de comunicação que
refletisse junto ao povo seus problemas cotidianos, a realidade social/política/cultural
em que o País estava vivendo. Sendo assim, vários temas foram abordados em seus
palcos, entre eles a favela, os morros do Rio de Janeiro, o problema da terra e da fome
no Nordeste, os retirantes do Norte que se dirigiam para o Centro-Sul, além dos
impasses da produção artística nacional que vivia sob pressões da censura e do mercado.
O Opinião lançou nomes importantes da Música Popular Brasileira, como Nara
Leão, Zé Keti, João do Vale, Maria Betânia, além daqueles que já estavam no circuito
artístico, como Edu Lobo, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo
e outros. O Show apresentou-se bastante inovador, pois além do explícito conteúdo
político, criou novas formas estéticas que influenciaram todo o teatro engajado dos anos
de 1960/1970. Nesse sentido, o Opinião foi fruto de uma mistura de linguagens. No
palco viu-se a música popular brasileira, o teatro, a literatura, o cinema. A sua
realização trouxe a mistura de sons, vozes, linguagens soltas, fragmentadas, sem se
preocupar com a seqüência dos acontecimentos. E, como pondera Maria Helena
Kuhner, essa forma despojada e fragmentada de apresentação do Show não foi ocasional
ou gratuita:
a fragmentação, na linguagem dramática, encena a própria quebra do mundo
visto/vivido, cuja unidade e harmonia se mostra(va)m enganosas. E aí, como
‘não dá para explicar a situação’, o que se pode fazer é ‘um discurso
caleidoscópio multitemático’ (...). Forma adequada a um ‘tempo de
indefinição’, cujo percurso e destino final são ainda obscuros e imprecisos, e
diante do qual só cabem algumas afirmações definidoras, definitivas, radicais
mesmo que aparentemente desconexas entre si(...)
51
.
Sem sombras de dúvida, o Show significou a primeira manifestação de “luta”,
50
KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Op. Cit, p. 46.
51
Idem, p. 65.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
80
daquilo que viria a ser uma das mais fortes batalhas teatrais contra a Ditadura Militar.
Tanto é assim que foi nos palcos do Opinião que a voz suave de Nara Leão lançou a
semente daquilo que mais tarde resultaria nas peças Arena Conta Tiradentes, de
Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, e As Confrarias, de Jorge Andrade.
Procurando mostrar a “dimensão política da opressão” da década de 1960 e ao mesmo
tempo chamando atenção para a “dimensão ética da resistência”, a cantora menciona os
fatos da Inconfidência Mineira:
... que seja conduzido pelas ruas ao lugar da forca e aí morra de morte natural
e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e pregada a um poste alto até
que o tempo a consuma e seu corpo dividido em quartos ...
E a música entra novamente, agora narrando a história de Tiradentes que
lembraria comportamentos bem do momento (1964):
E o Visconde de Barbacena
Soltou os milicos na rua
E mandou sentar a pua
Matar e prender
Matar e prender
Pegar e bater .
52
(Chico de Assis e Ari Toledo)
Contudo, a resistência aos acontecimentos políticos de 1964 não foi preocupação
apenas nos palcos do Opinião, do Arena de São Paulo e do escrito de Jorge Andrade.
Assumidamente o teatro foi uma das manifestações artísticas que mais promoveu
discussões e buscou alternativas para vencer as imposições ditadas pelo Golpe.
Com a instauração da Ditadura Militar em março de 1964, a classe teatral passou
por momentos obscuros. O quadro de atitudes abusivas e repressoras que caracterizou
os aparelhos de censura ligados aos órgãos policiais do governo impediu a realização de
inúmeras peças nacionais e estrangeiras nos palcos brasileiros. Dramaturgos, atores e
diretores foram arbitrariamente proibidos, mutilados e impedidos de realizarem suas
atividades artísticas.
Se nos primeiros tempos da Ditadura Militar a censura deu seus primeiros
passos, ainda que de forma bastante “tímida” e “ponderada”, interditando os textos
Electra, de Sófocles, e o Berço de Um Herói, de Dias Gomes, nos anos subseqüentes ela
realmente mostrou que estava viva, disposta a atuar e enfrentar a arte teatral. Ainda em
52
Idem, p. 63.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
81
1965, a notícia de que o General Riograndino Kruel, então chefe do Departamento
Federal de Segurança Pública, teria emitido uma circular recomendando a suspensão do
espetáculo Liberdade, Liberdade levou os profissionais do teatro a se juntarem com
músicos, escritores e artistas plásticos, que, reunidos em uma assembléia no Teatro
Santa Rosa, redigiram uma “carta aberta” ao Marechal Castelo Branco, com assinatura
de 1500 pessoas ligadas direta ou indiretamente à classe artística do País. O “Manifesto
dos 1500” foi entendido como um repúdio às atitudes dos órgãos de censura, que não
permitiam a liberdade de criação e o direito de opinião de artistas e intelectuais na
sociedade:
Os intelectuais e artistas brasileiros, unidos, decidiram manifestar a V. Excia.
Sua apreensão em face do quadro de ameaças que se vem armando em torno
das atividades culturais no Brasil. (...) Livros e revistas são apreendidos em
diferentes pontos do País; autoridades diplomáticas dificultam a apresentação,
em festivais internacionais, de filmes brasileiros que retratam aspectos de
nossa realidade; escritores, professores, cientistas, artistas, editores e
jornalistas são presos e perseguidos em virtude de suas atividades
profissionais; espetáculos teatrais são mutilados ou ameaçados de proibição,
depois de liberados pela censura - fatos que marcam invariavelmente o início
de terríveis épocas de negação do homem. (...) Sr. Presidente: os intelectuais
brasileiros temem pelo destino da arte e da cultura em nossa pátria, neste
instante ameaçadas no que têm de fundamental: a liberdade. Estamos
conscientes do papel que nos cabe na sociedade brasileira e da
responsabilidade que temos na representação dos sentimentos mais autênticos
de nosso povo. Como desempenhar esse papel e exercer essa responsabilidade,
se o direito de opinião e a divergência democrática passam a ser encarados
como delito e a criação artística como ameaça ao regime? A liberdade de
expressão e amplo debate das idéias, a crítica dos costumes sociais, estão na
base da mesma atividade criadora e são inalienáveis a uma sociedade de
homens livres
53
.
Ao contrário do que se esperava, nenhuma atitude foi tomada pelo Presidente da
República ou por qualquer outra autoridade do governo, no sentido de pôr um fim às
violências apontadas no documento. Diferentemente, novas atitudes repressoras foram
cometidas: prisões de estudantes, artistas e novos golpes à cultura, especialmente ao
teatro. No ano de 1967, inúmeras peças sofreram cortes ou tiveram problemas com a
censura, entre elas Dois Perdidos; Navalha na Carne; Volta ao Lar e o Rei da Vela.
Outros textos como O Homem e o Cavalo de Oswald de Andrade, e Os Cincerros, de
César Vieira, foram expressamente proibidos.
53
O Teatro e a Luta pela Liberdade. In: Revista da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, ano IV - Caderno Especial de Teatro nº 02 Julho, 1968, p. 255.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
82
O ano de 1968 é considerado por alguns setores da sociedade como um marco na
história do Regime Militar, o ano em que foi instaurado um “golpe” dentro do Golpe. A
chegada, em 13 de dezembro, do Ato Institucional nº 05 assusta artistas, intelectuais,
estudantes e todos que de diferentes formas mobilizavam-se para as questões políticas
do País. Nas palavras de Yan Michalski, esse foi “o ano mais trágico de toda a história
do teatro brasileiro
54
”, quando a censura entrou como protagonista da cena,
desencadeando uma luta aberta contra a atividade cênica brasileira. Em casos extremos,
o uso da repressão e violência física era notório.
Em fevereiro do mesmo ano, o público é surpreendido com a proibição da peça
Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, em Brasília. Nessa interdição, a
atriz Maria Fernanda sofreu uma súbita punição da Censura, que tentou intimidá-la
suspendendo suas atividades profissionais por 30 dias. O texto O Poder Negro, do
dramaturgo norte-americano Leroy Jones¸ foi arbitrariamente proibido pela Censura
Federal, depois de três meses de avaliação e reavaliação pelos censores, que mostravam
grande disposição em averiguar a fidelidade da tradução do texto original. A peça de
Jorge Andrade, Senhora na Bôca do Lixo, que deveria ser encenada por Eva Tudor no
Rio de Janeiro, também foi censurada próximo à data de estréia. A interdição total do
texto ocorreu sob alegação de que ele era um atentado “contra os costumes, a religião e
as Forças Armadas”. O espanto foi geral, uma vez que Senhora na Boca do Lixo foi
apresentada nos palcos de Portugal, conseguindo passar pela Censura da ditadura
salazarista sem nenhum corte do seu texto original
55
.
Em sinal de protesto, a classe teatral organizou-se e decretou uma greve com
duração de três dias. Nos dias 11, 12,13 de fevereiro de 1968, todos os espetáculos que
seriam realizados nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo foram cancelados,
mobilizando toda a classe artística em torno de reivindicações que visavam desde a
liberação de peças e filmes interditados até a reformulação da Censura de acordo com os
princípios da liberdade de criação artística. A repercussão da greve preocupou as
autoridades, que imediatamente instituíram no âmbito do Ministério da Justiça uma
equipe integrada por representantes da classe teatral e do Ministério, para elaborar um
ante-projeto de uma nova lei sobre censura. Ao organizar a comissão que daria início
54
MISHALSKI, Yan. Teatro Sob Pressão uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1985, p. 33.
55
O Teatro e a Luta pela Liberdade. Op. Cit., p. 265-266.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
83
aos trabalhos, o ministro da Justiça Gama e Silva tranqüilizava e prometia aos artistas:
“o teatro é livre, a censura não incomodará mais
56
.
No entanto, ao avaliar os impasses da produção teatral no ano de 1968 frente às
imposições da censura, o crítico teatral Yan Michalski, ressalta:
a promessa soará logo como sinistra e cínica piada, pois as proibições, cortes e
toda espécie de chicanas e agressões não param de intensificar-se. O
presidente Costa e Silva aparece na TV para comentar, indignado, a
“imoralidade” da peça Santidade, de José Vicente, que acaba de ser proibida;
e distribui exemplares da peça aos donos dos principais jornais, pedindo que se
manifestem a respeito. Uma ampla campanha de difamação do teatro é
desencadeada, insistindo na imoralidade” dos espetáculos (...). Aos poucos,
começa a configurar-se também uma ofensiva dos órgãos paramilitares contra
o teatro: multiplicam-se as ameaças, as condições de trabalho tornam-se
muitas vezes inseguras. A tensão chega ao auge em julho, quando o Comando
de Caça aos Comunistas invade em São Paulo o teatro onde está sendo
apresentada Roda Viva, de Chico Buarque, espanca e maltrata vários membros
do elenco e destrói o cenário e o equipamento técnico. (...) Artistas em posição
de liderança na luta contra os abusos repressivos enfrentam represálias e
humilhações: Flávio Rangel, por exemplo é detido na rua e tem sua cabeça
raspada pela polícia, enquanto Cacilda Becker é demitida do seu emprego na
TV Bandeirantes por pressões dos órgãos de segurança
57
.
Nessas circunstâncias, o teatro se abate diante dos ditames da repreensão
institucionalizada pelo Governo: “no Rio, já no fim de 1968, a atividade havia entrado
em crise, diminuindo o ritmo dos lançamentos e o número dos espetáculos em cartaz.
Em (...) 1969, essa crise acelera drasticamente: em fevereiro, só estavam em cartaz três
produções cariocas, e mais Galileu Galilei do Oficina, importado de São Paulo
58
”.
Nessa época o número de peças retiradas dos palcos pela Censura Federal ainda é
grande, porém nesse momento soma-se um outro problema: aumentavam as
dificuldades em acompanhar todos os acontecimentos no setor artístico, uma vez que,
depois de 1968 a imprensa, que até então noticiava quase tudo, passou a ser
severamente vigiada.
Nesse cenário desanimador, Galileu Galilei, que estava em cartaz no Rio, volta
para uma bonita e bem sucedida carreira na cidade de São Paulo. Ainda nessa cidade, o
Teatro Oficina de José Celso Martinêz coloca nos palcos outra peça de Brecht, Na Selva
da Cidades. Ao lado do Oficina, o grupo carioca Comunidade produziu um
emocionante espetáculo, Construção, dirigido por Amir Haddad. Outras importantes
56
MICHALSKI, Yan. Op. Cit. p. 34.
57
Idem, p. 34.
58
Idem, p. 38.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
84
estréias ocorreram no teatro paulista: Fala Baixo Se Não Eu Grito (Leilah Assunção); À
Flor da Pele (Consuelo de Castro); As Moças (Isabel Câmara); Esperando Godot
(Beckett) e Hamlet (Shakeaspeare) e, no Rio de Janeiro, destaca-se Antígona (Sófocles),
encenada pelo grupo Opinião.
Em 1969, segundo MICHALSKI, o teatro estava em pânico. Apreensão e medo
eram as palavras que melhor caracterizavam a classe de profissionais ligados à
atividade. A campanha militar duramente desfechada contra o teatro ao longo dos anos
de 1960 repercutia na sociedade, “fazendo-o aparecer perante a opinião pública como
um antro de perversões, violência e subversão: o mais prudente era o potencial
espectador passar longe das bilheterias
59
”. Depois da instauração do AI-5, aumenta o
cerco sobre as produções de arte, e a Música Popular Brasileira, o Cinema Novo, as
Artes Plásticas e principalmente o Teatro tornaram-se vítimas das arbitrariedades, da
falta de critérios e do reacionarismo dos censores intimamente ligados a órgãos policiais
do Regime
60
.
Contudo, nota-se que, se por um lado a censura foi capaz de mutilar criações
artísticas, de calar e perseguir vozes, provocando nos setores comprometidos com a arte,
especialmente o teatro, a indagação de: “O que fazer”? “Como reagir”?, por outro, foi
a responsável por despertar nos dramaturgos, atores e diretores uma compreensão da
responsabilidade histórica do ator e da função social e política do teatro.
Em meio à vasta e rica produção cultural, que tinha por princípio a volta do
Estado de direito por via pacífica, pela ação política da organização das massas, um
59
Idem.
60
As atitudes imprevisíveis da Censura ditatorial podem ser constatadas de diversas maneiras. Uma delas
refere-se à posição do general Riograndino Kruel, que em 1968, por ocasião da tentativa de liberação do
texto de Dias Gomes, O Berço do Herói(1965), pelo produtor cinematográfico Herbert Richers, que
pretendia reproduzir a peça para o cinema, respondeu: “diga ao Dias Gomes que tire o cavalinho da
chuva, enquanto nós (militares) formos governo esta peça não será liberada nem para o cinema nem
para o teatro”. Outra atitude patética, que revela a extrema falta de formação cultural dos militares,
refere-se à ação de um coronel no Estado da Bahia, que, ao exercer sua função de censor, explicitou a um
grupo de amadores o conceito de teatro, que povoava o pensamento dos militares: “teatro é subversão,
precisa acabar” e, ainda é “coisa de veado ou de comunista”.
Outro momento elucidativo da incoerência dos censores militares refere-se à prisão da atriz Isolda Cresta,
antes do espetáculo Electra. Ao passar pelo constrangimento de ser interrogada nas instalações do DOPS,
um agente queria saber se o autor da peça era soviético. A atriz surpreendeu-o, ao lhe informar que
Sófocles era grego e vivera antes de Cristo. Essa mesma arbitrariedade foi revelada com outra atriz,
Glauce Rocha, no departamento da Divisão da Polícia Política: “AGENTE: Você conhece o autor dessa
peça “Electra”? GLAUCE: Conheço, é Sófocles. AGENTE: E você sabe se ele é subversivo? GLAUCE:
Não, não sei porque ele viveu muito antes de Cristo ...”. Ver: O Teatro e a Luta pela Liberdade. Op. Cit.
Não podemos deixar de mencionar ainda o recado do General Juvêncio Façanha, endereçados aos homens
de cinema e teatro. Suas declarações entraram para a História como sinônimo de hostilidade e repressão
de policiais censores à criação teatral: “ou vocês mudam, ou acabam (...) a classe teatral só tem
intelectualóides, pés sujos, desvairados e vagabundas que entendem de tudo, menos de teatro”.
MICHALSKI, Yan. O Palco Amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir Editora Limitada, 1979, p. 24.
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
85
grande dramaturgo brasileiro destacou-se: Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha, como era
chamado por todos do meio teatral. Ao resgatar a vida artística e política desse
dramaturgo, Rosangela Patriota destaca sua preocupação em defender a importância do
intelectual e de seu trabalho no interior da luta política, enfatizando a importância da
reflexão, do debate e, essencialmente, da necessidade de resistência por diferentes
setores da sociedade.
Ao manifestar publicamente concordâncias com as táticas políticas do PCB,
Vianna foi duramente criticado, chegando a ser chamado de reformista por
companheiros do Partido e por segmentos artísticos orientados pela ação da luta
armada. A contribuição e as respostas do dramaturgo frente aos impasses colocados
ocorreram por meio da criação de diversas peças, entre elas Papa Highirte (1968) e
Rasga Coração (1972-1974).
À luz das reflexões de PATRIOTA, a construção de Papa Highirte teceu um
diálogo com a militância em geral com base em duas orientações específicas. A
primeira exaltou a atuação do militante do PCB como a opção correta em face aos
impasses do momento. A segunda realizou uma crítica à prática da luta armada,
avaliada como irracional, inconsciente e inconseqüente no combate à ditadura
61
. Nessas
circunstâncias, a peça de Vianinha permite refletir sobre a postura daqueles que tinham
como única perspectiva política a força guerrilheira para combater os males da
sociedade, identificados no momento como o populismo, os governos militares, a
exploração e a pauperização das sociedades sul-americanas.
Em Rasga Coração, Vianna evidencia mais uma vez suas convicções políticas
alinhadas às proposições do PCB. Certo de que a luta política pela via armada fora uma
escolha equivocada, divorciada do conjunto da sociedade, o dramaturgo coloca em cena
o tema da militância política da década de 1960/1970, realizando um diálogo aberto
com a tradição do marxismo-leninismo, de um lado, e a contracultura de outro
62
. Ao
romper com a unanimidade de interpretações que cercam o texto Rasga Coração,
PATRIOTA afirma que a análise mais significativa do texto foi feita pelo antropólogo
Gilberto Velho, para quem a peça manifesta uma certa perplexidade diante de questões
e comportamentos que até então não eram examinados. Com essa perspectiva, o texto
significou um esforço pioneiro na tentativa de relativizar o monolitismo existencial de
61
PATRIOTA, Rosangela. Op. Cit. p. 127-129.
62
Uma reflexão atenta sobre o texto Rasga Coração de Oduvaldo Vianna Filho, frente à resistência
democrática dos anos de 1960/1970, é dada pela historiadora Rosangela Patriota, na obra Vianinha: um
dramaturgo no coração de seu tempo. Op. Cit., (especialmente os capítulos III e IV).
O Teatro Paulista nas Décadas de 1950 e 1960: Temas, Idéias e Trajetórias
86
uma parte expressiva da esquerda brasileira. Segundo o antropólogo, o mais importante
é a possibilidade criada por Rasga Coração de ampliar um espaço em que pontos de
vista diferentes sejam reconhecidos:
Pluralismo cultural é a possibilidade de convivência de visões de mundo e
estilos de vida. Isto significa ‘respeitar’ e não apenas tolerar opiniões e
caminhos que não sejam os de nossa escolha. (...) A luta pela maior igualdade
em termos econômicos e políticos não deve estar divorciada de uma concepção
pluralista da sociedade, sob pena de ignorando-se as principais transformações
do mundo contemporâneo, continuar-se preso ao autoritarismo que certamente,
não é o melhor produto da teoria e da prática da esquerda(...). Rasga Coração,
sem dúvida, ficará como um marco do teatro brasileiro. Mas a sua contribuição
cultural e política será ainda maior se forem extraídas as devidas
conseqüências do seu complexo conteúdo crítico
63
.
Nas reflexões de PATRIOTA, Gilberto Velho, ao abordar temas como
pluralismo, democracia, discussão das ortodoxias, explicações totalizantes, resgatou
brilhantemente a contemporaneidade da peça e os impasses políticos e teóricos pelos
quais passavam os partidos e a militância de esquerda
64
. Nesse sentido, as reflexões
sobre o texto de Vianinha tornam-se importantes para este trabalho, uma vez que
suscitam debates em torno da necessidade de repensar, reavaliar e discutir o papel da
esquerda na luta pelo fim da Ditadura especialmente no sentido de organizar a
resistência -, tema que, sob outras perspectivas, já havia sido colocado em cena pelos
dramaturgos Boal e Guarnieri em 1967, no texto Arena Conta Tiradentes, e em 1969,
pelo dramaturgo Jorge Andrade, em As Confrarias.
Seguindo essa linha de pensamento, os próximos capítulos têm o objetivo de
apresentar o sentido histórico dos textos Arena Conta Tiradentes e As Confrarias. Para
tanto, torna-se necessário devolvê-los ao seu tempo, isto é, enxergá-los como
documento socialmente produzido, que traz no seu âmago as marcas políticas da época
de sua produção. Sobretudo, é realçar as suas historicidades, vislumbrando as lutas
políticas em que seus agentes (autores) estavam comprometidos e os fundamentos que
permitiram que esses textos teatrais se tornassem uma representação de resistência
frente aos anos escuros da Ditadura Militar, sendo por isso capazes de dialogar
criticamente com o seu presente.
63
VELHO, Gilberto. Teatro Político e Pluralismo Cultural (a propósito de Rasga Coração). Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 11/11/1979, p. 6, Caderno B. Citado por PATRIOTA, Rosangela. Op. Cit, p. 145.
64
Idem, p. 146.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
96
O Teatro de Arena tem servido, nos últimos tempos, como objeto de estudo para
diferentes áreas do conhecimento. A produção artística do grupo, baseada em
diversificadas concepções estéticas, as temáticas de fundo social/político e a criação de
uma arte “politicamente engajada”, servindo de resistência aos acontecimentos políticos
do pós-64, despertam o interesse de historiadores, filósofos, dramaturgos, pedagogos,
críticos e diretores teatrais, propiciando de forma substancial a realização de inúmeras
histórias do Teatro de Arena
1
.
Dessa forma, a Companhia tem a sua trajetória contada, a partir de reflexões que
se fundamentaram em torno de “marcos” e “temporalidades”, despida, na maioria das
vezes, de conflitos ou contradições, e que, ao longo dos tempos, se consagram como
sendo a história oficial do grupo.
Essa questão foi amplamente tratada pela historiadora Rosangela Patriota
2
, que,
ao questionar a unanimidade que envolve a historiografia do Arena, chega conclui que
todos os trabalhos que tomaram o grupo como objeto de estudo partem exclusivamente
da “memória”, da “história”, e da “periodização” construída por um dos seus grandes
expoentes, o dramaturgo e diretor teatral, Augusto Boal
3
.
1
Entre os trabalhos que tomaram a Companhia de Teatro Arena de São Paulo como objeto de estudo vale
destacar os seguintes:
BOAL, Augusto e GUARNIERI, Gianfrancesco. Arena Conta Tiradentes. São Paulo: Livraria Editora
Saragana, 1967.
BOAL, Augusto. Etapas do Teatro de Arena de São Paulo. In: ___. Teatro do Oprimido e Outras
Poéticas Políticas. 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 173 -185.
___. Hamlet e o filho do padeiro memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000.
CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo).
São Paulo: Perspectiva, 1988.
GOLDFEDER, Sônia. Teatro de Arena e Teatro Oficina O Político e o Revolucionário. Dissertação (Mestrado
em Ciência Política), Departamento de Ciências Sociais IFCH/UNICAMP, 1977.
MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião - ( uma interpretação da cultura de
esquerda).São Paulo: Proposta Editorial, 1982.
PATRIOTA Rosangela. História, Memória e Teatro: a Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo.
In: MACHADO Maria Clara Tomaz & PATRIOTA, Rosangela (orgs.). Política, Cultura e Movimentos
Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia: UFU, 2001.
___. Vianinha um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.
ROUX, Richard. Le Theatre de Arena (São Paulo . 1953-1977) - Du “theâtre en rond” au “theâtre
populaire”. Provence: Université de Provence, 1991.
SOARES, Lúcia M. M. D. O Teatro Político do Arena e de Guarnieri. In: Monografias 1980. Rio de
Janeiro: MEC/SEC/INACEM.
SOARES, Michelle. Resistência e Revolução no Teatro: Arena Conta Movimentos Libertários (1965-
1967). Dissertação (Mestrado em História Social), Instituto de História Universidade Federal de
Uberlândia, 2002.
2
PATRIOTA, Rosangela. História, Memória e Teatro: a Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo.
Op. Cit., p. 171-210.
3
Augusto Boal fundamentou o desenvolvimento artístico e político do Arena em quatro etapas evolutivas
que, segundo ele, “não se cristalizam nunca e que sucedem no tempo, coordenada e necessariamente”.
São elas:
- Primeira Etapa: “Não Era Possível Continuar Assim”(1953-1958) período em que o Arena “rompe”
com os pressupostos estéticos, temáticos e dramáticos do Teatro Brasileiro de Comédia. O grupo ainda
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
97
Nessa perspectiva, PATRIOTA faz uma análise bastante rica da trajetória
artística e política da Companhia, cotejando a “memória” de Boal com a de outros
integrantes que também contribuíram efetivamente para a história do Arena, como entre
outros, José Renato, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo José.
Como não é objetivo deste trabalho, abordar todas as histórias do Arena, será
resgatada a história do grupo em diferentes momentos de sua trajetória, sempre à luz das
lutas políticas de sua época, inserida em um determinado contexto histórico. Para isso, o
foco da análise dirigir-se-á para o lugar que esse grupo ocupa tanto no interior da
História do Teatro Brasileiro, quanto no cenário político e cultural do Brasil
contemporâneo. Essas mediações tornam-se importantes, uma vez que a representação
de uma realidade só se torna histórica na medida em que é articulada com um “lugar
social”
4
.
Ainda que passados mais de 30 anos do fim de suas atividades artísticas, o
Teatro de Arena de São Paulo ocupa uma posição de destaque nas análises do cenário
político e cultural da sociedade brasileira contemporânea. Fundada em 11 de abril de
1953, a Companhia de Teatro Arena de São Paulo, em um primeiro momento,
caracterizava-se por ser um grupo que compartilhava idéias “revolucionárias”, acima de
qualquer instância, visava promover uma “arte popular”, ligada a um público específico,
os trabalhadores que são explorados nas fábricas. Nos primeiros tempos do Arena, os
membros do grupo é que se dirigiam ao público. Sem sede própria, apresentavam-se em
portas de fábricas, escolas, clubes e praças públicas
5
.
funde-se ao TPE, cria o Laboratório de Interpretação, destacando os estudos sobre o Método
Stanislawsky.
- Segunda Etapa: “A Fotografia”(1958 1962) - momento em que o grupo fecha as portas à dramaturgia
estrangeira. Peças em destaque: Eles Não Usam BlackTie,(Gianfrancesco Guarnieri), que dá origem ao
Seminário de Dramaturgia; Chapetuba Futebol Clube (Oduvaldo Vianna Filho); Revolução da América
do Sul (Augusto Boal).
- Terceira Etapa: “Nacionalização dos Clásssicos” (1962-1964) - o grupo volta-se para a encenação de
textos estrangeiros - clássicos- adaptados à realidade brasileira. Destaque para as peças: A Mandrágora,
de Maquiável, e Tartufo, de Moliére; O Filho do Cão, de Gianfrancesco Guarnieri.
- Quarta Etapa: “Os Musicais”(1965-1970) Período em que o grupo se preocupa com as convenções
teatrais que se vinham constituindo em obstáculo ao desenvolvimento estético do teatro. Foram frutos
dessa fase: Arena Conta Zumbi; Arena Conta Tiradentes; Arena Conta Bolivar.
As etapas evolutivas da história do Arena, construídas por Boal podem ser encontradas na obra: BOAL,
Augusto . e GUARNIERI, Gianfracesco. Arena Conta Tiradentes. Op. Cit.; BOAL, Augusto. Etapas do
Teatro de Arena de São Paulo. Op. Cit., p. 173 -185.
4
CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense,
1982, p. 93-94.
5
O grupo surge no momento em que o Brasil vivia as inquietações do “nacionalismo” e
“desenvolvimentismo” dos anos 50. Essas noções aliadas a expectativa de “progresso” da nação,
propagaram a necessidade de superação do ruralismo, em busca de um ideal de “urbanização”,
“modernização” e “industrialização” de setores considerados arcaicos da sociedade. Era a época de
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
98
Em meio à efervescência da descoberta e ampliação do vigoroso mercado
consumidor de arte, promovido pelo Teatro Brasileiro de Comédia em fins dos anos
1940, que o Arena entrava em cena, com a intenção de atuar brechas da sociedade
brasileira e se integrar de forma substancial às lutas políticas, sociais e culturais de seu
tempo.
Em meados da década de 1950, uma série de acontecimentos mudou os rumos
da produção artística da jovem Companhia. O primeiro deles foi em 1955, com a
aquisição de uma sede fixa, localizada à rua Teodoro Bayma, no centro da cidade de
São Paulo. Mesmo apresentando uma estrutura física bastante modesta e desconfortável
(com apenas 163 lugares, sem salão de espera para o início dos espetáculos, salas
abafadas e iluminação precária), a nova sede do Arena foi motivo para uma série de
polêmicas e transformações no interior do grupo
6
.
José Renato - diretor do Arena na época - via com bons olhos a aquisição da
nova sede, mesmo reconhecendo que a fixação dos espetáculos e dos atores
representaria uma contradição para o grupo, “porque a gente queria fazer um teatro
popular, um teatro... eventualmente popular e que, de repente, era feito numa sala para
cento e cinquenta espectadores e um espaço de três por quatro metros. Era uma
contradição importante para o nosso trabalho
7
”. Ainda ressaltava que o Arena vinha de
forma gradativa conquistando a opinião pública, tanto que a aquisição do espaço físico
para a realização das atividades artísticas e culturais do grupo só foi possível devido ao
incondicional reconhecimento em nível nacional da peça Uma Mulher e Três Palhaços.
No entanto, muitas pessoas ligadas ao teatro acreditavam que a Companhia
estava repetindo os padrões do TBC e jogando fora os princípios do grupo em promover
uma “arte popular”. Sobre esta questão, as considerações tecidas por Edelcio Mostaço
são importantes:
Juscelino Kubistschek, que, sob o lema de “50 anos em 5”, estabeleceu seu programa de governo a partir
do “Plano de Metas”, promovendo a internacionalização da economia com a entrada de capital e
empresas estrangeiras no País. Aos poucos a política “desenvolvimentista” vai deixando as suas marcas, o
crescimento econômico e industrial atrelado às nações estrangeiras, cria novas formas de dependência:
política, financeira, tecnológica. Nessas circunstâncias, por mais que as diretrizes políticas/econômicas
implementadas nos anos de 1950 não fossem as metas do Arena, existia nesse momento no Brasil um
efervescente movimento nacionalista que indiretamente veio influenciar o grupo na construção de uma
nova dramaturgia, voltada para temas de cunho nacional.
6
As primeiras peças encenadas na nova sede artística do Arena, eram inéditas nos palcos. Os integrantes
do grupo, optaram por repetir os seguintes textos: Esta Noite é Nossa e Uma Mulher e Três Palhaços.
Apenas uma é novidade A Rosa dos Ventos.
7
ROUX, Richard. Interview de José Renato. In: Le Theatre de Arena (São Paulo . 1953-1977) - Du
theâtre en rond au theâtre populaire. Provence: Université de Provence, 1991, p.627.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
99
A Companhia transforma-se em Sociedade, o que quer dizer a existência de
uma associação que compra ingressos do teatro antecipadamente, garantindo,
ao menos precariamente, a manutenção da empreitada. (...) Com a aquisição
da sede, uma importante meta - ir ao encontro do público passa a ser
relegada a segundo plano, e são visíveis os esforços na concentração de
recursos que possam viabilizar a existência do grupo(...)
8
.
Ao lado de MOSTAÇO, Cláudia de Arruda Campos também aponta uma série
de restrições à produção artística do grupo nesse momento, principalmente quanto ao
estilo das representações e ao teor dos espetáculos, que até então não apresentavam
mudanças substanciais em relação ao estilo do TBC. Mas, no que diz respeito à
aquisição da nova sede pela Companhia, a autora tece reflexões interessantes que se
afastam das colocações desse autor:
O novo teatro com seu jeito “simpático” (entenda-se informal), aliado à sua
situação geográfica, vai atrair as atenções da população estudantil, muito
concentrada na área. São a grosso modo, camadas de classe média que
ascendem ao usufruto dos “bens do espírito” nos anos cinquenta, gente que se
forma dentro dos novos padrões estéticos, de novos hábitos sociais, e cuja
presença, na platéia, no palco ou nos bastidores, trama o novo teatro
brasileiro
9
Sob o olhar de ARRUDA CAMPOS o novo espaço artístico do Arena não
inviabilizou a realização de um “teatro popular”. Ao contrário, proporcionou de forma
sistemática a ampliação das atividades culturais do grupo, e acima de tudo representou
uma guinada política e uma renovação estética em sua produção artística.
As ponderações da autora podem ser claramente ilustradas com o momento em
que o Arena começa a explorar de forma mais criativa e diversificada o espaço físico
que tinha em mãos, relacionando suas atividades teatrais com outras manifestações
artísticas, como a música, o cinema e as artes plásticas. Assim, novas produções
culturais tomam corpo no interior da Companhia como o projeto “Teatro das Segundas
Feiras”, que proporcionou o contato com novos grupos que, mesmo não apresentando
uma técnica refinada ou profissional, vinham com propostas estéticas e políticas
bastantes renovadoras, casando perfeitamente com os interesses do Arena.
É nesse contexto que em 1956 se formalizou a associação do TPE Teatro
Paulista do Estudante ao Teatro de Arena de São Paulo. O TPE era um grupo do meio
8
MOSTAÇO, Edélcio. Surgimento do Arena: Realismo e Política na Década de 50. In: ___. Teatro e
Política: Arena, Oficina e Opinião. (uma interpretação da cultura de esquerda).São Paulo: Proposta
Editorial, 1982, p. 26-27.
9
CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo).
São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 35.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
100
estudantil, especificamente ligado à UNE, a maioria dos seus integrantes eram de
esquerda e bastante empenhados nas lutas políticas da época. A entrada do TPE veio
mudar profundamente a linha política do Arena e principalmente fez reviver a
possibilidade de um teatro móvel, que se tornara inviável desde a aquisição da sede.
Para o Arena, o grupo seria um tipo de elenco volante, funcionando paralelo às
atividades estáveis realizadas na casa da Teodoro Bayma. Em termos práticos seria o
responsável por descentralizar os espetáculos do centro da cidade e voltar a representá-
los nas fábricas, nas praças, nos clubes. Com esta perspectiva, nota-se que o TPE viria
amenizar as barreiras impostas pela fixação da casa de espetáculos.
Ao mesmo tempo, a chegada de Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco
Guarnieri, Vera Gertel, Milton Gonçalves e outros mais ao Arena fez com que as
antigas preocupações do grupo, que até então não haviam sido resolvidas, entrassem
novamente em cena. Questões sobre a realização de um “teatro popular”, de uma arte
que estivesse diretamente ligada aos problemas sociais da população em geral e até
mesmo a questão do público passaram a ser cada vez mais questionados no interior da
Companhia.
E foi em meio aos impasses colocados por essas questões que, ainda em 1956,
um novo componente agregou-se ao Teatro de Arena: Augusto Boal, recém chegado
dos Estados Unidos. Seu visual provocou um certo estranhamento no grupo além de
ser químico, deixava evidente seu estilo cowboy: camisa xadrez, calças apertadas,
chapéu e cinto de couro o que, entretanto, logo seria minimizado pelas idéias
modernas de teatro que o dramaturgo e diretor trazia na bagagem. Quando esteve fora
do Brasil, Boal tornou-se aluno da Columbia University, fez cursos de dramaturgia
ministrados por John Gassner, Milton Smith e Ernest Brenner. Estudou Shakespeare,
direção, história do teatro, e outras coisas mais
10
.
A carreira profissional de Boal iniciou-se de fato com a entrada no Teatro Arena
de São Paulo. Ainda que nos primeiros tempos tenha dividido com José Renato as
responsabilidades de direção dos espetáculos, o jovem diretor contribuiu de forma
10
Antes de estudar em Nova York, Augusto Boal buscou como interlocutor de suas primeiras peças o
dramaturgo Nelson Rodrigues: “(...) Quem me ajudava muito no começo era Nelson Rodrigues, que foi
meio padrinho meu, lia as peças todas que eu escrevia. (...) pegava minhas peças e falava: “olha, aqui
você está falando demais, explicando demais, o diálogo teatral tem de ser mais ágil ...”(...) às vezes ele
cortava palavras, “o essa palavra aqui é inútil, corta essa”, e tal, e eu via que realmente melhorava. Agora
estávamos em campos totalmente opostos, quer dizer, ele era direita e eu era genericamente de esquerda”.
Entrevista de Augusto Boal à revista Caros Amigos, ano, IV, n.48, março 2001, p. 29.
Foi por meio de Nélson Rodrigues que o professor e critico teatral Sábato Magaldi conheceu o trabalho de
Augusto Boal, indicando-o mais tarde para participar do Arena.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
101
sistemática para a definição do futuro estético e político do grupo. A primeira novidade
implementada foi a criação do Laboratório de Interpretação, que propiciou o estudo e a
realização nos palcos do método Stanislavisk
11
.
Esse período foi marcado por grandes encenações. Ainda em 1956, ocorreu a
montagem de Marido magro, mulher chata, de Augusto Boal, e Ratos e Homens, de
John Steinbeck, que marca a estréia de Boal como diretor nos palcos no Arena. Mas a
grande revelação cênica veio a acontecer em fevereiro de 1958, com a encenação de
Eles Não Usam Black-Tie, do dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, sob a direção de
José Renato.
Na época da estréia de Black-Tie, o Arena não vivia momentos felizes. Além das
dificuldades econômicas, as discussões internas do grupo demonstravam as divergências
cada vez mais exacerbadas de seus integrantes quanto aos interesses, sentimentos e
pressupostos políticos. Essas contradições que tanto marcaram a trajetória da
Companhia fizeram delinear diferentes posições: de um lado estavam aqueles advindos
do Teatro Paulista do Estudante, que se posicionavam a favor de aprofundar as
pesquisas e caminhar para a realização de um teatro cada vez mais “político”. De outro
estavam os “antigos” - fundadores do Arena -, que resistiam em enveredar nessa
direção.
Diante dos impasses que a Companhia estava vivendo, a encenação de Eles Não
Usam Black-Tie viria “liquidar” o Arena. O grupo pretendia encerrar suas atividades,
por isso escolheu um texto nacional de algum autor do grupo. Para surpresa de todos, a
peça mobilizou o público e todo o meio teatral. Com a pretensão de ficar apenas uma
semana em cartaz, permaneceu nos palcos durante um ano
12
. Nas palavras de Guarnieri:
11
Constantin Stanislavski, nasceu na Rússia em 1863, trabalhou muito tempo como ator amador, em 1897
fundou o Teatro de Arte de Moscou, em cuja direção permaneceu durante 40 anos. As idéias, os métodos,
a criatividade e a subjetividade de Stanislavski são contribuições importantes para quem faz, estuda e
dirige teatro. Ao dedicar seus estudos aos fundamentos do teatro, Stanislavski desenvolveu técnicas de
encenação bastante interessantes. Para ele, o corpo e a alma do ator devem estar sempre em sintonia, pois
a externalização de um papel está intimamente influenciada pelo subconsciente, e só isso, é capaz de
“absorver inteiramente o espectador, fazendo-o, a um só tempo, entender experimentar intimamente os
acontecimentos do palco”. Para que isso ocorra de modo natural, sem forçar uma artificialidade que
mataria a arte teatral, Stanislavski elabora técnicas de: “Como descontrair, como controlar o corpo. Como
estudar um papel, trabalhar com a imaginação, construir de dentro uma atuação. Como trabalhar com
outros atores, o intercâmbio o modo de considerar a platéia para que possamos controlar suas reações a
certas horas e em outras deixar-lhe o controle. O estilo de atuar no trabalho clássico e no realista, a arte de
concentração”. STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
12
A peça Eles Não Usam Black-Tie tem como fio condutor um drama vivido em uma favela no Rio de
Janeiro. Através de um enfoque cotidiano, Guarnieri mostra os habitantes que representam um segmento
social bastante explorado na sociedade: o proletariado urbano. A personagem protagonista é um operário,
Tião, casado com Maria, que está grávida. Na peça Tião vive um grande impasse: escolher a felicidade
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
102
o Black-Tie deu um alento. Mostrou que era possível. E o teatro melhorou
financeiramente, causou o retorno do pessoal ao teatro. O próprio Vianinha
tinha ido para o Rio de Janeiro. O Boal também tinha saído do teatro, pra fazer
outra direção não sei onde. E com o resultado do Black-Tie, houve novamente a
reunião de todo mundo. Havia a possibilidade, inclusive, de manter todo mundo
dentro do grupo, porque era pago mensalmente. A gente vivia daquilo. (...)
Aconteceu um negócio importante nessa ocasião, que foi muito tocante para
mim. Eu tinha visto A Moratória, do Jorge Andrade, que também é autor e tal, e
no dia do Black-Tie estava lá o Jorge Andrade assistindo e ele me disse: “Poxa,
garoto você me deu vontade de escrever novamente. E o negócio é esse mesmo
rapaz, escrever sobre o homem, o povo brasileiro, temos que ir nessa”. E
diversos autores foram solidários com o aparecimento do Black-Tie(...)
13
.
Sem sombra de dúvida, o sucesso de público e as atenções da crítica em torno de
Black-Tie revitalizaram os ânimos artísticos do Arena, que em abril do mesmo ano
decidiu aprofundar os estudos de novos caminhos para a dramaturgia brasileira,
ampliando o repertório de temática nacional e privilegiando a abordagem de cunho
político/social. Foi esse o momento de surgimento do Seminário de Dramaturgia, que
em dois anos de existência rendeu bons frutos à produção artística do grupo.
As reuniões do Seminário serviam para estudos de dramaturgia, para leituras e
críticas de textos teatrais do grupo e de outros dramaturgos que sempre estavam
presentes. A coordenação dos trabalhos ficou a cargo do diretor e dramaturgo Augusto
Boal e houve a participação de grandes nomes, referências do teatro brasileiro, como
Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Nelson Xavier, Milton Gonçalves,
José Renato, Vera Gertel, Chico de Assis, Flávio Migliaccio. Como convidados
especiais, o Seminário teve a contribuição de Zulmira Ribeiro, Sábato Magaldi, Roberto
Santos, Roberto Freyre, Beatriz Segall, Jorge Andrade e outros. Para Boal, esse período
foi marcado por uma intensa movimentação do grupo, com horas exaustivas de estudos
e atividades culturais e artísticas na sede do Arena que resultaram em grande
produtividade.
Se, por um lado, o Seminário foi capaz de reunir pessoas com interesses comuns,
preocupados com a mesma realidade social brasileira, possibilitando a realização de um
teatro nacional, por outro, serviu como palco para a explicitação das contradições, dos
junto à esposa, furando a greve e conquistando um salário para sustentar a família, ou defrontar-se com o
pai, os companheiros de luta, o Partido, enganando a si próprio em favor da classe.
Black-Tie estreou na cidade de São Paulo, a 22 de fevereiro de 1958, fez 512 apresentações, incluindo 40
cidades do interior, espetáculos no Sindicato dos Metalúrgicos em São Paulo, um espetáculo em praça
pública para 5000 pessoas e deixou o cartaz a 20 de janeiro de 1959. Ver: VIANNA FILHO, Oduvaldo.
Teatro de Arena: histórico e objetivo. In: PEIXOTO, Fernando. (org.). Vianinha: Teatro-televisão-
política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 28.
13
Depoimentos V. Rio de Janeiro: MEC-SEC SERVIÇO NACIONAL DE TEATRO, 1981, p. 68.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
103
conflitos e das posições políticas que há algum tempo já estavam claramente definidas
no interior da Companhia. Esse cenário de divergências foi visualizado de forma
bastante esclarecedora por um dos componentes mais atuantes do Arena na época,
Flávio Migliaccio:
Cada um de nós tinha uma formação diferente e daí originavam as maiores
divergências. Vianinha e Guarnieri eram estudantes, vinham do Teatro Paulista
do Estudante e estavam preparados para uma forma mais avançada e completa
em termos de teatro; Boal, com as experiências nos Estados Unidos, dominava
a técnica, possuía uma grande preocupação com a forma; Milton e eu tínhamos
uma vivência mais direta com o povo e tentávamos colocar nossa experiência
no que fazíamos; Chico de Assis vinha da televisão, lembro que era “vidrado”
na cultura japonesa, sentíamos no Chico que ele esperava o momento de juntar
toda a sua teoria à grande clareza que possuía sobre o materialismo dialético;
Xavier aguardava os acontecimentos, era muito inteligente e possuía grande
objetividade quando intervinha. Conhecendo cada um pode-se saber
exatamente o que o levou para aquelas reuniões de sábado de manhã. Resta a
dúvida: a técnica dos escritos americanos serviria para nós? Seria essa técnica
universal? Conseguimos, de fato, partir da estaca zero? Serviria essa técnica
teatral para um escritor de cinema? E a literatura? Bem, tudo isso é demais
para alguém como eu, que veio lá de Vila Mazzei!
14
Ao lado das inquietações explicitadas por Migliaccio, há que ressaltar que parte
dos integrantes do Seminário tinha participação partidária bastante ativa, o que tornou
extremamente naturais os debates, as reflexões partirem essencialmente para o campo
“político”. Nelson Xavier, que estreou no Arena como intérprete na peça Chapetuba
Futebol Clube, avalia os impasses e as divergências do grupo, advindos das discussões
acaloradas na época dos Seminários:
Li meu texto O quarto e a sala no Seminário de Dramaturgia. Meu trabalho foi
bombardeado, mas também o foi o do Jorge Andrade e de outros, de fora do
Arena, que apareceram no começo. Muitos foram se afastando, criticando a
liderança do Boal como uma visão rígida e unilateral da dramaturgia
contemporânea. Só restou mesmo no Seminário o pessoal do próprio Arena,
que apoiou e acompanhou Boal na sua proposta de uma dramaturgia mais
eficaz tecnicamente e mais realista no seu conteúdo e, principalmente, mais
autenticamente brasileira em sua forma. (...) Essas preocupações se mesclavam
com a juventude organizada e consciente de Guarnieri e Vera Gertel de modo a
se transformarem mais tarde na plataforma cultural do grupo, que consistia em
só montar autor nacional, de preferência estreante, e buscar um estilo
brasileiro de interpretação dramática
15
14
GUIMARÃES, C. Seminário de Dramaturgia: Uma Avaliação 17 Anos Depois. In: Revista Dionysos.
Especial Teatro de Arena, n° 24, outubro, Brasília: FUNDACEN, 1978, p. 76.
15
Idem, p. 74.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
104
À parte as discussões técnicas, bem como as divergências políticas e estéticas,
foi na época de realização dos Seminários que o Arena realçou sua estrutura como
grupo teatral unificado, cujos integrantes pensavam e trabalhavam coletivamente em
projetos que viriam a interferir nas condições políticas e sociais do País. A idéia de um
trabalho, de um esforço coletivo que abrangesse os diferentes segmentos do grupo foi
vislumbrada ainda por Nélson Xavier, ao refletir, anos depois, sobre os trabalhos
realizados no Seminário de Dramaturgia:
tudo era discutido e decidido coletivamente. Além de nós (Guarnieri,
Vianninha, Vera, Chico, Milton, Flávio e outros) fazia parte do núcleo o
Henrique César, o bom gaúcho que não entrava na empolgação. Os outros
passavam o dia inteiro discutindo, de modo que passamos a viver o teatro em
tudo e sempre. Essas discussões nos uniram e deram a unidade suficiente para
cumprirmos aquilo a que nos propúnhamos, já então coletivamente. Na
verdade, o Teatro de Arena foi o primeiro elenco permanente de teatro
profissional no Brasil a postular e planejar o seu trabalho e organizar sua
administração coletivamente, segundo uma política cultural de confrontação da
realidade brasileira. (...) O Brasil era descoberto todos os dias e era preciso
denunciá-lo.(...) Durante esse período de vida e trabalho apaixonado e fecundo,
todos nós formamos nossa consciência de artista. (...)
16
Mesmo levando em conta os impasses e as contradições existentes nos
seminários, eles contribuíram bastante para o enriquecimento estético/político dos
trabalhos do Arena, sobretudo no sentido de ampliar o repertório teatral do grupo, que a
partir de então passou a contar com as seguintes peças: Chapetuba Futebol Clube
(Oduvaldo Vianna Filho); Gimba e A Semente (Gianfrancesco Guarnieri); Revolução da
América do Sul (Augusto Boal); O Testamento do Cangaceiro (Francisco de Assis);
Fogo Frio (Benedito Rui Barbosa); A Farsa da Esposa Perfeita (Edy Lima); Gente
como a Gente (Roberto Freire) .
No início da década de 1960, o Arena novamente se viu envolto em
transformações internas, que mudariam os rumos de sua trajetória artística e política.
Em 1960, um de seus grandes expoentes, Oduvaldo Vianna Filho, abandonou o grupo e
foi para o Rio de Janeiro, onde, em companhia de Carlos Estevam Martins, Chico de
Assis, Leon Hirszman, fundou o Centro Popular de Cultura, mais tarde denominado
CPC da UNE
17
.
16
Idem.
17
O Centro Popular de Cultura foi um movimento de produção cultural que abarcou diferentes linguagens
artísticas e mesmo que a sua existência tenha sido limitada pelos acontecimentos do Golpe Militar (1962-
1964), sua abrangência cultural e artística foi bastante expressiva. Pode-se dizer que a sua efetivação no
Rio de Janeiro deu-se a partir das experiências que vinham acontecendo em Pernambuco, através do
Movimento de Cultura Popular (MCP), que, além do teatro, constituía na primeira experiência de
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
105
A saída de Vianna do Arena, ocorreu em meio às brigas e divergências
ideológicas que até então não haviam sido resolvidas
18
. E mesmo ele apresentando uma
visível identificação com os pressupostos estéticos e políticos do grupo, justificou sua
saída atribuindo-a à incapacidade do Arena em atingir as massas populares e em
promover uma arte “popular”:
O Teatro de Arena (...) trazia dentro de sua estrutura um estrangulamento que
aparecia na medida mesmo em que cumprisse a sua tarefa. O Arena era o porta
voz das massas populares num teatro de cento e cinquenta lugares (...) O Arena
não atingia o público popular e, o que é talvez mais importante, não podia
mobilizar um grande número de ativistas para seu trabalho. A urgência de
conscientização, a possibilidade de arregimentação da intelectualidade, dos
estudantes, do próprio povo, a quantidade de público existente estavam em
forte descompasso com o Teatro de Arena enquanto empresa. (...) Nenhum
alfabetização com a metodologia de Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido). A expansão desse
movimento, além de atingir outros estados nordestinos, influenciou de forma sistemática a criação de
vários CPCs pelo País. Nos primeiros tempos, as atividades do Centro Popular de Cultura baseavam-se
essencialmente em apresentações teatrais, mas, com a aproximação dos estudantes secundaristas e
universitários, foram organizados setores ligados ao cinema, artes plásticas, literatura e música. Partindo
das experiências práticas dos CPCs espalhados por todo o Brasil, na década de 60, pode-se dizer que esse
segmento destacou-se na realização de uma “cultura popular”, procurando aprofundar a função “social”,
“política” e “revolucionária” da arte. Os cepecistas buscavam o povo em portas de fábricas, favelas,
praças, a fim de despertar sua consciência política e suscitar mobilização frente à realidade nacional.
Vários espetáculos importantes foram produzidos e reproduzidos pelo CPC da Une, entre eles: Os Autos
dos 99%, de Oduvaldo Vianna Filho, Eles Não Usam Black-Tie de Gianfrancesco Guarnieri, e o filme
Cinco Vezes Favela. Depois do Golpe de 64, todos os CPCs e MCP foram colocados na ilegalidade, suas
sedes foram destruídas e seus integrantes perseguidos.
Várias obras referendaram o valor político e artístico do CPC diante na década de 60, algumas levantando
restrições à direção de seus trabalhos frente a uma “cultura popular”. Entre os trabalhos existentes cabe
destacar: MOSTAÇO, Edelcio. CPC, MCP, ARENA,OFICINA: Os Caminhos de uma Arte Popular. In:
___. Teatro e Política : Arena, Oficina e Opinião ( uma interpretação da cultura de esquerda). Op. Cit.
p. 55 a 74. MARTINS, Carlos Estevan. A Questão da Cultura Popular. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1963. PEIXOTO, Fernando. Vianinha no Centro Popular de Cultura. . ___. In: Vianinha:
Teatro-televisão-política. Op. cit p. 81-99.
18
As contradições e divergências internas do Arena podem ser amplamente visualizadas em textos do
próprio Vianna, organizados por Fernando Peixoto na obra Vianinha: Teatro Televisão Política. Op.
Cit.
Dentre os artigos que compõem a obra, destaca-se um relatório redigido supostamente no momento
efervescente de crise do Arena - Alienação e irresponsabilidade. Nele Vianna tece duras críticas à direção
dos trabalhos da Companhia encaminhada por José Renato: “Ou bem José Renato participa do grupo,
pesquisando com ele a solução e a sua verificação histórica entrando como elemento da equipe de
maneira nenhuma mantendo a hierarquia econômica que o distingue, que faz com que as principais
decisões ainda caibam a ele, que tem dificultado, e tem mesmo, o aparecimento de um administrador, pois
isso, no seu entender, só viria enfraquecer sua posição, só viria tornar clara a sua participação econômica
no grupo. (...) A clareza me parece que tem que ser total agora. Total. Colocarmos diante de José Renato
as minhas dúvidas quanto a sua participação cultural diante do grupo”.
Segundo Fernando Peixoto, em contato com o texto de Viana, José Renato esclarece o impasse: “para ele,
naquele momento, a questão essencial era a defesa da sobrevivência profissional do grupo. Que sentia
ameaçada inclusive pelo esfacelamento interno, que tendia a agravar-se. Vianinha dava prioridade ao
aspecto ideológico. José Renato alertava inclusive para a falta de significado do desenvolvimento de um
programa mais conseqüente de teatro popular num espaço pequeno e limitado como a sede do Arena.”
As brigas e divergências entre Viana e José Renato, se não resolvidas foram ao menos esquecidas, a
reconciliação entre ambos, ocorreu, quando José Renato dirigiu a peça Alegrum Desbum e a pedido do
próprio Vianna, antes da morte, o seu último texto, Rasga Coração. Op. Cit. P.63-64.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
106
movimento de cultura pode ser feito com um autor, um ator, etc. É preciso
massa, multidão. (...)
19
.
Depois de Oduvaldo Vianna Filho, outro integrante desligou-se do Arena, José
Renato, que, em 1962, encerrou suas atividades no grupo, mudando-se definitivamente
para a cidade do Rio de Janeiro, onde passou a dirigir o Teatro de Comédia. A saída de
José Renato ocorreu sem grandes problemas e ressentimentos. Ao contrário de Vianna,
que procurava mobilizar as massas e promover um teatro “político” capaz de intervir
nas condições políticas da sociedade, José Renato acreditava:
que a política devia entrar em segundo plano. Em primeiro lugar, havia o
espírito de confraternização e de divertimento. Através do divertimento é que a
gente discutia e debatia os problemas políticos. Mas não levantar a bandeira:
Primeiro a política! Aqui se debate só a política e nós só queremos fazer
política. Esse, talvez, fosse o ponto de divergência que existia entre nós
20
.
Ao lado desse descompasso, o estágio que José Renato realizou em Paris a
convite de Jean Villar no Teatro Nacional Popular (TNP) fez com que o diretor
ampliasse suas concepções técnicas de dramaturgia, voltando para o Brasil motivado a
realizar grandes espetáculos, cuja produção seria incompatível com o palco de arena.
Devido a esses acontecimentos, a Companhia de Teatro Arena de São Paulo
passou por importantes reformulações, tanto no que tange às questões administrativas,
quanto às abordagens temáticas relacionadas ao repertório do grupo. Com a saída de
Vianna e José Renato as atividades do Arena passaram a concentrar-se basicamente em
dois integrantes do grupo, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, que, juntamente
com Paulo José, Juca de Oliveira e Flávio Império formaram a Sociedade de Teatro de
Arena.
Esse momento marcou uma nova fase do grupo, que enveredou suas atividades
para encenações de textos clássicos, o que consistia em “reinterpretar os textos da
dramaturgia de qualquer época e país em função do ‘aqui’ e ‘agora’, do momento
histórico presente, daquilo que se supunha serem os rumos políticos do Brasil no início
da década de sessenta
21
”.
De maneira geral, pode-se dizer que a “nacionalização dos clássicos” (1962-
1964) nada mais foi que uma adaptação dos textos aos problemas nacionais, à realidade
19
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Do Arena ao CPC. In: PEIXOTO, Fernando. Vianinha Teatro -
Televisão Política. Op. Cit., p. 93.
20
ROUX, Richard. Interview de José Renato. Op. Cit. p.635.
21
CAMPOS, Cláudia Arruda. Op. Cit. p. 56.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
107
social e aos fatos políticos do Brasil. Nessa perspectiva foram encenados nos palcos do
Arena: A Mandrágora, de Maquiável (1962); O Noviço, de Martins Pena (1963); O
Melhor Juiz, o Rei (1963), essas dirigidas por Augusto Boal; O Filho do Cão, de
Gianfrancesco Guarnieri (1964), sob a direção de Paulo José e Tartufo, de Molière
(1964), também dirigida por Boal
22
.
Para algumas pessoas ligadas ao teatro, o período compreendido como
“nacionalização dos clássicos” não obteve o êxito dos períodos anteriores, as adaptações
de obras à realidade brasileira interromperam a bem sucedida produção artística,
caracterizada por inovações estéticas e “engajamento político”, realçada principalmente
pelo Seminário de Dramaturgia. Sobre essa questão Mariângela Alves de Lima,
observa:
Fazia-se, assim, um retorno ao terreno da analogia, depois de ter progredido
visivelmente o trabalho de descoberta do tempo presente e das contigências de
situações historicamente próximas. Embora recriando o relevo contemporâneo
dos conflitos através de adaptações, as obras clássicas interromperam um
processo de criação de uma dramaturgia. O traço mais fortemente inovador do
grupo foi momentaneamente diluído nesta etapa
23
.
Em meio a essas considerações, torna-se imprescindível pensar a
“nacionalização dos clássicos” dentro de uma série de mudanças estruturais pelas quais
tanto a sociedade brasileira quanto a Companhia estavam passando naquele momento. O
período de 1962 a 1964, foi a época em que João Goulart, então presidente do Brasil,
adotava medidas de cunho bastante nacionalista, estatizando empresas estrangeiras e
valorizando tudo aquilo que era genuinamente brasileiro. Depois da saída de Vianna e
José Renato, o teatro também enveredou por esse caminho, adotando textos - mesmo
que estrangeiros que estabelecessem uma identidade, uma reflexão colada às
necessidades políticas e sociais da realidade brasileira
24
.
22
Ver: Liste des montages d’ Arena. In: ROUX, Richard. Le Theatre de Arena (São Paulo . 1953-1977)
- Du “theâtre en rond” au “theâtre populaire”. Op. Cit.
23
LIMA, Mariângela Alves . História das Idéias. In: Revista Dionysos. Rio de Janeiro: MEC/DAC-
FUNARTE/SNT. Outubro, Brasília: FUNDACEN, 1982, p. 53.
24
Ao manifestar-se sobre a fase “nacionalização dos clássicos”, o autor e diretor Augusto Boal ressalta o
seguinte: “Queríamos buscar nossa identidade, descobrir nossas feições, não mais diante de espelho
naturalista, que revela a face rude, mas em retratos de outros tempos, lugares que nos permitissem ver
nosso rosto verdadeiro, refletido em rostos de outras épocas. Nacionalizar era moda; Brizola, no Sul, tinha
nacionalizado (estatizado) companhias estrangeiras, Jango ameaçava estatizar (nacionalizar) empresas de
interesses estratégico (...). Nacionalizar tinha, na política, forte sentido apropriatório: recuperar o nosso
(...). Nós respeitávamos as estruturas da obra nacionalizada; nela nos buscávamos. Ressaltávamos o que
nela havia de nós e, de nós, nela - queríamos redescobrir nossa identidade, não trocá-la. A analogia só
podia existir entre semelhanças diferentes. Mantínhamos as diferenças buscando as semelhanças. (...)
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
108
A partir de 1964, as apresentações da Companhia de Teatro Arena de São Paulo
apareceram no centro de atuação da nova estética e das novas leituras políticas sobre a
realidade do País. O Golpe de 64 imposto à população brasileira fez com que setores
políticos e artísticos da sociedade redimensionassem seus trabalhos na perspectiva de
promover uma resistência ao regime militar que se instaurara. A primeira contribuição
do Arena veio com a encenação de Tartufo, de Moliére (1964). Depois da realização do
Show Opinião, o grupo dedicou-se à criação e encenação de novas peças, como: Arena
Conta Zumbi (1965), Arena Conta Tiradentes (1967) e Arena Conta Bolivar (1970).
Foi essa a época dos “musicais”, que compreende o período de 1965 a 1970,
quando a Companhia propôs-se a acabar com as convenções teatrais, tidas como
obstáculos ao desenvolvimento estético das artes cênicas
25
. Os “musicais” significaram
um período extremamente rico para o Arena, que, descobrindo novas composições
estéticas e novas formas de abordagem política, contribuiu de forma sistemática para a
resistência do País frente aos impasses colocados pelo “pós- 64”. Tanto é assim que, ao
refletir sobre a “fase dos musicais”, a historiadora Rosangela Patriota afirma que:
a união entre a canção de protesto e o teatro engajado permitiu a criação de
novos caminhos estéticos. A elaboração do “sistema coringa” e a aproximação
com as reflexões de Brecht sobre o “teatro épico”, entre outros procedimentos,
possibilitaram que o Arena redimensionasse sua atuação artística e política. A
escolha de “situações históricas”, para refletir sobre o tema da liberdade
proporcionou a constituição de uma “identidade” entre palco e platéia, que se
tornou um dos marcos da resistência artística
26
.
Depois da realização de outros musicais (Arena Canta Bahia, Praça do Povo,
etc ), o Arena ainda produziu a encenação de textos estrangeiros, como entre outros, La
Moscheta, de A. Beolco; O Círculo de Giz Caucasiano, de B. Brecht.
Em 1968, a Companhia de Teatro Arena produziu um grande espetáculo
cultural, a I Feira Paulista de Opinião, em que foram encenados textos importantes,
como: O Líder, de Lauro César Muniz; O Senhor Doutor, de Braulio Pedroso; Animalia,
de Gianfrancesco Guarnieri; A Receita, de Jorge Andrade; Verde que te quero verde, de
Com A Mandrágora descobrimos a Metáfora (...). No caso, porém, de peça escrita longe no tempo e
distante no espaço, onde se transubstancia uma sociedade viva e não se inventa simples fantasia, existirá
sempre uma relação triangular: primeiro a realidade do autor ela existe ou existiu (Florença,
Renascença); segundo, a organicidade da história (Mandrágora, história de amor e esperteza); terceiro: a
realidade do espectador, hoje, aqui”. BOAL, Augusto. Hamlet, e o filho do padeiro. Op. cit. p. 199-201.
25
BOAL, Augusto. Etapas do Teatro de Arena de São Paulo. In: ___ Teatro do Oprimido e Outras
Poéticas Políticas. Op. Cit., p. 183 -184.
26
PATRIOTA Rosangela. História, Memória e Teatro: a Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo.
Op. Cit., p. 189.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
109
Plínio Marcos; e A Lua Muito Pequena e A Caminhada Perigosa, de Augusto Boal. Em
princípios dos anos de 1970, o Arena vislumbrava novas perspectivas artísticas e
políticas com a criação do Núcleo 2, porém com as infindáveis dívidas e a prisão de
Augusto Boal inviabilizando a realização dos trabalhos e a Companhia de Teatro Arena
de São Paulo retirou-se do cenário cultural paulista, encerrando suas atividades em
agosto de 1970.
A longa e rica trajetória artística e política do Arena lhe garantiu que tivesse fim
somente o espaço físico para as apresentações cênicas, pois ainda hoje suas formas de
abordagem política, as inovações estéticas e a busca de soluções para os impasses
políticos vividos pelo País são fontes valiosas para iluminar a realidade política e
cultural do Brasil contemporâneo. Portanto sua história será sempre rememorada.
Alguns trabalhos que privilegiam Arena Conta Tiradentes serão comentados a
seguir, pois, entre outros, têm eles contribuído significativamente para a reflexão sobre
estes inquietantes momentos de nossa história política contemporânea, a década de
1960.
Interpretações Acerca do Musical Arena Conta Tiradentes
O trabalho de Sônia Goldfeder, Teatro de Arena e Teatro Oficina - O Político
e o Revolucionário
27
, tornou-se uma referência importante para o esta reflexão, uma
vez que, analisar o papel desempenhado pelo Arena e pelo Teatro Oficina no cenário
político e artístico do teatro paulista nas décadas de 1960/1970, centra suas discussões
nas peças O Rei da Vela, de Oswald de Andrade e Arena Conta Tiradentes, de Boal e
Guarnieri. Serão retomadas aqui principalmente questões pertinentes ao texto Arena
Conta Tiradentes, pois algumas delas, na forma como a autora as encara, são cruciais
para a melhor compreensão do nosso objeto de estudo.
Para a autora, Tiradentes tem a sua disposição estética organizada de forma
essencialmente “esquemática”, compondo-se de três níveis que se inter-relacionam: o da
exposição da situação, o da crítica e o de convocação à mudança. Essa organização
assume uma característica fortemente didática:
Arena Conta Tiradentes não nos apresenta uma estrutura linear, isto é, um
desenvolvimento contínuo de episódios que desencadearão o desfecho da
27
GOLDFEDER, Sônia. Teatro de Arena e Teatro Oficina O Político e o Revolucionário. Dissertação (Mestrado
em Ciência Política), Departamento de Ciências Sociais IFCH/UNICAMP, 1977.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
110
estória. Temos por assim dizer uma colagem de acontecimentos intercalados
por intervenções do Coro e do Coringa em forma de comentário acerca da
História/estória, como também cenas de julgamento de Tiradentes. (...) Cabe ao
Coro o anúncio do acirramento das tensões a nível político, quando dando voz
a alguns personagens, didaticamente expõe o aprofundamento dos conflitos. O
seu discurso é sempre crítico didático (...) não deixa de trazer uma reflexão.
(...) O discurso político não é sutilmente emitido, nem aparece velado por outro
tipo de discurso ele é portanto direto. (...) O episódio é, portanto, a nosso ver,
secundário, sendo usado como móvel, como meio para se atingir determinado
fim, o didático; é inclusive transfigurado, modificado (não há intenção plena,
cremos de fidelidade absoluta à História), em função de transmitir
determinadas mensagens dos autores
28
. (grifos nossos)
As restrições levantadas pela autora são elementos importantes para nossa
reflexão. Primeiramente não se deve interpretar como “infidelidade histórica” a forma
descontraída e criativa escolhida pelos dramaturgos, ao narrar a estória da Inconfidência
Mineira, em Arena Conta Tiradentes: a apresentação fragmentada dos acontecimentos,
a “desobediência” à seqüência oficial de realização dos fatos ou até mesmo as novas
situações históricas criadas não são em absoluto elementos que comprometam o seu
valor histórico. Um olhar atento sobre o texto e uma breve consulta à historiografia
especializada permitem notar que Arena Conta Tiradentes é um texto bastante rico,
fundamentado em obras clássicas sobre a Inconfidência Mineira, como os Autos de
Devassa e o Romanceiro da Inconfidência Mineira, de Cecília Meireles.
Ao lado disso, não podemos deixar de destacar que, para entender o “didatismo”,
o “esquematismo”, o “maniqueísmo” do texto Arena Conta Tiradentes, tão ressaltado
por Goldfeder, devemos remetê-lo ao seu tempo. Em 1967, data de produção e
apresentação da peça, o teatro vivia momentos difíceis. Ainda que o Regime Militar em
seus primeiros anos de vida não tenha exibido sua face mais truculenta pelo teatro que
se apresentava nos palcos brasileiros, no ano de 1967 o cenário já era outro, a relação
amistosa ia gradualmente desaparecendo, cedendo lugar às intransigências
governamentais que, por meio da censura e repressão, perseguiam e prejudicavam a
classe teatral.
Diante dessas circunstâncias, novas tendências estéticas começaram a se
esboçar, a necessidade da tomada de uma consciência política que efetivamente
participasse e que refletisse sobre os problemas que o País enfrentava depois do Golpe
fez com que a classe teatral reformulasse seu processo criativo. As contribuições vieram
a partir de novos códigos estéticos, a linguagem gestual e verbal passou por
reformulações substanciais, os palcos tradicionais foram abandonados dando lugar aos
28
Idem, p. 23-26.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
111
espaços livres de apresentação, as atitudes no palco tornaram-se mais provocativas e
novos “temas políticos”, em sintonia com o presente, ficaram mais evidentes
29
.
À luz dessas reflexões, uma questão extremamente importante se coloca à
discussão: será que não se pode entender a forma “didática”, “esquemática” do texto de
Guarnieri e Boal como forma alegórica, metafórica de intervir na sociedade? Será que
ela não pode ser entendida como “novo código estético”, um caminho que naquele
momento era permitido e que, portanto, trazia contribuições importantes para o debate
político e estético dos anos 60? Parece que sim, uma vez que o Arena foi uma das
companhias teatrais que, mesmo diante das limitações impostas pela censura, adequou
suas atividades a um repertório cada vez mais político e social e uma estética
essencialmente inovadora que pudesse intervir e contribuir na resolução dos problemas
colocados pela Ditadura Militar.
Outra questão tratada por Sônia Goldfeder e que merece destaque diz respeito à
construção do protagonista da peça, Tiradentes. Segundo a autora, Boal e Guarnieri
projetam sobre essa personagem uma visão tradicional de “herói nacional”, arrolam uma
série de qualidades, de “dados positivos”, que enobrecem e acrescentam à figura do
inconfidente o caráter heróico pretendido, cumprindo, assim, a função “didática” da
personagem:
o herói é o elemento do drama que é didaticamente compacto; ele apresenta um
rol de qualidades exemplares. Em TIRADENTES o herói é utilizado, a nosso
ver, como um recurso didático, ou seja, como um meio estilístico de se
apresentar uma proposta de um “revolucionário ideal”. A heroificação do
personagem Tiradentes se dá através de vários aspectos: em primeiro lugar,
porque ele aparece como indivíduo que sintetiza, que responde aos ideais
populares, que transcende sua própria individualidade em favor de ideais mais
amplos (...) em alguns diálogos contrapõem-se as idéias de alguns conjurados
em relação à participação popular (...) o herói aparece como um recurso
didático, ou seja, como portador de uma série de quesitos necessários para se
levar a cabo uma ação realmente revolucionária: feita para e pelo povo. Ao
mesmo tempo se denuncia a distância dos demais conjurados em relação aos
29
Ao refletir sobre esse período, o crítico teatral Yan Michalski, assim o interpreta: “(...) os responsáveis
pela revolução cênica que tomaria corpo a partir de 1966 sentem-se inconformados e impotentes diante do
sistema repressivo que controla cada vez mais radicalmente a vida do país, riscando do mapa qualquer
noção de consulta popular, instalando um cada vez mais rígido sistema de censura, impondo como
obrigatória uma escala de valores morais alheios aos anseios espontâneos da juventude. Uma válvula de
escape para esse inconformismo, no campo teatral, consiste em contestar os códigos expressivos
tradicionalmente aceitos como corretos e bem comportados, substituindo-os por alternativas nas quais os
fatores de novidade e de provocação atuem como molas propulsoras. (...) a atitude dos artistas em relação
ao público torna-se mais freqüentemente agressiva, como se os espectadores fossem representativos da
acomodação burguesa que se pretende combater, e como se fosse necessário forçá-los a sair de sua atitude
passiva na platéia, para assumir uma participação mais atuante na comunicação com o que acontece em
cena. MISHALSKI, Yan. Teatro Sobre Pressão uma frente de resistência. Op. Cit., p. 24-25.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
112
anseios populares e ao povo mesmo. É pela comparação e portanto destaque da
figura de Tiradentes que se afirma a univocidade de sua posição e sua
‘positividade’
30
.
O papel desenvolvido por Tiradentes nos planos revolucionários da Conjura é
um dos temas que mais persegue a historiografia da Inconfidência Mineira. Em Arena
Conta Tiradentes, essa questão foi amplamente tratada, porém com uma conotação
essencialmente política, voltada para condições históricas do presente. O papel
protagonista de Tiradentes na peça tem uma razão de ser: serviu essencialmente para
discutir as posições, repensar as atitudes dos segmentos políticos, especialmente da
esquerda, que no momento estava comprometida em mobilizar a resistência frente ao
Golpe de 64.
Nesse sentido, Tiradentes não pode ser identificado apenas como um
“personagem positivo”, e qualquer análise deve transcender essa questão. Ao
estabelecermos uma reflexão cruzando a interpretação da peça com a “historiografia
especializada” sobre o tema, encontra-se, em Arena Conta Tiradentes, um Alferes não
só “revolucionário”, “idealista” e “militante”, mas, mais do que isso, depara-se com a
representação de um político “habilidoso” portador de táticas revolucionárias, que soube
adaptar-se às condições que lhe eram impostas. Além de conhecer e discutir o “plano
das idéias” que levariam ao Levante, mostrou que estava preparado para os aspectos
práticos da “luta” que se travaria em Minas.
Ao mesmo tempo, deve-se levar em conta que a Inconfidência Mineira não foi
um movimento homogêneo, pois os inconfidentes divergiam muito com relação a
alguns procedimentos revolucionários e a implantação de novas estruturas que poderiam
ferir seus interesses de classe. O Arena, como uma Companhia teatral de tendência
“engajada”, comprometida com uma arte “popular” que contribuísse para mudanças na
situação política do País, evidentemente optou por heroificar aquele que mais se
aproximava das classes populares. Na peça, o alferes Joaquim José foi o único de todos
os inconfidentes que estabeleceu uma relação de proximidade com os representantes dos
segmentos populares, chegando a incluí-los como instrumentos eficazes para a execução
do Levante. Certamente, se Boal e Guarnieri transferissem as qualidades, o heroísmo
para outros personagens - representantes dos segmentos abastados da sociedade mineira
- poderiam mostrar subserviência aos setores comprometidos com o poder, nesse caso
os militares.
30
GOLDFEDER, Sônia. Op. cit. p. 37-39.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
113
Por fim, à luz das reflexões de Sônia Goldfeder, há que ressaltar que a autora
levanta uma série de restrições ao trabalho do Arena, especialmente os musicais, que na
sua concepção fazem um uso exacerbado do conteúdo político em detrimento da criação
artística, motivo pelo qual seu teatro apresentaria uma forma “pedagógica”, uma
concepção de engajamento “objetivada” a uma “presentificação”, advogando para si as
tarefas políticas imediatas e contextualizadas. Para a autora, essa postura do Arena é
extremamente pragmática, condiciona seu projeto artístico em estruturas “fechadas”,
baseadas em “mensagens definidas” e “acabadas”, não permitindo ao público a reflexão
ou indagação. Com essa perspectiva, Goldfeder classifica o Arena como uma “teatro
político” e não “revolucionário”.
Para a autora, o “teatro revolucionário” é aquele que tem o seu projeto artístico
voltado “para uma visão mais fiel da realidade, absorvendo em seus espetáculos o
caráter contraditório da mesma, a traduz em sua complexidade e imperfeição
31
”. A
autora, dessa forma, restringe em absoluto o conceito de político, sendo sua grande
preocupação que as formas estéticas não se devam subordinar ao discurso ideológico.
Nesse momento uma questão importante se coloca: será possível desvincular o estético
do político, será que é pertinente pensar esses dois conceitos de forma estanque,
isolados um do outro? A resposta, certamente, é não, uma vez que as escolhas estéticas
de uma obra artística são também escolhas políticas, portanto não se pode enxergar o
código estético como uma simples reflexão e representação de um momento político.
Mais que isso, ele é uma força política que atua no âmago das relações sociais de uma
época. Nessas circunstâncias, devemos levar em conta que quaisquer manifestações
artísticas, ou não, ocorrem no âmbito de uma luta política, portanto, “elas podem ser
diferenciadas pelos níveis de engajamento, mas não por meio de divisões esquemáticas
como “político” e “não - político
32
”.
“Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura
de esquerda)
33
”, de Edélcio Mostaço, é outra referência importante. Na obra, o autor
coloca o teatro como um dos centros mais importantes de debates políticos e culturais
das décadas de 1960/1970, por isso toma como objeto de estudo a trajetória artística, as
concepções políticas e estéticas dos três maiores grupos de teatro que ocuparam a cena
31
Idem, p. 228.
32
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha - um dramaturgo no coração de seu tempo. Op. cit, p.20.
33
MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião ( uma interpretação da cultura de
esquerda). Op. Cit.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
114
brasileira nas primeiras décadas do Regime Militar: Arena/SP (1953), Oficina/SP
(1958) e Opinião/RJ (1964).
Ao refletir sobre o Arena, MOSTAÇO acredita que a constituição dos musicais
dialogou diretamente com as teses do Realismo, transitando, ora pelas diretrizes do
Realismo Crítico, ora pelo Realismo Socialista. Quanto ao espetáculo Arena Conta
Zumbi, ressalta:
Um maniqueísmo excessivo marca a realização: os negros são sempre belos,
altaneiros, alegres; os brancos despóticos, sorumbáticos, desprezíveis e cruéis.
As correlações históricas entre o passado e o presente foram forçadas
deliberadamente para demonstrar uma similitude de fatos, e assim atingir sua
mensagem política: uma fase de tolerância e de transações de amizade e
convivência pacífica entre negros e brancos, sobrevém um duro golpe
militarista, destinado a desbaratar os quilombos, a apagar a memória daquele
sonho de liberdade e felicidade humanas. (...) Também aqui o mesmo circuito
fechado entre palco e platéia dominava a realização, a mesma catarsis
purgadora circunscrevia cena e público no ritual cívico do protesto. (...) Zumbi
nos sugere que ao radicar no estudante o arquétipo de alteridade para o típico
do Arena, o grupo enfiou os pés pelas mãos, escolhendo seu público como
personagem padrão para representar aquela função do indivíduo na história,
concorrendo decisivamente para mitificá-lo no plano do real e do imaginário
(...) isto é, escolhendo o agente transformador exatamente onde ele não
estava(...). Ainda que efetivamente a frente e os estudantes se posicionassem
como elementos transformadores, progressistas, idealisticamente companheiros
de caminho, atribuir prioridade transformadora a estes estratos demonstra
pressa analítica em matéria política
34
. (grifos nossos)
Algumas questões pontuadas pelo autor precisam ser melhor matizadas.
Primeiramente, a linha política e estética do Arena não se fundamentava nas teses do
Realismo Socialista. Por mais que o Arena agregasse pessoas comprometidas com os
pressupostos políticos do PCB, como Gianfrancesco Guarnieri que é dos autores de
Zumbi, e o próprio Oduvaldo Vianna Filho, que abandonou o grupo em 1962, isso não
quer dizer que seguia piamente as chamadas de luta do Partido, fazendo de sua
produção artística um mero instrumento político divulgador dos ideais “pecebistas”.
Mais que isso, diante da perplexidade do Golpe, o Arena apostou em uma estética
inovadora, que contribuísse de alguma forma para o debate político. Assim, os
“Musicais” representaram uma alternativa, um canal de expressão para dialogar com seu
momento, promovendo discussões para organizar a esquerda e promover a resistência
política, caminho esse que levaria à transformação política do País
35
.
34
Idem, p. 83-85.
35
Nesta obra Edélcio Mostaço toca em um ponto de suma importância na trajetória artística do Arena, a
questão do público. É difícil concordar com a opinião de que os estudantes eram o público “escolhido”
pelo Arena para a concretização de uma “ação transformadora”. Esse é um assunto bastante complexo, e
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
115
No que diz respeito ao texto Arena Conta Tiradentes, Edélcio Mostaço segue a
linha de interpretação adotada em Zumbi, remetendo-o à pura ideologia política e uma
forma estética previamente determinada para um público específico:
Boal teoriza sobre o coringa fazendo nascer, em 1967, um dos mais acabados
exemplos de pura ideologização da recente história do teatro brasileiro. (...)
Relegando as categorias estéticas para bem longe inclusive das relações antes
de estabelecidas entre arte/política, Boal prevê validade apenas nas obras que
resultem em algum saldo político organizacional imediato, como os comícios e
as assembléias, ou que se assemelhem a uma contenda onde alguém perde ou
ganha, como no futebol, nas lutas de box. (...) Desnecessário insistir sobre o
caráter altamente ideologizado que presidiu a feitura do texto e do espetáculo.
Como ocorrerá em Zumbi, o Arena sabia dispor de um público bastante
específico ao qual se dirigia com argúcia, apurando nestas constantes
autocríticas e refinamentos retóricos um aprofundamento de mobilização
eficiente. O Arena, que já possuía uma perspectiva sobre a história, pretende
agora aprofundar uma intervenção sobre a história, uma ação. A estética já
não é mais do que mera arma de incitamento e o teatro senão o lugar de
encontro da seita para ouvir a palavra de ordem a ser cumprida na rua
36
.
(grifos nossos)
Um olhar atento sobre as considerações desse autor faz perceber que ele avalia a
“fase dos musicais” sob uma única perspectiva: sua existência dá-se somente no âmbito
da veiculação dos ideais das teses do Realismo. Portanto, Arena Conta Tiradentes nada
mais seria que um instrumento estético de propaganda política, especificamente do
PCB. Em momento algum ele avalia as inovações estéticas, como as canções que dão
uma nova e bonita forma ao espetáculo, não leva em conta os diversos temas propostos
pelo texto, que com certeza ultrapassam a abordagem propagandista partidária que o
autor insiste em realçar. Assim como Sônia Goldfeder, Mostaço desvincula o estético do
político, situando as opções estéticas em um campo onde o político não pode atuar.
para sua maior compreensão, devemos remetê-lo à conjuntura política e histórica em que os espetáculos
eram realizados. O Arena não atingia um número expressivo de espectadores pertencentes às massas
populares porque, em primeira instância o grupo nunca foi subvencionado pelo poder público. A cobrança
de ingressos, o tamanho e a localização do espaço para a realização dos espetáculos, eram fatores que
possivelmente não facilitavam o acesso “popular” às atividades do grupo. Ao mesmo tempo, o Arena,
sendo um grupo teatral que não estava a serviço dos interesses políticos dos militares, nunca seria
subvencionado por esse governo. Assim, a possibilidade de realizar seus espetáculos em praças e escolas
públicas, em fábricas e ruas à fim de alcançar um público popular mais expressivo, tornou-se
essencialmente restrita. Portanto o Arena não “escolheu” fortuitamente o público estudantil como platéia
para seus espetáculos. Circunstancialmente eram os únicos que, pelas questões pontuadas, conseguiam
chegar ao teatro e participar politicamente das discussões propostas pelo grupo. Mas isso não significa
que o grupo restringiu suas apresentações à sede na rua Teodoro Bayma. Diante dos impasses, das
contradições colocadas pela necessidade de atingir o público popular, realizou incursões pelo Brasil,
visitando diversas cidades como o Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa e Salvador.
36
MOSTAÇO, Edélcio. Op. Cit, p. 91-93.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
116
Portanto seriam conceitos estanques, que, se pensados juntos em uma obra, a fariam
perder a sua a “validade artística”, tornando-a apenas um instrumento de propaganda.
Ao pensar o texto Arena Conta Tiradentes no âmbito de seu contexto, o Brasil
da década de 60, especialmente o ano de 1967, o autor tece reflexões dando margem a
uma série de suspeitas:
A mobilização atinge seu grau máximo, onde o mínimo desejável é que o
espectador, saído do teatro, apanhe a primeira arma e comece a lutar. (...) O
racha de 67, de onde surge a ALN e suas táticas que preconizavam, pela via
cubana, a luta armada como única saída para os povos oprimidos, encontra na
montagem de Tiradentes não apenas uma apologia estética como a primeira
mobilização de opinião pública a nível de sua propaganda. (...) Tiradentes
representa o auge destes rituais cívico - morais destinados a encorajar a
platéia com lenitivos estéticos/retóricos. A exortação era um componente
inalienável do espetáculo, culminando num hino guerreiro que enfatizava
“mais vale morrer com uma espada na mão do que viver como carrapato na
lama” (...). A platéia, ao declarar sim e seu foro íntimo, em estreita conivência
com as idéias apresentadas; ao sentir-se respaldada em suas crenças,
prognósticos e desejos; ao sentir-se alimentada, revigorada e armada de
argumentação solidária com a presenciada em cena, encontrava-se mais
completamente dentro das malhas da ideologia
37
. (grifos nossos)
O Golpe Militar de 1964 trouxe dúvidas, angústias e o sentimento exacerbado de
perplexidade, e a contribuição de Boal e Guarnieri para a resolução dos impasses
vividos foi certamente construir, organizar um trabalho de resistência política e cultural.
Portanto o tempo de Arena Conta Tiradentes não é aquele que MOSTAÇO insiste em
lhe dar: o do incitamento à luta armada, que, em 1967, dava apenas os primeiros sinais
de vida. O texto é mais uma alegoria ao Golpe, momento em que a esquerda se
mobiliza para redefinir seu projeto cultural e repensar suas táticas políticas. Na peça os
dramaturgos ressaltam a necessidade tanto de o “intelectual” (os inconfidentes) quanto
“militante” (Tiradentes) repensarem e exercitarem seu papel frente os acontecimentos
de 1964, fazendo convergir seus interesses para um princípio político comum: organizar
a esquerda e construir a resistência democrática.
Outra questão a ser pensada, provocada ainda pelo crítico Edélcio Mostaço, é o
efeito catártico do espetáculo sobre o público. Até o momento, o autor tratou a platéia
dos “musicais” como agentes sociais passivos, que se anulam diante do conteúdo
político e das provocações estéticas dos espetáculos. Em momento algum o autor leva
em conta que esse público também faz parte de um processo histórico, e que está
envolvido em uma luta política, portanto não são seres “homogêneos” ou “inocentes”,
37
Idem, p. 94-95.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
117
que se privam de suas escolhas políticas por pura conivência aos ‘recados’ do Arena,
como se não tivessem suas próprias expectativas em relação ao processo histórico em
questão.
Nesse sentido, ao contrário do que realça Mostaço, o dramaturgo Dias Gomes,
em um artigo na Revista da Civilização Brasileira, ao refletir sobre a prática do
engajamento nas manifestações artísticas, especialmente no teatro, na década de 60, dá à
platéia uma conotação bastante diferente. Para esse autor, a presença constante do
público nos espetáculos é que permite a sobrevivência do teatro, portanto, esse público
torna-se precisamente um dos responsáveis pelas inovações estéticas e pela tomada de
atitudes políticas pelo teatro brasileiro. Ao contrário do que pensa Mostaço, a platéia,
para Dias Gomes,
acresce dia-a-dia, apontando o caminho da História. Ela tem inclusive, de
certo modo impelido o teatro brasileiro para um caminho de saudável
inventividade, estimulando experiências que rompem violentamente com formas
cênicas perigosamente estratificadas. Sem a sustentação moral, e até certo
ponto econômica desse público jovem, espetáculos como Arena Conta
Tiradentes, e os já citados O Rei da Vela e Roda Viva talvez não fossem
possíveis. (...) o espectador por vezes age, sim, mas não em razão de uma
tomada de consciência provocada pelo problema exposto, simplesmente por ter
sido incomodado em seu bem-estar físico ou emocional, o que prova inocuidade
de seu radicalismo
38
.
O trabalho de Cláudia de Arruda Campos, Zumbi Tiradentes
39
, seguindo a
mesma linha de interpretação dos trabalhos citados até o momento, retoma a trajetória
artística e política do Arena, enfatizando marcos e periodizações datados pelos críticos
teatrais. Portanto, suas análises percorrem as atividades mais importantes do grupo: a
fusão com o Teatro Paulista do Estudante, a chegada de Augusto Boal ao grupo, a
encenação de Eles Não Usam Black-Tie, acompanhando a linha cronológica das
atividades do grupo até chegar à “fase dos musicais”. A autora toma como referência
para as suas análises reflexões de críticos e estudiosos importantes do teatro brasileiro,
como Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Mariângela Alves de Lima e Sônia
Goldfeder.
A obra de Cláudia de Arruda Campos também é uma referência importante para
este trabalho, mas as interpretações que tece sobre Arena Conta Zumbi e Arena Conta
38
GOMES, Dias. O Engajamento é uma Prática de Liberdade. In: Revista da Civilização Brasileira. Ano
I, nº2, maio, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
39
CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de São
Paulo). São Paulo: Perspectiva, 1988.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
118
Tiradentes não trazem grandes inovações em relação aos trabalhos mencionados até
aqui. Tomando a obra como um todo, nota-se que a autora projeta uma idéia negativa
dos musicais, enxergando Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes como peças
“não inovadoras”, que reiteram apenas o “já visto” e o “já vivido”. Sobretudo, elas
representam um processo agônico, uma patética luta por manter uma unidade e uma
estética “destinada”, o que implica uma perda da realidade em transformação, que
requer novas formas, novas atitudes. Quanto à realização de Zumbi, a autora considera:
reproduz-se (...), a postura que orienta A Semente, de Guarnieri: critica-se a
esquerda, mas dentro de um ponto de vista solidário.(...) o ângulo de visão
pretende ser o do povo derrotado, o de todos os empenhados na luta, tornando-
se, assim, coletiva a responsabilidade por erros e acertos.(...) em Zumbi tudo se
passa como se a compreensão do erro fosse o bastante para a sua superação e
reversão da derrota . Não indicam os novos rumos, mas se insiste na
continuidade de uma luta que, conforme a dedicatória, ‘dignifica o ser
humano’. A mensagem é sobretudo moral (...) a superficialidade da análise
política responde, e, parte, a uma limitação auto-imposta de atender o
imediato, fazendo de Zumbi uma peça datada, já pelo insistente recurso a
alusões que se perdem para quem não tenha proximidade com os
acontecimentos
40
. (grifos nossos)
As análises de ARRUDA CAMPOS nos suscitam algumas inquietações. Em
primeiro lugar não se encontra em Zumbi, ou nos musicais como um todo, uma crítica
solidária à esquerda. É claro que os erros táticos do Partido (PCB) já haviam sido
detectados e necessariamente precisavam ser superados. Porém os “musicais” não têm a
pretensão de emitir “respostas” ou “soluções” aos impasses do momento, mas devem
ser entendidos como uma contribuição ao debate, uma vez que o teatro, por si só, não é
capaz de promover mudanças ou intervir diretamente nas situações políticas do País. Ao
contrário do que se pensa, ele age apenas sobre os homens que são os agentes sociais
responsáveis pela transformação do status quo de uma sociedade.
Por outro lado, não se deve enxergar Arena Conta Zumbi como uma obra datada.
O simples fato de ter como fio condutor de sua narrativa um explícito conteúdo político
não significa que seja superada pelo tempo, isto é, que sirva de reflexão apenas para o
momento em que foi concebida. Aos olhos do historiador de ofício, toda arte é política e
traz no seu âmago as lutas de uma época, portanto, ao lidar com as fontes artísticas,
sejam elas “engajadas” ou “não engajadas”, é essencialmente importante atualizá-las,
40
Idem, p. 76-77.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
119
redimensioná-las de acordo com seu momento de produção e, acima de tudo, criar
novas tentativas de interpretação
41
.
Seguindo a mesma lógica de interpretação utilizada em Zumbi, Cláudia de
Arruda Campos levanta uma série de restrições ao texto Arena Conta Tiradentes:
Uma visão muito semelhante preside à articulação de um espetáculo fechado,
que procura eliminar toda ambigüidade através de recursos que reiteram
muitas vezes, variando as formas, a mesma idéia. (...) O Coringa, como bom
professor às antigas, dispõe-se a explicar, demonstrar, exaurir os temas e ainda
nos oferece um modelo a adotar. (...) O espectador é incitado, por todos os
meios, a alinhar-se. (...) Quando o produto artístico já não oferece à
interpretação do fruidor, mas pretende moldar-lhe à consciência através da
mensagem didaticamente (e estreitamente) organizada, entende-se o palco
como portador e doador da verdade que, aliás, se veicula em mão única (...). A
proposta de ação política, o chamar o povo em armas um povo que está ausente
do processo revolucionário, atraí-lo para uma resistência organizada sem a
sua participação, pode ser autoritária, mas recai também no gesto de
desespero, quase na mesma rebeldia romântica que transborda em Zumbi.
Historicamente, no Brasil de 1967, ela resultou na substituição de uma
“política de massas” populista pela ação armada de vanguarda, tão
paternalista no substituir as massas, quanto generosa em heroísmo
42
. (grifos
nossos)
As reflexões da autora foram suficientemente referendadas nas obras de Sônia
Goldfeder e Edélcio Mostaço. Desses três trabalhos, todos apontam uma mesma linha
de interpretação a ser seguida: Arena Conta Tiradentes, é um texto “fechado”,
“esquemático” e “didático”, servindo apenas como instrumento de incitamento à
militância política, especialmente àquela vinculada ao Partido Comunista Brasileiro.
Sobretudo, é um texto que tem o seu valor artístico diminuído, e Boal e Guarnieri são
acusados de comprometer a estética da obra ao executar de forma exaustiva uma
abordagem política.
Diante da unanimidade de interpretações que cerca o texto Arena Conta
Tiradentes, nota-se que em nenhum momento o texto foi articulado com o seu momento
histórico, em nenhuma análise seus símbolos ou códigos de representação foram
decifrados, o que permitiria o resgate de sua historicidade. Nessas circunstâncias, a
contribuição do historiador de ofício para o enriquecimento das relações entre estética e
História, com toda certeza será a de: “questionar a sucessão de acontecimentos,
41
Reflexões importantes sobre essa questão são dadas pela historiadora Rosangela Patriota, na obra
Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo, Op. Cit.
42
CAMPOS, Cláudia de Arruda . Op. Cit, p. 115-116.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
120
destituídos de significados, onde estão inseridas as histórias específicas, que tem o
papel de ordenar o passado despindo- o de suas contradições e historicidade
43
”.
Neste trabalho, Arena Conta Tiradentes não será interpretada como uma obra
“fechada”, “esquemática”, “maniqueísta” e “didática”. Mas será pensada no interior da
luta política de seu tempo, como instrumento de resistência, como representação dos
inquietantes momentos que tanto a esquerda quanto seus militantes e intelectuais
estavam passando diante da perplexidade e surpresa do Golpe. Para tanto, é fundamental
resgatar a sua estrutura dramática e as situações vivenciadas que permitam desvelar
nuanças da realidade política de nossa história contemporânea.
Arena Conta Tiradentes: construção dramática e temas
/.../ vocês descobriram uma verdade luminosa, a luta de classes, e
pronto, pensam que ela basta para explicar tudo ... a tarefa nossa não
é esperar que uma verdade aconteça, nossa tarefa é descobrir novas
verdades, todos os dias ...acho que vocês perderam a arma principal:
a dúvida.
(Oduvaldo Vianna Filho em Rasga Coração).
Excelência! Já agora nada mais ratifico. Até agora neguei, não por
querer encobrir minha culpa, mas por não querer perder ninguém./.../
É verdade que eu desejava meu país livre, Independente, Republicano.
É verdade que eu confiei demais, e é verdade que abandonei aqueles
para quem outros diziam querer a liberdade. E é verdade que só os
abandonados arriscam, que só os abandonados assumem, e só com
eles eu devia tratar. É verdade que eu tenho culpa e só eu tenho
culpa. E é verdade que estou só.
(Fala da personagem Tiradentes, em Arena Conta Tiradentes).
Lembrando que toda obra de arte é fruto de sua época e por isso traz em si
princípios da realidade vivida, Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, quando
constróem suas obras resgatando o tema da liberdade no século XVIII, estão refletindo e
propiciando debates sobre questões latentes da sociedade presente, em especial o
Regime Militar. Para visualizar tal questão, torna-se necessário apreender os temas
privilegiados pelos dramaturgos na narrativa da peça e pensá-los à luz do momento
presente, estabelecendo ao mesmo tempo um contraponto com a “historiografia
especializada” existente.
43
PATRIOTA, Rosangela. O teatro como Objeto de Pesquisa Historiográfica. In: Revista História e
Debate. ANPUH, 1992, p. 231.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
121
Para colocar o leitor em contato com a principal temática que perpassa o enredo
de Arena Conta Tiradentes
44
a questão da soberania nacional e a idéia de liberdade
divulgada pela Inconfidência Mineira , é importante expor aqui a estrutura da obra.
A ação dramática de Arena Conta Tiradentes desenrola-se em dois tempos: o
primeiro contém três episódios (os “desmandos” do governo de Cunha Menezes, as
contradições no governo de Visconde de Barbacena e a preparação para o Levante. Já o
segundo momento é construído em dois episódios: são eles: julgamento referente à
delação; perseguição e prisão dos inconfidentes; julgamento das sentenças e execução
de Tiradentes.
A trama, que tem como palco a cidade de Vila Rica em 1789, gira em torno dos
planos que levariam à Inconfidência Mineira. Os acontecimentos dramáticos da peça
transcorrem basicamente em torno de Joaquim José da Silva Xavier Tiradentes - que
pode ser considerado a personagem principal da peça. Boal e Guarnieri projetam nele a
imagem do herói “revolucionário”, que luta e morre pela liberdade, mas sem esclarecer
uma das questões mais importantes do espetáculo: “de que liberdade se trata?”.
Pode-se dizer que Arena Conta Tiradentes fez reviver a imagem subversiva do
inconfidente Joaquim José da Silva Xavier. Este, durante toda a trama dramática da
peça, apresenta-se como um autêntico revolucionário: convicto da idéia de
transformação política, defende seus ideais até a morte, oferecendo seu sacrifício em
favor da causa da liberdade. Na peça a Inconfidência Mineira também é um movimento
fracassado, idealizado pelos inconfidentes e sem a mínima participação dos segmentos
populares.
Ao lado de Tiradentes - protagonista da peça - somam-se as “figuras históricas”
conhecidas e divulgadas pela historiografia. São as personagens secundárias,
responsáveis por desencadear as modificações de atitudes da personagem principal. Na
peça, os poetas árcades - elite intelectual mineira - vêm representados por Tomaz
Antônio de Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto. A Igreja vem
representada pelo Padre Rolin; o Estado, pelos governadores Cunha Menezes e
Barbacena; o Exército pelo Tenente Coronel Francisco de Paula Freire; a aristocracia,
por José Alvares Maciel. Ao lado desses, estão as personagens Mônica, as Pilatas, Da.
44
Arena Conta Tiradentes foi encenada em abril de 1967, primeiro em Belo Horizonte e Ouro Preto, depois em São
Paulo. O elenco era composto por: Gianfrancesco Guarnieri, Renato Consorte, David José, Dina Sfat, Jairo Arco e
Flexa, Vânya Santana, Silvio Zilber e Cláudio Pucci. A produção foi de Pedro Stepanenko, Miriam Muniz, Antônio
Ronco Osvaldo Cristiano. Direção Musical: Théo Barros. Compositores: Gilberto Gil, Sidney Miller, Cartano
Velloso. Direção Geral: Augusto Boal.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
122
Inácia, os mineiros, que podem ser entendidos como representantes do segmentos
populares da sociedade mineira no século XVIII.
Em Arena Conta Tiradentes, a Inconfidência Mineira é narrada de forma
fragmentada, os acontecimentos não obedecem a uma seqüência cronológica. Tanto é
assim que a peça já inicia suas ações dramáticas pela sentença do crime sem
apresentar ao leitor/espectador as causas, os fatos que fizeram parte dos acontecimentos
de 1789 em Vila Rica. Ao mesmo tempo, os interrogatórios a que Tiradentes foi
submetido na demorada e conturbada devassa são distribuídos por todo o texto entre os
episódios, ganhando assim um destaque na construção dramática da peça
45
.
Ao construir o musical, Augusto Boal justifica que esse momento “culminou a
fase de destruição do teatro, de todos os seus valores, regras, preceitos, receitas, etc.
Não podíamos aceitar as convenções praticadas (...)
46
”. Nessa época o Arena passava
por momentos difíceis, encontrava-se diante das mesmas dificuldades, problemas e
indagações que o teatro paulista. As respostas aos impasses vieram através de novas
experiências dramáticas e estéticas nos palcos. Assim, um dos caminhos encontrados
pelos musicais foi a adoção do “Sistema Coringa”.
Para Augusto Boal, Coringa é “um sistema que se pretende propor como forma
permanente de se fazer teatro dramaturgia e encenação
47
. Esse sistema apresenta
técnicas e objetivos a serem alcançados, portanto, em Arena Conta Tiradentes, novas
convenções e modelos foram buscados, a peça tem uma forma estética inovadora,
rompe com a linearidade dos espetáculos “tradicionais”, com a construção de
personagens “definidos”, a forma de apresentação do conteúdo dá-se de forma
descontraída e fragmentada.
A grande solução dramática no texto Tiradentes, inédito nos palcos brasileiros
(utilizado apenas em Zumbi), foi a desvinculação ator/personagem. No desenrolar da
peça, os atores representam todos os papéis, e o público os reconhecerá pelos gestos,
pela fala (tom/inflexão de voz), pela posturas, por efeitos de iluminação, pelo estilo
exceto Tiradentes, que tem o seu papel desempenhado por um único ator. Nessas
45
O Romanceiro da Inconfidência também não resgata a história da Inconfidência Mineira obedecendo à
seqüência exata dos fatos. Sua narrativa é fragmentada, ao longo da estória Cecília Meireles prenuncia o
fim trágico dos acontecimentos envolvendo a Conjura: punição e morte dos inconfidentes. A “Fala
Inicial”, poema que abre a obra, tem essa intenção: antecipar o desfecho, o insucesso do “movimento de
liberdade travado em Minas no século XVIII. MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
46
BOAL, Augusto e GUARNIERI. Gianfrancesco. Arena Conta Tiradentes. Op. Cit., p. 23.
47
Idem, p. 28.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
123
circunstâncias a história não é contada sob a perspectiva de um único personagem, o
espetáculo, a interpretação tornam-se essencialmente uma prática coletiva.
Outra técnica bastante válida na peça foi a música. Em Tiradentes a linguagem
musical tem uma função importante, pois, além de preparar a platéia para novas
situações dramáticas, também viabiliza “os recados”, explicita o conteúdo político que
deveria passar para a platéia. As canções vêm mostrar os diferentes estilos colocados no
texto e, além de enriquecer o espetáculo, deixam-no mais descontraído e bonito.
Ao lado da estrutura fixa de elenco e da utilização das canções nos espetáculos,
prevê-se também uma estrutura fixa de espetáculo. Esta divide-se em sete partes
principais: Dedicatória, Explicação, Episódio, Cena, Comentário, Entrevista e
Exortação. Essa organização do texto não é fortuita, mas surge da “necessidade de
analisar o texto e revelar essa análise à platéia; de enfocar a ação segundo uma
determinada e preestabelecida perspectiva e só dessa; de mostrar o ponto de vista do
autor ou dos recriadores(...)
48
”. Em suma, as opiniões e reflexões dos dramaturgos
deveriam ser repassadas, com clareza, transparência e eficácia ao público, suscitando
sobretudo uma discussão/reflexão política. Para colocar o leitor em contato com o
Sistema Coringa e as temáticas de Arena Conta Tiradentes, torna-se necessário expor as
situações vivenciadas.
A Historicidade de Arena Conta Tiradentes: a busca de um contraponto entre arte
e a historiografia
A primeira cena de Arena Conta Tiradentes, é realizada pelo coro, que entoa o
Poema Dez Vidas:
Dez vidas eu tivesse,
Dez vidas eu daria.
Dez vidas prisioneiras
Ansioso eu trocaria,
Pelo bem da liberdade,
Nem que fosse por um dia.
Se assim fizessem todos,
Aqui não existiria
Tão negra sujeição
Que dá feição de vida
Ao que é mais feia morte;
Morrer de quem aceita
48
Idem, p. 31.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
124
Viver em escravidão.
Dez vidas eu tivesse
Dez vidas eu daria.
Mais vale erguer a espada
Desafiando a morte
Do que sofrer a morte
De sua terra alugada
49
. (...)
Essa canção é retomada com freqüência ao longo da peça, tornando evidente
para o espectador/leitor a afirmação de luta e a postura do “herói modelar” Tiradentes,
que, deu a vida pelo movimento. Logo após a canção Dez Vidas, Tiradentes aparece
encadeado, recebendo a condenação. Esta é primeira cena em que o Alferes é
apresentado ao leitor/espectador e mostra um dos momentos mais importantes da
Inconfidência Mineira: a leitura da sentença editada pelos autos. Depois de cometer um
crime de lesa majestade, o réu Joaquim José da Silva Xavier foi duramente castigado,
sofrendo a pena maior entre todos os envolvidos no movimento, a morte na forca. Nota-
se que os autores da peça realçam esse fato, antes mesmo de apresentar os episódios que
desencadearam a sentença do crime. A inversão dos acontecimentos já revela a
personagem como vítima infeliz do seu ideal de liberdade. As ações dramáticas
transcorrem na sala do Oratório da Cadeia Pública do Rio de Janeiro, possivelmente no
ano de 1792. A rubrica exprime a “fala branda e suavemente, com carinho”, do
Escrivão que lê a sentença do crime:
ESCRIVÃO: Portanto, condeno o réu Joaquim José da Silva Xavier, por
alcunha o Tiradentes alferes que foi da Tropa da Capitania de Minas a que,
com baraço e pregação, seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar ao fôrca e
nela morra morte natural para sempre e que depois de morto lhe seja cortada a
cabeça e levada à Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, onde em
o lugar mais alto dela será pregada em um poste alto, até que o tempo a
consuma; e o seu corpo será dividido em quatro e pregados em postes pelos
caminhos das Minas, no sítio da Varginha e das Cebôlas, aonde o réu teve suas
infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações, até que o tempo
também os consuma. Declaro o réu infame e seus filhos e netos, tendo-os. E
seus bens aplicados para o Fisco e Câmara Real. E a casa em que vivia será
arrazada e salgada para que nunca mais no chão se edifique.... (p.59)
A cena é interrompida pela participação do Coringa, que anuncia: (dirigindo-se
ao público) “Esta foi a sentença. Nós vamos contar a história do crime”.
Dedicatória de Arena Conta Tiradentes
49
Idem, p. 58. A partir de agora todas as referências de páginas da peça Arena Conta Tiradentes, serão
apresentadas no corpo do texto, depois da citação da mesma.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
125
A história se inicia com a dedicatória da peça a José Joaquim Maya, que,
segundo a personagem Coringa: foi o primeiro homem a se preocupar com a liberdade
no Brasil” (p.60) . José Maya, estudante brasileiro em Montpellier, França, escreve uma
carta a Tomaz Jeferson, “herói da independência” norte-americana, em 1787, antes de
ser descoberta a conspiração de Vila Rica. Na carta (escrita em francês), o estudante
ressalta o descontentamento dos brasileiros em viver subordinados a Portugal e a
possibilidade de instaurar uma “revolução”. O coro participa da cena, repetindo o
mesmo teor político da fala de Maya:
Eu sou brasileiro mas não tenho lugar (...) Essa pátria não é minha, é de quem
não vive lá. O pássaro na gaiola, já nascido em cativeiro,aprende a cantar e
canta se permanece prisioneiro. Mas se lhe abrem a portinhola, bem capaz é de
morrer. Com medo à liberdade, já não sabe nem viver. Quem aceita a tirania
bem merece a condição, não basta viver somente, é preciso dizer não! (p. 61)
Para sair da condição de subordinado de Portugal, José Maya recorre à ajuda de
Thomas Jefferson:
MAYA: Estamos dispostos a seguir vosso exemplo e necessitamos de vossa
ajuda. Rompam relações com Portugal! Enviem navios de guerra para proteger
nossas costas. Mandem-nos técnicos e oficiais. Com vossa ajuda um mundo
novo vai nascer!
THOMAZ JEFFERSON: (...) O povo brasileiro pode contar com todo o nosso
apoio moral, mas não com nossos navios. E quando o povo brasileiro por si só,
já estiver conseguido a libertação poderá contar com os nossos oficiais para
adestrar seu exército. Em troca o Brasil deverá somente com prar o nosso
bacalhau (p. 61).
Os momentos supracitados serviram de referência para perceber a posição do
Brasil, que, para sair da condição de colônia de Portugal, atrela-se a outra potência, os
E.U.A, que, por sua vez, só ajudaria o País quando este, por si só, conseguisse libertar-
se. A liberdade ainda viria sob a forma de uma exploração comercial, a compra do
bacalhau norte-americano. Ao fazer uma análise sobre Arena Conta Tiradentes, a autora
Cláudia de Arruda Campos ressalta que é esse o momento em que se percebe a luta
libertária em que o Arena está comprometido: “a luta anti-imperialista”
50
.
50
CAMPOS, Cláudia de Arruda. Op. Cit., p. 111.
No momento da escrita de Arena Conta Tiradentes, o Brasil vivia sob as amarras do imperialismo
internacional. A política do “milagre econômico” implantada pelo regime militar incentivava a entrada do
capital estrangeiro sob a forma de capital de investimentos, mas sobretudo, de capital de empréstimo, o
que teria repercussões na dívida externa (...) criando-se um sistema de crédito subsidiado para as
empresas e crédito fácil para o consumo de bens duráveis produzidos pelas multinacionais. Ao lado do
favorecimento ao capital estrangeiro o próprio conceito de nacionalismo foi reformulado: “Através da
atuação do Itamarati lançava-se o “Nacionalismo Pragmático”, sintetizado na célebre frase de Juracy
Guimarães, ministro do Exterior, “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” - que não
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
126
A luta libertária a que o texto de Boal e Guarnieri faz referência transcende a
luta anti-imperialista mencionada por ARRUDA CAMPOS. Para entender a
complexidade do projeto libertário do Arena nesse momento, é preciso lembrar outras
situações dramáticas, que trazem temas vinculados às condições políticas/sociais da
época de produção da peça.
O Governo de Cunha Menezes: “O Fanfarrão Minésio das Cartas Chilenas”
Depois de feita a dedicatória, o episódio do primeiro tempo de Arena Conta
Tiradentes é dedicado às realizações do governador Luiz Cunha Menezes, que
administrou Vila Rica de 1784 a 1788. O governo do “Fanfarrão Minésio”, como dizem
as famosas Cartas Chilenas, escrita por um inconfidente, apontado como sendo Tomaz
Antônio de Gonzaga, não agradou a elite mineira, que o classificou como “tirano”e
“corrupto
51
”.
Em Arena Conta Tiradentes, Cunha Menezes foi autor de diversas obras em Vila
Rica, uma delas a Cadeia Pública :
CORINGA: Luiz da Cunha Menezes construiu casa, rua palácio (...) Fez obra
monumental! Obra símbolo do Brasil - a Cadeia Pública - símbolo do Brasil
Colônia! Era homem honesto. Para sua construtução abriu concorrência
pública, e honestamente contratou quem honestamente ofereceu melhores
condições. Isto é, a mais honesta porcentagem para ele próprio, Governador.
(p. 63)
questionava a dependência econômica nem a hegemonia norte americana, mas ajustava-se à defesa
integrada do continente, proposta pela O.E.A . PAES. Maria Helena Simões. A década de 60 - Rebeldia,
contestação e repressão política. São Paulo: Ática, 1992, p.48-51.
51
A administração de Cunha Menezes foi particularmente “arbitrária” e “corrupta”, provocando críticas
severas dos homens ilustres da Capitania de Minas Gerais. De acordo com o historiador LIMA JÚNIOR,
esse governador era um homem “rústico”, “grosseiro” e “desonesto”. Assim que tomou posse, demitiu do
cargo de Secretário do Governo o advogado Cláudio Manuel da Costa; Logo depois indispôs-se
publicamente com Tomaz Antônio de Gonzaga, que se tornou o seu maior opositor na Capitania. Foi esse
governador quem construiu o maior símbolo da colônia mineira, a Cadeia Pública de Vila Rica. Consta
que, na época dessa construção, o Governador extorquiu dinheiro de particulares, submetendo os presos a
torturas e usando de bastante violência contra a população. A intransigência do seu governo provocou a
colônia mineira vários atos de resistência, um deles a circulação das famosas Cartas Chilenas,
supostamente escritas por Tomaz Antônio de Gonzaga a Doroteu (possivelmente seu amigo Cláudio
Manuel da Costa), relatando os mandos e desmandos de Fanfarrão Minésio (Cunha Menezes).
Ver: LIMA JÚNIOR, Augusto. História da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1968, p. 24-30.
Em Arena Conta Tiradentes, nenhuma menção foi feita às Cartas Chilenas. A oposição de Gonzaga ao
governador foi feita corpo-a-corpo, sem utilizar subterfúgio para tecer suas criticas.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
127
Na peça, o “Fanfarrão Minésio” aparece como idealizador da modernidade,
devido às grandes realizações suas que beneficiavam a população
52
. A construção da
Cadeia Pública em Vila Rica foi um dos marcos do Governador Cunha Menezes. Por se
tratar de uma obra grande, exigiu uma numerosa mão- de- obra, com trabalhos
constantes. A obra, além de simbolizar a submissão, a dependência sofrida pela colônia
no período em que pertencia à metropóle, sugere ainda obediência, disciplina e
alienação do trabalhador no contexto da economia capitalista: MENEZES: Grandes
homens, grandes monumentos / Morram de trabalhar, meus filhos, que a história se
lembrará de vocês
53
(p. 64). Enquanto isso, Coringa anuncia uma outra situação
dramática: na capitania do Rio de Janeiro, Tiradentes, de passagem numa casa de
Pilatas, a toda gente espantava. Tiradentes semeava vento” ( p.13).
Nesta passagem de Tiradentes pelo Rio de Janeiro foi dado ao expectador/leitor
a chance de conhecer o perfil político da personagem, no desenrolar da peça, a
militância política de Joaquim José é exaustivamente expolorada: em alguns momentos
aparece correndo, esbravejando idéias a favor da República e da Independência da
nação brasileira. Os acontecimentos dramáticos colocam em cena um Alferes esfuziante
em entusiasmo, “exaltado”, expondo a todos seus pensamentos republicanos e
libertários
54
:
TIRADENTES: Todo poder vem do povo e em nome do povo vai ser exercido!
Tudo que é preciso resolver, reúne o povo na praça e pergunta: afinal o que é
que vocês querem!!! E o povo responde: <queremos pão! Queremos
trabalho!> (...) Etâ! Que dá vontade de abrir sua cabeça a ferro pra você
52
-“Veja lá Florindo, a Rua do Ouvidor, que diferença! Veja o ar satisfeito e risonho do meu povo! Obra
de quem ? Desse ‘Fanfarrão Minésio’ aqui (...) Além de tudo que eu fiz com minhas mãos, a colônia me
deve mais este serviço. Modernizei a lei. Antes se esperavam 3 meses as setenças da Coroa. Hoje é na
hora”. (p. 09 11).
O ideal “modernizador” e “desenvolvimentista” do governo de Cunha Menezes pode ser circusntanciado
com o momento da escrita de Arena Conta Tiradentes, uma vez que a década de 1960 foi marcada pelo
crescimento acelerado da economia e expansão industrial. A urbanização e a construção de obras
faraônicas foram aspectos marcantes desse período. De acordo com as análises de Maria H. Simões, este
aspecto foi resultado da política do “milagre econômico” que se caracterizou por “um crescimento
acelerado da indústria intensamente integrada ao setor bancário, marcado por fusões de empresas e pela
formação de conglomerados, acentuando assim a concentração de capital, e o crescimento localizado em
determinadas áreas do país”. PAES, Maria Helena Simões, Op. Cit. p. 51.
53
A questão da alienação é ainda mais clara em um pronunciamento do governador Barbacena: “Critique
menos e trabalhe mais”. E pode ainda ser circunstanciada com o momento da escrita da peça, uma vez
que o modelo “ modernizante” e “ conservador ” da década de 60, promoveu uma forte propaganda, que
pretendia fortalecer uma saudável mentalidade em torno de segurança nacional: Brasil, Grande
Potência”, “Esse é um país que vai pra frente”, “Confiamos no Brasil”, “Apostamos no Brasil”.
54
A visita à casa de Pilatas foi informada pelo Romanceiro da Inconfidência, o “Romance XXXII” ou
“Das Pilatas”, também apresenta um Alferes eufórico ansioso por mudanças políticas. Op. Cit, p. 130.
Outro poema, que já se tornou um clássico nos estudos sobre o “ativismo revolucionário” de Joaquim
José, é o “Romance XXVII ou Do Animoso Alferes”. Idem, p. 114
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
128
entender!? Numa República, tudo é de todos. Então a gente pensa também nos
outros, porque os outros somos nós. (...) Na praça se escolhe o Gôverno, que
também é povo, e pensa que nem a gente. Aí sim o País fica rico. Mas só é rico
quando cada um é também. Não é como agora (...) Rico é Portugal. O Brasil só
vai ficar no dia em que o dinheiro não sair daqui. O que é nosso, nosso!
Trabalho nosso, nosso! De tôdos, menos dêles! (...) Caramba! Que se houvesse
mais brasileiros como eu! (p.71-73)
Ao mesmo tempo em que as falas supracitadas permitem vislumbrar facetas do
perfil político do “animoso alferes da República”, é dada também a chance de conhecer
a reação das pessoas que o ouviam. Em algumas situações a fala “exaltada” e
“fervorosa” do Alferes provoca desconfiança, descrédito e aversão à sua imagem.
Observe:
MÔNICA: - Ouve só, Deolinda! Quando eu digo que louco se trata a pau, não é
a toa! Cadê povo pra essas coisas, seu Alferes? Cada um quer fazer a sua
fortuninha sozinho. E pra mim tá certo! E a rainha também tá. Pensa nos
outros a trôco de que? (...) Quem descobriu isso aqui!? Antes era só matagal e
os índios com tudo de fora. Foram eles que vieram e ajeitaram! (....) Sei que o
senhor não é maluco, pelo menos não é maluco de todo. Mas as coisas que o
senhor vive falando: liberdade, liberdade, liberdade o tempo todo... onde já se
viu ... Eu sei que o senhor não é maluco... Pelo menos não é caso de hospício ...
Quer dizer... se o senhor colaborar ... pode até ficar bom como qualquer um de
nós ... qualquer um de nós não reclama! ... Não dá esse nervoso que o senhor
tem ... Até consegue dormir melhor se não reclama (...). (p.72-76)
Nota-se, que em um primeiro momento os discursos políticos de Tiradentes não
despertaram nenhum interesse nas pessoas que o ouviam. Suas palavras soltas, não
direcionadas e exaltadas, tornaram-se armadilhas que lhe custaram o apelido de
“louco”
55
. No entanto, verifica-se que ao longo da narrativa da peça a personagem vai
gradativamente tomando feições políticas mais acabadas, e em encontro com José
Álvares Maciel apresenta-se mais “seguro”, seus discursos longos e eufóricos foram
substituídos por respostas “curtas”, “secas” e sem exaltação. Observe:
MACIEL: Meu nome é Maciel. Com licença (senta-se). Compreendo que o
senhor esteja descontente com o governo, mas já nomearam um novo
governador para Minas ... É o Visconde de Barbacena, por coincidência meu
amigo.
TIRADENTES: Não lhe invejo a amizade.
MACIEL: É um homem bom e honesto.
55
O Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, enfatizou a loucura de Tiradentes, em uma
situação bastante diferente daquela explicitada na peça. Na obra da poetisa, o adjetivo louco lhe foi dado
pelos tropeiros, que se encontravam na estrada que levava de Vila Rica ao Rio de Janeiro. O “Romance
XXIX ou Do Riso dos Tropeiros”, retrata a questão: “passou um louco, montado. Passou um louco a
falar/que isso era uma terra grande e que ia libertar.(...) o louco já deve ir longe: mas ainda o vemos
pelo ar... (...) Por isso é que assim nos rimos, que nos rimos sem parar, pois há gente que não leva a
cabeça no lugar”. (...) p. 127-129.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
129
TIRADENTES: Antes fôsse o diabo, que mais depressa se levantavam os povos
de Minas.
MACIEL: O senhor acha que sofrer levanta o povo?
TIRADENTES: Acho.
MACIEL: Nós dois temos que começar.
TIRADENTES: Nós dois?
MACIEL: Gente não falta. Falta descobrir os homens certos. Gente que possa
mobilizar soldado, dinheiro e armas. (...) Seja quem fôr que possa lutar.
Francisco de Paula é meu cunhado e comandante da Tropa Paga. Gonzaga e
Cláudio Manuel são meus amigos e homens de lei. O Padre Carlos, Rolin, o
Coronel Alvarenga são gente séria que levanta gente. Polvora se consegue.
Uma ponta de lança no Rio, outra na Bahia e Minas se levanta. Se tudo isso se
faz, vai haver muito mais gente como nós. (...) (p.81-82)
Em Arena Conta Tiradentes, o encontro de Joaquim José com Maciel suscita a
expectativa “concreta” de um possível levante em Minas Gerais. O futuro inconfidente,
recémchegado ao Brasil, era um homem de amplos conhecimentos e, além do contato
que teve com os ideais de liberdade em voga na Europa, conhecia pessoas influentes da
política mineira. Em Arena Conta Tiradentes, é José Alvares Maciel quem propõe a
Tiradentes convocar pessoas para sublevar-se contra a Coroa. O encontro de José
Alvares Maciel com Tiradentes foi bem marcado, o primeiro inconformado, o segundo
decidido. E como anunciou o coro: “ (...) juntou a fome com a vontade de comer. Mãos
à obra minha gente/ A Conjura é pra valer”. (p. 83). Já em Vila Rica, Corifeu anuncia a
posse de um novo governador: “Sai Cunha Menezes, Barbacena toma posse! Todo
mundo alegre! A alegria dura pouco!”
O Governo do Visconde de Barbacena
O governador Visconde de Barbacena foi enviado a Vila Rica para ocupar o
lugar de Cunha Menezes, cujo mandato chegara ao fim. Nesta época, 1788, a produção
aurífera mostrava fortes sinais de decadência, a arrecadação de impostos pagos à Coroa
diminuíra bastante
56
. A primeira medida anunciada por Barbacena em seu discurso de
posse foi a instauração do imposto:
Trago esta carta da rainha que me ordena lançar a derrama. Que todos sejam
felizes, apesar de tudo. O Brasil finalmente honrará a Portugal! A derrama
será lançada”. (pânico, espanto profundo. Música de percussão) (p.83).
56
Para Cláudia Villares, o Visconde de Barbacena “tinha como instrução da Coroa Portuguesa pôr fim
aos desmandos na capitânia e impor a derrama, já que Portugal se sentia lesado em seus negócios na
Colônia, principalmente no que se refere à arrecadação do quinto. GANCHO, Cláudia Vilares &
TOLEDO, Vera Vilhena de. Inconfidência Mineira. São Paulo: Árica, 1991, p.37.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
130
Na peça a cobrança do imposto, anunciada por Barbacena, não agradou a
população, principalmente os futuros inconfidentes que estavam endividados com a
Metrópole:
GONZAGA: Mas excelência. São nove milhões de cruzados, nem a Capitânia
do interior possui essa fortuna disponível !(...) FRANCISCO: A Derrama fará
com que o povo se levante, Minas será livre! GONZAGA: A Coroa quer mais
dinheiro. O país não tem. Portanto existe a hipótese de não lançar a Derrama.
(p.83)
Outros inconfidentes, em breves entrevistas ao Coringa, também demonstraram
a insatisfação:
CLÁUDIO: Triste terra, triste vida/ desta terra abandonada, Vila Rica
empobrecida, pobre vila mal usada (...) Que não pensem os senhores que a
obediência é ilimitada. Se lançarem a Derrama rebelião será lançada (p.36).
DOMINGOS: (...) E o espectro da Derrama? Não deixa - me mais dormir/ Não
fosse eu bom vassalo/ Minha raiva ia sentir (p. .98) .
Em outro momento, no Rio de Janeiro, Tiradentes é entrevistado por Coringa,
que se encontra na condição de Juiz. Esta cena faz parte do interrogatório da devassa:
CORINGA: Confirma o respondente ter dito a quem quisesse ouvir que a
sedição e motim era iminente?
TIRADENTES: Devo ter dito, se testemunhas há que dizem ter ouvido. Mas
nunca disse como ânimo de ofensa, nem veneno. CORINGA: Era o respondente
que convidava a todos quanto podia e tão alucinadamente que nem escolhia
pessoa em ocasião? TIRADENTES: Sem ânimo de ofensa nem veneno, afirmei
que os povos de Minas caíram desesperados(...) (p.102-3).
É importante lembrar que os interrogatórios a que Tiradentes foi submetido
fizeram parte do demorado e conturbado processo que o condenou à forca. As cenas que
vêm a seguir referem-se à preparação do Levante contra a Coroa Portuguesa. Vila Rica,
palco dos planos dos inconfidentes, era um centro urbano desenvolvido, abrigava uma
elite econômica e política que nos anos anteriores a 1789 formou um grupo ligado não
apenas pela insatisfação com os representantes da Coroa no Brasil, mas também por
laços culturais e de amizade.
A Preparação dos Planos que levariam à Conjura
Os inconfidentes reuniam-se na calada da noite, em casa de amigos, para
conversar, discutir política e conspirar contra a Coroa portuguesa. Os planos da Conjura
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
131
Mineira foram organizados nesses encontros, alguns deles marcadamente literários, pois
três dos inconfidentes eram poetas: Tomaz Antônio de Gonzaga, Cláudio Manoel da
Costa e Alvarenga Peixoto.
Arena Conta Tiradentes tem como pano de fundo o tema da Inconfidência
Mineira e as implicações dos seus ideais na atualidade da década de 1960. Assim, o
desenrolar da estória propõe ao leitor/espectador uma interpretação do Regime Militar,
que em 1967 - data de produção da peça - havia esboçado sinais definidos de sua
política “autoritária” e “repressora”, provocando a mobilização, sobretudo de setores
políticos e artísticos que articulavam formas de não ceder à Ditadura.
Sabe-se que a resistência aos acontecimentos do Golpe foi disseminada
basicamente por “intelectuais de esquerda”, “grupos diretamente ligados à produção
ideológica, tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e
economistas, a parte raciocinante do Clero, arquitetos, etc.
57
, que, descontentes com
seu “confinamento”, escrevem, filmam, representam, cantam e ditam “soluções”,
“alternativas” para o silêncio imposto em 1964. Nessas circunstâncias, pensando na
relação texto-contexto, a composição figurada aos inconfidentes em Arena Conta
Tiradentes seria a representação de qual segmento social na década de 1960?
Sem sombra de dúvida, os dramaturgos, quando vislumbraram o lugar do
“intelectual” na sociedade mineira no século XVIII frente ao processo revolucionário,
estavam de forma voluntária estabelecendo uma analogia com a situação presente, isto
é, com os “intelectuais de esquerda” frente aos acontecimentos do Golpe de 1964.
Alegoricamente, tanto no século XVIII, quanto na década de 60, homens eruditos,
representantes de uma determinada classe social (portanto portadores de valores
individuais), diante de uma situação política que incomodava, mobilizaram-se e criaram
perspectivas de futuro para toda a nação
58
.
57
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. In: O Pai de Família... São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 08.
58
A questão do papel do intelectual em um “processo revolucionário” foi muito bem tratada pelo
historiador Alcides Freire Ramos em Canibalismo dos Fracos. Ao analisar o papel desses “agentes” no
filme Os Inconfidentes (1972), o autor tece considerações interessantes, que circunstancialmente ajudam a
esclarecer a questão colocada em Arena Conta Tiradentes. Fundamentando suas reflexões no pensamento
de Sartre, o autor afirma que “os intelectuais são sempre recrutados entre os especialistas do saber prático:
juristas, matemáticos, médicos, professores, etc. Estes profissionais devem a sua própria existência ao
desenvolvimento econômico e à crescente possibilidade de divisão social do trabalho. No caso dos
intelectuais modernos, é possível afirmar que estes são resultado do desenvolvimento econômico e social,
comandado por uma classe social: a burguesia”. Ao indagar sobre a possibilidade de rompimento desses
intelectuais com o seus valores de classe, bem como sobre a sua disponibilidade para encarnar interesses
coletivos, que possivelmente não estariam em consonância com sua origem e formação, o autor conclui
que “os comportamentos desses intelectuais expressam contradições que dizem respeito ao fato de que
não conseguem, sobretudo, agir tendo em vista interesses e objetivos que se encontram em contradição
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
132
À luz dessas circunstâncias, torna-se necessário nesse instante visualizarmos a
construção do perfil político e social desses intelectuais (inconfidentes), bem como a
sua disposição dos mesmos para a concretização dos “planos revolucionários” que
levariam à Conjura.
Os próximos acontecimentos dramáticos envolvendo os planos da Conjura
chegam ao espectador/leitor realçando mais vez a presença determinada da personagem
Tiradentes. As cenas que vêm a seguir dizem respeito às secretas reuniões dos
inconfidentes, que estudavam táticas políticas e revolucionárias para a efetiva
sublevação contra a Coroa. Conforme informam o Corifeu 1 e o Corifeu 2, as reuniões
eram desenvolvidas ora na casa de Francisco de Paula Freire, ora na casa do ouvidor
Tomaz Antônio de Gonzaga. A rubrica completa as informações sobre a iminência das
cenas dramáticas: (na casa de Francisco de Paula estão presentes: Francisco de Paula,
Tiradentes, Maciel, Domingos Abreu Vieira, Carlos de Toledo, Joaquim Silvério dos
Reis e às vezes Alvarenga; Na casa de Tomaz Antônio de Gonzaga estão presentes:
Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa, Bárbara Heliodora e, às vezes Alvarenga e
Cônego Luís Vieira.)(p.103)
As ações dramáticas em que Tiradentes está presente merecem significativo
destaque, uma vez que permitem conhecer mais uma vez as habilidades políticas da
personagem diante das diferentes situações que envolveram os planos da Conjura.
Novamente o alferes SILVA XAVIER abandona a “exaltação”, a “rebeldia”, a “força” e
os discursos longos, utilizados exaustivamente com as camadas populares. Junto aos
inconfidentes, Joaquim José da Silva Xavier revela-se um autêntico articulador político,
com discursos elaborados e falas breves, apresentando acima de tudo grande
preocupação com os aspectos práticos e eficazes que levariam à “revolução” :
DOMINGOS: É uma calamidade! É uma calamidade! É certo que temos de ser
bons vassalos! Mas tem muitos por aí que não são e mesmo assim não fazem
nada. Ah! Se nós não fôssemos tão bons vassalos, ia ser diferente!...
(...) TIRADENTES: Bem, se o que está em discussão é a vassalagem, então é
melhor continuar tudo como está. Mas se o que se discute é a força, aí não!
DOMINGOS: Barbacena tem um exército bem armado!
TIRADENTES: Cujo comandante está aqui presente, conversando conosco!
FRANCISCO: Conversando não! Ouvindo.
com os de sua classes de origem e/ou formação. Isto acontece porque não conseguiram, na prática
cotidiana, livrar-se de uma determinada formação de classe fortemente arraigada. A consecução mesma
da tarefa de crítica radical a que se propõem depende, sem dúvida, de uma constante e profunda revisão
interna. Viver uma luta eterna contra si mesmo, este parece ser o destino dos intelectuais que escolhem
romper com a sua condição”. RAMOS, Alcides Freire Ramos. Canibalismo dos Fracos Cinema e
História do Brasil. Bauru (SP): EDUSC, 2002, 183-185.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
133
(...) P. CARLOS: Homem por homem, eu cá do meu canto que posso ajuntar
mais alguns. Digamos, talvez quinhentos! (Hesita) Bem, mas o problema não é
esse, o problema é a vassalagem!
TIRADENTES: Certo, certo! Mas, por hipótese, como diria o ouvidor Gonzaga,
somando já são oitocentos!
DOMINGOS: Bom, hipótese por hipótese eu sei que Padre Rollim lá no Serro
Frio completa os mil!
(...) TIRADENTES: Prá dar tiro não falta quem, falta com o quê! (...) Descobri
salitre. (...) dá para fazer pólvora do mesmo jeito! (p. 103- 105)
A cena é interrompida, a rubrica informa o cenário da reunião na casa de
Gonzaga: (cena bucólica; bancos de jardim e trepadeiras verdes). Nessa reunião, estão
presentes Cláudio Manuel e Tomaz A. Gonzaga. Já é sabido que esses inconfidentes
possuem uma expressiva formação cultural. O primeiro fez curso completo de letras
Clássicas, na cidade do Rio de Janeiro, e bacharelou-se em Direito Canônico na cidade
de Coimbra, em Portugal. Quanto ao ouvidor Gonzaga, foi um dos grandes filósofos da
Inconfidência Mineira. Seu nome é sempre lembrado pela triste e frustrada estória de
amor vivida com a jovem Dorothéa Joaquina de Seixas, por ele chamada de “Marília de
Dirceu”, e nunca pela qualidade de “revolucionário” frente aos planos da Conjura
59
.
Em Arena Conta Tiradentes, os poetas-inconfidentes usam a erudição apenas
para idealizar poeticamente o futuro, estão comprometidos com o “mundo das idéias”,
os devaneios sobre o futuro da nação ilustram a sua incapacidade diante das questões
práticas que levariam à realização concreta da sedição em Minas:
CLAUDIO: E tu, que pretende fazer Gonzaga? (...) Juntos podíamos elaborar
bonitas leis ...
GONZAGA: Hum, hum! Tempo agora não nos falta. Mas, com o meu
casamento, Cláudio, as coisas vão se complicar. Sabe pretendo me dedicar
exclusivamente à minha Dorotéia, fazer do lar minha única preocupação. Não
sei, talvez seja melhor ir para a Bahia mesmo!(...) Na Bahia, talvez eu possa ser
muito feliz. Porém há o problema do clima. O calor é insuportável. Temo pela
saúde de Dorotéia e das crianças que virão! (...)
CLÁUDIO: Claro que sim. Esperaste tanto tempo que bem mereces um pouco
de repouso. Lá terás ótima colocação, escravos, servidores! Eu invejo tua
felicidade! (...) lá sentirias saudades dos amigos!
GONZAGA: E quanta ...
CALUDIO: Os amigos ... e o clima ...
GONZAGA: O amor ...
59
Em Arena Conta Tiradentes, o poeta Gonzaga utiliza seus versos apenas para verbalizar o amor a
Marília, e nunca como expressão de descontentamento que levaria à deflagração da “revolução” mineira:
GONZAGA: “Ornemos nossas testas com flores; E façamos de feno um brando leito; Prendamo-nos
Marília em laço estreito. Go zemos do prazer de sãos amôres. Sobre as nossas cabeças Sem que possa
deter, o tempo corre; e para nós o tempo que se passa, também, Marília morre. Com os anos, Marília, o
gosto falta, e se entorpece o corpo já cansado; Triste, o velho cordeiro está deitado e o leve filho, sempre
alegre, salta. Ah, não, minha Marília, aproveite-se o tempo antes que faça o estrago de roubar ao corpo as
forças e ao semblante a graça”. (p.96-97).
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
134
CLÁUDIO: O dever ...
GONZAGA: O ressurgir de uma nação ... (...)
CLÁUDIO:<<Dizei, pastorinhas, dizei: qual de vós é meu pecado?>> ... (p.
106-107)
A próxima cena diz respeito à reunião na casa de Francisco Paula Freire. As
ações dramáticas realçam a visão “ousada” de Tiradentes perante o “futuro
revolucionário” da colônia. Mesmo apresentando um discurso moderado, pondera com
bastante firmeza e sensatez suas convicções políticas que, por sinal, apresentam-se
bastante “radicais” em relação à postura “limitada” dos demais inconfidentes presentes
na reunião. Observe:
DOMINGOS: É melhor ter cuidado! Precisamos ter a força de conduzir o povo
antes que ele nos conduza. De que vale lutar contra a opressão e cair na
anarquia!?
TIRADENTES: Por que anarquia? A tropa do exército também é povo. Se se
teme o povo em armas desorganizado, que se organize o povo armado!
DOMINGOS: Mas pode ser que nem sempre o povo armado obedeça a vontade
do seu chefe!
TIRADENTES: Enquanto a vontade do chefe fôr a vontade de todos. Vossa
mercê não terá o que temer. E nós aqui estamos falando em nome do povo.
(...) SILVÉRIO: (Pensando na hora e contente com o luzir do próprio
pensamento). O senhor Domingos tem razão. Porque, em relação ao povo,
ninguém pode ser totalmente contra. O povo, como aliás muitas outras coisas,
tem o seu lado bom e o seu lado mau. Ao mesmo tempo é útil e perigoso.
ALVARENGA: Eu tenho uma solução! O número de escravos é maior do que o
dos homens livres. Se nós garantirmos a liberdade a todos os escravos teremos
batalhões ao nosso lado! Bem organizados, eles serão uma espécie de povo que
não é povo, na acepção mais perigosa do têrmo.
SILVÉRIO: Mas o que é isso! O que é isso! Não é hora para brincadeiras!
Então se decreta assim, sem mais nem menos, a libertação dos escravos?!
TIRADENTES: Por que está abespinhado, Coronel Silvério?
SILVÈRIO: E não era para estar? Os escravos do senhor Domingos, quem foi
que comprou? Os escravos de todo mundo aí que teve fábrica fechada, quem foi
que comprou? Cabeça fria, senhores! Quem é que vai mineirar, quem é que vai
trabalhar na lavoura? Essa revolução é nossa, ou é dos escravos?!
(...) TIRADENTES: Perdão senhores, mas nós estamos pensando apenas em
Minas Gerais, enquanto que a libertação deve ser a do País inteiro. Quando
estive no Rio falei com todos os Comandantes de Regimentos, com todas as
guarnições, e a verdade é que todos, sem exceção, esperam apenas a palavra
do nosso Tenente-Coronel. O Rio de Janeiro espera vossa decisão! (...) (107
109)
As falas supracitadas são extremamente importantes por revelarem que a
Inconfidência Mineira não foi um movimento homogêneo, em que as idéias e interesses
pessoais dos participantes convergissem. Muitos apresentavam uma postura limitada
diante da possibilidade de mudanças radicais. Em vários momentos os inconfidentes
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
135
mostram prudência e temor de que o movimento exceda os limites que lhes eram
convenientes:
DOMINGOS: “É melhor ter cuidado! Precisamos ter a força de conduzir o
povo antes que ele nos conduza. De que vale lutar contra a opressão e cair na
anarquia!?
(...) PADRE CARLOS: Eu creio que não deve haver sangue no berço da
República. Ela ficaria manchada com a viuvez da Viscondessa e orfandades
das crianças inocentes. Imaginem! Matar o Visconde de Barbacena(...)
qualquer sangue manchará o berço da República! (p.107-118).
Os inconfidentes, em defesa de seus privilégios, assumem coletivamente uma
“limitação”: por terem algo a perder, temem a radicalização do movimento. Portanto, é
possível vislumbrar que, em Arena Conta Tiradentes, a sublevação pretendida pelos
conspiradores visava o fim do “sistema colonial”, mas não um rompimento com a
estrutura econômica e social, já que muitos deles eram aristocratas e proprietários de
escravos.
No que diz respeito às tarefas revolucionárias, estas objetivavam colocar fim a
derrama, fundar uma universidade em Vila Rica, buscar a independência, criar uma
República e fazer justiça. Todos esses sonhos foram representados por um dístico,
símbolo da Inconfidência Mineira: “Libertas quae sera tamen”. Em Arena Conta
Tiradentes, este fato foi tema de uma das reuniões na casa de Tomaz Antônio de
Gonzaga:
CLÁUDIO: Ainda não temos as cores, mas para o dísticos já pensei numa
sugestão. (...) <<aut libertas, aut nihil!>>
(...) GONZAGA: Talvez esta: libertas aequo spiritus!
(...) ALVARENGA: Senhores, Virgílio mais uma vez em nosso auxílio! Eis aqui:
<<Libertas quae sera tamem>>.
CLÁUDIO: Liberdade ainda que tardia! Perfeita!
GONZAGA: Sonora!
(...) BARBARA: (entrando com uma bandeja de café) Senhores café!
ALVARENGA: Barbara bela! Este café chega num momento histórico.
Acabamos de encontrar o dístico para a bandeira de liberdade. <<libertas
quae sera tamem>>! Que tal?
BARBARA: Bonito, vocês gastaram tanto tempo fazendo o dístico que agora
ficou faltando fazer a Independência. Se tivessem gasto o mesmo fazendo a
Independência, agora só faltaria o dístico.
CONÊGO: Heliodora, a Barbara!
ALVARENGA: Não te preocupes, meu anjo. A coisa está adiantada. As
revoluções começam sempre pela cabeça. Depois é que os braços se movem!
(p.111 -113).
Em contato com a vasta historiografia da Inconfidência, observa-se que esta
sempre foi “gentil” aos inconfidentes: Varnhagem acredita veemente na inocência do
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
136
ouvidor Gonzaga: “Não se prova que Gonzaga fosse conspirador, nem assistisse a
reuniões em que se tratou da idéia da revolta
60
. Silvio Romero coloca Inácio José de
Alvarenga como o poeta de maior talento e o que apresenta maior disposição para o
Levante: “eram ‘estes braços feitos ao trabalho que Peixoto pretendia empregar na
revolução’; ele cogitava na libertação dos cativos, generoso pensamento(...)
61
”.
Joaquim Norberto de Souza vê Cláudio Manuel da Costa como o mais patriota: “gozava
em alto grau a estima do povo e era na verdade um homem de conhecimentos
superiores não só para seu tempo como para o lugar em que vivia.(...) batia-lhe no
peito um coração juvenil que estremecia pela pátria
62
.
Em Arena Conta Tiradentes, elogios aos inconfidentes foram sutilmente
minimizadas. Ao contrário da historiografia, Boal e Guarnieri projetam sobre essas
“figuras históricas” defeitos que recaíram diretamente sobre a disposição dos mesmos
para as tarefas revolucionárias. Essencialmente, os inconfidentes apresentam-se como
“maus combatentes”, “fracos”, “omissos”, com pouca visão revolucionária, pretendem
levantar a sublevação em Minas sem se desprender dos interesses da classe. Ao lado
disso apresentam erudição em demasia, escrevem versos, constróem leis, apenas
idealizam o mundo em que pretendiam viver, o campo de batalha para esses homens é o
“mundo das idéias”.
Entre os inconfidentes, Tomaz Antônio de Gonzaga foi o único que apresentou
perspicácia para sair dos impasses que se chocavam com seus interesses. A personagem
conversa apenas por formulação de hipóteses, fazendo isso por um mero “exercício
intelectual”. Está sempre preocupado com os aspectos burocráticos do que possa “vir a
ser”, nunca aparece executando uma atividade prática, concreta. Em termos práticos, é
um autêntico “idealizador do futuro”: formula soluções, justificativas, cria leis, enfim,
seu campo de “combate” é essencialmente o plano das idéias
63
.
60
VARNHAGEN, Francisco. História Geral do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1981, p. 310.
61
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira.. Rio de Janeiro: Ed. Livraria José Olympio,
1943, p. 126.
62
SOUSA SILVA, Joaquim Norberto.
.
História da Conjuração Mineira. Rio de janeiro: Imprensa
Nacional, 1948, p. 67.
63
BARBACENA: (...) Porém a Derrama é ordem expressa! / GONZAGA: Vamos examinar. A Coroa
quer mais dinheiro. O País não tem. Portanto existe a hipótese de não lançar a derrama. /BARBACENA:
É este o vosso conselho? / GONZAGA: Só estamos conversando por hipóteses. Se não se lançar a
derrama, existem duas hipóteses: a Rainha tanto pode concordar, como pode nomear outro Governador
em seu lugar. /BARBACENA: Então a Derrama é inevitável./ GONZAGA: Neste caso também existem
duas hipóteses: lançá-la por todos os atrasos ou só pelo último ano. Como o primeiro caso é totalmente
inexeqüível, ainda resta a segunda hipótese. (p. 90).
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
137
Já o poeta Cláudio Manuel é bastante conhecido pela suas queixas melancólicas,
falta de entusiasmo e perspectiva para a vida. Para Silvio Romero, dos três poetas
árcades, esse era o único que não apresentava os fervores, as ilusões e as alegrias diante
dos planos que levariam a concretização da Inconfidência Mineira. Em Arena Conta
Tiradentes, o poeta também não se revela apto às tarefas revolucionárias. Após a
delação do movimento, Cláudio Manuel deu pistas da sua real personalidade, mostrou-
se extremamente “fraco”, “temeroso” à punição. O simples cogitar da traição já lhe traz
o “desespero”, dando fim à causa
64
.
Dentre os três poetas/inconfidentes, Alvarenga é apontado com um dos mais
ilustres de Vila Rica, sensível poeta, homem de hábitos refinados, tendo-se bacharelado
em leis na cidade Coimbra. Gozava de grande prestígio social e poder econômico, sendo
apontado por alguns historiadores como um dos homens mais ricos da sociedade
colonial mineira
65
. Além do mais, era muito “alegre” e expansivo”, possuía uma
família estruturada e era apaixonado pela esposa Bárbara Heliodora, que, segundo
Silvio Romero, era “uma dama de inteligência e de espírito”. Aliás, foi esse autor quem
mais elogiou Alvarenga, julgando-o o mais entusiasta, por isso o único disposto a
realizar a Conjura. Ao mesmo tempo, apontava-o como sendo o mais erudito dos
inconfidentes, atribuindo-lhe até a autoria das Cartas Chilenas
66
.
64
CLÁUDIO: Gonzaga estamos perdidos. Por que fomos ouvir aquele homem? Maldito Tiradentes. Em
má hora me armei em libertador. Como se já não bastassem os males da velhice. Ah, Gonzaga, amigo,
quanto me arrependo! Claro sou mau, libertino, pusilâmine! Já me vejo na fôrca, ossos partidos. Gonzaga
vamos fugir! Vamos fugir para a Bahia, vamos a Portugal. (p. 140).
65
Segundo o historiador Júlio José Chiavenato, Alvarenga “começou sua carreira profissional em
Coimbra, onde havia se bacharelado em leis (...) . Em Lisboa teve uma casa onde recebia os brasileiros e
ali viveu até a morte do pai. Voltando ao Brasil, liquidou suas propriedades no Rio, foi para Minas e fez
uma das maiores fortunas do seu tempo. Tinha latifúndios, lavras, gado, escravos. E o privilégio de ser o
juiz do rei na região de suas propriedades (...) Nomeado coronel comandante do Corpo de Cavalaria de
Rio das Mortes, vestiu e armou os soldados às suas custas. Tinha fama, dinheiro e poder”. Op.Cit, p.20
66
“As Cartas Chilenas são mui provavelmente de Alvarenga Peixoto. Tenho em prol desta hipótese três
ordens de argumento: a natureza do estilo de Peixoto, sua índole psicológica e sua posição. Quanto a esta
última, não resta dúvida que era êle dos três poetas o que a tinha mais independente. Gonzaga era um
homem empregado na magistratura, Cláudio um advogado pobre, e Peixoto, depois de ter sido
magistrado, era coronel de milícias e proprietário de boas lavras de ouro. Dos três poetas o último foi o
que tomou parte mais ativa e entusiástica na conjuração. Quanto à natureza do seu espirito, era ainda dos
três o de mais açodamento e arrôjo, o de talento de feição mais objetiva, e por isso mais expansiva. Era o
que tinha a veia cômica. (...) Alvarenga Peixoto era um minerador abastado, feliz, entusiasta; seu lar vivia
em festa; (...) A poesia do malogrado inconfidente não era convencional, ele não era o charlatão, um
vadio, um debochado dos botequins; era um homem positivo, adestrado no trabalho, ativo, empreendedor.
Não era um parasita da sociedade (...) era ativo, militante. O coronel não contemplava a pátria só nos
versos por um desfastio pedantesco; ele a contemplava também no seu desenvolvimento político e social,
e bem provou que a lira do poeta poderia ser substituída pela espada do guerreiro, se os acontecimentos o
houvessem consentido”. Romero, S. Op. Cit. p. 98-127.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
138
No entanto, muitos elogios pontuados pelo literato Silvio Romero, ao
coronel/inconfidente, Inácio José de Alvarenga, foram substancialmente renegados em
Arena Conta Tiradentes. Boal e Guarnieri, ao construir o perfil político da personagem,
não lhe atribuem características de “revolucionário” e muito menos de um fervoroso
“militante político”. Ao contrário disso, na peça, Alvarenga não difere de seus amigos
inconfidentes: é também um representante da elite mineira; manifesta um grande
desinteresse pelas ações práticas da “revolução” que se travaria em Minas; está preso ao
mundo das idéias, idealiza e organiza o futuro da nação sem perder de vista os interesses
pessoais. Esta questão também é realçada pelo historiador João Pinto Furtado:
Ele e sua senhora alimentavam pretensões francamente aristocráticas quanto
aos filhos, tendo D. Bárbara chegado a dizer que sua família era das de maior
respeito e nobreza na América portuguesa, condição social da qual o
“prepotente” casal, definitivamente não abriria mão na nova ordem a ser
implantada após o levante de 1789
67
.
A reflexão tecida pelo historiador é claramente percebida em Arena Conta
Tiradentes. A Ephigênia, filha do “casal poeta”, era destinado ao título de Princesa do
Brasil, caso os planos da Inconfidência Mineira se concretizassem:
ALVARENGA: De que domínio se trata?
GONZAGA: Salve, meu caro, dormiste bem?
ALVARENGA: E quem ainda consegue dormir nessa cidade!
CÔNEGO: E a nossa <<Princesinha do Brasil>> como está?
ALVARENGA: Mais linda do que nunca! Dorme agora com as mãozinhas
entrecruzadas sob o queixo! Assim ....(imita a postura). Um verdadeiro anjo!
GONZAGA: Família feliz! (p.111)
Nessas circunstâncias, fica claro com quem Arena Conta Tiradentes está
dialogando nesse momento, ao vislumbrar a fragilidade revolucionária dos inconfidentes
(entenda-se) intelectuais, perante os planos revolucionários da Inconfidência Mineira. A
mensagem é bem endereçada, trata de questionar, repensar o papel da esquerda frente
aos desacertos, as contradições, as fragilidades, que permitiram a “facilidade” de
instauração do Golpe. Nas palavras de Augusto Boal, com a realização de Arena Conta
Tiradentes muitas polêmicas se instalaram, e uma delas refere-se:
ao papel dos intelectuais em tempos de turbulência ou de paz. As cenas dos
inconfidentes foram inspiradas pela noite de 31 de março de 1964, na casa do
Professor. Aquela noite tinha ficado em nossa memória como simbólica:
67
FURTADO, João Pinto. Imaginando a nação: o ensino da história da Inconfidência Mineira na
perspectiva da crítica historiográfica. In: SIMAN, Lana Mara de Castro & LIMA E FONSECA, Thaís
Nívea. Inaugurando a História e Construindo a Nação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 57.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
139
intelectuais davam-se no direito de indicar caminhos e cruzar os braços. Como
se ser intelectual significasse o direito adquirido de não fazer nada além de
pensar. Em Cuba, intelectuais cortavam. Que direito tínhamos nós de exigirmos
que outros fizessem tudo? Não seríamos nós parte desses outros? Fôssemos à
luta! Dúvida: deve um pianista cortar cana? Um cirurgião? Sou mais útil
fazendo aquilo que qualquer um pode fazer ou aquilo que só eu sei? (...)
Éramos contraditórios: acusávamos intelectuais de promoverem
revolucionários bate-papos mas não fazíamos mais do que isso. Éramos
intelectuais. Como nossos criticados: escrevíamos, mas ... ninguém pegava em
armas. Onde armas? A curiosidade se ascendeu em nós. A partir de Tiradentes,
alguns de nós começaram a pensar em ação efetiva: amaldiçoar ditaduras
mentecaptas e carrascas era pouco! Alguns queriam cumprir o que julgavam
dever.
68
Ao traçar o papel e a disposição dos inconfidentes (intelectuais) frente ao
processo revolucionário, a questão da liberdade com que o Arena, ou melhor, o texto
Arena Conta Tiradentes está comprometido começa a delinear-se: a liberdade de criar,
pensar, falar e participar só seria uma conquista na medida em que algumas mudanças
estruturais da política brasileira fossem realizadas. Mais especificamente, Boal e
Guarnieri referem-se à política da esquerda: partidos, artistas, escritores, enfim,
intelectuais, que promoviam, escreviam e idealizavam a sonhada “revolução”, sem
estabelecer um contato com as massa populares, sem organizar os movimentos sociais,
sem conhecer e levar em conta que a luta política também passa pelo cotidiano de
homens, mulheres que, mesmo fora do partido, das instituições políticas, criam formas
de resistência.
Desfecho dos Planos da Inconfidência: Senha, a Delação do Movimento e os
Interrogatórios da Devassa
Em Arena Conta Tiradentes, a senha combinada para o dia do Levante, “Tal dia
é o meu batizado”, perdeu o sentido. O “movimento de libertação” foi descoberto,
vítima da delação de um dos inconfidentes:
CORINGA: Ei, Joaquim Silvério: o que você tem aí no bolso?
(...) SILVÉRIO (...) é uma carta de delatação. Vou agorinha mesmo entregar ao
Visconde General. (...) Quero ser o primeiro a delatar estou dentro do prazo.
(p.124)
Ao justificar a traição do movimento, Silvério dos Reis expõe com clareza as
debilidades e contradições dos inconfidentes:
68
BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro. Op. Cit. 240-241.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
140
SILVÉRIO: (...) Já pensou direito em quem está metido nessa rebelião? Um
bandinho de intelectuais que só sabe falar. Porque a liberdade... e cultura ... a
coisa pública... o exemplo do Norte ... na hora do arroxo quero ver. O outro lá
comandante das tropas: o que quer mesmo é posição seja na República, na
Monarquia, no comunismo primitivo, o que ele quer é estar por cima. Olha,
velho, dessa gente a maioria está trepada no muro, conforme o balanço eles
pulam para um lado. (p.125).
A notícia da delação do movimento chegou junto com a suspensão da derrama
pelo governador Visconde de Barbacena. Alguns inconfidentes fugiram com padre
Rollim, outros tentaram esconder-se, como Tiradentes, outros ainda foram presos em
suas casas, como Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio de Gonzaga. Os defeitos
dos inconfidentes apontados por Silvério dos Reis já prenunciavam o comportamento
dos “fracos” e “omissos” conspiradores diante dos planos idealizados. Essa questão
pode ser visualizada em uma conversa que Alvarenga Peixoto tem com sua mulher:
ALVARENGA: (...) quando penso em delatar, penso no que minha salvação
pode trazer no futuro. Que adianta se todos os homens com ideais forem
enforcados. Enquanto um sobreviver, a idéia não morre (...). (p.142).
Depois da prisão de todos aqueles que conspiravam contra a Coroa Portuguesa,
começa a apuração dos fatos. Coringa, em sua condição de narrador, explica o
julgamento: “E todos foram presos um-a-um. O processo começou. Foram três anos de
suspense, três anos de terror. A Rainha já havia resolvido comutar a pena capital de
todos . Menos de um: o Cabeça . Menos de um, Tiradentes”. (p. 78).
Os interrogatórios a que os inconfidentes foram submetidos no julgamento
podem ser considerados o ápice da peça, pois são eles que definem o perfil o e
verdadeiro ideal de luta de cada um dentro do movimento. Em Arena Contra
Tiradentes os interrogatórios do processo judicial retratam a postura dos inconfidentes,
que se mostram “fracos”, “omissos” e “mau combatentes”. Diante da devassa todos
negam ter conspirado contra a Coroa e ainda apontam Tiradentes como o “cabeça” do
movimento.
FRANCISCO: Ainda neste caso, o privilégio não seria meu, mas sim de quem
primeiro teve a idéia, de quem mais vezes o motim apregoou, de quem para si
queria a tarefa de maior perigo e risco. De quem se propunha cortar a cabeça
do Governador (...) Alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o
Tiradentes. (p. 150)
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
141
Tomaz Antônio de Gonzaga se apresenta como um mau combatente, confiante
que a posição social que ocupava na sociedade de Vila Rica lhe traria a absolvição,
omite ter participado do movimento:
GONZAGA: (...) Constando ou não , nunca me arriscaria a entrar numa
Conjura contra os parentes da minha noiva. Que conste também que todos eles
são militares. (...) Os parentes da minha noiva além de militares, são
portugueses que não lutariam contra sua Pátria, português também sou eu. (...)
Não posso ser acusado de não conhecer o que só agora é revelado. Portanto
sou inocente. (p.156)
Alvarenga Peixoto não apresenta apenas o “defeito” de ser um “revolucionário”
que quer a todo custo fazer a revolução sem afetar o privilégio social de sua classe. Ao
lado disso, ele pode ser apontado como o mais perigoso e falso dos revolucionários, que
a fim de livrar-se da culpa, acusa a própria mulher, Bárbara Heliodora:
ALVARENGA: Culpa eu não tenho. Todo mundo pensando em cortar a cabeça
de todo mundo. Cabeçinha fora aqui. Cabeçinha fora ali. (...) Culpa tem minha
mulher, que deu ouvidos a Tiradentes, achava de bom tom que eu participasse
do movimento e na frente de Cláudio Manoel da Costa - chegou a dizer que
melhor seria fazer o motim primeiro e a bandeira depois. (p.153)
Porém, um dos inconfidentes não omite o seu ideal de liberdade diante do
processo de apuração do crime. Tiradentes assume a responsabilidade do movimento
contra a Coroa:
Excelência. Já agora nada mais ratifico, não por querer encobrir minha culpa,
mas por não querer perder mais ninguém (...) É verdade que pretendia o
levante. (...) É verdade que a todos falava de um motim e sedição contra a
Coroa portuguesa. É verdade que o povo sofre e que induzi muita gente a
combate em Vila Rica. É verdade que o povo ignora que pode libertar a si
mesmo e que induzi muita gente a que armasse o povo para que se libertasse. É
verdade que eu queria para mim a ação de maior risco e é verdade que se
existissem mais brasileiros como eu o Brasil seria uma nação florescente. (...)
Eu desejava meu país livre, independente, republicano. (...) É verdade que eu
tenho culpa e só eu tenho culpa (...) (p. 157-158) .
Em Arena Contra Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier foi o herói da
Inconfidência Mineira, o único que diante da devassa se comprometeu com a verdade,
conservando assim o espírito de luta. Sob esse aspecto, Cláudia de Arruda Campos
conclui que o alvo principal da crítica, em Tiradentes, são aqueles que na visão
escolar da Inconfidência Mineira eram tidos como vítimas infelizes de seus ideais de
liberdade
69
”. A peça retrata os inconfidentes - exceto Tiradentes - não como vítimas,
69
CAMPOS, Cláudia Arruda . Op. Cit, p. 107
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
142
mas como omissos e covardes diante do ideal de liberdade que pregavam e em que
acreditavam.
Depois de apurados os crimes, a sentença é anunciada por um arauto - oficial
que fazia anúncios solenes: “Por vontade da Real Senhora, a todos se comuta a pena de
morte para degredo em África. Menos um que se fez inimigo da Real Piedade da mesma
senhora (...) Menos a um que se tornou indigno da Real Piedade da Digna Senhora:
Alferes Joaquim José da Silva Xavier (p. 160).
A cena que vem a seguir talvez seja uma das mais patéticas de toda a peça,
retratando o desespero, a clemência e angústia dos inconfidentes diante da sentença que
estava para ser divulgada. Todos falavam de uma só vez, a rubrica informa (Atôres
aglomerados a um canto, superpondo frases):
- Ai que não pode ser verdade!
- E eu que ia para Coimbra!
- Maldita loucura do Alferes!
- Alguém ainda vai me salvar!
- Sou um homem de posição!
(...) - Que mais querem, já me ajoelhei! Já neguei tudo o
que disse e que fiz!
(...) - Quem se arrepende encontra perdão!
(...) - Eu te absolvo em nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo!
- Os confessados já podem morrer! (...) (p.159-160)
Diferente de todos os inconfidentes, Joaquim José da Silva Xavier está sozinho,
entoando a canção Dez Vidas. A rubrica explica detalhes da cena: (As vozes vão se
misturando, repetem-se as exclamações; a voz de Tiradentes e acompanhamento
musical ficam mais fortes).
TIRADENTES
Dez vidas eu tivesse
Dez vidas eu daria
Dez vidas prisioneiras
Ansioso eu trocaria
Pelo bem da liberdade
Nem que fôsse por um dia!
Que fôsse por um dia,
Ansioso eu trocaria... (p. 160)
A cena é interrompida pelo Arauto, que vem dar a sentença final do crime:
Atenção! Todos de pé! (...) Carta da nossa Piedosíssima, Clementíssima e
Augustíssima Soberana, D. Maria! (...) Por vontade da Real Senhora, a todos
se comuta a pena de morte para degrêdo em África; (Entusiasmo geral) Menos
a um que se fez indigno da Real Piedade da mesma Senhora! (p. 160)
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
143
As ações dramáticas a seguir são marcadas pela alegria, contentamento e
satisfação dos inconfidentes que tiveram as penas de morte permutadas para degredo. A
rubrica completa a descrição da cena: ( A Orquestra sozinha volta com o tema de Estou
só. Continuam a algazarra, distinguindo-se os gritos):
- Queridíssima Rainha, sou vosso servo mesmo que ao inferno me mandásseis!
- Viva D. Maria I!
- Que pelo menos dessa vez eu possa dizê-la minha!
- Beijo o pó, beijo os pés de cada soldado!
- Deus, ó Deus, tu existes! Eu te agradeço!
- Viva Portugal! (p. 160)
As falas citadas acima possivelmente foram inspiradas nos depoimentos de Frei
Raimundo da Anunciação Penaforte, padre confessor que assistiu Tiradentes momentos
antes à sua morte
70
. Por tratar-se de um “vassalo”, convicto aos ideais da Monarquia,
sua narrativa busca simplesmente valorizar a “clemência”, a “bondade” e a “piedade” da
Soberana Rainha, ao permutar as penas dos condenados. Evidentemente não era esta a
intenção de Boal e Guarnieri, que utilizaram a narrativa do “padre confessor” a fim de
destacar a postura um tanto “covarde”, “fraca” e “omissa” dos homens que momentos
atrás “lutavam” pelos “loucos desejos de uma sonhada liberdade”. Mais uma vez o que
fica ao leitor/espectador é a postura heróica de Tiradentes.
As próximas ações dramáticas caminham para o desfecho da história. A rubrica
completa a cena: (Sai Arauto. Fica só Tiradentes acorrentado. O Coringa aproxima-se
lentamente em profundo silêncio. Acocora-se diante dele):
CORINGA: E então, como é que é?
TIRADENTES: Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria pra que eles não
morressem por um crime que não cometeram.
CORINGA: E agora, como é?
TIRADENTES: Não sei... armei uma meada tamanha que nem em cem anos eles
vão conseguir desatar ... (Coringa olha-o por instantes. Abraça-o firmemente e
sai). (p. 161)
Uma nova cena é preparada pela rubrica: (Enquanto isso surge o cortejo,
carrasco à frente e ouve-se o pregão). Novamente o pregão tem a função de explicar ou
70
O relato/memória do Frei Penaforte também ressalta a euforia e alegria dos inconfidentes ao receberem
a notícia da permuta das penas; elogios à Soberana não foram poupados. Possivelmente as passagens que
serviram de inspiração para os dramaturgos na construção da cena foram as seguintes: “(...) Finalmente,
todos diziam a uma só voz: - “Que clemência! Que piedade! Só vós, senhora nascestes para governar.
Que felicidade a nossa de sermos vassalos de uma Rainha tão cheia de consideração de seu! Governai-
nos, Senhora. Vós nos cativastes”. (AUTOS DE DEVASSA - volume 09, p. 171).
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
144
lembrar a função do castigo de Joaquim José: “Este homem indigno é das nossas
memórias, mas se ficar de todo no esquecimento, nenhum proveito tiraremos de seu
exemplar castigo!” (p. 161)
A cerimônia da morte desenrola-se, a rubrica mais uma vez explica a cena: ( O
coro repete o Pregão, surge a forca, o carrasco, Capitani ajoelha-se diante do
condenado)
CAPITANI: Perdão! Eu mato cumprindo pena e minha pena é matar!
VOZ: Esmolas! Esmolas! Prá missa prá salvação da alma do infame réu!
Esmolas! Esmolas pra missa para salvação da alma do infame réu!
TIRADENTES: Está perdoado, irmão. Todos estão cumprindo pena. Menos eu.
(p.161)
TIRADENTES SOBE À FORCA
Ao subir à forca inicia-se a participação do Coro, que entoa à canção Dez Vidas.
A música-tema para esta cena não poderia ser mais sugestiva, a “luta” e a “vida” pela
liberdade. Ao entoar os versos, a idéia que se tem é que o Coro assumiu a fala e a
postura política de Tiradentes:
Dez vidas eu tivesse
Dez vidas eu daria
Dez vidas prisioneiras
Ansioso eu trocaria
Pelo bem da liberdade
Que fôsse por um dia.
Ansioso eu trocaria
A participação do Coro é interrompida pelo grito: “Esmolas! Esmolas! Esmolas
pra missa, pra salvação da alma do infame réu!”
Na verdade, são esses “gritos pela esmola” que sugerem a presença de
espectadores na cerimônia de morte do Alferes Joaquim José
71
. Até o momento, as
rubricas e os diálogos das personagens não referendaram a existência de um público
expressivo para assistir ao “espetáculo da morte”. A canção Dez Vidas continua
colorindo a cena:
Dez vidas eu tivesse,
Dez vidas eu daria,
Se assim fizessem todos
Aqui não existiria
71
Essa esmolas oferecidas ao Alferes no ato de sua morte aparecem nos AUTOS, especialmente nos
depoimentos de Frei Penaforte: “(...) para lhe apressarem a vida eterna, ofereceram voluntariamente
esmolas para dizerem missas por sua alma (...)”; Volume 09, p. 175-176.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
145
Tão negra sujeição
Que dá feição de vida
Ao que é mais feia morte:
Morrer de quem aceita
Viver em escravidão.
Viver em escravidão
É a mais feia morte
De quem morrer aceita
Vivendo em escravidão! (p.162).
A música é interrompida por uns instantes, abrindo espaço para a participação de
um padre, que, diante da iminência da morte de Tiradentes na forca, deixa um recado ao
público presente, endossando mais uma vez os interesses da Rainha:
PADRE: Não traia teu Rei nem em pensamento; pois as próprias aves do céu
levarão teus desejos aos próprios ouvidos do Rei
72
! (p.162)
Nesse momento a rubrica informa: (Misturam-se os côros. Parte cantando Dez
Vidas outra cantando Eu estou só). A cena do enforcamento está próxima, mas mesmo
diante da morte a personagem Tiradentes mostra-se renitente, conforme a rubrica,
adiantando-se um passo grita, “Povo das Capitanias do Rio e das Gerais! O Brasil ...”
(p.163).
A cena torna-se completa com a intervenção da rubrica que dá detalhes do
desfecho do acontecimento: (A mão de Capitania tapa-lhe a boca; diminuem as luzes.
Rufos de bateria. O corpo de Tiradentes é lançado. O Côro deixa escapar um grito. O
corpo fica balançando. O Côro entra com):
Espanto que espanta a gente,
Tanta gente a se espantar
Que o povo tem sete fôlegos
E mais sete tem prá dar!
Quanto mais cai, mais levanta
Mil vezes já foi ao chão.
Mas de pé lá está o povo
Na hora da decisão! (...) (p. 163)
O desfecho da trama de Arena Conta Tiradentes fica a cargo da personagem
Coringa, que faz um breve discurso sobre o valor da conquista de liberdade para um
72
Esta passagem foi retirada dos AUTOS DE DEVASSA, especialmente na parte dedicada ao
relato/memória do padre confessor Frei Raimundo da Anunciação Penaforte. “(...) nem por pensamento
traias a teu rei, porque as mesmas aves do céu levarão a tua voz e manifestarão teus juízos”. (volume 09,
p. 175).
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
146
país e explica por que a Inconfidência foi um movimento fracassado que poderia ter
dado certo:
CORINGA: - A Independência política contra Portugal foi conseguida trinta
anos depois da forca. Se Tiradentes tivesse o poder dos Inconfidentes; se os
Inconfidentes tivessem a vontade de Tiradentes, e se todos não estivessem tão
sós, o Brasil estaria livre trinta anos antes e estaria novamente livre todas as
vezes que uma nova liberdade fosse necessária. E assim contamos mais uma
história. Boa noite! (p. 163)
A morte de Tiradentes é um dos temas que mais se destaca no interior da história
da Inconfidência Mineira. É nela que tem início a construção do herói, do símbolo, do
mártir a ser preservado e memorizado para a posteridade. Sendo assim, sugestões
polêmicas e tendenciosas não faltam às interpretações de autores, que dedicaram suas
narrativas aos últimos momentos de vida do Alferes.
Frei Raimundo da Anunciação Penaforte é um autor que, ao interpretar a morte
de Tiradentes, converge sua narrativa para a preservação dos interesses políticos da
Monarquia. O padre confessor conta detalhes precisos do “arrependimento” do alferes
Joaquim José: “(...) causava admiração a constância do réu (...) sem levantar os olhos
(...), sem estremecimento algum(...), pediu que abreviasse a execução
73
”.
Contudo podemos afirmar que o espetáculo da morte, fundamentado na
mobilização de espectadores, na contrição e resignação do réu, não interessou aos
dramaturgos no momento de construção da peça. Em Arena Conta Tiradentes, o alferes
SILVA XAVIER não morre arrependido, humilde e contrito. Ao contrário disso, a
personagem ainda preserva a postura “revolucionária” de um idealista convicto, que até
no último momento de vida demonstrou “vontade política” pela sonhada liberdade. Na
cena da morte, Tiradentes (adiantando-se um passo grita): “Povo das Capitanias do
Rio e das Gerais! O Brasil ...”.
Ao mesmo tempo, cabe ressaltar que o desprezo dos dramaturgos pela imagem
contrita do Alferes, construída no Império, não significa apropriação na íntegra da
figura “martirizada” e santa divulgada pela República. É sabido que os historiadores
republicanos reverteram positivamente a morte de Tiradentes, suplantando a conotação
da punição, do castigo para a imagem de “santo”, “humilde”, que, servindo de exemplo
73
PENAFORTE, Raimundo da Anunciação. Últimos Momentos dos Inconfidentes de 1789, pelo frade
que os assistiu em confissão. In: Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Brasília: Câmara dos
Deputados, V. 09, p. 173-175.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
147
a todos, entregou-se ao sacrifício valorizando sua morte em favor da causa
“revolucionária”.
Na peça, Joaquim José não se apresenta como um santo martirizado, a ousadia
perante a morte ilustra mais uma vez a imagem que Boal e Guarnieri querem mostrar ao
leitor/espectador: o “herói revolucionário”, que, mesmo diante de situações
constrangedoras e violentas, não teme suas convicções políticas. Contudo, o “herói
revolucionário” vislumbrado por Boal e Guarnieri não é apenas um falastrão, um
falador inconseqüente, um louco. Na peça o Alferes é um político habilidoso e
inteligente, que sabe adaptar-se às necessidades que lhes foram impostas. Exemplo
maior disso é seu poder de retórica: perante as classes subalternas tem o discurso
exaltado, destemido e esbravejador. Junto à classe dominante (os inconfidentes),
apresenta-se ponderado, seguro, não faz uso da exaltação e dos discursos longos. Nesse
sentido, o que se pode avaliar até então é que, essencialmente, o protagonista de Arena
Conta Tiradentes é um “revolucionário” habilidoso, conhecedor das táticas políticas,
que sabe, acima de tudo, atuar nos dois campos que levariam à “revolução”: o plano das
idéias e o plano da ação.
Para realçar a idéia do “herói revolucionário”, Boal e Guarnieri omitem uma
série de informações sobre a vida do Alferes. Arena Conta Tiradentes realça apenas o
perfil político da personagem, sua disposição, habilidade “inteligência” e coragem para
a luta revolucionária. Portanto, na peça, Joaquim José é apresentado como um ativista
político desprendido dos valores de sua classe, seus interesses convergindo apenas em
favor da nação, sua luta sendo por todos os povos do Brasil. Tanto é assim, que não
foram dados ao leitor/espectador informações sobre o grupo social a que de fato a
personagem pertencia, nenhuma passagem da peça sugere a classe do Alferes
74
.
Ao retomar os ideais libertários e a figura heróica de Tiradentes em plena década
de 60 - época do regime militar -, pretendia-se suscitar na platéia, no público em geral
uma resistência aos acontecimentos políticos de 64. Boal e Guanieri voltaram ao
passado para falar à platéia brasileira sobre seus problemas: ditadura, repressão,
74
Não existe um consenso sobre a situação econômica de Joaquim José. A poetisa Cecília Meireles
mostra um Alferes pobre, o poema “Da Arrematação dos Bens do Alferes” ilustra bem isso. MEIRELES,
Cecília. Op. Cit. p. 190-192. Para G. Hercules, Tiradentes não vivia a pobreza imputada a ele pela
historiografia ao longo dos tempos. Ao consultar os Processos de Sequestro de Bens do Alferes, o autor
constatou que Joaquim José era proprietário de vários bens, entre eles: um sítio com casa de vivenda,
senzala e monjolo; três escravos: Maria de nação Angola e seu filho Jerônimo; Caetano Bangelas e João
Camondongo; créditos nos valores de 220$000 e 200$000; além de diversos outros pertences como
roupas, utensílios domésticos, etc. PINTO, G. Hércules. A Vida de Tiradentes. Rio de Janeiro: Alba
Limitada, 1962, p. 151-153.
Teatro de Arena de São Paulo: Trajetória Artística e Representação Política
148
censura, autoritarismo, golpe militar e resistência. Eram respaldados pelo ideal político
voltado para a mudança, para a revolução política e social. Por isso era preciso instigar
o público, despertá-lo, conscientizá-lo do momento político pelo qual o País estava
passando e nada melhor para isso, que a figura revolucionária de Tiradentes. Para Boal
“os heróis não são bem vistos. Deles falam mal todas as novas correntes teatrais
75
.
Em se tratando de Tiradentes, quer-se resgatar o herói da sua função mistificadora de
“Mártir da Independência” e pensá-lo como herói revolucionário, transformador de sua
realidade.
Nessas circunstâncias, o próximo capítulo tem a intenção de apresentar o
universo de construção de As Confrarias, a leitura que essa peça faz da Inconfidência
Mineira e de que forma seus temas contribuem para o debate político dos anos de 1960.
75
BOAL, Augusto e GUARNIERI, Gianfracesco. Arena Conta Tiradentes. Op. Cit., p. 53.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
153
A obra de Jorge Andrade, por sua extensão e capacidade em resgatar diferentes
momentos de nossa história numa perspectiva crítica, fez desse dramaturgo um dos
grandes nomes do teatro brasileiro, servindo nas últimas décadas como objeto de estudo
para pesquisadores de diversas áreas e críticos teatrais
1
.
Sua produção artística, envolvendo peças teatrais, novelas e crônicas
jornalísticas, foi construída fincada em três décadas de profundas transformações no
cenário político, econômico, social e cultural do Brasil anos de 1950, 1960, 1970 e
início de 1980. Através dos embates políticos e das transformações sociais vivenciadas,
Jorge Andrade foi um dos dramaturgos brasileiros que mais levou para os palcos
personagens e temas da nossa história. Entre as temáticas teatralizadas pelo autor,
destacam-se: a mineração, a decadência da aristocracia cafeeira, a industrialização de
São Paulo e os novos grupos sociais, como os imigrantes italianos.
Aluízio Jorge de Almeida Prado (1922-1984), natural de uma família tradicional
do Oeste Paulista (Barretos) os Junqueira Prado -, passou a infância no meio rural,
correndo entre os cafezais, adorando a lua e sentindo pena dos animais caçados pelo pai.
Desde muito cedo, manifestou interesse pela vida artística, não conseguia viver no
mundo “agrário” e “bovino” que a família desejou. Suas expectativas para o futuro
estavam longe do meio rural. Porém, a poesia, a filosofia, a arte de escrever, que tanto
lhe preenchia a vida, não agradava o pai, que arduamente negou a escolha profissional
do filho. Para João José pai do dramaturgo - a vocação artística de Jorge Andrade
nunca seria compatível com a virilidade de um homem. Nuanças dessa
1
ALBISSÚ, Nelson. Em busca dos Velhos de Jorge Andrade. Dissertação (Mestrado em Artes)
Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1997.
ARANTES, Luís Humberto Martins. Teatro da Memória: história e ficção na dramaturgia de Jorge
Andrade. São Paulo: AnnaBlume/Fapesp, 2001.
___. A Memória como Palco: Lembranças e Esquecimentos no Processo Criativo do Dramaturgo Jorge
Andrade. In: PATRIOTA Rosangela. & RAMOS, Alcides Freire (orgs.). História e Cultura: Espaços
Plurais. Uberlândia: Asppectus, 2002, p. 70-84.
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Jorge Andrade: Dramaturgo de São Paulo. In: Metrópole e
Cultura. Bauru (SP): EDUSC, 2001.
FERNANDES, T. F.T.D. Jorge Andrade Repórter Asmodeu.(Leitura do Discurso Jornalístico do
Autor na Revista Realidade). São Paulo, Tese (Doutorado), ECA/USP,1988.
GEORGOPOULOS, C. L. Lua quebrada (A Moratória no Ciclo Paulista de Jorge Andrade). Dissertação
(Mestrado). Rio de Janeiro: UFF, 1983.
GUIDARINI, M. A diferença nos textos dramatúrgicos de Jorge Andrade. Dissertação (Mestrado).
São Paulo: FFLCH/USP, 1979.
PATRIOTA, Rosangela. As Confrarias de Jorge Andrade: uma interpretação da sociedade mineira do
século XVIII. In: Anais do X encontro regional de História, ANPUH MG, Minas trezentos anos: um
balanço historiográfico, n° 26, Mariana: UFOP, 22 a 26 jul.1996.
SANT’ANNA, Catarina. Metalinguagem e Teatro. Cuiabá: EdUFMT,1997.
SOUZA NETO, Juvenal. Jorge Andrade: Um autor em busca de si mesmo. Dissertação (Mestrado),
ECA/USP, 1987.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
154
incompatibilidade, dos rancores, das angústias e das vergonhas entre “pai caçador” e
“filho poeta” foram rememoradas por Jorge Andrade em Labirinto, um romance
considerado autobiográfico:
Meu filho não é artista, não. É escritor. Ninguém pinta a cara para escrever.
Há muito sujeito ignorante por aí que não entende nada. Sabe lá o que vão
pensar do meu filho. É escritor. Não é artista, não. Não é verdade, compadre
Chiquito? O silêncio do compadre e dos amigos o humilha. Meu coração parte-
se em muitos, quando o vejo sempre e para sempre! - andando sozinho em
direção de casa. Antes que o dia amanheça, ele seguirá para a fazenda,
escondendo-se, nas caçadas, da vergonha que lhe trago. Montando no cavalo
Matogrosso, atravessará cerrados, ignorando buracos, árvores, voando sobre
cercas, até que o cervo caia morto. Ou até que ponta de pau lhe tire a vida?
Como dói saber que um pedido de perdão jamais será ouvido! Na noite fixa, no
tempo e no espaço da minha dor, tenho vontade de gritar: - É a minha
condição. Não dê explicações por mim. Aceite-me como sou. Só isso importa, se
não sofrer. Se para escrever for preciso pintar a cara, eu a pintarei com todas
as cores do arco-íris
2
.
Os conflitos, as brigas, os rancores, as angústias de um passado familiar marcado
pela incompreensão tornaram-se elementos essenciais para a composição teatral de
Jorge Andrade. Em sua dramaturgia, as figuras familiares tornaram-se grandes
personagens e ganharam vida nos palcos. Em Rastro Atrás - peça considerada
autobiográfica - Jorge Andrade retoma o passado, a fim de exorcizar os fantasmas
familiares que o oprimiam. Na peça, o protagonista Vicente (projeção fictícia do autor).
é focalizado em diferentes momentos da vida: aos cinco anos, quando morava na
fazenda e já revelava vocação artística. Aos quinze anos, em constante briga com o pai e
tentativas de ir para a cidade de São Paulo. Aos vinte e três, quando parte para São
Paulo, depois de exaustivas brigas, iniciando assim sua carreira de autor. Por último,
Vicente é apresentado com quarenta e três anos de idade, quando já é um autor
reconhecido nacionalmente. Esta fase é marcada por grandes dificuldades financeiras,
brigas com empresários e o reencontro com pai.
Aos cinco anos de idade Jorge Andrade já manifestava incompatibilidade com
pai. As tentativas de João José em ensinar o ofício da caça ao filho eram sempre
frustradas, a desatenção e falta de habilidade para a atividade atormentavam o pai
caçador:
(João José pára subitamente, levando a mão no peito e apoiando-se à árvore.
Vicente - cinco anos - aparece atrás da árvore e caminha admirando a lua).
2
ANDRADE, Jorge . Labirinto. São Paulo: Paz e Terra, 1978, p. 29.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
155
VICENTE: Papai! Por que a lua está quebrada?
JOÃO JOSÉ: (Muda o tom) Não estou vendo lua nenhuma no céu, Vicente.
VICENTE: Eu vi no livro.
JOÃO JOSÉ: É desenho, meu filho.
VICENTE: Vi também no céu e estava quebrada. Por quê, papai?
(...) JOÃO JOSÉ: Vicente!
VICENTE: Senhor!
JOÃO JOSÉ: Você já sabe laçar?
VICENTE: Não.
JOÃO JOSÉ: Laçar é mais importante do que saber por que a lua fica
quebrada.
(...) VICENTE: (afastando até desaparecer) Se o senhor me explicar por que a
lua fica quebrada, aprendo a laçar também. (Sai)
3
.
Com o tempo, as contradições se exacerbam, a convivência familiar torna-se
impossível. Em Rastro Atrás, o desfecho dos conflitos pode ser vislumbrado a partir da
personagem Vicente, aos vinte e três anos:
VICENTE: O senhor tem feito tudo para que eu me sinta culpado, por não
pensar como o senhor, por não ter sido o que esperava que eu fosse. Quer que
eu carregue essa culpa por toda a vida, como um traidor. É uma maneira de
destruir o que sou. Mas não vai conseguir. O senhor me abandonou a vida
inteira só porque não era caçador uma cópia sua! Agora quer que eu carregue
sua terra como o único bem que a vida pode dar? Pois saiba que há muitos!
Tudo aqui passou a ser insuportável, quando compreendi que havia outros bens
que podiam ser conquistados. A terra e a vida que o senhor quer me impingir
só serviram para me prender à minha angústia, e não me deixariam jamais sair
dela! (....) Eu vou vencer, está ouvindo? Eu vou vencer. Volto aqui para
ajustarmos as contas(...)
4
.
As agressões foram tantas que o jovem decide partir, abandonando o mundo
“agrário” e “bovino” da fazenda. Em meio a dor e expectativas chega à cidade de São
Paulo, onde em 1951 assiste, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), ao espetáculo O
Anjo de Pedra de Tennesse Williams. Em conversa com Cacilda Becker - protagonista
do espetáculo - esta o aconselha a matricular-se na Escola de Arte Dramática (EAD),
onde manifesta sua vocação para autor. Aliás, é nessa casa que Jorge Andrade começa a
formatar seu teatro, estabelecendo contato com nomes importantes do meio teatral, que
contribuíram para a sua formação teórica e técnica, entre os quais destaca-se, Décio de
Almeida Prado e Sábato Magaldi.
Assim, em 1951 Jorge Andrade escreve a sua primeira peça, O Telescópio que,
mais tarde, em 1954, conquistou-lhe o Prêmio Fábio Prado. Contudo a sua produção
artística não ficou restrita ao teatro. Durante algum tempo trabalhou como repórter na
3
___. Rastro Atrás. In: Marta, a Árvore e o Relógio. Perspectiva, 1986 p. 465.
4
Idem, p. 522-523.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
156
revista Realidade, escreveu para a revista Visão e foi colaborador da Folha de São
Paulo. Sua produção ainda inclui importantes novelas, como O Grito (1975-1976);
Ninho da Serpente (1982) e Sabor de Mel(1983).
Escola de Arte Dramática (EAD) e Teatro Brasileiro de Comédia (TBC): As Bases
Intelectuais e Artísticas de Jorge Andrade
A Escola de Arte Dramática nasceu dentro de um contexto de renovação teatral,
postulando um trabalho além da pura profissionalização de atores, diretores e
dramaturgos. Estava em pauta a busca de uma ética e uma nova estética da cena. Sendo
assim, o ator não deveria apenas representar um papel, e a função do dramaturgo não
era simplesmente a de escrever peças. Essencialmente, o aluno da escola de Alfredo
Mesquita era considerado um criador ao mesmo nível do poeta ou pintor, e que servisse
antes de tudo à arte e não ao lucro comercial apenas
5
.
Com esse propósito, a EAD apresentou uma estrutura curricular ampla,
fundamentada no ensino da história do teatro universal e, especificamente, no teatro
greco-romano, clássico francês e elisabetano. Além das disciplinas História do Teatro,
Drama, Comédia, Imposição Vocal, Mímica e Francês, em 1951-1952, foram
introduzidas no programa as seguintes disciplinas: Preparatório, Estética Geral e
Estética da Língua Portuguesa, Ritmo, Português e Mitologia.
O primeiro professor de História do Teatro foi Décio de Almeida Prado. Em
1950, contou com a participação de Paulo Mesquita Mendonça e, a partir de 1953, teve
a participação assídua de Sábato Magaldi. O conteúdo dessa matéria era assinalado por
itens como: considerações sobre a carreira do ator, suas dificuldades e deveres; moral e
ética profissional; as companhias nacionais itinerantes (Leopoldo Fróes, Procópio
Ferreira); companhias estrangeiras (portuguesas, italianas, francesas); dramaturgos
nacionais (Oduvaldo Vianna Filho, Juracy Camargo); movimento dos grupos amadores
de São Paulo e Rio de Janeiro; a fundação do TBC e da própria EAD
6
.
Em 1953, a EAD mobiliza-se para os estudos de aspectos estéticos voltados para
as preocupações do ator. A disciplina ministrada pela professora Gilda de Mello e Souza
tinha como propósito levar o aluno a pensar criticamente sobre seu trabalho e
5
SILVA, Armando Sérgio da. Uma Oficina de Atores: A Escola de Arte dramática de Alfredo
Mesquita. São Paulo: EDUSP, 1989, p. 58.
6
Idem, p. 64.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
157
desenvolver uma consciência de seus objetivos artísticos, políticos e sociais. Segundo
Armando Sérgio da Silva, Gilda discutia temas extremamente polêmicos para o artista,
como “suas relações com o produtor e consumidor, a importância da inspiração e do
raciocínio; função da obra de arte na sociedade, as sanções sociais compreendidas na
glória, no sucesso, no esquecimento, no ridículo e na opinião pública
7
”.
Na década de 1950, a Escola de Arte Dramática tornou-se um dos centros de
estudo mais completos na divulgação da literatura dramática. Tanto é assim que,
segundo o crítico teatral Sábato Magaldi, um dos serviços prestados pela Escola era o de
montar autores de vanguarda ou julgados difíceis. Com essa particularidade, lançou no
Brasil, entre outros, nomes como Brecht, Kafka, Schehadé, Ionesco, Fernando Pessoa,
Brendan e Behan, John Arden, Jean-Claude van Itallie. A Escola também teve uma ação
pioneira ao privilegiar em seu repertório inúmeros clássicos, referências importantes do
teatro universal, como Aristófanes, Moliére, Tennessee Williams, Pirandello, Tchecov,
Gil Vicente, Sófocles, Almeida Garrett, Ésquilo, Cervantes, Voltaire, O’Neill e outros
tantos
8
.
Foi no interior dessa escola que Jorge Andrade tornou-se de fato um dramaturgo.
Ao longo de sua formação, foi criando uma maneira peculiar de olhar o passado e
inserir-se na realidade brasileira. Pode-se dizer que foi na Escola de Alfredo Mesquita
que o dramaturgo formou uma certa “consciência nacional”, levando para os palcos o
passado histórico do Brasil, as raízes e a realidade do homem brasileiro no tempo e no
espaço. Entretanto, o projeto artístico de Jorge Andrade não nasceu aleatoriamente.
Além de trazer na bagagem a matéria-prima de seu teatro - personagens vivos de sua
estória -, ele também é fruto da influência de importantes autores nacionais e
estrangeiros, com quem estabeleceu os primeiros contatos na Escola de Arte Dramática.
É portanto, nessa casa que Jorge Andrade começou a criar vínculos com um
meio teatral específico e a estabelecer diálogo com diversos autores que irão dar maior
formatação à sua escrita teatral. Enquanto estudava na Escola de Arte Dramática, Jorge
Andrade fortaleceu seus laços de amizade, com aqueles que se tornaram seus grandes
interlocutores. A maioria eram pessoas importantes do meio intelectual, críticos
literários, professores universitários que, escreviam para o Jornal Folha de São Paulo.
Nomes como o de Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Antônio Cândido, Gilda
7
Idem, p. 66.
8
MAGALDI, Sábato. e VARGAS, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo. São Paulo: Ed.
Senac, 2000, p. 285-286.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
158
de Melo e Souza interferiram no seu processo criativo, apontando sugestões e correções
técnicas, sugerindo caminhos, aconselhando bibliografias e, acima de tudo,
incentivando a construção de uma dramaturgia nacional. Em sua trajetória, Jorge
Andrade não cansou de mencionar a importância desses laços afetivos:
Eu sempre ouvia muito, sobretudo quando estava me formando como
dramaturgo, (...) eu seguia cegamente, porque eu acreditava. (...) Vejo assim o
Cândido como um homem de grande honestidade, de uma grande sensibilidade,
de um grande valor crítico-literário. O Décio, com uma grande capacidade
crítica teatral, de situações e tudo mais. E acho o Sábato um grande analista de
texto. (....) Mas eles influíram no sentido de mudança do meu trabalho, mais de
me levar a ver que eu não estava alcançando o propósito que eu estava
anunciando
9
.
Outras referências importantes também estiveram presentes no momento da
produção artística do dramaturgo. Murilo Mendes, Érico Veríssimo, Wesley Duke Lee
são nomes que devem sempre ser rememorados. Especialmente, a sensibilidade e a
poesia que marcam a escrita andradina são fruto dos profundos diálogos, dos laços
estreitos de amizade com esses autores/artistas:
Compreendo que com Wesley aprendi a beleza das cores, com Murilo, a força
eterna da poesia, com Gilberto Freyre encontrei meu avô e seu mundo morto,
com Érico descobri um pai impossível e que, com Sérgio, vou enfrentar a
verdade histórica de tudo ...
10
.
No que concerne à relação intrínseca que a sua dramaturgia mantém com a
história, esta, por sua vez, não surgiu apenas das lembranças do passado, dos dramas
familiares na crise de 1929, das perdas de terras e da obrigatoriedade de uma inserção
ao mundo moderno, urbano. Essencialmente, ela também é fruto das relações de
amizade, das leituras e da intimidade do dramaturgo com renomados antropólogos e
historiadores, entre eles Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado
Júnior. Desse último Jorge Andrade relembra o seguinte conselho:
- Se você quiser encontrar resposta lendo os historiadores, pode desistir,
porque os historiadores são muitos fracos. Você tem que ter paciência infinita
de ler os documentos da época, porque são muitos difíceis de serem lidos. Mas
a gente só faz história quando a gente lê, vê e tem a visão do homem no tempo e
no espaço. E você faz isso através dos documentos deixados. Procure ler coisas
9
ENTREVISTA COM JORGE ANDRADE. Entrevistadores: Mariângela Alves de Lima, Linneu Dias e
Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Centro de Documentação e Informação Sobre Arte
Brasileira Contemporânea. Centro Cultural São Paulo/Arquivo Multimeios, 22 de outubro de 1976.
Citado por: SANT’ANNA, Catarina. Op. Cit., p. 29.
10
ANDRADE, Jorge. Labirinto. Op. Cit, p. 165.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
159
da época pra ver como é que eles julgavam os homens, como é que os homens
se apresentavam no seu tempo, pra você poder descobrir alguma coisa
11
.
Certamente o conselho do amigo historiador foi bem atendido pelo dramaturgo,
pois, em algumas entrevistas, sempre menciona o fato de ter passado três a quatro anos
lendo as atas da Câmara de São Paulo. Ao lado disso, necessariamente, muitas obras
tornaram-se referências obrigatórias para a construção do seu projeto de escrita teatral,
especialmente os clássicos da História do Brasil. Em Labirinto, Jorge Andrade faz
menção a essas referências, rememorando um trecho de Antônio Cândido, na época de
formação na Escola de Arte Dramática:
Os homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá de cinqüenta
anos aprenderam a refletir e se interessar pelo Brasil, sobretudo em termos de
passado, em função de três livros: “Casa Grande e Senzala” de Gilberto
Freyre, publicado quando estávamos no ginásio, “Raízes do Brasil” de Sérgio
Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar;
“Formação Econômica do Brasil”, publicado quando estávamos na escola
superior. São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem
exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise
social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo,
abafado pelo Estado Novo. Estou nesta faixa de idade e li os três livros. É por
isso que conheço o passado e cheguei a compreender a tragédia de Fernão.
Observo Sérgio com admiração crescente
12
. (Grifos nossos)
A Escola de Arte Dramática também permitiu a Jorge Andrade o contato com a
dramaturgia estrangeira. Ainda quando estudava na EAD, o dramaturgo assistiu a
apresentação de um texto de Artur Miller, A Morte do Caixeiro Viajante. O espetáculo
foi um dos seus primeiros contatos com o teatro norte-americano, o que influenciou
diretamente a escrita de A Moratória:
- Quando escrevi A Moratória, tinha visto uns meses antes o Jaime Costa,
representando A Morte do Caixeiro- Viajante no Teatro Cultura Artística. (...)
Nunca esqueci esse espetáculo, foi quanto a mim a melhor representação desse
texto no Brasil. Por isso posso dizer que o Arthur Miller me leva a ter vontade
de escrever. Aquele homem me lembrava um pouco o velho caído na fazenda.
Me lembrava um pouco a derrota
13
.
Jorge Andrade foi um dos primeiros autores brasileiros a reconhecer a
importância dramática e social na obra de Arthur Miller. A grande característica do
11
ENTREVISTA COM JORGE ANDRADE, São Paulo: 22 de outubro de 1976. Citado por ARANTES,
Luiz Humberto Martins. Teatro da Memória: História e Ficção na Dramaturgia de Jorge Andrade.Op
Cit., p. 46-47.
12
Idem, p. 176-177.
13
ANDRADE, Jorge. As Confissões de Jorge Andrade. Boletim do INACEM, 1984, p. 19.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
160
dramaturgo norte-americano de enfrentar as lembranças e os conflitos pessoais animou
Jorge Andrade a rememorar o passado. A preocupação com as questões sociais, tão
presentes nos textos de Miller, em especial as próprias misérias - o drama da
“desagregação familiar” - também facilitou ao dramaturgo paulista escrever sobre a
realidade brasileira a partir de sua própria experiência de vida. As semelhanças dos
projetos de escrita desses dois dramaturgos foram realçadas de forma bastante
esclarecedora pelo pesquisador Juvenal de Souza Neto:
a semelhança da tragédia pessoal de Willy Lomam e a de Joaquim, de A
Moratória, demonstra que Jorge Andrade colheu inspiração, além de sua
inspiração pessoal (...) em A Morte do Caixeiro Viajante. Tanto Joaquim como
Lomam recusam-se a admitir a real situação em que se encontram. Joaquim,
como Lomam, não consegue suportar o esfacelamento de seu mundo particular
e dos valores que orientam sua vida. A derrota de ambos é lenta e se agrava
passo a passo, até culminar no suicídio inconsciente de Loman e no misto de
apatia e inconsciência de Joaquim, que equivale a não mais viver. (...) Helena
Mulher de Joaquim, também se assemelha a Linda, mulher de Lomam. Sabem
da diferença entre o que seus maridos são e o que gostariam de ser, ou melhor,
o que foram e o que pensam que ainda são. Sabem, da mesma forma, da
impossibilidade de fazer com que assimilem a realidade dos fatos exteriores
que se recusam a aceitar. Mantêm uma postura de profunda compreensão e
cuidado com o drama íntimo que vivem Loman e Joaquim
14
.
Tanto Jorge Andrade quanto Arthur Miller valem-se da memória, das
reminiscências, dos fragmentos de um passado banhado de saudades, solidão e perdas
de referenciais. Portanto, a diferença entre os textos reside no fato de que A Moratória
não fica restrita somente ao passado, ao contrário de A Morte do Caixeiro Viajante, que
é construída em dois planos: o passado (1929) e o presente (1932). Em Jorge Andrade,
os princípios do realismo psicológico tão presentes em Miller - solidão do indivíduo,
medo e a sensação do inevitável fracasso -, foram exaustivamente utilizados para
pensar os impasses da desagregação de um modo de vida rural e a imposição dos
valores de vida essencialmente urbanos.
Além das pontuadas influências da dramaturgia norte-americana, Jorge Andrade
também estabeleceu profícuos diálogos com a dramaturgia russa, em especial com
Anton Tchecov, autor de O Jardim das Cerejeiras e As Três Irmãs, peças que abordam
o tema do declínio do mundo rural na Rússia em fins do século XIX. A preferência por
14
SOUZA NETO, Juvenal. Jorge Andrade: Um autor em busca de si mesmo. Dissertação (Mestrado).
ECA/USP, 1987, p.47-48.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
161
Tchecov foi mencionada publicamente pelo próprio dramaturgo paulista, que nunca
escondeu o respeito e a simpatia que sentia pelo autor russo:
Tchecov, por exemplo, é o grande autor pré revolucionário russo. Por que ele
mostrou toda a decadência de uma sociedade, anunciando uma nova. Mas eles
só sabem de Gorki, que pertenceu ao Partido Comunista, e que é um autor
inferior, mas muito inferior a Tchecov
15
.
Contudo, a influência da dramaturgia checoviana, no projeto de escrita teatral de
Jorge Andrade, não consistiu apenas na tomada de posição política do dramaturgo, mas
sobretudo nas opções estéticas e dramáticas. Sendo assim, o texto As Três Irmãs
inspirou Jorge Andrade ao compor as personagens Jesuína, Isolina e Etelvina, tias de
Vicente, protagonista de Rastro Atrás. Na peça, as tias representam a aristocracia
decadente na crise de 1929, são velhas, solteironas, sem filhos, decadentes e
desajustadas no presente em que vivem. Diante do impacto da crise, se vêem obrigadas
a abrir mão até mesmo dos seus pertences domésticos para sobreviverem. Assim, a
decadência vivida pelas três tias do dramaturgo está intimamente ligada à dramaturgia
russa:
para Tchecov um colapso social é um colapso pessoal, mesmo quando se pode
ver além de uma situação em que há pressão, ainda assim a pressão vigente é
desintegradora. E uma sociedade desintegradora estende o seu processo para
as vidas individuais. Não é algo externo, em relação ao qual uma atitude seria
suficiente e, sim diretamente vivenciado nas fibras do corpo e do espírito.
Numa sociedade em desagregação, os indivíduos carregam em si mesmos o
processo desagregador. E mesmo a aspiração é uma forma de derrota
16
.
Herdeiro dos princípios do realismo russo do século XIX, Anton Tchecov
procurou estabelecer uma ligação essencialmente crítica com a sociedade russa que
conheceu e viveu. Sua análise social baseia-se em dados observados da realidade,
sobretudo de um passado que significou alguma coisa e que, no presente, apresenta um
significado essencialmente diverso. Assim, em O Jardim das Cerejeiras:
o fio narrativo, (...) é de pouca importância: um cerejal está prestes a ser
vendido, as personagens fazem tudo para salvá-lo e cada uma delas vê
naquele pomar um valor sentimental, cultural ou social, o cerejal acaba
sendo vendido num leilão a Lopahin, filhos de antigos servos da família, que
havia se tornado um próspero burguês. A peça é um painel social da Rússia
pré-revolucionária e do processo de transformação por ela sofrido a partir de
1900. Tchecov preza algumas das qualidades da velha aristocracia: a
delicadeza, a sensibilidade, o culto às tradições, tomando não como
15
Idem, p. 80-81.
16
WILLIANS, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 190-191.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
162
maneirismo de classe e sim como a cristalização do que se considera uma
conquista do espírito. Ao mesmo tempo, porém Tchecov tem a suficiente
lucidez para sentir a transformação que está se operando na maneira de viver
daquela classe
17
.
Há no dramaturgo russo um forte sentimento em relação ao passado vivido. O
tempo é observado da perspectiva da desintegração dos valores, dos símbolos e das
tradições de uma vida passada. Tais sentimentos acarretam desconforto, inadaptações
com o seu presente, que ainda é um mundo em desagregação. Esses sentimentos e
preocupações estão também presentes na dramaturgia andradina, através da construção
de uma memória individual ancorada na história coletiva de um País.
Contudo, se a Escola de Arte Dramática serviu para formar e educar atores,
dramaturgos e diretores, dando-lhes fundamentos práticos, teóricos e técnicos para
realizarem seus trabalhos, paralelamente, a ação do Teatro Brasileiro de Comédia fez-se
presente, formalizando o encontro de atores, diretores e texto, dando vida à cena e
despertando no público o gosto pelo teatro. Nessas circunstâncias, o TBC foi a casa de
espetáculos que mais permitiu ao público um contato com a dramaturgia de Jorge
Andrade, levando para os palcos quatro de seus importantes textos: Pedreira das Almas
(1958), A Escada (1960), Os Ossos do Barão(1963/1964) e Vereda da Salvação(1964).
Foi, então, nos palcos da Companhia de Zampari que Jorge Andrade tornou-se
um dramaturgo consagrado, tendo o seu trabalho reconhecido pelo público e agraciado
pela crítica. Mas, nem tudo foram aplausos. Alguns textos andradinos tornaram bastante
polêmicos, como Vereda da Salvação, cuja apresentação foi apontada pelo meio teatral
como sendo o grande prejuízo da Companhia e a responsável por inviabilizar a
continuidade das atividades artísticas do TBC.
Contudo, o primeiro texto de Jorge Andrade levado a público não ocorreu no
palco tebecista. Em 1955, o Teatro Maria Della Costa mobiliza o cenário teatral paulista
para apresentar A Moratória. O espetáculo, dirigido por Gianni Ratto, contagiou o
público e agradou a crítica, sendo apontado como um novo “marco” na história do
teatro brasileiro, “o primeiro acréscimo significativo ao nosso palco, depois do
lançamento de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, na temporada carioca de
1943
18
.
17
Citado por: ARANTES, Luiz Humberto Martins. Teatro da Memória: História e Ficção da
Dramaturgia de Jorge Andrade, Op. Cit., p.64.
18
MAGALDI, Sábato. Um Painel Histórico: o Teatro de Jorge Andrade. In: ANDRADE, Jorge. Marta, a
Árvore e o Relógio. Op. Cit., p. 673. Para muitos, a encenação de A Moratória foi uma resposta
“modernizante” do teatro paulista ao meio teatral do Rio de Janeiro, que em 1943, mobilizou o cenário
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
163
Assim, A Moratória resgata as conseqüências da Revolução de 30, através da
história de uma família que perdeu a fazenda na crise de 1929 e viu-se obrigada a mudar
para cidade, onde todos passaram a viver do trabalho da filha. No desenrolar da trama,
nota-se que a família vive sob os impasses da modernização (cidade) e tradição
(fazenda), pois a mudança provocou profundas transformações nos valores familiares e
nas relações sociais de produção. A peça apresenta-se extremamente moderna, tendo a
sua estrutura dramática organizada em dois planos de ação: 1929 sugere o retrato da
crise, a perda da fazenda com o baixo preço do café; 1932 retrata a vida na cidade, as
inquietudes com os novos valores de vida apresentados pela sociedade.
A efervescência em torno de A Moratória, os louvores unânimes da crítica e do
público concederam-lhe o estatuto de obra-prima, sendo apresentada com uma das
melhores peças do teatro moderno brasileiro. Na opinião do diretor italiano Ruggero
Jacobbi, A Moratória:
Não é um fato: é um acontecimento. Não pertence à crônica, mas sim à
história. Daqui começam novos rumos; aqui se fecham as portas para as
mistificações. Grande ou pequeno, maior ou menor, este teatrólogo fala a
linguagem paulista com o mesmo acento universal com que os três romancistas
que garantem a posição de nossa literatura moderna no mundo Graciliano
Ramos, Zé Lins, Jorge Amado falam a linguagem do norte
19
.
O impacto da apresentação do texto andradino no palco do Teatro Maria Della
Costa também rendeu críticas positivas a Jorge Andrade, reconhecendo, especialmente,
a profundidade dada ao tema, a segurança artística e a técnica de construção da peça:
A Moratória talvez surpreenda pela maturidade artística. (...) O texto surge
como um bloco homogêneo e compacto, seguro na nitidez de suas linhas; cheio
de mérito na fusão de um tema atraente com uma forma precisa e adulta. Essas
qualidades parecerão mais naturais se não esquecermos que Jorge Andrade é
um artesão infatigável, que não poupa o trabalho das múltiplas versões de um
texto (...). O resultado da peça é fruto, também, de um virtuosismo técnico
pouco freqüente na literatura dramática brasileira. As personagens são
talhadas em traços vivos e fortes, o que, embora com prejuízo da sutileza e da
complexidade, lhes confere caracteres esculturais. Se aduzirmos que o veículo
utilizado por Jorge Andrade é um diálogo excelente objetivo, vigoroso,
teatral, sem devaneios literatizantes concluiremos que A Moratória é uma
obra feliz
20
.
cultural com a apresentação de Vestido de Noiva. O elenco de A Moratória foi constituído por nomes
importantes do teatro brasileiro, entre os quais Fernanda Montenegro, Elísio de Albuquerque, Milton
Morais, Sérgio Britto, Monah Delacy e Vanda Kosmos.
19
Jornal Folha da Noite, 09/05/1955. In: Nossos Autores Através da Crítica (Museu Lasar Segall
Biblioteca Jenny K. Segall), vol. 02, 1981, p.21.
20
MAGALDI, Sábato. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 57-60.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
164
Mas os aplausos a Jorge Andrade, não ocorreram somente no Teatro Maria Della
Costa. Três anos depois do sucesso de A Moratória, o Teatro Brasileiro de Comédia
agracia o público paulista com a produção de outro texto seu, Pedreira das Almas. A
peça provoca uma certa expectativa, pois, além de ter sido a escolhida para comemorar
o décimo aniversário das atividades teatrais do TBC, esperava-se o mesmo sucesso de A
Moratória.
A trama de Pedreira das Almas desenrola-se em uma cidade do interior de
Minas Gerais São Tomé das Letras no ano de 1842, época da Revolução Liberal.
Nessa cidade só existem pedras e a terra é extremamente escassa, a ponto de não ser
possível nem mesmo enterrar os mortos. A necessidade de expandir a cidade para um
vale próximo é o ponto de conflito entre os habitantes. Essencialmente, Jorge Andrade
esbarra no forte tema das tradições: a luta entre moradores que querem permanecer na
cidade, junto aos seus valores e tradições, e os que desejam partir para uma vida nova
em outro lugar. Urbana, a matriarca, tradicionalista da cidade, manifesta um grande
desejo em permanecer e cuidar de suas terras, Gabriel (o namorado de sua filha
Mariana) comanda o grupo que deseja a mudança, o esquecimento e a distância de um
passado que já não lhes serve mais. Assim, o texto mostra a mudança das famílias do
Sul de Minas para a cidade de São Paulo e o início da cultura de café no Brasil
21
.
No entanto, Pedreira das Almas não causou no público o impacto do texto
anterior. Segundo Alberto Guzik, a platéia “reage friamente à encenação da tragédia
de Jorge Andrade. As quarenta e oito sessões atraem mais ou menos sete mil
espectadores, dando uma média de cento e quarenta pessoas por récita. Considerando-
se os gastos com a produção do espetáculo, esses números se traduzem para Zampari
em grande prejuízo
22
”.
As restrições ao espetáculo recaem principalmente na direção realizada por
Alberto D’Aversa. Nas palavras de Sábato Magaldi, “Pedreira das Almas (...), que seria
a grande montagem para comemorar o décimo aniversário do TBC, deixou de atingir a
21
A produção de Pedreira das Almas no TBC contou com os seguintes nomes Direção: Alberto
D’Aversa; Assistente de Direção: Fernando Torres; Cenógrafo: Mauro Francini; Elenco: Fernanda
Montenegro, Leonardo Villar, Dina Lisboa, Sérgio Brito, Ítalo Rossi, Oscar Felipe, Nathália Timberg,
Carminha Brandão, Berta Zemel, Fernando Torres, Raul Cortez, Francisco Cuoco e outros mais.
Depois de ter sido apresentada nos palcos do TBC, Pedreira das Almas é novamente requisitada. Em
1977 foi escolhida para ser o espetáculo de inauguração do Teatro Alfredo Mesquita. Nesta produção a
direção ficou a cargo de Teresa Thiérott, a cenografia foi de Flávio Phebo, e entre os autores destacam-se:
Cacilda Lanuza, Tereza Teller, Rildo Gonçalves, Fernando de Almeida.
22
GUZIK, Alberto. TBC: Crônica de Um Sonho. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 171.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
165
platéia, pelo tom excessivamente declamatório e solene do desempenho na linha dada
por Alberto D’Aversa, tornando artificial o desempenho
23
”.
Para Bruna Beciierucci, Pedreira das Almas apresenta-se como um teatro novo,
em certo sentido. As inovações, a participação do coro, as palavras recitadas
desorientaram o público, que, acostumados a separar a parte emocional da estética, é
induzido num primeiro momento a pensar em presunções inovadoras por parte do autor.
Mesmo afirmando que evitaria comparações entre Pedreira e A Moratória, a autora
coloca, que:
É certo que, ao assistir a Pedreira das Almas depois de ter assistido A
Moratória, o espectador indaga de si para si por que o autor não se ateve aqui
também àquele tom dissecado, rude, vigorosamente dramático (sem procura de
efeitos) com que esculpiu uma tragédia coletiva e individual na Moratória. (...)
Estas as intenções da peça de Jorge Andrade. Da terra em que estão sepultados
os mortos heróicos, a gente não se afasta. A tradição familiar não se trai. Aso
mortos não se desobedece. Se colocarmos tudo isso, se o encenarmos na nossa
época anti-heróica e anti-tradicional que visa a ultrapassar os limites
campesinos e os mitos autóctones, podemos ter a impressão de retórica. Se
colocarmos, porém, no rude cenário histórico e natural da vila mineira, se o
ambientarmos numa época e tradição que justifiquem tais sentimentos de alto
tom, veremos que esta peça pode estar, como riqueza de conteúdo, de emoções
não fáceis, ao lado da Moratória. Apenas, para chegarmos a isso, será preciso
empreender uma longa tarefa de despojamento, isto é, libertar a obra de tudo o
que é forma (coreografia, música, etc.
24
).
Diferente das análises de Bruna Beciierucci, o crítico teatral Lourival Gomes
Machado ressalta que a recepção do público foi injusta com o texto andradino,
especialmente a crítica que fez o julgamento de Pedreiras das Almas simplesmente pelo
confronto com A Moratória. Em sua opinião, a avaliação de uma obra de arte, seja ela
qual for, deve levar em conta a sua análise interna e as suas informações exteriores,
principalmente aquelas ligadas à vida e obra do autor. Admite-se também o confronto
entre as obras, mas desde que se considere o processo criativo de cada uma. Nessas
circunstâncias, a avaliação de Pedreira das Almas deverá:
orientar-se no sentido da individuação da peça em exame, visando à
objetivação de suas próprias e específicas qualidades, nunca à sua redução aos
tributos e valores da outra obra. Eis por que, se houve, como parece,
deliberado intuito de iniciar o julgamento de Pedreira das Almas pela
23
Revista Dionysos Teatro Brasileiro de Comédia (SEAC- FUNARTE - Serviço Nacional de Teatro),
setembro, 1980, nº 25, Brasília: FUNDACEN, p. 50.
24
BECILERUCCI, Bruna. Pedreira das Almas. In: Revista ANHEMBI, São Paulo, 09,33 (99): 610-1,
fevereiro de 1959.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
166
referência a A Moratória, não deveria insistir tanto no que tem esta e aquela
não tem, senão no que aquela trouxe de novo e diferente
25
.
Perspectiva bastante diferente, encontra-se ainda em uma passagem da Revista
Anhembi, onde as restrições a Pedreira das Almas não se voltaram para a sua produção,
mas para o público paulista, que, mesmo tendo uma expressiva vida teatral, encontrava-
se despreparado para espetáculos ousados:
Sem dúvida, porém, a maior falha deste belo espetáculo, e esta também é
exterior, foi a absoluta incompreensão do nosso público pela significação não
só teatral como cultural e artística da peça. Como alguém disse e com toda
razão o nosso teatro progrediu depressa demais. Por isso mesmo o público
não conseguiu seguir-lhe a rápida ascensão, esse nosso público que ainda se
encontra na fase em que se dá valor (...) às pseudos-comédias que fazem rir às
custas de sandices e imoralidades
26
.
Entretanto, muitos críticos reconheceram a capacidade e a ousadia da criação
artística de Jorge Andrade. Em algumas análises, Pedreiras das Almas foi considerada
um importante acontecimento do teatro contemporâneo, um texto moderno que não
existe apenas literariamente, mas também como um espetáculo visual e auditivo, que,
propõe nova técnica, um coro com uma forte participação dramática:
Não há dúvida possível: “Pedreira das Almas”, o drama, ou melhor, a tragédia
de Jorge Andrade ora apresentada pelo Teatro Brasileiro de Comédia é um dos
acontecimentos mais importantes e animadores do nosso teatro contemporâneo.
Não só por comemorar o 10º aniversário do nosso teatro como - e sobretudo -
pelo seu inegável valor tanto artístico como cultural. De fato, é “Pedreira das
Almas” a nossa primeira e única tragédia (...). Plenamente realizada não só
como peça, como pela magistral interpretação que lhe dão os atores do TBC.
(...) Depois desse ambicioso, direi mesmo temerário empreendimento, ninguém
poderá negar em sã consciência os dotes invulgares de dramaturgo de Jorge
Andrade, que mais uma vez demonstra o seu raro talento trágico ligado a um
senso inato de teatralidade no que ela tem de melhor
27
.
Contudo, além das efervescentes opiniões que cercaram o texto andradino, deve
ser levado em conta uma questão não vislumbrada pela crítica: a de que Jorge Andrade
é um agente social inserido nas lutas políticas do seu tempo e que, portanto, o seu texto
Pedreiras das Almas não é simplesmente um reflexo do passado. Mais do que isso, ele
faz uma leitura peculiar sobre o presente, especialmente sobre os impasses vividos nos
anos de 1950 pela sociedade brasileira que, com a implantação e a expectativa de
25
MACHADO, Lourival Gomes. Pedreira das Almas. In: Marta , a Árvore e o Relógio. São Paulo:
Perspectiva, 1986, p. 618.
26
Idem, p. 37.
27
REVISTA ANHEMBI, São Paulo, 09, 33(98):396-9, janeiro, 1959.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
167
modernidade, viu um grande crescimento das estradas, o aumento da produção
automobilística e a construção acelerada de Brasília. Obviamente, esse clima moderno
trouxe conflitos, mudanças de valores e perdas dos referenciais de vida. Pensando na
relação texto/contexto, Pedreira das Almas torna-se uma representação da realidade
brasileira em questão.
Entretanto, a receptividade do texto pelo público foi fraca, o que intensificou a
aguda crise financeira pela qual passava o TBC. O ano de 1961 foi considerado um dos
piores na trajetória artística da Companhia. As conturbações se iniciam quando um
grupo de atores move uma ação trabalhista contra Zampari, que há três meses não
conseguia capital suficiente para pagamento de salários. Diante dos impasses, o diretor
do TBC opta pelo fechamento da casa. Entretanto, a iminência em dar fim às atividades
artísticas da maior e mais tradicional casa de espetáculos de São Paulo, provoca uma
forte mobilização da classe teatral, que consegue junto ao governo do Estado verbas
para saldar parte das dívidas. Ainda nesse contexto, o próximo texto a ser encenado, A
Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, apresenta sérios problemas com a censura,
aumentando as dificuldades dos trabalhos da Companhia.
Mas é em meio a esses acontecimentos que outro texto de Jorge Andrade visita o
palco do TBC e, para o alívio de todos, foi amplamente aclamado pelo público.
Diferente de Pedreira das Almas, A Escada foi um sucesso e permitiu ao TBC recuperar
parte do fôlego perdido nas constantes oscilações de público e na progressiva crise
financeira
28
. Nas palavras de Alberto Guzik, A Escada arregimentou um público
expressivo, permanecendo em cartaz por quatro meses e meio e oferece cento e
sessenta espetáculos para quase trinta e seis mil espectadores. Com a média de
duzentos e cinqüenta por récita, é um dos cinco maiores êxitos da carreira do TBC
29
.
O texto, que discute o tema da família aristocrática em decadência e a família
urbana em ascensão, traz uma nítida mudança de ambientação. Diferentemente de A
Moratória e O Telescópio, todos os personagens que compõem a trama de A Escada
estão inseridos no meio urbano, a cidade. A trama gira em torno de um casal de
velhinhos Atenor e Amélia, que, sem uma residência fixa para morarem, fazem rodízio
28
A Escada foi dirigida por Flávio Rangel, a assistência de direção ficou a cargo de Stênio Garcia, o
cenógrafo foi Cyro Del Nero, o elenco foi composto pelos seguintes atores: Luís Linhares, Carmem Silva,
Cleide Yáconis, Miriam Mehler, Nilda Maria, Elísio de Albuquerque, Maria Célia Camargo,
Gianfrancesco Guarnieri, Natália Thimberg, Laércio Laurelli, Juca de Oliveira, Ruthinéia de Moraes,
Stênio Garcia, Flávio Migliaccio, Noel Silva, José Egydio, Cuberos Netto, Leda Maria. Ver: Revista
Dionysos Teatro Brasileiro de Comédia, Op. Cit., p. 261.
29
GUZIK, Alberto. Op. Cit., p. 205.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
168
nos apartamentos dos filhos. O simpáticos velhinhos - ex-fazendeiros paulistas - são
extremamente nostálgicos e vivem das recordações do passado. Os impasses vividos nas
casas dos filhos (falta de liberdade, choque de culturas, valores que não são preservados
pelas gerações mais jovens), são recompensados quando estão a sós, na escada que
aproxima os apartamentos. Aliás, a escada torna-se o locus privilegiado para rememorar
o passado, nela eles não são incomodados, não são vigiados e ainda lhes é permitido
reviver as lembranças e expressar sentimentos.
Pode-se dizer que a apresentação de A Escada nos palcos do TBC possibilitou a
Jorge Andrade intensificar sua relação com o público. Depois da frágil recepção de
Pedreira das Almas, o novo espetáculo rendeu críticas positivas, como está relatado na
Revista Anhembi:
Com A Escada, recente estréia do TBC, Jorge descobriu finalmente a fórmula
de estabelecer contato com a platéia, de abrir as portas do seu mundo à
compreensão e à simpatia de todos. A chave foi uma “Trouvaille” dramática
das mais inspiradas: um casal de velhinhos de extraordinário encanto humano
e de surpreendente graça
30
.
As opiniões que justificavam o sucesso da peça oscilam em diversos pontos, a
começar pelas opções estéticas escolhidas por Jorge Andrade ao criar o texto e a
atmosfera nostálgica que envolve todo o espetáculo. No entanto, o que mais mobilizou a
atenção da platéia foram os velhos Atenor e Amélia, que, mesmo dando um tom cômico
ao espetáculo, expressam uma grande sensibilidade:
os velhinhos conversam na escada, espécie de terra-de ninguém onde voltam ao
passado, ao mundo que conheceram e amaram, onde nada os perturba.
São os momentos mais saborosos da peça, quando a comunicação com o
público se faz mais intensa e mais livre, graças à simpatia irresistível dos
velhinhos e à profunda autenticidade humana da situação em que se
encontram. Jorge Andrade revela aqui uma delicadeza de sensibilidade e uma
leveza de toque até esta altura insuspeitadas. (...) O espetáculo, porém, é do
casal de velhinhos, sobretudo de Luís Linhares na magnífica criação daquele
“filho de barão, neto de barão, bisneto de barão” que se recusa a acomodar-se
nos padrões sociais e humanos de hoje e que formula o seu protesto e as suas
críticas com as imagens mais pitorescas e mais inesperadas, transformando-se,
mais do que num tipo, num símbolo
31
.
Ao lado disso, torna-se importante destacar as análises do historiador Luís
Humberto Martins Arantes, que de forma perspicaz recuperou a historicidade da peça,
30
Revista ANHEMBI, São Paulo, 11, 44(132):621-2, nov. 1961.
31
Idem, p. 01-02.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
169
isto é, devolveu-a ao seu tempo, explicitando a leitura que ela fez de um País que, no
início da década de 1960, encontrava-se em constante transformação:
A Escada é um texto que não fala só de uma família que não sabe o que fazer
com os seu velhos, mas é o diálogo com um país que não está bem resolvido
com o seu passado, por isso, a constante busca. Por esse texto, fica claro como
o problema estava, nos anos 50 e início da década seguinte, inquietando a
sociedade brasileira. Estão aqui presentes uma decadente elite cafeeira, o
conflito social, então em debate, e ainda os impactos promovidos por uma
sociedade de massas calcada no consumo que cada vez mais se expandia
32
.
Depois do sucesso de A Escada, novamente um outro texto de Jorge Andrade é
representado no Teatro Brasileiro de Comédia: em 1963 entra em cena Os Ossos do
Barão
33
. No programa de estréia da peça, o lamento do diretor, Maurice Vaneau, deixa
transparecer às reais condições em que o Teatro Brasileiro de Comédia se encontrava:
Hoje o TBC reabre suas portas, mas por quanto tempo? (...) Graças à
compreensão, do espírito esclarecido do Governador Carvalho Pinto,
concedendo uma verba extraordinária para as companhias de teatro estáveis
de São Paulo; graças ainda a um auxílio que foi reservado pela última
diretoria da Comissão Estadual de Teatro para montagem, na temporada, de
duas peças de Jorge Andrade, o peso de nossa dívida será consideravelmente
aliviado. Porém, mesmo recebendo nossa parte (e não sabemos quando) nessas
subvenções, ficaremos ainda diante de um “rombo” de vários milhões
34
.
Contudo, as inquietações financeiras não inviabilizaram o êxito da montagem de
Os Ossos do Barão, que permanecendo em cartaz durante um ano e meio, foi “vista por
mais de cento e cinqüenta mil pessoas. O maior triunfo de bilheteria de toda a história
da sala
35
”. O espetáculo aconteceu em condições modestas, pois a Companhia não
possuía recursos para a decoração pomposa e para os acabamentos refinados existentes
nas produções anteriores. Mesmo assim, Os Ossos do Barão ultrapassou todos os
recordes de apresentação, proporcionando ao TBC uma certa confiança e euforia depois
de intenso período de crise:
Justamente após a maior crise de sua história, depois de quase fechar as
portas, é que o TBC completa quinze anos de existência, e recebe o melhor
32
ARANTES, Luiz Humberto Martins. Teatro da Memória: história e ficção na dramaturgia de Jorge
Andrade. Op. Cit., p. 132.
33
Ossos do Barão (1962) foi dirigido por Maurice Vaneau, a cenografia e o figurino ficaram a cargo de
Marie-Claire Vaneau, o diretor da cena foi Sebastião Ribeiro, e no elenco destacam-se os seguintes
atores: Otello Zeloni, Lélia Abramo, Maurício Nabuco, Sylvio Ziber, Ademir Rocha, Rubens de Falco,
Cleide Yáconis, Araci Balabanian, Maria Isabel de Lisandra, Áurea Campos, Hedy Toledo, Dina Lisboa,
Marina Freire, Carmem Silva, Ruthinéia de Moraes, Léa Surian, Sylvio Rocha. Ver: Revista Dionysos
Teatro Brasileiro de Comédia, Op. Cit., p. 264.
34
Idem, p. 126.
35
GUZIK, Alberto. Op. Cit. p.213.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
170
presente que poderia almejar; o sucesso de Os Ossos do Barão, de Jorge
Andrade, que se tornou o maior espetáculo de 1963, batendo todos os recordes
de bilheteria e superando até mesmo os maiores êxitos de sua fase áurea, como
a “A Casa de Chá do Luar de Agosto” e “Santa Marta Fabril S.A”. (...) O
teatro acertou. Voltou o sorriso. Já completou 350 representações. É um
recorde de representação do autor nacional. Entretanto, qualquer pessoa
poderá responder por que as peças de Jorge Andrade sempre fazem sucesso. Se
analisarmos o tema de suas obras logo encontraremos a resposta. Muitos
espectadores reconhecem nos protagonistas, um amigo, um parente, ou eles
mesmos se identificam. Sempre encontramos ali a decadência da aristocracia e
a queda dos valores antigos. E o mais importante, não encontraremos uma
caricatura, mas sim um retrato autêntico da época
36
.
Nas palavras de Jorge Andrade Os Ossos do Barão fecha um ciclo. Além de
abordar o tema da desagregação rural e ascensão urbana, como em O Telescópio, A
Moratória e A Escada, vislumbra ainda formação de uma nova elite essencialmente
industrial, pois a ascensão dos imigrantes coincide com as novas formas de trabalho
advindas do uso das máquinas. Ao explicar seu projeto de escrita teatral no programa de
abertura do espetáculo em 1963, Jorge Andrade reserva um olhar especial para Os
Ossos do Barão:
Para esclarecer melhor, eu diria que escrevi “Os Ossos do Barão”, porque
havia escrito “A Escada”. Uma conta a história do aristocrata que caiu e a
outra a do imigrante que sobe partes de uma mesma realidade social. Se na
“A Escada” o personagem principal acusa o imigrante como um dos
causadores de seus males, podendo dar a impressão de que eu apoio, em
Ossos do Barão” mostro quem é o imigrante, reconhecendo seu valor e seus
direitos. Assim, os dois lados têm suas razões e uma explicação histórica e
sociológica. Se Antenor (A escada) tem uma justificativa para ser o que é,
Egisto Ghirotto (Os Ossos do Barão) também tem
37
.
A trama dramática de Os Ossos do Barão gira em torno da decadência de um
barão, que teve de vender suas terras para o próprio empregado, imigrante italiano. Ao
longo da trama fica evidente a ascensão dos imigrantes e a decadência da aristocracia
cafeeira. Na peça a questão do “mundo rural” em oposição ao “mundo moderno” é
realçada por Jorge Andrade através da inadaptação e perda dos referenciais de vida.
Mais uma vez a recepção à peça andradina foi bastante calorosa, Os Ossos do
Barão fez um merecido sucesso, sendo adaptada mais tarde para a televisão
38
. Os
36
Revista de Teatro SBAT, Rio de Janeiro (337):27-28, jan./fev.1964.
37
Andrade, Jorge. Os Ossos do Barão. Programa da peça no TBC, 08/031963:9 In: Nossos Autores
Através da Crítica (Museu Lasar Segall Biblioteca Jenny K. Segall), vol. 02, 1981, p. 30-31.
38
Ossos do Barão não foi o único texto de Jorge Andrade adaptado pela televisão. A partir da década de
1970, nota-se uma participação ativa do dramaturgo nesse veículo de comunicação, ampliando assim, seu
contato com público popular. Entre os principais trabalhos que Jorge Andrade fez para a televisão,
destacam-se: 1973/74 - Os Ossos do Barão (Globo); 1974 Exercício Findo (Globo); 1975/76 O Grito
(Globo); 1979 As Gaivotas (Tupi); 1981 O Fiel e a Pedra (TV Cultura) ; 1981 O Velho Diplomata (TV
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
171
elogios recaíam sobre o texto, precisamente sobre as fórmulas dramáticas e as opções
estéticas utilizadas por Jorge Andrade:
A peça atinge o público, no correr dos três atos, pela sucessão de recursos
cômicos. Alternam-se no texto comédia, sátira, situações que provocam nó na
garganta até, num momento, um sentimentalismo algo piegas. O autor contudo
não se perde na caricatura. O texto venceu o risco dos defeitos fáceis,
realizando uma comicidade legítima. (...) o autor domina pela primeira vez a
comédia em padrão elevado. (...) Palpitante sem ser sensacionalista, atual sem
cortejar a última moda, brincalhona sem omitir a seriedade intrinseca dos
temas e das situações que fixa, a comédia Os Ossos do Barão se destina a
entreter numeroso público. Na obra de Jorge Andrade, ela é signo de
despojamento e de maturidade
39
.
Depois da bem sucedida temporada de Os Ossos do Barão, o público paulista
aguardava por mais um texto de Jorge Andrade que seria apresentado nos palcos do
TBC. Com quatro meses de intensos ensaios e estudos de laboratórios, em 1964 o
diretor Antunes Filho traz a público o espetáculo Vereda da Salvação
40
.
O texto de Jorge Andrade era há muito tempo esperado pelo meio teatral e pelo
público em geral, porém o alto custo da montagem adiou numerosas vezes a sua
apresentação. Mas a expectativa em torno do espetáculo ainda era grande, a começar
pelo tempo de produção do texto, que, segundo Jorge Andrade, passou por oito versões
até chegar à encenação. A primeira versão de Vereda data de 1957, mas o texto oficial
só ficou pronto em 1963, e até chegar à forma definitiva o dramaturgo reuniu cerca de
duas mil folhas datilografadas. A direção de Antunes Filho também era muito esperada,
os profícuos estudos sobre o tema, os excessivos exercícios corporais, a dedicação e o
carinho na preparação do espetáculo prometiam uma temporada de grande sucesso.
Nesta peça, Jorge Andrade coloca em cena a radicalização religiosa dos
membros de uma Igreja Adventista da Promessa, que na efervescência religiosa da
Semana Santa, mataram quatro crianças consideradas assediadas pelo demônio. A trama
dramática da peça, coloca o leitor/espectador em contato com a difícil vida e a exclusão
Cultura); 1981 Memórias do Medo (TV Cultura); 1982 Senhora na Boca do Lixo (TV Cultura); 1982 A
Escada (TV Cultura); 1982 Ninho da Serpente (Bandeirantes); 1983 Sabor de Mel (Bandeirantes); 1983
Mulher Diaba (bandeirantes); 1997 Os Ossos do Barão (SBT). Ver: SANT’ANNA, Catarina. Op. Cit., p.
376.
39
MAGALDI, Sábato. Suplemento Literário de “O Estado de São Paulo”, 23-02-1963. In: Nossos
Autores Através da Crítica. Op. Cit., p. 33-34.
40
A direção de Vereda da Salvação tem assistência de Stênio Garcia, cenários e figurinos de Norma
Westwater e música de Damiano Cozzella. No elenco destacam-se: Raul Cortêz, Cleyde Yáconis, Renato
Restier, Esther Mellinger, Aracy Balabanian, Stênio Garcia, Sylvio Rocha, Lélia Abramo, Anita Sbano,
Ruth de Souza, José Antônio Sbano, Yola Maia, Marta Helena Araújo Ferreira, Fiorella, Roberto
Azevedo, Potyguar Lopes, Eugênio do nascimento, José Pereira, Leilah Assunção, Carmem Pascal,
Therezinha de Melo, Regina Célia Rodrigues e Nair Araújo. Ver: GUZIK, Alberto. Op. Cit. p. 215.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
172
social do homem do campo. Mais uma vez as raízes e as tradições do homem brasileiro
tornam-se objetos valiosos no pensamento de Jorge Andrade. Sendo assim, ao
manifestar-se sobre Vereda ressalta:
- Minha peça resulta numa interpretação pessoal da tragédia de Gólgota
Baseia-se o texto em fatos verídicos, ocorridos em Catulé, Minas Gerais, mas
as necessidades artísticas levaram a um tratamento dramático diferente do
tema. Julgo “Vereda” meu trabalho mais amadurecido e importante. O
lançamento do espetáculo vem-me situar num plano de realização que pode ser
útil nesta altura de minha carreira. Embora enraizada no meu mundo, a trama
é bem uma expressão da memória afetiva, como acontece em “A Moratória” e
“A Escada”, por exemplo. Mas o conhecimento do mundo agrário fez os
episódios quase pertencerem à minha própria história
41
.
Porém, contrariando todas as expectativas, a apresentação de Vereda da
Salvação não foi bem sucedida. O espetáculo resultou em um grande fracasso de
público e as críticas não lhes foram nem um pouco simpáticas, tendo a maioria delas
recaído sobre a dedicada e atenciosa direção de Antunes Filho. Para Décio de Almeida
Prado, o estilo exagerado da direção foi o grande responsável por estragar o espetáculo:
A direção de Antunes Filho padece de um mal que já afligiu outras encenações
de peças de Jorge Andrade: o desejo de mostrar à altura de replicar e duplicar
em cena as dimensões e ambições épicas do texto. (...) As suas falhas são antes
excessos do que deficiência. Não era fácil recriar no palco os modismos de
linguagem e de gestos que compõem a fisionomia coletiva de Vereda da
Salvação. Antunes Filho entregou-se à tarefa com fervor que todos lhe
reconhecem. Lançou-se em cheio à aventura, como é de seu feitio, guiando os
atores através de uma série de exercícios cuja finalidade era libertá-los dos
hábitos adquiridos e das soluções já prontas. Mas ficou faltando, na
representação, a volta à realidade cotidiana de onde se havia partido
42
.
Mas, diferente das críticas, o dramaturgo Jorge Andrade mesmo antes do
espetáculo vir à cena concedeu entrevistas demonstrando um forte respeito pela
direção que Antunes Filho estava dando ao seu texto, sentindo-se extremamente servido
e agraciado com a encenação de Vereda da Salvação:
Agrada-me totalmente seu trabalho como direção, dedicação e exegese do
texto, conhecimento em profundidade do tema, identificação com os meus
sentimentos. Com esta montagem, Antunes Filho será certamente reconhecido
como um dos homens de teatro mais sérios e mais válidos que já apareceram
em nosso meio. Devo louvar-lhe o mundo rico, a sensibilidade fora do
comum
43
.
41
Vereda da Salvação, novo estilo para o TBC. Atualidades Teatrais. São Paulo, 3(28):9, julho de 1964.
42
Revista Dionysos Especial Teatro Brasileiro de Comédia. Op. Cit. p. 127.
43
Revista de Teatro SBAT, Rio de Janeiro (340): 25, julho, agosto, 1964.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
173
Ao lado disso, o dramaturgo ressalta ainda que os longos exercícios realizados
por Stênio Garcia foram o caminho certo para encontrar a autenticidade brasileira das
personagens. Todo o elenco estudou sobre a vida do homem do campo, do cabloco
brasileiro, observou sua maneira singular de viver. Interpretando o papel do mais
simples ao principal, os vários atores revelaram total dedicação
44
.
Contudo, a má repercussão do espetáculo trouxe sérias conseqüências para
Companhia. Primeiro, um grande prejuízo financeiro, fazendo com que os problemas
internos se agravassem. Segundo a simultânea demissão do então diretor da casa,
Maurice Vaneau, logo após o espetáculo
45
.
Mas Vereda da Salvação não causou somente repulsas e desilusões, muitos
críticos teceram grandes elogios ao texto andradino. Entre eles, Antônio Cândido, que
vê em Vereda uma das mais belas criações literárias contemporâneas, um texto rico,
com amplos recursos de expressão:
Vereda da Salvação nos atinge de maneira poderosa por que Jorge soube
transpor o material humano em formas adequadas de expressão, que
asseguram o seu rendimento dramático e produzem o sentimento da realidade.
O drama se desenvolve e se torna cruciante graças à firmeza da psicologia, à
técnica das cenas, às gradações e contrastes que dão sentido aos fatos
expostos. É preciso ressaltar, a este propósito, o estilo vibrante e simples,
nutrido pelo profundo senso metafórico da fala rústica, sem qualquer distorção
de caipirismo literário. Graças a esta capacidade artística e àquela instituição
dos valores simbólicos, a mensagem social se desprende sem esquematizações,
inscrevendo a peça entre as mais altas produções da nossa literatura
contemporânea
46
.
Diante das opiniões conflitantes que cercaram Vereda da Salvação, torna-se
importante pontuar as condições políticas em que o texto foi levado aos palcos. Durante
os preparativos da peça março a julho de 1964 - muda-se substancialmente o regime
político do Brasil. Sob o olhar cuidadoso da censura militar o texto foi liberado,
iniciando sua temporada cercada de atenções. Concomitante a esses acontecimentos, as
posições político/partidárias do meio artístico tornam-se mais evidentes, intervindo,
interpretando e contestando o cenário político do País. Em tais circunstâncias, o
44
Revista de Teatro SBAT. Op. Cit.
45
Depois da saída de Maurice Vaneau, o TBC muda totalmente a sua política. A Companhia passa a
considerar mais viável alugar o espaço do que produzir espetáculos. E, depois de anexar o Teatro de Arte,
no subsolo de suas instalações, abre com auxílio de cotas, que são vendidas ao público, o Teatro das
Nações, na Av. São João, desdobrando-se ainda no Teatro de Bolso. Nessa fase, nada mais podia restar da
antiga glória do Teatro Brasileiro de Comédia. Ver: Revista Dionysos Especial TBC. Op. Cit. p. 127.
46
CÂNDIDO, Antônio. Vereda da Salvação. In: ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. Op.
Cit., p. 633.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
174
polêmico espetáculo foi alvo de críticas tanto da esquerda quanto da direita. Sobre essa
questão, Sábato Magaldi ressalta que:
A sinceridade literária trouxe a Vereda uma carreira de dissabores sob o
prisma político. A esquerda dogmática reprovou na peça a entrega apaixonada
ao processo do fanatismo messiânico, sem o corretivo didático de um
“afastamento” ou de uma “mensagem” explícita. Era como se o texto, para ser
bom, precisasse recorrer às fórmulas Brechtianas. A direita julgou petulância
tratar da miséria, num período da vida nacional em que haviam sido
derrotadas as agitações em torno da reforma agrária. Equívoco, de uma e
outra parte. Jorge Andrade trouxe ao palco fatos verídicos, e eles, por si,
clamam pela mudança das condições de trabalho no campo e pela permanência
de um novo estatuto da terra. Se Joaquim e os outros agregados se politizassem
ficariam talvez risíveis, quando o clamor reivindicatório não padece dúvida, na
expiação do grupo. Condenar a peça, também, por subversiva, eqüivaleria a
esconder uma realidade, que foi fartamente veiculada nos jornais. O equilíbrio
social do Brasil, qualquer que seja a forma de desejá-lo e lutar por ele, deve
enfrentar situações como a de Catulé e da obra de Jorge Andrade
47
.
Diante das polêmicas, elogios, críticas e aplausos a Jorge Andrade, o que nos
interessa saber que foi o Teatro Brasileiro de Comédia o locus privilegiado do
dramaturgo para divulgar seu projeto de dramaturgia nacional, colocando em cena a
realidade brasileira, o homem do campo com suas raízes, tradições e problemas e, ainda,
os impasses das novas relações sociais e de produção pelos quais o País estava passando
no primeiros tempos do século XX. Nessas circunstâncias, a participação assídua de
Jorge Andrade no TBC só vem confirmar que essa casa de espetáculo, ao contrário do
que muitos pensam, também contribuiu para a construção e divulgação de uma
dramaturgia fortemente nacional.
Entretanto, uma das mais acabadas criações de Jorge Andrade, ainda não
conhece o público. As Confrarias uma bela e rica produção de 1969, permanece inédita
nos palcos. O alto custo da montagem, a variedade de recursos cênicos e um número
grande de personagens são fatores que dificultam sua encenação. De acordo com Helena
de Almeida Prado - esposa do dramaturgo - a complexidade da construção de As
Confrarias ocorreu propositadamente, quase num regozijo de liberdade, num momento
em que o teatrólogo julgava sua montagem inviável pelos critérios da censura e pelas
condições de penúria material por que passava o teatro naquele momento. Dessa opção
nasceu a peça tão ou mais complexa que Rastro Atrás. As Confrarias tem no mínimo 43
personagens se considerarmos todos os indicados pelo dramaturgo
48
.
47
MAGALDI, Sábato. Revisão de Vereda. In: ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o Relógio. Op. Cit.,
p. 644.
48
Ver: SANT’ANNA, Catarina. Op. Cit. p. 79.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
175
Mesmo levando em conta a riqueza estética e o valor histórico que abarca a
construção de As Confrarias, o debate em torna desta obra torna-se essencialmente
restrito. O fato de não ter sido gestada, levada aos palcos, fez com que suas provocações
estéticas e suas abordagens políticas, em sintonia com a realidade da década de 1960,
não sejam vistas e discutidas publicamente. Sendo assim, diferente de Arena Conta
Tiradentes, As Confrarias não mobiliza o público, não desperta a efervescência de
opiniões, elogios e restrições da crítica teatral. Mas isso, em hipótese nenhuma, sugere
que o texto andradiano seja inferior. Neste trabalho sua forma estética, sua abordagem
histórica e política serão prazerosamente vislumbradas.
Interpretações Acerca de As Confrarias
A dramaturgia de Jorge Andrade tem sido bastante estudada por pesquisadores
de diferentes áreas do conhecimento. No entanto, sobre As Confrarias não existe ainda
uma obra específica. Possivelmente, a ausência de uma reflexão atenta sobre o texto
deva-se ao fato de que ele não foi levado ao público. Antes, porém, de apresentar
interpretações existentes em torno de As Confrarias, é conveniente comentar algumas
obras que tratam da dramaturgia de Jorge Andrade, referências importantes para o nosso
trabalho.
A primeira delas, Teatro da Memória: história e ficção na dramaturgia de Jorge
Andrade
49
, do historiador Luís Humberto Martins Arantes, é fruto de uma pesquisa
interdisciplinar entre História e Teatro e investiga a temática memória e história a partir
dos textos O Telescópio (1951), A Moratória (1954), A Escada (1960) e os Ossos do
Barão (1962).
Segundo ARANTES, a escolha das peças não ocorreu de forma casual, mas
obedeceu a uma singularidade de temática não recorrente em outros textos teatrais do
dramaturgo: a passagem de uma sociedade calcada na ordem rural para uma
sociedade que se organiza no meio urbano”
50
. Essa temática está diretamente ligada à
vida pessoal e profissional do dramaturgo, desde os impasses familiares na fazenda em
que viveu com os pais, até o encontro na cidade com um específico meio teatral, que lhe
forneceu para sempre os bases teóricas de sua produção artística. Para ele:
49
ARANTES, Luiz Humberto Martins. Teatro da Memória: história e ficção na dramaturgia de Jorge
Andrade. Op. Cit.
50
Idem, p. 28.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
176
Os textos de Jorge Andrade O Telescópio, A Moratória, A Escada e Os Ossos
do Barão -, ao chamarem para a aludida passagem do rural para o urbano,
sintetizam, como representações, esse momento de formação e diálogo com a
realidade individual e coletiva. Nesses textos, o indivíduo e o grupo dissolvem-
se numa busca de raízes do homem brasileiro. Tal tarefa vem à tona carregada
de melancolia e de sensação de perda. Afinal, é o desprendimento da família e
o encontro com outro meio social: a vivência teatral. É ainda o momento de
mudança espacial, pois acabara de deixar o mundo sem fronteiras e horizontal
da fazenda para adentrar o espaço de verticalidade da cidade. Em plena
euforia “desenvolvimentista” e nacionalista, são textos que destoam, pois
parecem apontar para outras possibilidades de nacionalidade. Tudo que é
moderno, progresso e urbano, é olhado com desconfiança, seja por Francisco
em O Telescópio, seja por Joaquim em A Moratória. Em A Escada e Os Ossos
do Barão, o que foi perda começa a ser reelaborado, pois a cidade cria suas
próprias regras a partir do passado rural
51
.
O trabalho artístico de Jorge Andrade também foi revisitado por Maria Arminda
do Nascimento Arruda que, ao abordar aspectos da cultura paulista em meados do
século XX - momento em que a modernidade instala-se no País -, dedica um capítulo
especialmente ao “dramaturgo de São Paulo”, Jorge Andrade
52
.
Segundo a autora, o teatro andradino configura-se entre as melhores perspectivas
de visão da cultura paulistana em meados do século XX. Sua dramaturgia, além de
retratar os dilemas da cidade de São Paulo em franca transformação, recupera também
os impasses de uma “cultura que se inclina negativamente em direção ao passado,
produzindo, em contrapartida, mal-estar frente ao presente; subjaz em seus textos uma
crítica implícita à modernidade, tal como ela se constitui na São Paulo daquela
época
53
”.
Partindo dessa premissa, ARRUDA ressalta que o teatro de Jorge Andrade, ao
lado de outros segmentos culturais e artísticos - poesia, arquitetura, artes plásticas,
cinema, televisão -, foi um dos grandes divulgadores da modernidade cultural que se
formou no ritmo acelerado da urbanização e industrialização nos anos de 1950. Sua
dramaturgia, foi construída numa época em que o teatro adquiria um perfil
essencialmente moderno e profissional, e Jorge Andrade foi um dos dramaturgos que
mais se adaptou aos novos tempos, escrevendo peças explicitamente políticas,
esteticamente ousadas e em sintonia com as transformações do mundo moderno:
Jorge Andrade criou uma dramaturgia que ensejava uma síntese do tempo, ao
colocar frente a frente personagens do passado e do presente. O seu teatro da
51
Idem, p. 163.
52
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Jorge Andrade: dramaturgo de São Paulo. In: Metrópole e
Cultura .Op. Cit.
53
Idem, p. 35.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
177
memória continha expressões significativas da história de São Paulo,
produzido no andamento da absorção dos vários tempos em convivência, da
tematização da temporalidade. Por isso, foi moderno e crítico da modernidade
que então despontava, pois trazia à cena a tensão entre necessidade e
impossibilidade da exclusão do passado. Não foi um passadista, nos moldes
daquela atitude pessimista quanto ao presente e saudosista quanto ao passado.
Era, contudo, um profundo analista dos impasses do presente, numa postura
cética e recolhida diante das visões otimistas identificadas com o progresso.
Apesar disso, apostou na formação de um teatro profissional e na construção
do ofício de dramaturgo
54
.
Outro trabalho importante é Marta, a Árvore e o Relógio, um clássico para os
estudos que remetem à dramaturgia de Jorge Andrade
55
. A obra, que se baseia em uma
coletânea de textos, aborda a expressiva produção teatral do autor, divulgando assim o
projeto de dramaturgia nacional no qual estava inserido e o panorama geral da história
política, social e econômica do Brasil. Ela apresenta:
um vasto painel histórico social em que são retratados e registrados
personagens e episódios que transcendem a origem meramente ficcional. O
conteúdo do painel é transmitido sob forma de ciclo em que a temática nasce,
cresce e se esgota. Desfilam ante os olhos do leitor 400 anos de história
nacional, vividos através dos problemas reais e imaginários dos personagens
recriados de pura realidade por Jorge Andrade. É um profundo mergulho no
passado e uma lenta subida até quase os nossos dias
56
.
A obra é constituída por textos escritos entre os anos de 1951 e 1969, porém a
sua organização não obedece à ordem cronológica de produção e sim à ordem dos
acontecimentos presentes nos enredos. Nessas circunstâncias, As Confrarias de 1969
embora seja a penúltima na criação - abre a obra, porque sua trama dramática se
desenvolve no século XVIII
57
.
Mas esta coletânea não tem a preocupação em trazer para o leitor apenas os
textos andradinos, ela também apresenta considerações de diferentes críticos teatrais,
que tecem considerações importantes sobre o objeto de estudo em questão. Sendo assim,
54
Idem, p. 426-427.
55
ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. Op. Cit.
56
MENDES, Miriam G. Marta, a Árvore e o Relógio. Palco + Platéia, São Paulo (7):23-5,1971.
57
A primeira edição de Marta, a Árvore e o Relógio foi em 1970. Nessa época Jorge Andrade concedeu
uma entrevista ao Jornal Estado de São Paulo onde explicou que a obra “não é um volume com dez peças
escolhidas ou teatro até agora, mas um livro que conta uma história, não em dez capítulos, mas através
de dez peças teatrais. Portanto é a conclusão do ciclo, do painel paulista que eu me havia proposto a
fazer; mais do que isso, é o resultado de dezenove anos de um trabalho que procurava alcançar um
objetivo fundamental: compreender uma realidade e atuar nela”. VER: SOUZA NETO, Juvenal. Jorge
Andrade: Um autor em busca de si mesmo. Op. Cit., p. 77.
A ordem de enunciação das peças que compõem a obra Marta, a Árvore e o Relógio é a seguinte: As
Confrarias (1969); Pedreira das Almas (1957); A Moratória (1954); O Telescópio (1951); Vereda da
Salvação (1957-1963); Senhora da Boca do Lixo (1963); A Escada (1960); Os Ossos do Barão (1962);
Rastro Atrás (1966); O Sumidouro (1969).
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
178
ao fazer uma avaliação sobre o ciclo que compõe o livro Marta, a Árvore e Relógio, o
estudioso e crítico teatral Anatol Rosenfeld ressalta que, com As Confrarias, Jorge
Andrade encerrou toda uma fase criativa, dedicada a sondar e questionar, através de sua
arte, o passado no Brasil. A apreciação da peça volta-se essencialmente para o enredo e
as opções estéticas escolhidas pelo dramaturgo:
O enredo é ousado ao extremo. Aborda um tema que é também fundamental em
Pedreira das Almas: o da morte sem sepultura. (...) Em As Confrarias, o tema
se coloca por duas vezes: sebastião, o marido de Marta, permanece insepulto.
E invertendo a atitude de Antígone, que se sacrifica a fim de dar sepultura ao
irmão, apesar da proibição do rei Creonte, Marta surge como uma mãe
impiedosa, mercê de um ato de piedade talvez superior, visto manter o corpo do
filho insepulto para que o morto sirva aos vivos. É inevitável, no contexto da
peça (cuja ação se desenrola em Ouro Preto), a evocação da palavra do
Evangelho de que cabe aos mortos enterrar os mortos. Não é desde o início de
sua criação dramática que o autor chegou a esta visão. E foi uma idéia
excelente colocar esta peça no início do ciclo: a leitura dela influirá na das
outras
58
.
Nas palavras de Sábato Magaldi, com As Confrarias, Jorge Andrade não só
esqueceu as fronteiras cênicas habituais, inscrevendo-se entre os grandes criadores
dramáticos, como também desmascarou “os grupos os partidos, as forças segregadoras
que, sob qualquer pretexto, negam sempre o indivíduo não alinhado
59
”. Sob o ponto de
vista político, o texto foi um acerto de contas do dramaturgo com o meio teatral, depois
de acirradas críticas em relação a seu trabalho:
Vitorioso artisticamente, ainda que pouco representado, tratava de detectar a
idéia de “diferença”, que o separava do meio natal. A “bastardia” isoladora
continuava a persegui-lo, e a verdadeira caça às bruxas contida nela
transformou-se em arma de denúncia contra a sociedade retrógrada.
Identificado à esquerda e à direita, desde a conspiração que abateu Vereda da
Salvação, em As Confrarias ele assestou as armas contra tudo e todos
60
.
Na época da publicação de Marta, a Árvore e o Relógio, a revista Palco +
Platéia dedica um espaço significativo para As Confrarias. Essencialmente, as
considerações ressaltam o enredo da peça e o valor político do texto que, ao apresentar
personagens com grande capacidade de transgressão, questionam o status quo de uma
época marcada pelo preconceito e autoritarismo de uma política colonial:
58
ROSENFELD, Anatol. Visão do Ciclo. In: ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. Op. Cit.,
p. 607.
59
MAGALDI, Sábato. Um Painel Histórico: o Teatro de Jorge Andrade. In: ANDRADE, Jorge. Marta, a
Árvore e o Relógio.Op. Cit., p. 677.
60
Idem.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
179
‘As Confrarias’ é grandiosa. Recuando no tempo mais de um século (quase
dois), usando também o sub-tema da morte sem sepultura, Jorge Andrade faz
situar a peça em fins do século XVIII, novamente em Minas Gerais. A figura
poderosa de Marta, mãe e esposa de dois mortos não sepultados (o filho José e
o marido Sebastião), vai buscar a sua força e inflexibilidade nas outras
matronas presente em outras peças de Jorge Andrade. Com uma diferença,
porém. Aqui a sua atitude se prende a uma consciência nítida do que está
fazendo. É preciso desmistifcar a fraude da piedade cristã que deve nortear as
Confrarias Religiosas e mostrar ao mundo dos vivos que o preconceito rege
também o mundo dos mortos. (...) A investida de Marta contra as Confrarias
tem um sentido de contestação da ordem operante, a que vinha do reino e
afogava em opressão e exploração a ex-rica colônia. Ao desmistificá-las,
descobrindo-lhes o jogo de interesses escusos pessoais ou de classe,
sobrepujando os do povo, que afinal as sustentava, Marta põe a nu o alicerce
em que se apoiavam. E lutando pelo direito de enterrar seus mortos no devido
lugar, sem que o preconceito dos vivos interferisse, ela transpõe para um plano
mais elevado o direito de lutar pela liberdade de agir e viver com dignidade
61
.
As Confrarias também foi mencionada pelo historiador Caio Boschi, em sua
importante obra, Os Leigos e o Poder. Ao refletir sobre a falsa flexibilidade das
irmandades religiosas em Minas no século XVIII, o autor chama atenção do leitor para
uma questão marcante na sociedade mineira: a necessidade de assegurar em vida um
lugar para o descanso final. Segundo Boschi, “a garantia de sepultamento parece ter
sido uma verdadeira obsessão por parte das populações mineiras coloniais.
Praticamente só aqueles indivíduos que filiassem a uma irmandade tinham a referida
garantia, pois os cemitérios localizavam-se nos terrenos das irmandades
62
”. Para
ilustrar essa questão, faz referência ao dramaturgo Jorge Andrade, em especial à sua
obra As Confrarias:
Jorge Andrade, em peça teatral escrita com raro senso de percepção histórica,
retratou primorosamente a peregrinação infrutífera da mãe de um morto junto
às mesas diretoras de várias ordens terceiras e irmandades, pleiteando um solo
sagrado para enterrar seu filho. No texto do teatrólogo afloram a
representatividade dos interesses econômicos, os preconceitos e os
ressentimentos existentes no interior das nossas irmandades, bem como a
marginalização a que estavam condenados os infiéis, suicidas e atores
63
.
Contudo, umas das reflexões mais atentas sobre As Confrarias é feita pela
pesquisadora Catarina Sant’Anna, em sua obra Metalinguagem e Teatro
64
. A obra torna-
se uma referência importante, pois, além da vasta pesquisa que apresenta sobre a vida
61
MENDES, Miriam G. Marta, a Árvore e o Relógio. Palco + Platéia, São Paulo (7):23-5,1971.
62
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder (Irmandade, leigos e política colonizadora em Minas
Gerais). São Paulo: Ática, 1986, p. 150 151.
63
Idem, p. 150-151.
64
SANT’ANNA, Catarina. Op. Cit.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
180
dramatúrgica de Jorge Andrade, dedica ainda uma expressiva atenção sobre a peça que
por hora é objeto desse estudo.
Em essência, o seu trabalho tem como princípio situar a importância dos textos
metalingüísticos A Escada, Rastro Atrás, As Confrarias, e O Sumidouro no conjunto
que forma o ciclo Marta, a Árvore e o Relógio. Segundo a pesquisadora, essa tetralogia
opera um distanciamento paulatino frente ao passado retratado nas obras dos anos de
1950, implicando assim, em um avanço na construção dramatúrgica de Jorge Andrade,
que, a partir de então, consegue inscrever-se na atualidade das produções teatrais dos
anos de 1960:
Em contraposição ao “memorialismo” anterior, o “revisionismo” consegue o
toque do novo pela metalinguagem, inclusive quando afirma nas peças de 1969
que é preciso lutar, fazer algo contra a opressão como dissemos, aliás, a
exaltação da bastardia é grande avanço no universo jorgeandradino sufocado
pela “árvore genealógica”
65
.
Mesmo considerado o valor das peças metalingüísticas, a complexidade que
abarca suas produções e a riqueza de suas estruturas dramáticas, deve-se pontuar que
elas não inauguram uma nova fase na dramaturgia do autor. Essencialmente, os temas
mudaram, o contexto histórico é outro. Nessas circunstâncias, as peças que se
fundamentam na memória individual do dramaturgo estavam intimamente ligadas à
atualidade política do momento em que foram construídas, portanto também apresentam
uma preocupação com as forças opressoras de alguns setores da sociedade.
A propósito de As Confrarias, a pesquisadora ressalta que esta é uma das peças
mais eruditas e literárias de Jorge Andrade. Ao construí-la, ele teve o cuidado de visitar
em 1966 as instituições eclesiásticas em Ouro Preto, pesquisando assim, o
funcionamento das irmandades no século XVIII. Consta também que, em 1962 época
em que se recuperava do primeiro enfarte - lera os dez volumes da obra História da
Companhia de Jesus, e ainda se debruçou sobre os inúmeros livros emprestados pelos
historiadores Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Júnior
66
.
No que tange à estrutura dramática da peça, Catarina Sant’Anna ressalta que
Jorge Andrade utiliza um importante e rico recurso metalingüístico, a intertextualidade.
Essencialmente, As Confrarias apresenta textos teatrais e não teatrais de diversos
autores, épocas e lugares:
65
Idem, p. 301.
66
Idem, p. 215.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
181
A história é o grande eixo de inserção, o grande ponto de cruzamento-base
para aproximações iluminadoras, para analogias de todo tipo. Entram em
curto-circuito o Brasil da ditadura militar pós-64(...) o Brasil colonial da
Conjuração Mineira no século XVIII (com Tomáz Antônio de Gonzaga), a
França pré-revolucionária do século XVIII (com Beaumarchais), a Roma do
século I a. C (do Luculus de Brecht ou de Catão de Garret), a Grécia de
Sófocles (...). No fundo deste painel, fermentando-catalizando esses vãos,
encontra-se a cidade interiorana paulista de Barretos nas décadas de 20,30,40,
matriz espacial obsessiva dos sentimentos de opressão sentidos pelo dramturgo
e projetados em Vicente ou Marta
67
.
Ao longo da obra, Catarina Sant’Anna ressalta que As Confrarias deu outras
interpretações aos fatos, a peça nada mais é que uma revisão da Inconfidência Mineira.
Nas reflexões da autora, a personagem Marta apresenta-se extremamente
revolucionária, a responsável pelos discursos e ações transgressoras na construção
dramática da peça:
Marta é, sobretudo, uma boa atriz, ao encenar o “papel” da mulher que quer
enterrar um filho, quando, em verdade, o que deseja é não enterrar, ou melhor,
não enterrar tão depressa, ou não enterrar em uma única confraria dentre as
que vai visitando, senão ao final, com o concurso de todas ou em todas. (...)
José, com seu corpo morto em decomposição, ganha novo papel no texto de
Marta torna-se mártir, remetendo a Cristo no paradigma relgioso cristão (...)
A configuração da revolucionária Marta como mulher do povo ilustra a visão
de Jorge Andrade sobre a Inconfidência Mineira: a conspiração dos poetas não
teria arregimentado as forças populares e não teria chegado por isso a ações
realmente efetivas pela mudança que se desejava: tratava-se, em suma, de uma
“revolução de mentira”
68
Ao lado do trabalho de Catarina Sant’Anna, merece destaque o valioso artigo da
historiadora Rosangela Patriota, As Confrarias de Jorge Andrade: uma interpretação da
sociedade mineira do século XVIII que ao fazer uma reflexão atenta sobre as difíceis
condições sociais em que, a sociedade mineira se encontrava no momento de crise das
atividades mineradoras, toma como objeto de reflexão esse texto andradino.
Segundo PATRIOTA, As Confrarias é um documento chave para pensar a
proposta artística de Jorge Andrade a de recuperar uma outra historicidade dos fatos
históricos e discutir temas consagrados pela historiografia, especialmente os ideais de
liberdade da Inconfidência Mineira, que é implicitamente tratada no texto:
Por meio de Marta, que consegue mobilizar a sociedade para que seu filho seja
enterrado, Jorge Andrade retoma o tema da liberdade e da participação
política, no século XVIII, sob a ótica dos setores marginalizados. Nesse sentido,
pode-se dizer que uma de suas questões básicas seria refletir acerca da
67
Idem, p. 269-270.
68
Idem, p. 191,192,312.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
182
exclusão social no Brasil colônia, como, também tentar discutir quem são os
excluídos sociais deste período. Estes, na peça, são representados pelo pequeno
lavrador, pelo ator e pela cortesã. No entanto, a maneira como a discussão foi
conduzida evidenciou que os temas que estruturam a reflexão são aqueles
advindos da Historiografia da Inconfidência Mineira
69
.
A partir dessa constatação, nota-se que Jorge Andrade dá a As Confrarias novas
possibilidades de interpretação sobre o fato da Inconfidência Mineira, resgatando a
“história dos vencidos”, desvinculada da perspectiva de análise dos vencedores.
Contudo, como ressalta PATRIOTA, isso não significa que o dramaturgo tenha
descartado da discussão os temas que norteiam as reflexões, que chamou de
“interpretação vencedora”. Sendo assim:
Não há dúvidas: se por um lado, a proposta de Jorge Andrade propicia uma
discussão com novas abrangências, de outro lado, não elimina os debates e as
reflexões que propagaram as idéias e as propostas que orientam as abordagens
sobre o tema. Evidencia a dificuldade existente em pensar uma perspectiva que
elida os agentes sociais, que se tornaram vitoriosos no processo, bem como
revela que o diálogo entre historiografia e arte é sempre tenso, contraditório e
extremamente profícuo
70
.
Nessas circunstâncias, deve-se ponderar que As Confrarias, mesmo refletindo
sobre um dos temas fundamentais da Inconfidência Mineira a questão da liberdade –,
escolhe como sujeitos personagens que foram vencidos e esquecidos pelo tempo. A
trama dramática da peça não apresenta o desenrolar da Conspiração que, marcou época
em Minas no século XVIII. A luta é apenas insinuada por diálogos que, não fluem
correntemente nas ações dramáticas da peça, portanto se esgota apenas na sua
enunciação, sem que se concretize de fato uma ação efetiva: “E se o governador ficar
sabendo de certas reuniões em casa de conhecido poeta?(...) Reuniões onde se discutem
muito, versos de tal Virgílio. E há um preferido por todos: a liberdade posto que
tardia!”. A luta efetiva de As Confrarias -se no âmbito dos segmentos populares,
especialmente na resistência da personagem Sebastião ao perder as terras para o Estado,
na luta de Marta, que questiona o poder da Igreja e a estrutura social da colônia, na arte
de José, que tem a função de despertar e conscientizar o público para as questões
políticas da sociedade em que vivia.
Ao lado disso, Jorge Andrade, sendo um agente social comprometido com as
69
PATRIOTA, Rosangela. As Confrarias de Jorge Andrade: uma interpretação da sociedade mineira do
século XVIII. In: Anais do X encontro regional de História, ANPUH MG, Minas trezentos anos: um
balanço historiográfico, Op. Cit., p.56.
70
Idem, p. 56-57.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
183
questões políticas de seu tempo, um dramaturgo que acredita que a transformação de
uma dada realidade social também passa pela arte, constrói As Confrarias fazendo uma
leitura peculiar sobre o presente em que está inserido. Enfim, As Confrarias não faz
uma leitura somente do passado, mas Jorge Andrade, ao atualizar o tema da liberdade
no século XVIII, vem necessariamente intervir na atualidade brasileira do século XX,
especificamente no contexto político da década de 1960, época de construção da peça.
Sendo assim, torna-se importante recuperar a historicidade de As Confrarias,
devolvê-la ao seu tempo de produção e apreender a leitura que a peça faz de um
presente que notadamente se encontra desmantelado pela falta de liberdade política e de
expressão. Enfim, vislumbrar qual a sua contribuição para o debate que envolve a busca
de soluções para os impasses impostos pelo Regime Militar.
As Confrarias: estrutura dramática, temas e historicidade
Levando em conta as especificidades e particularidades que requer a análise de
uma obra de arte, pode-se dizer que As Confrarias e Arena Conta Tiradentes são textos
que, mesmo apresentando semelhanças (contexto histórico, temas, dramaturgos
inseridos num mesmo contexto de produção teatral), se diferenciam em sua essência, a
começar pelo projeto de sua escrita.
Sem estabelecer um juízo de valor sobre as obras, mas realçando as diferenças
no seu processo criativo, nota-se que As Confrarias é um texto que apresenta grande
preocupação com sua forma de elaboração. As rubricas são elementos importantes do
texto, pois descrevem com riqueza de detalhes o espaço cênico em que se desencadeará
cada cena. Jorge Andrade explica minúcias, detalhes dos objetos que ornamentam o
ambiente. Ao mesmo tempo, os diálogos são mais longos, dando mais vida à cena e
permitindo conhecer melhor o estado psicológico das personagens.
No que diz respeito aos temas, As Confrarias vai além da perspectiva política
tão explorada em Tiradentes. Ao contrário de Boal e Guarnieri, Jorge Andrade elenca
uma variedade de temas presentes no cotidiano da sociedade mineira no século XVIII.
O tema central da peça é o poder e a organização das confrarias religiosas em Vila Rica
nos anos setecentistas. A partir daí, abre-se o leque para outros eixos temáticos, como a
morte sem sepultura, o racismo, o preconceito pela arte teatral, a perda de terras do
homem do campo para as empresas auríferas e outros mais. É claro que a questão
política está presente, mas não na forma de uma pregação exaustiva da República como
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
184
em Arena Conta Tiradentes; diferentemente, ela aparece intrínseca às lutas cotidianas,
aos obstáculos que cruzam o caminho de homens e mulheres no século XVIII.
Sendo assim, As Confrarias é um texto que fundamentalmente buscou apresentar
ao leitor/espectador os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade
mineira em fins do século XVIII. A trama, que tem como palco a cidade de Vila Rica,
gira em torno de uma questão bastante incandescente à época: a morte sem sepultura.
Nesse tempo, em Vila Rica não existiam cemitérios públicos, esses localizavam-se no
solo sagrado das Igrejas.
A presença dessas instituições religiosas é marcante na sociedade mineira. Ao
andar pela cidade de Ouro Preto, depara-se com uma quantidade inumerável de Igrejas
que, além de constituírem belíssimas e grandiosas edificações, estão presentes em todos
os cantos da cidade, desde as baixadas das ladeiras, até o alto das montanhas. Mas, as
irmandades e confrarias que abrilhantaram o cenário mineiro no século XVIII não
tinham apenas a função de cemitério. Na verdade, elas funcionavam como clubes que
serviam aos vários segmentos da população. Cada grupo social se associava a
irmandade que lhe convinha, ou melhor, que representasse seus interesses econômicos,
sociais e étnicos.
Organizadas por rígidos estatutos e compromissos, eram extremamente
fechadas, não aceitando a associação de indivíduos que não se enquadrassem em seus
valores. Em As Confrarias, Jorge Andrade possibilitou ao espectador/leitor conhecer
quatro das inúmeras irmandades existentes em Vila Rica no século XVIII: Irmandade do
Carmo (confraria dos brancos); Irmandade do Rosário (negros puros); Irmandade de
São José (confraria dos pardos, que abrigava artistas, pintores, escultores, talhadores,
etc.); Confraria da Ordem Terceira das Mercês (mistura de negros, brancos, mulatos)
71
.
É nesse contexto que Jorge Andrade retrata a peregrinação exaustiva de uma
mãe que, em visita às irmandades religiosas, tenta sepultar o filho. A trama é
71
Segundo Fritz Teixeira, o processo de nascimento das irmandades religiosas inicia-se com a instalação
das primeiras freguesias e paróquias. Com o passar do tempo aparecem as corporações para apoiar e
promover a construção de Igrejas, polarizando interesses de grupos sociais de forma sempre fechada à
penetração de outros grupos. Nos primeiros tempos de ocupação das zonas mineradoras, os arraiais ainda
não se encontravam organizados em diferentes grupos sociais e a população se reunia em uma única
capela sem conflitos e interesses de classe. Foi a partir do crescimento dos arraiais, que se transformaram
em vilas, que a sociedade se estratificou e os antagonismos se acentuaram, tornando inviável o convívio
tornando inviável o convívio em uma só irmandade. Ver: TEIXEIRA, Fritz. Associações Religiosas no
Ciclo do Ouro. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1963. Sobre as irmandades religiosas que constituem o
cenário mineiro no século XVIII, consultar: BOSCHI, Caio César. Op. Cit.; MOURÃO, Paulo Kruge. As
Igrejas Setencentisatas de Minas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986; PRIORE, Mary Del. Religião e
Religiosidade no Brasil Colonial. São Paulo: Ática, 1997.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
185
desencadeada pela personagem Marta, que busca combater a injustiça e o preconceito
da sociedade em que vivia. A explicitação dessa luta ocorre por meio do seguinte
acontecimento: José filho de Marta, está morto e seu sepultamento é impossível por ele
não pertencer a nenhuma confraria.
A peça tem a sua estrutura dramática desenvolvida em apenas um ato, porém a
participação das personagens organizase em dois planos de ação: passado/presente. O
tempo presente permite ao leitor/espectador conhecer facetas da organização política e
social da sociedade mineira, especialmente o poder rígido e autoritário das confrarias
religiosas. Assim, os acontecimentos dramáticos do tempo presente desenrolam-se nas
visitas de Marta às confrarias religiosas.
No desenvolvimento da trama, Marta é a responsável por criar um intenso jogo
dramático em torno do corpo insepulto de José e da recusa das confrarias em enterrá-lo.
A ansiedade de Marta, à procura do sepultamento para o filho, não consiste somente no
desejo de enterrá-lo. Mais importante que esse fato era “a luta pela liberdade posto que
tardia”. A favor dessa luta pela qual José morreu, ela questionou o poder das confrarias
religiosas e as leis opressoras da colônia:
MARTA: (Grita) Por quem meu filho morreu? Por vocês? Malditos hipócritas!
(...) Não é Deus que nego e rejeito, mas o mundo que as confrarias odientas
criaram para Ele e meu filho.
(O cenário toma colorido dourado; as paredes do palco ficam cobertas de
imagens de santos, dando a impressão de coisa morta, distante, inútil).
MARTA: Para que servem essas imagens cobertas de ouro (...) se vivem nus,
como escravos! (...) (Atira a imagem aos pés do definitório) Arranquem o medo
da alma! Esse Deus já está morto. Não sentem o cheiro da sua decomposição?
Está aqui nesta igreja: vem dos alicerces, das imagens, das confrarias. Foram
vocês que o mataram, com a faca do desamor. Só o suor de seus corpos poderá
lavar o sangue nesta faca. (...) O corpo ficará no adro, esperando a resposta
provincial (...) ou até que o enterrem. Só sei lutar pelos vivos. Os mortos
pertencem a vocês!
72
Já o espaço cênico construído no passado possibilita enxergar o cotidiano social
de homens e mulheres que viviam à margem dos lucros e benefícios ditados pela
“empresa aurífera”, são os desclassificados socialmente. Ao rememorar o passado,
Marta traz sempre à lembrança a imagem do marido Sebastião, trabalhando nas terras
do Morro Velho e de seu filho José, que era ator de teatro.
72
ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. Op. Cit., p. 67-68. A partir de agora, as referências
de páginas da peça As Confrarias serão apresentadas no corpo do texto, no momento de citação da
mesma.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
186
As personagens de As Confrarias são homens e mulheres pobres, que viviam na
cidade de Vila Rica em pleno século XVIII. Como protagonista, o dramaturgo elege a
personagem Marta, que, além de estar presente nos dois planos de ação,
passado/presente, é quem organiza a ação, dramática da peça. Na trama ela se destaca
por sua personalidade de mulher forte e ousada que busca combater as injustiças e os
preconceitos da época em que vivia. Ao lutar pela realização do sepultamento do filho,
Marta questiona o poder opressor das confrarias religiosas e a desigualdade social
imposta pela política colonial.
Já entre as personagens secundárias, provocadoras dos conflitos e organizadoras
da ação dramática, destacam-se: José (filho de Marta e Sebastião, ator de teatro, tem o
sepultamento inviabilizado por exercer uma profissão profana e por ser supostamente
mulato); Quitéria (namorada de José, representa o papel de cortesã); Sebastião (marido
de Marta e pai de José, é um pequeno lavrador e tem as suas terras do Morro Velho
tomadas pela empresa aurífera) e os religiosos das confrarias visitadas por Marta.
Ao tecer a trama de As Confrarias, Jorge Andrade opera um deslocamento
temporal, enfocando o Brasil no século XVIII, que vivia sob as amarras da política
colonial, para pensar, refletir e intervir em seu próprio tempo, o Regime Militar, que
sutilmente é o alvo de crítica do dramaturgo. Ao refletir sobre o presente, utilizando os
ideais de liberdade do passado, ele declara:
não importa se é século XVI ou XVII, o debate está também no século XX, no
debate das multinacionais. Vale a pena importar o Know-how que nos explora?
E investigar a História é também fugir a perspectiva histórica dos ganhadores.
Por que é que o mártir da Independência é Tiradentes e não um dos mulatos da
revolução dos Alfaiates, na Bahia? A Inconfidência Mineira era uma revolução
de mentira idealizada pelos historiadores, enquanto a revolta dos Alfaiates é
uma revolução social, do homem, do povo. O teatro pode evocar essa história
que foi surrupiada
73
.
Para o dramaturgo, os ideais de liberdade do século XVIII continuam sendo
mote para reflexões e questionamentos do presente. Ao mesmo tempo, faz questão de
retomar as discussões relativas à Inconfidência Mineira, sob a perspectiva das
personagens Marta, José e Sebastião, que podem ser consideradas como representações
das classes populares.
Nessas circunstâncias, em As Confrarias, a questão da liberdade ganha uma
conotação bem diferente da de Arena Conta Tiradentes. Jorge Andrade não resgata o
73
ANDRADE, Jorge. Teatro não é palanque. In: Isto É. São Paulo, 19-04-1978, p. 46.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
187
tema a partir do fato Inconfidência Mineira, da propaganda republicana dos
inconfidentes que preparavam a “revolução” e da militância de Tiradentes. Ao contrário
disso, Jorge Andrade faz questão de mostrar que a luta política de As Confrarias é uma
ação cotidiana de homens e mulheres pobres, que têm o seu trabalho, a sua vida social e
familiar marcada pela organização da política colonial
74
.
Em meio à sua peregrinação pela cidade de Vila Rica, a personagem Marta vai
respondendo às diversas perguntas feitas pelos religiosos, representantes das confrarias.
Em suas respostas é dada a chance ao leitor/espectador de conhecer seu passado
familiar. Nesse rememorar surge a imagem de seu marido, Sebastião, um pequeno
agricultor, que tem a sua realização de vida voltada para a plantação nas terras do Morro
Velho. Ao atualizar cenicamente a imagem do marido, Marta relembra seu desespero,
sua angústia e sua revolta em perder as terras que tanto amou e cuidou para a empresa
aurífera:
(Sebastião se aproxima vergando sob um fardo; põe o fardo no chão e se
debruça sobre ele, assobiando. Marta, agoniada, fica observando-o e
escutando o assobio).
SEBASTIÃO: Um homem planta sementes e colhe dízimos. Dízimos sobre a
terra, sobre a planta, sobre o mantimento. Meses de trabalho reduzidos nisto:
um saco de trigo e muitos de ameaças (...). Vamos perder a terra, Marta.
Acharam ouro no Morro Velho. (...) Sei o que acontece onde acham ouro à flor
da terra. Não restará nem uma planta. Um suor maldito vai salgar a água e
terra! Em vez de milho e arroz, vão brotar por todos os lados cruzes e velas
acesas (...) Disseram que o subsolo pertence ao Estado e à Igreja, que precisam
pagar o quinto devido ao rei, que a derrama vai começar... e outras coisas que
não entendo. Diversas turamas já estão a caminho daqui. Inventam direitos e
obrigações para agoniar a gente. (Explode). Mil vêzes malditos, padres e reis!
Passei a vida debruçando sobre a terra, vigiando sementes. Vivi de joelhos
diante de minhas plantas, mais do que eles em suas igrejas. E agora...
(subitamente) Ninguém vai fazer minha terra virar enxurrada. (p. 40-41)
74
Sobre a realidade social nas Minas do século XVIII merece destaque o ensaio Vila Rica, Vila Pobre, do
historiador Eduardo Frieiro. Nele, o autor reflete sobre a ilusão de riqueza formada em torno de Vila Rica,
aludindo que a miséria e pobreza fizeram parte do dia-a-dia das pessoas nas Minas do século XVIII.
“Onde há riqueza? Onde há grandeza?”, indaga o autor. A realidade foi bem diferente: “nem riqueza, nem
grandezas. Apenas o atraso econômico e a pobreza, como herança dum desvairamento fugaz, próprio de
todas as Califórnias”. FRIEIRO, Eduardo. Vila Rica, Vila Pobre. In: ___. O Diabo na Livraria do
Cônego. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1981, p. 123.
Ainda sobre a realidade social nas Minas auríferas, merece destaque o clássico trabalho de Laura de Melo
e Souza, Os desclassificados do Ouro. Nesse trabalho a autora resgata a história de Minas a partir da
pobreza e miséria daqueles que foram colocados à margem de qualquer beneficio da empresa aurífera no
período colonial. Ao longo da obra ela recupera os grupos sociais marginalizados (prostitutas, mendigos,
mineiros, etc.) e promove um amplo debate em torno daqueles indivíduos que, por serem pobres, sem
acesso à terra e às lavras, são vistos pelos “donos do poder ” como vadios e desocupados. (SOUSA, Laura
de Mello e Souza. Desclassificados do Ouro A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro:
Graal, 1982.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
188
Ao resgatar o drama do pequeno produtor rural no século XVIII, que perde as
terras vítima da “espoliação aurífera”, Jorge Andrade está lançando um olhar para o seu
próprio tempo, uma vez que o momento da escrita de As Confrarias, coincide com o da
construção de um ideário em torno do “progresso da nação” e a necessidade de
superação do ruralismo, em busca do ideal de urbanização e modernização. Este ideal
pode ser redimensionado com as circunstâncias vividas por Sebastião, uma vez que o
dramaturgo detectou que a urbanização advinda da mineração suplantou o mundo rural
através de perdas materiais ocasionando o fim dos referenciais familiares.
Quanto ao filho José, Marta recupera sua ansiedade e angústia em relação às
suas origens, e a necessidade e expectativa de descobrir novos caminhos para sua vida,
até encontrar-se como ator de teatro:
JOSÉ: Cada um tem o seu sentido de plantar. (...) Ver como é a próxima
cidade, e a próxima, e a próxima ...! Correr mundo. Deve haver, nele, um lugar
que é só de seu filho (...) gostaria de descobrir um meio de abrir as portas, ver
como vivem, o que pensam, o que têm e o que gostariam de ter. Ser com
perfeição o que a gente não é... e é, ao mesmo tempo. Para mim, a senhora é
e, mas para seu pai, não. Para a senhora e ele, sou filho...mas para mim
mesmo, quem sou?” (p. 31)
No desenrolar da trama dramática de As Confrarias, Marta rememora a atividade
teatral do filho: além dos impasses a que era submetido um ator de teatro, numa
sociedade marcada pelo preconceito e autoritarismo, enfatiza o conteúdo político e
social de suas apresentações cênicas, em que se destacam peças como Catão e As Bodas
de Fígaro. Em algumas situações dramáticas, a personagem aparece lendo fragmentos
das Cartas Chilenas. Em outras, representa a personagem Marco Bruto, em trechos que
diretamente tecem críticas ao governo de Barbacena
75
.
Nas circunstâncias mencionadas até então, deve-se ressaltar que Jorge Andrade,
ao utilizar a manifestação teatral, para resgatar a efervescente vida social de Vila Rica,
sutilmente está rompendo com o consenso da historiografia mineira, que resgata as
atividades culturais e artísticas de Minas no século XVIII essencialmente a partir das
pinturas e esculturas barrocas, das belíssimas e ostensivas igrejas, da magnificência dos
templos e dos rituais religiosos
76
. Nessas situações, raramente o teatro aparece como
uma manifestação atuante no cotidiano social da sociedade mineira.
75
Nesse momento é dada a chance de conhecer a causa mortis de José: fora morto a mando da Corte, por
um beleguim, guarda responsável por manter a segurança e ordem vigente da sociedade.
76
BOSCHI, Caio César. O Barroco Mineiro: artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988.
ÁVILA, Affonso e ÁVILA, Cristina. Iniciação ao Barroco Mineiro. São Paulo: Nobel, 1984.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
189
Até mesmo as obras clássicas da História do Teatro Brasileiro não fazem
referência à expressiva vida teatral no século XVIII. Sábato Magaldi, em Panorama do
Teatro Brasileiro, dá ênfase ao teatro de catequese, constatando que o “vazio de dois
séculos” nos períodos subseqüentes justifica-se pela inexistência de devidas condições
sociais que permitissem o nascimento da atividade:
O vazio do século XVIII pode ser transformado, assim, numa lenta e paciente
preparação de um florescimento que viria mais tarde, quando fossem
inteiramente propícias as condições sociais. No início do século XIX, não se
alteram muito as características aqui apontadas. Será necessária a
Independência política, ocorrida em 1822, para que o país, assumindo a
responsabilidade de sua missão história, plasme também o seu teatro
77
.
Nessa perspectiva, ao resgatar a “inexpressiva” vida teatral no século XVIII, o
autor concentra suas atenções em espetáculos realizados nas cidades do Rio de Janeiro e
Salvador. Sobre as atividades de teatro em Minas, ressalta apenas as representações
utilizadas na festa religiosa do Triunfo Eucarístico pela Igreja Católica e dois textos dos
inconfidentes Cláudio Manuel da Costa (O Parnaso Obsequioso) e Alvarenga Peixoto
(Enéias no Lácio).
Em contraponto ao “esquecimento” do teatro nos anos setecentistas, existe o
valioso trabalho Noites Circenses
78
, da historiadora Regina Horta, que identifica a
prática teatral como uma experiência bastante comum ao cotidiano dos habitantes
mineiros. Ao longo da obra, fica claro que as atividades cênicas e circenses foram uma
das manifestações que mais abrilhantaram o cenário cultural de Minas, propiciando
inesquecíveis e envolventes momentos de diversão e descontração ao público mineiro.
Mesmo concentrando suas atenções nas atividades teatrais do século XIX, algumas
considerações da autora são destinadas ao século XVIII, época em que se concentra o
enredo de As Confrarias.
Nesta obra verifica-se que vários setores da sociedade mineira faziam uso
constante da prática teatral, desde os segmentos ligados à Igreja até aqueles que
representavam a nobreza, chegando também às classes populares. Em 1771, El-Rei
recomendava em alvará o estabelecimento de teatros públicos, “pois deles resulta a
todas as nações grande esplendor, já que eram a escola onde os povos aprendem as
máximas sãs da política, da moral do amor da pátria, do valor, do zelo e da fidelidade
ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco I. São Paulo: Perspectiva, 1994.
77
MAGA LDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Global Editora, 1997, p. 33.
78
HORTA, Regina. Noites Circenses. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1995.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
190
necessárias ao serviço dos soberanos
79
. Por tudo isso, a construção de teatros não só era
permitida, mas eles também eram vistos como necessários ao bem estar da sociedade.
Nessas circunstâncias vários teatros foram inaugurados em diferentes localidades
mineiras: Vila Rica (1770), São João del Rei (1775), Paracatu (1780) e Sabará (1783).
Mesmo o teatro sendo o teatro uma atividade apreciada pela sociedade mineira,
existia em torno de sua prática uma infinidade de opiniões que divergiam em relação
aos temas, aos atores e aos valores que ela podia expressar. Regina Horta cita em sua
obra um documento interessante, O Compêndio Narrativo do Peregrino da América,
que, ao narrar a vida na região das Minas, levanta uma série de restrições à freqüência
com que eram realizados os espetáculos. Para o autor do Compêndio, a prática teatral
era uma violência à moral e ao pudor, assistir a espetáculos ou representá-los significava
um pecado, passível de punição. O autor comparava ainda o teatro a uma escola de
desonestidade, pestilente oficina de luxúria, lugar de perigosas enfermidades e forno da
Babilônia
80
.
Um dos matizes que configuravam a negação da prática teatral esteve
intimamente ligado àqueles que se dedicavam com afinco à arte de representar: o ator.
Esses apareciam numa situação de inferioridade e marginalidade, eram tratados como
servos, criados, servindo exclusivamente para receber ordens. Regina Horta foi buscar o
desprezo por essa categoria nas falas de poetas e viajantes:
Tomás Antônio de Gonzaga criticava, num tom evidenciador de seu
preconceito, as representações organizadas pelo Governador, nas quais os
‘mais belos dramas eram estropiados e repetidos por bôcas de mulatos’. (...)
Freyress refere-se a mediocridade dos atores mulatos. Nas províncias, ‘onde o
mulato serve para tudo’ desde serviços de alcoviteiro aos assassinos e
aluguel é ele o comediante, ‘porque o branco tem vergonha de o ser’, Saint-
Hilarie (...) descreve o teatro de Vila Rica como uma ‘casa de aparência
mesquinha’, mas conta que, apesar do cuidado dos atores em pintar o rosto de
branco e vermelho, tinham sua condição de mulatos traída pelas mãos, cuja cor
não se lembravam de esconder
81
.
Nas circunstâncias mencionadas até então, nota-se que o teatro no século XVIII
foi visivelmente identificado como uma “arte de mulato”, situação racial não
privilegiada na sociedade mineira, que ainda tinha sua produção e organização
sustentada pelo trabalho escravo
82
. Mas essa marginalização do ator, visivelmente
79
Idem, 108-109.
80
Idem p. 107.
81
Idem, p. 109-111
82
Em As Confrarias, a personagem José também sente o preconceito e a marginalização daqueles que, no
século XVIII, optam pela arte de representar: JOSÉ: (Impaciente) Sou ator, mãe! (...) Para todos, ator não
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
191
praticada, não inviabilizou o estímulo e o entusiasmo de alguns setores da sociedade em
realizar espetáculos de teatro. Ao contrário disso, a arte de representar, ao mesmo tempo
que escandalizava e despertava más condutas, também tinha o caráter de normatizar
comportamentos, valorizar hábitos cristãos e divulgar valores da nobreza imperial.
Por isso, a Igreja foi um dos segmentos sociais da colônia mineira que mais
utilizou as representações cênicas. As festas barrocas, realizadas pelas irmandades
religiosas, são o exemplo maior da apreciação teatral. Além da utilização de ruas
enfeitadas e coloridas, das igrejas suntuosamente ornamentadas, das procissões que
exaltavam o brilho e dos carros alegóricos requintados, decorados em ouro e pedras, a
festa religiosa também contava com a arte dos músicos, dos bailarinos e dos atores de
teatro. Segundo Regina Horta:
nas festas do calendário litúrgico havia apresentação de peças, e os próprios
rituais caracterizava-se pela teatralidade. As festas do Triunfo Eucarístico, em
1733, e o Áureo Trono Episcopal, em 1748, são exemplos disso. O Triunfo
Eucarístico consistia na transladação do Diviníssimo Sacramento, da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário para o novo templo da Senhora do Pilar, em Vila
Rica. O Áureo Trono Episcopal, com duração de vários dias, saudava a
chegada do primeiro bispo de Mariana. Ambas as festividades misturavam, na
sua opulência e na ostentação barroca, elementos sagrados e profanos. Nelas
realizaram-se espetáculos teatrais. Foram representadas, por ocasião do
Triunfo, as peças El secreto a voces, El Principe ou El magico prodigioso e El
amo criado, de autoria de Calderon de la Barca. Os atores permaneceram
anônimos. Para o narrador dos festejos, Vila Rica tornava-se, com os eventos,
‘um exemplo de festividades’, à medida que, mais que esfera de opulência, era
teatro da religião
83
.
A Igreja foi uma das instituições mineiras que mais soube aproveitar os
espetáculos de teatro, transformando-os em instrumento de grande importância para a
divulgação da fé católica e da moral cristã. A única ressalva que impunha é “que se
vigiassem as apresentações e os atores”. A nobreza também não abriu mão das
atividades cênicas e muitas pessoas ligadas a esse segmento social consideravam “o
teatro, muitas vezes, como útil”. As iniciativas de construção e estímulo ao teatro pelas
autoridades governamentais não cessaram no século XIX:
passa de um mulato. (...) Como eles ... a gente vive só(...) Certo dia, saindo do teatro, alguém me
perguntou: você é mesmo mulato? Não parece. É o primeiro branco que vejo nessa profissão. E um ator
que estava comigo acrescentou, rindo e malicioso: aposto que todos pensam que você é branco. Mas há
gotas de sangue que não deixam marcas. Foi aí que comecei a perceber olhares curiosos sobre mim.
Senti-me como alguém que tivesse atravessado uma fronteira, sem saber de onde tinha vindo nem para
onde pretendia ir, em uma nação sem geografia. Meus olhos meus cabelos, minhas feições diziam que eu
era uma coisa, meu trabalho afirmava que era outra. (Angustiado) (p. 48-49)
83
HORTA, Regina. Op. Cit., p. 108.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
192
No decreto de 28 de maio de 1810, o Príncipe Regente D. João VI declarou a
absoluta necessidade de se erigir ‘um teatro decente’ na capital, útil à
população e ‘ao maior grau de elevação e grandeza’ da colônia. O decreto
promovia a captação de recursos financeiros para a construção e manutenção
do edifício. Em 1824, um incêndio destruiu o edifício e logo foram tomadas
providências para a sua reconstrução, dado que os ‘teatros são, em todas as
nações cultas, protegidos pelos governos, como estabelecimentos próprios para
dar aos povos lícitas recreações’, despertando o amor da honra e da virtude
84
.
As reflexões mencionadas mostram que os incentivos à prática teatral por
diferentes setores da sociedade convergiam para interesses comuns: racionalizar, educar
o público, ilustrar a moral e a disciplina como condutas para o “bom” desenvolvimento
de uma sociedade. Tanto é assim que os atores e produtores de teatro não eram livres
para desenvolver suas atividades, os espetáculos eram vigiados, olhares rigorosos
acompanhavam o conteúdo dos textos que seriam encenados. Enfim, os espetáculos não
deveriam afetar o status quo estabelecido pelas autoridades que ocupavam o poder em
Minas. As comédias, por exemplo, eram severamente censuradas, pois as autoridades
julgavam que o divertimento exacerbado poderia desvirtuar o cidadão, já enquadrado
nos valores da sociedade que estava estabelecida:
Em 1727, o bispo do Rio de Janeiro, D. Guadalupe, com jurisdição em Minas,
solicitou ao Santo Ofício instruções sobre como corrigir os males provocados
por ciganos e judeus que, entre outros escândalos, realizavam, ‘com grande
aparato, comédias e óperas imorais’. Em 1743, um outro bispo ameaçava de
excomunhão os que freqüentavam ‘comédias, bailes, máscaras e entremeses’
85
.
À luz das considerações pontuadas até o momento, nota-se que Jorge Andrade
aponta outros caminhos para a arte teatral de José. Em As Confrarias, a personagem
realiza seu teatro não em função dos valores cristãos da Igreja Católica e, menos ainda,
a favor das condutas divulgadas pelo teatro da nobreza. Na peça, a arte de representar
tem uma função social: em primeira instância está desvinculada daqueles que ocupam o
poder na sociedade, sendo exercida por segmentos que representam as “camadas
populares” da colônia mineira. Ao lado disso, é utilizada como um importante canal de
expressão para falar ao público sobre seus problemas, sobre a realidade política, social e
cultural de Vila Rica, que, em 1789, vivia sob as amarras da organização colonial.
As Confrarias, ao reconstituir a vida e a trajetória artística de um ator de teatro,
que vivia na marginalidade no século XVIII, e ao enfatizar a importância do
compromisso social e político de sua arte frente aos impasses colocados pela
84
Idem, p. 110-111.
85
Idem, p. 109.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
193
administração colonial de Vila Rica, vem sutilmente mostrar que Jorge Andrade não
está ausente do debate envolvendo a “arte engajada”, que mobilizou o meio teatral nas
décadas de 1960/1970.
1969, o primeiro ano sob o jugo do Ato Institucional nº 05, foi a época de
produção do texto As Confrarias. E mesmo não sendo presença assídua nas destacadas
companhias de teatro dos anos de 1960, Jorge Andrade foi um dramaturgo que sempre
manifestou preocupação com o seu tempo, um poeta que sempre se posicionou contrário
às arbitrariedades impostas à classe artística, um homem que sempre defendeu o direito
e a liberdade de criação e opinião.
Nessas circunstâncias, a produção de As Confrarias, em 1969, foi uma tentativa
de inserir-se nesse debate. E mesmo que o texto tenha sua apresentação inédita nos
palcos e ainda que Jorge Andrade negue a idéia de um engajamento no seu teatro, os
eixos temáticos que compõem a narrativa dramática da peça, a sua estética
essencialmente inovadora e provocativa, certamente estão em sintonia com o “teatro
engajado”, com o “teatro político” e com o “teatro de resistência”, estruturado nos
inquietantes anos da Ditadura Militar.
Ao lançar um olhar sobre os anos sombrios advindos com os acontecimentos de
1964, ao sentir de forma direta as implicações da censura legalizada pelo AI-5, que
interditou de forma arbitrária o texto Senhora na Boca do Lixo, Jorge Andrade não foge
ao tema, cria a personagem José, e traz a público a vida de um ator de teatro que vive no
século XVIII sob a opressão da censura e do preconceito social, por ser artista e realizar
um trabalho constestador da política colonial mineira. Pensando na relação
texto/contexto, a personagem torna-se uma representação da classe teatral que, em 1969,
vivia sob as amarras da censura e da repressão institucionalizada pelo governo.
Nas décadas de 1960/1970, o teatro tornou-se o locus privilegiado de discussão
política, por agregar artistas e intelectuais que se posicionavam contrários às injustiças
sociais e às mazelas da população em geral. Muitos entendiam que atores, diretores e
dramaturgos eram autênticos tradutores dos problemas do País. Em tais circunstâncias,
esquentavam as discussões em torno do comprometimento político e social da arte
teatral brasileira e do ideal revolucionário do militante. Um exemplo ilustrativo sobre
essa questão encontra-se no texto Quem é Quem no Teatro Brasileiro, de Luís Carlos
Maciel, que, além de discutir aspectos fundamentais do teatro, faz uma análise das
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
194
opções, das táticas e do comprometimento político que povoavam as reflexões de
esquerda nos palcos brasileiros
86
.
Nas palavras de Luís Carlos Maciel, a encenação da peça Vestido de Noiva, de
Nelson Rodrigues, pelo grupo Os Comediantes em 1943, as mudanças estruturais da
sociedade paulistana nas décadas de 1930/1940 (ascensão da burguesia, crescimento da
indústria, novas diretrizes políticas) e a criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)
viabilizaram o advento do Moderno Teatro Brasileiro. Este, além de produzir novas
formas de fazer teatro, reavaliou a cena teatral e possibilitou uma mudança na origem
social dos atores de teatro, provocando uma cisão que dividiu a classe em “geração
anterior ao TBC” ( batalhadores de um teatro que se encontrava fora de moda), “geração
TBC” (introdutoras do teatro moderno, mais intelectualizada e inteligente que a
anterior) e “geração posterior TBC” (menos alienada, mais consciente e comprometida
com a realidade do que a precedente)
87
.
A heterogeneidade da classe teatral mencionada pelo autor mostra que as duas
últimas gerações, “TBC” e “pós-TBC”, estiveram em sintonia, compartilhando critérios
estéticos e formas de enxergar o mundo. Portanto, romperam definitivamente com a
concepção de trabalho da primeira geração, inaugurando uma mudança radical na
estrutura do teatro brasileiro, que passou a contar com novos códigos estéticos, afinados
com os valores da burguesia.
Nas reflexões de MACIEL, a “geração anterior ao TBC” era oriunda das
camadas pobres e as suas pretensões artísticas eram extremamente modestas. Nessa
época, atriz era sinônimo de prostituta e ator, de vigarista aventureiro, existindo apenas
para divertir o público popular. Nessas circunstâncias, sua respeitabilidade era duvidosa
para uma sociedade burguesa e ainda com mentalidade e espírito medieval.
Já a “geração TBC”, constituída pela burguesia, inaugura uma certa
respeitabilidade, agora os homens do teatro eram pessoas importantes da sociedade. Os
novos artistas passaram a ser os nomes ilustres das famílias paulistanas. Educados,
amantes da arte, eram apontados como “modernos” e “cultos”. Curiosamente, os
saltimbancos (artistas anteriores ao TBC) foram colocados de lado, desprezados,
marginalizados por serem considerados anacrônicos, incultos e despreparado para o
novo teatro que nascia.
86
MACIEL, Luiz Carlos. Quem é Quem no Teatro Brasileiro (estudo sócio-psicanalítico de três gerações).
In: Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial de Teatro nº 02 (Teatro e Realidade Brasileira), Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, Julho de 1968, p. 49-68.
87
Idem, p. 51.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
195
Com as mudanças operadas nos palcos brasileiros, a pequena burguesia começou
a freqüentar teatro. Entretanto, o fato de a classe média ter escolhido os palcos para
expressar seus ideais, seus valores e suas posições, não significou que tenha se livrado
da condição “marginal” que carregam os artistas. De acordo com Luís Carlos Maciel, a
justificativa para essa afirmação consiste no fato de que os homens de teatro não
“contribuem para o processo de produção material. São parasitas que dividem renda
per capita do País sem contribuírem em nada para o seu Produto Nacional Bruto.
Economicamente, constituem um peso morto. Seu trabalho é um artesanato de interesse
e consumo limitados
88
”. O mito da desmarginalização inaugurada pela “geração TBC”,
criou a expectativa de prestigio social. E, para retirar do ator o estigma da
marginalização, inicia-se a criação de cursos de teatro nas universidades, escolas de arte
dramática e cursos especializados em técnicas para formar atores.
Já o projeto da geração “posterior ao TBC” tinha como preocupação a
transformação da realidade social e política do País. A disposição dessa geração para a
mudança coincidiu com os pressupostos políticos da década de 1960. Eventualmente
descobriu-se um motivo mais amplo para seu conflito original: além da marginalização,
se deparavam também com a necessidade de construir uma sociedade igualitária e
humana. Iniciou-se, assim um projeto de esquerdização do teatro brasileiro. Contudo,
“tal projeto, infelizmente, não foi isento de sonhos vãos. Na verdade, chegou quase a
ser dissolvido pelo golpe militar de abril de 1964
89
”.
Nessas circunstâncias, Luís Carlos Maciel avalia que a “geração pós-TBC”,
mesmo sendo consciente das ilusões das outras gerações, não foi capaz de construir um
novo teatro. As novas fórmulas de dramaturgia mostraram-se tímidas, sem espírito de
aventura, não tiveram força e nem praticidade para romper com o teatro tradicional.
Assim, o “marginal da classe da média” não conseguiu realizar a “revolução” e, por
mais que ele seja politizado e consciente, será sempre um rebelde, mas, nunca, um
revolucionário:
Ligado existencialmente à própria classe, por questão de educação e de
formação caracterológica, jamais é chamado pela vocação revolucionária.
Bem vestido, bem alimentado, bem educado, a revolução nunca é a sua
vocação. Para torná-la (...) precisa inventar. Isto é: precisa violentar uma série
de elementos de seu projeto original de classe que, embora não apresentem
aparentemente ligação direta com nenhuma posição política, impedem a
vocação revolucionária: o amor pelo conforto, a repulsa pelo conforto, a
88
Idem, p. 54.
89
Idem, p. 58-59.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
196
repulsa à violência a ambigüidades de sentimentos (...). O proletário, portanto,
pode ser revolucionário por vocação; o marginal pequeno-burguês só pode
chegar a sê-lo através de um projeto consciente que envolve um rompimento
radical com o “caráter” adquirido na infância vivida à sombra dos valores da
classe média
90
.
Fundamentalmente, Luís Carlos Maciel pôs em questão os princípios que
norteavam os diferentes segmentos do teatro brasileiro na década de 1960. De um lado,
os herdeiros da tradição dos trabalhos do TBC, do outro, os que defendiam a resistência
como instrumento “revolucionário”, num momento político de incitamento dos
conflitos. Segundo Rosangela Patriota, nessa época:
as rupturas foram construídas. Um novo marco foi instaurado. Percebe-se
nesse momento, a busca de outras maneiras de fazer teatro: saía de cena o
didatismo, entrava a agressão. No horizonte, não estavam mais os temas
consagrados pela política tradicional, mas novas problematizações e formas de
perceber e discutir a sociedade contemporânea
91
.
As críticas de Luís Carlos Maciel recaíram sobre a forma de produção teatral no
Brasil contemporâneo, esta ainda ligada aos padrões do TBC. A nova geração de atores
mostrava-se como simples seguidora dos artistas mais velhos, servindo apenas à
renovação artística. Esse comportamento viabilizou o processo de solapamento da
esquerda nos palcos brasileiros, ocasionando a produção de uma arte teatral
ssencialmente “moderna”, “delicada” e “complacente”
92
.
90
Idem, p. 67.
91
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha - Um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo. São Paulo: Hucitec,
1999, p. 124-125.
92
As críticas tecidas por Luís Carlos Maciel foram logo revidadas pelo meio teatral. Oduvaldo Vianna
Filho, um dos dramaturgos mais atuantes do teatro brasileiro, responde as provocações num instigante
texto publicado na Revista Civilização Brasileira - Um Pouco de Pessedismo Não Faz Mal a Ninguém.
Nele Vianna reafirma a idéia de que existem dois segmentos do teatro brasileiro: o “teatro engajado”
(envolvido em novas experiências estéticas, que priorizava a apreensão da realidade social e política em
que estava inserido.), e o “teatro desengajado” (que vê com ceticismo a participação, optando por estudar
e pesquisar na busca de maior fluidez artística, não estando preocupado com o mundo que elabora.).
Depois de situar-se no primeiro segmento, Vianinha, diferentemente de MACIEL, reinterpreta a história e
enfatiza a importância do TBC na construção do teatro brasileiro. Reconhece que a sua geração fez
interpretações equivocadas, erros de avaliação histórica em relação ao Teatro Brasileiro de Comédia, e
que, tanto a história, quanto o refinamento estético e técnico dessa casa de espetáculo não podem ser
reduzidos ‘a um divertimento de bom gôsto’.
Ao lado disso, Vianinha ressalta que o teatro brasileiro ressurgido no pós-guerra, aparece sob o signo da
participação e da luta. A luta da implantação da cultura e da complexidade. Portanto “é preciso não
esquecer que durante esta mesma época, a burguesia, dividida e contraditória, lutava pelo monopólio
estatal do petróleo, apoiava a não participação do Brasil na guerra da Coréia, instituía o confisco
cambial, publicava o jornal “Última Hora” e elegia Juscelino Kubistcheck, que, embora formulando
uma ilusória coexistência entre desenvolvimento e estrutura econômica do país, leva à prática a
autoconfiança nacional”. Com essa perspectiva de análise, Vianna ainda dedicou ao Teatro Brasileiro de
Comédia a sua filiação de tradição: “Quando comecei em teatro, há doze anos, a frase que eu mais ouvia
era ‘Infelizmente não temos tradição teatral no Brasil’. O TBC e as companhias que surgiram recriaram
esta tradição. Nunca mais ouvi aquela frase”. (p. 71- 72)
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
197
Necessariamente, deve-se apontar dúvidas quanto ao pensamento desse autor. É
claro que o trabalho da “arte engajada esquerdizante” (não somente o teatro, mas
também o cinema, a música, a literatura, as artes plásticas, etc.) não venceu as táticas
políticas e as diretrizes econômicas da direita. Contudo, isso não quer dizer que arte
teatral dos anos de 1960 tenha sido benevolente com os acontecimentos políticos de
1964. Nessa época, vários espetáculos teatrais comprometidos com a realidade política
do País foram colocados em cena, repudiando e criticando a organização do regime
ditatorial. Entre tantos, está o texto teatral As Confrarias, produzido por Jorge Andrade,
um dramaturgo fruto do teatro profissional brasileiro da década de 1950, especialmente
do Teatro Brasileiro de Comédia - o “velho TBC” - alvo de crítica de Luís Carlos
Maciel.
No meio dessas opiniões contraditórias, torna-se importante buscar esclarecer
qual a contribuição de As Confrarias para esse debate, que, ao resgatar a efervescente
vida cultural e artística da cidade de Vila Rica, está indiretamente construindo
representações a respeito da realidade política brasileira.
A primeira representação cênica de José foi rememorada por Marta, quando esta
visitava à “Irmandade do Rosário”. Além da exaustiva inquirição a que foi submetida a
personagem, as restrições pontuadas pelos religiosos, impossibilitando o sepultamento
de José, fizeram com que Marta, por meio de uma atualização cênica, resgatasse a
imagem do filho ao presente. Nesse momento José representa a tragédia “Catão”
93
. A
rubrica dá vida à cena informando:
(Os irmãos desaparecem. Estão em cena Catão e Marco-Bruto, que
representam diante do público, como se êste fosse o senado romano. José no
papel de Marco-Bruto, veste roupa de centurião. Catão está de toga negra).
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Um Pouco de Pessedismo Não faz Mal a Ninguém. In: Revista Civilização
Brasileira, Caderno Especial de Teatro nº 02 (Teatro e Realidade Brasileira), Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, Julho de 1968, p. 69-78.
93
Segundo a pesquisadora Catarina Sant’Anna, “Catão de Almeida Garret, é uma tragédia portuguesa em
versos, apresentada pela primeira vez em 29/09/1821, em Lisboa, quando a Revolução de 1820
(Revolução do Porto) já havia terminado em Portugal, não possuindo, portanto, nenhum princípio de
incitação à luta, mas antes uma preocupação pedagógica com a reconstrução e organização política. Nas
análises de Catarina Sant’Ana: “trata-se de Catão, o ‘Menor, ou Uticense’ ( 95-46
A.C), bisneto de Catão,
o ‘Maior, ou o Censor’, este último, símbolo máximo de austeridade e avesso à entrada da civilização e
arte grega em Roma, levando à expulsão de filósofos, gramáticos, etc., por considerá-los ‘corruptores da
mocidade romana’. A peça apresenta o outro Catão resistindo à investida de César, que deseja impor a
ditadura à república de Roma; desesperançado, constatando ser outro vencedor, decide acabar com a
própria vida para não se tornar escravo; Marco-Bruto, ao contrário, sempre muito inflamado, decide-se
pela luta e tenta convencer a isso Catão e o senado, mesmo após descobrir que, educado embora por
Catão, é, na verdade, filho bastardo de César; o grito de ‘Ou liberdade ou morte!’ vem à baila.”
SANT’ANNA, Catarina. Op. Cit., p. 314.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
198
CATÃO:
“Não há sangue que o farte, não há crime
Que o detenha: seu carro de triunfo
Não impeça nos montes de cadáveres
Que lhe juncam a estrada. Fique o mundo
Todo um sepulcro, um só momento a terra ...
Mas reine êle senhor sobre esse túmulo.
Dizei: qual é vossa alma, as tenções vossas?
Inda ousais defender a liberdade?
Firmes em acabar primeiro com ela
Inda ousais preferir a morte honrada
Ao jugo, à escravidão? Bruto fale?
MARCO-BRUTO:
“Eu voto a guerra. E a guerra só nos cumpre.
Pouco somos; mas livres, mas ousados.
No furor da peleja, quantas vezes
Um só braço bastou a decidi-la?
César ... Ah! Co’ êste nome em vossos peitos
Não ferve a indignação, não pula o ódio?
E êste mesmo senado ainda duvida,
Pausado agita, frio delibera
Sobre a causa da pátria? Ah, não, ó Padres,
Não vale em lances d’êstes a prudência:
Só produz entusiasmo as ações grandes.
Não aguardemos que o inimigo ousado
Venha em nossas muralhas atacar-nos;
Vamos nós mesmos, nós, o ferro em punho.
Por entre essas indômitas falanges
Longa abriremos sanguinosa estrada ...
Senão para a vitória que nos foge,
À glória ao menos de expirar Romanos”. (p. 44)
Nesse momento a arte de José assume um caráter essencialmente contestatório, a
fala de Catão leva o leitor/espectador aos abusos de poder na Roma Antiga, o que está
em evidência é a política autoritária de César. Observa-se que há uma ênfase aos atos de
repressão, violência, crimes que escravizam uma nação, não lhe permitindo a liberdade.
Evidentemente a reflexão suscitada pelo teatro de José não é apenas a de falar do
Governo Barbacena. Mais que isso, é lançar um olhar sobre o presente. A ênfase à
violência, aos crimes e à censura remete-nos ao ano de 1969, quando a sociedade
brasileira vivia sob as turbulentas medidas impostas pelo AI-5. Nessas circunstâncias
César sugere uma alusão aos militares, especialmente o presidente Costa e Silva, que
ocupava o poder no momento: “não há sangue que o farte, não há crime que o detenha:
seu carro de triunfo”.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
199
Já a fala de Marco Bruto não visa denunciar, explicitar as arbitrariedades do
Imperador Romano, mas de forma austera sugere luta, resistência: “eu voto a guerra
(...) poucos somos, mas livres, mas ousados”. A resistência deveria vir por parte de
todos os que sofrem com as injustiças.
Em outro momento dramático, é mostrado ao leitor/espectador o conteúdo
político do teatro de José. Em cena o “Monólogo D’O Casamento de Fígaro”, de
Beaumarchais
94
. José está em casa na companhia de sua namorada Quitéria:
FÍGARO
Há nada mais esquisito do que o meu destino? Atiro-me de corpo e alma no
teatro: antes tivesse amarrado uma corda no pescoço! Alinhavo uma comédia
nos costumes do serralho. Autor espanhol, pensei que podia troçar de Maomé à
vontade: na mesma hora de um enviado (...) de não sei onde queixa-se de que
eu ofendo em meus versos a Sublime Porta, a Pérsia, uma parte da península
da Índia, todo o Egito, os reinos de Barca, Trípoli, Túnis, Argel e Marrocos: e
lá se vai nossa comédia às urtigas, para agradar aos príncipes maometanos,
nenhum dos quais, penso, saber ler e que nos magoam o omoplata, chamando-
nos de cães cristãos. (levanta-se) Como gostaria de segurar um desses tiranetes
de última hora, tão pouco preocupados com o mal que ordenam! Quando um
bom desfavor tiver chocado o orgulho deles, eu lhes diria ... que sem a
liberdade de censurar, não há elogio que lisonjeie; e que só os homens
pequeninos temem os pequenos escritos. (Torna a sentar-se) Como é preciso
jantar, aparo ainda a minha pena e pergunto a todos qual é o assunto do dia:
dizem-me que se estabeleceu em Madri um sistema de liberdade a respeito da
venda de produções, o qual chega a estender-se às da imprensa; e que, uma vez
que eu não fale em meus escritos nem da autoridade, nem do culto, nem da
política, nem da moral, nem das pessoas em evidência, nem das corporações
influentes, nem da Ópera, nem dos outros espetáculos, nem de pessoas que
tenham por onde se lhes pegue, posso imprimir livremente tudo, sob a inspeção
de dois ou três censores. Para me aproveitar desta doce liberdade, anuncio
uma publicação periódica e, crendo não caminhar nas pegadas de ninguém,
chamo-o JORNAL-INÚTIL. Suprimem-me e eis-me de novo sem emprego!
Retomo o estojo de barbear e o assentador ... e pondo a vergonha de lado, vou
barbeando de cidade em cidade e vivo enfim sem cuidados. (...) (grifos nossos)
(p. 54-55)
Bodas de Fígaro, representada pela personagem José, revela nuanças de um
artista que tem o seu trabalho mutilado pela censura, ao realizar uma arte contrária
àquela que desejam as autoridades - a arte como um instrumento de conscientização
política e social e cuja liberdade de criação e opinião é severamente restringida. O
94
À luz das reflexões de Catarina Sant’Anna, à peça Bodas de Fígaro, de Beaumarchais (1732-1799), é
uma comédia político-social que, para ser representada, foi submetida sucessivamente a seis censores, não
conseguindo o apoio costumeiro de Luís XVI, que a julgou detestável e irrepresentável. A peça foi
interditada em Versalhes, em 1783 e no ano seguinte Beaumarchais acabou sendo preso. Em 27/04/1784 a
peça alcançou um grande sucesso nos palcos, prenunciando a Revolução de 1789. Ver: SANT’ANA.
Catarina. Op. Cit., p. 318.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
200
texto representado por José lança um olhar para o seu tempo. Diante da multiplicidade
de acontecimentos que carregam a história do regime militar, Jorge Andrade optou por
resgatá-lo sob o prisma da atuação da Censura Federal, instrumento de grande eficácia
no cerceamento das produções artística e culturais dos anos de 1960. Tanto é assim que
ao manifestar sobre os impasses que tivera política censorial brasileira, ressalta:
- A censura pode impedir a encenação de uma peça minha, mas não poderá
impedir o meu pensamento e o meu trabalho ao escrevê-la. Alguns autores
defendem sua mediocridade através da Censura. Há muita gente faturando
prestígio com a Censura. Eu mesmo já enfrentei muitas formas de Censura.
- A arte vive de uma liberdade de conceito, registrando o homem no tempo e
espaço. Se não posso fazer isso, a Censura me castra como artista e o homem
perde seu registro no tempo e no espaço
95
.
Com esta perspectiva de análise, Jorge Andrade utiliza-se das apresentações
cênicas de José para mostrar que a dramaturgia, assim como qualquer arte, deve-se
sobrepor às malhas da censura e impor atitudes em prol da liberdade e da vida. No
Monólogo de Beaumarchais, José representa uma personagem que sofre as desilusões,
as angústias de não ser livre para criar sua arte e para utilizá-la em favor da
conscientização do público, agente responsável pela transformação política. Porém cada
ação da censura é um motivo a mais para a personagem (José) continuar lutando: “Para
me aproveitar desta doce liberdade, anuncio uma publicação periódica e, crendo não
caminhar nas pegadas de ninguém, chamo-o JORNAL-INÚTIL. Suprimem-me e eis-me
de novo sem emprego! Retomo o estojo de barbear e o assentador (...) e pondo a
vergonha de lado, vou barbeando de cidade em cidade (...) obrigado a percorrer a
estrada em que eu entrei sem saber como sairei (...)”.
Assim, mesmo apresentando problemas com a censura, Jorge Andrade foi um
dramaturgo que nunca se deixou intimidar pelas atitudes arbitrárias de censores,
policiais e políticos. Em algumas entrevistas, manifestou publicamente que não ia
escrever peças para ficarem guardadas na gaveta de censores. Ao mesmo tempo,
acreditava que a intimidação imposta pela censura nunca iria derrubar a arte:
- Não há censura que acabe com o homem brasileiro. Ninguém pode apagar a
história. Uma hora ou outra ela vem à tona. A minha obrigação é escrever,
registrando o homem no tempo e no espaço. Se a peça vai ser encenada agora,
ou não, isso é outro problema. Um dia ela será
96
.
95
Jornal do Brasil, 26/10/1976. In: Associação Musseu Lasar Segall Biblioteca Jenny K. Segall, p. 14
96
Jornal Folha de São Paulo, 13/07/1977. In: Associação Musseu Lasar Segall Biblioteca Jenny K.
Segall, p. 12.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
201
Em outra situação dramática, Marta, em visita à Irmandade do Carmo, rememora
a imagem de José, lendo e representando trechos das Cartas Chilenas:
(Quando a irmandade se volta e encara Marta, ilumina-se o primeiro plano,
onde está José ridiculamente vestido com farda vermelha e justa. O chapéu
atravessado na cabeça, o colete amarelo, os lençóis, a bengala exagerada
fazem dele um bufão. Marta sorri, observando os Irmãos, enquanto as luzes vão
se abaixando).
JOSÉ:
Em beiços de mulatos, atôres,
Vejam o que dizem do meu governar,
Malditos vates, escrevinhadores!
Pretende, Doroteu o nosso chefe
Mostrar um grande zêlo nas cobranças
Do imenso cabedal que todo o povo,
Aos cofres do Monarca, está devendo.
Envia bons soldados às comarcas,
E manda-lhes que cobrem, ou que metam,
A quantos não pagarem, nas comarcas, os
soldados,
E entraram a gemer os tristes povos.
Uns tiram os brinquinhos das orelhas
Das filhas e mulheres; outros vendem
As escravas, já velhas, que os criaram,
Por menos duas partes do seu preço.
Por mais que o devedor exclama e grita
Que os créditos são falsos, ou que foram
Há muitos anos pagos, o ministro
Da severa cobrança a nada atende.
O pobre, porque é pobre, pague tudo,
E o rico, porque é rico, vai pagando
Sem soldados à porta, com sossego!
Maldito, Doroteu, maldito seja
Um bruto, que só quer a todo custo,
Entesourar o sórdido dinheiro.
Eu creio, Doroteu, que tu já leste
Que um César dos romanos pretendera
Vestir ao seu cavalo a nobre toga
Dos velhos senadores. Esta história
Pode servir de fábula, que mostre
Que muitos homens, mais que as feras brutos,
Na verdade conseguem grandes honras!
Mas ah! Prezado amigo, que ditosa
Não fora a nossa Chile se, antes, visse
Adornado um cavalo com insígnias
De general supremo, do que ver-se
Obrigada a dobrar os seus joelhos
Na presença de um chefe, a quem os deuses
Somente deram a figura de homem!
(...)
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
202
E que queres, amigo, que suceda?
Esperavas, acaso, um bom governo
Do nosso Fanfarrão? (saindo de cena, ameaçador
e ainda mais ridículo)
Vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos,
Venda-se o próprio pano e mesa velha,
Quando isto não baste, há bom remédio,
As fazendas se tomem, não se paguem ... (sai) (p.
60-61)
As Cartas Chilenas, dada a sua importância histórica em esclarecer e detalhar
fatos e revelar pessoas de Vila Rica no final do século XVIII, bem como o contexto
político e social da sua produção desses fatos, tornou-se uma fonte importante para o
resgate da sociedade mineira, momentos antes da Inconfidência Mineira. O estudos que
envolvem as Cartas são polêmicos. A primeira questão que se coloca é saber quem as
escreveu. Sugestões não faltam: o historiador Augusto de Lima Júnior aposta em
Cláudio Manuel da Costa; o literato Silvio Romero afirma com convicção o nome de
Inácio José de Alvarenga; Adolfo de Vanhargen atribui a autoria ao ouvidor Tomaz
Antônio de Gonzaga, mais tarde muda de opinião e aposta em Cláudio Manuel.
Outro ponto em que as opiniões divergem diz respeito à reconstituição e
interpretação que as Cartas fazem do ambiente político, econômico e social da
sociedade mineradora. Para o historiador Affonso Ávila, Critilo pseudônimo de Tomaz
Antônio de Gonzaga, é o autor das Cartas Chilenas. Segundo ele, as Cartas
representam apenas o espírito cioso da formação aristocrática de uma época, é um
documento alardeado nas atitudes grosseiras e no dogmatismo conservador, no
sistemático anti-brasileirismo
97
:
se coloca numa posição reacionária aos ideais de seu tempo, ao enfatizar nas
várias cartas os privilégios de nascimento e classe da aristocracia, (...) a
majestade e o poder supremo do rei (...) a precedência social do clero e o papel
da religião como instrumento político, a intocabilidade das leis régias e a
origem da divina da justiça (...). Suas idiossincrasias explicam-se igualmente a
partir dessa postura anti progressistas, na insensibilidade diante do problema
do negro(...)
98
.
Perspectiva bastante diferente do historiador mineiro nos fornece Silvio Romero.
Para esse literato, as Cartas Chilenas foram uma produção original, espontânea, surgida
da necessidade do seu meio, fazendo vibrar a sátira, a justiça e a equidade ultrajadas
99
.
97
ÁVILA, Affonso. Resíduos Seiscentistas em Minas. Belo Horizonte Centro de Estudos
Mineiros/UFMG, 1967.
98
Idem, p. 64.
99
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
Jorge Andrade: Dramaturgia, Temas e Historicidade
203
Foi um instrumento político comprometido em denunciar a realidade social, em criticar
as arbitrariedades do Governo de Cunha Menezes:
Havia, além disto, um motivo particular, nosso, brasileiro, contra o governador
e sua gente; era o brado da raça oprimida contra os antigos conquistadores,
uma queixa contra essa flagrante injustiça da natureza e da história, que
condena certas raças à impotência, como povos inferiores ...
100
Em meio a essas divergências, o que nos interessa é reconhecer que, em As
Confrarias, as Cartas Chilenas têm uma função essencialmente política e social. Ao ler
fragmentos do documento literário, a personagem José não está falando apenas para o
público mineiro do século XVIII, não está apenas denunciando os mandos e desmandos
da sociedade aurífera e certamente não se está dirigindo somente ao governador Cunha
Menezes, mas sua preocupação é também com o presente. Depois de ter representado
Catão e Bodas de Fígaro, quando concentrou suas críticas nas arbitrariedades impostas
pela censura à produção artística, abordando ainda a necessidade da classe teatral em
criar formas de resistência para se libertar do crivo dos censores policiais, a personagem
agora utiliza-se das Cartas Chilenas para colocar o leitor/espectador em contato com o
Governo de Costa e Silva, que, pelas atitudes abusivas de poder e pelas formas de
conduzir os assuntos políticos e sociais do País na década de 1960, casa-se
perfeitamente com uma representação do governador Cunha Menezes no século XVIII.
Em 1969, viviam-se os “anos de chumbo”, com cassações em massa, intenso controle
dos movimentos sociais, qualquer ato sendo visto como um crime subversivo. Vivia-se,
assim, o auge do autoritarismo político.
Ao resgatarmos o tema da Inconfidência Mineira a partir das análises dos textos
teatrais Arena Conta Tiradentes e As Confrarias, uma questão importante se coloca: o
“movimento de liberdade” em Minas não deve ser entendido apenas na perspectiva da
insatisfação dos poderosos políticos, rápidos e ávidos por suas conquistas, mas
principalmente, ele deságua na insatisfação das classes oprimidas, em uma luta surda e
cotidiana que, portanto deve ser resgatada.
100
Idem, p. 433.
Conclusão
208
A partir de um entrecruzamento entre História e Teatro, este trabalho não
apresenta uma contribuição somente do ponto de vista historiográfico, que utiliza a
abordagem literária para desenvolver novos objetos e métodos de análises na pesquisa
histórica. Ele também discutiu aspectos importantes da história do teatro brasileiro,
revendo interpretações já consagradas, especialmente no que diz respeito às noções de
teatro “engajado” e “não engajado”.
Nesse sentido, ao buscar a historicidade dos textos teatrais Arena Conta
Tiradentes e As Confrarias, a partir de seu processo de criação e produção, concluiu-se
que o aspecto político-social é inerente a qualquer representação teatral. Mesmo Jorge
Andrade que, sempre proclamou o seu não engajamento como um homem militante,
apresenta uma obra essencialmente política. O conhecimento que a sua dramaturgia
revela da realidade brasileira, denunciando os erros e as injustiças sociais de seu tempo,
queira ou não, é uma forma de estar engajado.
Ao contrário do que muitos advogam, a neutralidade artística não existe. Em se
tratando da arte teatral, a própria convocação de um público para assistir a um
espetáculo é um ato social. A escolha de temas, a criação de personagens e de situações
dramáticas que, constituem a peça nada mais são que uma tomada de posição política.
Sendo assim, é possível afirmar “que todas as manifestações artísticas ou não são
políticas, elas podem ser diferenciadas pelos níveis de engajamento, mas não por meio
de divisões esquemáticas como “político” e “não político
1
”.
Por isso, conclui-se que as reflexões que se atém a hierarquizações didáticas e
classificações esquemáticas perdem por completo a complexidade de análise da obra,
desprezam o elemento que lhe que é mais precioso, a sua historicidade. Partindo desse
princípio, Arena Conta Tiradentes e As Confrarias, mesmo apresentando formas
estéticas e posições políticas diferenciadas, foram entendidas como construções sociais
que trazem no seu âmago os valores e os ideais de quem as produziu. Essencialmente,
foram analisadas dentro de um contexto histórico, inseridas nas lutas políticas do seu
tempo.
Em tais circunstâncias, a perspectiva central deste trabalho foi discutir a
representação dos ideais de liberdade da Inconfidência a partir de dois textos teatrais,
Arena Conta Tiradentes e As Confrarias, produzidos à luz dos efervescentes
acontecimentos políticos e culturais da década de 1960. Neste trabalho, observou-se que
1
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: Um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo. São Paulo: Hucitec,
1999, p. 20.
Conclusão
209
ao longo dos tempos, a Inconfidência Mineira foi apontada como um acontecimento
modelar. O heroísmo atribuído a seus protagonistas, bem como a responsabilidade que
se forjou em torno do movimento, colocando-o como o único capaz de propagar a
liberdade, fizeram com que a suas realizações e sua memória nunca fossem esquecidas,
sendo atualizadas em diferentes momentos políticos do País.
Pensando nessa perspectiva, os acontecimentos de 1789 em Minas tornam-se
perfeitos para instaurar símbolos, ritos, imagens e principalmente para rememorar os
mortos já consagrados que são personificados, em diferentes momentos, de diferentes
formas: mártir, redentor, revolucionário, santo, rebelde e muitas outras. Sendo assim,
não é apenas por situações fortuitas que esse tema foi construído sob diferentes
perspectivas e em variadas linguagens. Começando pelo Império, encontramos a
posição dos memorialistas, testemunhas oculares do acontecimento. Os padres
confessores fizeram questão de testemunhar a favor do regime político em que
acreditavam - a Monarquia e por isso a imagem de Tiradentes sobrevive com
característica essencialmente contrita, sofrida e anti-revolucionária.
Nos tempos quentes da República, a historiografia configurou uma imagem de
Joaquim José essencialmente forte, revolucionária, a martirização de sua morte nada
mais é que, um sinônimo de luta. Tanto é assim que O Romanceiro da Inconfidência
Mineira, publicado em 1953, ainda exalta um Alferes político, audacioso, inquieto e
revolucionário, determinado às mudanças que trariam novos tempos políticos.
Nos momentos de grandes conturbações políticas, especialmente aqueles
marcados por regimes autoritários, Tiradentes novamente tem a sua imagem
redimensionada de acordo com os interesses imediatos do presente. Na época do
Regime Militar, setores comprometidos com os interesses políticos da esquerda
retomaram o alferes inconfidente, cuja imagem é sempre viva, ostensiva, ousada e as
vezes bastante inteligente. Passando pelo cinema, encontramos Os Inconfidentes, de
Joaquim Pedro de Andrade, que apresenta Tiradentes notadamente revolucionário, mas
que, ao mesmo tempo, vive os impasses e os dessabores de uma militância exacerbada.
No teatro deparamo-nos com Arena Conta Tiradentes, Boal e Guarnieri,
inseridos na luta política de seu tempo, criam um Tiradentes ousado e revolucionário,
porém conhecedor das táticas políticas do campo de ação em que iria atuar.
Circunstancialmente, é um personagem que não se deixa envolver apenas nos aspectos
teóricos da “revolução”, mas também nas questões práticas que possibilitariam efetivar
a luta revolucionária.
Conclusão
210
Levando em conta o contexto de produção do texto, a trama é um diálogo direto
com a esquerda brasileira, que, perplexa com a instauração do Golpe, vivia as incertezas
e os constrangimentos dos projetos políticos derrotados. Sendo assim, com a construção
de Arena Conta Tiradentes, Boal e Guarnieri vêm sugerir possíveis caminhos para a
solução dos impasses. A valorização do heroísmo de Tiradentes, em detrimento das
ações políticas dos demais inconfidentes, nada mais é que uma forma de incentivar a
luta revolucionária, a resistência democrática, com as massas organizadas e que não
deveriam, necessariamente, ficar presas à ação teórica dos dirigentes do partido.
Notadamente, o recado resume-se no seguinte: num contexto de luta, é necessário
conhecer e atuar nos dois campos de ação: o campo das idéias e o da ação.
Em As Confrarias, o ideal de luta da Inconfidência Mineira também é
revolucionário. Porém, ele não é propagado na exaustiva figura de Tiradentes, mas
redimensionado nas ações de homens e mulheres que no século XVIII viviam em Vila
Rica, em difíceis condições de vida. Assim, a peça, que expõe a luta de Marta para
enterrar o corpo do filho morto, que não era aceito pelas confrarias religiosas por sua
condição étnica e profissional, a arte de José extremamente política e conscientizadora
do momento político em questão, a resistência de Sebastião em entregar as terras às
empresas mineradoras, nada mais é que um ato político de contestação, a politização do
cotidiano, sobretudo a busca de alternativas para viver dias melhores.
Jorge Andrade, um dramaturgo que não estava inserido numa produção artística
partidária, que visivelmente não seguia os pressupostos estéticos e as abordagens
políticas ditadas pelo “teatro engajado”, vislumbra que as ações que levam à conquista
da liberdade e à instauração novas formas de vida não são essencialmente, frutos da
“instituição partidária”. A problematização dos acontecimentos, dos fatos que
preenchem o dia-a-dia, também são formas transgressoras, “instrumentos” de luta, que,
quando utilizados, transformam agentes sociais esquecidos em sujeitos de uma história.
Sendo assim, o tema da liberdade resgatado na perspectiva das classes subalternas vem
sutilmente mostrar que a luta revolucionária, a resistência aos acontecimentos políticos
de 1964 também é fruto de homens e mulheres que, mesmo sendo desvinculados da
organização política institucionalizada, criam formas contestadoras de burlar o
estabelecido e transgredir normas que inviabilizam a liberdade.
A partir dessas interpretações, conclui-se que tanto as peças Arena Conta
Tiradentes e As Confrarias, quanto a historiografia especializada, ao iluminarem o
tema da Inconfidência Mineira, tornam-se representação do real. Embora estejam em
Conclusão
211
campos espistemólogicos diferentes, ambas são aproximações à realidade que se
constróem diante da utilização de meios narrativos, portanto nenhuma esgota a realidade
em questão, são escolhas, são recortes, são olhares.
Sendo assim, ao tratar da historicidade das peças teatrais, este estudo levou em
conta que Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Jorge Andrade, ao criar seus
personagens ou escrever a história da Inconfidência Mineira, não foram imparciais e
nem fizeram uso do precioso rigor científico muitas vezes utilizado na construção da
“história nacional”. Em termos práticos, pode-se dizer que esses dramaturgos
desfrutaram da liberdade de criação, recriando ao seu modo, fatos e figuras históricas do
passado, com a pretensão única de inserir-se na problemática política do seu tempo.
Necessariamente, o que está posto é a leitura dos fenômenos históricos a partir de sua
representação ficcional, o que implica discutir nesse momento, mesmo que de forma
restrita, a já consagrada oposição história e ficção.
Durante muito tempo a História desconheceu seu pertencimento ao gênero da
ficção, da narrativa, da representação. Os historiadores positivistas, na ânsia de
alcançar a verdade absoluta dos fatos, de desmistificar os acontecimentos históricos,
aboliram por completo dos estudos historiográficos o recurso às técnicas ficcionais de
representação
2
.
Recentemente o historiador Roger Chartier retomou essas questões, alertando
para o fato de que essas noções são essenciais ao ofício do historiador que se preocupa
em “apreender a realidade”. Chartier promove uma ampla discussão sobre a escrita da
história, as práticas determinadas pelas técnicas da disciplina, as operações de
investigação na pesquisa e a postura do historiador diante das fontes, defendendo uma
questão ainda cara para muitos historiadores: “a de que todos escrevem narrações
3
”.
Mas essa consciência narrativa histórica levou alguns autores a certas
confusões, uma delas a de considerar que a História e a escrita não podem diferenciar-se
da ficção. Essa proposição é defendida por Hayden White em sua obra Meta-História,
publicada em 1973
4
. O objetivo maior do autor é oferecer o que denomina de “análise
formalista” dos textos históricos, concentrando-se em clássicos oitocentistas, como
Jules Michelet, Leopold Von Ranke, Alexis de Toqueville e Jacob Burcckhardt. Assim,
White afirma que os principais historiadores do século XIX moldaram suas narrativas
2
LANGLOIS C.H. & SEIGNOBOS. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
3
CHARTIER, Roger. La história entre Representacion y Construcion. In: Atas do Seminário
Internacional. Dimensão da História Cultural. Belo Horizonte: Unicentro Newton Paiva, 1999.
4
WHITE . Hyden. Meta História: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992.
Conclusão
212
ou enredos com base em gêneros literários consagrados, os tropos lingüísticos:
metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. Ao mesmo tempo, relaciona ainda cada um
desses modos a quatro atitudes políticas: anarquismo, conservadorismo, radicalismo e
liberalismo.
O pensamento de White é que a História compartilha com a literatura as mesmas
estratégias e procedimentos de escrita. Completa dizendo que considerar a História uma
ficção não é tirar o seu valor de conhecimento, porém simplesmente considerar que
carece de um regimento verdadeiro. Com essa perspectiva White, afirma que:
Em efeito, o mito e a literatura são também formas de
conhecimento: Acaso alguém poderia crer seriamente
que mito e ficção literária não se referem ao mundo real,
não dizem, verdades sobre ele e não nos proporcionam
um comprometimento útil desse mundo real? Ao referir-
se aos romancistas sudamericanos, acrescenta: Diria que
suas obras não nos ensinam a história real porque se
trata de ficções literárias? Ou que, ao ser ficções
literárias sobre a história, estão desprovidas de tropos e
discursividade? Seus romances são menos verdadeiros
por serem ficções? Poderia uma história ser tão
verdadeira como essas novelas sem valer-se da classes
dos tropos poéticos que se encontram na obra de Mário
Vargas Llosa, Alejo Carpentier, José Donoso e Júlio
Cortázar?. Gerados pela mesma matriz, o relato e a
ficção narrativa desenvolvem o mesmo tipo de
conhecimento e verdade
5
.
Roger Chartier fundamentado em outros autores
6
, discorda veemente de algumas
proposições defendidas por White, argumentando que a história é um conhecimento
constituído pela intencionalidade histórica. Essa intencionalidade é que fundamenta as
operações técnicas: eleição de fontes, construção de dados, produção de hipóteses,
crítica, verificação de resultados, etc. Assim, ainda que o historiador escreva de forma
literária, este não faz literatura.
Ao levantar uma série de restrições ao pensamento de White, Chartier considera
sim, que a escrita histórica é uma narrativa que se molda aos padrões formais da
lingüística, mas deixa claro que a história tem um processo particular de investigação,
uma identidade que é própria da disciplina e é essencial para a sua escrita, como a
seleção de documentos, as escolhas políticas, a dependência em relação às fontes, ao
5
CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 96.
6
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Conclusão
213
passado, aos critérios de cientificidade e às operações técnicas relativas ao ofício do
historiador.
Além de Chartier, Peter Burke tece duras críticas a Hayden White. Segundo
Burke, Meta História é um livro brilhante no sentido de ofuscar o leitor e paralisar a
capacidade crítica e talvez fosse melhor lê-lo como um romance, pois White é mais
intuitivo que empírico. Ao lado disso, questiona o autor sobre a “questão da verdade”:
seria a historiografia simplesmente uma forma de ficção ou trata-se de um gênero com
regras próprias, inclusive as regras de evidência?
7
As reflexões pontuadas até então vieram jogar luzes sobre algumas questões que
há muito tempo são latentes em nosso ofício de historiador, a de que as formas de
escrever ou abordar um tema em história são variadas, os temas de investigação são
diferentes e as conclusões a que chegamos são na maioria das vezes controversas. Isso
mostra que não existe uma fronteira rígida, acabada para a História. Ao contrário, ela
está em todo lugar, todos os dias incorpora várias percepções do conhecimento, volta-se
para uma produção diversa, interdisciplinar e rica em possibilidades. Apesar desse
universo amplo e complexo da produção histórica, os historiadores ainda compartilham
certas premissas tanto no campo teórico, quanto na prática de seu ofício.
Na verdade, Hayden White tem razão ao considerar as fontes literárias ficcionais
como documentos eficazes para iluminar um período histórico, pois consciente ou
inconscientemente o discurso narrativo do historiador organiza-se partir de formas
lingüísticas
8
. Porém, diferente daquilo que defende o autor, o historiador não deve
considerar apenas a forma, que dá origem à sua escrita narrativa, mas precisa também
preocupar-se com o como ocorreu a construção da narrativa. A história não é um
reflexo da ficcção e nem a ficção é o espelho da história. Devemos entendê-las como
GAY, Peter. Sobre o Estilo da História. In: O Estilo da História. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
7
BURKE, Peter. Enredos da História. In: Jornal Folha de São Paulo. Discurso Editorial/USP. Julho
de 1995.
8
Ao considerar que a forma é determinante na escrita histórica, Hayden White não leva em conta as
especificidades do oficio do historiador. Sua noção de história não põe em dúvida as evidências, portanto
trabalha na perspectiva de que o fato é verdadeiro e pode ser comprovado. Tanto é assim que, ao
manifestar-se sobre a posição dos historiadores revisionistas que propõem uma escrita radical da história
contemporânea (as câmaras de gás jamais existiram na II Guerra Mundial, o genocídio foi uma invenção
da população judia e particularmente sionista), White ressalta que essas interpretações foram construídas
com base na fidelidade dos registros dos fatos, portanto devem ser consideradas como relatos de
acontecimentos que foram estabelecidos como acabados” e os “relatos rivais podem julgar, criticar e
classificar com base em sua fidelidade aos registros dos fatos, em seu caráter exaustivo e em sua
coerência dos argumentos que podem conter”. CHARTIER, Roger. Op. Cit., p. 96-97.
Conclusão
214
campos epistemológicos diferentes, cada uma com suas especificidades e que, portanto,
merecem tratamento teórico e metodológico também diferenciados.
Assim, ao contrário de Hayden White, Peter Gay ressalta que as escolhas
estilísticas estão intimamente subordinadas ao conteúdo. O estilo, segundo Gay, é que
concebe a história como arte e ciência, podendo ser compreendido como o vetor das
várias dimensões, complexas e às vezes conflitantes, constitutivas do homem. Assim
sendo, as opções disponíveis assinalam o toque de individualidade, implicando na forma
estilística do historiador
9
.
Nessa perspectiva, as fontes ficcionais - Arena Conta Tiradentes e As Confrarias
- utilizadas para refletir sobre a representação dos ideais de liberdade da Inconfidência
Mineira com suas formas artísticas descontraídas de narrar os fatos, pela criatividade
poética dos dramaturgos, pelas escolhas e omissões na “apreensão da realidade”, são
documentos que têm validade na produção do conhecimento histórico. Aos olhos do
historiador, são documentos socialmente produzidos, têm as suas intenções, carregam
subjetividades que são as interpretações do autor, portanto não são documentos
transparentes e inocentes que apenas refletem a realidade em questão. Por não
apresentar as preocupações inerentes ao trabalho do historiador - constatação de
evidências, eleições de fontes, críticas, etc. , as fontes ficcionais produzidas pelos
dramaturgos necessitam dialogar com a “historiografia especializada”. O que não quer
dizer de maneira alguma que, a historiografia seja a verdade absoluta dos fatos em
questão, porque assim como as fontes teatrais, ela é também uma construção social e
carrega subjetividade.
Os estudos que tomam como objeto de pesquisa as fontes ficcionais, sem sombra
de dúvida, abrem possibilidades para que as manifestações artísticas não sejam
compreendidas apenas como forma de entretenimento, diversão, descontração e que, ao
mesmo tempo, não sejam analisadas de maneira precipitada e falha. Nesse trabalho os
textos teatrais transformaram-se em objetos de estudo mais aprofundado, esclarecendo
questões importantes e atuais da função social e política da arte no contexto em que
vivemos. Ao mesmo tempo, trataram da liberdade, tema que em uma sociedade de
classes, marcada pelas desigualdades sociais, é sempre atual.
Contudo, não se pretende com essas conclusões, ainda que provisórias e sujeitas
as restrições, exaurir a complexidade que abarca esse tema. Os debates e as reflexões
9
GAY, Peter. Sobre o Estilo da História. In: O Estilo da História. São Paulo: Cia das Letras, 1990,
p.192.
Conclusão
215
que cercam os pressupostos políticos e “revolucionários” da Inconfidência ainda
permanecem vivos e merecem ser discutidos. No século XIX, a discussão sobre o tema
não se esgotou unicamente sob o ponto de vista dos memorialistas e dos historiadores
monarquistas. Outra corrente que busca antecedentes no Levante de Minas é a
abolicionista. Nessa época, a consciência dos desgastes do regime escravocrata
mobiliza intelectuais, artista e escritores para as campanhas de abolição. Entre tantos
empenhados na luta está Castro Alves, que contribuiu para os debates escrevendo a peça
Gonzaga ou a Revolução de Minas
10
.
Na ânsia de integrar os projetos abolicionistas ao ideal da República, o poeta
atribuiu aos inconfidentes fortes convicções abolicionistas. Ao contrário da maioria das
interpretações, o protagonista da trama inconfidente não é Joaquim José da Silva
Xavier, e sim o ouvidor Tomás Antônio de Gonzaga, que manifesta sentimentos
favoráveis à liberdade dos negros ainda escravizados :
GONZAGA: E entretanto, meu amigo, a escravidão é um
parasita tão horrivelmente robusta, que deslocada do
tronco, vai fanar os ramos da vida. (...) Quando o escravo
quer ser livre, quando o trabalhador quer ser proprietário,
quando o colono quer ter dinheiro, quando o povo quer
ter vontade há um fantasma que lhe diz: Loucura, mil
vezes loucura! O escravo tem o azorrague, o trabalhador
o imposto, o colono a lei, a inteligência o silêncio, o
coração a morte e o povo trevas. É a metrópole é sempre
a metrópole. E agora, senhores, é preciso que isso acabe.
É preciso, mas como
11
?
Para Castro Alves, teatro é uma tribuna, é uma escola, é um altar, as incorreções
históricas justificam-se plenamente, são favoráveis às grandes causas políticas da
época
12
. Assim, ainda que Tiradentes não ocupe o papel principal, seu heroísmo é
sutilmente sugerido em uma instigante mistura do cristão martirizado com o herói dos
novos tempos políticos:
Ei-lo, o gigante da praça
O Cristo da multidão
É Tiradentes quem passa
Deixem passar o Titão
Súbito um raio o fulmina
Mas tombou na guilhotina
Foi como águia fulminada
Pela garra pendurada
Como troféu de Thabor
13
.
10
ALVES, Castro. Gonzaga ou a Revolução de Minas. In: Obras Completas de Castro Alves. Rio de
Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, tomo 02.
11
Idem, p. 246.
12
Idem, p. 231.
13
Idem, p. 378.
Bibliografia
217
1.1) Fontes:
ANDRADE, Jorge. As Confrarias. Perspectiva: São Paulo, 1986, p. 25-70.
BOAL Augusto e GUARNIERI, Gianfrancesco. Arena Conta Tiradentes. São Paulo,
Livraria Editora Saragana, 1967, p. 57-163.
1.2) Entrevistas:
ANDRADE Jorge. Entrevistadores: Mariângela Alves de Lima, Linneu Dias, e Carlos
Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Centro de Documentação e Informação
Sobre Arte Brasileira Contemporânea. Centro Cultural São Paulo/Arquivo Multimeios,
22 de outubro de 1976.
MESQUITA Alfredo. DEPOIMENTOS II. Rio de Janeiro: MEC-SEC Serviço
Nacional de Teatro, 1977.
GURARNIERI, Gianfrancesco. DEPOIMENTOS V. Rio de Janeiro: MEC-SEC
Serviço Nacional de Teatro, 1981.
RENATO J. ROUX, Richard. Le Theatre de Arena (São Paulo . 1953-1977) - Du
“theâtre en rond” au “theâtre populaire”.Provence: Université de Provence, 1991.
1.3) Autobiografia:
ANDRADE, Jorge. Labirinto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro:
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1.4) Revistas/Periódicos:
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