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A máscara da modernidade:
a mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945)
Leoní Teresinha Vieira Serpa
Orientador:
Astor Antônio Diehl
Passo Fundo, junho de 2003
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Leoní Teresinha Vieira Serpa
A máscara da modernidade:
a mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade de Passo Fundo na área de História Regional, como
requisito parcial e final para obtenção do grau de mestre em
História, sob a orientação do Prof. Dr. Astor Antônio Diehl.
Passo Fundo
2003
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A t
_________________________________________________________________________
S486m Serpa, Leoní Teresinha Vieira
A máscara da modernidade : a mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945) / Leoní
Teresinha Vieira. – 2003.
180 f.
Dissertação (mestrado) Universidade de Passo Fundo, 2003.
1. História do Brasil 2. Estado Novo .3. Jornalismo história 4.Revista
O Cruzeiro 5. Modernidade 6. História das idéias I. Título
CDU: 981
______________________________________________________________________
Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath Vieira CRB 10/1278
odas as mulheres que embalam no imaginário do mundo, dias
melhores.
Não existem conquistas solitárias e isoladas, elas são sempre
conjuntas. Este trabalho tem mais que o significado de uma
realização profissional: é a possibilidade de tornar profícuo o
resultado de uma investigação, que sempre objetivou contribuir
com duas áreas do conhecimento, o jornalismo e a história. Para
alcançar tais pretensões, contei muito com a dedicada e perspicaz
atenção do professor Astor Antônio Diehl, de quem tive a honra de
receber orientações e agradeço. Agradeço a todas as pessoas que
contribuíram comigo até aqui. Em especial, neste trabalho, à
Universidade de Passo Fundo, pelo apoio e custeio de parte das
despesas com mensalidades; também aos colegas da UPFTV; ao
curso de mestrado em História; Aos funcionários do Museu de
Comunicação Hipólito da Costa de Porto Alegre; à coordenação do
Museu de Publicidade Hipólito da Costa de Porto Alegre,
especialmente à pesquisadora Liana Bach Martins e à Ananda,
também a professora Marisa Nonnenmacher e a Vera Lúcia Serpa,
ao Gedoc, do jornal O Estado de Minas, especialmente à Gercilene
Ferreira Teixeira; ao IBGE de Passo Fundo; à Eliana Moreira de
Mello, as atenciosas amigas Maria Emilse Lucatelli e Maria
Teresinha Suzin. A minha família, aos meus amigos e a todos
aqueles que se ressentiram em algum momento com a minha
ausência nesse período de intenso trabalho.
6
“Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do
poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém
pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma
multiplicidade de relações de forças.”
Michel Foucault
7
RESUMO
O presente estudo analisa as mudanças trazidas pela modernidade e pelo Estado
Novo nas representações simbólicas sobre as mulheres. A análise concentra-se em
reportagens, notícias, fotos, colunas, publicidades e propagandas veiculadas pela revista O
Cruzeiro no período de 1928-1945. Procura entender como Assis Chateaubriand criou o
semanário, um dos mais lidos do país, num período de intensa urbanização, que creditava
ao Brasil ares de modernidade. Tendo como fonte básica as páginas do magazine, através
de um conjunto de leituras que levam em conta a análise do discurso e que consideram a
linha editorial de O Cruzeiro, além de bibliografia nas áreas do jornalismo e da história das
simbologias e representações, investiga a história das mulheres a partir da idéia de Brasil
que a revista criou para representá-las nos 17 anos recortados para o estudo. Considera-se
que essa foi uma história cheia de signos, de um imaginário que polemizou e emocionou o
leitor brasileiro, mas que, sobretudo, ditou modas, normas e até conceitos, numa
intencional propagação da modernidade inspirada nos ditames hollywoodianos. Assim, a
análise possibilita compreender que a revista apregoava uma modernidade mascarada, que
substituía a submissão feminina social e doméstica pela doutrina da beleza e do consumo.
Palavras-chave: Estado Novo, revista O Cruzeiro, Modernidade, História das Idéias,
Jornalismo, História.
8
ABSTRACT
The present study analyses the changes brought by the modernity and by Estado
Novo in the symbolic representations of women. The analysis is focused on reports, news,
photographs, columns, publicity and advertisements published by the magazine O Cruzeiro
from 1928 to 1945. This research attempts to understand how Assis Chateubriand created
O Semanário, one of the most read magazines, in an intense urbanization period which
gave Brazil some modernity atmosphere. Having the pages of that magazine as a basic
source, through several readings that take into account the speech analysis and consider
the editorial line of O Cruzeiro, besides the bibliography in the journalism areas and the
history of symbologies and representations, it investigates women’s history from the idea
of Brazil, the country, which the magazine created to represent them in the 17 years
selected for the study.It is claimed that this was a history full of signs from an imaginative
person that incited and moved the Brazilian readers, but above all, influenced fashion,
created norms and even concepts, in an intentional modernity propagation inspired by
Hollywoodian dictates. Therefore, it makes it possible to understand that the magazine
transmitted a false modernity which replaced the female social and domestic submission
with the beauty and consumption doctrine.
Palavras-chave: Estado Novo, O Cruzeiro magazine, Modernity, History of the Ideas,
Journalism, History.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Capa 1929.....................................................................................................12
Figura 2 Capa O Cruzeiro..........................................................................................37
Figura 3 Coluna “Dona” de O Cruzeiro .....................................................................41
Figura 4 Madame Chiang Kai.....................................................................................41
Figura 5 Capa O Cruzeiro...........................................................................................45
Figura 6 Graça saúde e beleza.....................................................................................61
Figura 7 “Vênus de Milo”...........................................................................................74
Figura 8 Coluna “As garotas”.....................................................................................86
Figura 9 As mais belas do mundo misses universo e a propaganda do sabão “Lux” .97
Figura 10 Viagem presidencial ao Prata e Beleza e amor .........................................102
Figura 11 Só a Ford oferece........................................................................................105
Figura 12 Cozinhas modernas.....................................................................................118
Figura 13 Documento para a História......................................................................... 144
Figura 14 A queda de Vargas......................................................................................152
Figura 15 Samaritana Brasileira..................................................................................158
Figura 16 Margarida, a falsa espiã..............................................................................162
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................09
1 O PERFIL MODERNO DE O CRUZEIRO NAS REPRESENTAÇÕES
SIMBÓLICAS DAS MULHERES ................................................................................22
1.1 A revista dos arranha-céus: da fama à ruína ..........................................................22
1.2 Quatro milhões de leitores e a transformação do jornalismo brasileiro.................29
1.3 Rostos mascarados: o imaginário feminino de O Cruzeiro ...................................37
1.4 O perfil feminino de O Cruzeiro............................................................................45
1.5 Sob a maquiagem um universo a descobrir ...........................................................57
2 A MULHER MODERNA DA BELLE ÉPOQUE HOLLYWOODIANA........................66
2.1 O Cruzeiro e os desafios de um modelo de comunicação
principiante da modernidade..................................................................................88
2.2 A sutileza dos símbolos e da beleza.......................................................................99
2.3 O esforço modernizador e a propaganda como instrumento
para alcançar o público feminino...........................................................................113
3 ANOS DE TENSÃO E CHUMBO, O PERFIL POLÍTICO DA MULHER EM O
CRUZEIRO ...................................................................................................................137
3.1 Voto feminino: uma conquista que vence o preconceito .........................................137
3.2 A mulher na Revolução de 1930..............................................................................143
3.3 Acertando os ponteiros: a renúncia de Vargas.........................................................153
3.4 Uma vítima da guerra: Margarida, a falsa espiã ......................................................159
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................168
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................176
11
INTRODUÇÃO
Narrar aspectos sobre a história do Brasil de 1928-1945 pelo viés das páginas de O
Cruzeiro, meio de comunicação que polemizou, escandalizou e emocionou o leitor
brasileiro, além de ditar modas, normas e até conceitos, num período em que o país cada
vez mais se urbanizava e a sociedade passava por transformações, é contribuir com a
reconstituição de uma parte da história cultural brasileira. É também ampliar os estudos
específicos sobre o imaginário feminino, sobre a história das mulheres, levando em
consideração uma fonte pouco explorada, que tinha uma linha editorial definida como
moderna desde o seu surgimento, em 10 de novembro de 1928.
A revista que divulgou as mulheres brasileiras das camadas mais privilegiadas da
sociedade priorizou temas como comportamento, moda, política e possibilitou-nos uma
pesquisa histórico-jornalística. Definimos, então, o período de estudo como a belle epoqué
hollywoodiana, porque nessa época o imaginário feminino mostrado por O Cruzeiro era de
um mundo glamoroso. Era uma realidade fantasiada a partir de informações vindas em
abundância dos estúdios da capital do cinema mundial, que estimulavam, as moças e
senhoras a se espelharem nas estrelas de Hollywood, as quais usavam cosméticos, belas
roupas, tinham novas idéias e conquistavam a fama e o prestígio social. Mas foi sobretudo
através da propaganda de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam a idéia de
uma nova mulher, agora mais consumista, que a revista vendia o sonho de mudanças.
Para as mulheres divulgadas pela revista, as capas eram as vitrines. A cada edição,
lindos rostos, maquiados segundo os padrões da época, enchiam as páginas em ilustrações
e fotos, acompanhadas de relatos pitorescos sobre sua intimidade, mesmo que não fossem
estrelas do rádio ou do cinema. Bastava marcar presença em eventos sociais, como bailes e
salões de festas e em atividades esportivas ou beneficentes, para alcançar algum espaço
(centímetros de fotos e textos nas páginas da revista) de renome e glória. Em média,
12
dedicavam-se no semanário aproximadamente 50% das páginas para assuntos relativos ao
imaginário feminino, que não compunha apenas um perfil feminino, mas vários perfis. No
decorrer do estudo a revista vai incorporando as páginas à fotografia, a caricatura, a
publicidade, os desfiles e colunas de modas, as colunas especializadas nos assuntos
femininos, os artigos, as reportagens e as diversas matérias avaliadas neste trabalho no
período entre 1928, ano em que O Cruzeiro foi criado, e 1945, uma das fases mais
complexas da história brasileira, no âmbito internacional, do fim da segunda guerra
Mundial e, no nacional, da deposição do presidente Getúlio Vargas.
O Cruzeiro, foi um veículo de comunicação que contribuiu com mudanças, na parte
gráfica adotou técnicas pouco conhecidas no país, especialmente com a rotogravura e no
fazer jornalístico, implementou a reportagem. Intencionalmente criado para ser porta-voz
de uma nova ordem: a modernidade nacional, surgiu para atingir todo o território brasileiro
e dar uma idéia de Brasil-único e atual, numa correspondência de intenções entre o seu
fundador e proprietário, Assis Chateaubriand, e o presidente Getúlio Vargas, que, com
propósitos políticos definidos, concedeu empréstimo para a criação do magazine.
Interessava, então, politicamente, a Getúlio mostrar que o Brasil estava se modernizando.
A revista teve também toda essa tecnologia a serviço da construção da “nova
mulher”, mas que não representava a realidade da maioria das brasileiras que viviam em
condições sociais precárias e eram analfabetas. Ela mostrava uma imagem relacionada às
mudanças de um país que despia suas mulheres das saias longas e as urbanizava com
biquínis, blush e pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar o comportamento feminino com
novas formas de vestir e de se mostrar para a sociedade. Essa imagem que incluía a
utilização da maquiagem e de produtos femininos de beleza como símbolo de moderno e
novo ilustravam as capas desde a primeira edição. Apresentava-se, então, não apenas a
primeira revista moderna do país, mas um novo meio de retratar o universo feminino,
objeto de estudo por nós delimitado neste trabalho.
Para compreender colunas como “As Garotas”, “Donna”, “Dona na Sociedade” e
outras, além de reportagens, fotos, matérias e uma variedade de publicidades,
perguntamos: como O Cruzeiro representou o imaginário feminino no período de 1928 a
1945 e como mostrou as mudanças trazidas pela modernidade brasileira nas representações
simbólicas das mulheres? Procuramos, dessa forma, entender o universo feminino
brasileiro através da revista. Como é impossível chegar a um percentual, ou, pelo menos,
13
uma estimativa do número de leitoras da revista em decorrência da falta de dados
1
,
fazemos algumas inferências envolvendo os números dos exemplares da revista, que
chegava a 91 mil exemplares, segundo mostra a edição de 16 de junho de 1944. Podemos
deduzir que era um número considerável de leitores, já que no país, nesse período, só a
população feminina chegava a 20.622.227. Dessas, 19% estavam no mercado de trabalho
e, pelos indicativos da revista, a maioria das suas leitoras não fazia parte do operariado
nacional; eram donas de casa, que poderiam até ser também trabalhadoras, mas
pertencentes às elites empresariais, políticas, econômicas e militares, principalmente dos
grandes centros urbanos. Segundo a revista, era um público-leitor de várias partes do país e
até do exterior, já que o magazine circulava na Europa e em vários países da América
Latina. Isso demonstra que a classe leitora alvo de O Cruzeiro eram as mulheres das
camadas mais elevadas da população, especialmente as integrantes das famílias das classes
médias e altas, da burguesia. Conforme Boris Fausto, seria a população civil urbana, que
trabalha por conta própria, constituída de empresários, comerciantes, funcionários
públicos, profissionais liberais, industriais, entre outros.
2
Esse seria um universo da
minoria da população feminina.
3
Buscamos ainda o entendimento do universo feminino através de um perfil político
da mulher representada na revista, um tema que não mencionam posições sobre
reivindicações e aspirações políticas femininas, mas que cita fatos da participação das
esposas dos revolucionários, por exemplo, ajudando com remédios e comidas os soldados
na Revolução de 1930. Não mostra sequer a posição feminina acerca do voto, que gerou
polêmicas no período. A revista deixa transparecer uma posição clara: as mulheres são
incapazes de escolher bem seus representantes, não há como conciliar a maternidade com a
política. São posições defendidas em artigos masculinos e que serão estudados no capítulo
três, mostrando que o perfil político feminino foi construído por homens.
1
Buscamos informações junto ao IBGE (décadas de 1930/1940), porém não conseguimos obter o
percentual de mulheres eleitoras nesse período. Verificamos que, no ano de 1934, na eleição para o
Poder Legislativo federal, foram 7.348.54 eleitores, entre homens e mulheres; em 1933, esse número
ficou em 1.466.700 eleitores e, em 1947, passou de sete milhões. (IBGE/ Passo Fundo e Porto Alegre).
2
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 54.
3
Para termos uma idéia do percentual da população trabalhadora, observamos os índices de mulheres
que representavam a força feminina de trabalho em 1940, que chegava a 2,8 milhões para uma
população que passava de quarenta milhões de pessoas. Um percentual de apenas 19% das mulheres em
atividades no país estava concentrado no setor terciário, em atividades ligadas à educação, a serviços de
saúde, serviços domésticos e comunitários, um índice que representa uma minoria já que a população
feminina do Brasil nesse período era de 20.622.227 e de 20.614.088 homens. Até a década de 1930, por
causa da imigração, a população masculina era maior que a feminina. Em 1872, no primeiro censo,
51,5% eram homens e 48,5%, mulheres; na década de 1940, a população feminina começou a
predominar. A PARTICIPAÇÃO da mulher no mercado de trabalho no Brasil. Disponível em:
<http://www.frigoletto.com.br/geopop/mulher.htm>. Acesso em: 25 mar. 2003.
14
O principal propósito deste estudo é analisar as mudanças trazidas pela modernidade e pelo
Estado Novo de Getúlio Vargas às representações simbólicas sobre as mulheres. A análise
concentrou-se em reportagens, notícias, fotos, colunas e propagandas da revista de 1928 a
1945. Com essa delimitação temporal procuramos também entender melhor os motivos das
táticas utilizadas por Assis Chateaubriand para criar O
Cruzeiro, num período em que boa parte da população
brasileira deixava o meio rural e avançava para as cidades,
quando as fábricas se espalhavam e costumes agrários iam
se esgotando, dando lugar a formas de vida urbana e ares de
modernidade. Era o Brasil com altos índices de
analfabetismo que contava com uma revista de grande
tiragem, chegando a 700 mil exemplares na década de 1960
e com um público de quatro milhões de leitores.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 1 Capa 1929 O Cruzeiro
4
A análise detém-se ainda no pensamento de O Cruzeiro mostrado pela sua linha
editorial, que priorizava temas ditos “modernos”. São fatos contados a partir da idéia de
Brasil que a revista criou e desses, nós recortamos 17 anos para estudar neste trabalho. O
estudo procura avaliar a importância histórica de fatos contados a partir de padrões de
comportamentos, de visões explicitas e implícitas, mostradas pelas reportagens e colunas
sobre o tema “mulher”.
Na pesquisa deparamo-nos com uma multiplicidade de linguagens, expressas nas
dezenas de páginas da revista através da fotografia, da rotogravura, das publicidades, dos
textos jornalísticos, das crônicas, das novelas, das colunas especializadas dirigidas ao público
feminino, todas com conteúdos carregados de simbologias. São linguagens que contribuem
com a transformação do fazer jornalístico e que se utilizam intensamente da imagem,
precedendo uma era que estava por chegar e que, em poucos anos, viria a mudar a linguagem
da comunicação, através da implantação da televisão, em 1950. Como já dissermos O
Cruzeiro foi um dos primeiros impressos a implementar a reportagem e, por meio dela, deu a
jornalistas o status de estrelas, como ocorreu com David Nasser, no texto, e Jean Manzon, na
fotografia, os quais contaram inúmeros acontecimentos sobre os mais variados temas em
grandes reportagens.
4
O Cruzeiro. 1º set. 1929.
15
Para alcançar os propósitos do presente estudo buscamos apoio em um conjunto de
leituras nas áreas do jornalismo e da história, procurando estudar a revista O Cruzeiro de
ambos os pontos de vista. A análise tem como base exemplares que circulavam uma vez
por semana no Brasil e no exterior, material encontrado em dois importantes arquivos do
país, em Porto Alegre
5
e em Belo Horizonte
6
. Para compreender os aspectos históricos das
décadas de 1920, 1930 e 1940, consultamos fontes bibliográficas de autores
7
que retratam
o Brasil nesse período.
Os aspectos aqui apresentados são interpretados à luz do referencial bibliográfico,
bem como dos três passos operativos: a heurística, a crítica e a interpretação.
8
Pela
heurística, buscam-se as fontes, lança-se novo olhar, a fatos, experiências. Foi lendo,
fazendo anotações, separando e fotocopiando o material em partes e até em páginas
inteiras
9
, além de fotografar capas, publicidades e textos, que por trinta dias transformamos
o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, em Porto Alegre, na principal
fonte de pesquisa deste trabalho. Foi nesse espaço que conhecemos mais de perto o
semanário em estudo.
Depois disso, faltavam ainda para completar a pesquisa e que muito nos interessava
para o seu prosseguimento, algumas colunas, matérias e publicidades, então solicitamos a
Gerência de Documentação e Informação do Sistema Estaminas de Comunicação (Gedoc) em
Minas Gerais
10
o envio de 162 páginas, especialmente da primeira edição da revista, em 1928,
e das páginas da coluna “As Garotas”. Esse material permitiu-nos obter uma visão mais
completa das posições nela defendidas e da sua linha editorial, além de ter sido decisivo para o
5
Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa em Porto Alegre, onde se encontra boa parte dos
exemplares da revista, de 1929 a 1973 e de 1982 a 1983, quando foi realmente extinta. MCS HJC Rua
Andradas, 959, Porto Alegre. Telefone: (51) 322 44252.
O Cruzeiro circulou de dezembro de 1928 a 1974. Um dos livros que contam um pouco da sua história
é O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro, de Accioly Neto, organizado por Heloísa Seixas. A
revista era vinculada aos Diários Associados, de Assis Chateaubriand (ver maiores informações no site
<www.igutenberg.org/Biblio24.html>. Baseamo-nos ainda nas obras de Fernando Morais, Chatô o rei
do Brasil,e de Luiz Maklouf Carvalho, Cobras criadas, autores que resgatam historicamente a trajetória
da revista, do maior empresário de comunicação no período e de personagens como David Nasser e
Jean Manzon, uma dupla de jornalistas muito conhecida do país de 1930-1970.
6
Gerência de Documentação e Informação do Sistema Estaminas de Comunicação (Gedoc), junto ao
jornal Estado de Minas Área de Documentação e Informação Avenida Mem de Sá, Santa Efigênia,
Belo Horizonte, Minas Gerais. No local encontra-se a coleção completa da revista desde o seu primeiro
exemplar. O material disponível para pesquisa é microfilmado.
7
Principalmente tendo como base autores: Boris Fausto e Thomas Skidmore, entre outros.
8
DIEHL, Astor Antônio. Do método histórico. 2. ed. Passo Fundo: UPF, 2001. p. 35.
9
O que resultou em um arquivo de cinco CD-ROM com páginas de O Cruzeiro e, ainda, em vinte
disquetes com fotografias digitalizadas com imagens de capas, matérias e publicidades, além de
162 cópias xerográficas de algumas páginas dos anos de 1928-1945, compradas do Arquivo do
Estado de Minas.
10
Gerência de Documentação e Informação do Sistema Estaminas de Comunicação, junto ao jornal
Estado de Minas Área de Documentação e Informação. Telefones (31) 348 28327 / 348 28328.
16
fechamento do estudo. A partir daí e com as leituras feitas, realizamos uma segunda avaliação
para organizar o material em amostragem e separá-lo conforme o foco do estudo centrado nas
mulheres, levando em conta as múltiplas linguagens da revista, para, então, fazer as análises e
confrontações com a bibliografia, principalmente em relação aos aspectos históricos e
jornalísticos do período.
É importante ressaltar que, muitas vezes, as páginas da revista conduziram este
trabalho por caminhos que abriram novas possibilidades de estudos, além de muitas
informações falarem por si, evidenciando os principais objetivos do estudo. A análise não
se deteve apenas ao que estava explícito, mas abrangeu o oculto, o implícito nas
entrelinhas, nas pistas deixadas pela própria revista em seus artigos, propagandas,
editoriais, nas próprias matérias, reportagens, fotos e colunas, no período de 1928 a 1945.
A linha editorial impunha posições modernas e que reforçava o nacionalismo brasileiro,
esta constatação foi fortalecida por Accioly Netto, que trabalhou na revista e escreveu
sobre a história e os jornalistas de O Cruzeiro
11
. Para entender melhor o significado dessas
análises procuramos explicações em Roger Chartier. Segundo ele são leituras que exigem
visíveis sinais de identificação, precisam ser decifradas, numa compreensão que exigem
várias outras além daquilo que foi pretendido pelo autor
12
e que representa trazer à luz da
história aqueles que ficaram fora do pensamento histórico. Para isso é preciso também
compreender a epistemologia do discurso racionalista, o que para Astor Diehl, “os métodos
generalistas tradicionais estão em crise, ou até mesmo, com seus dias contados.”
13
Ainda:
O mundo das experiências reconstruídas é dos fragmentos, das identidades
setoriais das histórias individuais e dos individualismos. A historiografia hoje
representa a história dos fracos, da fraqueza humana, dos sujos, das resistências,
daqueles que foram jogados, historiograficamente, na irracionalidade. Esse fato
representa um desafio ao historiador e ele não pode ficar insensível a esse fato,
sobretudo, porque esse aspecto representa também a possibilidade de relacionar
o espaço das experiências cotidianas com o horizonte das expectativas através
do próprio conhecimento histórico.
14
11
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina,1998. E ainda
em Chatô o rei do Brasil, de Fernando Morais, e Cobras criadas, de Luiz Maklouf Carvalho.
12 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difek/ Bertrand
Brasil, 1990. p. 130-131.
13
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc,
2002. p. 203.
14
Ibid., p. 203-204.
17
Por meio da crítica procura-se “garimpar as informações sobre o passado”, as quais
“devem ser testáveis e seguras sobre o que, quando, como e, em determinadas situações,
também o porquê de o fato ter ocorrido,”
15
considerando ainda, as características
metodológicas dos processos de trabalho da pesquisa, como a crítica externa, que “examina o
valor daquilo que a fonte diz”
16
. Pela crítica interna, busca-se “examinar a qualidade das
informações extraídas das fontes na perspectiva do tempo presente, possibilitando desta forma,
uma postura mais objetiva”
17
. A interpretação “é a operação de pesquisa histórica que une a
intersubjetividade testável, componente dos fatos no passado, com a dimensão do tempo. Essa
relação pode ser representada, a partir de então, como histórica.”
18
A interpretação tem como base a análise do discurso, levando em consideração a
linha editorial da revista, com as suas claras pretensões de fazer do Brasil um país
moderno. Era, contudo, uma modernidade nacional imposta e apoiada claramente pelo
governo do presidente Getúlio Vargas, que se utilizava intensamente da propaganda,
inclusive tendo criado um Departamento de Imprensa e Propaganda para se fazer aceito. A
revista contribuiu com a afirmação da política modernista e nacionalista de Vargas. Com
as condições criadas pelos projetos políticos do governo, O Cruzeiro abriu espaço para a
propagação não apenas dos seus feitos, mas das convicções de também transformar o país
em moderno. A partir dessa consonância de interesses entre governo e revista, divulgava-se
o novo, o ideal, o moderno e buscava-se a transformação de comportamentos, sobretudo do
público feminino.
Dessa forma, a revista procurava impor à sociedade e, especialmente, às mulheres
novos padrões de comportamentos, através de uma infinidade de formas, como moda, roupas,
eletrodomésticos, maquiagens, cinema, concursos de beleza, esporte, registros das fabulosas
festas sociais, mas, sobretudo, através das novidades em vários setores. O “novo”, que ao
mesmo tempo não alterava o “velho”, vinha não para modificar a realidade, mas para servir de
pano de fundo para as ânsias de liberdade e de progresso femininos que pipocavam pelo país,
pelo mundo; para escamotear uma situação social de muitas reivindicações de direitos,
sobretudo, para manter inalterados os padrões familiares e sociais em relação às mulheres e a
suas vidas domésticas de submissão aos pais e aos maridos. No entanto, o que a revista não
queria perder de vista era o potencial econômico de consumo dessa importante fatia de
mercado que as mulheres representavam.
15
DIEHL, Astor Antônio. Do método histórico. 2.ed. Passo Fundo: UPF, 2001. p.38.
16
Ibid.
17
Ibid.
18
Ibid., p.41.
18
Além dos exemplares da revista, o presente trabalho vale-se de uma história que
também observa o imaginário da sociedade, do cotidiano, das experiências, das criações,
das produções e da vida de homens e mulheres que nem sempre estiveram presentes na
grande história oficial. Para responder melhor aos questionamentos aqui trazidos,
procuramos trabalhar na linha das simbologias e das representações, que são derivadas de
uma história cultural e social. A história social, no entendimento de Roger Chartier,
identifica o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
social é construída, pensada, dada a ler.
19
Essa tarefa exige um trabalho de classificação,
divisão e delimitação que organize a apreensão do mundo social como categorias de
percepção e de apreciação do real.
Três vertentes caracterizam a história social: a inglesa, com o estudo das famílias
de mineiros, incorporada à história do cotidiano; a alemã, vinculada mais aos movimentos
sociais, e a francesa, vinculada à demografia. São formas novas que têm incorporado o
pensamento histórico.
A preocupação com o tempo deu espaço para as vivências de pessoas atingidas
pelas transformações histórico-objetivas ou pelos processos de modernização.
20
Agora são
a antropologia e a etnologia que alimentam a história, e com preocupações com tempos e
espaços da vida humana que não se enquadram nas concepções genéticas do surgimento de
sociedades modernas.
21
A história social tende à totalização e à uniformização dos
acontecimentos. É uma história que reconstitui um processo a partir do objeto estudado.
Pela história das mentalidades, encontra-se uma possibilidade de pensar o social, de
estudar o que está mais próximo de nós e de contextualizá-lo numa realidade maior, tarefa
essa que desafia as dificuldades de lidar com o imaginário coletivo. As mentalidades
apresentam-se dissimuladas, estratificadas, objeto de uma história por etapas.
22
São
fragmentos de uma história de experiências produzidas e pensadas, que, ao serem
relacionadas com o passado, formam um panorama próximo da realidade do cotidiano e
daquilo que está na mente das pessoas. Cada sociedade tem uma cultura diferenciada. O
estudo dos aspectos da vida de uma pessoa, ou de um povo, pode ser observado pela
história cultural, que vai considerar também o imaginário e a mentalidade. A história das
mentalidades, por sua vez, está dentro da cultural e tem preferências por assuntos ligados
19
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand
Brasil, 1990. p. 16-17.
20
DIEHL, Astor Antônio. A propósito do texto “Epistemologia, texto e conhecimento”. Diálogos, [s.l.],
DHI/UEM, v. 3, n. 3, 1999.
21
Ibid., p.39.
22
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 323.
19
ao cotidiano e às representações. São microtemas que vão desde amor, morte, família,
criança, bruxas, loucos, mulher, homossexuais, o corpo, o modo de vestir, de chorar, de
comer, de beijar e outros.
23
Essa história de fragmentos, de um pequeno percentual de mulheres, com aspectos
amplos e dimensões grandiosas, interessa a este trabalho. Interessa ainda o fato de O
Cruzeiro ter surgido num período em que existiam poucos veículos de comunicação
impressos com padrões modernos e com circulação por todo o território nacional e, ainda,
por alguns países da América Latina. A revista foi referência não só pelos temas que
levantava, representando, dessa forma, o pensamento da elite política, social, econômica e
religiosa da época, mas também pela maneira como diagramava e editava suas páginas,
tendo sido pioneira no uso do fotojornalismo.
Com a análise dos exemplares da revista no período em estudo, procuramos
entender também as idéias e as posições de um grupo que a revista representava: a
sociedade da classe dominante do Brasil daqueles anos, ou seja, políticos influentes,
governos, militares, Igreja e uma boa parcela de industriais, produtores rurais e
empresários, além de um grupo de intelectuais empenhados na idéia de um país moderno,
entre eles Portinari, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Humberto de Campos, Austregésilo de
Athayde. A escolha das reportagens, fotos, colunas e textos para análise na pesquisa têm
por base o significado que o fato abordado continha para os leitores da revista,
especialmente aqueles que pertenciam a uma camada privilegiada da sociedade. É uma
análise que pergunta à fonte os motivos pelos quais aquela publicação estaria ali, o que
aquelas informações significariam para a sociedade da época, bem como para os interesses
do próprio semanário, que tinha bem evidenciadas as suas preferências.
É um período em que se abrem espaços para os registros de consumidoras de
cosméticos e eletrodomésticos, ganhadoras de concurso de beleza, seguidoras da moda e
dos padrões hollywoodianos de ser, pertencentes a uma elite social que promovia festas
fabulosas e que ocupa as colunas sociais. São acontecimentos de um período significativo
para o país e para elas, afinal, foi na década de 1930 que se concedeu às brasileiras o
direito de votar.
Observamos, então, as mudanças do país apresentadas pela revista em temas que
aparecem em diversos espaços e momentos históricos do período, que se concentram mais
no final da década de 1930 e início da de 1940, especialmente com a variedade de produtos
23
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, Ciro F. Domínios da
história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 137.
20
de utilidade doméstica e de higiene e beleza. Vários textos deixam transparecer as reais
intenções de mostrar que a sociedade brasileira estava alcançando a modernidade através
das transformações das cidades e do surgimento de uma nova forma de vida, agora mais
urbanizada, moldando comportamentos. A transformação que, apesar de ainda lenta, era
vendida pela revista como uma realidade já existente. Vejamos um trecho ilustrativo do
que afirmamos:
Nas cidades-crianças vivem os homens que ainda não se despenderam da terra.
Cujo ser, como as raízes e as frondes, estremece ainda à pulsação profunda das
energias telburicas. [...]
Sob os seus monumentos gigantescos, sob as suas babéis de dezenas de andares,
o homem viverá esmagado como sob escombros, diminuindo no seu destino e na
significação profunda da sua existencia sobre a terra.
24
A modernidade, segundo Giddens, tirou a sociedade das formas de vida tradicionais.“Tanto
em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as transformações envolvidas na
modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos
precedentes.”
25
É um ritmo de mudança rápida e extrema que, segundo o autor, estabelece ligações
sociais em todo o mundo, com impactos abrangentes e dramáticos.
Sobre o plano extensional, elas serviram para estabelecer formas de interconexão
social que cobrem o globo; em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas
das mais íntimas e pessoais características de nossa existência cotidiana.
Existem, obviamente, continuidades entre o tradicional e o moderno, e nem um e
nem outro formam um todo à parte; é bem sabido o quão equivocado pode ser
contrastar a ambos de maneira grosseira. Mas as mudanças ocorridas durante os
últimos três ou quatro séculos um diminuto período de tempo histórico foram
tão dramáticas e tão abrangentes em seu impacto que dispomos apenas de ajuda
limitada de nosso conhecimento de períodos precedentes de transição na
tentativa de interpretá-las.
26
O século XX, segundo Anthony Giddens, é considerado o da guerra, com as
iminentes perdas de muitas vidas, conflitos militares sérios e ameaças de confronto nuclear.
24
O Cruzeiro, 7 set. 1929. p. 2. É possível que expresse a opinião da revista pelo fato de estar em página
nobre, abaixo do expediente, como um editorial.
25
GIDDENS. Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1991.
p.14.
26
Ibid.
21
O período é definido como o de um mundo carregado e considerado perigoso, realidade que
forçava “a provar a suposição de que a emergência da modernidade levaria à formação de
uma ordem social mais feliz e mais segura.”
27
Esse temor às situações problemáticas e
conflituosas ajudaram a formar no século que passou a base do lado obscuro da
modernidade, uma modernidade emaranhada, que O Cruzeiro apregoava como o novo, como
a alternativa para as mulheres alcançarem as mudanças; para tanto, era preciso consumir e
adotar novos comportamentos. Era uma modernidade que não nascia do âmago do real, mas
da concepção da revista ao adotar e anunciar padrões modernos de comportamento.
A partir do confronto de informações da revista com as obras bibliográficas de apoio e da
crítica às fontes, fomos conduzindo metodologicamente o trabalho. A observação levou em conta
a percepção do real, o que, segundo Loiva Otero Félix
28
, “realiza-se através da contemplação” e
permite “uma reflexão sobre os fatos/dados ou conjuntos dos mesmos, tendo como base um
processo de elaboração teórica”. Essa elaboração precisa “ver com distanciamento, à elaboração
mental, abstrata, que elimina as particularidades e atinge a configuração geral, através de
conceitos (intelectivos) que se tornam instrumentais, operacionais.”
29
Para Loiva Félix, o
distanciamento formal do objeto é que vai permitir a “abstração e a conceituação”. Já a
construção teórica vai se fundamentar na reflexão e, a partir daí, vai “produzir uma nova forma
de abordagem e um novo conhecimento”.
30
Tomando por base esse referencial bibliográfico, procuramos encontrar algumas
respostas para a pesquisa, as quais levaram em conta a diferenciação entre teoria e método,
apesar de ambos “estarem sempre intimamente ligados”, uma ligação explicada por Loiva
Félix e que vai produzir um novo conhecimento:
A resposta é uma só: através de instrumentos intelectivos (mentais-conceitos) e
materiais (“documentos” e técnicas: recursos e instrumentos) e materiais
(“documentos” e técnicas: recursos e instrumentos) que nos permitam definir
caminhos, trajetórias, nos quais possamos harmonizar teoria-metódo e conceitos na
aplicação ao empírico (ao objeto) e que deverá produzir um novo conhecimento
como resultado.
31
27
GIDDENS. Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista,
1991. p. 19.
28
FÉLIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: Ediupf, 1998. p. 69.
29
Ibid.
30
Ibid.
31
Ibid., p.73.
22
Com o propósito de obter uma melhor compreensão dos objetivos, o presente
estudo é dividido em três capítulos.
No primeiro capítulo, procuramos analisar a forma como a revista passa a idéia de
Brasil moderno e os meios utilizados para mostrar a modernidade. Aqui nos valemos da
análise de textos, de imagens e fotografias, um conjunto de gêneros jornalísticos que
expressam o imaginário feminino no magazine. Também mostramos que a revista ganhou
importância no Brasil e em vários países do exterior, como Portugal, Chile, Argentina e
México e teve um dos maiores índices de tiragens já registrados no país que tinha altas
taxas de analfabetismo, principalmente nas décadas de 1930-1940.
Iniciamos, então, contando um pouco da história de O Cruzeiro, a sua aproximação
com o poder, especialmente com o governo de Getúlio Vargas. Buscamos aqui
compreender a realidade daqueles anos e o modo como as mulheres eram vistas e se viam,
a fim de entender as posições mostradas pelas colunas, ora inovadoras, ora conservadoras.
No segundo capítulo, o objetivo é compreender o universo feminino mostrado por
O Cruzeiro, tomando por base reportagens, publicidades e colunas e fazendo uma relação
com a realidade do país nas décadas de 1930-1940. Objetivamos, dessa forma,
compreender as modificações que ocorreram com as mulheres naquele contexto histórico,
os fatos que marcaram o período envolvendo muitas lutas femininas por direitos, além de
identificar qual foi o papel da revista diante das reivindicações femininas num período em
que o país passava por transformações em decorrência da industrialização.
Procuramos identificar o apelo glamouroso de um universo feminino mostrado por
O Cruzeiro, que se valia de modelos de comportamentos e de moda do cinema americano.
Discutimos o culto à beleza, o sonho de consumo feminino com a promessa de
transformação, luxo, beleza e conforto, baseados nos padrões hollywoodianos de ser e que
mostram uma época que o mundo moderno tinha em Hollywood uma das fontes de
inspiração. O cinema era o meio de divulgação desses novos padrões, assim como hoje
acontece com as novelas, onde as estrelas servem de referência para inserir no mercado
consumidor produtos, como roupas da estação, estilos e formas de comportamentos. É
seguindo esses vestígios impregnados de símbolos que pretendemos delinear o panorama
moderno que transparece em O Cruzeiro.
Também analisamos o incentivo às práticas esportivas como forma de moldar o
corpo e o padrão de beleza, principalmente através da ginástica e da natação femininas.
Discute a influência sofrida pela revista através de uma comunicação de massa que nesse
período se propagava pelo mundo enaltecendo a publicidade. Além disso, procuramos
23
mostrar o significado das representações e do imaginário para a compreensão de códigos e
signos expressos na revista. O sonho de beleza vendia produtos, roupas da alta costura
parisiense e americana e muitos equipamentos domésticos que surgiam para facilitar a
atividade de casa, referendando a idéia de modernidade.
Neste capítulo, o estudo detém-se com mais ênfase nas colunas especializadas
dedicadas às mulheres, como “Donna”, “Dona na Sociedade”, “As Garotas”, entre outras.
Aqui também revelamos a linha editorial adotada por O Cruzeiro para mostrar, entre os
perfis femininos, dois tipos evidenciados de mulheres: as modernas e as conservadoras.
São diferenciações que aparecem em várias páginas das edições, algumas com mulheres
felizes, belas e modernas, que consomem, além de cosméticos, eletrodomésticos, para
facilitar as tarefas do lar. As conservadoras também têm espaço para mostrar a sociedade, a
educação dos filhos e para expressar o seu tradicional pensamento sobre os impactos das
transformações da sociedade da época.
No terceiro capítulo, mostramos o perfil político feminino visto pelos olhos
masculinos, já que as belas mulheres que saem nas capas significam apenas um chamariz
atrativo para os olhos do leitor na banca, além de esconderem as verdadeiras mazelas pelas
quais passava a sociedade naqueles anos. Um exemplo é a edição especial sobre a
Revolução de 1930, cuja capa traz uma bela mulher com uma coroa de espinhos na cabeça
e segurando entre os dedos soldados e bandeiras, é a imagem da mulher redentora.
Pretendemos ainda contextualizar um pouco o período delimitado (1928-1945), que é
muito rico em fatos políticos, mostrando uma história do Brasil pelas páginas da revista.
Aqui o que chama a atenção é a ampla publicidade dedicada ao presidente Getúlio Vargas
e, mais tarde, o desinteresse da revista, com o governo de Vargas, abrindo espaços desta
forma e apoiando os opositores do governo que queriam o seu afastamento.
Para ilustrar melhor o apoio irrestrito da revista a Getúlio Vargas, analisamos a
publicação especial de cem páginas sobre a Revolução de 1930, denominada por O
Cruzeiro como a “Revolução Nacional” e veiculada em 1931, mostrando, ainda, como a
revista tirava proveito dessa relação estreita com o poder. Procuramos identificar, segundo
a revista, o papel das mulheres na política e quais eram as que ganhavam espaços; de que
forma O Cruzeiro mostrou algumas das conquistas alcançadas por elas, como o direito ao
voto em 1934.
24
CAPÍTULO 1
O PERFIL MODERNO DE O CRUZEIRO NAS REPRESENTAÇÕES
SIMBÓLICAS DAS MULHERES
1.1
A revista dos arranha-céus: da fama à ruína
Por quase meio século, em que emocionou e escandalizou o leitor brasileiro, o
jornalismo viu nascer, crescer e morrer uma das mais importantes revistas que o país já
teve: O Cruzeiro. Nos 46 anos que circulou, inclusive no exterior, em países como
Portugal, Argentina, Chile e México, a revista foi considerada a maior da América Latina,
chegando a uma tiragem de setecentos mil exemplares na década de 1960, considerado o
período-auge do semanário. Foi um dos periódicos que consolidou muitas práticas do
jornalismo, como a grande reportagem e o fotojornalismo. Foi ainda uma porta para o
surgimento de vários nomes, principalmente na comunicação, com David Nasser, e na
fotografia, com Jean Manzon, sem falar na literatura, na política e nas colunas, variadas e
especializadas.
Foi um veículo que teve a colaboração de grandes ilustradores, pintores, escritores e
caricaturistas, entre os quais Portinari, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Djanira, Ismael Nery,
Enrico Bianco, Gilberto Trompowski, Anita Malfatti, Millôr Fernandes, Ziraldo, Carlos
Estevão, Alceu Penna, Zélio (irmão de Ziraldo). Os literatos também tinham nela espaço
para escrever, como Humberto de Campos, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico
Veríssimo, Franklin de Oliveira, Austregésilo de Athayde e Manuel Bandeira.
A revista, ao mesmo tempo que expressava o pensamento intelectual da época,
utilizava-se desses pensadores para divulgar a sua própria ideologia. Suas posições, que
vamos mostrar no decorrer deste trabalho, não expressam o pensamento de toda a
25
intelectualidade brasileira do período, mas de parte dela. É uma intelectualidade que com a
modernidade ampliou-se incrivelmente em todo o mundo, como mostra Antonio Gramsci:
Foram elaboradas, pelo sistema social democrático-burguês, imponentes massas
de intelectuais, nem todas justificadas pelas necessidades sociais da produção,
ainda que justificadas pelas necessidades políticas do grupo fundamental
dominante. Daí a concepção loriana do “trabalhador” improdutivo (mas
improdutivo em relação a quem e a que modo de produção?), que poderia ser
parcialmente justificada se se levasse em conta que estas massas exploram sua
posição a fim de obter grandes somas retiradas a renda nacional. A formação em
massa estandartizou os indivíduos, na qualificação intelectual e na psicologia,
determinando os mesmos fenômenos que ocorrem em todas as outras massas
estandartizadas: concorrência (que coloca a necessidade da organização
profissional de defesa), desemprego, superprodução escolar, emigração, etc.
32
Para Gramsci, as revistas “são estéreis se não se tornam a força motriz e formadora
de instituições culturais de tipos associativo de massa, isto é, cujos quadros não são
fechados”
33
. Nas décadas de 1920 e 1930, surgiram no Brasil revistas das mais variadas
posições editoriais, algumas definidas, como O Cruzeiro, que procurava defender o
nacionalismo e a modernidade. Entre 1920 e 1925 surgiram 41 revistas, porém algumas
delas não chegaram a completar um ano de circulação, como foi o caso de Miscellânea, em
1920. De 1925 a 1930, circulavam no país 24 revistas nacionais
34
, a maioria de pouca
expressão e tiragem. Foram publicações específicas, como a Rádio, Vida Domestica ou,
ainda, A Estrada de Rodagem e Boas Estradas, que vieram contribuir com “a manutenção
das raízes e dos valores brasileiros”
35
. Em 1928, surgiu O Cruzeiro, que teve entre os seus
propósitos editoriais, o de estimular a imaginação dos leitores com novidades, através da
ilustração e das formas gráficas de apresentação do texto, além da implementação de
colunas, fotos e ilustrações, que tratavam de assuntos femininos, além de temas que
32
GRAMSCI, Antonio. os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira,
1982. p. 12.
33
Ibid., p. 166.
34
CORRÊA, Thomaz Souto (Ed.). A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p. 234. A obra traz o
registro da existência de 24 revistas de 1925-1929 e mais 14 a partir de 1930, inclusive Família Cristã,
que surgiu em 1934. Entre as citadas até 1930 estão: O Cruzeiro (1
a
fase) 1928-1975; Revista do Globo
1929-1967; Revista do Brasil (2
a
fase) 1926-1927; Revista da Agricultura 1926; Verde 1927-1929;
Mundo Infantil 1929-1930.
35
Ibid.. p. 11. O livro traz um breve histórico das revistas brasileiras desde antes da independência do
Brasil. “E retrata, do ponto de vista da atuação das revistas, a defesa da nossa independência e a busca
de uma identidade nacional”. A obra faz parte das comemorações dos cinqüenta anos da Editora Abril,
hoje uma das maiores do país no mercado editorial de revistas.
26
retratavam a alta sociedade da época, composta pelos políticos, militares e grandes
empresários.
Nenhuma revista do período referido aguçou tanto o imaginário dos leitores com
figuras femininas como a revista em estudo. Desde a sua primeira edição, O Cruzeiro
caracterizou-se por capas com belas figuras de mulheres e priorizou em suas páginas a
beleza e o glamour feminino em detrimento de um conteúdo mais informativo e
interpretativo sobre a realidade do período. Eram figuras que escondiam, por trás do
colorido, dos belos traços desenhados pelos melhores ilustradores e artistas plásticos do
país, uma carga de signos e representações não apenas do imaginário feminino do período,
mas de toda uma época.
O imaginário, aqui, é cheio de códigos, de signos ainda muito pouco considerados
por estudos específicos. Ao nos defrontarmos com as páginas da revista, vemos, uma
possibilidade a mais de estudo para contribuir com a história das simbologias e
representações e à imprensa brasileira. Até porque esse é um período de transformações
bastante significativo, no qual a sociedade atravessava uma fase de efervescência,
passando da forma de vida rural para a urbana, com mudanças comportamentais que se
intensificavam com a industrialização. O semanário trouxe consigo a representação do
poder político-econômico-social dos anos 1928-1945, não servindo apenas aos meios
constituídos, especialmente ao governo de Getúlio Vargas, mas ditando moda,
comportamentos e se intitulando porta-voz de uma modernidade que principiava no país.
Impressionou-nos no decorrer do estudo a proeza que O Cruzeiro conseguiu, ao
longo de 46 anos de circulação, de alcançar tiragens de setecentos mil exemplares
36
num
país que, na década de 1920, quando a revista surgiu, tinha, segundo dados do IBGE
37
,
23.142.248 analfabetos, numa população de 15.443.818 homens e 15.191.787 mulheres.
Já, na década de 1940, ano-limite proposto neste estudo, a população brasileira era
formada por mais mulheres que homens, além de terem aumentado os analfabetos, que
então atingiam mais da metade da população, chegando a 27.735.140. Na década de 1940,
o país tinha 20.614.088 homens e 20.622.227 mulheres. Além disso, segundo o IBGE,
208.570 eram pessoas sem instrução declarada, o que aumentava ainda mais a parcela
36
NETTO. Accioly. O império de pape: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998.
37
Os números apresentados antes da década de 1930, obtidos por intermédio da Agência do IBGE de
Passo Fundo, do IBGE - RJ, não representam a contagem populacional através do censo demográfico,
pois o próprio IBGE surgiu a partir da década de 1930. Mas o instituto tem ainda como números a
população de 1900, de 8.831.002 homens e 8.487.554 mulheres. Este mesmo levantamento aponta que,
em 1900, sabiam ler e escrever 4.385.839 de brasileiros; não o faziam 12.932.717. Em 1920, somente
7.493.357 pessoas sabiam ler e escrever e em 1940, apenas 13.292.605, contra os 27.735.140
analfabetos.
27
daqueles com baixo índice de acesso à leitura no país. E a população brasileira continuava
a crescer com a massa de imigrantes cada vez maior chegando ao país.
Na década de 1930, o Brasil continuou a receber muitos imigrantes, vindos
principalmente da Itália: “Mais de 50 milhões de europeus população global da Itália
hoje deixaram o continente entre 1830 e 1930. Grande parte teve como destino a
América do Norte [...] mas 11 milhões, ou seja, 22% do total, foram para a América
Latina, dos quais 38% eram italianos, 28% espanhóis, 11% portugueses e 3% da França e
Alemanha”.
38
Nessa realidade brasileira surgiu O Cruzeiro.
A revista, que circulou por quase todos os estados da federação e atingiu boa
parcela da população
39
, conseguiu alcançar aproximadamente quatro milhões de leitores,
número considerável frente à realidade cultural e de leitores do período. Além disso,
contou com as facilidades dos meios de comunicação, como os Correios, que então já
estavam mais bem estruturadas em todo o país.
É possível ainda hoje encontrarmos pessoas da geração das décadas de circulação
da revista (1928-1974) que falam com muito carinho do magazine. Eram leitores que
viviam em lugares de difícil acesso, mas que conseguiam entrar em contato com histórias
fabulosas da revista, que se intitulava o veículo dos arranha-céus e que trazia em suas
páginas as transformações sociais de um mundo que se urbanizava e se modernizava.
No dia 10 de novembro de 1928
40
, circulou o exemplar de número um do Cruzeiro
e, em 5 de dezembro, houve a festa de lançamento na cidade do Rio de Janeiro, um
acontecimento que movimentou a cidade carioca. A partir de 1929, a revista deixou de se
chamar Cruzeiro e passou a ser chamada de O Cruzeiro. Era mais um veiculo de
38
ALVIM, Zuleika. Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.).
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p.220-221.
39
Devemos levar em conta aqui que um periódico pode ser lido por várias pessoas e não apenas por uma
única. O cálculo nunca é feito apenas levando em consideração a tiragem da publicação e o número de
exemplares vendidos, mas também pelo número de pessoas que entram em contato com esse veículo,
seja através da família, de empresas ou até mesmo entre amigos.
40
A revista veio a se chamar O Cruzeiro somente em junho de 1929, na edição de número 30. A data de
surgimento do semanário foi confirmada com a cópia do primeiro exemplar da revista conseguido junto
ao Arquivo do Jornal O Estado de Minas, único local no país que guarda todos os exemplares do
magazine. A precisão na data foi um desafio que nos fez percorrer diversos arquivos e institutos do país
até descobrirmos que O Estado de Minas é hoje o único local de pesquisa completa no Brasil sobre a
revista. Accioly Netto, no livro O império de papel, confirma o que aconteceu após a falência de O
Cruzeiro: “Em seguida, as magníficas máquinas, que haviam custado mais de dois milhões de dólares,
eram vendidas a preço de ferro-velho. Da mesma forma, os arquivos da revista, considerados os
melhores do Brasil, seguiram de caminhão para Belo Horizonte, entregues à guarda do Estado de
Minas, único jornal do grupo dos Diários Associados com dinheiro suficiente para arrematá-los”
(p.164). O Cruzeiro surgiu no dia 10 de novembro de 1928, foi inaugurado em cinco de dezembro de
1928 e viveu o seu auge na década de 1960; só com a edição da morte de Getúlio vendeu 720 mil
exemplares. Passou por diversos processos de transformação e faliu em 1974.
28
informação que integrava o conglomerado de comunicação de Assis Chateaubriand
(Chatô), uma das organizações mais importantes da história dos meios de comunicação
no Brasil. A revista O Cruzeiro nasceu no governo de Washington Luiz Pereira de Souza,
período de intensa migração do campo para as cidades, época em que o Brasil registrava
o aumento da vida urbana, em que fábricas se espalhavam, absorvendo costumes agrários
e dando ao país ares de modernidade, enquanto o mundo vivia o período entreguerras.
Na economia, não eram mais os velhos impérios europeus que regulavam os
“subdesenvolvidos”; novas potências industriais surgiam, como os Estados Unidos e o
Japão. Mas eram também tempos que antecediam um dos maiores colapsos econômicos, a
quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, considerada o centro do capitalismo do mundo.
Essa crise modificaria as economias pela alta dos preços e a desvalorização da moeda.
No Brasil, no final de 1928, a rua Buenos Aires, no Rio de Janeiro, estava em festa:
A revista fora instalada num prédio locado no centro da cidade no número 152. Tratada
como uma festa inédita no país, o lançamento de O Cruzeiro era um indicativo de que o
projeto arrojado de Assis Chateaubriand nascera vitorioso. O resultado já apareceria no dia
seguinte, quando em poucas horas a tiragem do primeiro exemplar se esgotou nas bancas.
Entrando definitivamente nas casas dos leitores cariocas, desde o Leblon ao subúrbio. Foi
um indicativo de que a conquista do resto do país estava apenas começando.
Na tarde quente do dia 5 de dezembro de 1928, à hora em que as repartições
públicas encerravam o expediente e pouco antes do comércio fechar as portas, a
Avenida Rio Branco foi inundada por uma chuva de papel picado.
Parecia que de repente, por um espantoso milagre meteorológico, estava nevando
na mais importante via pública da Cidade Maravilhosa, com 40 graus à sombra.
Ônibus e automóveis estancaram. Uma sinfonia de buzinas encheu o ar. E
milhares de transeuntes, surpresos, começaram a apanhar do ar, nas calçadas ou
sobre o asfalto escaldante os pedaços de papel, que nada mais eram do que
pequenos folhetos impressos, atirados dos andares mais altos dos edifícios, e que
diziam: Compre amanhã O Cruzeiro, em todas as bancas, a revista
contemporânea dos arranha-céus.
41
Desde a primeira edição, a revista dedicou um amplo espaço para mostrar, escrever,
anunciar, criar conceitos, moda e construir uma “nova mulher”: uma imagem que não
representava a realidade feminina brasileira da época, por que divulgava apenas as
mulheres das camadas sociais mais elevadas. Era uma imagem relacionada às mudanças de
41
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 36-37.
29
um país que se urbanizava despindo as suas mulheres das saias longas e oferecendo-lhes
biquínis, água de colônia, blush e pó-de-arroz, imagens femininas de uma mulher moderna
que ilustrava as capas da revista e que era sua marca desde a primeira edição.
Na capa do número um, em fundo azul emoldurado por uma tarja prateada,
publicou-se um desenho hiper-realista do rosto de uma moça com ar vamp,
unhas cintilantes, sombra nos olhos e boquinha pintada, como se soprasse um
beijo para seus 50 mil leitores. Completando a atmosfera fatal, sobre o rosto da
melindrosa esvoaçavam as cinco estrelas de prata do O Cruzeiro do Sul que
haviam inspirado o nome da revista.
42
O Cruzeiro não apenas foi um veículo de comunicação importante no país, como foi
intencionalmente criado para ser porta-voz de uma nova ordem: a modernidade nacional.
Surgiu, ainda, para atingir todo o território brasileiro e dar uma idéia de nação
hegemônica. No resgate histórico que fez sobre a vida de Assis Chateaubriand, Fernando
Morais conta que a utilização da revista para servir a interesses ideológicos e políticos foi
muito bem pensada.
Depois de ter feito um pedido de empréstimo financeiro para comprar a revista ao então
ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, Chatô conseguiu alcançar seus propósitos de receber
ajuda financeira para investir em seus meios de comunicação. A pedido de Vargas, Chatô
reuniu-se com banqueiro gaúcho (compadre do ministro) e, no mesmo dia, obteve o
empréstimo pleiteado. Getúlio encarregou-se de providenciar o dinheiro, valendo-se, para isso,
da sua influência junto ao proprietário do Banco da Província.
Na conversa entre Getúlio e Chatô, o então ministro da Fazenda foi taxativo,
argumentando sobre a importância do magazine: “Isso é negócio para ser fechado agora, nesta
mesa. Essa revista vai ser um bacamarte para nossos planos políticos futuros.”
43
Em outras
palavras, Getúlio deixou claro que, mesmo sabendo que o empréstimo dificilmente seria pago
o que acabaria por conta dos cofres do Banco do Brasil, já que o banqueiro Mostardeiro era
também presidente desse banco , a revista era uma arma poderosa, um verdadeiro bacamarte,
como ele definiu.
De fato, a revista viria a ser, um dos veículos de comunicação mais poderosos que o
país já teve, de “dois fios”, ou seja, com a função de eleger e de derrubar presidentes e
42
MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 187.
43
Ibid., p. 179.
30
governos, um exemplo foi o próprio Vargas, que o magazine ajudou a levar ao poder, mas
que também ajudou a depor em 1944. Outros exemplos não faltam: O Cruzeiro e os demais
meios de comunicação de Chatô foram incentivadores do golpe militar de 1964, que depôs
o presidente João Goulart.
O Cruzeiro teve vários endereços: em 1931, foi instalada junto ao recém-construído
prédio dos Diários Associados, na rua 13 de Maio; mais tarde, quando completou dezoito
anos, mudou-se para a rua do Livramento, na Gamboa. Nesta fase a revista vivia um dos
seus melhores momentos, com uma tiragem de aproximadamente cem mil exemplares. No
endereço foi erguido um moderno prédio, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, onde a
revista se instalou definitivamente e permaneceu até o seu fim. Quando começou a entrar
em falência, dos nove andares que ocupava, restaram para O Cruzeiro apenas três
pequenas salas, o que demonstra o tamanho do endividamento do magazine, que foi
consumindo o seu próprio patrimônio.
A ruína chegou definitivamente em 1974, mesmo que ainda tivesse uma boa
vendagem. As dívidas levaram a revista à agonia da morte e, apesar de algumas tentativas
de ressurgimento, ela sucumbiu, juntamente com outros veículos dos Diários e Emissoras
Associados. Desapareceu, assim, um dos mais importantes veículos do império de
comunicação brasileiro. Além de perder parte do próprio prédio onde estava instalada na
rua Livramento, “o título O Cruzeiro foi cedido a Hélio Lo Bianco, em pagamento por suas
comissões atrasadas”.
44
Também as máquinas, importadas por mais de dois milhões de
dólares, foram vendidas “a preço de ferro-velho”. “Da mesma forma, os arquivos da
revista, considerados os melhores do Brasil, seguiram de caminhão para Belo Horizonte,
entregues à guarda do Estado de Minas, único jornal do grupo dos Diários Associados com
dinheiro suficiente para arrematá-los”.
45
É no jornal mineiro que hoje se encontra o mais
completo acervo da revista, na Gerência de Documentação e Informação do Sistema
Estaminas de Comunicação. A incorporação da documentação da revista aconteceu em
1977 e hoje todas as páginas estão microfilmadas, além de milhares de fotos,
principalmente das belas mulheres mostradas por O Cruzeiro durante o seu reinado.
46
44
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 164.
45
Ibid., p. 164.
46
O acervo conta ainda com exemplares da revista A Cigarra, de 1919 a 1967, também uma produção do
grupo de Assis Chateaubriand, além dos exemplares de O Cruzeiro Internacional, de 1956 até 1964.
Foi pesquisando na documentação do acervo que o jornalista Rui Castro escreveu “Chega de saudade”,
livro sobre a Bossa Nova. Foi por intermédio desse arquivo que conseguimos entrar em contato com os
demais exemplares da revista que não havíamos conseguido no Museu Hipólito da Costa de Porto
Alegre.
31
A revista foi uma das primeiras a se preocupar em mostrar o universo feminino de forma
glamourosa e em dar à mulher espaços antes pouco vistos na imprensa brasileira. Esses espaços eram
ocupados com belas faces, com moda e novas idéias, além da publicidade de diversos produtos
domésticos e de beleza que reforçavam a idéia da modernização feminina. Foi uma revista que
também se preocupou em implementar seções para as mulheres, semelhantes às que circulam hoje
encartadas em todos os grandes jornais e revistas do país, nos cadernos especializados.
1.2 Quatro milhões de leitores e a transformação do jornalismo brasileiro
A revista O Cruzeiro contribuiu significativamente com a história da comunicação
no Brasil. A implementação de uma nova forma de fazer jornalismo, antes nunca utilizada
pela imprensa da época, valorizou a reportagem, o uso da caricatura, da pintura, da
fotografia, explorada de uma nova ótica, colorida, ressaltando o fotojornalismo. Foram
inovações não comuns para a imprensa da década de 1930-1940, como a diagramação mais
atraente e priorizando a qualidade das fotos e dos textos, um período em que a propaganda
ganhou espaços. Criativa, a revista reforçou a idéia de modernidade servindo de ligação
entre os interesses políticos, a elite social e religiosa e os leitores, mostrando uma mulher
consumista, com hábitos modernos.
Além das colunas femininas que contribuíram para o sucesso de O Cruzeiro,
destacaram-se nela a reportagem, principalmente as realizadas pela dupla David Nasser,
jornalista e o francês Jean Manzon, fotógrafo. Este nascido em Paris em 1915, trouxera
muito da experiência francesa para o Brasil, tendo trabalhado, primeiramente, para o
governo de Getúlio Vargas no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão
executor da censura à imprensa pela ditadura do Estado Novo. Quando Manzon chegou ao
Brasil, na década de 1940, a fotorreportagem era inexistente e o atraso era muito grande.
Manzon contribuiu com a implementação das reportagens fotográficas em O Cruzeiro,
utilizando a sua experiência de participação em coberturas de guerras, o que modificaria
por completo o jornalismo nacional:
Esse novo método de abordagem jornalística, em que a fotografia tem um papel
essencial, nasceu com as revistas ilustradas alemãs e francesas entre o final dos
anos 20 e o começo dos anos 30 e consolidou-se com o lançamento da revista
americana Life, em novembro de 1936. Aos poucos, o modelo Life ganhou o
mundo. A francesa Match não confundir com Paris Match, que é posterior à
32
Segunda Guerra foi a primeira a seguir-lhe os passos, a partir de 1938. O
Cruzeiro só faria a reformulação editorial iniciada no final de 1943.
47
Em 16 de outubro de 1943, a dupla David Nasser e Jean Manzon estreou em O
Cruzeiro com reportagens fabulosas e até ficcionistas. Em seu livro Cobras criadas, Luiz
Maklouf Carvalho conta algumas das artimanhas utilizadas pela dupla para conseguir
reportagens interessantes. Um exemplo está no relato falso sobre a morte do próprio colega
de trabalho, Jean Manzon, autorizada por Chatô, “a reportagem ficcionista aumentou o
prestígio e a popularidade da dupla.”
48
A página 8 do dia 6 de maio de 1944 trouxe mais
informações sobre a suposta morte do fotógrafo. Uma das manchetes dizia: “Morreu Jean
Manzon [...] Atropelado por um auto na Avenida Atlântica [...] o famoso fotógrafo antes de
expirar que o enterrassem com a sua máquina [...].” . Acima da página e com letras
garrafais, tendo como símbolo uma cruz, num quadro emoldurado de azul, o texto dizia:
“JEAN MANZON (Agradecimento) A diretoria, os funcionários, e os operários dos
Diários Associados, os amigos, os conhecidos e os parentes de Jean Manzon,
profundamente desolados com a morte do nunca muito pranteado companheiro, amigo e
parente, agradecem a todos aquêles que compareceram a missa mandada celebrar pela
alma boníssima do morto.”
A dupla inovou na cobertura jornalística com a implementação da reportagem,
mas não se cansava de inventar matérias, ou de simplesmente creditar para si
informações de outros autores, ou de reproduzir notícias sem ter comparecido ao local do
fato. A mais polêmica de todas foi a reportagem sobre os índios xavantes de Mato
Grosso, com o título “Enfrentando os Chavantes!”, do dia 24 junho de 1944, que o
Cruzeiro creditou como inédita, mas não o era porque O Globo também já a havia
publicado e apenas um repórter havia comparecido no local a serviço do governo. Foram
divulgadas vinte e seis fotos, segundo a revista, mostrando pela primeira vez os xavantes.
Para Luiz Maklouf, que fez um amplo estudo sobre a vida profissional da dupla, “só o
fotógrafo havia feito a viagem, ainda a serviço do Estado Novo.”
49
Relata que a famosa
reportagem já havia saído no jornal O Globo no dia 13 de agosto de 1943, em primeira
página, revelando que o coordenador da Fundação Brasil Central, João Alberto de Lins e
Barros, sobrevoara a aldeia dos xavantes, fazendo um vôo de reconhecimento na região.
47
CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001. p. 63.
48
Ibid., p. 109.
49
Ibid.
33
Esse é mais um exemplo das façanhas da dupla, que, conforme Maklouf, aconteciam
numa média de quatro por mês, alcançando muitas vezes três por edição, como ele conta
em Cobras criadas:
Já eram vinte e sete as reportagens feitas até ali, e mais cinco vieram entre maio
e junho de 44. Uma delas, “Nas celas dos monges”, é versão revisitada da pauta
que Manzon havia feito para a Match. Outra, “Roteiro do Norte”, é mais uma
fraude com as fotografias para o DIP naquela longa viagem pelo Norte e
Nordeste. “Nossos repórteres Jean Manzon e David Nasser voaram para o Norte
escalando por algumas capitais”, diz a apresentação. Só o fotógrafo havia feito a
viagem, ainda a serviço do Estado Novo.
50
Outra reportagem que deixou dúvidas foi a publicada em 16 de setembro de 1944,
sobre a esposa do ditador chinês Chiang Kai-shek, que esteve no Brasil. Com o título
“Assalto à fortaleza da China”, foi divulgada pela revista como um grande furo
jornalístico, o que, para Luiz Muklouf, não passou de mais uma invenção da dupla. O autor
acredita ainda que David Nasser era capaz de vestir-se de mulher para ser fotografado e
divulgar essa fotografia como se fosse a chinesa Chiang Kai-shek. A personalidade
internacional que tanto trabalho deu a dupla veio ao Rio de Janeiro para fazer um
tratamento de saúde e não era receptível com a imprensa e, muito menos, com os
fotógrafos. Então, a grande dupla “plantou-se” nas proximidades da Casa das Pedras, na
Gávea, onde a madame estava hospedada, e por lá ficou por mais de dez dias espiando.
Contudo, sairiam de lá sem a matéria, pois não conseguiram nem fotografar nem conversar
com a chinesa. No entanto, a página 9 do dia 16 de setembro de 1944 traz a foto de Chiang
Kai-shek de página inteira, com uma manchete no alto: “Primeiro Flagrante de Mme.
Chiang Kai-shek [...]”. Abaixo a legenda dizia: “Esta fotografia obtida pela Câmara de
Jean Manzon, com uma teleobjetiva adaptada, é o resultado de uma longa espera dos
autores desta reportagem nas visinhanças. No momento em que madame passeava nos
jardins da casa da Gavea, a uma grande distância, nem percebeu que estava sendo
observada e fotografada em seu retiro.”
51
Maklouf
52
relata não ter dúvida de que a foto fora uma produção da dupla;
também Accioly Netto, ex-diretor da revista, suspeitou de que o vulto da fotografia era
50
CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001. p. 109.
51
O Cruzeiro, 16 set. 1944. p. 9.
52
Ibid., p. 122.
34
mesmo o próprio Nasser. Portanto, histórias ficcionais envolvendo David Nasser e Jean
Manzon não faltam. A mais engraçada de todas é a da foto do deputado Barreto Pinto de
Cuecas, chamada de Barreto Pinto sem Máscara, veiculada em 29 de junho de 1946 e
que custou ao deputado a cassação do mandato. Mesmo tendo acontecido depois do
período delimitado para o estudo neste trabalho, consideramos ser relevante registrar
mais esta polêmica:
A glória chegou com a exclusiva e bombástica “Barreto Pinto sem máscara”, na
edição de 29 de junho de 46. Em onze páginas, da 8 à 18, Manzon e Nasser
apresentaram o deputado constituinte Barreto Pinto semidesnudo, em cuecas e
fraque. Foi um escândalo, provocou enorme repercussão na mídia e levou à
cassação de um restinho de mandato de Edmundo Barreto Pinto, do Partido
Trabalhista Brasileiro a primeira na história política do Brasil. [...]
Barreto Pinto explicou, na ocasião, que recebeu os dois repórteres, em casa, a
pedido do secretário de redação do Diário da Noite, Sebastião Isaías. E que
deixou-se fotografar só com a casaca, em cuecas, porque os dois disseram que só
iriam “aproveitar o busto”.
53
Além da dupla David Nasser e Jean Manzon, O Cruzeiro contava com um
time de cronistas, desenhistas e correspondentes nas principais cidades do mundo. A
revista tratava de temas que variavam da religião à política, das amenidades às
preocupações do mundo e de um país que se modificava naqueles anos de revolução
e da Segunda Guerra Mundial. Mas os assuntos abordados procuravam não
ultrapassar um certo limite da “ordem social constituída”, apesar de colunistas como
Alceu Pena mostrarem, através da sátira aos conservadores, uma nova realidade
feminina, de mulheres liberadas de preconceitos, com atitudes de consumidoras.
A Igreja Católica era vista como defensora da moral e dos bons costumes, da
mesma forma que a família, instituição que deveria ser fortalecida. A política estava
ligada à idéia de um Estado nacional e conservador. Mesmo que Chatô fizesse críticas a
um determinado fato ou político, lançando veneno pelas linhas dos seus editoriais, tática
utilizada por ele muitas vezes para extorquir dinheiro de políticos e para dar continuidade
à expansão do seu império de comunicação, ou em outros casos para protegê-lo, as
matérias e reportagens na revista não tinham o mesmo tom. A preocupação do magazine
era manter boas relações com o poder, mas isso nem sempre foi possível e teve um
período em que Assis Chateaubriand intensificou as críticas em seus editoriais
53
CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001. p.151-153.
35
publicados nos jornais do grupo e Getúlio Vargas revidou mandando executar uma das
hipotecas de O Jornal, uma história contada por Accioly Netto:
Em 1934, os Diários Associados foram assaltados por uma crise política que
ameaçou destruir sua estabilidade. Assis Chateaubriand, sem medir
conseqüências, começara uma campanha feroz contra o governo de Getúlio
Vargas, a quem chamou de “monstro” em uma de suas matérias mais brilhantes.
O revide foi imediato. Veio uma ordem taxativa do Governo para que o Banco
do Brasil executasse a hipoteca referente ao atraso no pagamento da maior
rotativa de O Jornal. Ameaçado de prisão, Chateaubriand saiu do país, deixando,
antes de partir para o destino ignorado, uma ordem: que O Jornal e o Diário da
Noite saíssem da Rua 13 de maio e voltassem a ser impressos nas velhas oficinas
da Rua Rodrigo Silva.
54
Segundo Accioly, O Cruzeiro também recebeu do governo militar a mesma ordem
de interdição, por causa das críticas nos editoriais de Chatô, como aconteceu com O
Jornal, mas a revista não chegou a fechar as portas, primeiro, porque a hipoteca da dívida
com o governo estava com a Caixa Econômica Federal e Getúlio mandara executar as
referentes ao Banco do Brasil; segundo, porque a revista, ao longo desses anos, até a
década de 1940, registrava tudo o que dizia respeito ao governo Getúlio. Todavia, esse
prestígio de Vargas foi desaparecendo, principalmente em 1944-1945, quando se observa
que vários artigos de colunistas da revista e as reportagens de David Nasser já não
elogiavam o ditador, nem dedicavam muitos espaços para mostrar seus feitos; ao contrário,
criticavam-no, como vamos abordar no capítulo três.
O espaço político de que a revista dispunha sempre foi muito bem aproveitado por
Getúlio Vargas, que se caracterizou como um governo intervencionista e baseado na
aliança de classes para implementar programas de desenvolvimento. O período varguista,
principalmente na década de 1930, foi marcado pelo populismo e pelas reformas que
concederam aos brasileiros alguns direitos trabalhistas e sociais. A propaganda
governamental buscava construir um Estado nacional e o controle da comunicação; foi
uma era marcada pela gradual elevação da intervenção do Estado na economia e na
organização da sociedade, além da centralização do poder governamental.
A revista O Cruzeiro, no período deste estudo (1928-1945), representava o
pensamento de parte da elite brasileira, principalmente da política, da militar e da religiosa.
As experiências, as vivências e as práticas da sociedade constituída por políticos, militares,
54
NETTO, Accioly, O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina 1998. p. 55.
36
Igreja e empresários em geral, aparecem em suas páginas materializadas em reportagens, em
notícias, fotos, entrevistas e colunas das mais variadas. Na política, o que se evidencia é o
pensamento de um governo nacionalista, principalmente com o uso de uma publicidade
intensa nos primeiros anos da década de 1930.
A história política do período de 1930-1940 é marcada por um sistema
intervencionista e uma sociedade que, apesar de se dizer moderna, submetia as mulheres a
uma vida sem qualquer direito social e político. A Igreja era a guardiã da moral e dos bons
costumes, opondo-se aos ideais modernos que começavam a surgir nesse período, atuando
no enfrentamento do comunismo e impondo a sua doutrina às elites, na tentativa de
convencer o governo de que o Brasil era um país católico. Nesse sentido, O Cruzeiro
registrou muitos acontecimentos católicos e exaltou comemorações, como Natal e Páscoa,
com o que aumentava até mesmo a tiragem da revista.
Nas temáticas mulher, Igreja e política, os principais temas que aparecem na
revista, evidenciam-se registros das mudanças que surgiam a partir da modernidade e a
própria transformação da sociedade no período. À mulher dedicava-se, toda a semana,
uma página, considerada a mais moderna da revista porque mostrava a mulher inovadora,
que vestia roupa da moda, gostava de praia e freqüentava espaços de diversão da cidade,
como bares e outros. A coluna “As garotas do Alceu” sintetizava a idéia de liberdade em
tempos de mudanças.
Os anos que recortamos para este estudo registraram no país momentos densos de
expressão artística e cultural e, também da comunicação, com O Cruzeiro e outras
manifestações literárias. E no embalo do modernismo que principiava, revelaram-se
escritores como Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Lima Barreto,
Plínio Salgado e outros, os quais descreviam as mudanças, as transformações e o novo.
55
Esse novo era o moderno, uma unidade paradoxal, unidade de desunidade, como definiu
Marshall Berman
56
, que se refere às contradições da modernidade usando a expressão que
tudo o que é sólido se desmancha no ar. A modernidade, segundo o autor, é um turbilhão
que desintegra e muda o ritmo de vida. Para ele:
55
ANNATERESA, Fabris (Org.). Modernidade e modernismo no Brasil. São Paulo: Mercado de Letras,
1994. p.49.
56
BERMAN Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. p. 15.
37
O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes
descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e
do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma
conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói
os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder
corporativo e de luta de classes: descomunal explosão demográfica, que penaliza
milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos
caminhos do mundo, em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes
catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos
em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais
variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos,
burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para
expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus
governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre
suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um
mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão.
No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o
num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização”.
57
A modernidade traz uma atmosfera de agitação que deixa as pessoas mais sensíveis,
mexendo com psíquico, com a moral, além de promover uma “autodesordem”. Esse novo
mundo trouxe, ainda, uma nova paisagem urbana, como reforça Berman:
Trata-se uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias,
amplas novas zonas industriais; prolíficas que crescem do dia para a noite, quase
sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano; jornais diários,
telégrafos, telefones e outros instrumentos de media, que se comunicam em
escala cada vez maior; Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados
multinacionais de capital; movimentos sociais de massa, que lutam contra essas
modernizações de cima para baixo, contando só com seus próprios meios de
modernização de baixo para cima; um mercado mundial que a tudo abarca, em
crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e devastação, capaz de
tudo exceto solidez e estabilidade.
58
São tempos em que os indivíduos ousam se individualizar. Pensadores como
Nietzche destacam que a humanidade moderna se encontra numa ausência e num vazio
de valores, mas, ao mesmo tempo, tem uma infinidade de possibilidades.
59
Essas
possibilidades modernas, são também uma variedade de produtos industrializados que
chegam com facilidade em varias partes do mundo e vão fazer com que O Cruzeiro
venha a idealizar uma vida de consumo para as mulheres dessa nova fase. Fase essa que
57
BERMAN Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. p.16.
58
Ibid., p. 18.
59
Ibid., p. 19-21.
38
trouxe segurança e perigo, confiança e risco, como definiu Anthony Giddens, para
quem o caráter da modernidade é um fenômeno de dois gumes: “O desenvolvimento
das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram
oportunidade bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e
gratificante que qualquer tipo de sistema pré-moderno. Mas a modernidade tem
também um lado sombrio, que se tornou muito aparente no século atual.”
60
Conforme Giddens, autores influenciados por Karl Marx defendem que a ordem
social que emerge da modernidade é capitalista tanto na economia como na política e
noutras áreas da sociedade. Já pensadores como Durkheim e Max Weber entendem que o
caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva do capitalismo, mas da
industrialização, “do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho,
aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração industrial da
natureza.”
61
Aqui, Giddens define o capitalismo como “sistema de produção de
mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho
assalariado sem posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um
sistema de classes.”
62
Quanto ao industrialismo, é visto como “o uso de fontes inanimadas
de energia material na produção de bens, combinando o papel central da maquinaria no
processo de produção.”
63
A dinâmica moderna alterou até mesmo as maneiras de calcular o tempo: “O
calendário, por exemplo, foi uma característica tão distintiva dos estados agrários quanto a
invenção da escrita.”
64
Hoje, em decorrência da expansão da modernidade, os calendários
são padronizados em escala mundial e seguem o mesmo sistema de datação. Além disso, a
vida pública passou a ser institucionalizada, e a pessoal “torna-se atenuada e privada de
pontos de referência firmes: há uma volta para dentro, para a subjetividade humana.”
65
;
assim, para alcançar a estabilidade, é preciso buscar o seu próprio eu. Com o rompimento
das velhas ordens comuns da sociedade, produziu-se uma “preocupação narcisista,
hedonista, com o ego. Outros chegaram à mesma conclusão, mas relacionam tudo isso a
formas de manipulação social. A exclusão da maioria da população das arenas onde as
políticas de grande conseqüência são elaboradas e as decisões tomadas forçam uma
60
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista,
1991. p. 16.
61
Ibid., p. 20.
62
Ibid., p. 61.
63
Ibid.
64
Ibid., p. 25.
65
Ibid., p. 118.
39
concentração sobre o eu; este é um resultado da falta de poder que a maioria das pessoas
sente.”
66
No entanto, reforça Giddens, “o mundo que se transforma gradativamente da
familiaridade do lar e da vizinhança local para um tempo-espaço indefinido não é de
modo algum um mundo puramente impessoal.”
67
As relações podem ser mantidas a
distância, é um mundo cada vez mais povoado e de rostos anônimos.
1.3 Rostos mascarados: o imaginário feminino de O Cruzeiro
Foi com o objetivo de seguir os passos das páginas de O Cruzeiro que realizamos esta
pesquisa, sempre perguntando à própria revista sobre
as mudanças trazidas pela modernidade e pelo Estado
Novo às representações simbólicas sobre as mulheres,
e obtendo respostas à luz das suas mais de quarenta
páginas que circulavam todas as semanas até 1974 no
país e em alguns países da América Latina e da
Europa (apesar de nosso recorte aqui ser até 1945).
Para tanto, optamos por descrever neste capítulo uma
das edições da revista e um pouco das formas de
representações da mulher nas edições de 1928-1945 a
fim de entender por que O Cruzeiro abriu tanto
espaço às mulheres daqueles anos.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 2 Capa O Cruzeiro
68
O Cruzeiro não era uma revista essencialmente feminina, mas dedicava mais de
50% das páginas a esse público, em colunas especializadas e publicidade, ou em espaços
que mostravam a realidade social das “senhoras” e das “moças” das classes mais
privilegiadas da época: os salões, as recepções e, especialmente, os concursos das mais
belas do Brasil e do mundo. Também se preocupava em divertir o público com novelas e
contos romanceados que ocupavam, em média, três páginas, ou, ainda, relatando estórias
66
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Universidade Estadual Paulista,
1991. p. 125.
67
Ibid., p. 143.
68
O Cruzeiro. 06 set. 1930.
40
das atrizes hollywoodianas. Além disso, foram raras as edições em que a figura de uma
mulher não esteve estampada na capa, ilustrando-a.
Procurando entender melhor a revista, optamos por descrever a edição de 12 de
outubro de 1929, que serve de baliza para as demais, pois traz seções que se modificam
muito pouco durante os anos pesquisados até 1945, em se tratando de espaços
dedicados aos temas mencionados.
Começando pela capa, nessa edição aparece a figura de uma mulher, recurso
utilizado em quase todos os exemplares como forma de conquistar o público e com uma
intenção clara de explorar o universo feminino. Accioly Netto, que trabalhou na revista,
declarou a respeito: “Explorávamos também bastante a figura feminina em diferentes
situações, nas festas da alta sociedade ou nos desfiles de moda que se realizavam
periodicamente no Golden Room do Copacabana Palace. Os defiles mais importantes eram
os de Miss Elegante Bangu e também os da Glamour Girl, que despertavam grandes
polêmicas entre os colunistas sociais.”
69
Na edição que estamos apresentando, quatro páginas foram dedicadas a “Uma peça
dramática em um ato em verso”, escrita por Arnaldo Damasceno (Vieira), com o título
“Ainda se morre de amor”. A peça tinha como personagens Eduardo, Esther e Laura,
constituindo assunto para as páginas de 9 a 12. Da página 13 a 16, um espaço é reservado à
arte, com o título “Crítica de Arte”; na 18, está a coluna “Figuras e factos da semana”,
trazendo fotos e legendas sobre o encerramento do “Congresso de Agricultura” realizado
no Rio de Janeiro. Em outras edições, este espaço registra também as festas dos salões da
sociedade, das recepções do governo, das festas políticas.
Nas páginas 26, 27 e 28, transcreve-se conto de “Alberto A. Leal selecionado no
concurso de O Cruzeiro, com o título “Paixões de Guasca”. Além de contos como esse, a
revista selecionava novelas. Os concursos contavam com a participação de escritores
reconhecidos como Érico Veríssimo. Seguindo nessa apresentação da revista, encontramos
na página 33, uma propaganda de tratamento de cabelos de página inteira: “Novo
tratamento do cabelo. Restauração [...] Renascimento [...] Conservação [...] pela Loção
Brilhante. Venda por cupon via correio”; na 34, mais um texto selecionado pelo concurso
de O Cruzeiro
70
. A página 37 é dedicada às mães, com a coluna “Cartas as Mães, pelo
69
NETTO, Accioly.O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. p.
48-49.
70
Entre os contos está o que traz como endereço uma estância de Passo Fundo e tem por título: “No pago
[...] episódio gaúcho por Lauro Mendes selecionado no concurso de O Cruzeiro. Endereço para onde
foi a carta “Chiquita Tovar, Estância Del Capricho, Passo Fundo”.
41
professor Wilhelm Stekel de Vienna traducção e adaptação especial para Cruzeiro”
71
pelo
Dr. Martinho da Rocha”. O início da carta dizia:
Cara e boa amiga
Recommendo dizer as coisas às crianças com clareza e exactidão. Louvá-las em
excesso é tão prejudicial quanto repreendê-las systematicamente.
Lamentas ser tão difficil educar correctamente as crianças. De accordo: embora
evitados os erros que já apontei, não poderás impedir que outras pessoas em
contacto com o petiz commentam faltas educativas muito graves. Proibiste às
crianças contar ao menino histórias fantásticas appelando para o Papão e outras
porvoices para metter-lhe medo
72
.
Nas páginas 38 e 39, o espaço é da “Cinelandia”, com os conteúdos sobre cinema,
explorando estórias de Hollywood, de seus atores e atrizes. As informações e as fotos
publicadas vinham diretamente dos estúdios da Paramount Pictures e eram reproduzidas
textualmente pela revista. Com isso, também se divulgavam produtos de beleza, roupas da
moda para o consumidor brasileiro, sobretudo para as mulheres. Os atores nacionais, as
cantoras do rádio, e as atrizes internacionais, também tinham espaço.
Nos primeiros anos de publicação da revista não existia um padrão gráfico
organizado nem uma seqüência lógica das páginas; por isso, é comum encontrarmos a
continuação de alguns assuntos fora da ordem da paginação, diferente do que acontece
hoje quando as páginas obedecem a uma rigorosa numeração. Na edição analisada, por
exemplo, a página 41 traz a conclusão do conto “Paixões de Guasca”, iniciado na página
28; da mesma forma, a 42 dá seqüência ao texto “Cães de luxo”, “Cães da moda” e
também conclui o texto de “Cartas às mães”, da página 37.
O Cruzeiro só veio a adotar um padrão editorial e gráfico mais próximo do que
conhecemos hoje na diagramação de textos e fotografias, além de seções especializadas,
depois da década de 1940. Mesmo assim, foi moderna para a época, principalmente pela
inovação que trouxe na gravura desde os primeiros exemplares. Inegavelmente, era uma
revista que “enchia os olhos”, sobretudo pela beleza das capas. Na década de 1930 a
preocupação era com a beleza da fotografia, o que não ocorreu apenas em O Cruzeiro, mas
nos diversos impressos de comunicação do país. Uma observação feita por Carlos Fico na
71
É interessante observarmos que, nessa época, a própria revista fazia uma certa confusão com o seu
nome. Pelos exemplares pesquisados, em outubro de 1929, a revista já se chamava O Cruzeiro, mas
ainda era tratada em algumas páginas como Cruzeiro, como na Coluna “Cartas às mães”.
72
O Cruzeiro, 12 out. 1929. p. 37.
42
obra Reinventando o otimismo, sobre a propaganda política do país, evidencia que a
preocupação com a imagem foi uma marca dos veículos de imprensa que mais alcançaram
sucesso no Brasil na década de 1930: “Tivemos, inicialmente, a revista O Cruzeiro,
lançada em 1928, e que alcançaria tiragens de até 500 mil exemplares. A revista adotou, à
época da II Guerra Mundial, o formato da Life, isto é, converteu a fotografia em notícia.
Com a Manchete isso se aprimorou. Baseada na fórmula francesa da Paris-Match,
aperfeiçoou o tratamento técnico da imagem [...]”.
73
Quando completou um ano, O Cruzeiro reafirmou os seus padrões gráficos,
jornalísticos e também publicitários como os mais modernos do momento. “O 1
o
Aniversário
de O Cruzeiro”, divulgado na edição de 2 de novembro de 1929, a página 3 trazia: “Com o
presente numero 52
o
, O Cruzeiro prefaz seu primeiro anno de existência, e ainda nos parecem
próximos aquellas alvoroçodas vesperas do lançamento desta revista, no qual nos propusemos
applicar os mais modernos recursos da propaganda, numa demonstração decisiva do valor e da
efficiencia do reclame, quando nelle se observem as regras de uma techina já conduzida pelos
mestres-psychologos da publicidade aos limites da perfeição.”
74
Seguindo na apresentação da revista tomamos como base a edição de 12 de outubro
de 1929, encontramos na página 43 uma das colunas que consta em todas as edições
analisadas, ou seja, de 1928 a 1945, “Donna”. Na edição em análise, a coluna trouxe
informações sobre chapéus:
No tempo dos chapéus por Mme Thérése Clemenceau.
modelos para banho de Sonia Delaunay.
É tal o esforço de pesquisa nos modelos de Georgette, que não poderia ser
comparado com o que se observa em qualquer outra collecção; com efeito foi a
preocupação de criar verdadeiramente, de se não servir senão de materiaes
escolhidos com um zelo constante, e de só compor para a mulher, que lhe
guindou o espírito; foi assim com uma alegria franca, em que o métier nada
influiu, que entrámos os humbraes de sua casa.
75
73
FICO. Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 111.
74
O Cruzeiro, 2 nov. 1929. p. 3.
75
Id., 12 out. 1929. p. 43.
43
A coluna “Dona” apareceu em quase
todas as edições e abordava temas como
moda, casas de modas e comportamentos,
sendo complementada com propagandas de
produtos de beleza.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 3 Coluna “Dona” de O Cruzeiro
76
.
Há ainda a coluna “Donna na Sociedade”, que, na edição descrita, aparece nas
páginas 46 e 47 e traz: “Inauguração; Aniversários da Semana”. A última página de O
Cruzeiro, a contracapa explora, no número que estamos descrevendo, fotografia e trata de
diversos temas. Em outras edições, o espaço é ocupado por propagandas de cigarros, ou
por outros assuntos, como o modo de cuidar de um jardim e aborda: “Nosso Jardin, Nossa
Chacara A cenoura; Porque certos abacateiros não frutificam; Emprego do sangue fresco
e secco como adubo.”
O número de páginas das edições de O Cruzeiro foi de, em média, 48, como na
edição que acabamos de descrever; em outras edições,
chegou a 100, especialmente nas especiais, como a que
tratou sobre a Revolução de 1930, que analisaremos no
capítulo 3.
Na década de 1940, mais especificamente nas
edições de 1945, O Cruzeiro já exibia um novo leiaute, com
uma paginação mais definida e com seções organizadas em
índice e por assunto. Para mostrar como a revista se
transformou gráfica e jornalisticamente a partir dessa
década, tomamos a edição de 16 de junho de 1944, página
3, espaço considerado nobre em qualquer revista ou jornal.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 4 Madame Chiang Kai Shek
77
76
O Cruzeiro. 17 jan. 1931.
77
Id., 27 set. 1941.
44
O Cruzeiro publicava nessa página, no lado direito, o índice da edição e, no
esquerdo, um artigo com um tema importante do momento; também trazia o número da
tiragem da publicação, que, na afirmação dos editores, chegava a “91.000 exemplares”.
78
Já em outra edição, a de 13 de outubro de 1945, na página 3, O Cruzeiro trouxe
também um expediente com endereços e telefones das redações e os locais de
administração da revista, o preço dos exemplares, e o nome de outras publicações da
“Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A.” a saber: - Revista do Brasil órgão de
divulgação cultural (mensal), Cigarra Magazine o mensário de maior circulação do
Brasil, Detective Revista Policial, O Guri, Revista Infantil (quinzenal) Secção de
78
E o índice da edição de 16 de junho de 1944 trazia:
- Artigos
Uma notícia triste Augusta Carolina Bueno p. 3
Glória Triunfal Austregésilo de Athayde p. 5
Vida Real e Romance Leda Ivo p. 24
- Reportagens
Órfãos de pais vivos David Nasser e Jean Manzon p. 8
A sociedade paulista e o futebol Maria Antônia e P. Scheler p. 60
- Poesia
Colóquio com o Infinito Ralph Waldo Trino p. 50
- Contos
Capitáin Oswaldo Orico p. 19
A Fada Boa do Amor Eliane Hoyward p. 44
- Cinema
Cinelândia Pedro Lima p. 20
Cine Revista Alex Viany p. 40
“Á noite sonhamos” Sydney Buchman Ernest Marischka p. 54
- Humorismo
Pif Paf Péricles e Vão Gôgo p. 22
O Amigo da Onça Péricles p. 43
Tipos de Garotas Alceu Pena p. 46
Eva sem costela Adão Júnior p. 86
- Seções
Escreve o Leitor Redação p. 4
Sete dias Franklyn de Oliveira p. 7
Back-Ground Fredy p. 21
No mundo dos livros Luiz Alipeo de Barros p. 24
Fototeste Tetê Signoreli p. 28
Música Antônio Rangel Bandeira p. 32
Spot Light Crock p. 39
Mundanismo Gilberto Trompowsky p. 80
- Assuntos Femininos
Lar, Doce Lar Helena Sangirardi p. 72
Elegância e Beleza Eva Marsullo p. 69
Da Mulher para a Mulher Helena B. Sangirardi p. 68
Páginas das Mães Ladeira Marques p. 74
- Figurinos e Modelos
Prático e elegante Alceu Pena p. 67
Inverno Alceu Pena p. 70
Agasalhos Hollywood p. 76
Detalhes Nova York 88.
45
Livros, Editora”. As assinaturas de O Cruzeiro custavam, em outubro de 1945, “Cr$
75,00 por um ano e Cr$ 45,00 por seis meses.”
79
Pelos expedientes é possível observar o crescimento que a revista veio alcançando
ao longo dos anos; em 1929, O Cruzeiro tinha apenas como endereço o da rua Buenos
Aires, no Rio de Janeiro; já em 1945, tinha, além do endereço da rua Livramento, no Rio
de Janeiro, mais agências e sucursais nas principais cidades brasileiras. É um crescimento
que podemos observar ainda antes de a revista completar um ano de atividades.
80
Já, do ponto de vista editorial, como mostramos até aqui, a revista expressava o
pensamento de uma elite social que se modernizava, num período em que o país passava
por transformações. Segundo Thomas Skidmore, nos oito anos de ditadura do governo de
Getúlio Vargas, “o Brasil continuava a sofrer um processo de rápida modificação
econômica e social, que impossibilitava o retorno ao sistema anterior a 1930”,
81
o que não
chegava a ser uma completa industrialização, conforme as suas palavras:
Ao fim do Estado Novo em 1945, as bases sociais da política mudaram irrevogavelmente.
Se bem que o Brasil não tivesse embarcado em um programa de completa
industrialização, por volta de 1945 havia já indícios significativos. Acompanhando o seu
limitado desenvolvimento econômico, havia um crescimento contínuo da proporção entre
brasileiros que viviam nas áreas urbanas e um rápido crescimento no volume total da
população alfabetizada. As conseqüências políticas dessas mudanças econômicas e
sociais foram notáveis. Os dinâmicos centros urbanos do triângulo de industrialização,
com as suas três pontas localizadas em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo,
criavam um bloco importante de eleitores urbanos.”
82
79
As edições mostram que o preço da revista variava dependendo do tempo de assinatura: “No Brasil
um ano Cr$ 75,00 Semestre Cr$ 40,00. Estrangeiro um ano Cr$ 120,00 semestre Cr$
60,00. Número avulso para todo o Brasil Cr$ 1,30. Agências em todas as cidades do Brasil e
correspondentes nas principais cidades do mundo. Redação e Administração: Rua do Livramento, 191,
tel. 43-1977 (rede interna). Publicidade: Avenida Venezuela 41 3
o
andar telefone 41 7391. Sucursal:
em São Paulo rua Sete de Abril 220 fone: 4.4181. Em Belo Horizonte: rua Goiás 34 fone: 2-1928.
Em Recife Praça da Independência 12. Publicidade em São Paulo: Serviço de Imprensa Ltda. (Sila)
R. Sete de Abril, 330 2
a Edf. “D. Diários Associados”. E destacava ainda que “a tiragem do presente
n
o
era de 91.000 pela qual nos responsabilizamos.”
80
Como mostrava a edição de 19 de outubro de 1929, a de número 50: “O expediente da página três
revela: O Cruzeiro Revista semanal ilustrada. Direção de Carlos Malheiros Dias. Agência em
todas as cidades do Brasil correspondente em Lisboa, Paris, Roma, Madrid, Londres, Berlin e
Nova York. Propriedade da Empresa Graphica Cruzeiro S. A . Diretor- Presidente Dr. José
Malheiro (Filho). Redação, Administração e Oficinas rua Buenos Aires, 152. Telephone [...] Norte
2254. Endereço Teleg. Constelação”.
81
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo Branco, 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982. p.54.
82
Ibid.
46
Foram anos de mudanças e de transformações mostradas por Boris Fausto em A
Revolução de 1930
83
, as quais abrangeram desde as relações entre o poder estatal e a classe
operária até a condição de populismo e a perda do comando político pelo centro
dominante, “associada à nova forma de Estado”, o que possibilitou no desenvolvimento
industrial. Mas também foi um período em que houve um comprometimento maior do
Estado com as Forças Armadas, que passaram a ser o sustentáculo do governo e ganharam
“maior autonomia em relação ao conjunto da sociedade”.
84
A década de 1930 é apontada
por Boris Fausto como o início do processo de constituição das classes dominantes:
Na descontinuidade de outubro de 1930, o Brasil começa a trilhar enfim o
caminho da maioridade política. Paradoxalmente, na mesma época em que tanto
se insistia nos caminhos originais autenticamente brasileiros para a solução dos
problemas nacionais, iniciava-se o processo de efetiva constituição das classes
dominadas, abriam-se os caminhos nem sempre lineares da polarização de
classes, e as grandes correntes ideológicas que dividem o mundo contemporâneo
penetram no país”.
85
Foi nesse contexto político e social do país que a revista contou, a cada semana, a
história de uma sociedade marcada por mudanças e se antecipou em representar uma
mulher moderna, ou seja, que contava com as facilidades dos aparelhos eletrodomésticos,
que consumia cosméticos e se vestia segundo a moda parisiense e americana. Contudo,
essa não era uma realidade hegemônica, pois se restringia às senhoras e senhoritas de uma
restrita camada social, do mundo artístico, esposas de grandes industriais e políticos.
Como já referimos, as capas, sempre coloridas, traziam fotos ou ilustrações de
mulheres em quase todas as edições. Era uma espécie de manchete sem texto, que dava
uma idéia de um dos temas de que a edição viria a tratar em suas páginas. Para anunciar,
por exemplo, que a edição trataria de guerra, e esse foi um período marcado pela
Revolução de 1930 e pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a revista trouxe na capa
da edição de 8 de setembro de 1934 uma mulher de farda fazendo continência, toda vestida
de branco, num gesto que juntamente com as bandeiras do mundo e do Brasil, pedia paz.
Quando a revista publicou um encarte especial sobre a Revolução de 1930, em novembro
daquele ano, a capa trouxe a figura de uma bela mulher com uma coroa de espinhos na
83
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 151.
84
Ibid.
85
Ibid.
47
cabeça, flexionada para frente, segurando entre os dedos da mão direita oito soldados
fardados empunhando três bandeiras, que representavam os três estados líderes da
revolução: Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais.
Em tons amarelo e verde, a capa dava uma idéia de brasilidade; a figura tinha uma
expressão serena e um ar de superioridade, mostrando a importância da figura feminina
para a revista como público consumidor. Mas também significava uma forma de desviar
a atenção de assuntos “pesados” e, ainda, atrair
a atenção dos leitores nas bancas, já que as
capas traziam belos rostos femininos.
Especificamente sobre a edição especial de
novembro de 1930, registrando a Revolução de
1930 e que circulou encartada numa das edições
daquele ano, faremos uma avaliação mais
detalhada no capítulo 3, que trata sobre a
representação das mulheres dentro de um
contexto mais político, dos pequenos registros
da presença delas junto a acontecimentos do
país, como a Revolução de 1930, a Segunda
Guerra Mundial, que a revista registrava.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 5 Capa O Cruzeiro
86
1.4 O perfil feminino de O Cruzeiro
As mudanças ocorridas até a terceira década do século passado, como a
industrialização e a urbanização, não impressionaram tanto a sociedade da época como as
relativas ao comportamento feminino, que aguçaram a crítica dos conservadores, ao
mesmo tempo em que provocaram manifestações que pediam o fim do conformismo
feminino: “tocado pela imagem depreciativa com que as mulheres eram vistas e se viam e,
sobretudo, angustiado com a representação social que lhes restringia tanto as atividades
86
O Cruzeiro. 08 set. 1934.
48
econômicas quanto às políticas”.
87
Elas reivindicavam também igualdade educacional, para
que se livrassem da monotonia e da dependência dos maridos.
Era nas cidades, as quais trocavam sua aparência paroquial por uma atmosfera
cosmopolita e metropolitana, que se desenvolveram as mudanças mais visíveis.
Através de um processo diagnosticado por vários críticos temerosos como
imperfeito e desorganizado, a nova paisagem urbana, embora ainda guardasse
muito da tradição, era povoada por uma população nova e heterogênea, composta
por imigrantes, de egressos da escravidão e de representantes das elites que se
mudavam do campo para as cidades.
88
As cidades foram eleitas pelos intelectuais “como os legítimos responsáveis pela
suposta corrosão da ordem social a quebra de costumes, as inovações nas rotinas das mulheres
e, principalmente, as modificações nas relações entre homens e mulheres”.
89
Isso porque
acreditavam que as cidades conseguiam sintetizar experiências, variedades de questionamentos
e linguagens novas, essas que conseguiam fazer subir as saias e aumentar os decotes
femininos, por volta de 1917. Conforme mostra a obra História da vida privada no Brasil: “As
inovações trazidas pela tal vida moderna povoavam as páginas dos mais diferentes tipos de
literatura, o que por si só indicava um forte movimento em prol da defesa de determinadas
instituições basilares da sociedade, mesmo que para isso fosse necessário acatar mudanças e
introduzir outras. Nada, entretanto, que pudesse ferir a legitimidade das regras do sistema
familiar e social.”
90
Em nome da família, fiscalizavam-se padrões de comportamento e
condenavam-se os desvios das normas; as relações fora do contrato matrimonial eram
consideradas ilícitas e o discurso enfatizava que a união matrimonial precisava se dar por uma
ligação de amor.
91
Foi nesse contexto de mudanças por que passavam as mulheres de todas as
classes sociais que O Cruzeiro mostrou alguns dos perfis femininos do período. As mulheres
87
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau.
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p.369-370.
88
Ibid., p. 371.
89
Ibid.
90
Ibid., p. 385.
91
É interessante observarmos ainda que, segundo a obra já citada, “foram, porém, as camadas mais baixas
da população operários, imigrantes, mulheres pobres, mulheres sós, negros e mulatos que tiveram o
comportamento mais fiscalizado e submetido a medidas prescritivas. As múltiplas e improvisadas
formas de união amorosa nesses segmentos receberam especial atenção das camadas médias e altas,
bem como dos intelectuais conservadores e dos clérigos. Decididas a institucionalizar o amor com
vistas a sustentar uma determinada ordem social, as elites transformaram em ameaça os
relacionamentos ajustados por padrões mais flexíveis e simétricos, classificando de imorais as uniões
cujo epílogo não coincidia com o casamento. (41)” (MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos
do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia
das Letras, 1998. p.387).
49
apresentadas por colunas, capas e publicidades da revista nada têm a ver com aquelas que
pertencem às classes menos favorecidas,
92
a grande maioria.
É interessante observarmos ainda que a realidade das mulheres representadas por O
Cruzeiro referia-se às classes sociais elevadas, completamente diferente da popular, da
realidade das mulheres que lavavam roupas em cortiços e que conviviam em espaços
apertados, pobres, onde se misturavam gerações diferentes de pessoas. Já nos casarões dos
centros das cidades, abandonados por causa das epidemias, principalmente no Rio de
Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador, dezenas de pessoas do povo se amontoavam e
ocupavam todos os espaços subdividindo a área onde antes moravam poucos indivíduos.
93
A sociedade industrial, que tornou a vida mais fácil e dominou a natureza, ao mesmo
tempo, contribuiu para aumentar as desigualdades sociais. É uma sociedade que
personifica a razão e que transforma as necessidades individuais em aspirações políticas;
assim, os interesses particulares se sobressaem aos da coletividade. Nas palavras de
Herbert Marcuse, é uma sociedade que tem um padrão de vida crescente:
Não obstante, essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é
destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas:
sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra: seu crescimento, dependente
da representação das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência
individual, nacional e internacional. Essa repressão, tão diferente daquela que
caracterizou as etapas anteriores, menos desenvolvidas, de nossa sociedade, não
opera, hoje, de uma posição de imaturidade natural e técnica, mas de força. As
aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são
incomensuravelmente maiores do que nunca dantes o que significa que o
alcance da dominação da sociedade sobre o individuo é incomensuravelmente
92
A mulher operária, que começa a ganhar espaços servindo como mão-de-obra para as fábricas nas
cidades, não era o público-alvo, nem o objetivo informativo da revista; da mesma forma, a agricultora e
a dona de casa pobre são perfis femininos sequer mencionados nas reportagens e colunas.
93
Podemos observar ainda que nesses locais aconteciam conflitos e brigas domésticas por causa das
péssimas condições de sobrevivência. “O conceito de lar, definido pela época, não se aplicava a esses
lugares que eram insalubres e promíscuos. No conceito de que lar para este período representava o
núcleo organizador das suas vidas e por isso, as favelas e os cortiços não eram considerados casas. Em
São Paulo, nos Bairros Mooca e Brás surgiam as primeiras aglomerações operárias. No Bexiga, por
volta de 1930, a grande maioria dos trabalhadores não possuía vínculos empregatícios e eram
vendedores de gelo, sapateiros, carroceiros. As mulheres do bairro, por sua vez, ocupavam-se sobretudo
da lavagem de roupas, batidas nas pedras às margens dos riachos ou nos tanques coletivos, afazeres
para os quais contavam com a ajuda das suas crianças que, com grandes trouxas de roupas, iam e
voltavam das partes altas onde morava a clientela, encarregadas também, ao longo do dia, de vigiar a
secagem das mesmas, guardadas tal como um rebanho” (WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da
escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: SEVCENKO, Nicolau. v.3.
História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 117).
50
maior do que nunca dantes. A nossa sociedade se distingue por conquistar as
forças sociais centrífugas mais pela Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice
base numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente.
94
Essa sociedade contraditória, que se realiza privilegiando a nova produção
mecanizada, recolhe forças de trabalho e gera cidades complexas, com habitações,
comércio, consumo, novas formas de vida, que têm na base a industrialização e “enquanto
entidade física ou como fenômeno cultural, revela-se principalmente como uma
contradição perigosa e dramática do próprio sistema que a gerou.”
95
São cidades que
apresentam problemas apesar das riquezas que geram, como mostra Herbert Marcuse:
A burguesia industrial, portanto, ainda que se vangloriando do novo modelo de vida
oriundo de sua revolução, começa a nutrir graves preocupações sobre sua mais
importante criação histórica: a cidade industrial. Devido a isso e, sobretudo, ao fato
de não mais ser possível esquecer a existência da cidade, nem ao menos
redimensioná-la de uma só vez, começam a ser utilizados novos modelos de
desenvolvimento com fortes implicações “anticapitalistas” ou, ao menos, limitativos
com respeito ao originário sistema liberal, introduzindo alguns novos critérios
operativos: uma difícil reavaliação dos poderes e do papel do Estado, um eficaz
“planejamento” do desenvolvimento urbano, uma sólida “política das classes
médias”. Ora, uma característica fundamental deste ciclo histórico, nada breve, é a
contínua incerteza em que se desenvolve qualquer acontecimento de relevo, e isto
vale tanto para as inovações técnicas quanto para a composição dos novos grupos
sociais e das categorias que vão se formando nestas situações particulares.
96
No cenário da vida burguesa brasileira, a partir de 1930, os bairros elegantes em
capitais como São Paulo ganham uma verticalização, com sete a oito andares e com
portarias luxuosas, seguindo as experiências européias de edificação. O Rio de Janeiro
desde 1910-1920 já vinha de uma crescente construção de unidades habitacionais verticais,
principalmente nos bairros da Zona Sul.
As mulheres pertencentes a essas camadas (as mais altas da sociedade) encontraram
na revista páginas que descreviam sua realidade de vida; as mais conservadoras tinham
espaços como escritoras e colunistas, e as leitoras que se identificavam com essas idéias
podiam contar com as colunas Donna e Donna na Sociedade. Já, para aquelas que diziam
não mais servir apenas ao tanque e ao fogão e que ocupavam as ruas para exigir direitos e
94
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 14.
95
MARIANI, Ricardo. A cidade moderna entre a história e a cultura. São Paulo: Nobel, Instituto Italiano
di Cultura di São Paulo, 1986. p. 6.
96
Ibid., p. 6-7.
51
protestar, num espírito feminista que se intensificou nesse período, não tem voz na revista.
Os temas desses debates enfrentam a oposição masculina e são mencionados em algumas
colunas, como nesta de Humberto Campos, de 1930, sobre o voto feminino:
Acha-se retido na pasta de uma das comissões na Câmara dos Deputados um
projeto do Sr. Augusto de Lima concedendo às mulheres o direto de voto e,
conseqüentemente o de serem votadas. No Senado encontra-se, igualmente,
outro, do velho republicano Justo Chermont, que encheu de esperanças, durante
algum tempo, as nossas feministas.
Juiz occasional, e impossivel, como deputado provavelmente reconduzido ao seu
posto por mais tres annos, eu me sinto à vontade, ainda, para tratar de assumpto
de tanta relevancia aos olhos das senhoras que se batem por esse ideal. E o meu
ponto de vista é, em parte, e apparentemente, contrario às suas aspirações. Que
desejam ellas, em verdade, pela voz dos seus defensores e das pioneiras do
movimento? A igualdade política dos sexos, isto é, que todas as mulheres que
sabem ler e escrever possam eleger e ser, como conseqüência, eleitas para os
mais altos cargos do governo. E é isso que eu considero, mais do que uma
aventura, uma calamidade. Lendo-me ou escutando-me com attenção, as
senhoras intelligentes verão, todavia, que eu raciocino com acerto. [...]
97
Manifestações desmerecendo as mulheres e a sua capacidade de voto, como a
transcrita, são apenas um dos exemplos das discussões que eram feitas nesse período em O
Cruzeiro sobre o voto feminino. Apesar de a revista abordar o universo feminino e trazer belas
mulheres nas capas, não proporcionou muito espaço para este debate, demonstrando dessa
forma que interessava para o magazine apenas que as mulheres consumissem. Nela aparecem
apenas manifestações isoladas de alguns colunistas, posição que não era apenas da revista, mas
da maioria dos veículos de comunicação da época. Com relação à luta pela liberdade feminina,
a imprensa mostrou-se sempre contrária, e as charges publicadas, revelam homens fazendo um
papel ridículo ao executarem trabalhos domésticos, vistos como “duros e penosos”.
98
O voto feminino é apenas uma das tantas lutas que as mulheres travaram por
igualdade de direitos. No decorrer da história, especialmente da brasileira, elas foram
galgando espaços à medida que se organizavam por afinidades de interesses e reivindicavam,
mas o seu ingresso na universidade brasileira foi permitido somente em 1879
99
. Com tantas
dificuldades e problemas que sempre circundaram o mundo feminino, a revista de grande
97
O Cruzeiro, 22 mar. 1930, por Humberto de Campos (pertencia à Academia de Letras e escrevia quase
todos as semanas na revista) p. 3.
98
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau.
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 378.
99
CANAL KIDS. Cidadania: a história do voto. Disponível em:
<,http://www.canalkids.com.br/surpresa/cidadania_voto.htm> e COMISSÃO NACIONAL SOBRE A
MULHER TRABALHADORA. Disponível em: <http://www.cut.org.br>. Acesso em 14 abr. 2002.
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tiragem nacional procurou enfatizar muito mais libido, vaidade e mito fantasioso das
mulheres num período definido como moderno, do que tratar dos problemas e da dura
realidade da maioria das brasileiras, que viviam na mais completa submissão.
Quando do processo de independência brasileira de 1822, elas foram excluídas.
Sonharam em vão na Constituição outorgada em 1824, que não garantiu direitos as
mulheres. No decorrer da República Velha, por diversas vezes, manifestaram repúdio ao
preconceito de que a mulher não era apta para a vida política e chegaram a criar um partido
em 1910
100
. Além do Partido Republicano Feminino, elas fundaram a Liga para a
Emancipação Feminina e, em 1922, formaram a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, tudo com o objetivo de um dia conseguirem votar. Foi somente em 1934, no
governo de Getúlio Vargas, a partir da Constituição de 1934, quando se consagrou o
princípio de igualdade entre os sexos, que as mulheres tiveram direito ao voto, o qual,
aliás, passou a ser obrigatório em todo o território nacional.
Durante o desenvolvimento deste trabalho, procuramos compreender como o Brasil
implementou as mudanças trazidas pela modernidade no período recortado, como essas se
refletiram nas representações simbólicas das mulheres, já que nos anos de 1930 a 1940 o
país passava por transformações na economia e na organização social, agora mais urbana.
Aos poucos fomos compreendendo como era a mulher representada nas páginas de
O Cruzeiro. Fomos encontrando, cada vez mais, um universo feminino glamouroso, pois as
moças da época se espelhavam nas estrelas de Hollywood, usavam cosméticos e sonhavam
em ser famosas, em ganhar concursos de beleza. Além das famosas do cinema, a revista
revelava as estrelas do rádio, do teatro e do cinema nacional. As belas mulheres
preenchiam as páginas em fotos, em relatos pitorescos das suas intimidades, em registros
de presença e participação em eventos sociais, como bailes e salões de festas. Eram
brasileiras entrando numa nova fase, despedindo-se das saias longas para vestir maiô e
banhar-se nas praias tropicais, excitando a imaginação de cronistas e poetas, como de Luiz
Maciel, que escreveu “Copacabana Girl [...]”,
Todas as manhãs cálidas de verão, meus olhos ansiosos se alongam pela sacada
do apartamento em que moro para acompanhar o vulto esbelto e alucinante de
“Jeannette”, correndo triunfante sobre a areia “fofa” da praia de Copacabana
balneário cosmopolita e pitoresco do mundanismo carioca nessas gloriosas
100
CANAL KIDS. Cidadania: a história do voto. Disponível em:
<,http://www.canalkids.com.br/surpresa/cidadania_voto.htm> e COMISSÃO NACIONAL SOBRE A
MULHER TRABALHADORA. Disponível em: <http://www.cut.org.br>. Acesso em 14 abr. 2002.
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manhãs de intenso calor que se anunciam ao longe, com os primeiros reflexos de
sol majestoso, que anuncia, com requinte de inaudita beleza, todo o esplendor da
primavera!
101
Ao mesmo tempo em que busca aguçar a imaginação dos leitores sobre a beleza da
moça descrita na crônica, o autor aproveita para divulgar produtos. Aqui, o limite entre a
informação e a publicidade é tênue, para não dizer, quase inexistente. Observam-se, na
seqüência da crônica, dois parágrafos em que o autor faz referências à moda do momento,
donde ela viria e por que Jeannette seria considera uma girl :
E a fluídica agitação das ondas glaucas do oceano, parecendo-nos ocultar
misteriosos segredos de todos os destinos, recebe-a diariamente no seu seio
oquerso, de onde ela surge correndo em volta nas malhas coloridas de um dos
modelos mais recentes de “Cetim Lastex” inspirado pelo famoso figurinista
americano “Flexees”. Cabelos rorejantes, as faces luminantes de sol e de alegria
para em seguida deitar-se, na areia esbrasiante da praia, onde o sol lhe enxuga
lentamente a epiderme fresca e perfumada do seu corpo esbelto e afrodisíaco!
102
O tema beleza é a tônica de quase todas as publicidades e colunas da revista. A
instigação ao culto da beleza faz parte de várias colunas e propagandas, além da promoção dos
concursos que premiam as mais belas. Em 6 de julho de 1929, O Cruzeiro trouxe a seguinte
manchete no alto da página 21: “A parada de Maillot em Galveston”. Tratava-se do concurso
Miss Brasil, organizado pela própria revista, que movimentou a sociedade brasileira e elegeu
Olga Bergamini; posteriormente, ela concorreu a Miss Universo 1929, perdendo para a
americana Elizabeth Goldarbeiter (Lise) de Galveston. “Miss Brasil para Galveston” rendeu as
páginas 22, 24 e 25 e uma das legendas dizia: “Vista parcial da sala de jantar, do Bietmore
Hotel, em Nova York, no dia em que se realizou, sob os auspícios de Brazilian American
Association, o grande banquete em honra da senhorita Olga Bergamini de Sá, que se vê a
direita, ao alto, em baixo do pavilhão nacional”.
O assunto foi explorado em várias outras edições. Na do dia 20 de julho de 1929, a
revista publicou mais duas páginas ilustradas com muitas fotos e feitas por uma equipe
enviada aos Estados Unidos especialmente para cobrir o concurso de Miss Universo, que
se realizara em Nova York. Uma das legendas, sob o título “A chegada da Miss Brasil”,
101
O Cruzeiro, 12 dez. 1942. p. 19.
102
Ibid., p. 19.
54
revelava: “O Cruzeiro apresenta aqui vários flagrantes do desembarque da senhorinha Olga
Bergamini de Sá, na Praça Mauá, de regresso de sua viagem a Galveston”.
De todas as edições do mês de julho de 1929, apenas a do dia 13 não tratou do
concurso, cujas repercussões se estenderam até a última edição do mês. No dia 27 de julho
de 1929, na página 4, Medeiros e Albuquerque, da Academia Brasileira de Letras, escreveu
o artigo “Eugenia e Belleza - Escripto especialmente para o presente número de O
Cruzeiro”, no qual reforçava a importância do concurso para estimular as moças ao culto
ao corpo, a fim de ficarem belas através de exercícios físicos:
Quando ainda estava funcionando o congresso de Eugenia, uma associação
comercial do Rio de Janeiro propôs que se desse annualmente um premio de
belleza feminina. As duas coisas não tiveram nenhuma relação apparente.
No entanto, ellas são absolutamente correlatas. Não se tinha achado até agora
meio algum de interessar as nossas patrícias nos exercícios physicos.
O concurso de belleza fará esse milagre. De um modo geral, quasi todos os sports
servem para o desenvolvimento physico e são, portanto, recomendáveis. [...]
O concurso de belleza veiu criar para todas as moças um ideal: o ideal de ser um
dia a escolhida, passear em triumpho pela Avenida, ter o seu retrato em todos os
jornaes, o seu nome em todos os lábios.
No ultimo concurso, de que saiu vencedora Olga Bergamini, entraram muitas
moças pobres. Em um dos Estados os operários tornaram feriado o dia da eleição
só para votar em uma filha das de sua classe.
Escolheram mal. A eleita era uma rapariguinha sem belleza alguma.
Desde, porém, que se sabia que continuará a haver a justiça que houve este anno,
cada uma procurará tornar-se realmente digna de merecer o premio. E como elle não
é dado unicamente pelo rosto, mas por todo o corpo, vae nisso um incitamento para
que todas o procurem desenvolver harmoniosamente, tornando-o admirável.
103
Outro perfil interessante mostrado em colunas e publicidades é o da dona de casa,
que, pela análise aqui feita e pelas informações das colunas e das publicidades da revista,
compreendemos que pertencia à sociedade dos grandes centros, principalmente Rio de
Janeiro e São Paulo, as classes média e alta. Submissa ao marido, ela deveria ser a mãe de
filhos saudáveis, para o que receitas não faltavam, como está na coluna “Lar doce lar”:
103
MEDEIROS e ALBUQUERQUE, Eugenia e belleza. O Cruzeiro, 27 jul. 1929. p.4. A grafia é
preservada segundo a revista. Nesse período, O Cruzeiro dificilmente acentuava as palavras e o ph, ll e
nn ainda faziam parte da escrita da época. Além disso, é comum nesses primeiros anos de revista a falta
de uma seqüência lógica nas páginas do impresso, como acontece hoje. Muitos artigos e colunas
começavam na página 5, por exemplo, e continuavam numa anterior, que poderia ser a 2 ou a 3.
55
Muitas esposas costumam se queixar de seus maridos, das vezes em que eles as
deixam em casa, e outras coisas assim [...] mas é preciso antes de condenar, ver
se elas não tem um pouco de culpa, nisso tudo. Fazer um exame introspectivo,
sobre o começo da vida de casados e verificar desaprinonadamente as faltas
cometidas, mesmo sem querer [...]
Por exemplo [...] se o marido de uma das nossas leitoras tem semana inglesa, isto
é, trabalha aos sábados só até meio dia, ela por acaso já pensou, que sendo
assim, não deve ficar totalmente absorvida por afazeres diversos, nesse dia? Não
deve escolher, justamente o sábado, depois do meio dia, para a limpeza da casa,
enceramentos [...] para a sua “tollette” quando demorada, como manicura, ou
depilação de sombrancelhas; para usar mascaras de beleza. Por que não fazer
com que o sábado e mesmo o domingo sejam dias diferentes também para a
espôsa, se o são para o marido?
104
No último parágrafo, a articulista reforçava: “Aí estão alguns pontos que parecem
insignificantes, que muitas mulheres poderão julgar sem importância, mas que ajudam a minha
leitora a fazer com que o seu lar seja sempre verdadeiramente, um lar doce lar [...].”
105
Também na coluna “Da mulher para a mulher” encontramos conselhos para ser uma
boa esposa. Na edição de 12 de dezembro de 1942, a coluna de “Maria Teresa” ensinava
nove regras para se conseguir agradar o marido. A colunista perguntava às leitoras se elas
se aborreciam com a disciplina com freqüência, se ficavam tristes sem ter motivos, se
descuidavam da aparência e eram esbanjadoras. Caso as respostas fossem “não”, a leitora
era considerada uma boa esposa. Vejamos o texto:
Pode-se construir uma felicidade. Na verdade, alguém poderá opor-se às
adversidades do destino, evitando o inevitável, tornando possível o impossível.
Mas, na medida das forças humanas, dependendo a construção de um lar de
fatores inteiramente práticos e psicológicos, cabe a cada uma de nós e aos
homens também uma grande serie de atos que poderão nos conduzir com
alegria a vida conjugal.
Porém, não é muito fácil ser uma boa esposa. Há muitos pontos a considerar [...]
Por exemplo, seria interessante comprovar se você, que é casada, se sente
realmente feliz com o seu estado civil. Isso não é muito difícil de saber [...]
Faça a si mesma as seguintes perguntas: - “Crê que as moças que se casam
abandonando a agradável vida de solteira, cometem uma loucura?” “Você conta
a todos os bens que sacrificou ao casar-se?” “Aconselha as amigas casadouras
que aproveitem bem antes de começarem uma existência que tem muito de
escravidão?” “Acha que o casamento traz mais dores traz mais dores de cabeça
do que alegria?”Se você responder a estas perguntas com “não”, pode estar certa
de que fez muito bem em casar-se. E de que, por tanto, é uma excelente
companheira para o seu esposo. Há, porém, outras interrogações a fazer, para que
104
SANGIRARDI, Helena. Seja uma boa companheira. O Cruzeiro, 15 abr. 1944. Coluna Lar doce lar, p. 76.
105
Ibid., p. 76.
56
você possa lançar um suspiro de alívio se caso as responda negativamente.
1 Molesta-a tudo que significa disciplina?
2 Aborrece-se facilmente?
3 Insisto em firmar opinião, embora saiba que isso contraria seu marido?
4 Critica seu companheiro a meudo tentando modificar sua personalidade?
5 Possui sensibilidade demasiado exaltavel?
6 Fica triste com frequencia sem que haja motivo?
7 Sendo obrigada a reduzir suas despesas, procurará economizar as coisas de
casa e não no seu guarda-roupa?
8 É descuidada?
9 É esbanjadora?
106
Com as perguntas feitas, a autora aconselhava as mulheres a serem boas esposas, o
que mostra o contraste com o perfil feminino apresentado pela revista em outras colunas,
como Garotas, por exemplo, que buscava mostrar uma mulher moderna. A representação
dos estereótipos de mulher modernizada, que usa cosméticos e está na moda, contrapunha-
se à orientação das colunas da revista, que aconselhavam as mulheres a não se libertarem
das amarras do marido e permanecerem apenas como donas de casa. Elas poderiam, sim,
aderir aos novos padrões de comportamento, especialmente às novas formas de beleza, mas
não deveriam deixar de lado os padrões antigos de comportamento. Ou seja, poderiam
conciliar consumo que era considerado um padrão moderno com os antigos deveres
femininos com o marido, a casa e os filhos. As colunas da revista sugerem ainda que as
mulheres consumidoras são consideradas modernas.
Uma das justificativas para as mulheres permanecerem submissas aos homens era a
educação, pois elas seriam destinadas a dar continuidade ao ciclo: casar, ter filhos, ser uma
boa esposa. Esse perfil de mulher também era considerado moderno, porque ela era livre
para ser boa consumidora e cuidar muito bem do corpo, mas, precisava continuar presa
intelectual e socialmente aos mesmos padrões de vida de suas mães e avós. Se a mulher
ainda precisava de receitas para ser uma boa esposa, é de se questionar: quando alcançariam
a modernidade vendida pela revista, pelos produtos de beleza e pela representação das
figuras estereotipadas de Hollywood e famosas da época? O que se percebe é que a mulher
alcançava apenas uma “independência” consumista, e ainda com o dinheiro dos maridos,
porque poucas usufruíam uma liberdade financeira própria.
Nesse período as mulheres que ainda dependiam dos maridos precisavam ser boas
esposas, donas de casa e ainda estarem sempre muito bem apresentáveis para os seus
106
O Cruzeiro, 12 dez. 1942. p. 59, com continuação do assunto na p. 68. Esta coluna de Maria Teresa
recebia também das leitoras, correspondências que ganhavam respostas com conselhos sobre
relacionamentos, crises conjugais, angústias das jovens sobre o futuro. A postura da autora era sempre a
de que a função da mulher era obedecer, agradar ao marido e ser elegante.
57
homens, recomendavam as colunas da revista. Para tanto, eram-lhes oferecidas receitas e
conselhos, procurando aprimorar “a difícil arte” de ser esposa. Esses conselhos, em 1935,
incluíam bom humor, a necessidade de aprender a cozinhar e a respeitar a profissão e o
tempo do marido:
SE A PALAVRA É DE PRATA O SILENCIO É DE OURO. Não fale com seu
marido senão quando elle terminar de barbear-se ou escovar os dentes. Não o
importune quando estiver se barbeando; para o homem o vestir-se e barbear-se é
como a celebração de um rito que a mulher não deve interromper. Lembre-se de
que o mais eloquente dos homens é calado de manhã.
Prepare a mesa para a primeira refeição de maneira que seu marido sente-se a
ella com prazer.
Não esqueça de collocar o cinzeiro ao lado do talher.
Não o interrompa quando elle ler o jornal; não lhe faça perguntas. O esposo, ou
fala por si, sem que o interroguem, ou prefere conservar-se calado.
De quando em vez procure provar-lhe que você estava sem razão.
Se seu esposo tem algum hábito ou preferência especial, procure satisfaze-lo sem
insinuar que você assim procede por fazer-lhe a vontade.
Não fale em demasia dos amigos delle, mas também não os esqueça.
APRENDA A COSINHAR.
Não diga que só cosinha para elle e sim para ambos.
Não prepare muito amiudadamente seus pratos favoritos.
Não ande de chinellas, nem mesmo na cosinha.
O BOM HUMOR DA ESPOSA É UM REPOUSO PARA O MARIDO
Não se queixe. [...]
O MARIDO VÊ O VESTIDO DE SUA ESPOSA, E, NÃO A ALMA.
Mude de vestido diariamente, se possível. Se o guarda roupa que possue não fôr
abundante, varie o toilette com uma golla nova, uma gravata, um collar.
Nunca appareça a seu marido com um vestido que não ousaria exibir às visitas.
[...]
RESPEITE A PROFISSÃO E TEMPO DE SEU ESPOSO.
Quando seu esposo voltar à noite do emprego deve sentir a impressão de que
você o esperava com impaciência.
Elle terá prazer vendo que você fez todos os arranjos necessários e que pôde
sentar-se à mesa.
107
O texto, na seqüência, sugere que as mulheres evitem ficar doentes e chatear os maridos
com os problemas do cotidiano doméstico, além de não deverem demonstrar sentimento,
principalmente o de ciúmes por outras mulheres. Esse idealismo da boa esposa, segundo o
texto, era a maneira de evitar maiores dificuldades nos casamentos. A fórmula da esposa ideal
colocava a mulher no papel de uma serviçal disponível ao marido, disposta a aceitar e
concordar com a submissão e, ainda, manter sempre um sorriso nos lábios. Evidencia-se, dessa
forma, uma época em que os padrões sociais não se alteravam, a pesar de muitos anúncios de
produtos que prometiam às mulheres uma nova fase, a da era moderna.
107
O Cruzeiro, 11 maio 1935. p. 32.
58
A esposa virtuosa era aclamada pela sua moral, por ter “complacência e bondade,
para prever e satisfazer os desejos do marido”
108
; ela precisava ser simples, justa, modesta
e ter bom humor. “Seu antípoda ameaçador era a moça dos tempos modernos,
‘esbagachada’, cheia de liberdades, “de saia curta e colante, de braços e aos beijos com os
homens, com os decotes a baixarem de nível e as saias a subirem de audácia [...]”.
109
Com tom professoral, as revistas da época, especialmente as femininas, ditavam as
normas de comportamento para as boas moças e mulheres virtuosas. Entretanto no
crescimento urbano social, que colocava em conflito costumes e tradições mistas e desiguais,
a imprensa procurava mostrar a importância da educação para as moças daqueles anos e para
as meninas modernas, que se deparavam com uma sociedade contraditória a sua volta:
“Acolhiam-se, assim, os propósitos positivistas e impunham-se uma missão, a de moldar o
pensamento, o comportamento e, em última análise, o caráter das gentes”.
110
Os casamentos
deveriam ser entre as pessoas do mesmo nível social; “Novas estratégias de educação
amorosa eram elaboradas com o objetivo de preservar o tradicional modelo matrimonial. Se
o propósito era expandir e legitimar a instituição conjugal, a causa final consistia em
normalizar a sociedade e regrar os comportamentos sexuais”.
111
Entre as tantas tarefas que cabiam as mulheres estava a de “apaziguar a
sensualidade do casal”. Além disso, considerava-se que o culto à beleza deveria levar em
conta os princípios médicos higiênicos e nunca a sedução. Para isso, os discursos
higienistas de educadores e médicos procuravam frear a libido feminina, estabelecendo
limites entre a “vaidade das mulheres honradas” e a “libertinagem das de condutas
duvidosas”, que desfilavam pelos mais variados pontos da cidade. E nesse contexto a
relação conjugal deveria ser “mais marcada pelo respeito do que pelo princípio do
prazer.”
112
Era preciso, no entanto, ouvir os conselhos médicos, no sentido de orientar as
mulheres para a vida sexual a fim de manter a estabilidade dos casamentos.
113
108
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau.
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 390.
109
Ibid.
110
Ibid.
111
Ibid., p. 391.
112
Ibid., p. 392
113
No embate da educação sexual, educadores dividiam-se entre os conservadores, que defendiam o silêncio
sobre o tema para não ofender o pudor, e os que acreditavam que os jovens precisavam ser educados para a
vida sexual. Os inovadores acreditavam que a vida moderna ameaçava a moral; por isso, era preciso educar
os jovens como forma de vencer o problema. Era preciso, então, debater a educação sexual dos jovens já que
“os doutores mostravam-se cada vez mais preocupados com a inocência, a ignorância e, principalmente, a
brutalidade que cercavam as práticas sexuais, desastrosas para a estabilidade do casamento” (MALUF,
Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau. História da vida
privada no Brasil. v .3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 79).
59
Também era necessário dizer aos mais conservadores, especialmente às mulheres,
que a sociedade estava mudando e que era preciso acompanhar as inovações para não se
sentir velha. Maria Eugênia Celso, uma das colunistas que ocupava um espaço nobre na
página 3 da revista a partir de 1940, escrevendo sobre os mais variados temas daqueles
anos, sempre enfocando a realidade feminina” escreveu:
No meu tempo [...]
No meu tempo [...]
Não diga isto, minha senhora! Não diga isto, nem brincando [...] envelhece logo
de vinte anos, pelo menos. Seu tempo é o de hoje e tem de ser o de amanhã, se
quiser conservar alguns anos ainda seu vitorioso centro da mulher bonita.
Quando uma pessoa começa a achar-se destoante do tempo que corre é porque
envelheceu.
114
A discussão entre o que é e o que não é moderno está presente em praticamente todas
as colunas e, mesmo naquelas em que o tema não está claro, há uma forte tendência a defender
uma ou outra posição, sempre tendo em vista que a modernidade existia sem que, com isso, se
alterasse a ordem social estabelecida. Era preciso manter homens e mulheres com seus papéis
bem definidos na vida a dois: as mulheres sendo donas de casa, mães e esposas; os maridos
preocupando-se com o sustento familiar e com as atividades sociais e políticas.
1.5 Sob a maquiagem um universo a descobrir
Procurar entender mais sobre a realidade do mundo feminino de 1928 a 1945 foi uma
das formas encontradas para podermos decodificar os textos sobre as mulheres na revista. As
mudanças ocorridas no início do século XX e final do XIX deixavam alguns segmentos mais
conservadores da sociedade com uma certa “ansiedade”, e as mulheres ainda pagavam caro
pela ousadia de adotarem padrões de comportamento mais independentes dos homens. As
senhoras precisavam conservar atitudes sérias; além de serem modestas, deveriam impor
respeito. As casadas deviam obediência ao marido e aos pais; jamais lhes era permitido que
saíssem à rua com um homem que não fosse seu pai, irmão ou marido. Essa realidade causou
repúdio no começo do século XX, resultando num brado de inconformismo, e quando as
114
O Cruzeiro, 10 nov. 1945. p. 3.
60
mudanças surgem, deixam os conservadores perplexos, como mostra a História da vida
privada:
As mudanças no comportamento feminino ocorridas ao longo das três primeiras
décadas deste século incomodaram conservadores, deixaram perplexos os
desavisados, estimularam debates entre os mais progressistas. Afinal, era muito
recente a presença das moças nas camadas médias e alta, as chamadas “de boa
família”, que se aventuravam sozinhas pelas ruas da cidade para abastecer a casa
ou para tudo o que se fizesse necessário. Dada a ênfase com que os
contemporâneos interpretaram tais mudanças, parecia ter soado um alarme.
115
As mulheres tinham, ainda, o dever de serem boas donas de casa, de cuidarem da
família, dos filhos e do marido, como a mesma obra descreve sobre a desumanização da
mulher sempre fora da cultura e vista como a rainha do lar:
O dever das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do século foi, assim,
traçado por um preciso e vigoroso discurso ideológico, que reuniria conservadores e
diferentes matizes de reformistas e que acabou por desumaniza-las como sujeitos
históricos, ao mesmo tempo que cristalizavam determinados tipos de comportamento
convertendo-os em rígidos papeis sociais. “A mulher que é, em tudo, o contrário do
homem”, 12 foi o bordão que sintetizou o pensamento de uma época intranqüila e
por isso ágil na construção e difusão das representações do comportamento feminino
ideal, que limitaram seu horizonte ao “recôndito do lar” e reduziram ao máximo suas
atividades e aspirações, até encaixa-la no papel de “rainha do lar”, sustentada pelo
tripé mãe-esposa-dona-de casa.
116
Numa realidade em que não se deixava espaço para a realização da mulher fora do
lar, o discurso era bastante conhecido: “O lugar da mulher é o lar, e sua função consiste em
casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos cidadãos de amanhã.”
117
Aos
homens, por sua vez, cabia a função de sustentar a família; eles pertenciam à rua, ao
trabalho e ao mundo. O único local que permitia uma mulher na administração era a casa,
mas cabia ao pai ser o “ministro da Fazenda”. Cada um tinha a sua função, marido e
115
O Cruzeiro, 10 nov. 1945. p. 368.
116
Ibid., p. 373.
117
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau.
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 374.
61
mulher tinham papéis complementares, “mas, em nenhum momento, igualdade de
direitos”.
118
Era uma função que, segundo autor encobre o ser mulher:
A imagem da mãe-esposa dona de casa como a principal e mais importante
função da mulher correspondia àquilo que era pregado pela igreja, ensinado por
médicos e juristas, legitimado pelo Estado e divulgado pela imprensa. Mais que
isso, tal representação acabou por recobrir o ser mulher e a sua relação com as
suas obrigações passou a ser medida e avaliada pelas prescrições do dever ser. (13)
No manual de economia doméstica O lar feliz, destinado as jovens mães e “a
todos quantos amam seu lar”, publicado em 1916, mesmo ano em que foi
aprovado o Código Civil da República, o autor divulga para um público amplo o
papel ser desempenhado por homens e mulheres na sociedade, e sintetiza,
utilizando a idéia do “lar feliz”, a estilização do espaço ideologicamente
estabelecido como privado.
Nem a todos é dado o escolher sua morada, pois em muitos casais a instalação
depende da profissão do chefe”, afirma o compêndio, em consonância com o
Código.
119
O Código Civil brasileiro, criado em 1916
120
e que só teve a sua reforma concluída no
ano de 2002, entrando em vigor a partir do dia 11 de janeiro de 2003, portanto com
aproximadamente 87 anos de existência sem sequer sofrer alguma alteração, já trazia quando
da sua criação a continuidade da submissão da esposa ao marido, mesmo em tempos de
propagação de um mundo moderno. Vários preceitos colocavam a mulher na condição de
inferioridade em relação ao homem: o marido podia utilizar-se da força para impor-se à esposa
em caso de desobediência, situação considerada de violência “legítima”; para trabalhar, ela
dependia da autorização do esposo ou de um juiz; cabia ao marido também a administração
118
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau.
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 375.
119
Ibid., p. 374.
120
A obra de Nicolau Sevcenko traz uma explicação mais detalhada sobre o Código Civil brasileiro: “O
Código de 1916 interpretou o modo como cada um dos cônjuges deveria ser apresentado socialmente. Um
conjunto de normas, deveres e obrigações, com seu correlato inibidor e corretivo, foi formalmente
estabelecido para regrar o vínculo conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. A cada representante da
sociedade matrimonial conferiu-se um atributo essencial. Assim, se ao marido cabia prover a manutenção
da família, à mulher restava a identidade social como esposa e mãe. A ele, a identidade pública; a ela, a
doméstica. À figura masculina atribuíram-se papéis, poderes e prerrogativas vistos como superiores aos
destinados à mulher. Delineava-se com maior nitidez a oposição entre esferas públicas e privadas, base
necessária para que a mulher se torne mulher e o homem se torne homem, ao mesmo tempo que fornece
os elementos de identificação do lugar deles e delas em todos os aspectos da vida humana. As
desigualdades entre as funções desempenhadas por homens e mulheres, que os identificaram ou com a rua
ou com a casa, não vieram desacompanhadas de uma valorização cultural. Isto é, as atividades masculinas
foram mais reconhecidas que as exercidas pelas mulheres, razão pela qual foram dotadas de poder e de
valor. O trabalho era o que de fato conferia poder ao marido, assim como lhe outorgava pleno direito no
âmbito familiar, ao mesmo tempo que o tornava responsável, ainda que de modo formal, pela manutenção,
assistência e proteção dos seus. Ao ser assim considerado, o marido desempenhava função de valor
positivo e dominante na sociedade conjugal” (Ibid.).
62
dos bens, inclusive dos que a esposa trouxesse para o casamento. Ainda, a esposa era
considerada, assim como os menores de idade, índios e esbanjadores, “inabilitada para o
exercício de determinados atos civis”.
121
Na verdade, o lar idealizado pelo discurso dominante não encontrava ressonância na
vida real do Brasil do começo do século: “Se entre as mulheres da elite esse espaço tinha
efetivamente a aparência de reino, entre as camadas mais baixas do povo era difícil imaginar
que alguém pudesse “reinar” nos cortiços em que vivia a maioria da população.”
122
O homem era quem escolhia o tipo de educação dos filhos e, até mesmo, o local
onde deveriam estudar; a ele cabia também a escolha da formação profissional dos filhos.
A mulher jamais deveria ousar uma separação. Quem o tentou, naqueles anos de
radicalismo ferrenho, não obteve sucesso, principalmente porque os juristas consideravam
as mulheres como inferiores, tanto física como mentalmente, dentro da hierarquia
familiar.
123
Essa é uma realidade que pode muito bem ser observada nos textos das colunas
já citadas, principalmente na “Da Mulher para a Mulher, de Maria Teresa”, onde se
enumeraram regras para ser uma boa esposa, em “Conselhos à esposa”, que orienta como
ela deve agir para estar sempre de bom humor, ser leal e nunca reclamar.
A relação entre homens e mulheres precisava ser disciplinada e harmoniosa para
manter segura a ordem familiar. Para os conservadores, não deveria haver o menor sinal de
flexibilização das funções do casal na família, para que a ordem social constituída não
fosse ameaçada pela tal “modernidade”. Nesse contexto, ao mesmo tempo em que as
rígidas normas sociais e familiares eram determinadas, as cidades urbanizavam-se e
121
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau.
História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 374.
122
Ibid., p. 376.
123
A chefia da família era papel do homem porque eles harmonizavam as relações familiares. O exemplo
contado na obra de Nicolau Sevcenko é o da paulista Cora Magalhães, em 1928, que propôs uma ação
de desquite porque levava uma vida de vexames e humilhações. Mas o marido, Manoel Martins
Erichsen, contra-atacou entrando com um recurso que fez dele vítima. Cora perdeu a ação, num
julgamento unânime. “Processos de divórcios de ricas famílias paulistas nesse período revelam o
recurso freqüente à coerção física das mulheres. Pesquisas registram que o marido, tal como um pai, se
sentia no dever de punir com violência sua esposa quando desobedecido” (p.377). As obrigações
femininas não se restringiam ao lar. Para a sociedade, a mulher casada precisava se distinguir,
“respeitando os ditames da moral e dos bons costumes” (p.381), além de ser a responsável pela honra
da família. O casamento garantia, ainda, ascensão social e, em muitos casos, gerava bons negócios, para
quem passava por alguma dificuldade financeira. “Nos recônditos do mundo feminino a promessa é de
felicidade. Como se o casamento por amor, a realização da mais sagrada missão da maternidade e o
cumprimento regrado dos deveres da boa dona de casa fossem o passaporte para o sonhado “lar doce
lar” (p.382). Expressões como “rei da criação e o chefe da família”(p.384) eram comuns para referir-se
ao homem e ao marido. Já, para as mulheres, ficava quase que sempre aquela impressão do “mau
humor e de um dia ou mais de nervos por mês” (p. 384), situações levadas em conta até mesmo na
pergunta tradicional do sim em frente ao altar. (Ibid., p. 381-384).
63
industrializavam-se, convocando as famílias para novas formas de associação e lazer, além
de oferecer novas oportunidades de trabalho, mesmo que desiguais para as mulheres.
O Cruzeiro também oferecia uma vida moderna, com páginas recheadas de
exemplos de mulheres despojadas, como as atrizes hollywoodianas, e de produtos de
beleza que transformavam os sonhos e as fantasias femininas: “Para as mulheres, o
investimento na aparência, nas roupas e no porte oferece oportunidades de romper
hierarquias e barreiras sociais, conquistando legitimamente posições pela beleza e
elegância, como antes só fora tolerado para ‘lês grandes horizontales’, ‘les saloniéres’, ‘les
demi-mondaimes’, as ‘coristas’ e as ‘protegidas’ ”.
124
Algumas das características que revelamos aqui sobre o universo feminino
apareceriam ao longo das páginas de O Cruzeiro, em colunas e em propagandas. Com essa
mescla de caricaturas femininas apresentadas pela revista podemos construir o perfil da
mulher veiculado em suas páginas. Na verdade, eram vários perfis, que se expandem desde
a dona de casa com os seus afazeres domésticos, mas que dispõe da ajuda de uma
empregada; a educadora dos filhos, mas que encontra tempo para cuidar da aparência e é
vista também com uma mulher moderna; as que consomem e gastam muito dinheiro,
adquirem eletrodomésticos, usam produtos de higiene e ganham espaço nas páginas sociais
da maior revista do país, especialmente as esposas de políticos importantes, ou de
empresários famosos. São elas também mulheres modernas, que saem do anonimato e
integram as páginas das colunas sociais, mostrando seus feitos, seja nas legiões de
caridade, seja auxiliando os soldados revolucionários nos campos de batalha, seja,
simplesmente, marcando presença num hipódromo para assistir
a uma corrida de cavalos.
O Cruzeiro registra em página inteira a coluna “Esporte e
Elegância” e em crônica relata os nomes das sociáveis que
marcavam presença nesse espaço de esporte e de encontro
social. Na edição de 18 de novembro de 1944, na página 37, a
“crônica de G. de A.” traz fotos das elegantes no Hipódromo da
Gávea e apresenta as senhoras: “Daniel de Carvalho, [...] Carlos
Saboia Bandeira de Melo e Guedes Nogueira”, entre outras.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 6 Graça saude e belleza
125
124
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (Org.). História
da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 539.
125
O Cruzeiro. 13 abr. 1935.
64
O esporte começa a aparecer nesse período como uma das alternativas para reforçar o
culto ao corpo numa época de transformações com as ginásticas e as dietas para emagrecer.
A introdução da ginástica, a partir de 1918, foi mais uma revolução nos costumes com que
homens e mulheres passaram a contar. O esporte não apenas trazia saúde, mas também
beleza, e era estimulado pela revista em várias colunas, sobretudo na que dava conselhos
conservadores: “Da Mulher para a Mulher”. No país que queria ser moderno a qualquer
custo, o estímulo não era para o trabalho braçal, e, sim, às atividades industriais e à prática de
exercícios físicos que desenvolvessem a exuberância de um corpo saudável.
Para isso, seriam necessários não apenas banhos de mar, banhos de sol,
caminhadas, exercícios físicos, check-up periódicos, tônicos, laxantes, elixires e
emolientes, mas também todo um repertório de pós, loções, cremes, pomadas, emplastos,
sabões, sabonetes, xampus, tinturas, descolorantes, entre outros. Todos esses produtos que
se concentravam nos banheiros das casas acabaram assumindo novas funções e novas
feições, incorporando-se às peças mais modernas da casa. É nesse momento que uma das
peças mais importantes da casa passou a ser o banheiro e foi nesse período que se iniciou o
desaparecimento “da latrina de barril, do penico, do ‘tigre’, que serão então substituídos
pelo water-closet, completado nas residências mais elegantes pelo bidet francês [...]”
126
Eram tempos em que termos como “beleza”, “juventude” “saúde” eram sinônimos
de valores modernos, esses cultivados a base de uma nutrição adequada, de consultas
dentárias e médicas de forma regular e de uma impecável higiene pessoal e doméstica a ser
seguida pelas pessoas no seu dia-a-dia. As roupas já não precisavam pesar tanto e
poderiam modelar o corpo. Para ter saúde, ainda era preciso exercitar e massagear o corpo,
expô-lo ao sol, realizar caminhadas e praticar esportes. Os novos hábitos exigiam a compra
de cosméticos e de produtos de beleza e, por fim, era preciso que cada um investisse na sua
própria individualidade para acompanhar este mundo moderno que se apresentava.
Os banhos de mar estavam incluídos nesse “pacote”, primeiro, sob condições de
privacidade estrita, para proteger principalmente as moças, que precisavam da areia e da
água do mar como condição de tratamentos terapêuticos, por exigências médicas e, depois,
como lazer. Aos poucos, juntamente com a modelagem da roupa ao corpo, os maiôs e,
mais tarde, os biquínis, os banhos foram se transformando num ato de beleza, expondo a
pele ao sol.
126
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (Org.). História
da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 561.
65
Era a política da saúde, em vias de se tornar o esteio do turismo e, mais tarde,
quando em meados dos anos 30 o Estado varguista instituísse o direito geral ao
repouso anual, a fonte dessa fantasia magna de todos os que tivessem acesso aos
bens do mercado, a loucura das férias. Era uma espécie de vale-tudo, as regras se
afrouxaram e a idéia era partir para algum lugar distante, onde se pudesse
escapar do controle dos familiares, dos vizinhos, das hierarquias profissionais,
dos papeis sociais e das reservas de conduta. E também de convergir para onde
se encontravam outras pessoas em idêntico estado de excitação emocional e
pouca disposição para ceder a controles externos ou internos.
127
As leitoras do magazine em análise davam seus depoimentos sobre essa nova fase,
em que um banho de mar passou a ser uma recomendação médica, além de expressarem
também seus dilemas sobre uma das peças mais contestadas naqueles anos: o maiô. Eram
anos de transformação, contados por Rosa Branca em “O meu primeiro Maillot”:
Quem decidiu do meu primeiro “Maillot” foi o dr. Leão de Castro, medico de
casa e que me vira nascer. Um dia, na sala, onde mamãe me fizera comparecer
para elle dar sua opinião sobre minhas dores de cabeça e meu nervosismo, o dr.
Leão acariciando meus cabelos loiros, disse:
- Esta menina precisa de banhos de mar, de sol e de exercícios.
A senhora a guarda como uma boneca. Mas estas bonecas têm vida [...].
No dia seguinte mamãe me levou, antes do almoço, à cidade para escolher a
minha primeira roupa de banho. Não foi fácil. Esta era muito clara. Aquella
muito futurista. A outra muito curta. Mamãe queria um “maillot” com mangas
até o cotovello e calção, até o joelho. Achava tudo immoral.
128
Nesses tempos de surgimento das noções básicas de limpeza, de saúde e de beleza,
o principal objetivo era melhorar a imagem do corpo humano, que deveria ser cada vez
mais saudável, jovem e atlético. Os esportes substitutos da guerra intensificaram-se a partir
dos anos de 1920 e propagaram-se após a grande guerra com o objetivo de transformar
homens e mulheres em novas criaturas, com um ideal de pessoas fortes e vigorosas,
capazes de atingir novos ideais de vida.
Desde o fim da Grande Guerra as tendências de moda são para roupas leves e
“esportivas”, caindo com naturalidade, sem cintos ou constrições, de maneira a
ressaltar as formas da anatomia e a textura da pele. (95) Nesse contexto o
esporte, e tudo o que traga as suas conotações, se torna de fato um dos códigos
127
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (Org.). História
da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 563.
128
O MEU primeiro “Maillot” de rosa branca. O Cruzeiro, 13 mar. 1930. p. 16. (Edição Especial).
66
mais expressivos para estabelecer os signos da distinção social. Ele surgiu e se
impôs como um ritual elitista, revestido dos valores aristocráticos do ócio, do
adestramento militar e do sportsmanship (cavalheirismo, imparcialidade e
lealdade).
129
As angústias daqueles anos de rápidas mudanças também estavam registradas nas
páginas de O Cruzeiro, que abria espaços para que as mulheres pudessem expressar esses
sentimentos, seus dilemas, aflições e angústias de um cotidiano em transformação e que
amargava contrastes entre um passado ainda vivo e um presente que já considerava outras
formas de vida, baseadas na inovação da modernidade. E as leitoras perguntavam na
Coluna “Da mulher para a mulher”, na seção “Correspondência”:
Toda a correspondencia para esta seção deverá ser dirigida para: “MARIA
TERESA ‘Da Mulher para a Mulher’ Redação de O Cruzeiro Rua do Livramento,
191 Rio de Janeiro, acompanhada de um cupon que esta publicado na página 66 deste
número. Todas as respostas serão publicadas e em nenhuma hipótese respondidas
diretamente”.
Uma leitora de São Paulo perguntava: “Por que meu namorado proibe que me
pinte? E Maria Teresa respondia: - Por ciúme, certamente. Receia que os outros homens
possam cubiça-la [...] E, se não lhe dá uma resposta plausível, é porque receia parecer
ridiculo. Há outros que exigem que as noivas, esposas ou simples namoradas, se enfeitem
muito. Tudo depende do ponto de vista.”
130
As mães recebiam conselhos especiais nas colunas que tratavam sobre a educação
dos filhos, que se encontram em quase todas as edições da revista, especialmente nos
primeiros anos de circulação. O espaço dedicado às mulheres que têm a responsabilidade
de educar os filhos está também na coluna “Lar doce lar, ou, ainda, na “Página das mães”,
que trazia conselhos para uma educação eficiente e um manual sobre a alimentação dos
primeiros anos do bebê. O espaço da revista para com as mulheres era preenchido com
fotografias, caricaturas, publicidades, desfiles de modas e lançamentos, colunas
especializadas, artigos, reportagens e matérias, fossem modernas ou conservadoras, como
as “Donna” ou “Dona na sociedade”.
Depois de 46 anos de circulação coube a Leão Gondim de Oliveira entregar, aos
poucos, parte do patrimônio da revista, como máquinas e o próprio prédio para liquidar as
129
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (Org.). História
da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 575.
130
O Cruzeiro, 22 jan. 1944. p. 90.
67
dívidas com os fornecedores e colaboradores. Gondim, primeiro, abriu mão das ações da
revista; depois, os interventores encarregaram-se de dar a ela uma solução: fechar as
portas, primeiro liquidando as revistas que circulavam no exterior e, depois, a publicação
nacional, por volta de 1974. Godim de Oliveira era primo de Chateaubriand, fora
presenteado pelo jornalista com 75% das ações da empresa gráfica O Cruzeiro. Por mais
de quarenta anos dirigiu a revista e foi um dos maiores defensores do semanário. Mesmo
com o fim de O Cruzeiro, o semanário ficaria para sempre no imaginário feminino como a
revista mais moderna do país, a que se intitulou porta-voz dos arranha-céus, da moda
hollywoodiana e de uma nacionalidade crescente, que vamos abordar no próximo capítulo.
68
CAPÍTULO 2
A MULHER MODERNA DA BELLE ÉPOQUE HOLLYWOODIANA
Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs
mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através de cujos
escombros a civilisação traçou a recta da Avenida Rio Branco: uma recta entre o
passado e o futuro. Cruzeiro encontra já, ao nascer, o aranha-céo, a
radiotelephonia e o correio aéreo: o esboço de um mundo novo no Novo Mundo.
Seu nome é o da constelação que, ha milhões incontaveis de annos, scintila,
aparentemente immovel, no céo astral, e o da nova moeda em que resuscitará a
circulação do ouro. Nome de luz e de opulência, idealista e realistico, synonymo
de Brasil na linguagem da poesia e dos symbolos. [...]
Uma revista, como um jornal, terá de ter forçosamente, um caracter e uma moral.
De um modo generico: principios. Dessa obrigação não estão isentas as revistas
que se convencionou apelidar de frivolas. A funcção da revista ainda não foi,
entre nós, sufficientemente esclarecida e comprehendida. Em paiz da extensão
desconforme do Brasil, que é um amalgama de nações com uma só alma, a
revista reune um complexo de possibilidades que, em certo sentido, avalisam ou
ultrapassam as do jornal. O seu raio de acção é incomparavelmente mais amplo
no espaço e no tempo.[...]
Porque é a mais nova, Cruzeiro é a mais moderna das revistas. É este o titulo
que, entre todos, se empenhará por merecer e conservar ser sempre a mais
moderna num paiz que cada dia se renova, em que o dia do hotem já mal
conhece o dia de amanhã; ser o espelho em que se reflectirá, em periodos
semanaes, a civilisação ascensional do Brasil, em todas [...] manifestações; ser o
commentario multiplo, instantaneo e fiel dessa viagem de uma nação para o seu
grandioso porvir; ser o documento registrador, o vasto annuncio illustrado, o film
de cada sete dias de um povo, eis o programma de Cruzeiro.
É pelo habito de modelar o barro que se chega a bem esculpir o marmore. Esta
revista será mais perfeita, mais completa, mais moderna amanhã do que hoje.
131
131
O Cruzeiro,10 nov. 1928, Rio de Janeiro, ano 1, n.1 (Editorial da primeira edição). Abaixo do texto há
informação de que a tiragem do nº 1 de Cruzeiro foi de 50.000 exemplares. E para dar ainda mais
prestígio ao lançamento, diagramada em meio às três colunas do texto, há uma foto do rei Alberto da
Bélgica, com o seguinte texto-legenda: “Cruzeiro publicará no seu 2
o
numero a pagina autographada
recebida de S. M. o Rei Alberto da Bélgica e na qual o glorioso monarca invoca a sua viagem ao Brasil
e dirige por intermédio de “Cruzeiro” uma saudação eloquente à Nação Brasileira”.
69
Pelo editorial de boas-vindas ao leitor do primeiro exemplar de Cruzeiro, consegue-
se compreender um dos principais objetivos da criação da revista. Na relação entre o
crescimento industrial brasileiro, que lhe permitia ingressar na “era moderna”, e o arrojado
projeto gráfico e jornalístico do pioneiro empreendimento de Assis Chateaubriand, há um
pacto para a promoção da imagem de um Brasil moderno. O texto descreve o que já existia
no país, como arranha-céus, telefone e correio aéreo. Além disso, a revista juntava-se à
defesa de um país que buscava acertar os “ponteiros” com o mundo, que já havia
encontrado no desenvolvimento energético e tecnológico o impulso para a modernização.
O Brasil começou a adotar um discurso mais técnico a partir do século vinte. O episódio de
Canudos
132
e a Revolta da Vacina
133
são dois exemplos que “assinalam as condições que se
impuseram com o advento do tempo republicano.”
134
Os ataques a Canudos transformaram
“o mais exuberante caso de urbanização não planejada num deserto calcinado de cinzas e
fumaça”.
135
Era “formada por populações rurais migrantes, vindas de diferentes partes do
sertão nordestino, Canudos caracteriza um exemplo cristalino dos modos de ajuste e
agregação espontâneos no curso dos deslocamentos contínuos em que se mantêm as
populações pobres do interior do país, [...]”.
136
A Revolta da Vacina foi considerada pelas
132
Canudos, revolta no povoado do sertão da Bahia 1893 a 1897. As autoridades republicanas tomaram
conhecimento da existência do povoado em 1893. As autoridades baianas alertavam para um “núcleo
de ‘fanáticos religiosos’, comandados por um indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel, que pregando
doutrinas subversivas fazia grande mal à religião e ao Estado”. Antônio Conselheiro como era
conhecido, tentava convencer o povo de que era o Espírito Santo. Depois da força policial da República
ter sido derrotada por quatro vezes, foram enviadas duas divisões completas do exército, “que partiram
do Rio de Janeiro com o mais concentrado poder destrutivo reunido desde a Guerra do Paraguai. Entre
as tantas práticas adotadas os oficiais queimaram vivos os moradores, com querosene nos casebres,
reduziram a cidade de Canudos a cinza. Da última expedição a Canudos participou o correspondente de
guerra do jornal O Estado de São Paulo, o escritor positivista Euclides da Cunha, que escreveu em
1902 o livro Os sertões“que narra esse episódio e que é uma das peças centrais para entender as tensões
que assinalaram a cultura brasileira no século XX”. Ver mais em: História da vida privada no Brasil
República: da Belle Époque à Era do Rádio. p. 16-18.
133
O Rio de Janeiro era o principal porto de exportação do país e enfrentava problemas de doenças como a
difteria, malária, tuberculose, lepra, tifo, além da varíola e a febre amarela, que a cada verão se
espalhavam pela cidade “como uma maldição” e afetavam a população portuária e os estrangeiros que
desembarcavam no país. Três planos foram propostos pelas autoridades: executar simultaneamente a
modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma urbana. O médico sanitarista Oswaldo
Cruz foi nomeado para ajudar a resolver a situação. As ações implementadas pelos técnicos se
sobrepuseram as judiciais e se criou uma situação de tripla ditadura na cidade. Muitas residências,
casarões antigos da área central, foram destruídas e a população pobre que lá vivia foi despejada. Além
da retirada das pessoas, foi promovida a campanha de erradicação da varíola com o uso da força
policial. Diante de tudo isso, cidadãos se revoltaram, utilizando como armas as próprias ferramentas e
materiais de construção da reforma urbana da cidade. Todo esse motim ficou conhecido como a Revolta
da Vacina, em 1904. Ver em: História da vida privada no Brasil República: da Belle Époque à Era do
Rádio. p..22-25.
134
SEVCENKO, Nicolau. Introdução O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 27.
135
Ibid., p.19.
136
Ibid.
70
autoridades como um segundo Canudos, que era preciso eliminar para salvar a República,
e a “regeneração se completou em 1904”. A urbanização dava ao país uma nova forma
137
em todos os aspectos, inclusive na elegância, como descreve este texto de O Cruzeiro:
Elegancia
Entre as ruas mais lindas da cidade, a rua Gonçalves Dias é a mais elegante, a
mais discreta, a mais amável, e porque só preocupa com frivolidades. É uma rua
alegre, fina, civilizada, que não esconde as suas intenções de “coquetterie”. É
pequena e leve como uma “melindrosa”, só se ocupa com chás, com dansas, com
modas e com “flirts”. Tem para as modas vitrines iluminadas. Tem casas de chás
e sorvetes. Tem “dancings” e “manicures”. Tem drogarias com remedios para
emmagrecer e balanças camaradas para as mulheres verem os progressos do
peso. Tem cabelleireiros para senhoras, e casas de discos e vitrolas, e casas de
revistas e jornaes. Tem confeitarias. Tem joalherias. Só tem coisas futeis e
encantadoras. E é lá, nas doces tardes de inverno, como nas tardes claras e
calidas de verão, que se vê a parada de elegancia da cidade. É a mais fascinante,
a mais seductora, a mais mulher das ruas do Rio. [...] Nas tardes harmoniosas,
sob o consentimento das estrelas, é a vitrine ornamental do luxo e da vaidade,
onde sorri a graça frivola da elegancia carioca.
138
Era a transformação moderna que tinha como esteio social e cultural a avenida, o
“principal modelo do imaginário modernizador da república”
139
, palco de grandes
acontecimentos como o de 25 de dezembro de 1928, quando foi lançada O Cruzeiro “a
Avenida Rio Branco foi inundada por uma chuva de papel picado.”
140
A revista, no texto
da elegância, identificava as mulheres com as cidades e começava a conquistar o gosto
dos leitores e se definir como “a revista contemporânea dos arranha-céus”, passava a ser
a porta-voz de uma nova ordem social: a dos tempos que definimos como Belle Époque
Hollywoodiana. Isso porque o cinema americano foi um dos instrumentos que, nesse
período ajudou a moldar comportamentos e a ditar modas, a exemplo do que
representava a França até os vinte primeiros anos do século, que produzia e exportava
cultura para o mundo. Nesse período, do início do século até meados de 1930, a cultura e
a moda são à francesa:
137
O marco dessa transformação foi a inauguração da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, na
cidade do Rio de Janeiro, onde funcionava a capital do país, “eixo do novo projeto urbanístico da
cidade, contemplada com um concurso de fachadas que a cercou de um décor arquitetônico art
nouveau, em mármore e cristal, combinando com os elegantes lampiões da moderna iluminação elétrica
e as luzes das vitrines das lojas de artigos finos importados”. Ibid., p.26.
138
O Cruzeiro.17 jan.1931. p. 44.
139
SEVCENKO, Nicolau. Introdução O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 29.
140
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 36.
71
As revistas mundanas e os colunistas sociais da grande imprensa incitavam a
população afluente para o desfile de modas na grande passarela da Avenida, os
rapazes no rigor smart dos trajes ingleses, as damas exibindo as últimas
extravagâncias dos tecidos, cortes e chapéus franceses. A atmosfera cosmopolita
que desceu sobre a cidade renovada era tal que, às véspera da Primeira Guerra
Mundial, as pessoas ao se cruzarem no grande bulevar não se cumprimentavam
mais à brasileira, mas repetiam uns aos outros: “Vive la france!”. Como
corolário, as pessoas que não pudessem se trajar descentemente, o que implicava,
para os homens, calçados, meias, calças, camisa, colarinho, casaco e chapéu,
tinham seu acesso proibido ao centro da cidade.
141
Já no final da década de 1920 e início da de 1930, a Belle Époque
142
ganhou
mais um ingrediente. Os smart ingleses e os chapéus franceses somaram-se aos
padrões de comportamentos e aos modelos de vestidos, cortes de cabelo, formas de
cuidar da pele espelhados nas estrelas do cinema americano. As informações
chegavam à revista em abundância; as agências de publicidade de Hollywood
enviavam, de forma gratuita, fotos e textos para serem publicados. Uma história
contada por Accioly Netto, que trabalhou por mais de quarenta anos como diretor e
jornalista de O Cruzeiro, descreve como o trabalho era feito:
As Agências de publicidade de Hollywood nos forneciam gratuitamente
magníficas fotografias de suas estrelas e galãs. Este material era aproveitado com
destaque, formando histórias ou servindo para as capas coloridas. Algumas
dessas crônica eram traduzidas do original, outras eram simplesmente inventadas
com o material disponível. Eu próprio inventei várias e cheguei a ficar muito
conhecido, com o pseudônimo de Marius Swenderson, como “o correspondente
de O Cruzeiro em Hollywood”. De muito valeram a compreensão dos diretores
de publicidade dos grandes estúdios, como Oswaldo Leite Rocha, da Paramount
Pictures, e Waldemar Torres, da Metro Goldwyn do Brasil. Estes e outros
141
SEVCENKO, Nicolau. Introdução O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p.26.
142
A expressão Belle Époque vem do francês e indica “o clima intelectual e artístico do período que
aproximadamente de 1880 até o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Foi uma época marcada por
profundas transformações culturais que se traduziram em novos modos de pensar e viver o cotidiano.
Inovações tecnológicas como o telefone, o telégrafo sem fio, o cinema, a bicicleta, o automóvel, o
avião, inspiravam novas percepções da realidade. Com seus cafés-concertos, balés, operas, livrarias,
teatros, boulevards e alta costura, Paris, era considerada o centro produtor e exportador da cultura
mundial. A cultura boêmia imortalizada nas páginas do romance de Henri Murger, Scènes de la vie de
bohème (1848), era o referencial de vida para os intelectuais brasileiros, leitores ávidos de Baudelaire,
Rimbaud, Verlaine, Zola, Anatole, France e Balzac. Ir a Paris ao menos uma vez por ano era quase uma
obrigação entre as elites, pois garantia seu vínculo com a atualidade do mundo.” Ver em: Centro de
Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30-37/ev_radpo1001.htm>. Acesso em: 20 dez. 2002.
72
estúdios tinham sob contrato os melhores atores e atrizes da época, como Greta
Garbo, Mary Pickford, Theda Bara, Mae West, Charlie Chaplin, John Gilbert,
Janet Gaynor, Lila Lee, Vilma Bankey e muitos outros.
143
As notícias de Hollywood estavam presentes em todas as edições, fosse para registrar
os romances das estrelas, fosse para lançar moda ou falar de esportes. No dia 13 de setembro
de 1941, na página 4, o assunto foi Sonja Henien, um texto escrito por Andrée Symboliste:
Hoolywood estava curioso: era dia em que Sonja Henie, a rainha do gelo, a
maravilha da patinação, o duendo de patina, ia exibir-se pela primeira vez na
capital do cinema.
Sonja acabava de chegar a Hollywood e tinha resolvido dar o magnífico
espetáculo da sua arte.
Em volta do ring de patinação 20.000 espectadores se apertavam para ver aquela
que maravilhava o universo, a rainha dos patins.
Toda Hollywood estava lá: nem uma estrela, nem um astro e nem um produtor,
teria perdido aquele grandioso espetáculo. Riam-se, ingredavam-se,
interrogavam-se: “será ela realmente tão extraordinária, essa Sonja Henie, ou não
é senão mais um “bluff” de Hollywood?”
De súbito a luz apagou-se e só ficou visível a pista alva iluminada por grandes
refletores. O público calou-se, reinou o mais profundo silêncio. E ela apareceu
então sobre o gelo, damando com a graça leve duas duende. Não era uma mulher
que patinava e sim o espírito dos “fjorde” gelados da Noruega.
Altusamente, ela deslisou toda de branco como o seu costume cor de neve
imaculada, sobre seus patins prateados. Dançou, piruetou, volteou tão graciosa e
imaterial que o público delirou.
Gritavam, aplaudiam no auge do entusiasmo, Sonja Henie, a rainha dos
patinadores.
Agentes da M.G. M. da Paramount e de outras grandes firmas cinematográficas
precipitaram-se imediatamente com ofertas tentadoras, como contrastes
astronômico.
Hollywood adotou Sonja Henie. A rainha do gelo saiu mais uma vez vitoriosa
numa prova, que foi talvez, a mais difícil de sua carreira esportiva, a prova:
Sonja Henie Hollywood.
Isso se passou há alguns anos, quando Sonja chegou a Hollywood.
Na noite de 8 de Abril de 1912, em Oslo, por um tempo de gelo e neve, nasceu
uma menina nos Henie. Puseram-lhe o nome de Sonja. Muito alegre, duma
vivacidade fora do comum, Sonja, a pequena loura dos olhos azuos cintilantes e
travessos, queria ainda muito patinar sobre os lagos gelados da Noruega como
seu irmão Lief.
144
A revista anunciava o cinema americano como o maior ditador de modas, uma
moda que cada vez mais preenchia as suas páginas, onde desfilavam modelos saídos das
telas de Hollywood, trazendo novos cortes e tecidos para peças a serem usadas desde as
143
NETTO, Accioly.O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre, Sulina, 1998. p.49.
144
O Cruzeiro, 13 set. 1941. p. 4.
73
festas até o banho. Seis modelos aparecem numa das páginas da edição de 6 de dezembro
de 1929, sob o título: “O cinema e a moda”, cujo texto diz: “O cinema é hoje o maior
ditador de modas. Eis aqui alguns modelos lançados pelas mais galantes estrelas da Metro-
Goldwyn Mayer.”
145
As apresentações com as estrelas do mundo artístico eram anunciadas com
antecedência para que o público pudesse agendara para os espetáculos, que aconteciam
geralmente com muita pompa. Era 1930 e a empresa cinematográfica Paramount
anunciava: “Brevemente PARAMOUNT EM GRANDE GALA. No Capitolio no Rio e no
Cine Paramount de São Paulo. UMA NOVA SENSAÇÃO NO CINEMA! Uma noite de
‘Cabaret’ com as Estrellas da ‘Paramount’ Uma super-revista toda cantada. Dansada e
falada em Ingles e Hespanhol.”
146
O cinema norte-americano começou a se desenvolver a partir da Primeira Guerra
Mundial. A produção de filmes na Europa entrou em decadência em 1914, porém, o
mundo já havia descoberto o gosto pelos filmes, razão pela qual a procura não diminuiu.
“Isso colocou os filmes norte-americanos no mercado exportador com uma vantagem, que
foi mantida por muitos anos”.
147
Para Melvin Defleur, nem a língua foi empecilho:
Era um produto particularmente flexível para exportação para outros países.
Mercados quase inexauríveis se abriram quando as regiões mais remotas do
mundo começaram a exibir filmes com legendas em urdu, hindi, chinês, árabe ou
seja lá qual fosse o idioma local. Se a platéia local não fosse alfabetizada em sua
própria língua, era empregado um “narrador” para explicar à audiência nativa o
que ocorria no filme, enquanto este era exibido. Qualquer relação entre essas
versões e a intenção original dos produtores do filme era mera coincidência. A
posição política dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, então, teve o
mais expressivo impacto no cinema norte-americano como veículo de massa.
Tornou-o um veículo de significado mundial.
148
Foi através do cinema que o governo americano defendeu a guerra junto à
sociedade. O meio de comunicação que antes servia apenas para o entretenimento passou,
então, a desempenhar também um papel de propaganda, como mostra o autor:
145
O Cruzeiro, 6 dez. 1929.
146
Id., 13 set. 1930. p. 55.
147
DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. 5.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 95.
148
Ibid., p. 95.
74
Cinema havia sido uma modalidade de divertimento. Não havia ainda se
engajado na persuasão para política partidária, levantamento do moral,
responsabilidade social, ou aperfeiçoamento cultural. De modo geral, os filmes
haviam seguido gostos e atitudes do público antes do que os dirigido. Na idéia de
alguns, as experiências de guerra abriram novas possibilidades e objetivos para o
filme como veículo de persuasão. Realmente, o filme como meio de divertimento
nunca se tornou um veículo consistente com o eficaz comentário político ou
social. Conquando Hollywood haja cooperado em tempo de guerra, e
ocasionalmente produzido um filme com uma “mensagem” social, isso foi
considerado como um desvio da norma. A posição do filme a esse respeito é
diversa da do jornal, que tem assumido normalmente a responsabilidade de
desempenhar um papel no processo político.
149
A extensa complexidade evolutiva do cinema, segundo Defleur, foi acumulando
traços culturais e a inovação da própria tecnologia transformou o filme num veículo de
comunicação de massa. E como veículo de comunicação, defendeu posições, ideologia e
indicou “múltiplas condições sociais e culturais, tais como guerras, mudanças
demográficas e conflitos nas instituições econômicas, [...]”.
150
Também através do cinema muitas campanhas eram feitas, especialmente as que
vendiam beleza e saúde. As belas moças que participavam dessas campanhas eram
praticantes de esportes e de exercícios físicos é por isso que as colunas de O Cruzeiro
divulgavam um corpo belo, mas saudável, e ensinavam a realizar os exercícios. Na página
28 do dia 13 de abril de 1935, Sylvia Accioly ensinava os passos certos para uma boa
natação. Na coluna “Graça, Saúde e Belleza”, a autora, que era “directora do Instituto
Feminino de Cultura physica”, respondia às leitoras sobre “solicitações de palavras de
estímulos dedicadas à cultura physica”. Ela ocupou uma página com explicações sobre
como se deveria praticar esportes, nesse número, especificamente, a natação:
[...]
Quanto ao numero de batimentos, também particular não existem regras
especiais no crawll muita razão denominado de “nado livre”.
Commumente emprega-se o crawl de seis tempos ou seja de três batidas para o
trajecto de cada braço no ar, havendo também de dois tempos que é o mais fácil
e tambem de oito e mesmo de dez tempos, usando sprinters “yankees”.
EQUILIBRIO O corpo só está perfeitamente em equilibrio na água, quando
guarda uma posição feitamente horisontal, da cabeça aos pés. A fluctuabilidade é
assim completa.
Desde porém que a cabeça se levante, o equilíbrio se desfaz e o corpo tende
immediatamente a mergulhar.
149
DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. 5.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 95-96.
150
Ibid., p. 100.
75
No crawl o momento de desequilíbrio é somente aquelle em se respeira, e por
isto procura-se este instante anormal com a rotação da cabeça levemente, para
um ou para ambos os lados, actualmente usam diversos [...] braços que se
apóiam sobre a água na puxada do movimento das pernas, também trabalham
para corrigir esta defficiencia que nos é própria como os terrestres que
somos.[...]
151
Se o assunto era beleza, não poderiam faltar colunas especializadas em ensinar como as
mulheres deveriam se vestir, se portar, mas também existiam espaços que refletiam sobre essa
beleza do ponto de vista masculino, nos quais eram mencionadas como privilegiadas por terem
homens que sustentavam os seus padrões de beleza; era justamente por essa razão que eles não
teriam tempo para serem bonitos, pois precisavam trabalhar para trazer o sustento da casa. O
espaço distinguia a beleza feminina da masculina, como no assunto abordado na página 18 da
edição de 9 de fevereiro de 1935, que trazia como título: “Belleza Flor, croquis de Alceu
Penna, photos de Metro Goldwyn Mayer”:
As mulheres, em todos os tempos, sempre se pressumiram de mais bellas que os
homens. E os poetas de todos os tempos contribuíram para esse engano,
exaltando nellas a formosura, concedendo-lhes epithetos socorros, equiparando-
as aos anjos ou às deusas conforme a tendência Christã ou Olympica da sua
enfermiça mentalidade.
O depoimento severo da sciencia contradiz, porém, com segurança, essa ridícula
mania das mulheres e dos poetas. Homens e mulheres, pertencendo á mesma
categoria zoológica não poderiam differenciar-se senão pelas funções e nunca,
pela diversidade das formas e das linhas essenciaes da anatomia.
A necessidade de trabalhar o contato aspero com as realidades economicas da Vida,
um certo desprezo pela sua propria esthetica têm afeado o homem em beneficio da
sua companheira, que se abriga em casa entre almofadas e coxins macios, livre do pó
das ruas e do atrito das cousas rudes da existencia, poupando o seu systema nervoso e
defendendo, egoisticamente a integridade das suas visceras.
A Belleza é uma flôr, que exige resguardo e defesa perennes. Como as orcindeas,
ellas só vicejam em ambientes ricos e confortaveis. Nada dispendioso do que
uma mulher bonita. Dizem os orientaes que é mais fácil sustentar 100 elephantes
do que uma dama formosa [...] Os elephantes não têm caprichos, enquanto as
mulheres [...] nem é bom falar no que ellas têm! [...]
152
Diante do exposto, perguntamos: como era o padrão de beleza da mulher moderna?
Já que essa mulher agora sofria uma nova influência, a dos modelos de Hollywood, das
estrelas do cinema. O Cruzeiro veiculava que o padrão de beleza daqueles anos era
151
ACCIOLY, Silvia. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 13 abr. 1935. Coluna “Graça, Saúde e Belleza.
(Desenhos de Alceu “Natação IX”). p. 28.
152
Id., 9 fev. 1935. p. 18.
76
comparado ao das formas físicas da Vênus de Milo e apresentava as medidas e tamanhos
ideais da mulher moderna na página 11 da edição de 26 de outubro de 1940.
A Venus Moderna
Faulette Coddard foi proclamada recentemente, pelos
especialistas de Hollywood, como sendo a belleza “yankee” que
mais se approxima da Venus de Milo, em medidas corporaes.
Para que os leitores possam confrontar estas semelhanças,
apresentamos aqui os respectivos índices da “deusa” e da
“estrella”[...] As leitoras poderão, por outro lado, verificar, com
uma fita métrica, se possuem tambem semelhanças physicas com
a famosa estatura-padrão. Photo Paramount. Especial para O
Cruzeiro.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 7 “Vênus de Milo”
153
A altura ideal da Vênus moderna seria de um metro e 60 centímetros e o peso de 53
quilos. Tendo Paulette Goddard como modelo, a revista apresentava as medidas ideais da
mulher moderna comparando-as com as da Vênus de Milo, a diferença era por muito
pouco, como no peso: a modelo apresentava 53 quilos e a Vênus de Milo, 58. Então, a
mulher moderna teria de ter as seguintes medidas:
Mulher moderna: Vênus de Milo:
Cabeça: 55c. Cabeça: 58c.2
Face: 18c.7 - Face: 20c.
Pescoço: 30c. Pescoço: 30c.6
Comprimento do braço: 75c - Comprimento do Braço: 72c.5
Busto: 85c. Busto: 86c.8
Braço: 26c.6 - Braço: 30c.
Busto inf. 75 - Altura 1m.60
Cintura: 57c.5 - Cintura: 71c.2
Antebraço: 15c. Antebraço: 26c.2
Quadris: 87c.5 - Quadris: 90c
Pulso: 13c.7 - Pulso: 16c.2
Coxa: 47c.5 - Coxa: 48c.7
Da cintura ao chão: 1m. 012 - Da cintura ao chão: 1m.33c.7
Joelho: 32c. 5 - Joelho: 33c.7
Barriga da perna: 32c.5 - Barriga da perna: 33c.7
Tornozelo: 20c. Tornozelo: 21c.2
153
O Cruzeiro. 26 out. 1940.
77
A mulher moderna poderia ter ainda a beleza standard como a apresentada por
Peregrino Junior
154
, que na coluna reforçava os novos padrões de beleza que definiam uma
nova mulher, a moderna. Essa mulher seguia as normas ditadas pelo cinema americano,
teria as medidas exatas da Vênus de Hollywood, as Vênus modernas.
A Belleza “Standard” da Mulher Moderna
Não será exagerado afirmar que a vida moderna creou um tipo standard” de
beleza feminina. O fato é sabidíssimo. Nem vale a pena discutir. É preciso,
porém acentuar uma coisa o fator mais importante da standardização
da beleza feminina do nosso tempo foi o cinema americano. Houve outros
fatores, não nego: o esporte, a moda, a vida ao ar livre, a desenvoltura dos
costumes modernos, etc. Mas foi o cinema “yanke” que coordenou todas essas
influencias, fundiu-as, cristalizou-as, aperfeiçoou-as, para realizar a final, o
incomparável milagre do padrão universal, é a Venus de Hollywood. E, é essa
Venus, diga-se de passagem a única que hoje interessa o mundo. Passando em
revista, mentalmente, as mais belas mulheres do cinema americano, nós podemos
ter uma idéia do que é, como expressão plástica, a belesa “standard” da Eva
Moderna. Jean Ceasford, Clara Bow, Rita La Roy, Claudia Deel, Nanry Casroll,
Constante Bennett, Norma Sbearer, Greta Gosbo, Joyee Compton, são todas elas
padrões autenticos de belesa moderna e são os exemplares mais perfeitos da
fama feminina de Hollywood. A prova, porém, de que a belesa da mulher
moderna está rigorosamente padronizada, têmo-la num fato que as revistas de
Nova York registram quase todas essas “estrelas” americanas têm as mesmas
dimensões fisicas. Num inquerito antropometrico ainda há pouco realizado em
Hollywood, os tecnicos americanos chegaram a uma conclusão interessantissima
as mulheres mais bonitas do cinema “yankee” têm com pequenas diferenças
individuais, as seguintes medidas:
Altura, 5 pés e 4 polegadas; Peso, 115 libras; Busto, 33 3/5 polegadas; Quadris,
35 ½ polegadas; Pernas, 12 ½; Tornozelos, 7 ½ polegadas.
Essas dimensões foram encontradas, exatas em 36 “estrelas” das mais
famigeradas de Hollywood. E isso em última analise, quer dizer que a belesa
feminina, em Hollywood, está perfeitamente standardizada. Agora, como a nossa
gente não sabe falar em belesa sem volver os olhos comovidos para a antiguidade
classica, é prudente lembrar que essas dimensões da “mulher moderna” se
aproximam extremamente das dimensões da Venus de Milo. Senão vejamos para
comparar, as medidas do padrão classico da belesa antiga:
Altura, 5 pés e 4 polegadas; Peso, 133 libras; Busto, 34 3/2 polegadas; Quadris,
37 ½ polegadas; Pernas, 13 ½ polegadas; Tornozelos, 8 polegadas.
Como se vê as diferenças entre a mulher de Hollywood e a Venus de Milo são
insignificantes, o tipo “standard” da belesa moderna é mais fino (com menos peso,
[...]). De resto, essas diferenças são das proprias condições da vida atual: a
velocidade, a agilidade, a liberdade dos movimentos da mulher dos nossos dias.
[...]
155
O mesmo autor trazia mais uma página na edição de 28 de novembro de 1931, na
qual reforçava os padrões hollywoodianos de beleza feminina, mostrando uma época em
que o mundo moderno tinha na cidade do cinema uma das fontes de inspiração. O cinema
154
O Cruzeiro. 7 nov. 1931. p.3.
155
Ibid., p. 3.
78
era o meio de divulgação dos novos padrões de beleza e comportamento deste mundo
moderno, assim como hoje acontece com as novelas e as estrelas da televisão, que servem
de modelo para inserir no mercado consumidor produtos, estilos, formas de
comportamento, ou, ainda, peças da estação. O título da página 3 era: “Theoria e pratica da
Arte de ser bella por Peregrino Junior”, com o seguinte texto:
Eu já lhes disse uma vez e não faz muito tempo que existe hoje no mundo um
typo “standard” de belleza feminina: a Venus de Hollywood. Provei isso com as
cifras irrespondiveis de uma estatistica. A estatistica e contra os numeros não
ha argumentos a estatistica revelara a existencia, em Holywood, de 36
mulheres lindissemas 36 corpos perfeitos que tinham a exactamente as
mesmas dimensões. E essas mulheres admiraveis, realizavam, segundo a
harmonia das suas medidas o padrão da moderna belleza feminina.
Depois de inaugurar interjeições de espanto nos olhos cheios de surpresa, a
leitora que recebeu a minha informação, naturalmente deixará cair sobre mim,
imensoravelmente o peso esmagador da sua curiosidade, fulminando-me com
esta interrogação difficil.
E como é que ellas conseguem e mantêm essa belleza?
Já lhes digo: A mesma revista americana que me permitiu incursão tão erudita
através da belleza feminina de Hollywood, vae me facultar o prazer de ministrar-
lhes estes esclarecimentos preciosos. E Deus permita que utilizando-os como
uma lição, as minhas leitoras consigam realizar o milagre admirável das Venus
modernas de Hollywood!
156
Na seqüência do texto, Peregrino Junior ensinava às leitoras os segredos das estrelas
da Belle Époque Hollywoodiana, que iam desde os regimes até as massagens e ginásticas:
O regimem é a chave do segredo da elegancia feminina. Querem a prova? Temo-
la aqui, nas 36 “estrellas” de Hollywood de que já lhes falei.
E qual é o regimem que essas “estrellas” adoptam?
É exactamente isso que eu agora venho lhes revelar, com erudição e bôa vontade.
Joan Chawford o corpo mais harmonioso e perfeito de Hollywood conhece
essa deliciosa Joan Chawford das [...], de tão diabólica elegancia, de tão
envolvente encanto, para manter a estima da sua belleza vive uma vida
insuportavel de sacrifício e de renuncia. Ha 4 annos não sabe que gosto têm pão,
manteiga e batatas! Não almoça. Apenas, ao levantar-se bebe um copo d`agua.
Um pouco antes de começar a sua actividade no estudio toma uma chicara de
café quente e morde uma ou duas torradas. Nos intervallos da filmagem, limita-
se a comer saladas. Só tem permissão de comer à vontade duas coisas: maçãs e
laranjas. Além desse regimem, que ella religiosamente mantem ha 4 annos, Joan
Chawford tem ainda um severo programma: massagens, gynnastica e esporte.
Eis ali o que se pode denominar uma voluntaria condemnação ás galés perpetuas
da elegância.
O regime de Evelyn Brent é mais liberal: não come carne: mas, uma vez ao dia,
156
O Cruzeiro. 28 nov. 1931. p. 3.
79
inclue no seu “menu” peixe e frango.
Além disto, legumes e frutas. Mas não toca em cremes, nem em manteiga, nem
em pão, nem tampouco em batatas. Faz gynnastica, massagens e esporte. [...]
157
O autor continuava descrevendo na coluna os regimes, os hábitos alimentares das
artistas famosas, que serviam de modelo para os novos padrões de beleza, com a introdução
das massagens, ginásticas e esportes em geral. Tudo isso visava proporcionar uma vida longa
e retardar o envelhecimento, afinal, meios para isso eram mostrados na infinidade de
produtos cosméticos, pelos menos nas propagandas milagrosas veiculadas e que prometiam
às mulheres usufruir os mesmos recursos das estrelas para se tornarem mais belas.
Porque as “estrellas” do cinema nunca envelhecem
Não se verá nunca um defeito na cutis de uma estrella de cinema. Ha a
considerar que o mais insignificante defeito, ao ser ampliado o rosto na tela, seria
tão notavel que elle constituiria uma ruina. Nem todas as mulheres sabem que
ellas tambem podiam ter uma cutis digna de inveja de uma estrella do cinema.
Toda a mulher possue, immediatamente abaixo da sua velha tez exterior uma
cutis sem macula alguma.
Para que essa nova e formosa cutis appareça à superficie basta fazer com que se
desprenda a cuticula gasta exterior, o que se obtem com applicações de Cêra
Mercolized, em Inglez: “Pure Mercolized Wax” effectuadas à noite antes de
deitar-se. A Cera Mercolized se acha em qualquer pharmacia e custa muito
menos que os custosos cremes para o rosto, sendo, em troca, mais efficaz do que
estes.
158
A propaganda acompanhava a coluna “Donna
159
, que era especializada em moda,
trazendo, inclusive, os lançamentos dos melhores costureiros da França e de Nova York.
Além disso, tratava do comportamento feminino e respondia às cartas das leitoras. Em
outro texto nesse mesmo ano e coluna, fazia-se a divulgação de um produto de beleza
estabelecendo relação entre as estrelas e as mulheres elegantes, ambas protagonistas da
elegância e boas consumidoras de produtos de beleza.
Unhas refulgentes como Estrellas em côres para toda ocasião
Em Paris [...] por todo o mundo [...] as mulheres elegantes ostentam o vivo
fulgor das unhas nas novas e fascinantes nuances introduzidas por cutex.
Coral [...] de suave coloração rosada. Cardinal [...] Um vermelho vivo, côr de
157
O Cruzeiro. 28 nov. 1931. p. 3.
158
Id., 10 jan. 1931. p. 43.
159
Ibid.
80
fogo. Garnet [...] um vermelho mais intenso [...] num tom audaz e attrahente.
Estas tres côres são faceis de applicar. Estenda ligeiramente com o pincel, sem
tocar nas pontas nem na meia lua. O contraste resulta assim muito attractivo.
Há tambem dois outros tons rosado de Cutex mais suaves: Natural e Rosa
Carregado.
Encontram-se em todas as perfumarias e nas casas que vendem artigos de
toilette.
Distribuidor:
H. Rinder Rio
Cutex
Esmalte Líquido
Northam Warren
New York Paris.
160
Uma mulher que quisesse ser considerada bela, deveria se preocupar com os
detalhes do seu corpo, ou seja, não bastava cuidar das unhas e do rosto, era preciso cuidar
de cada componente do organismo. Para todos esses cuidados, produtos não faltavam, pelo
menos nas páginas da revista, como este, para fortificar os seios:
SEIOS
DESENVOLVIDOS, FORTIFICADOS E AFORMOSEADOS COM A PASTA
RUSSA DO DOUTOR G. RICABAL. O unico REMEDIO que em menos de
dois mezes assegura o DESENVOLVIMENTO e a FIRMEZA dos SEIOS sem
causar damno algum à saúde da MULHER.
Vide os attestados e prospectos
que acompanham cada caixa
Encontra-se à venda nas principaes PHARMACIAS, DROGARIAS E
PERFUMARIAS DO BRASIL.
AVISO Preço de uma caixa 12$000; pelo Correio, registrado, 16$000. Envia-
se para qualquer parte do Brasil mediante a remessa da importancia em carta
com VALOR DECLARADO ao agente geral J. DE CARVALHO Caixa Postal
n. 1724 Rio de Janeiro.
161
A beleza mostrada por O Cruzeiro não estava apenas no corpo das mulheres, mas
também na arte, na música e na literatura. Grandes nomes, como já se comentou no
capítulo um, escreviam e emprestavam seu talento à revista. A riqueza literária estava nela
presente toda a semana. Os espaços do conto, da novela e outros estimulavam novos
talentos e reforçavam os já existentes. Ao longo das edições, os contos tratam de temas
românticos, mas também da cultura regional. Através de concursos, os escritores também
ganhavam os espaços para escrever, como no caso do escritor gaúcho Érico Veríssimo, que
160
O Cruzeiro. 17 jan. 1931. p. 41.
161
Id., 31 jan. 1931. p. 37.
81
teve o seu conto selecionado e publicado em O Cruzeiro em 1929. Intitulado, “Ladrões de
Gado”, o conto inicia assim:
Nunca se tivera noticias de um roubo de gado nos campos do Retiro. Aquelle era
o primeiro. E fora tão imprevisto e mysterioso que causara surpresa grande a
toda a gente na fazenda.
Em duas noites consecutivas, - noites sem lua de céu fosco e estrelas apagadas
sumiram-se durante e tantas vezes da Invernada Grande.
Juca Molambo, mulato velho que vivia andejo a cruzar os campos, pousando,
aqui e ali, ora sobre as coxilhas descobertas, ora ao abrigo dos galpões das
estâncias, garantia que por uma daquellas noites, a hora avançadas vira no fundo
da Invernada um cavalleiro que tocava por diante uma ponta de gado, rumo da
fronteira.
Um cavalleiro só? Inquirira curioso o coronel Raymundo, proprietário da
fazenda.
O negro affirmara:
Um só, meu patrão.
Era estranho. Quem poderia ser o ladrão noturno? [...].
162
Já, na dança, a riqueza estava nos espetáculos, com muitas coreografias, num
bailado quase que essencialmente feminino. Os grupos de danças formavam-se através das
escolas especializadas, que tinham como professoras as melhores bailarinas daqueles anos,
como a revista estampou “As alunnas da bailarinas Olenewa”.
163
Com amplas fotos, as
legendas diziam: “As nossas photografias mostram as gentilíssimas discipulas de Maria
Olenewa. Entre as quaes sobresae branca [...] No meio da página mais um texto legenda
que dizia: Maria Olenewa: a grande bailarina; diretora da Escola de Dansa do Theatro
Municipal, offereceu ao publico uma exibição das suas discipulas, o que constituiu um
espetaculo de veridica arte. Como sempre. Maria Olenewa, mostrou-se admiravel artista e
sábia e paciente professora.”
164
As artes, a beleza, a modernidade e o modernismo se relacionam e fazem surgir
novos nomes e novas formas de manifestação. A Semana da Arte Moderna de 1922 deu o
tom dessa mudança. Mulheres lindas, em qualquer época da história, inspiraram os artistas
com a sedução, ou de um ideal de perfeição física. Mesmo que muitas vezes as obras de
arte provocassem exaltação no público, representavam o pensamento de mudança da época
e se tornaram protagonistas de uma nova era, a da arte moderna.
162
O Cruzeiro. 31 ago. 1929. p.12.
163
Id.,13 dez. 1930. p. 46.
164
Ibid., p. 46.
82
A obra Entendendo a mulher na arte brasileira do século XX apresenta a artista
Anita Malfatti como a pioneira na realização da “primeira exposição no Brasil e que
causou furor na cidade de São Paulo, trazendo algo de realmente novo para a produção
artística nacional”.
165
Assim como a revista, os artistas dedicaram às mulheres,
principalmente no período de 1930 a 1940, espaços de representação na pintura, na
escultura, enfim, nas artes em geral, como foi o exemplo de Di Cavalcanti, Alfredo Volpi,
que pintou Mulata, em 1927, e produziu outras obras cujo tema principal era a mulher.
Esse também foi o motivo primeiro dos ilustradores de O Cruzeiro. Com
habilidade, eles criavam nas capas da revista, a cada edição, belas figuras femininas,
verdadeiras obras de arte, além dos desenhos ilustrativos nos textos e nas colunas. Entre
esses, destaca-se Alceu Penna, criador da coluna “As garotas”, onde descrevia cenas do
cotidiano de um imaginário feminino moderno. Era considerado o espaço mais
modernizado da revista, porque mostrava mulheres liberadas, com vontade própria e
ousadas. A seção circulou pela primeira vez em abril de 1938.
Estávamos ainda no fim dos anos 30 e eu, encantado com as figuras femininas de
The Saturday Evening Post, as chamadas Gibson Girls, fui certo dia procurá-lo
em seu modesto apartamento a Rua das Marrecas, nos arredores da Lapa. Sugeri
que ele fizesse alguma coisa semelhante e duas semanas depois ele me procurou,
mostrando-me um desenho original. Eram vários grupos de lindas mocinhas,
vestidas na última moda, conversando. O texto, na forma de diálogo e destinado
ao público juvenil, deveria ser escrito por um humorista malicioso. Fiquei
encantado com o projeto.
166
Sempre bem humoradas, as colunas contavam pequenas estórias das “investidas” de
paqueras, novas formas de conquistas e jogos de sedução naqueles tempos de mudanças. O
espaço, além de entreter, lançava modas, estilos, utilizando expressões americanizadas que
começavam a se incorporar ao vocabulário brasileiro, como girls (garotas), footing (piso,
passada, lugar onde pôr os pés) e outras. Alceu desenhava as garotas e, de vez em quando,
escrevia os textos-legendas. Muitos outros colaboradores da revista, como Millôr
Fernandes, também escreviam estórias apimentadas em “As garotas”, coluna que ocupava
duas páginas do semanário. Nas páginas 20 e 21 da edição de 23 de janeiro de 1943, Alceu
Penna contou a anedota das “Garotas na avenida”: “Quando as garotas cruzam a Avenida
165
CINTRÃO, Rejane Lassandro. A figura feminina na arte brasileira do século XX. São Paulo: Lemos,
1968. p. 10.
166
NETTO. Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 125.
83
no ‘footing’ diário, os ‘engraçadinhos’ atiram-se à conquista dessas fortalezas
encantadoras. Mas elas só caem quando a investida é muito bem feita [...]” Abaixo dos
desenhos de homens e mulheres passeando na avenida, na página 20, havia outro relato:
A Écide
Você viu aquele homem me dirigir uma gracinha e não vai pedir-lhe satisfações?
Como, se eu não sei o telefone dele?
Explicação Necessaria
Mas então ele deu um beijo debaixo do nariz do seu marido?
Não, debaixo do meu!
Divisão
Quando me encontrei consigo fiquei com o coração partido.
Sim, partido em dois pedaços. Um para mim e outro para a sua esposa, não é?
Não serve
Desde que te vi não posso mais dormir.
Então desapareça. Não sou a mulher dos seus sonhos.
167
Appointment
Senhorita, acho-a um encanto. A que horas e em que lugar posso espera-la?
Espere-me sentado no trilho da Central, na hora do trem das seis.
Dificil de precisar
Você não acha dificil dizer a idade de uma mulher?
Sim, principalmente para ela.
O Sinal
Aquela garota está querendo “flirtar” com você.
Por que? Piscou o olho?
Não, cruzou as pernas.
Mas, estamos passeando há três horas pela Avenida e nada aconteceu de
escandaloso.
Espere mais um pouquinho.
Tenho muita fé na natureza humana.
168
As expressões americanas faziam parte do diálogo das garotas, acrescentando novas
palavras ao vocabulário coloquial, que davam um diferencial para a coluna, onde a
linguagem era mais solta. As páginas 46 e 47 da edição de 7 de julho de 1945 demonstram
bem tudo isso:
Garotas, sex-appeal, it, glamour, etc [...]
Em quase todas as terras foram se criando nomes que designassem a indefinível
atração das mulheres, essa atração que não é física, nem psíquica, nem moral. É
algo que ultrapassa os limites desses “it is it” como dizem os americanos. É essa
coisa impessoal, êsse charme, êsse encanto, essa tentação, êsse “comph”, êsse
“glamour”, êsse “sex-appeal”, essa coisa enfim que faz parar tantas vezes o
trânsito de tôdas as ruas.
167
O Cruzeiro 23 jan. 1943. Coluna “As garotas”. p. 20.
168
Ibid., p. 21.
84
Já lá vai com seu “glamour”
Já lá vai “glamourizada”
Pára o trânsito o inspetor
Assobia a macacada.
“Não, não, não. “Sex-appeal”
não quer dizer “coisa à-toa”,
“sex-appeal” quer dizer
que a garota é muito boa.
Ela tem “it”, tem charme
tem um encanto sem par
mas engana-se quem pensa
que seu destino é pecar.
169
Quando a realidade era a ênfase das descrições, “As garotas” revelava os mais
variados tipos de perfis femininos daqueles anos:
O Ídolo das Garotas
Conquistas não é apenas um privilegio de Hitler. As garotas também gozam
desse privilegio mas apenas com respeito aos homens e de um modo
individual. Cada uma tem seu tipo de preferido, e nunca encontrado, tipo que
concorda em geral com elas proprias.
A granfina
Prefere um rapaz de sangue azul ou pelo menos azulado. Filho de um conde, de
um barão ou equivalentes. Um rei tambem serve. Se não for o de algum pais,
pode ser o rei da banha, do açucar ou outros legumes. Um príncipe mesmo não é
de todo mau (desde que não seja o maluco.)
170
A esportiva
O rapaz ideal desta “garota”deve vencer o campeonato mundial de atletismo, o
de natação, boxe, esgrima, etc[...] Isso porque o rapaz precisa de bastante força
para enfrentar a esposa. É uma garota de peso [...]
Senso prático
Ela é dessas que aproveitam todas as oportunidades. Não deixa passar as coisas que vê
ao seu alcance. É uma pescadora que, naturalmente, fica com o seu anzol à espera do
maior peixe, mas, enquanto ele não vêm, vai conservando todos os peixes no aquário.
Sonhadora
Uma choupana, uma palmeira, a poesia da vida, isso só é o bastante. Mas o
cavaleiro dos meus sonhos anda de “packard” (a gasolina), possui um arranha-
céu em Copacabana e não anda lá muito mal de finanças.
A cinematográfica
Ele deve ter o perfil de R. Taylor
O bigodinho de C. Cable.
O porte de John Hall
Os músculos de Weissmuller.
E o talento, bem, não precisa: ela deve ser a dirigente
de mais um drama da vida[...].
171
169
O Cruzeiro. 7 jun. 1945. p. 46-47.
170
Id., 10 jul. 1943. p. 40.
171
Ibid., p. 41.
85
“As garotas” mostrava que os tempos eram outros: as saias haviam subido, as
roupas agora modelavam o corpo, os vestidos eram colados ao corpo realçando as curvas,
os traços, enfim, liberando a sensualidade. Nesse imaginário moderno de “As garotas”,
havia espaço ainda para se falar de comportamento, dos lugares mais freqüentados pelas
moças dos centros urbanos, como a avenida e a praia, entre os diversos pontos de encontro
das garotas das décadas de 1930-1940.
As “curvas” das Garotas
172
90%
Não querida, não me espere [...]
Por que?
Estou cortando uma volta [...]
Comprei uma cinta e um vestido um número menor [...] Até agora só pude vestir
50% [...]
OH. curvas abençoadas, que suavizais os caminhos da vida, dizia um epicurista
famoso. Linhas de tranqüilas e agradáveis voltas, que são o encanto dos olhos,
dos nossos olhos, nas praias, na avenida, ou no cassino. Linhas sinuosas,
flexíveis, como uma rodovia que descamba, lentamente, para a direita, e leva a
maciez das almofadas do carro e os amortecedores dos pneus e das molas.
Curvas. Mas, de quem são essas curvas? Das garotas? Das morenas de
Copacabana e do Leblon? Ou da Rio-São Paulo? A vontade do freguês.
Libras a menos
Nunca pensei, francamente.
O que?
Que uma criatura pudesse emagrecer tanto. Aquela senhorita inglesa, segundo
me disseram, perdeu [...]. 2.000.000 de Libras em poucos dias [...]
173
A coluna mostrava ainda que os tempos modernos ofereciam uma variedade de
alternativas de consumo, como os refrescos para o calor tropical, também havia diversão.
Os banhos de mar e o verão ganhavam outro significado: o lazer. Para complementar a
atmosfera de passatempo junto às praias ensolaradas, a coluna descrevia as garotas
consumindo sorvete, picolé e limonada.
174
Garotas e muito calor!
Sorvete
De manga?
Não gosto. Prefiro de abacaxi [...]
Você até parece a Sonia: em materia de namorado e sorvete só apreciam os
abacaxis.
172
O Cruzeiro. 4 dez. 1943. p. 42-43.
173
Ibid., 42.
174
Id., 22 jan. 1944. p. 20.
86
Limonada
Será possivel Emilia?
O que?
Você tomar limonada, depois daquele chá de limão que você usou com a fuga do
Claudionor. Pensei que tinha enjoado de limão.
Gelo e sol
- Meu noivo? Parece um polo norte. Não se movimenta o tempo todo.
Diferente do meu [...] José é do Sahara.
Picolé
Nunca vi tanta magreza, você já viu?
A Teresa?
Não. A Marina. Queimada do sol e magra daquele geito, parece que anda em
cima de dois picolés de chocolate.
Nas duas páginas da coluna comentada, Alceu fez os desenhos e João Velho
escreveu os textos das legendas. O colunista definiu o verão como quente e violento e fez
um comparativo das garotas com as aves, demonstrando que elas usufruíam a liberdade no
verão e pouco se importavam com o que acontecia a sua volta; eram, pois, felizes nessa
estação do ano:
O Verão esta aí, violento como nunca. Fogem espavoridas as avezinhas de
plumas ou de vestidos. O leque, velha criação de nossas vovós, já não resolve o
problema. O refresco atinge graus de baixa temperatura jamais dantes
alcançados. Pelas ruas, pelos cassinos, pelos bares, a gente reclama contra o
calor, com a mesma indignação usada, há meses, contra o frio úmido. Enquanto
isto, as garotas sorriem.
175
“As garotas” divulgava o esporte, como a equitação
Garotas e a Equitação
Aqui estão as garotas aprendendo a sua equitaçãozinha. Pequenos pedaços de
gente em muito que fazer elas podem aprender tudo o que lhes dê nas cabecinhas
irrefletidas e sanguinárias. Por isso vão aprendendo suas maneirinhas de
equitação, suas formas pessoais de hipismo. “E isso, é muito, muito útil. me
dizia outro dia uma delas porque quanto mais conheço os animais, mais me
aproximo dos homens”.
O fim justifica os meios
Você viu o Alfredo? Saiu do seminário e resolveu ser jóquei. Que absurdo!
Absurdo nada, minha filha. Como jóquei ele conseguirá que mais gente se
arrependa do que como padre.
Solidariedade
175
O Cruzeiro. 22 jan. 1944. p. 20-21.
87
Menina, não pegue êsse animal que ele é perigoso. Nunca foi montado.
Não tem importância. Eu também nunca montei. Assim aprenderemos ao mesmo
tempo.
176
Assim, a seção foi se consagrando como uma das mais lidas e, até hoje, uma das
mais lembradas pelo público. A coluna ajudou ainda a dar importância à ilustração,
linguagem que torna o periódico, o semanário, ou mensário mais atraente, permitindo que
o leitor faça a sua interpretação. Isso porque muitas vezes os códigos do desenho não estão
explícitos, sendo necessária a reflexão sobre o assunto em pauta para que o leitor
compreenda a mensagem.
Não há como desvincular O Cruzeiro, a revista mais importante do país nos anos
de 1930
aos de 1950, de uma encantadora dupla de páginas exibidas ali
semanalmente: a inesquecível seção “As Garôtas”. Criadas pelo desenhista
mineiro Alceu Penna, com traço caprichoso e elegante, aquelas deliciosas
mocinhas que estrearam em 1938 e se despediram 26 anos depois não apenas
ditavam moda e comportamento como deleitavam seu público.
Vinham elas, lindas e modernas, acompanhadas de quadrinhas, historietas
românticas, anedotas sem malícia, mero pretexto para exibi-las, tão graciosas, em
meio a artigos e reportagens. O texto não tinha autor fixo; variava de um
misterioso João Ninguém a Emmanuel Vão Gôgo, pseudônimo de Millôr
Fernandes. É de Vão Gôgo, por exemplo, esta trova galante:
Pensadora, pensativa
Em que pensas, ó Lourinha?
Se pensas na tua vida
Estás pensando na minha.
O sucesso de “As Garôtas” confirmava a importância que a ilustração havia
adquirido nas publicações brasileiras já no século XIX.
O aproveitamento do desenho tem sido desde então ilimitado, para reforçar
comentários políticos, ornamentar textos literários, adicionar informações às
reportagens (os infográficos das revistas modernas, [...]) ou simplesmente
divertir o leitor, como faziam “As Garôtas”.
177
Além de “As garotas”, outras colunas também adotavam expressões norte-
americanas para se comunicar com os leitores e até para explicar o que significava
determinadas palavras.
Elegancia e Beleza
O “IT”
176
O Cruzeiro. 15 dez. 1945. p. 22-23.
177
CORRÊA, Thomaz Souto (Ed.). A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p. 65.
88
Elza Marzullo
SABE a minha leitora o que é o “it”?
Sabe o que quer dizer “it”, quem inventou o “it”
Sabe como foi empregada e como se popularizou a esta misteriosa e tão feminina
palavrinha de duas letras?
Talvez não saiba.
Pois bem.
Foi com este vocábulo tão intrigante e expressivo “it” que Elinor Glyn, a
famosa romancista americana, designou, num dos seus livros, aliás com o
mesmo título o encanto a indefinível sedução que certas mulheres possuem.
“It” foi a palavra inventada pela romancista num instante de inspirada fantasia,
para designar êsse “não-sei-oque” maravilhoso e fascinante do eterno feminino.
[...]
“It”- misto de graça e de “sex-appeal”.
“It” palavra a gaz-neon, vermelha e sensacional, no terraço-jardim da era dos
arranhas-ceus. [...]
178
Nesse sentido, a contribuição do desenho foi maior
que a da pintura para revistas como O Cruzeiro, onde as
mãos habilidosas dos caricaturistas deram à ilustração
brasileira “ares modernos”, fugindo do feitio europeu, mas
mantendo a influência art déco e expressionismo. Da ponta
do lápis dos artistas saíam belas capas e páginas recheadas
de figuras que materializavam o imaginário de uma época.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 8 Coluna “As garotas”
179
A ilustração se uniu à literatura em O Cruzeiro, que revolucionou o visual das
revistas ao integrar definitivamente a fotografia à estrutura editorial. Textos de
José Lins do Rego, Rachel de Queiroz ou Gilberto Freyre faziam par com
desenhos de Portinari, Santa Rosa e Augusto Rodrigues, nas décadas de 1930 e
1940. Fixou-se ali uma fronteira: enquanto a fotografia acompanhava as
reportagens, a ilustração contracenava com os textos literários ou humorísticos.
Foi por essa época que começaram a desfilar nas páginas de O Cruzeiro os
desenhos graciosos de Alceu Penna. Delicados como croquis de alta-costura,
formavam um saboroso picadinho de silhuetas, cinturas finas, perfis e penteados,
temperados com os trejeitos da mulher moderna e sensual que, de modo especial
na era JK (1956-1961), ditava moda e comportamento.
180
Para compreender melhor o sentido que a modernidade tinha para as mulheres
representadas em O Cruzeiro, observam-se não apenas as colunas, como a de Alceu Penna,
178
O Cruzeiro. 7 jul. 1945. p.69.
179
Idem., 11 mar. 1943.
180
CORRÊA, Thomaz Souto (Ed.). A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p. 71.
89
mas os espaços publicitários, os artigos, as matérias e as capas, ilustradas sempre com uma
figura feminina, valorizando belos rostos e que se complementam no significado de
mostrar uma nova mulher. A idéia de trabalhar com a propaganda de produtos e serviços
era tão fundamental para a revista que servia até mesmo para anunciar novas seções. E a
bem-sucedida “As garotas” ganhou um grande anúncio antes de estrear. A publicação
ocorreu nos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, no dia 5 de abril de 1938, e dizia:
“As garotas são a expressão da vida moderna. As garotas, endiabradas e irrequietas, serão
apresentadas todas as semanas em O Cruzeiro, desenhadas por Alceu, o mais malicioso e
jovem de nossos artistas. As garotas em duas páginas em cores constituem um dos hits de
O Cruzeiro, a revista que acompanha o ritmo da vida moderna.”
181
A propaganda de uma mulher moderna espelhada nos padrões hollywoodianos pode
ser observada em quase todos os anúncios e colunas:
A mulher moderna sabe preferir o pó de arroz que lhe proporciona uma cutis
sadia, perfeita, assetinada, e que dá realce à sua belleza natural.
O pó de Arroz Gally,
de pureza e perfume consagrados, reune todas as qualidades necessarias aos
cuidados de uma epiderme feminina.
182
Pó de Arroz Gally.
Em 27 de janeiro de 1934 esse mesmo produto já havia sido mostrado, também
com a figura de uma mulher jovem, e a baixo a imagem da caixa de pó, de um
anúncio que dizia: A cutis de um rôsto belo deve ter o assetinado de uma
pétala[...]
Pó de Arroz Orygem de
GALLY
183
Esses anúncios são exemplos, dentre tantos, que colocam o uso do produto como
condição para ser uma mulher moderna. A ilustração da propaganda do dia 8 de setembro
complementa o texto. Na imagem, uma mulher admira-se ao espelho e mostra uma pele
perfeita; abaixo, a imagem é da outra estrela do anúncio, a caixa do pó arroz.
Estavam na moda também aqueles que usavam os perfumes da Coty. A sugestiva
propaganda da edição de 13 de setembro de 1930 trazia uma mulher cercada por vários
tipos de frascos de perfumes, com as frases:
181
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1988. p. 125.
182
O Cruzeiro. 8 set. 1934. p. 38.
183
Id., 27 jan.1934. p. 13.
90
Perfumes suaves
Essências da Moda
Frascos de luxo
Apresentação de Gomic
Agencia Geral Coty no Brasil
19, Rua Riachuelo Rio de Janeiro.
184
A revista também procurava utilizar as colunas femininas para enaltecer a idéia de
modernidade e de país moderno. Os conteúdos temáticos trazidos por O Cruzeiro em 46
anos de circulação variavam desde amenidades a política, religião, literatura, esportes,
culinária, moda, comportamento e outros que foram se incorporando ao semanário
conforme a revista foi evoluindo em termos gráficos e jornalísticos.
2.1 O Cruzeiro e os desafios de um modelo de comunicação principiante da modernidade
As revistas brasileiras ao longo da história tiveram importante papel na defesa de
uma identidade nacional, numa luta que começou defendendo a independência nas páginas
de As Variedades, de 1812, e que se estendeu nos propósitos de O Cruzeiro: uma revista
destinada a mostrar um Brasil moderno e a dar uma visão de unidade nacional. Outra
característica do magazine brasileiro foi o humor, “uma ampla vertente entre as revistas
brasileiras. O Malho nasceu com essa marca, em 1902, assim como A Rolha, em 1918.
Figuras respeitáveis como Rui Barbosa aqui, no traço de K. Lixto para D. Quixote, em
1919 não escaparam das irreverências dos caricaturistas.”
185
Com O Cruzeiro não foi
diferente. Entre os vários espaços que privilegiaram o humor estava a coluna “O amigo da
onça”, desenho que geralmente ocupava a página inteira, tinha sempre uma história
irreverente para contar, fossem fatos políticos, fosse uma simples e ingênua estória de
pedido de presentes de Natal, como esta da página 83 do dia 16 de dezembro de 1944.
Abaixo do desenho a frase dizia: “[...] Você está escrevendo ao Papai Noel? Vamos então
descobrir uns presentes formidáveis!”
186
Ou, ainda, a irônica do dia 3 de junho de 1944, na
qual o Amigo da Onça é comandante de um avião que tem como passageiro um senhor
184
O Cruzeiro. 13 set. 1930. p. 17.
185
CORRÊA, Thomaz Souto (Ed.). A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p .14.
186
O Cruzeiro. 16 dez. 1944. Coluna “O amigo da onça”. p. 83.
91
gordo. Na conversa o comandante diz: “Estou com o pressentimento de que vai haver um
bruto desastre. E o sr. Não vai poder fugir pela janelinha [...]”
187
Mas foi na Guerra do Paraguai, em 1864-1870, que a imprensa brasileira teve, pela
primeira vez, um grande desafio jornalístico: “Até certa altura, os jornais apenas
transcreviam informações oficiais ou publicavam cartas enviadas do campo de batalha. A
cobertura do embate começou a ganhar expressão em 1865, na Semana Illustrada,
periódico de Henrique Fleuiss, desenhista alemão radicado no Brasil.”
188
Outros desafios vieram, um dos quais foi o de acompanhar as transformações do
jornalismo nos moldes americanos, com um padrão mais objetivo da informação e uma
diagramação mais atraente, que, com o passar dos anos, iria encontrar na informática uma
grande aliada. Mas no início do século XX o jornalismo brasileiro, diferente do americano,
ainda não havia descoberto a reportagem. Tudo na profissão daqueles anos se resolvia no
“sabe-tudo” das redações, território de comentaristas e articulistas. Um deles, João do Rio,
pseudônimo do jornalista e escritor carioca Paulo Barreto, começou a aparecer com pautas
ousadas, utilizando o seu tino de repórter e revolucionando a forma de dar a notícia.
Foi um dos primeiros jornalistas brasileiros a sair dos gabinetes e dos salões grã-finos
para buscar a notícia em becos e avenidas. “Eu amo a rua, a mais igualitária, a mais
socialista, a mais niveladora das obras humanas”, escreveria este homem fascinante e
controvertido numa série de matérias sobre os bas-fonds do Rio.
O que João do Rio fazia em Kósmos, revista de cultura criada em 1904, não era
ainda a reportagem tal como existiria décadas mais tarde.
Não havia, por exemplo, preocupação com a objetividade. Mas a narrativa trazia
já um indispensável ingrediente do gênero, a fiel observação da realidade, além
da disposição do autor de contar o Brasil aos brasileiros.
189
Quando O Cruzeiro nasceu, o jornalismo no Brasil já se encontrava numa fase de
transição entre a precariedade editorial e as possibilidades de inovação. Audacioso, Chatô
comprou equipamentos modernos importados da Alemanha para impressionar e alcançar os
seus propósitos de mudança com o novo empreendimento. No ano de 1930, persistindo nesses
propósitos de melhorias, O Cruzeiro anunciou reformas na parte gráfica do semanário:
187
O Cruzeiro. 3 jun. 1944. p. 43.
188
CORRÊA, Thomaz Souto (Ed.). A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p. 43.
189
Ibid., p. 41.
92
O CRUZEIRO, que consta de 48 paginas em seus numeros normaes, passara a
ter 56 e 64 paginas, das quaes metade em rotogravura. Isto representa apenas a
phase inicial das nossas reformas. Logo, porem, que as nossas actuaes officinas
sejam transferidas para a nova sede em vias de conclusão na rua 15 de maio,
passaremos a utilizar a gigante machina de rotogravura rotativa de cinco
unidades, [...].
190
Em 1931, avançavam as reformas na revista, que se instalou em nova sede, com
uma oficina moderna, e anunciou o progresso que chegava ao semanário. Já com letras no
formato script que a nova máquina propiciava fazer, o recado aos assinantes e leitores foi
dado em página nobre inteira, com palavras bem grandes, como são tratadas pela imprensa
as primeiras páginas de uma publicação.
O próximo numero de “O Cruzeriro” conterá materia de especial interesse para
V. S.
Uma revista moderna deve ter como permanente objetivo proporcionar aos seus
leitores assuntos atraentes, capases de merecerem e justificarem a presdileção do
público.
Tendo completado a instalação das suas officinas na sua nova séde “O Cruzeiro”
iniciará a execução de um vasto programa de iniciativas, subordinado à sua
divisa de melhorar sempre, variar sempre, progredir sempre!
191
No início de 1931, a revista já havia anunciado o projeto ousado que viria para
transformá-la num programa chamado de “remodelação-geral”. O anúncio de página
inteira servia também para justificar para os leitores o aumento do preço da revista e para
anunciar “a publicação mensal de um numero especieaes de 2$ 000 réis (dois mil réis)”.
O Cruzeiro a seus leitores
O nosso programa de remodelação-geral os futuros números especiais de “O
Cruzeiro” nossas novas instalações para retrogravura em cores.
As transformações porque vae passar esta revista com os readicaes
melhoramentos que nella serão brevemente introduzidos, visam a torná-la um
orgão correspondente ao gráu de cultura sempre ascensional do público e ajustá-
la ao programma que traçamos de fazer de O CRUZEIRO uma revista modelo,
comparavel às melhores revistas similares estrangeiras.
O CRUZEIRO que inaugurou a rotogravura na imprensa ilustrada nacional, e
que serviu de campo experimental da rotogravura no Brasil, inaugura em breve a
rotogravura a côres, para o que tem já montada nas suas novas officinas a gigante
rotativa de cinco unidades, adquirida na Alemanha.
190
O Cruzeiro. 6 set. 1930. p. 13.
191
Id., 15 ago. 1931. p. 4.
93
Essas reformas representam em seu conjucto um dos mais arrojados
empreendimentos editoriais até hoje realizados no Brasil, e compreendem a
execução semanal de 64 páginas em rotogravura a chromo-rotogravura, e uma
vasta collaboração literaria e artistica, confiada aos nossos mais notaveis
escritores e illustradores. [...]
A adopção e applicação intensiva e regular de tão complicados processos
graphicos, com os da rotogravura a côres, para os quaes se tornou necessario
contratar na Alemanha pessoal techico devidamente adextrado, não pode fazer-se
sem um periodo preparativo e experimental.
Contamos, porem, que brevemente O CRUZEIRO haja concluido a sua
remodelação, utilizando os novos machinismos e se tenha tornado a mais
luxuosa, attraente e artistica revista semanal que jamais houve no Brasil.
192
No final da Segunda Guerra Mundial (1939/1945), o jornalismo no mundo sofreu
modificações, a imprensa começou a sofrer a concorrência do rádio e da televisão. Em 1920,
surgiu a radiodifusão nos Estados Unidos e, em 1923, a primeira revista semanal noticiosa:
Time. Mais tarde, no início da década de 1940, surgiu a televisão naquele país. No Brasil,
como até 1947 não existiam cursos de comunicação, os pretendentes à profissão de jornalista
aprendiam nas redações o ofício da profissão. Foi nesse período que os jornais e revistas
começaram a adotar uma nova forma de fazer jornalismo, baseada nas transformações por
que passava a mídia americana. As matérias começavam a ser mais interpretativas, com
análises e avaliações; as páginas sofriam mudanças visuais. O Cruzeiro, a partir da década de
1930, teve modificada a sua diagramação e adotou a reportagem.
Foi O Cruzeiro que consagraria a reportagem semanalmente, como mostramos no
capítulo anterior, com David Nasser e o fotógrafo Jean Manzon, como os principais
repórteres da revista nesta fase. Mas a dupla começou a fazer sucesso com as reportagens a
partir da década de 1940. Na edição de 25 de novembro de 1944, sobre terremoto no Chile,
os autores relataram o fato sem a preocupação com um modelo de reportagem semelhante
aos atuais, que leva em conta a objetividade da informação e utiliza a técnica do Lead, que
consiste na introdução da notícia, ou “abertura da cabeça da matéria”, quando se responde
a seis perguntas básicas: Como? Por quê? Onde? Quando? O quê? Quem? O modelo foi
criado pelos americanos na tentativa de dar à notícia mais qualidade, uma objetividade que,
segundo Mário Erbolato, é um dos pontos mais contraditórios e difíceis no jornalismo.
Outra característica da notícia é a objetividade. Deve ser publicada de forma
sintética, sem rodeios e de maneira a dar a noção correta do assunto focalizado.
Quem colhe dados, observando o local ou entrevistando pessoas capacitadas a
192
O Cruzeiro. 3 jan. 1931. p. 2.
94
proporcionar informações para a matéria, deve agir com isenção de ânimo.
Honestidade e imparcialidade são atributos exigidos do repórter. Porém o poder
de síntese não impedirá a clareza.
193
Na reportagem sobre os fenômenos sísmicos que ocorrem no Chile e que ocasionam
a morte de várias pessoas, o primeiro parágrafo trazia:
Os fenômenos sísmicos que se reproduzem periodicamente em todo o mundo e
em particular no Chile são fenômenos de escassa importância na evolução da
terra. A crosta terrestre sofre, apenas transformações leves, nos grandes
terremotos. Mas, nas cidades e nos campos milhares de pessoas morrem,
milhares de casas desaparecem e a desolação, o frio, a desnudes, a fome, a
tragédia campeiam livremente, enquanto a terra imperturbável, prossegue a sua
marcha universal.
Os chilenos fizeram suas grandes cidades longe da zona dos terremotos. Seu país
que está quase totalmente dentro da faixa sísmica do planeta, observa os
tremores da terra como simples fenômenos metreológicos. No Chile se
produzem, em média, 500 tremores em cada ano, dos quais, apenas raros são
percebidos pelo homem. Contudo os mais fortes adquirem importância máxima e
são casos de terror e pânico, devido principalmente “as péssimas construções em
que habitam o homem”, esclarece-nos o Instituto Sismológico da Universidade
do Chile. [...]
194
Com páginas recheadas de anúncios e muitas informações vindas dos estúdios
de Hollywood e das principais agências de notícias do mundo, a revista passava,
então, a integrar o modelo de comunicação de massa que eclodiu pelo mundo,
disseminando a informação de forma comercial e em grande escala a partir do início
do século XX, com o cinema, o rádio e, depois, a televisão, para grandes públicos.
“Foram esses veículos que iniciaram a grande transição por nós continuadas até hoje
em dia,”
195
um processo que se prolongou com os jornais e que teve ainda a
contribuição do telégrafo e do telefone.
Com o alvorecer do século XX, a sociedade ocidental estava prestes a
experimentar a criação de técnicas de comunicação que ultrapassavam os mais
desvairados vôos da imaginação de um século antes. Durante a primeira década
193
ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em jornalismo redação, captação e edição no jornal
diário. São Paulo: Ática,1991. p. 56.
194
O Cruzeiro. 25 nov. 1944. p. 5.
195
DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993. p. 24.
95
do novo século, o cinema virou uma forma de divertimento familiar. Isto foi
seguido em 1920 pela criação do rádio doméstico e, nos anos 40, pelo início da
televisão doméstica.
196
A realidade apresentada pelo autor é americana. No Brasil, a televisão surgiria só
uma década depois, pois o rádio e os meios impressos reinavam absolutos. Apesar de O
Cruzeiro não ser definido como um veículo de massa, teve grande público leitor, como
dissemos no primeiro capítulo deste trabalho, e foi um dos principais instrumentos de
divulgação da propaganda governamental, de interesses do cinema e dos produtos da
indústria, que crescia e transformava a vida nas cidades, de ideologias políticas e sociais de
um governo nacionalista e da idéia de um país moderno. Para isso, a revista também se
modernizou, no entanto foi uma transformação apenas estética e gráfica, a revista não
procurou evoluir do período amarelo, em termos de conteúdo, ou seja, não buscou sair da
preocupação apenas com a circulação, esquecendo a qualidade do conteúdo que era
oferecido ao leitor. Esse foi um período por que passou também a imprensa americana. Foi
então que, “gradativamente, a imprensa tornou-se menos sensacionalista e mais
responsável.”
197
E assim foram criados vários códigos e normas que estabeleceram limites
aos meios de comunicação.
Por aqui, O Cruzeiro, que procurava melhorar a sua qualidade gráfica, não se
preocupava muito com a veracidade da informação, como revelou o próprio Accioly
Netto. Segundo ele, muitas vezes as matérias das seções eram reaproveitadas das revistas
do exterior.
O Cruzeiro publicava também contos tirados de revistas estrangeiras, incluindo
até as ilustrações, sem qualquer autorização. Ninguém jamais protestou. Éramos
ainda um país desconhecido do Terceiro Mundo. O mesmo sistema era usado
para as páginas de caricaturas internacionais, coletadas de publicações
especializadas, sobretudo Simplicissimus, da Alemanha, Le Rire, da França e
Carlino, da Itália. As seções de moda também eram feitas com recortes de
revistas e jornais de Paris e Nova York. Tal sistema era pitorescamente chamado
de “cola e tesoura”, no qual eu me tornei sem dúvida alguma um perito.
198
196
DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993. p. 41.
197
Ibid., p. 73.
198
NETTO, Accioly. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1988. p. 51.
96
As informações vindas diretamente dos estúdios cinematográficos americanos
preenchiam as colunas, como, por exemplo, “Cinelandia”, assinada por diferentes autores e
que trazia muitas fotos das estrelas hollywoodianas. Além das fotos, os textos alimentavam
o imaginário coletivo com as estórias da vida, de sucesso, dos produtos e dos cosméticos
que as estrelas usavam.
Essas estórias reacendiam o imaginário coletivo a cada nova edição, num trabalho
jornalístico que buscava despertar a emoção e que trazia a cada dia uma pauta nova para
reflexão. Os assuntos abordados pela mídia geravam discussões e eram motivo de
polêmica como a criada no final dos anos de 1960 pelos americanos Maxwell MC Combs e
Donald Shaw. Estas estudaram a relação estreita entre a maneira pela qual a mídia
noticiosa apresenta a realidade, em termos de importância e hierarquia, e o modo como as
pessoas, por empréstimo da mídia, compreendem esta mesma realidade. Essa teoria,
conhecida por Agenda Setting,
199
confirma a hipótese de que os meios de comunicação de
massa não intervêm diretamente no comportamento de seus públicos, mas tendem a
influenciar lenta e gradualmente no modo como os assuntos por eles são absorvidos. Em
outras palavras, muitas vezes são os meios de comunicação que colocam os assuntos na
pauta do dia para o público debater.
Como o objetivo aqui não é avaliar a audiência, não serão abordados detalhes dessa
teoria, mas queremos mostrar que a revista se propunha, sim, a formar opinião, a ditar
moda e comportamentos e a ser porta-voz de uma nova ordem nacional: a modernidade.
Por isso, preocupava-se em colocar na pauta da semana os assuntos que julgava
importantes e que poderiam influenciar na transformação social daqueles anos.
A definição de teóricos da comunicação como Mauro Wolf é de que “a massa é
constituída por um conjunto homogéneo de indivíduos que, enquanto seus membros, são
essencialmente iguais, indiferenciáveis, mesmo que provenham de ambientes diferentes,
heterogéneos, e de todos os grupos sociais,”
200
uma comunicação de massa direcionada
para grupos sociais restritos. Em O Cruzeiro existiu uma comunicação de massa no sentido
da massificação da informação e da publicidade, procurando mostrar que o Brasil era um
novo país, agora moderno. Ainda que fosse dirigida a um público restrito e elitizado, a
revista teve boas tiragens e desempenhou um papel preponderante na comunicação
brasileira, além de ser uma das portas da mediação desse tipo de comunicação intensa da
199
WOLF, Mauro. Teorias da comunicação massa media: contextos e paradigmas, novas tendências e
efeitos a longo prazo, o newsmaking. Lisboa: Editoral Presença, 1995. p. 130.
200
Ibid., p. 22.
97
publicidade, que não se restringia apenas aos espaços da propaganda, mas utilizava-se da
notícia, da reportagem, das colunas e da fotografia. Tudo era tratado como uma venda ao
consumidor, fossem ideologias, fossem produtos.
Mauro Wolf ainda reforça: “Além disso, a massa é composta por pessoas que não se
conhecem, que estão separadas umas das outras no espaço e que têm poucas ou nenhumas
possibilidades de exercer uma acção ou uma influência recíprocas”.
201
Outros teóricos como Melvin L. DeFleur e Sandra Ball-Rokeach destacam que os
meios de comunicação, ao longo dos anos, assistiram ao declínio de seu público, mas não
porque deixaram de ser veículos de massa e, sim, porque foram cedendo espaços para
outros, alguns sendo até ameaçados de obsolescência. Melvin Defleur explica como os
meios impressos foram se projetando e as revistas semanais foram conquistando o público.
No tocante ao jornal, os fatores que conduziram a seu declínio até agora não são
difíceis de evidenciar. Outras formas de veículos, satisfazendo necessidades da
população semelhantes às atendidas pelos jornais, começaram a surgir na
sociedade na década de 1920. Pouco após (durante os anos 30), revistas
noticiosas semanais começaram a granjear aceitação bem generalizada. Até o
filme desempenhou um papel nisso. Nos últimos anos da década de 1940 e na de
1950, claro, a televisão avassalou a sociedade norte-americana. Em maior ou
menor grau, cada uma dessas alternativas funcionais para o jornal abocanhou
algo da circulação da imprensa diária. Cada uma, em certo sentido, propicia
notícias, informações ou divertimento de uma forma que outrora era domínio
exclusivo do jornal.
202
Essa evolução nos meios de comunicação e o surgimento de novos suportes e
formatos acompanham o próprio crescimento econômico da sociedade. Já na metade do
século XIX, o mundo começou a se voltar para um novo tipo de economia, a economia de
mercado, cuja base é o consumo de bens, surgindo aí uma sociedade de consumo. A
indústria cultural, diz o autor, tem muito dos traços da sociedade capitalista liberal e mostra
como ela surgiu e quais são os seus traços marcantes:
Assim, a indústria cultural, os meios de comunicação de massa e a cultura de
massa surgem como função do fenômeno da industrialização. É esta, através das
alterações que produz no modo de produção e na forma do trabalho humano, que
201
WOLF, Mauro. Teorias da comunicação massa media: contextos e paradigmas, novas tendências e
efeitos a longo prazo, o newsmaking. Lisboa: Editoral Presença, 1995. p.22.
202
DEFLEUR, Melvin L. Teorias da comunicação de massa. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993. p.
74-76.
98
determina um tipo particular de indústria (a cultural) e de cultura (a de massa),
implantando numa e noutra os mesmos princípios em vigor na produção
econômica em geral: o uso crescente da máquina e a submissão do ritmo humano
de trabalho ao ritmo da máquina; a exploração do trabalhador; a divisão do
trabalho. Estes são alguns dos traços marcantes da sociedade capitalista liberal,
onde é nítida a oposição de classes e em cujo interior começa a surgir a cultura
de massa. Dois desses traços merecem uma atenção especial: a reificação (ou
transformação em coisa: a coisificação) e a alienação. Para essa sociedade, o
padrão maior (ou único) de avaliação tende a ser a coisa, o bem, o produto, a
propriedade: tudo é julgado como coisa, portanto tudo se transforma em coisa
inclusive o homem. E esse homem reificado só pode ser um homem alienado:
alienado de seu trabalho, trocado por um valor em moeda inferior às forças por
ele gastas; alienado do produto de seu trabalho, que ele mesmo não pode
comprar, pois seu trabalho não é remunerado à altura do produzido; alienado,
enfim, em relação a tudo, alienado de seus projetos, da vida do país, de sua
própria vida, uma vez que não dispõe de tempo livre, nem de instrumentos
teóricos capazes de permitir-lhe a critica de si mesmo e da sociedade.
203
Para Coelho Teixeira, a comunicação de massa, com seus veículos, como o cinema,
a história em quadrinhos e tantos outros, permite a prática do novo.
Na verdade, o que temos nesses veículos da indústria cultural realmente são
ícones, porém, ícones sufocados numa operação indicial com os signos. Os
ícones existem superficialmente, mas o modo pelo qual são dispostos é indicial,
formando-se no indivíduo receptor uma consciência sob a forma de mosaico,
composta por retalhos de coisas vistas rapidamente, numa tela onde se
multiplicam e sucedem imagens desconexas a impedir, para esse indivíduo, uma
visão totalizante de si e de seu mundo, provocando, dessa forma, o processo de
alienação.
204
Segundo Teixeira Coelho, para existir uma comunicação de massa é necessário que
exista uma sociedade de massa, com consumo de massa, no Brasil a baixa renda da
população diminui o consumo, por que “a divisão de renda é tal, que apenas os bolsões
situados no centro-sul do país podem pensar em consumir, e mesmo assim em termos
relativamente modestos”. Mas também é correto afirmar, conforme o autor, que a indústria
cultural gera produtos dirigidos diretamente à pequena parcela da sociedade que é
consumidora. Então, grupos de classes sociais baixas consomem simbolicamente produtos
dirigidos à minoria.
203
TEIXEIRA, Coelho. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1980. p.10-11.
204
Ibid., p. 73.
99
De qualquer modo, deveria ser bastante claro que, embora os grupos consumidores sejam
em pequena proporção diante da população nacional e embora os produtos da indústria
cultural sejam dirigidos diretamente a eles, sobre eles e a partir deles é gerada uma
produção cultural que acaba por afirmar-se e estender-se, embora não homogeneamente,
a todos os demais grupos sociais não consumidores. E estes grupos acabam por consumir
simbolicamente aqueles produtos dirigidos à pequena minoria. E isto quer através da
atividade imaginária de participação naqueles produtos e naquela cultura, quer através da
participação também ilusória, porque excepcional e passageira, possível através de
concursos “milionários” como os do Baú da Felicidade como mostra Sérgio Miceli em
A Noite da madrinha. Seja como for, esses meios de comunicação de massa acabam
produzindo uma estrutura cultural que se torna impositivamente comum ao número de
atingidos por esses meios, razão pela qual é possível falar na existência de uma cultura de
massa e de meios de comunicação de massa, ainda que nossa sociedade não seja uma
sociedade de consumo de massa; a inexistência desta não impede a existência daqueles.
205
Sabedores ou não dessas afirmações, os dirigentes de O Cruzeiro optaram por uma
comunicação mais dirigida ao público feminino, um grande potencial consumidor pouco explorado
pela mídia da época. Como afirma Teixeira Coelho, na comunicação de massa é gerada uma produção
cultural disseminada para outras camadas sociais e que consegue atingir mais consumidores, mesmo
que seja de uma forma simbólica. Assim, sendo as mulheres o público-alvo da revista, acabavam
influenciando as famílias para o consumo de novos produtos. A indústria cultural brasileira, como
afirma o autor, possui elementos de cultura estrangeira e não trata de temas do cotidiano. Ela é,
basicamente, “a indústria do divertimento, da distração, e não da reflexão sobre o que acontece na vida
diária.”
206
A comunicação, em O Cruzeiro, era dirigida ao público de melhor poder aquisitivo, mas
com o propósito de atingir o país como um todo e de espalhar por todos os cantos do Brasil as
novidades trazidas por uma cultura de massa que se espalhava também com o cinema e toda a gama de
produtos e estilos criados a partir daí, dando uma idéia de novo, de mudanças, de moderno.
Dessa forma, a revista ia tecendo no imaginário feminino um
novo perfil de mulher, que se preocupava com a estética como as
estrelas do cinema. O vocabulário da moda modificou a própria
língua nacional: garotas passaram a ser chamadas de girls, de gal;
fashion virou sinônimo de moda e rainha da beleza passou a ser
denominada miss. O Cruzeiro não apenas falou de beleza, mas
ajudou a escolher as mais belas do Brasil.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 9 As mais belas do mundo miss Universo e a propaganda do sabão “Lux”
207
205
TEIXEIRA, Coelho. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 85.
206
Ibid., p 96.
207
O Cruzeiro. 11 out. 1943.
100
Concursos de beleza para escolher a miss Brasil e a miss Universo movimentaram
especialmente os anos de 1929 e 1930. Na edição de 6 de setembro de 1930, a revista
dedicou 12 páginas para mostrar as mais belas e registrar o “Miss Universo 1930”, a
exemplo de outras edições que trataram do mesmo evento, como foi a do mês de julho de
1929, como abordamos no capítulo anterior.
O concurso que escolheu a brasileira Yolanda Pereira como “Miss Universo 1930”
veio sendo anunciado ao longo das edições do mês de setembro. Na do dia 6, a manchete
dizia: “Será eleita amanhã no Rio de Janeiro a Miss Universo 1930”. O texto contendo
muitas fotos, inclusive da candidata que viria a ser eleita, trazia:
O Cruzeiro que, em 1929, acompanhou com uma vasta reportagem a
participação do Brasil ao concurso de Galveston, desde a eleição das misses dos
Estados até às de Miss Brasil e Miss Universo, dedica o presente numero ao
concurso de Belleza que elegerá amanhã no Rio de Janeiro, por iniciativa de “A
Noite”, a MISS UNIVERSO 1930 entre as candidatas eleitas do Brasil, Grecia
(Miss Europa), França, Inglaterra, Allemanha, Italia, Estados Unidos, Cuba,
Chile, Perú, Russia, Rumania, Turquia, Libano, Belgica, Yugoslavia, Hollanda,
Hungria, Austria, Bulgaria, Tchoslovaquia, Hespanha e Portugal.
208
As mais belas fotos tiradas dos concursos de beleza estavam nas páginas da revista
também para anunciar produtos. O reforço à propaganda que as misses faziam estimulava a
venda de uma imagem cada vez mais preocupada com a beleza e o bem-estar do corpo.
Uma página inteira era ocupada com fotos, depoimentos e assinaturas das estrelas:
“Yolanda Pereira, Miss Universo Rio São Paulo, 1930; Jerusuda Gonçalves miss
Portugal 1930; Ahni Diplarahos Miss Europa, 1930; Beatrece Lee Miss United States
1930”. E a página complementava:
As mais bellas do mundo
Conservam lindas como novas as suas roupas delicadas lavando-as com LUX
Para as roupas mimosas de hoje, somente a pureza de Lux
Todos os theatros e companhias de revistas de Nova York usam Lux para as
meias de sedas durarem o dobro, e os departamentos de vestuário dos grandes
“studios” de Hollywood usam somente Lux.
209
208
O Cruzeiro. 6 set. 1930. p.13.
209
Id., 11 out. 1930. p. 43.
101
2.2 A sutileza dos símbolos e da beleza
Levando em conta intenções sublineares e códigos a serem decifrados, reafirma-se a
oportunidade de estudo neste trabalho de uma história cheia de signos, de fatos não antes
vistos com mais detalhes, de evidências, de comportamentos e visões explícitas e
implícitas, tratadas em reportagens e matérias. Além disso, havia a publicidade, que
colocava mercadorias à disposição das mulheres, o público potencial desta comunicação de
massa, mas que não se esquecia dos homens, das crianças e dos jovens. É uma história
contada a partir da idéia de Brasil que O Cruzeiro criou para representar os acontecimentos
em 17 anos que este trabalho recortou para estudar. Para Robert Darnton a história pode
ser contada a partir de pequenos acontecimentos, de situações que nem sempre fazem parte
das versões oficiais.
A história diz respeito à confrontação de uma adolescente com a sexualidade
adulta, explicou ele. O significado oculto aparece através de seu simbolismo
mas os símbolos que ele viu, em sua versão do texto, baseavam-se em aspectos
que não existiam nas versões conhecidas dos camponeses, nos séculos XVII e
XVIII. Assim, ele enfatiza o (inexistente) chapeuzinho vermelho como um
símbolo da menstruação e a (inexistente) garrafa que levava a menina como
símbolo de virgindade: daí a (inexistente) advertência da mãe, para que ela não
se desviasse do caminho, entrando em regiões ermas, onde poderia quebrá-la.
210
Com a visão de mundo das pessoas comuns da França do século XVIII, Robert
Darnton tentou mostrar não apenas o que as pessoas pensavam, mas como interpretavam o
mundo. O grande massacre de gatos é um exemplo da forma de contar a história com base
no imaginário das pessoas, daquilo que está em suas mentes. É uma história com tendência
etnográfica; uma história do cotidiano, das experiências, das criações, das produções e da
vida de homens e mulheres que nem sempre estiveram presentes na grande história oficial,
e que estabelece relações de forma circular e dinâmica.
A história das mentalidades é uma possibilidade de se pensar o social, de se estudar
aquilo que está mais próximo e contextualizá-lo com uma realidade maior, uma tarefa que
desafia as dificuldades de lidar com o imaginário coletivo. As mentalidades apresentam-se
dissimuladas, estratificadas, objeto de uma história por etapas.
211
São pedaços de uma história
210
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p.23.
211
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 323.
102
de experiências produzidas e pensadas que, ao serem relacionadas com o passado, formam um
panorama próximo da realidade do cotidiano e daquilo que está na mente das pessoas.
A imprensa e os pesquisadores “imediatistas” abriram para si a porta dos arquivos.
Os historiadores, diz Jean Lacouture
212
, sabem considerar o presente e aplicar às suas
convulsões seu rigor profissional. Portanto, as experiências e as práticas de vida interessam
à história. Interessam também as colunas sociais de O Cruzeiro de 1928, em cuja primeira
edição na coluna “Dona na sociedade”, assinada “por Permonino Junior”, trouxe “A
história das pessoas sem história” para mostrar que a revista tinha a pretensão de entrar
para a história a partir dos registros dos fatos da sociedade daqueles anos, especialmente os
acontecimentos sociais:
Da chronica mundana pode dizer-se o que do romance disse Duvernois: é a
história das pessoas que a historia ignora.
Confesso que não conheço definição melhor, na clara rigidez incisiva da sua
synthese, - nem mais exacta.
De resto, M. Paul de Valery, estudando a estranha e fascinante personalidade
literaria de Proust, que foi considerado historiador da sociedade francesa,
declarou gravemente que “le mouvement de l’histoire se resume assez bien dans
l’ accession successive des especes sociales aux salons, aux chasses, aux
mariages et aux funérailles de la tribu supréme j’ une nation”.
Dentro dessa ordem de idéias, seria talvez possivel catalogar-nos a todos nós,
chronistas mundanos, entre os graves homens illustres que têm direito a uma
cadeira de Instituto Histórico [...].
Eu de mim não faço questão nenhuma da cadeira do Instituto, mas estou certo de
que o escriptor que honestamente faz a historia dos salões tem direito, por
legitima conquista, ao titulo de historiador da sociedade.
Para ser sincero, aliás, devo desde logo declarar que nunca considerei a
chronica mundana como uma coisa frivola.
E frivola ella não foi certamente jamais para homens como Wilde Proust, que a
exerceram com gravidade e brilho.
Portanto, não tenham dúvidas: nós, os chronistas mundanos, estamos realizando
uma obra grave e bella estamos escrevendo todos os dias a historia das pessoas
sem historia.
213
A coluna propunha-se, desde a primeira edição, a ser um espaço dedicado às festas e
aos salões da sociedade carioca; ser “um registro conciso dos nomes que marquem o rythmo de
hora que passa, resumo, emfim, das coisas infinitamente encantadoras, sejam graves ou
frivolas, em torno das quaes nos salões e nas ruas, gritam as criaturas elegantes”.
214
212
LACOUTURE, Jean. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 238.
213
O Cruzeiro, 10 nov. 1928. Coluna “Dona na sociedade”. p.53.
214
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade
possível. In: SEVCENKO, Nicolau. v.3. História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras,
1998. p. 53.
103
E se o glamour estava em alta, a beleza estava estampada nas capas em
praticamente todas as edições da revista com raras exceções, quando saíam de cena para
dar lugar a temas mais “pesados” daqueles anos de intensa manifestação política, como
será abordado no capítulo 3. Com o propósito de chamar a atenção dos leitores, as capas
eram criativas, coloridas e, por que não, sedutoras.
Destinada a seduzir o leitor à primeira vista, a capa sempre foi, por isso mesmo,
o grande desafio dos editores: como criar um “rosto” que, entre centenas de
outros, tenha o poder de fisgar quem vai a uma banca de revistas?
Boas capas vendem e consagram uma publicação. Que leitora no Brasil teria
dificuldade de identificar Nova prontamente, mesmo com o logotipo encoberto?
A isso se chama de identidade visual. Mas a sintonia do produto com seu público
não basta para garantir o sucesso se fosse assim, as edições de uma revista
teriam sempre a mesma vendagem. O descompasso ocorre porque não há, é
claro, receita infalível na arte de fazer capas. E também porque são insondáveis
os mecanismos que levam o leitor a escolher esta ou aquela publicação. Seria a
foto da capa? A originalidade dos temas? As cores? O punch das chamadas?
215
Com esse espírito criativo e procurando vencer o desafio de inovar cada vez mais,
O Cruzeiro na década de 1940, além da revista Manchete em 1950, foi em busca do
chamado “furo de reportagem” para, assim, atrair ainda mais os leitores com chamadas
criativas: “Os editores descobriram, então, o valor da chamada de capa, texto breve,
preciso, irresistível piscadela verbal e seduzir o leitor.”
216
No caso de O Cruzeiro, o que mais chama a atenção são os belos rostos de mulheres,
saídas, primeiro, dos traços dos desenhistas, depois, dos fotógrafos. As capas traziam uma
carga de signos que expressavam simbolicamente os temas que a revista iria abordar na edição.
Quando a edição do Miss Universo de 6 de setembro de 1930 divulgou as candidatas ao
concurso que aconteceria no dia seguinte, a capa trouxe a figura de uma mulher envolta nas
bandeiras do Brasil e de outros países participantes do evento. Da mesma forma aconteceu
com a edição de 27 de dezembro de 1930, que continha na capa um menino com a bandeira
nacional, representando a esperança naquele ano de revolução. E assim poderiam os descrever
vários outros exemplos, como já foram registrados também no capítulo 1.
Essa sutileza nos símbolos e na beleza dos traços que representavam as mulheres de
uma época pela revista conduziu, ao longo deste trabalho, a interpretações sob a luz dos
signos. Entre tantas definições e formas de uso, foi em Umberto Eco que buscamos apoio
215
CORRÊA, Thomaz Souto. A Revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p. 24.
216
Ibid..
104
para elucidar um pouco deste método de trabalho de que nos valemos ao longo desta
pesquisa. É do autor a definição de signo:
O signo é um gesto emitido com a intenção de comunicar, ou seja, para transferir
uma representação própria ou um estado interno para um outro ser.
Naturalmente, presume-se que, para que a transferência tenha êxito, uma
determinada regra (um código) habilite tanto o emissor quanto o receptor para
entender a manifestação do mesmo modo. Neste sentido, são reconhecidos como
signos as bandeiras e os sinais de trânsito, [...], as letras do alfabeto. Neste ponto,
os dicionários e a linguagem culta devem permitir reconhecer como signo
também as palavras, ou seja, os elementos da linguagem verbal. Só a custo o
homem da rua reconhece as palavras como signos; nos países de língua inglesa,
o termo sign leva logo a pensar na gesticulação dos surdos-mudos (chamada de
sign language) e não nas manifestações verbais. Contudo, a lógica quer que se
uma placa de sinalização é signo, o seja também uma palavra ou um enunciado.
Em todos os casos até agora examinados, a relação entre o aliquid e aquilo pelo
qual está parece ser menos arriscada do que para a primeira categoria. Estes
signos parecem ser expressos não pela relação de implicação, mas pela de
equivalência (p = q; Mulher = femme ou woman; mulher = animal, humano,
fêmea, adulto), e além disto depender de decisões arbitrárias.
217
O Cruzeiro traz páginas carregadas de signos, desde as
capas, os espaços internos e a contracapa. Para podermos avaliá-
las e analisá-las, observamos os detalhes das publicações, num
trabalho interpretativo de leituras e releituras daquilo que muitas
vezes se encontra nos meandros do texto, do desenho, da
fotografia, da propaganda, para, assim, poder decifrar um pouco
do sentido que tudo isso tinha para o imaginário feminino
daqueles anos.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 10 Viagem presidencial ao Prata e Belleza e amor
218
Apenas para exemplificar, tomamos a página 15 da edição de 23 de maio de 1935,
cuja coluna é “Factos da semana”, onde os temas abordados contrastam entre si. De um
lado, vê-se uma bela moça abaixo de um título sugestivo que diz: “Belleza e Amor!”, a
qual olha para a figura de um anjo, o cupido, que com sua flecha espalha corações pela
gravura. Do outro lado está a fotografia de Getúlio Vargas na sua “viagem presidencial ao
Prata, em maio de 1935, acompanhado de populares”, a legenda e a imagem mostram a
217
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991. p.18-19.
218
O Cruzeiro. 25 maio 1935.
105
figura do dirigente da nação com o povo, reforçando a imagem de um governo populista,
como registra a página 15 da edição de 23 de maio de 1935.
O que, entretanto, teriam a ver essas duas imagens lado a lado? Numa primeira
avaliação, entendemos que apenas estão sendo registrados os assuntos da semana.
Contudo, observando-a mais detalhadamente, deparamo-nos com a figura de uma mulher
olhando para o anjo cupido numa manchete que fala de beleza e amor. As imagens da
figura da mulher com corações e do presidente com o povo, são carregada de significados,
vem confirmar nessa avaliação um dos pontos que se observam seguidamente nas páginas
do magazine, que são os contrastes de realidades
219
mostrados pela revista, especialmente
na década 1930. Há ainda uma correspondência de significados nas imagens, entre o
carisma do governo de instigar a massa popular com as suas idéias e a capacidade da
mulher em despertar amor.
É certo, porém, que a chamada cadeia significante produz textos que trazem
consigo a memória da intertextualidade que os alimenta. Textos que geram, ou
podem gerar, variadas leituras e interpretações; no máximo infinitas. Afirma-se,
então, [...] que os textos são o lugar onde o sentido se produz e produz (prática
significante) e que, neste tecido textual, se pode deixar aflorar de novo os signos
do dicionário, enquanto equivalências codificadas, desde que haja o enrijamento
e a morte do ‘sentido’.
Esta crítica não só retoma a objeção de Buyssens (a comunicação acontece só no
nível do enunciado), como vai mais a fundo. Um texto não é apenas um aparato
de comunicação. É um aparato que questiona os sistemas de significações
preexistentes a ele, freqüentemente os renova, às vezes os destrói. [...].
O que há de fecundo nas temáticas de textualidade é, contudo, a idéia de que,
para que a manifestação textual possa esvaziar, destruir ou reconstruir funções
sígnicas preexistentes, é necessário que algo na função sígnica (isto é, na rede
das figuras do conteúdo) já se apresente como um conjunto de instruções
orientado para a construção de textos diferentes.
220
A ajuda que buscamos na semiótica justifica-se para que possamos descrever e
explicar o que o texto diz, o que está por trás de uma determinada matéria, título, coluna,
foto, desenhos, figuras e propagandas. E foi a teoria semiótica do texto que nos possibilitou
219
De um lado, os fatos reais da nação com um governo que cada vez mais se impõe, de outro a sutileza do
imaginário feminino escamoteando a dureza daqueles anos. Como O Cruzeiro adotava uma linha editorial
favorável aos interesses do governo Vargas (e, por isso, poucas perseguições sofreu nos anos de ditadura,
como vai ser abordado no capítulo seguinte), os acontecimentos que envolviam o presidente eram registrados
com destaque. De outro lado, não se podia esquecer das mulheres, as quais também eram fato das notícias,
porém envolvendo assuntos amenos, triviais, que falavam de beleza e de amor.
220
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991, p. 31.
106
uma maior compreensão a leitura feita sobre a página 15 da edição de 23 de maio de 1935,
na coluna “Factos da semana”.
Um texto define-se de duas formas que se complementam: pela organização ou
estruturação que faz dele um “todo sentido”, como objeto da comunicação que se
estabelece entre um destinador e um destinatário. A primeira concepção de texto,
entendido como objeto de significação, faz que seu estudo se confunda com o
exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um
“todo de sentido”. [...]. A segunda caracterização de texto não mais o toma como
objeto de significação, mas como objeto de comunicação entre dois sujeitos.
Assim concebido, o texto encontra seu lugar entre os objetos culturais, inserido
numa sociedade (de classes) e determinado por formações ideológicas
específicas. Nesse caso, o texto precisa ser examinado em relação ao contexto
sócio-histórico que o envolve e que, em última instância, lhe atribui sentido.[...].
Nos seus desenvolvimentos mais recentes, a semiótica tem caminhado nessa
direção e procurado conciliar, com o mesmo aparato teórico-metodológico, as
análises ditas “internas” e “externa” do texto. Para explicar “o que o texto diz” e
“como diz”, a semiótica trata, assim, de examinar os procedimentos da
organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de
produção e recepção do texto.
221
Buscando compreender melhor os signos, esses veículos de significados,
descobrimos com Issac Epstein que eles são tão importantes para a semiótica quanto o
átomo o é para a física ou, ainda, “as células em biologia ou os números em matemática”.
Há uma ambivalência entre os mais variados autores quanto aos significados do termo em
questão, que variam desde “símbolos”, “sinais”, “índices”, entre outros. Parte dessa
contraditorioedade deve-se a própria nomenclatura, que não tem uma única significação
que possa ser aceita universalmente.
O signo como elo de uma mediação trará então necessariamente pelo menos dois
(ou mais) antes que intervirão no processo semiótico.
Esse processo pelo qual transitam os significados ou sentidos, o modo pelo qual
os signos se organizam em códigos ou em linguagens, constituem tema central
de qualquer teoria da comunicação.
222
São signos que remetem à página 43 da edição de 7 de setembro de 1935, contendo
uma propaganda de página inteira que divulga o “novo Ford, motor V-8, uma excepcional
potência”, reforçando que “faz facilmente 130 kilometros por hora e é ainda de partida rápida e
221
DE BARROS, Diana Luz Pessoa. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1997. p.7-8.
222
EPSTEIN, Isaac. O signo. São Paulo: Ática, 1991. p. 17.
107
mais prompta”. A manchete diz: “Só o Ford offerece [...] a potencia excepcional de um V-8; o
conforto da suspensão entre molas; a economia caracteristica Ford”, e a ilustração
complementa com a figura de um homem ao volante, dois passageiros atrás e a figura de uma
mulher, elegante, de sapatos de salto alto, chapéu, carteira de mão e vestido longo.
A ilustração mostra ainda como se instalam comodamente seis passageiros no carro,
três no banco da frente e três atrás. Entre as vantagens, como “o conforto da suspensão
entre molas”, o texto explica: “A suprema vantagem dos novos Ford, talvez, é a que diz
respeito ao conforto de marcha. O Ford já era veloz e possante. Agora é, também,
incomparavelmente mais commodo, graças à collocação dos
assentos entre as molas. O Ford é differente dos outros carros
porque proporciona aos passageiros do compartimento traseiro o
conforto de marcha geralmente só offerecido pelo assento
deanteiro”.
223
Depois deste parágrafo, outros dois, divididos em
três colunas, descrevem o automóvel e as suas características, e
uma frase fecha o anúncio: “Ford Motor Company”.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 11 Só a Ford offerece
224
Demonstramos, assim, a possibilidade de uma leitura com diferentes significados e
contextos, um dizendo respeito ao desenvolvimento industrial desse período, que acelerou o
crescimento também das fábricas de automóveis. Era a modernidade dando os seus sinais,
trazendo mais conforto e comodidade aos motoristas e aos usuários de automóveis. A
sofisticação do automóvel equipara-se à da mulher: ambos são novos e belos e fazem parte
desta nova ordem que é a modernidade. A imagem nos permite relacionar ainda a potência do
carro com o vigor masculino e ambos estão acompanhados de uma bela mulher. È uma relação
preponderante de força e poder e que tem na indústria a principal agente de transformação. Foi
em 1919 que a americana Ford começou a montar veículos em São Paulo:
Coloca no mercado brasileiro o modelo T, popularmente conhecido como “Ford
de bigode”, ao preço de 6 contos e 900 000 réis. Seis anos depois, é a vez da
General Motors. Instalada em São Paulo, monta 25 veículos por dia. Em 1938, a
223
O Cruzeiro. 7 set. 1935. p. 43.
224
Ibid.
108
Ford anuncia seu modelo V-8 e a Rhodia (fundada em 1919) divulga sua
produção têxtil utilizando Joan Blondell, atriz do cinema americano.
225
A beleza foi outra tônica central da revista nos 17 anos de circulação recortados
aqui neste trabalho. É difícil imaginar, pelas figuras representadas e pelas informações
veiculadas, que este fosse um veículo que não enaltecesse o belo. Ao contrário, suas
páginas tinham sempre rostos expressivos e saudáveis, corpos torneados e, nos últimos
anos, já com vestes mais coladas, saias mais curtas, maiôs e muito cosméticos e perfumes
americanos e franceses. Os espaços eram preenchidos por belas mulheres made in EUA e
made in Brasil; não que outras não aparecessem, mas era envolvendo essas a maior parte
dos fatos registrados pela revista. São registros de algumas das brasileiras que nesse
período já não serviam mais apenas para o tanque e o fogão, que tinham contrariado o
destino da menina-moça que ficava em casa aprendendo a ser uma boa esposa e esperando
por um casamento. Havia agora as que estavam à frente de seu tempo, que passavam a
profissionalizar os exercícios do corpo e até a arriscar-se a participar de competições em
modalidades esportivas que surgiam com força, como a natação.
Dora Castanheira que o diga, pois ganhou duas páginas com muitas fotos, onde foi
registrado um pouco da sua trajetória esportiva como uma das revelações da natação
brasileira em 1935. Mesmo tendo perdido um campeonato e ter se chateado com o assédio
da imprensa, como revelou a mãe da esportista na matéria da página 19 da edição de 16 de
fevereiro de 1935, onde ela diz que “a filha não estava acostumada àquella publicidade dos
jornais”, a atleta brasileira era um caso raro para aqueles anos, por isso era notícia. Além
de contar sobre a sua habilidade esportiva, a matéria registrou também muitas poses de
Dora em trajes de banho, em meio às flores, desfilando vestidos, sentada à sombra das
árvores, mostrando o torneado das pernas, ou, ainda, num comportado vestido e sapatos de
salto alto, sentada ao sol. A matéria revela uma fase de crescimento da prática esportiva no
país, um espaço que as mulheres também começavam a conquistar, porém a ênfase estava
em ressaltar a beleza das esportistas. Sob sugestivo título, a matéria dizia:
Entre sereias
A natação é um dos exercícios mais beneficos ao desenvolvimento feminino.
Thora Castanheira que a praticou desde criança, aos desesseis annos fazia inveja
a muita “sinhã-moça” de ha meio seculo. Ja em idade de casar. E ella não pensa
225
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 77.
109
ainda nisso [...]
Por Pedro Lima (para O Cruzeiro)
A Grecia é immortal porque cultuou a beleza em todas as fórmas: pela belleza do
espírito e pela belleza do corpo. Os athletas athenienses ainda hoje são canones
classicos modelados nos marmores, que os seculos não conseguiram destruir [...]
E aquelle romantismo [...] que tornou tuberculosa uma geração que morreria de
amor e fazia da pallidez e da sombra o ideal de uma época, não podia destruir a
belleza das formas amoldadas pelos sporte e bronzeados do calor do sol [...]
Dahí, surgir novamente o culto ao bello modulado pela cinxel da natureza e
aperfeiçoado na multiplicidade de sports, trouxe ao ar livre a mocidade da nova
geração pleiado de jovens cheios de vida e vigor, fortes de corpo e alma, com os
globulos vermelhos de oxigenio e os nervos enfibrados de aço [...] geração que
faz vibrar nos estádios os povos de todas as raças, nos porfios dos records que
marcam a pujança da raça, em predios onde não ha inimigos e rivalidades que
acabam ao findar das provas são exemplos de tenacidade e de vigor physico.
Foi a um grito unisomo de centenas de espectadores que na piscina do
Fluminense, assistimos Castanheira, a jovem “nagense” carioca [...] com uma
rival de valor de Lygia Cordowil, numa [...] que por semanas havia sido a
preocupação [...]. Ambas rivais-amigas, iam procurar [...], tentando bater-se
reciprocamente na conquista de um record que ia além das nossas fronteiras.
Mas inexplicavelmente Dora desistira nos cem metros, quando reconquistara a
pequena differença de uma má saida e quando o resultado da competição ainda
era impossivel avaliar-se [...] .
Sport novo no Brasil, a natação ainda não dera às nossas eximias revelações
nauticas, que são estas jovens nadadoras patricias, o controlle de nervos, a
confiança nos proprios meritos. Fôra esta uma causa de desistencia de Dora
Castanheira, muito embora estivesse indisposta naquelle dia para tomar parte na
prova que queria uma das mais brilhantes dos sports nauticos feminino. Ainda
assim, quando a prova terminou e as duas rivais se abraçam comovidas, as palmas
não sagravam somente uma campeã que soubera vencer em tempo brilhante, mas
também a que não podera competir todo o tempo como desejara.
226
Como já foi referido, além do esporte, a beleza era a tônica das matérias da revista
dirigidas ao publico feminino. Nesse sentido, discutiam-se todas as formas que envolvem o
culto ao belo, seja em modelos da moda, seja na maneira de deixar o corpo mais bonito,
que então era uma preocupação constante, afinal, as roupas haviam se reduzido e, para
mostrar curvas, pernas, braços, era preciso estar em forma. A discussão da “Psychologia
das pernas” ocupou toda a página 28 da edição de 25 de outubro de 1930. Sem assinatura
do autor, a página traz ainda foto de uma modelo americana, com uma faixa contendo a
escrita “New Orleans” e o texto:
Antigamente, já faz muito tempo, pessoas intelligentes pensaram descobrir o
carater de uma mulher pelas suas mãos. Mostra-me as tuas mãos e eu te direi
quem és. [...] Depois que a moda dos vestidos curtos consentiu ao pudor
feminino desvendar as suas pernas, appareceram os peritos capazes de fazer o
diagnostico imoral da mulher pela anatomia dos seus membros locomotores. É o
226
O Cruzeiro. 16 fev. 1935. p.18-19.
110
que nos afirma uma revista austriaca, na qual se publicou uma longa dissertação
psychologica sobre a perna feminina, capaz de despertar a inveja dos
graphologos e dos chiromiantes. [...] Mas é difficil, senão impossivel, deduzir a
moral de uma criatura humana pela inspecção esthetica das suas pernas, [...]. A
saia curta parece incorregivel. A [...] verdade é que nunca os homens puderam
muito à vontade contemplar e examinar a perna feminina como no período que
decorre desde 1920 a 1930. Foi nesse periodo da semi-nudez que se inventaram
os concursos de belleza de Galveston, nos quaes as candidatas compareciam
perante o jury em trajes de banho, [...].
227
Mas que significado tem a beleza para pensadores que foram considerados os
precursores na análise das questões relativas à estética? Foi no pensamento do filósofo Platão,
por volta de 428-348, que “encontramos a primeira teoria da arte e do belo de que temos
notícia.” Na obra de Lúcia Santaela compreendemos um pouco esse significado para entender
melhor a estética, essa denominação tão subjetiva e abstrata que é a beleza e que traz uma
complexidade de interpretações, desde a Antiguidade até nossos dias. A autora explica:
[...]. De fato, foi Platão quem levantou os problemas relativos a criação, para os
quais foram dadas as mais diversas interpretações através do tempo e com os
quais nos debatemos até hoje, tais como a natureza da inspiração, a relação da
criação com a emoção, o impacto e efeitos da arte sobre o receptor, as antinomias
entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão das paixões as conseqüências do
descomedimento e as virtudes da temperança [...] Se Platão levantou esses
problemas, Aristóteles (por volta de 384-322 a.C) foi o primeiro a lhes dar
formalização na sua Poética, obra que, sem margem de erro, pode ser qualificada
como a teoria da arte e crítica mais influente em toda a historia do Ocidente.
Enfim, os problemas estéticos são tão antigos quanto a filosofia, tendo recebido,
nos muitos séculos que transcorrem desde Platão até os nossos dias, as mais
diversas entonações e interpretações.
228
Por isso, a palavra estética deriva do grego e significa “sentir” não apenas com o
coração e os sentimentos, mas também com os sentidos: “O termo é hoje tão largamente
utilizado que pode servir para qualificar tanto as filosofias do belo, quanto a elegância de
uma fórmula matemática, os objetos artísticos, ou até mesmo um crepúsculo, as cercanias
do mar, um rosto trabalhado pelo tempo (como diria Borges).”
229
A beleza e a estética dependem muito de como cada observador vê o objeto de
admiração, de como avalia a partir da sua natureza emotiva e dos sentimentos que carrega.
Nesse sentido a teoria peirceana tenta dar conta da razão e do sentimento humano:
227
O Cruzeiro. 25 out. 1930. p. 28.
228
SANTAELLA, Lúcia. Estética: de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento, 1994. p.12.
229
Ibid., p.11.
111
A estética de Peirce satisfaz quase à perfeição as metas sonhadas por Schiller de
amalgamar razão e sentimento, conciliar os rigores do pensamento às liberdades
do espírito, de integração do intelecto à ética e à estética, das contribuições,
enfim, do estético para o crescimento humano. Por incrível que pareça, no
entanto, os caminhos que Peirce percorreu para chegar a isso não têm
diretamente nada a ver com Schiller. [...]. Mas a estética não compareceu no
pensamento peirceano para atender tardiamente a esses ideais, mas sim às
necessidades importas pela releitura crítica que Peirce impôs, na primeira década
do século e na maturidade da sua vida, ao seu primeiro pragmatismo, de 1878.
Peirce havia lido Schiller na adolescência. Cinqüenta anos transcorreram, e toda
uma obra prioritariamente voltada para a lógica foi desenvolvida, antes que ele
voltasse a pensar em estética. Se houve qualquer influência de Schiller sobre ele,
trata-se, portanto, daquela misteriosa espécie de influência que se dá através do
esquecimento, o qual, segundo Borges, é a forma mais profunda da memória.
230
Independentemente das teorias que se elaboraram ao longo da história sobre
modelos de beleza, a impressão sobre a beleza é relativa aos olhos de quem vê, de modo
que o que é belo para uma pessoa pode não o ser para outra. O diretor cinematográfico
americano Cecil B. De Mille afirmou em 1930 que nunca escolheu mulheres bonitas para o
papel principal de seus filmes, no entanto é sabido, pelo volume de informações e matérias
nas páginas de O Cruzeiro, que as atrizes de Hollywood eram consideradas belas, até
porque a referência de estética e beleza vinha pelo intermédio das atrizes, que não apenas
referendavam comportamentos, mas também moda. Para ele, talvez, os padrões de beleza
fossem diferentes dos mostrados pela revista e pelas agências divulgadoras de Hollywood,
o que mostra essa dualidade interpretativa que a beleza e a estética têm. A matéria sobre as
declarações do diretor revelava:
A Belleza das mulheres e o Cinema
Por Cecil B. de Mille
O Grande director americano explica ao “O Cruzeiro” a predileção pelas
mulheres sem belleza.
“Nunca escolhi mulheres bonitas para papeis principaes de minhas produções”.
Eis uma affirmação de Cecil B. De Mille, o creador de Estrellas, director de
extravagâncias cinematographicas que desanimaram, pela opulência e brilho,
qualquer tentativa de concurrencia. Nunca escolheu mulheres bonitas!
231
230
SANTAELLA, Lúcia. Estética: de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento, 1994. p. 109.
231
O Cruzeiro, 25 out. 1930. p.14.
112
De Mille declarou ainda que todas as suas protagonistas “tiveram sempre habilidade
de crear a illusão da belezza. Sarah Bernhard e Eleonora Duse são exemplos typicos que
bem illustram o que eu quero dizer. Nenhuma delas era uma belleza!”
232
Com origem ainda na concepção, beleza e libido estão muito relacionadas. Ao
longo da vida, passando por várias etapas desde a infância à fase adulta, a libido vai se
formando. Os fundamentos da psicanálise definem como teoria do libido “a natureza e o
desenvolvimento da força propulsora da atividade psíquica”
233
. E para criar a teoria tem-se
como base o pensamento de Freud, o qual afirma “que essa força ou energia é transmitida
ao ser no ato da fecundação e é, por assim dizer, consubstancial”
234
.
[...] Sob o ponto de vista teleológico, devemos considera-la como um obscuro
“impulso criador”, cujo fim é assegurar a expansão e a perpetuação do Ser, no
espaço e no tempo. Sua natureza fundamental parece ser, de acôrdo com certas
passagens da obra freudiana, hormonal e instintiva. É preciso advertir, no
entanto, que acêrca dessa fôrça seu revelador se limita a postular que engloba,
isto sim, as energias sexuais, motivo pela qual a denomina Libido sexual. Isto,
porém, não significa que seja exclusivamente sexual, pois contém elementos não
diferenciados e comuns a outras funções vitais. O ponto central da sua estrutura,
que é de natureza sexual, sofre, sem duvida, uma série de transformações e
fixações evolutivas, até chegar a se concentrar na vida do adulto, no exercício da
função genital pròpriamente dita e no aparecimento acessional da chamada
“fonte sexual”.
235
A teoria sugere ainda que a detenção da libido em qualquer dos períodos evolutivos
por que passa o ser humano vai “ser a origem de transformações que devem afetar o bom
funcionamento do organismo em geral.”
236
É a sociedade que acaba por impor limites aos
indivíduos nessa evolução natural da sexualidade.
[...] Em primeiro lugar, esta detenção traria, como única conseqüência, a
realização, na vida do adulto, de todas as perversões sexuais correspondentes à
época em que se fixasse a evolução libidinosa, se não fôsse a atual organização
da sociedade, que impõem uma série de obstáculos materiais e morais a esta
realização que, de fato, impossibilita quase sempre a obtenção normal do prazer
tal como sucedia na infância. O desenvolvimento da censura moral não tem
motivo para sofrer a mesma parada que a evolução da libido (se não se trata de
sujeitos degenerados ou imbecis); conseqüentemente há de instalar-se,
232
O Cruzeiro, 25 out. 1930. p. 14.
233
LOPEZ. Emilio Mira Y. Os fundamentos da psicanálise. Rio de Janeiro: Científica, [s.d.]. p. 66.
234
Ibid.
235
Ibid.
236
Ibid., p. 72.
113
forçosamente, no espírito da pessoa, um grave e persistente conflito mental,
resultante de luta tenaz entre uma libido insuficientemente evoluída, que busca
satisfação impróprias à idade, e as fôrças repressivas que se opõem, sob a forma
de pudor, de nojo, de repugnância, etc., à execução do desejo libidinoso. E Freud
termina a exposição de sua teoria sexual afirmando que êstes conflitos
resultantes de uma detenção da evolução da libido, que não corresponde ao
desenvolvimento geral da personalidade psíquica, são a causa de tôdas as
perturbações psiconeuróticas.
237
As nossas instâncias psíquicas dialogam na busca de uma harmonia interna entre
ego e id. Dentro da “função sintética do Ego, em Princípios da psicanálise de Herman
Nunberg”, discutem-se as conexões do consciente e do subconsciente, atribuindo “aos
impulsos sexuais do id, o Eros, a tendência à união com outros objetos, com a finalidade de
criar uma nova unidade.”
238
A tendência do eros possui fins sexuais; a do ego, não: “As
tendências do id almejam não apenas uma união com os objetos, mas também uma reunião
com o ego”
239
. É uma tendência que nunca cessa: “Quando o ego e o id estão unidos,
obtém-se uma completa satisfação narcísica.”
240
Guardadas as proporções, essa satisfação
pode ser obtida também com o culto ao corpo.
Através do desenvolvimento do superego, com todos os seus subprodutos, como
a culpa, a punição, a vergonha, a função do ego tornou-se bastante complicada.
As exigências morais que se desenvolvem sob a influência do superego têm o
efeito de inibir, até mesmo negar, a vida instintiva. A “moral” regula os
sentimentos, a vontade e as ações e, mais tarde, o pensamento. A vida instintiva
direta é limitada, onde quer que o superego tenha conseguido impor suas
exigências. [...]. Por outro lado, o superego protege o ego do perigo das
exigências instintivas, reprimindo-as. Não só o neurótico, porém também o
indivíduo normal tenta controlar sua vida instintiva e adaptar-se à realidade, por
medo do perigo objetivo inerente à vida instintiva, por medo de castração e por
medo do superego. Existe também um medo de perder a benevolência do
superego, que não apenas é agressivo, mas possui também componentes
libidinosos e contribui para a manutenção do ego narcísico.
241
Foi pelo estudo dos instintos que se chegou à possibilidade de admitir as forças
instintivas que nele operam e trazer informações sobre a vida psíquica do ser humano. A
237
LOPEZ. Emilio Mira Y. Os fundamentos da psicanálise. Rio de Janeiro: Científica, [s.d.]. p. 66.
238
NUMBERG. Herman. Princípios da psicanálise sua aplicação às neuroses. Prefácio de Sigmund
Freud. Revisão conceitual de Maurício Levy Junior. Tradução de Ivan Braun. Rio de Janeiro: Atheneu,
1989. p. 161.
239
Ibid.
240
Ibid.
241
Ibid., p. 186.
114
vida instintiva é influenciada pelo ego, pelas suas reações, “assim como, inversamente, as
reações do ego são alteradas pela vida instintiva.”
242
Para compreender a vida psíquica, é
preciso compreender o ego, um dos componentes da personalidade:
O ego, assim, influencia a forma na qual o instinto, através de seus representantes,
atinge a consciência e é convertido em ação. O ego, desse modo, pode ou permitir
que o instinto se expresse diretamente na ação ou pode inibir e modificar o instinto.
Em qualquer um dos casos, o curso do instinto dependerá da natureza das tendências
do ego. O ego trabalha como se fosse um meio em que todos os estímulos do mundo
interior são refratados. Contudo, ele recebe também estímulos do mundo exterior, os
quais ele precisa elaborar e modificar. O ego, por assim dizer, está situado na
fronteira entre o mundo interno e o externo [...]. Deve-se entretanto, tomar cuidado
admitir que todo o ego é consciente, pois há processos psíquicos que ocorrem no ego
e não são de forma alguma conscientes. A maior parte das nossas avaliações morais e
inibições, por exemplo, encontram-se entre esses processos. Por isso, devemos
admitir que parte do ego é inconsciente.
243
A diferenciação da natureza dos sexos atribui a homens e a mulheres diferentes
papéis, uma concepção que se pode observar nas páginas de O Cruzeiro, limitando funções
e atribuições, ou seja, lugar dos homens é trabalhando e se envolvendo com a vida política,
econômica e social do país; o das mulheres é no lar, cuidando dos filhos, da casa e
preocupando-se com a estética e a aparência. No campo do imaginário, as diferenças
físicas e biológicas têm um significado social que justificam desigualdades entre os sexos.
São papéis que podem ser entendidos pela psicanálise, como Joel Birman escreveu:
A masculinidade seria, portanto, uma representação da civilização, enquanto a
feminilidade seria uma representação da natureza, como era comum no
imaginário do século XIX. Com efeito, a civilização estaria indicada pelas
faculdades estruturais superiores, isto é, o pensamento e a vontade, enquanto a
natureza, pela faculdade inferior do afeto e pelo corpo. Pode-se depreender daí
como, no imaginário sexual, se redistribuíram igualmente as figuras do
masculino e do feminino, de maneira bem precisa. Por isso mesmo, o
masoquismo seria o pólo definidor do feminino, enquanto o sadismo seria o pólo
do masculino, nesse confronto terrorífico travado no campo do imaginário.
244
242
NUMBERG. Herman. Princípios da psicanálise sua aplicação às neuroses. Prefácio de Sigmund
Freud. Revisão conceitual de Maurício Levy Junior. Tradução de Ivan Braun. Rio de Janeiro: Atheneu,
1989. p. 123.
243
Ibid., 123-124.
244
BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação em
psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 191.
115
Com base no discurso freudiano e apoiado na matriz do imaginário da modernidade sobre
a diferença sexual, Birman afirmam que o lendário feminino está “centrado no corpo e no
afeto”
245
, uma representação da natureza que se “fundaria nas faculdades inferiores do afeto e em
sua dimensão corpórea”
246
. Já o masculino está no “desenvolvimento consistente do pensamento
e da vontade”
247
; é a representação da civilização que se caracteriza por faculdades morais tidas
como superiores porque tem a sua disposição o pensamento e a vontade. Nessa visão,
[...] a figura da mulher não teria então a propensão ao pensamento abstrato, como
a do homem, ficando colada a uma modalidade concreta do pensamento, como
resultante maior de seu limitado acesso à lei moral enquanto instância do
universal. A posição particular da subjetividade feminina a restringiria,
enquanto, a um recorte restrito e circunscrito do mundo, limitando sua apreensão
das coisas e das relações inter-humanas
248
.
De acordo com a linguagem técnica da psicanálise, a figura da mulher estaria
voltada para a atuação do comportamento. Com vontade frágil e inconstante, pela falta de
restrição ao particular, as mulheres seriam propensas a ações precipitadas, o que se
constituía em boa justificativa para a não-aceitação do feminino nas decisões sociais e
políticas. Podemos observar que a linha editorial da revista sobre o tema mulher, se
aproxima dessa concepção freudiana que tem com base os fundamentos modernos da
psicanálise. Então, O Cruzeiro procurou dar as mulheres individualidade ao abrir-lhes
espaços em capas e colunas para registrar a beleza e o glamour, embora seu objetivo
principal fosse o de despertar o público feminino para o consumo de produtos modernos
que carregavam uma concepção simbólica de novos tempos.
2.3 O esforço modernizador e a propaganda como instrumento para alcançar o
público feminino
Na hegemonia de discursos técnicos, o Brasil do começo do século XX almejava
progresso “a qualquer custo, para fazer a modernização”, ainda que, para isso, fosse
245
BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação em
psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 193.
246
Ibid., p. 191.
247
Ibid., p. 193.
248
Ibid., p. 200.
116
necessário oprimir e massacrar a população, como foi o caso de revoltas que pipocaram de
1912 a 1924, como a Guerra do Contestado, na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina, e
a revolta paulista de 1924, em que houve a execução sumária de imigrantes.
No afã do esforço modernizador, as novas elites se empenhavam em reduzir a
complexa realidade social brasileira, singularizada pelas mazelas herdadas do
colonialismo e da escravidão, ao ajustamento em conformidade com padrões
abstratos de gestão social hauridos de modelos europeus ou norte-americanos.
Fossem esses os modelos, da missão civilizadora das culturas da Europa do
Norte, do urbanismo científico, da opinião pública esclarecida e participativa ou
da crença resignada na infalibilidade do progresso. Era como se a instauração do
novo regime implicasse pelo mesmo ato o cancelamento de toda a herança do
passado histórico do país e pela mera reforma institucional ele tivesse fixado um
nexo co-extensivo com a cultura e a sociedade das potências industrializadas.
249
O entusiasmo capitalista no país criou a “atmosfera da regeneração”, uma sensação
entre as elites de que o Brasil estava em harmonia “com as forças inexoráveis da
civilização e do progresso”
250
. Foi um progresso que Santos Dumont ajudou a inaugurar
em 1917 com o vôo do 14-Bis, avião que fez parte da era das máquinas voadoras, uma
invenção que contou com a participação do governo brasileiro. De 1900 a 1920, o Brasil
foi introduzido nos novos padrões de consumo, intensificando-se a propaganda, que
encontrou nas revistas ilustradas um espaço para o sucesso. Era “uma nascente mas
agressiva onda publicitária, além desse extraordinário dínamo cultural representado pela
interação entre as modernas revistas ilustradas, a difusão das práticas desportivas, a criação
do mercado fonográfico voltado para as músicas ritmadas e danças sensuais e, por último
mas não menos importante, a popularização do cinema.”
251
Na intensificação dos métodos da propaganda publicitária por que passava a
sociedade, e principalmente os meios de comunicação, O Cruzeiro viu uma das suas
maiores fontes de renda. Não que as assinaturas não contribuíssem, mas certamente foi
através dos variados anúncios de produtos brasileiros e estrangeiros que a revista
sobreviveu por um bom período, sem contar com a publicidade governamental,
representada desde os primeiros empréstimos, como mostramos no primeiro capítulo,
249
SEVCENKO, Nicolau. Introdução O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 27.
250
Ibid., p. 34.
251
Ibid., p. 37.
117
quando Assis Chateaubriand recorreu a Getúlio Vargas, na época ministro da Fazenda,
para obter um empréstimo e colocar a revista em circulação.
A propaganda que vem sendo referida neste trabalho não é apenas aquela que está
determinada a um espaço específico e que anuncia um determinado produto, mas é
também a que está implícita e muitas vezes explícita nas matérias, nas colunas e até nas
reportagens, quando começaram a aparecer. Identificamos muitas afirmações reforçando
uma determinada ideologia ou produto que fazia parte de um contexto caracterizado por
novas formas de vida, por um ideal moderno ou ainda por padrões de beleza. Esses eram
anunciados já na primeira edição. As propagandas prometiam mudanças e sugeriam formas
de a leitora chegar ao padrão ideal da mulher dos novos tempos.
Para ser bella, conforme dizia o título da propaganda da página 54 que mostra a
ilustração de uma mulher usando batom bem vivo, de unhas grandes e coloridas, cabelos
curtos, bem penteados e brincos grandes chamativos.
[...] basta visitar o Instituto Ludovig productos incomparaveis para belleza
tinturas, loções e perfumarias, ondulações permanentes e Marcel. Corte de
cabello. Manicure e Pedicure especialista em massagens scientificas coriorais e
eliminação completa dos cabellos do rosto, brancos etc. Tratamento radical de
espinhas. Sardas, manchas da pele e rugas. TUDO POR PROCESSOS
ESPECIAES E GARANTIDOS.
Casa fundada em 1903. Rua Uruguayana, 39 SOA Rio tel. C. 3011. Sucursal
S. Paulo, Praça do Patriarcha, 20.
252
Para ser bastante convincente, esse padrão de beleza precisava de um exemplo e
como já revelamos modelos não faltavam, como o da propaganda que traz uma foto da
estrela do cinema americano de 1930 Clara Bow. A famosa “Estrella da Paramount” era a
atriz reveladora da “Conquista da belleza”.
253
Vejamos o que dizia o texto num
ensinamento que prometia beleza desde que se usasse a cera Mercolized:
As “estrellas” de cinema não obstruem os poros de sua pelle com cremes para o
rosto e outros pretendidos “alimentos” para cutis. Ellas sabem muito bem que
não há substancia alguma que tenha o poder de vivificar uma pelle morta. O que
ellas fazem é desconquistar-se da pelle velha. Para obtei-o basta applicar ao rosto
Cera Mercolized (Em inglez, “Pure Mercolized Wax”), fazendo isto à noite antes
de deitar-se, e retirando a cera pela manhã. Desta forma a tez gasta se elimina
252
O Cruzeiro. 10 nov. 1928. p. 54.
253
Id., 13 dez. 1930. p. 8.
118
gradualmente, dando logar á apparição da nova cutis que toda mulher possue
debaixo da cuticula exterior. Procure hoje mesmo Cera Marcolized (Em inglez,
“Pure Mercolized Wax”) na pharmacia e comece a recuperar a sua formosa cutis
juvenil e louçã.
254
Não era, entretanto, apenas para mostrar produtos de uso feminino que as
mulheres emprestavam seus belos rostos, mas também para anunciar bebidas
alcoólicas. Na propaganda sobre a cerveja Malzbier, da Antarctica, o texto e uma
ilustração de mulher enchiam uma página com o seguinte anúncio: “O insignificante
têor alcoólico e o esmero de sua fabricação fazem desta cerveja, de delicioso sabor e de
alto valor nutritivo, uma das bebidas mais recommendaveis para todas as edades. Em
quarto de garrafa, melhor se adapta á elegancia feminina. MALZBIER DA
ANTARCTICA”.
255
As mulheres anunciavam também os bilhetes da loteria: “Quanto coisa poderei
possuir com os 500 contos do Natal da Loteria Federal a extrahir-se em 20 do
corrente.”
256
Nesta página, a figura que ocupava o centro era de uma mulher de vestido
longo e olhar sedutor.
Além de bebidas e bilhetes da loteria, as mulheres anunciavam produtos que
interessavam apenas a elas, os quais reforçavam a idéia de anos modernos, cheios de
novidades, como os cosméticos para retardar o envelhecimento da pele. Para alcançar esse
benefício, era preciso usar cremes que combatessem as rugas como dizia o anúncio: “O seu
rosto tem zonas perigosas”. E continuava:
Cravos e espinhas que se accumulam em certas partes do rosto são um perigo
constante, que cumpre evitar, em beneficio da belleza das feições. A pelle
flacida, sem viço, que começa a encarquilhar-se prematuramente é o campo
propicio ao apparecimento de espinhas, cravos e outras imperfeições. Para
fortalecer a pelle, revigorando os tecidos, use Rugól em massagens nas faces, na
testa e no pescoço. Rugól penetra profundamente nas camadas subcutaneas e
fortifica os tecidos, dando viço e belleza á cutis. Use Rugól como seu creme de
belleza, retirando o excesso com uma toalha secca ou humida e depois de enxuto
poderá fazer sua “maquillage” ou applicar o pó de arroz para sahir. Á noite, antes
de se deitar, retire com uma toalha humidecida o creme usado durante o dia.
254
O Cruzeiro. 13 dez. 1930. p. 8.
255
Id., 13 jan. 1940. p. 48.
256
Id., 13 dez. 1930. p. 47.
119
Depois, lave bem o rosto e applique nova camada de Rugól. Em pouco tempo
sua cutis terá de novo o aspecto sadio da juventude.
Laboratorios Alvim & Freitas, Ltda. São Paulo
Creme RUGÓL.
257
Em outro espaço, os anúncios continuavam a reforçar que era preciso cuidar do
corpo, para o que existia uma infinidade de produtos e marcas tudo em prol da juventude e
da beleza feminina, como mostra esta propaganda:
Retorna à Juventude
Ensinando como apagar os vestígios do tempo, que qual atributo à belleza se
agravam no rosto feminino, Elizabeth Arden nos indica como retornar à
juventude. O “Ardena Oleo Adstringente” estendido ao deitar-se sobre as partes
a serem tratadas, elimina gradativamente as marcas da testa, faz desaparecer as
rugas em redor dos olhos e em torno da boca e alisa as linhas que no pescoço e
no cólo se formaram. Afim de que o “Ardena Oleo Adstringente” produza seus
beneficios effeitos, deve ser applicado em uma cutis que com o “Ardena creme
de Limpeza ” unido ao “Tonico para a pelle” foi previamente limpa e preparada.
Elizabeth Arden Salão no Rio: Avenida Rio Branco, 257
São em São Paulo: Casa Anglo Brasileira
258
Era uma verdadeira revolução no comportamento feminino. As novidades que
surgiam nesse período facilitavam a vida diária, traziam maior praticidade e mais saúde,
inclusive para “aqueles dias” que só as mulheres passam. O absorvente higiênico começou,
então, a ser anunciado na década de 1940:
Não há mais dias perdidos todo mez! Dispense esses temores! Evite que os dias
criticos, naturaes na vida de toda a mulher, estraguem os seus planos com a falta
de protecção adequada dos methodos antiquados que prejudicam a sua saude.
Hoje, os cuidados hygienicos devem assegurar a commodidade imprescindível à
sua vida diaria. Modess é a toalha sanitaria que acaba com o receio que
atormenta a Sra. nos dias criticos. É mais absorvente que o algodão e tem a
camada externa impermeavel. Modess nunca irrita nunca apparece. Peça,
simplemente, Modess nas pharmacias e lojas de artigos para senhoras. É a
protecção scientifica da saúde, indispensavel à mulher moderna.
Modess Johnson & Johnson do Brasil
259
257
O Cruzeiro. 18 jan. 1941. p. 58.
258
Id., 26 jul. 1941. p. 49.
259
Id., 13 dez. 1941. p. 56.
120
Eram novidades que não esqueciam os “Arbitros da Moda”:
A corte suprema do estylo e da moda norteamericana os salões aristocraticos
da afamada Quinta Avenida de Nova York proclama o novo VanEss o batom
das damas elegantes.
A V. tambem emocionarão os seus arrebatedores matizes; deleita-se à com a
precisão com que VanEss adhere aos labios, a suavidade e o feitiço que lhes
empresta e a permanência durante longas horas, em qualquer situação. VanEss
não escorre, não se resseca e nem perde a sua côr ideal para o nosso clima.
VanEss é ultra-grande e, porisso, mais facil de se applicar e muito mais
economico.
260
A propaganda da década de 1930, que começou tímida, foi ganhando ousadia e, na
década de 1940, já se percebia uma agressividade maior; as próprias modelos
mostravam-se mais a vontade nas imagens, já não havendo maiores constrangimentos em
vestir as roupas mais ousadas. Era uma modernidade que acompanhava o ritmo de
evolução dos padrões de comportamento da época, muitas vezes chocando; outras vezes
impressionando e, em muitas, não alterando a ordem constituída daqueles
comportamentos que insistiam em permanecer no ritmo do passado, até porque nem toda
a mudança acontece uniformemente. As mudanças vão se
processando lenta e gradativamente, em ciclos que levam em
conta o ritmo e a disposição de cada indivíduo e de cada
sociedade em acompanhar, especialmente padrões de
comportamento e tendências da moda.
261
E se a mulher se
modernizou, pelas páginas de O Cruzeiro, no aspecto visual,
conseguiu também benefícios que agora ajudavam a rainha
do lar e especialmente, as empregadas domésticas a exercer
suas atividades de modo prático através de novos utensílios
para a cozinha.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 12 Cozinhas modernas
262
260
O Cruzeiro. 26 jul. 1941. p. 50.
261
A propaganda de massa apregoava a uniformização dos gostos, comportamentos, formas de vida,
culturas, colocando os indivíduos no mesmo padrão comportamental, buscando resultados imediatos,
com a massificação da informação, fazendo valer a oferta para todos, como se gostos e valores fossem
únicos em todo o mundo, e a revista pretendia com a idéia da modernidade também padronizar os
comportamentos e gostos femininos.
262
O Cruzeiro. 14 abr. 1934.
121
As velhas cozinhas, pesadas, engraxadas e tão rudes, que antes ocupavam os fundos
da casa, agora passavam a ser o cartão de visita, exibindo fogões que não soltavam fumaça,
máquinas que batiam ovos, armários que abrigavam confortavelmente as panelas, estas
muito mais leves, e, para complementar, um refrigerador elétrico, que facilitava a
conservação dos alimentos.
PHILIPS Apresenta KELVINATOR
Pioneira da industria de refrigeradores elétricos, a marca KELVINATOR
apresenta para a atual estação a mais notavel linha de modelos domésticos até
hoje idealisada, cuja aceitação tem sido imcomparável em todos os mercados do
mundo. Viste a loja de um revendedor PHILIPS e certifique-se das reais
vantagens que lhe oferece KELVINATOR. Fixe a sua atenção nos tamanhos e
preços dos varios modelos apresentados e adquira confiante o que lhe agradar,
porque é um producto da mais antiga e reputada fabrica de refrigeradores do
universo.
Um producto distribuido pela PHILIPS.
S. A. PHILIPS DO BRASIL
263
Assim como o refrigerador era indispensável em qualquer cozinha, outros
equipamentos começaram a fazer parte dessa revolução doméstica da praticidade e do
conforto em casa. Na página 40 da edição 14 de abril de 1934, O Cruzeiro apresentou a
cozinha moderna, que contava com batedeira, armários com compartimentos para guardar
os alimentos e os utensílios, além de fogão a gás:
Cosinhas Modernas
A cosinha atualmente não é maes o “puxado” despresivel da casa que parecia
envergonhar as habitações. [...]
Em cima, um aparelho moderno para todos os usos. Para bater ovos, virar
massas, Ovomaltene, Toddy y [...]
Nenhuma cosinha moderna bem montada pode deixar de possui-lo.
264
Para completar o aproveitamento de uma cozinha equipada como essa, era
necessário utilizar muitos produtos industrializados, novas receitas, cuja execução exigia
esses utensílios. A partir de 1940, O Cruzeiro ampliou os espaços para a culinária na
revista, publicando receitas como esta, que ensinava a preparar molhos:
263
O Cruzeiro. 21 dez. 1940. p. 89.
264
Id., 14 abr. 1934. p. 40.
122
Molho de Manteiga
1 chicara de agua quente.
1 ½ colheres de sopa de manteiga.
½ colhe de cha de sal
2 colheres de sopa de farinha
pimenta a gosto
1 Derreta a manteiga e junte a farinha, mexendo bem; junto então os temperos.
2 Tire a panella do figo e misture o liquido mexendo constantemente para não
encaruçar.
3 cozinha em fogo brando, mexendo sempre.
Variações do Molho de Manteiga
Molho de Alcaparra Junte ao molho acima ¼ de chicara de alcaparras e
cozinhe um pouco antes de servir.
Molho de Ovo Misture ovos duros e frios, ao molho de manteiga mexendo
ligeiramente para não quebrar os ovos.
Molho de salsa Para uma chicara do molho de manteiga, junte 1 colher de sopa
de salsa picada e 1 colher de sopa de molho de limão.
Molho de Camarão Derrame uma chicara de molho de manteiga sobre a
gemma de 1 ovo, ligeiramente batida, e junte ½ chicara de camarões. Aqueça e
sirva.
265
Também orientava sobre maneiras de reduzir as despesas:
Este Oleo Reduz as Despezas!
Óleo Excelente A Patrôa
1 Não queima
2 Não toma o gosto dos alimentos!
3 Pôde ser usado muitas vezes!
ACABE com os aborrecimentos que lhe causa a conta do empório! Agora a Sra.
póde economisar e ao mesmo tempo servir pratos deliciosos, usando o finíssimo
oleo “A Patrôa”. Puro e inodoro, é mais economico e os pratos ficam mais
gostosos porque apparece todo o sabor caracteristico dos alimentos. Peça, ainda
hoje, no seu emporio uma lata de oleo “A Patroa”.
Oleo
A Patrôa
É um producto swift.
266
Na mesma página aparece uma propaganda de fogão a gás e óleo, com uma figura
demonstrativa do produto. Esse também foi um período da afirmação de marcas que
permanecem ainda hoje no mercado consumidor, como a Bayer, a Philips e tantas outras.
Os fogões a gás e a óleo começavam a aparecer como mostra esta propaganda de 1941:
265
O Cruzeiro. 14 abr. 1934. p.41.
266
Id., 13 dez. 1941. p. 58.
123
É UMA MARAVILHA
O legítimo fogão HEIDENIA a gás e oleo cru
Com uma, duas ou três bocas e forno de sobrepor
para bolos e assados Consumo de 1 litro de oleo em 7 horas
SEM BOMBA SEM PRESSÃO
O máximo de conforto com o máximo de economia
Consultem a SOCIEDADE GECO LIMITADA
Rua Teófilo Otoni, 35 Rio
E as principais casas de ferragens ou do ramo.
267
Para complementar esse estímulo à vida doméstica, que já podia experimentar
equipamentos modernos que traziam mais conforto as donas de casa, novos utensílios
surgiam e oferecia mais possibilidades de modificar a arte culinária e o rude trabalho
doméstico. Mas nem todas as mulheres contavam com essas facilidades, muitos lares
brasileiros só vieram a conhecer eletrodomésticos e utensílios de cozinha décadas depois.
Além de anunciar os utensílios, a revista começou a abrir espaços para as informações
sobre como tirar melhor proveito dos equipamentos; anunciava, a partir da década de 1940,
receitas e sugeria a modernização dos pratos brasileiros que “sofria tudo o que o sangue
sofreu”, ou seja, a miscigenação, como revelava Nelson Motta. Era a defesa da sofisticação
na cozinha, com pratos diferenciados, como o autor mostra neste texto: “Barricada na
cozinha”, com fotografias de “Peter Scheier”:
Há vinte anos, mais ou menos, Lady Mackenzie, chegando ao Rio de Janeiro, seu
espanto, nem disfarçou a sua surpresa diante da desordem culinária do povo
brasileiro. Para ela, que vinha de uma civilização evoluída onde o garfo e a
faca ajudaram a construir, paulatinamente, uma História e uma Cultura, para ela,
que vinha de um alto padrão de vida, aquela confusão que imperava em nossa
cozinha, aquela anarquia e aquela mistura representavam um grande e grave
pecado. Viu que o povo, entre nós não sabia fazer o que comia e não sabia comer
o que fazia. E resolveu então, no seu empenho de ajudar a terra acolhedora,
organizar uma equipe de cozinheiros, um corpo requintado de mestres-cucas
encarregados de restaurar a dignidade da nossa culinária. Naquele tempo, como
hoje, a mesa e o fogão ocupavam um pôsto absolutamente secundário no quadro
das realidades nacionais. De um lado os preconceitos, acumulados, por velha
tontice, barravam a porta das cozinhas comprometiam o sucesso das panelas e a
nobreza primordial da comida. De outro lado, os anos haviam incorporado à
nossa mesa pobre, a mesa exótica de todos os imigrantes. A cozinha brasileira
pelos séculos a dentro sofreu tudo o que o sangue sofreu. Surgiu como a raça da
mistura desregrada de todos com todos. E por isso mesmo nunca teve estilo e
nunca teve personalidade. [...].
268
267
O Cruzeiro. 13 dez. 1941. p.58.
268
Id., 23 jun. 1945. p. 55.
124
Muitos cursos surgiram então, não apenas de culinária, mas sobre administração do
lar, realização de compras e economia. A notícia do dia 10 de julho de 1943 dá conta disso:
Cozinha para todas
School of Household Management (Escola de Direção do Lar) para ministrar a
todas as jovens, suas alunas, os elementos indispensaveis à boa organização de
uma casa, nesse sentido.
O instituto, destinado a ensinar desde como economizar nos mercados, até à
ornamentação e disposição dos pratos na mesa, passando pela escolha de
refeições, treino e seleção de empregadas, conservação dos gêneros alimentícios
etc.. logo grangeou um número elevadíssimo de alunas.
Imediatamente os outros colegios instituíram também cátedras semelhantes, uma
vez evidenciada a eficiencia e o acatamento da materia. Muita gente certa da
grande verdade de que “pelo estômago se chega ao coração”, aplaudiu essa
inovação.
Os resultados obtidos na América do Norte por esse curso de Miss Odette Le
Cluse, e outros conseqüentes, é que faz com que lamentemos não haver entre
nós, as poucas iniciativas semelhantes adquirido aceitação idêntica, talvez em
virtude de sua má organização, ou quiçá devido ao desamparo de sua existencia.
Mas a grande extensão alcançada pelos ensinamentos da School of Household
Management bem mostra o interesse que existe em se mostrar às nossas jovens o
quanto vale possuir reais méritos culinários, aprendendo a preparar o mais
extravagante dos piteus imaginaveis, a lidar com as mais ferozes das cozinheiras
e a satisfazer o paladar do marido mais exigente.
269
Produtos delicados e eficazes eram anunciados não apenas para a cozinha, mas
também para o tanque. O anúncio do sabão Lux prometia deixar roupas com uma
aparência de sempre novas:
Meias das mais finas
Lãs das mais macias
Sedas diaphanas [...]
Nada tem a recear do Lux
Os seus vestidos mais delicados, as suas meias de malha mais finas, as suas
combinações mais valiosas, conservam-se frescas e bellas sob o cuidado do
“LUX”.
A sua espuma rica e leitosa restaura a belleza primitiva dos tecidos, penetrando
em todos os fios e expurgando-os de suas impurezas.
A maciez de suas mãos será o testemunho da delicadeza do “LUX” para com as
sedas mais finas. Uma lavagem com “LUX” torna os seus lindos vestidos macios
e brilhantes e com toda a atração de novos. Lave em casa por este processo
economico todas as peças do seu mimoso enxoval. [...]
270
269
O Cruzeiro. 10 jul. 1943. p. 66. Conclusão da p. 65 do texto sobre “Cozinha para todas”.
270
Id., 10 out. 1931. p. 39.
125
Na competição dos sabões, as empregadas domésticas entravam em cena nas
páginas da revista, público esse que não era personagem nem fonte de informação para o
magazine. Contudo, para reforçar algumas propagandas, lá estava a imagem delas
sugerindo produtos como sabão e “Cafiaspirina”. Na disputa para agradar o consumidor, o
texto vinha acompanhado de uma imagem ou fotografia:
A Patroa está satisfeita
Pudera agora só uso sabão MINERVA
Bom para todos os usos domésticos.
[...]
Não estraga a roupa
Não deixa cheiro
Bom até para seda [...]
271
[...] querida é a
CAFIASPIRINA
Só ella me allivia, me dá o bem estar e me devolve o sorriso aos labios. Um
destes dias a minha creada encontrou no meu toucador um tubo de
CAFIASPIRINA e exclamou com surpreza: - Oh! que vejo! A snra. e eu usamos
o mesmo remedio para dôres! Porque te admiras?! respondi-lhe. A
CAFIASPIRINA não é remedio dos ricos; é remedio de todos os que soffrem.
Não o compro por ter mais dinheiro do que tu e sim pela mesma razão por que tu
a compras: por ser o unico remedio seguro que existe [...]
Incomparavel para dôres de cabeça, dos dentes e dos ouvidos; nevralgias,
exaquecas, cólicas das senhoras, consequencia do abuso do álcool, etc. Allivia
rapidamente, levanta as forças, e regulariza a circulação do sangue.
Defenda-se exigindo a Cruz Bayer
272
Traziam-se, ainda, para as páginas da revista pessoas simples, como as costureiras,
que também avalizavam a popularidade do medicamento, enfatizando que, apesar de a
revista ser dirigida ao público feminino de nível social mais elevado, mulheres mais
populares, como as costureiras e empregadas domésticas, tinham espaço para anunciar
produtos; também porque a venda desses produtos não poderia se restringir a uma
determinada classe social, era preciso alcançar cada vez mais consumidores. A propaganda
da Cafiaspirina dizia:
Também eu!
Como sou costureira estou acostumada, em tudo na vida, a não dar ponto sem nó.
As minhas cautelas são, porém, mu ito maiores nas cousas em que estão em jogo
a minha saude, que é o unico patrimonio das moças pobres e [...] casadeiras.
[...] Por isso, nem minha mãe, nem minhas irmãsinhas nem eu, tomamos para
271
O Cruzeiro. 26 ago. 1944. p. 31.
272
Id., 30 jan. 1931. p. 14.
126
qualquer dor, nada que não seja a admirável!
Cafiaspirina
Algumas vezes já tem acontecido oferecerem-me outras cousas, com o engodo
de que custam menos [...] como se a CAFIASPIRINA não existisse ao alcance
de todos os bolsos eu fôra tão tola de arriscar a nossa saude para poupar-me uns
miseraveis nickeis!
Todo mundo tem esta mesma confiança cega na Cafiaspirina, porque nada mais
seguro para dôres de cabeça, dos dentes e dos ouvidos, nevralgias, enxaquecas,
collicas das senhoras, conseqüencias dos excessos de bebidas alcoolicas, etc.
Allivia rapidamente, levanta as forças e regulariza a circulação do sangue.
Exija sempre a cruz Bayer.
273
Não foram, entretanto, apenas as grandes indústrias de medicamentos e produtos de
beleza que se valeram da propaganda para fazer conhecer seus produtos. De 1930 a 1945, anos
vividos sob tutela do regime autoritário, Vargas procurou criar uma base social de sustentação
política, para o que se utilizou muito da propaganda e dos meios de comunicação,
especialmente do rádio. Em A História da vida privada exemplifica melhor isso:
O salto direto de uma população majoritariamente analfabeta no início do século
para uma ordem cultural centrada nos estímulos sensoriais das imagens e dos sons
tecnicamente ampliado, fornece uma indicação da trajetória da sociedade brasileira
nesse período de mudanças intensas e rápidas. Expostas de um lado às pressões de
um mercado intrusivo e de outro às intervenções das elites dirigentes, empenhadas
em modelar as formas e expressões da vida social, as pessoas e grupos se viram
forçados a mudar, ajustar e reajustar seus modos de vida, idéias e valores
sucessivas vezes. Suas vidas privadas foram fortemente afetadas pelas turbulências
históricas do que foi chamada “a era dos extremos”.
274
O surgimento de novos meios de comunicação, como o rádio, contribuiu para a
transformação cultural da sociedade desse período. Divulgador de estrelas e de produtos, o
rádio também foi salientado nas páginas de O Cruzeiro, como veículo de comunicação
dinâmico, que contribuía para aumentar a farta propaganda da revista, através de anúncios
dos próprios equipamentos radiofônicos e das promoções que as rádios realizavam, como
concursos e sorteios. O Cruzeiro trazia propagandas que enalteciam o poder desse meio,
até mesmo porque o conglomerado de Assis Chateaubriand possuía várias emissoras
espalhadas pelo país. A propaganda estimulava o leitor: “Compre um COMBATENTE e
ganhe uma bicicleta ou uma Rádio-Victrola de mesa”.
273
O Cruzeiro. 10 jan. 1931. p. 6.
274
SEVCENKO, Nicolau. Introdução O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 38-39.
127
e mais os seguintes prêmios:
um Toca-disco de luxo
Três toca-discos R –101
COMPRANDO um Combatente, o Sr. terá oportunidade de se tornar possuidor
de valiosos prêmios. Peça a um Revendedor RCA Victor o folheto com os dados
deste sensacional sorteio. No momento, de adquirir um COMBATENTE, o Sr.
receberá um coupon numerado que o habilitará a receber, por sorteio, uma
Rádio-Victrola QU-56, ou uma bicicleta à sua escolha além de excelentes
Toca-Discos RCA Victor. E também esta surpresa: no fim da campanha, todos
os coupons concorrerão ao prêmio de uma Rádio-Victrola de classe.
Os rádios COMBATENTES estão à venda nas seguintes cores: marrom, rosa, azul,
verde, preto, marfim e bordoou. Funcionam com correntes ACDC de 110 volts.
RCA VISTOR
Ouça a Rádio Nacional em 25 metros, nova estação instalada pela RCA Victor.
275
A página 2 da edição de 10 de novembro de 1928 foi toda reservada para a estrela do
momento, a vitrola. O anúncio trouxe uma ilustração da “Victrola Orthophonica modelo 8
36, a maior maravilha musical”
276
e ainda páginas, a partir da terceira, recheadas de pequenos
anúncios, mostrando belos edifícios que abrigavam hotéis do Rio de Janeiro, ofertas de
transporte e carruagens, cabeleireiros para senhoras, livrarias, médicos, alfaiataria, restaurantes,
manicures, teatros e cinema. Isso tudo deixava transparecer uma idéia da vida urbana que
começava a ganhar dimensões hodiernas e que tinha a propaganda como fonte de divulgação
de produtos e idéias, como mostra a história da propaganda no Brasil:
No intervalo das novelas de rádio, anunciavam-se roupas feitas,
eletrodomésticos, loteamentos. Promoviam-se lojas de departamentos e empresas
imobiliárias, que começavam a dar a feição atual as cidades. Tempo de grandes
mudanças.A televisão, o marketing, o ensino especializado. Supermercados,
competição de marcas, indústria automobilística. Para uma nova época, novos
costumes.
277
O rádio surgiu no Brasil em maio de 1923, com a instalação da Rádio Sociedade do
Rio de Janeiro, um sonho do cientista Edgard Roquette Pinto e, cuja primeira função era
educativa. Posteriormente, na década de 1930, mais especificamente em 1932, com a
publicidade sendo permitida pelo governo, o rádio tornou-se popular. A indústria e o
comércio começaram a “dar as cartas”, com uma proposta mais voltada para a diversão e o
lazer. Foi por esse meio de comunicação que a propaganda se estruturou como um veículo
275
O Cruzeiro. 23 jan. 1943. p. 48.
276
Id., 10 nov. 1928. p.2.
277
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 95.
128
de muitos objetivos, um deles a integração nacional, de que Getúlio Vargas fez muito bom
uso, inclusive criando programas que permanecem até hoje, como é o caso da Voz do
Brasil. O rádio vencia a barreira do analfabetismo no país e conseguia ser entendido por
todos; portanto, a mensagem do discurso do nacionalismo e da modernização do país,
chegava às classes populares e conseguia se impor a todos, especialmente aos
simpatizantes do desenvolvimento da nação.
No final da década de 1920, quando surgiu O Cruzeiro, a propaganda no Brasil ainda
não tinha o reconhecimento como atividade profissional e se valia da promoção “boca-a-boca”.
Mas o decênio de 1930 chegou, e as grandes empresas passaram a se valer da publicidade de
massa, conforme revela a obra 100 anos de propaganda: “Nos anos 30, com a instalação de
empresas estrangeiras, como a J.W. Thompson (1929) e a McCann-Erickson (1935), a
propaganda brasileira adquiriu uma afeição mais agressiva. Foi a era dos grandes slogans:
‘Basta ser um rapaz direito para ter crédito na A Exposição’; ‘O Brasil precisa de sangue bom!
Tome Elixir de Nogueira’”.
278
E foi nessa mesma década que a propaganda ganhou amplitude
com mais um veículo de informação: o rádio, “que transmitia comerciais na voz dos grandes
astros das emissoras”
279
. Esses artistas, além de fazerem sucesso no Brasil eram famosos no
exterior, como Carmem Miranda, e conquistavam a cada dia também o público do rádio, como
Francisco Alves. Em O Cruzeiro as notícias sobre a estrela brasileira vinham diretamente de
Hollywood e enchiam várias páginas, como esta de 26 de julho de 1941:
CONCHITA
HOLLYWOOD Julho de 1941 (Correspondência de Marius Swenderson
Especial para O CRUZEIRO) Carmem Miranda, depois de terminar seu segundo
filme, no qual realmente atuou como “estrella”, sendo unanimemente elogiada pela
crítica, esperava fazer uma temporada teatral na Broadway. Os produtores da Fox
Film, porem, em visita do imenso sucesso de “Uma noite no Rio”, resolveram iniciar
outra película de ambiente tropical, denominada “Honeymoon in Havana”, onde a
“brasilian bomb-shell”, foi crismada com o nome espanhol de Conchita. Neste filme,
que será em tecnicolor e de grande luxo, como já tivemos ocasião de noticiar.
Carmem Miranda veste numerosas baianas estilizadas, verdadeiramente
sensacionais, e suntuosas “toilettes” de baile. O modelo abaixo, que publicamos em
primeira mão, é uma creação de Alceu Penna, que já desenhou outras indumentarias
da “pequena notável”, será usado como vemos no cartaz, as cenas do “Cassino
278
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 1.
279
Ibid.
129
Madrileño”. No próximo número juntamente com uma curiosa entrevista de
Carmem, publicaremos novas fotografias que são outras tantas fantasias
maravilhosas de “Honeymoon in Havana”.
280
Em setembro desse mesmo ano (1941), mais notícias eram publicadas sobre o
sucesso de Carmem Miranda em Hollywood:
CHICA BOON!
HOOLYWOOD Agosto de 1941 (Correspondência de Osvaldo Eboli, especial
para O CRUZEIRO). Os americanos mostram-se singularmente escandalizados
com a pronuncia errada de Carmem Miranda, assim como adoram o inglês
afinado de Maurice Cherosñer.
As entrevistas com a “garota do [...]” que frisam esse detalhe são multiplos,
julgamos transcrever [...].
As cortinas que velam o palco de Gramman’s Chlnese Theatro abrem-se
deixando ver seis rapazes sorridentes de “smooking”, o Bando da Lua de
Carmem Miranda, que tocam um numero introdutorio. Depois o recinto
illumina-se com um milhão de “watts” de eletricidade humana chamada Carmem
Miranda, saias alegres rodopiando, jóias cintilando, enfeites de cabeça com uma
barra de [...] em miniatura. Seu sorriso radiante abrange todo o auditorio. Não
tem pressa [...] Seu olhar vai do balcão à orquestra. Gosta do que esta vendo o
seu sorriso aumenta [...]
281
Além de Carmem Miranda, muitos artistas brasileiros que faziam sucesso,
principalmente os do rádio, também conquistaram seu espaço na revista. O período foi de
grandes estrelas, saídas dos microfones da Rádio Nacional, como revela a história da
propaganda no Brasil:
Em 1936, um decreto de nacionalização do rádio faz desaparecer a Rádio Philips.
Nesse mesmo ano, inaugura-se a Rádio Nacional, com a participação do governo
brasileiro na concorrência radiofônica. O rádio chega ao final da década de 30
como o maior veículo de comunicação do país: mais de 400 000 aparelhos.
Intensifica-se também o apelo hollywoodiano: Kay Francis está entre as nove
artistas que usam o sabonete Lever.
282
Até 1930, a propaganda contou com os belos traços de caricaturistas famosos do país.
O registro histórico de 100 anos de propaganda traz os nomes de ilustradores como Julião
280
O Cruzeiro. 26 jul. 1941. p. 23.
281
Id., 20 set. 1941. p. 3.
282
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 73.
130
Machado, J. Carlos, Luís Peixoto e outros que fizeram parte da Belle Époque da moda e da
propaganda. Além disso, muitos dos textos eram escritos por escritores, nada mais, nada
menos, que Olavo Bilac, Basílio Viana e outros. Em O Cruzeiro, não é possível identificar
pelos anúncios avaliados quem escrevia os textos das publicidades e quem as desenhava.
No Brasil, a primeira agência de propaganda, A Eclética, surgiu em São Paulo,
antes do começo da Primeira Guerra Mundial. Segundo revela 100 anos de Propaganda,
quando a guerra terminou, já estavam funcionando cinco agências na cidade paulista,
mostrando que os anos de destruição, contraditoriamente, fizeram florescer a publicidade
no país, graças à idéia de implementação da modernidade, que despertava também os
brasileiros para uma sociedade de massa. Nesse período, vendia-se de tudo, desde
remédios, água, café e as novidades vindas especialmente de Paris, como coleções de
vestidos e de chapéus. Havia ainda os cremes, tinturas, sabonetes e pós, e chegavam “[...]
até nós grandes nomes estrangeiros: Nestlé, Colgate, Parker. Até 1930, a General Motors já
havia promovido dois salões do Automóvel.”
283
A sociedade desfruta a Belle Époque. Para os ricos, são anunciados pianos e
automóveis. Essas mercadorias vinham da Europa e dos Estados Unidos, trazidas
por navios. O comércio de importação é dos mais lucrativos, controlados por
firmas estrangeiras. Pequenas indústrias nacionais fabricam móveis estilo Art
Nouveau. Em 1911, a política serve à propaganda. Pinheiro Machado
(caricaturado) recomenda as águas Magnesiana e Gazosa de S. Lourenço.
284
Em 1920-1921 as mulheres começaram a ser o alvo dos anúncios publicitários de
forma mais intensa, havendo até quem admitisse, pelo menos nas propagandas, que elas
fumassem: “Na vida prática, porém, ainda não se admite que as mulheres fumem em
público.”
285
E a exemplo do que fez O Cruzeiro nessa época, escolhendo como público-alvo
dos seus anúncios as mulheres, revistas como Semana, Careta, Fon-Fon também levavam a
sério a publicidade feminina, especialmente para conquistar novos consumidores.
Em inocentes “conselhos úteis”, as revistas ajudam a divulgar os novos produtos
medicinais e suas fórmulas milagrosas. Vendem-se remédios até mesmo pelo
reembolso postal, incentivando-se a automedicação. Nos reclames, a figura da
283
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 27.
284
Ibid., p.29.
285
Ibid., p. 31.
131
mulher “doente” é constantemente utilizada, aproveitando-se a idéia de que a
mulher era “mais propensa às doenças do que o homem”. Nessa época, o sexo
feminino era o maior alvo da propaganda médica.
286
O Cruzeiro, que surgiu só em 1928, também se valeu muito dessa realidade, tanto
que as propagandas de remédios “para doenças das senhoras” aparecem em quase todas as
edições do período analisado. Além disso, assim como O Cruzeiro, várias outras revistas
surgiram a partir de 1920 e priorizavam as propagandas que vendiam a imagem de que a
sociedade brasileira estava cada vez mais consumindo e se modernizando. “No começo dos
anos 20, multiplicam-se os confortos da vida moderna: geladeiras (vendidas a prestações)
fogões a gás, chuveiros elétricos, enceradeiras. Remédios e perfumarias continuam a
ocupar o maior espaço publicitário em jornais e revistas.”
287
No ano em que surgiu O Cruzeiro, a cervejaria Antartica já dominava o mercado
não apenas de cervejas, mas de guaraná. Nesse mesmo ano, “Carlos de Lyra & Cia.
promove o álcool combustível Usga, produzido no Estado de Alagoas: “Usar o
combustível nacional é dever dos bons patriotas.””
288
Em 1929, a empresa Victor Talking
Machine Company “anuncia a “gravação e manufactura”
289
de seus discos no Brasil, com
o que se multiplicaram as “victrolas”.
A sociedade de massa, como já abordamos aqui, surgiu na década de 1930 e foi
reforçada pela publicidade nas revistas. O Cruzeiro, que começou a circular em 10 de
novembro de 1928, com uma tiragem de 27 000 exemplares
290
, ampliou o seu parque
gráfico a partir de 6 de abril de 1934 adquirindo e publicando A Cigarra-Magazine
(fundada em 1914).
291
Foi essa mais uma publicação dos empreendimentos de Chato, que,
mais tarde, também viria a desaparecer; era mais um veículo que circulava no país,
reforçando os propósitos editoriais de Chatô, entre eles o pensamento modernizador.
Apesar da crise que antecedeu a economia mundial na década de 1930 e que só veio
a ter fim com o término da Segunda Guerra Mundial, a propaganda no Brasil desenvolveu-
se superando as crises advindas das revoluções de 1930, 1932 e dos golpes militares. São
revelações de 100 anos da propaganda no Brasil:
286
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 39.
287
Ibid., p.45.
288
Ibid., p.53.
289
Ibid., p. 55.
290
Os dados são da obra 100 anos de propaganda e não coincidem com o número de cinqüenta mil
exemplares anunciados pela própria revista, na primeira edição de 10 de novembro de 1928.
291
CIVITA, op. cit., p. 81.
132
Está claro que nada disso poderia ser favorável ao desenvolvimento da
propaganda. No entanto, as faces de retração foram curtas e, com o surto
industrial dos anos 30, a publicidade floresceu, com uma visível
profissionalização dos que a faziam. Então se principiou a dizer: “a propaganda é
a alma do negócio”. Foi o tempo do rádio, um veículo novo e fascinante. Foi o
tempo das revistas, para todos os gostos, que tinham o sabor de um mundo
colorido. Foi o tempo em que a nossa propaganda, bem brasileira na rima, se
expressou melhor através de slogans. “È mais fácil um burro voar que a Esquina
da Sorte falhar”; “Com guarda-chuva Ferretti, pode chover canivete”. Grandes
lojas de departamento, indústrias de camisas e roupas feitas, essas novidades.
Com as primeiras incursões pelo crediário, conviviam a Lu-go-li-na, o
Minorobil, o Rum Creosotado. Um cartaz se promovia: “Assim como me vê, são
vistos os anúncios neste bond”.
292
Em tempos em que a beleza e as formas de cuidados do corpo estavam em alta, os
maiores anunciantes de 1931 eram os produtos de higiene pessoal: “O sabonete Eucalol
(antisséptico) alerta para o perigo dos micróbios.”
293
Já os tecidos fabricados em São Paulo
vendiam a idéia de qualidade da indústria nacional, o que se intensificou com a Ford
Americana. A década de 1940 também foi de ouro para a propaganda: “A Tecelagem
Aurora inspira-se nas histórias em quadrinhos (e na obra de Dante) para promover suas
casimiras.”
294
As indústrias estavam concentradas nas grandes capitais. Em 1940, São Paulo,
Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Porto Alegre contavam com 479 570
operários. Ampliam-se os serviços urbanos (transportes, energia elétrica, água,
esgoto etc.). Em 1941, a companhia Telefônica Brasileira já instalara 286 578
te3lefones no país, sendo 59 064 no Estado de São Paulo, 14 097 no Rio de
Janeiro e o resto nos outros Estados.
295
Em 1940, a capital paulista tinha 1.326 000 habitantes e era considerada a segunda
maior concentração urbana do país, o que estimulava a que as cidades do interior
promovessem de turismo a São Paulo, viagens provocando a expansão da rede hoteleira.
Foi nesse período também que cresceu a indústria do lazer, aproveitando uma das
conquistas da população trabalhadora, que foram os trinta dias de férias garantidos todos os
anos. As propagandas ofereciam, além de belos lugares a serem visitados, bons hotéis para
hospedagem e ainda seguro de viagem:
292
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 59.
293
Ibid., p. 69.
294
Ibid., p.81.
295
Ibid., p. 83.
133
Boa Viagem!
Feliz Regresso!
[...] uma viagem de negócios, de férias, uma alegre excursão póde ser
inesperadamente interrompida por um acidente, cujas consequencias é
impossivel prever. Uma apólice de SEGURO CONTRA ACIDENTES
PESSOAIS representa uma garantia que todos devem possuir, prevenindo as
incertezas do futuro. Procure informações para seu seguro com um Corretor,
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296
No ritmo de crescimento que assustava o próprio país surgiam novos hotéis e novas
marcas, que ajudavam a modificar a vida brasileira: “Inaugurado em 25 de julho de 1940, o
Grande Hotel São Pedro, próximo à capital paulista, divulga suas comodidades. Aparecem
novas marcas de cigarros e a produção de fumo é, nesse ano, de 95 337 toneladas, em 96
313 hectares de área cultivada no país.”
297
Nesse processo de aceleração de crescimento, entretanto, nem tudo foi harmônico;
havia problemas e não eram poucos. Em 7 de maio de 1942, Getúlio Vargas, através de
decreto, restringiu o consumo de petróleo e de seus derivados, provocando, então, os
primeiros racionamentos: “Por precaução, há blackout total em toda a orla marítima do
país. Nesse primeiro ano de participação brasileira na guerra, anunciantes aproveitam o
vasto tema. Nos reclames dos relógios Mido, publicam-se instruções para o caso de um
ataque aéreo noturno.”
298
Eram as conseqüências da guerra. Vejamos:
No ano de 1943, a região petrolífera baiana produziu 48 153 barris de petróleo
(cerca de 7 toneladas) para um mercado consumidor que exigiu 927 445
toneladas de derivados desse produto. Época de imensas dificuldades para a
importação, nesse ano empresas automobilísticas divulgam a utilização do
gasogênio (gás combustível produzido pela queima de carvão) em “autos e
caminhões”, para enfrentar o racionamento de guerra.
299
Uma das indústrias que cresceu rapidamente no país foi a de cigarro. A Souza Cruz,
de Albino Souza Cruz, fundada no Rio de Janeiro em 1903, tornou-se na década de 1940
uma das maiores empresas do ramo no país: “As primeiras marcas eram Odalisca, Elite,
296
O Cruzeiro, 13 jul. 1940. p. 27.
297
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 85
298
Ibid., p. 87.
299
Ibid., p. 89.
134
Yolanda, Dalila, Vandyck. Em 1944, a Souza Cruz domina mais de 70% do mercado
fumante brasileiro. Divulga Elmo, Astoria, e utiliza temas nacionalistas para promover a
marca continental, a mais vendida.”
300
Além do cigarro, empresas estrangeiras anunciavam
a fabricação de refrigeradores:
Agosto de 1945: é o fim da Segunda Guerra Mundial Normaliza se o transporte
marítimo. Já em outubro, a General Motors anuncia a chegada dos refrigeradores
Frigidaire, de fabricação americana. Nesse ano, a produção de milho atinge 4
846 557 toneladas, em área cultivada de 4 092 054 hectares.Tecidos sintéticos,
filmes americanos, bebidas e maizena (produto à base de milho) são anunciantes
mais comuns.
301
Terminada a Segunda Guerra Mundial, a propaganda “grandiloqüente e patriótica
deixa o seu apogeu do período de guerra e a publicidade otimista e do crediário vem se
efetivar após 1945, com a chegada do estilo de vida norte-americano.”
302
Com raiz no Velho Mundo, a elite dominante brasileira objetivou impor seus
padrões de comportamento a toda a população, utilizando-se, para isso, de “códigos rígidos
e sistemas de racionalidade, aplicados com vistas a modelar os comportamentos e as
práticas, desde o âmbito geral até os recônditos da intimidade e da consciência de cada
habitante do país”.
303
As características dessa transformação combinavam-se com “os
estímulos introduzidos pelos potenciais das novas técnicas, equipamentos, artigos,
símbolos, procedimentos ou quadros de valores associados à ‘vida moderna’”.
304
E a
transformação se traduzia numa “metabolização constante de símbolos, por meio da qual
as pessoas agregam a si signos e sentidos que conotam a força e o prestígio da
‘modernidade’”.
305
Outra impressão que parece ser pertinente é a carga simbólica que a revista trouxe
desde o seu nascimento, num comparativo explícito com a constelação do O Cruzeiro, um
símbolo que guiou muitos marinheiros pelos céus do Brasil; também com a moeda
brasileira, o que rendeu duas páginas sobre a “A evolução da moeda no Brasil da
300
CIVITA, Victor (Ed.). 100 anos de propaganda. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 91.
301
Ibid., p. 93.
302
Ibid., p. 95.
303
SEVCENKO, Nicolau. Introdução O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil. v.3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 39-40.
304
Ibid., p. 42.
305
Ibid., p. 43.
135
ocupação Hollandeza ao Cruzeiro.” Nesse comparativo, a revista expressava também o
pensamento econômico do período:
Com a moeda de ouro republicana, á legenda letina sucede a legenda comtista
ORDEM E PROGRESSO, mas na heráldica do escudo a invocação da cruz
permanece da cruz permanece, agora representada pela constelação de Cruzeiro,
que passa a ser o próprio symbolo da Patria.
A lei de 13 de dezembro de 1926 criou finalmente o novo systema monetario
com base de ouro e a moeda typoem multiplos do Cruzeiro, nome esteve já por
mais de uma vez aventado para a moeda nacional e que é uma decorrente logica
do symbolismo heráldico de Brasil. A ressureição do ouro na circulação
monetaria haverá de corresponder a uma nova phase de progresso economico,
defendida por uma estabilização de valor que impeça o exodo do ouro circulante.
Praticamente, o ouro é o saldo entre o que se vende e o que se compra, entre o
que se produz e o que se consome. O ouro é o signal metálico representativo por
excellencia da riqueza. Um país que só possuísse minas de ouro e tivesse de
comprar aos povos estrangeiros o alimento e o agasalho, não seria o detentor,
mas apenas o extractor, do seu proprio ouro.
No cadinho em que se fundira o CRUZEIRO os metaes em fusão hão de ser o
equivalente da energia, da iniciativa, do labor dos brasileiros. E com os seus
cafezaes, com os seus cannaviaes, com os seus rebanhos, com as suas fábricas e
com as suas minas. Com os seus campos, as suas florestas, os seus rios, os seus
portos, as suas estradas e as suas cidades, com o esforço e a intelligencia de seus
filhos, que o Brasil cunhará o seu ouro, que a Casa da Moeda vae cunhar o
CRUZEIRO.
306
Foi seguindo esses vestígios impregnados de símbolos que começou a se delinear o
panorama moderno expresso em Cruzeiro, e, mais tarde, em O Cruzeiro. Ainda na
primeira edição, chama a atenção uma carta de mulher que reflete sobre o sentimento de
uma época de transição de um país agrário para o urbano. Apontando os contrastes entre os
hábitos urbanos e rurais, a carta da leitora parece ser um desabafo de quem precisa se
adaptar a uma nova forma de vida, onde a juventude se adianta e absorve novos padrões,
contrastando com os valores conservadores e os comportamentos de quem ainda não
conseguia moldar os seus. O significado da carta resume um pouco daqueles anos de
contrastes entre os novos e os velhos padrões de comportamentos sociais.
Querida Lucia.
Cá estou, outra vez, na minha gostosa solidão. Depois de cinco meses no Rio,
foram precisos três dias para readquirir a minha casa e os meus hábitos.
Feliciana suspira noite e dia por ti. Os seus suspiros substituem a tua victrola, e
quasi me fazem ter saudade dos teus fox-trot, dos teus <blue> e do teu Ukulele.
306
O Cruzeiro. 10 nov. 1928. p. 5.
136
Eu também suspiro, mas com os mudos suspiros do coração. O meu disco é
silencioso.
Ainda não são oito horas e tudo já dorme na fazenda. O somno começa cedo na
roça. Logo que anoitece, os cafézaes, a matta e o gado adormecem. Não é como
na cidade, que soffre de insomnia permanente, com luzes acesas toda a noite,
automoveis a correr e a businar até de madrugada. Na roça não é preciso ter
somno para dormir. O somno vem lá de fóra, da noite escura e tranquilla, e toma
conta de nós. Por ora, ainda meu somno é rebelde.Os maus habitos levam tempo
a perder. Só eu estou acordada na grande casa adormecida.
Olho o relógio. Nove horas! Lucia está-se preparando para ir ao cinema, ou para
ir ao teatro, ou para ir a casa de uma amiguinha, de onde volta à meia-noite, à
uma hora, às duas horas, pallida debaixo do rouge e sem somno. Não é verdade?
Duas ou tres vezes por semana tu tens uma amiguinha que faz annos, que
organiza um <<dancing>>, que te reclama em conversas interminaveis pelo
telephone. E tu lá vaes. Mamãe só recomenda que voltes cedo [...] se for
possivel, - < de certo, mamãe!> e voltas sabe Deus quando, depois de teres
dansado todos os discos do gramophone. Eu também sabia, ás vezes, por que
antes de ires deitar-te entravas no meu quarto em bicos de pés e sentavas-te na
minha cama e me davas a tua lição. O que eu aprendi contigo! Tu me ensinaste
tanta cousa! Eu estava tão atrazada, tão antiga com os meus cabellos compridos!
Se demorasse mais uns mezes, teria talvez cortado o cabello e aprendido a falar a
lingua da cidade! Mas de que serviria a tua tia, que mora na roça, aprender a
lingua que a mocidade fala na praia, nos clubs, nos salões de dansa dos hoteis, e
não sei onde mais? Tu te lembras do meu espanto sertanejo, a principio, e o que
me custou a habituar-me quando no < grill-room> do Casino de Copacabana, ou
no cha do Gloria, ou nas corridas, ou na rua, os teus jovens e elegantes
conhecidos se dirigiam a ti - < Allô, Lucia, você hotem não foi ao banho? Esteve
estupendo > - < Como vae, bellezinha? > - < Você já foi ver as zinhas do
Batacian?>
Sympaticos moços, não ha duvida, que olham tão familiarmente para os
arranhas-céos como para o teu pequenino < maillot > de banho.
307
As mudanças não impressionavam apenas a sertaneja estonteada com a cidade e
seus fascínios modernos, mas também a mulher que começava a confrontar os
comportamentos que se apresentavam, desde a ousadia das roupas até os relacionamentos
com amigos, namorados e a severa obediência aos pais; então, ela descobria que os seus
padrões de comportamento estavam ultrapassados. A carta da leitora seguia confrontando
os tempos de mudanças no Rio de Janeiro de 1928:
Eram tão diferentes os moços do meu tempo! E como a tua tia ainda não tem
quarenta annos, se não te custa fazer as contas tu te convencerás de que não me
refiro aos tempos da saia de balão. Já havia cinema, já havia automóvel. Já havia
Avenida. Mas os moços e as moças ainda não eram camaradas, ainda não se
tratavam familiarmente por você, ainda não andavam na praia como os acrobatas
no circo. Há vinte annos três anos antes de tu nasceres, - a cor das nossas ligas
e o contorno das nossas pernas eram um segredo inviolável e quando um moço
nos convidava para dançar uma valsa era preciso consultar primeiro Mamãe.
Imagina, querida, nós ainda não tinhamos licença para sair á rua sózinhas!
307
O Cruzeiro. 10 nov. 1928. p. 52.
137
Compreendo a tua indignação, mas eu te confesso que nos faltaria a coragem
para irmos á modista sem Mamãe. Éramos umas bobinhas!! Quando
dansavamos, os nossos pares pousavam apenas os dedos no nosso hombro ou na
nossa cinta, como se nós fossemos pétalas de flôr que não devesse amachucar-se.
A orchestra, coitadinha, era composta apenas do piano, dos violinos e do
violoncello.
A música da valsa dizia-nos: tú és um anjo! A musica do shimmy e do chariston
parece-me que vos diz: - vocês são umas malucas! O 13 de maio das moças
ainda não tinha chegado e, os cabelleireiros só serviam para nos frisar e ondular
o cabello nas noites de theatro e de baile. Lembro-me ainda hoje das lagrimas
que tua mãe e eu chorávamos quando um dia soubemos que o medico mandara
cortar o cabello de uma nossa amiguinha. Todas corremos a consolá-la!
Tua imagem linda está com um retrato diante de meus olhos. Eu te vejo com teu
cabello curto, a tua bocca de carmim, o teu vestido pelo joelho, as tuas pernas de
dansarina, e teus olhos claros que parecem saber mais do que toda a biblioteca de
teu pae.
Tu vives a vida do teu tempo? Está bem. Mas o coração da mulher não mudou
como a dansa e a moda, e a vida não é só a juventude. Dantes, nós começavamos
verdadeiramente a reinar na edade em que vocês são desthronadas. O idolo de
hoje é um esboço de mulher, uma antecipação da mulher, uma mulher que o
homem pode guardar no bolso, mas não no coração.
Como a tua mãe é a primeira a sorrir do que ela chama os meus preceitos da
roça, vae ser preciso que eu te confie os meus receios, que eu cumpra o dever do
meu amor, que eu te estenda de longe a minha mão de viuva e encoste ao meu
peito a tua cabeça de colibri.
Meu Deus! por mais que vocês digam, o mundo não mudou a ponto de poder
desafiar-se a natureza.
Beija-te com saudade a tua tia muito amiga Iracema.
308
Diagramada entre duas colunas com propagandas de chapéus para senhoras e jóias,
a coluna “Carta de mulher”, da página 52, oferece uma noção do pensamento sobre os
assuntos abordados pelas demais colunas da revista. São espaços cheios de símbolos e
significados que fomos analisando no decorrer da análise deste trabalho e dando-lhes um
sentido. Segundo Ciro Flamarion Cardoso, esse sentido permite a “transcodificação”, ou
seja, “a transposição de uma significação de um modo de significar (uma linguagem
semiótica, um código ou conjunto articulado de códigos) a um outro: pode-se, portanto,
esperar esclarecer o conceito por meio de sucessivas operações de transcodificação e da
análise delas”.
309
Para Cardoso, esse sentido ainda é direcionado e “implica
intencionalidade e finalidade. Assim sendo, a produção do sentido, ao dar-se no seio da
práxis (individual ou coletivamente considerada), comporta a possibilidade ou virtualidade
de uma transformação. O sentido deve, pois, ser apreendido simultaneamente como
sistema (estrutura) e como processo, cada uma dessas facetas supondo a outra.”
310
308
O Cruzeiro. 10 nov. 1928. p. 52.
309
CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. São Paulo: Papirus, 1997. p 16.
310
Ibid., p.17.
138
Esse sentido subjetivo e fugaz que O Cruzeiro veio dando às representações do
universo feminino ao longo das edições priorizou uma voz, a daquelas que pertenciam a
uma sociedade que, mesmo se dizendo em transformação, permanecia ainda com alguns
padrões de comportamento do século 19. Essas mulheres e seus acontecimentos não eram
uma preocupação da revista para colocá-las na pauta da semana, mas sim, para conquistá-
las como um público consumidor potencial, que, agora, estava mais receptível em razão
das próprias mudanças sociais que o período trazia. Assim, transformavam-se em alvo da
publicidade e da propaganda de uma sociedade de massa consumidora.
139
CAPÍTULO 3
ANOS DE TENSÃO E CHUMBO: O PERFIL POLÍTICO DA
MULHER EM O CRUZEIRO
3. 1 Voto feminino: uma conquista que vence o preconceito
As mulheres, que na década de 1930 passaram a ser o alvo principal do consumo
industrial e dos meios de comunicação de massa, por serem tidas como um público
potencial ainda pouco explorado e que ascendia profissionalmente nesta nova sociedade
consumidora, ainda estavam longe de conquistar direitos civis elementares das sociedades
democráticas, um das quais era o voto.
O direito de escolher governos e representantes gerou anos de polêmicas. A maior
delas, segundo sugerem as páginas de O Cruzeiro, foi a que classificou as mulheres como
imaturas para o exercício cívico. Manifestações desmerecendo-as e à sua capacidade para
uma participação mais efetiva na vida política do país eram freqüentes na década de 1930,
sendo mostradas em algumas colunas de opinião do semanário. Além de Humberto
Campos, Valdez Corrêa também escreveu um artigo que apresenta quase o mesmo tom,
destacando a incapacidade feminina diante das questões políticas do país. Era 1931 e a
discussão sobre o voto feminino permanecia.
A concepção mostrada por O Cruzeiro era que as mulheres não tinham maturidade
suficiente para entender a complexidade política nem discernimento para escolher
candidatos. Prevaleciam as idéias dos autores homens, de modo que elas não tinham
espaço para se manifestar sobre o tema. A discussão estava apenas começando, afinal, só
três anos depois uma solução foi dada ao debate, concedendo às mulheres o direito de
votar. Porém, como foi mostrado no capítulo 1, foi essa uma condição garantida pela
140
igualdade dos sexos e porque o voto se tornou um ato cívico obrigatório para todos os
brasileiros, inclusive para analfabetos; portanto, não foi apenas um privilegio feminino. Em
fevereiro de 1930, o artigo de Valdez Correa, com o título “O voto feminino” defendia:
Na serie de reformas por que vae passar a nação, uma das mais importantes, sem
dúvida, é a que diz respeito com a parte eleitoral.[...]
O caso será examinado, discutido sob o seu duplo aspecto: - póde a mulher exercer o
direito do voto, isto é, ser eleitora e elegível? Deve exercer esse direito?
Por equidade, nos permittimos dizer que póde. É exacto que scientificamente a
mulher é considerada menor. É este até um dos argumentos de que sempre tem
lançado mão os homens, afim de restringir as funcções femininas, especialmente
no tocante a conservar a mulher afastada da arena política.
A antropologia assegura a inferioridade craneana da mulher, sem distincção de
raça nem de epoca. Os craneologistas dizem que o cerebro da mulher, tanto em
volume, peso especifico como em riqueza encephalica, é igual ao de um menino
de dez annos. Welcker encontra para a mulher actual 1.300 cm.3 e para um
menino de dez annos 1.360 cm.3. [...].
Vejamos: - Uma analyse imparcial mostra-nos que uma grande parte do
eleitorado é composta de analphabetos, ignorantes que não têm a menor noção
do direito que exercem. Uma outra parte constitui-se de alcoolatras, criminosos,
venaes, que vão às urnas sem nenhum espirito de independencia, limitando-se a
votar em quem lhe promette um emprego [...].
Achamos, pois, que a mulher póde ter direitos politicos, assim como ella hoje em
dia já tem outros direitos que em seculos mais recuados lhe eram defesos. Mas
deve ter esse direito? Ahi é que é o ponto grave da questão. Nós podemos muita
cousa que não devemos. Será que a mulher politica não virá prejudicar a futuro
da Humanidade? Será que os deveres politicos não incompatibilisam o bello sexo
com a maternidade? A mulher poderá conciliar a política com o lar? A
americana, a inglesa, prestam-se perfeitamente para a politica. Mas abrasileira
estará nas mesmas condições? A raça, o temperamento, o clima, a educação não
passarão nessa balança? Ainda mais: - Um país de extensão territorial como o
nosso, que precisa ainda ser povoado [...]
311
O artigo reforçava a polêmica e era uma demonstração clara de que a sociedade
ainda não estava preparada para aceitar a inserção das mulheres na política. Argumentos
como esse, que desmerecem a capacidade de discernimento feminino, não contribuíam
para elevar o debate nem para conceder às mulheres o direito do voto. Era o pensamento
masculino sobre o tema que prevalecia, ignorando o posicionamento de quem mais era
interessado no assunto.
Ao chegar ao poder em 1930, Getúlio Vargas iniciou uma política para moralizar as
eleições no país. O voto feminino foi conquistado em 1932, através da criação do Código
Eleitoral, que determinava voto obrigatório para as trabalhadoras do setor público e
facultativo para as demais mulheres. Foi nesse período que surgiu também a Justiça
311
CORRÊA, Valdez. O voto feminino. O Cruzeiro, ano 3, n.17, 28 fev.1931. p. 1.
141
Eleitoral, como meio de fiscalizar as eleições. Outra medida importante desse período foi a
eleição para a Constituição de 1934, que permitiu a votação direta para presidente da
República e fez de Getúlio Vargas presidente eleito.
O Brasil vinha de um período eleitoral considerado fraudulento, uma herança do
predomínio das oligarquias brasileiras, que se mantinham no poder manipulando e
fraudando eleições. Então, muita gente era obrigada a votar à força nos candidatos
indicados pelos pequenos grupos controladores da política.
A votação de 1
o
de março de 1930, com a vitória de Júlio Prestes, foi a “gota
d’água”. Constatada a fraude, os aliados de Getúlio Vargas, candidato derrotado na eleição,
iniciaram o movimento revolucionário que ficou conhecido como a Revolução de 30. O
Cruzeiro acompanhou o desenrolar dessa história, fortalecendo muito a posição dos
revolucionários, o que acabou na deposição do presidente Washington Luís, no dia 24 de
outubro de 1930. Em seguida, Getúlio Vargas assumiu o poder e, com a colaboração de
outro gaúcho, Oswaldo Aranha, planejou a tomada do poder no Catete, uma luta que se
intensificaria após o assassinato de João Pessoa, governador da Paraíba, um dos aliados
dos revolucionários, além dos mineiros, que estavam descontentes com a política do
presidente Washington Luís.
O acontecimento que catalisou a oposição em rebelião armada, foi o assassinato
do ex-candidato à vice-presidência, João Pessoa, da Paraíba. A 26 de julho,
Pessoa saiu sob as balas do filho de um acerbo inimigo político local. Sua morte
não foi atípica entre as sangrentas lutas das clãs políticas da região nordestina do
país. Contudo, nesse momento tenso da política nacional, teve um efeito
traumático, porque Washington Luís havia apoiado o grupo político ao qual
estava ligado o assassino. Os conspiradores indecisos no seio da oposição foram
engolfados pela onda de indignação levantada pelos radicais, de maneira a criar
uma atmosfera revolucionária. Borges Medeiros agora apoiava a revolução e
ajudava ativamente a recrutar comandantes militares para a conspiração.
312
O assassinato de João Pessoa foi registrado com destaque por O Cruzeiro ao
ressaltar que “do chefe entemenato restava apenas um cadáver inanimado, coberto de
flores”. Duas fotos, uma do presidente assassinado, em primeiro plano, e a outra com
simpatizantes em volta do caixão, traduziam o impacto daquela morte na sociedade
brasileira. As legendas contavam como o fato tinha acontecido: “Duas balas haviam
312
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo Branco, 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982. p. 23.
142
traiçoadamente abatido a energia resoluta e inequebrantavel do Presidente da Paraíba”
313
.
A foto de João Pessoa morto ocupou quase toda a página da revista, além da 12, 14 e 18,
que mostraram fotos da multidão nas ruas acompanhando a passagem do cortejo fúnebre.
Os textos-legendas relataram que o assassinato acontecera no dia 26 de julho na cidade do
Recife e que o presidente “fôra em visita a um amigo doente, e onde se haviam refugiado
alguns dos seus mais encarniçados inimigos políticos. O presidente João Pessoa foi
inopinadamente assaltado a tiros de revolver por João Dantas, fallecendo instantes
depois.”
314
Essa morte foi o estopim para que eclodisse a revolução.
Thomas Skidmore diz que essa foi uma revolução de elites, que começou a ser
programada com Vargas incitando os rebeldes gaúchos a marchar em direção ao Rio de
Janeiro. Com lemas como “Rio Grande de pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino
heróico!”
315
, a luta, segundo Vargas, visava garantir a liberdade e reconstruir o país. A
revolução iniciou-se no dia 3 de outubro de 1930 e teve como chefe o coronel Góes Monteiro.
Em novembro de 1930, segundo Skidmore, Getúlio iniciou o governo provisório:
Em novembro de 1930, o líder civil de um movimento armado de oposição,
Getúlio Vargas, tornou-se Presidente do Brasil em caráter provisório. Os
militares mais graduados, dez dias antes, haviam deposto o govêrno legal do
Presidente Washington Luís (1926-30), com isso impedindo-o de dar posse ao
candidato (Júlio Prestes) que, pelos resultados oficiais, havia derrotado Vargas
na eleição presidencial de Março. Pela primeira vez, desde a proclamação da
República, em 1889, o candidato “do gôverno” não conseguia chegar à
presidência.
316
O Brasil, assim como o mundo, passava por uma crise econômica, especialmente
após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, cujos reflexos se fizeram sentir
sobretudo na produção do café. Nesse período a industrialização intensificou-se, o que
Boris Fausto define como um período de maturação, que abrange de 1930 a 1950. E
reforça: “Mas isso não significa que a Revolução de 1930 tenha instalado no poder a
burguesia industrial. O prevalecimento da ordem industrial, para a qual o Estado
desempenhou um significativo papel, resultou de um processo histórico, a respeito do
313
O Cruzeiro. 17 jan. 1931. p. 13. O mesmo texto-legenda e a foto de João Pessoa morto aparecem
também na edição especial O CRUZEIRO. A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio de
Janeiro, nov., 1930. p.13.
314
Id., A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio de Janeiro, nov. 1930.. p. 13.
315
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo Branco, 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982. p. 23.
316
Ibid., p.21.
143
qual vale a pena ressaltar algumas características”
317
. Entre as características Fausto
cita o impulso à ampliação das atividades industriais; a implantação de uma ordem
industrial que trouxe avanços e, ao mesmo tempo, retrocessos, além de que, em alguns
pontos, governo e empresários não se entenderam
318
. Eram tempos marcados pela
passagem de uma ordem agrícola para a urbano-industrial, gerando conflitos e
insatisfação popular, que envolviam desde a exploração da mão-de-obra à falta de
garantias e direitos trabalhistas. Getúlio Vargas foi então lançado pelo Rio Grande do
Sul e João Pessoa, pela Paraíba como candidatos à Presidência da República, com o
apoio da Aliança Liberal, formada por vários partidos, como o Partido Republicano
Riograndense (PRR) e Partido Liberal. Durante a campanha, em grandes comícios os
revolucionários defendiam o voto secreto para aumentar a representatividade política
do povo; a participação de juízes nas mesas eleitorais; medidas econômicas de proteção
a vários produtos brasileiros, entre eles o café; a criação de um código de leis
trabalhistas e a necessidade de industrialização do país, entre outras medidas. Segundo
Thomas Skidmore, eram os nacionalistas semi-autoritários, que se preocupavam com a
“regeneração nacional” e a modernização. Os principais defensores eram os tenentes,
que já tinham organizado revoltas em 1922 e 1924: “Seus adeptos estavam querendo
experimentar formas políticas não-democráticas, de molde a obter as modificações
sociais e econômicas sôbre as quais falavam de modo vago porém apaixonado.”
319
O
nacionalismo defendido pelo governo Vargas era reforçado por alguns veículos de
comunicação de Assis Chateaubriand, como o próprio O Cruzeiro e também O Jornal.
Essa defesa a revista fez através de uma edição especial:
No momento em que utilisa o seu grande prestígio de órgão de opinião na
propaganda patriótica de um nacionalismo econômico, pugnando pela utilisação
das feculas nacionaes na confecção do pão e dos arte-factos nacionaes no
vestuario, O JORNAL inicia a publicação sensacional das memórias inéditas do
marechal Foch, cujos direitos de traducção e publicação adquiriu aos leitores. A
simultaneidade dessas duas iniciativas constitue o certificado cabal de que o
grande orgão da imprensa brasileira não cede da sua alta concepção universalista
317
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1983. 24.
318
A burguesia industrial, no entanto, organizou-se em associações de classes e conseguiu ter influências
no governo. FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia
das Letras: 1997. p.24-25.
319
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo Branco, 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982. p.28.
144
de cultura e totalmente concilia o dever brasileiro de amparar as industrias
brasileiras, fundadas com capitaes brasileiros, utilisadoras de materiais primas
brasileiras, com as normas do mais intenso convivio internacional.
320
Com a industrialização em crescimento no país, no final da década de 1930, o
governo criou uma “política de intervenção estatal”, ampliando, dessa forma, a sua
autoridade para dirigir uma economia de manipulação e intervenção direta. Durante o
Estado Novo, foram fixados os primeiros salários mínimos, além de o Ministério do
Trabalho criar sindicatos controlados pelo governo, com o objetivo de intervir também nas
políticas salariais. Tudo isso era feito com propósitos nacionalistas, esses que foram
estimulados com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, já que havia a necessidade de
muitos produtos que atendessem à demanda, principalmente com a entrada do Brasil em
1942 na guerra.
Foi um governo que manteve firme estreita ligação com os proprietários de veículos
de comunicação, como Assis Chateaubriand. Eram relações de interesses mútuos que
objetivavam a modernização para o país, numa sintonia entre a linha editorial da revista e
os interesses políticos do governo. Para Michel Foucault, as relações de poder agem com
práticas, como se fosse uma “máquina social” que se difunde pela estrutura da sociedade,
“o que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.”
321
É
uma engrenagem de ações que faz convergir diversos interesses políticos e econômicos,
que, como uma “máquina de interesses, propaga-se pela sociedade.
E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seus
exercícios não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada
está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do
poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele
está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças.
E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de
resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda
a estrutura social. Foucault rejeita, portanto, uma concepção do poder inspirada
pelo modelo econômico, que o considera uma mercadoria. E se um modelo pode
320
O Cruzeiro. 24 jan. 1931. p.32.
321
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 14.
145
ser elucidativo de sua realidade é na guerra que ele pode ser encontrado. Ele é
luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se
ocupa, nem um objeto, que se possui. Ele se exerce, se disputa. E não é uma
relação unívoca, unilateral; nessa disputa ou se ganha ou se perde.
322
Nessa política de relações de poder, O Cruzeiro e Vargas exercitaram práticas de
conveniências mútuas que, tanto na comunicação como na política, deram ao país ares de
modernidade e mudanças. Eram ideais reforçados em cada um dos espaços da revista, mas
pelo pensamento masculino, já que as mulheres não se posicionavam a respeito de política,
de economia. Colunistas e repórteres abordavam o universo feminino do sonho, da fantasia
da beleza, de um ideal de comportamento que agradasse aos olhos e que mantivesse as
mulheres em sua antiga condição de submissão, mas, ao mesmo tempo, que valorizasse
nelas o potencial de consumo.
3.2 A mulher na Revolução de 1930
Além de defender o nacionalismo, a revista posicionava-se a favor do governo
provisório de Getúlio Vargas, que começava a se instalar, como fica claro na edição
especial de novembro de 1930, denominada “A Revolução Nacional: documentos para a
História”. A vasta documentação, que por si só daria uma pesquisa, aqui serve para se ter
uma idéia da relação de Getúlio com o veículo de comunicação, que, como já foi mostrado
no primeiro capítulo, foi sempre próxima.
Nos primeiros anos do governo de Getúlio, a revista concedia espaços generosos
aos feitos do governo e aos seus representantes, tanto que quase tudo o que Getúlio Vargas
e seus aliados faziam era registrado nas páginas da revista. A partir da década de 1940 e
com o reforço das intenções de deposição do ditador, O Cruzeiro tornou-se mais crítico e
mudou o enfoque das notícias, passando, então, a criticá-lo.
323
Uma crítica que não faz
parte do “O documento para a história” como definiram os editores, era uma publicação
sobre a trajetória dos personagens que fizeram a Revolução de 1930, cujas intenções e
pretensões constavam no documento especial que circulou encartado na revista em 1930,
322
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 14-15.
323
O tema política em O Cruzeiro, como já foi dito, tem um tom de nacionalismo e de apoio ao sistema
adotado pelo governo da década de 1930, mas, antes mesmo de chegar ao poder, Getúlio Vargas e seus
aliados eram divulgados como heróis, fatos contados em cem páginas, do O CRUZEIRO. A Revolução
Nacional. Documentos para a Historia. Rio de Janeiro, nov., 1930.
146
enriquecido com muitas fotos e discursos na íntegra dos revolucionários e do manifesto
que resultante da convenção de 20 de setembro da Aliança Liberal. O espaço, além de
enaltecer os revolucionários, fornecia detalhes sobre o planejamento e a execução dos
principais fatos da luta. Mostrando-se próxima dos acontecimentos, a revista anunciava na
página 4 do dia 15 de novembro de 1930: “O Cruzeiro e a Revolução Nacional”:
O Cruzeiro consagrará um numero especial, extra-série, á REVOLUÇÃO DE
OUTUBRO.
Este documento extraordinario, em formato album, constará de 100 paginas em
papel de luxo, das quaes 32 em rotogravura e 8 em trichromia, e abrangerá todos
os acontecimentos decorrentes entre a eleição presidencial de 1 de março até á
posse do governo em 3 de Novembro pelo Presidente Getulio Vargas. Além de
uma vastíssima documentação photografica, na sua maioria inédita, este numero
extraordinario terá a collaboração artistica dos consagrados pintores Carlos
Chambelland, Oswaldo Teixeira e A. Rosenmeyer, e a collaboração de technica
de officiaes e cartographos do Estado-Maior do Exercito.
Addicionada á copiosa documentação photographica, a edição de O Cruzeiro
reproduzirá desde a plataforma dos candidatos da Aliança Liberal até a acta da
posse do Presidente Getulio Vargas, todos os manifestos da Revolução, as
Ordens do Dia dos exercitos revolucionarios, o plano da batalha de Itararé, os
discursos e mensagens dos presidentes do Rio Grande do Sul, de Minas Geraes e
da Parahyba, e dos generaes commandantes dos Corpos de Exército.
A capa em quatro côres apresentará uma allegoria á Revolução por Oswaldo
Teixeira. Entre os retratos a côres, cuja execução foi confiada a laureados
pintores, figuram os do inclito presidente da Parahyba, João Pessoa; do
presidente da República Getúlio Vargas, generalissimo da Revolução;
do ex-presidente de Minas, Antonio Carlos; dos generaes Juarez
Távora e Aristarcho Pessoa, respectivamente commandantes dos
exercitos do Norte e do Centro, e o de sua Eminencia o Cardeal D.
Sebastião Leme.
Figuram no numero especial de O CRUZEIRO numerosas
photographias das frentes de combate, a mobilização do Rio Grande
do Sul, os depositos de concentração e estado-maior, os
acampamentos; as linhas de frente da fronteira Paraná-S.Paulo, a
documentação integral de todas as phases da luta iniciada em 3 de
Outubro até á deposição do governo pelas forças militares do Rio de
Janeiro em 24 de Outubro.
A maior revolução da America será apresentada nos seus mais
variados aspectos politicos e militares em uma obra de caracter
exclusivamente documental, que constituirá a mais preciosa e fiel
memória da sublevação nacional de Outubro.
324
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 13 Documento para a História
325
324
O Cruzeiro, 15 nov. 1930. p. 4.
325
Idem., 17 jan. 1931.
147
O “Documento para a história” trouxe na terceira página as fotos de Nilo Peçanha,
Ruy Barbosa e Antonio Carlos Andradas, presidente do Estado de Minas, como os
precursores da revolução de 1930. Isso porque Antonio Carlos era colocado como um dos
responsáveis pela promoção e iniciativa da revolução, o qual levantou as candidaturas dos
presidentes do Rio Grande do Sul e da Paraíba à Presidência e Vice-Presidência da
República; criaram-se assim, candidaturas oposicionistas ao governo da época. Descrevia o
documento que Ruy Barbosa e Nilo Peçanha levaram à Presidência da República o
marechal Hermes da Fonseca e Artur Bernardes, e dizia ainda que: “O insuccesso desses
grandes movimentos de opinião, que mobilisaram para a luta essencialmente democratica
das urnas alguns centos de milhares de eleitores, tinha deixado as oligarchias politicas
compenetradas de que estavam ainda longinquos os tempos favoraveis á pratica dos puros
principios republicanos e á reducção dos poderes eleitoraes do presidente”.
326
O manifesto da convenção de 20 de setembro de 1930, pela Aliança Liberal, foi
publicado em nove páginas, sob o título “A eleição presidencial de 1930 plataforma da Aliança
Liberal”. Com fotos de Getúlio Vargas e dos simpatizantes da Aliança, o manifesto, segundo O
Cruzeiro, sistematizou as idéias e tendências da corrente liberal, que era a plataforma do
candidato à Presidência, Getúlio Vargas. Entre as propostas estavam a anistia partidária, as leis
compressoras da liberdade do pensamento, legislação eleitoral, autonomia do Distrito Federal,
ensino secundário e superior, com liberdade didática e administrativa; ainda se contemplava a
questão social, fazendo referências às mulheres e às crianças, o documento dizia:
Se o nosso protecionismo favorece os industriaes, em proveito da fortuna
privada, corre-nos, tambem, o dever de acudir ao proletariado, com medidas que
lhe assegurem relativo conforto e estabilidade e o amparem nas doenças como na
velhice. A actividade das mulheres e dos menores nas fabricas e
estabelecimentos commerciaes, está em todas as nações cultas subordinada a
condições especiaes, que entre nós, até agora, infelizmente, se desconhecem.
Urge uma coordenação de esforços entre o governo central e o dos Estados, para
o estudo e adopção de providencias de conjucto que constituirão o nosso código
do Trabalho. Tanto o proletariado urbano como rural necessitam de dispositivos
tutelares applicaveis a ambos, ressalvadas as respectivas peculiaridades.
Taes medidas devem comprehender a instrucção, educação, hygiene,
alimentação, habitação; a proteção às mulheres, as crianças, á invalidez e a
velhice; o credito, o salario e até o recreio, como os desportos e cultura
artistica.[...]
327
326
O CRUZEIRO. A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio de Janeiro, nov., 1930. p. 4.
327
Ibid., p. 9.
148
O documento não se esquecia do Exército e das Forças Armadas, do funcionalismo
público, plano financeiro, desenvolvimento econômico, pecuária, café, colonização da
Amazônia, defesa da produção e vias de comunicação, com o plano de viação geral do
país. Além do depoimento de Virgílio de Mello Franco, recolhido pelo próprio Assis
Chateaubriand, sobre como se originou a revolução
328
, a revista publicou o manifesto do
chefe da revolução, Getúlio Vargas. Contendo uma foto do líder, o texto dizia:
O manifesto dirigido á Nação pelo presidente do Rio Grande do Sul e chefe da
Revolução Nacional, sr. Getúlio Vargas, teve uma ampla divulgação no
estrangeiro, sendo publicado na integra pelos principaes jornaes da Argentina, do
Uruguay e do Chile, e irradiado pelas estações de radio. O povo brasileiro, na sua
quasi totalidade, com excepção dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa
Catharina e Paraná, só o leu depois do dia 24, quando, abolida a censura pela
deposição do governo do sr. Washington Luis, foi então dado a conhecer pela
imprensa.
Ninguém ignora o persistente esforço por mim levado a cabo desde o começo da
campanha para a sucessão presidencial da Republica, no sentido de que o pleito
eleitoral se mantivesse rigorosamente no terreno da ordem e da lei. Jámais me
inclinei para a revolução, nem sequer proferi uma palavra de ameaça. Sempre
que as contigencias me obrigaram a falar ao publico appelei para o sentimento e
cordialidade e as inspirações do patriotismo, afim de que a crescente exaltação
dos espiritos não desencadeasse a desordem material. Ainda quando percebi que
a hypertrophia do executivo, inteiramente fóra da medida, absorvendo os tres
poderes, anniquilava o regimen e assumia de maneira extensiva a direcção da
luta eleitoral, em favor do meu oppositor tentei uma solução conciliadora. As
328
“Como se originou a Revolução (depoimento do Dr. Virgilio de Mello Franco, recolhido pelo Sr. Assis
Chateaubriand):
- Depois das eleições de 1
o
de Março, cujos tristes episodios não precisam ser relembrados, a Alliança
Liberal soffreu, indubitavelmente, um colapso, e o desanimo invadiu o espírito de muitos, tanto mais
quanto a famosa entrevista que o sr. Borges de Medeiros concedera sobre o rumo a tomar depois das
eleições foi interpretada pelo sr. Washington Luis como uma capitulação do Rio Grande. Nessas
condições, como todos devem recordar-se, o ex-presidente, julgando-se livre do perigo do pampa,
redobrou de violência contra os Estados de Minas e da Parahyba. O sr. Baptista Luzardo, que ainda não
havia regressado do nordeste, a onde fôra em propaganda eleitoral, chegou ao Rio na primeira quinzena
de Março, partindo immediatamente para o Rio Grande, onde se demorou apenas tres dias, findos os
quaes voltou ao Rio de Janeiro de novo. No mesmo dia de seu regresso, o deputado libertador
convocou-me à sua residencia, e me expoz o ponto de vista do Rio Grande, cujas correntes políticas
entendiam que o caso brasileiro não se podia resolver mais por um processo lento de evolução, mas sim
pela acção direta revolucionária. Assim sendo, o sr. Baptista Luzardo se declarava autorizado para em
nome dos dois partidos gauchos, convidar Minas e a Parahyba para a elaboração de um movimento
revolucionário. [...]
Afinal, depois de dias de espectativa ansiosa, foi marcado, de combinação com Minas e Parahyba, o dia
3 de outubro, às 5 ½ da tarde. Nesse dia, almoçamos juntos Oswaldo Aranha, Mauricio Cardoso e Luiz
Aranha. Poucas horas faltavam para o golpe. As senhoras dos tres, que se portaram com singular
bravura, tambem estavam presentes. Findo o almoço, Oswaldo Aranha e eu saimos a pé pelas ruas mais
movimentadas de Porto Alegre para despistar os partidarios da legalidade federal. Parecia que em cada
physionomia a gente lia o prologo do grande drama. Por que se approximasse a hora eu me despedi,
emocionado, de Oswaldo Aranha, o qual ia se juntar a Flores da Cunha para tomarem o seu posto de
chefes de assalto ao Quartel General, e segui para o meu, ao lado do coronel Góes Monteiro.
Ahi começa outra história, como dizia Kipling, e cujos detalhes já são de todos conhecidos”. O
depoimento tem uma página. O CRUZEIRO. A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio
de Janeiro, nov., 1930. p.16.
149
violências e perseguições previas, como acto preparatorio da fraude, punham em
evidencia que, depois do pleito eleitoral tenderiam a que a cumplicidade de um
Congresso sem comprehensão dos seus altos deveres nos levasse ao ajuste de
contas pelo sacrificio de direitos de todos os elementos incorporados á corrente
liberal.
Sempre estive igualmente prompto á renuncia de minha candidatura, assumindo
as responsabilidades de todas as accusações que, por certo, recairiam sobre mim,
uma vez adoptadas as medidas que satisfizessem as legitimas aspirações
coleetivas, com a acceitação dos principios propugnados pela Alliança Liberal e
a execução das providencias que correspondessem aos desejos generalizados do
povo brasileiro. Esforcei-me tambem para que a campanha continuasse dentro de
um regimen de garantias e respeitos integraes, iguaes a todos os direitos
consagrados pelos suffragios eleitoraes. Sómente tal conducta permittiria que
depois do pleito pudessem os adversários dar lealmente por terminada a luta,
conciliando-se, desde logo, sem resentimentos. [...]
O povo opprimido e vexado, o regimen representativo ferido de morte pela
subversão do suffragio popular, o predominio das oligarchias e do
profissionalismo político; as forças armadas guardas icorruptiveis da dignidade
nacional condemnadas a servir á funcção dos esbirros do caciquismo político; a
brutalidade; a violencia; o suborno; o esbanjamento dos dinheiros públicos; o
relaxamento dos costumes; e coroando esses scenarios desoladores, a venalidade
campeando em todos os ramos da administração publica. [...]
Não foi em vão que o nosso Estado realizou o milagre da União Sagrada. É
preciso que cada um de seus filhos seja um soldado da grande causa..
Rio Grande, de pé, pelo Brasil! Não poderás illudir o teu destino heroico!
Getulio Vargas
Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, chefe da Revolução Nacional.
329
Em seguida eram exibidas em muitas fotos as armas e os soldados que haviam
participado da revolução, sob o título: “O Rio Grande do Sul em armas”. Na imagem da
bandeira do estado gaúcho, a legenda dizia:
A Revolução certificou a conservação das indomaveis capacidades marciaes do
povo rio-grandense e revelou ao Brasil as surpreendentes condições em que o
Rio Grande do Sul pode mobilisar, quando necessário, em breves dias, um
exercito de cem mil homens, que constituiria a muralha solidissima da nossa
fronteira meridional. São alguns dos aspectos da mobilisação rio-grandense,
verdadeiro e impressionante diploma de patriotismo, que reunimos nestas
paginas, que constituem uma lição de enthusiasmo civico.
330
Na seqüência, as páginas traziam a mensagem do arcebispo de Porto Alegre e o
perfil das principais figuras da revolução, como Oswaldo Aranha e Borges de Medeiros;
depois, um espaço para os revolucionários de Minas Gerais, com uma foto do líder
329
O CRUZEIRO. A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio de Janeiro, nov., 1930. p.17-18.
330
Ibid.. p.19.
150
principal Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, ex-presidente de Minas Gerais e promotor
das candidaturas da Aliança Liberal.
Na defesa de Minas Gerais na revolução, Chatô escreveu um artigo com o título “O
berço da Revolução”, no qual expressava:
O papel de Minas na revolução brasileira ultrapassou, sem duvida, o de todos os
Estados que no movimento estiveram envolvidos.
Por isso, mesmo que Minas não é o Norte, nem o Sul, coube-lhe, no grande
drama, que o Brasil vem de escrever o papel de coordenador do espirito
revolucionario e de responsavel maximo pelo desencadeamento da luta.
Gauchos, parahybanos e pernambucanos são obrigados a reconhecer a Minas
essa primazia.
A tradição militar do Rio Grande poderia levar o resto do Brasil a de começo
enxergar na projecção revolucionaria gaucha quer os traços das tendencias
guerreiras do pampa, quer a exaltação do amor proprio regional, ferido ante o
espulho do sr. Getulio Vargas. Da Parahyba se tinha o direito de esperar a
collaboração immediata em qualquer acto de desespero contra o governo do sr.
Washington Luis. As vilanias contra ella praticadas autorizavam-na a todos os
paroxysmos da vingança e da revolta para não se submeter á escravidão. [...]
Foi Minas que levantou o gesto de rebelião contra o Cattete, no caso da escolha
de seu sucessor. A revolução teve inicio nesse desafio da montanha ao poder
pessoal do sr. Washington Luis. E se foi o presidente Antonio Carlos, quem
compoz, com sua lucida visão de homem de Estado, o peludio de revolução,
poderemos dizer que berço do movimento reivindicado tem as suas raizes na
teoria sagrada da Inconfidencia.
Assis CHATEAUBRIAND.
331
Com um tom enaltecedor, o documento especial não deixava de ilustrar os
principais momentos da revolução. Em página inteira, a fotografia de Getúlio Vargas
tomava a maior parte do espaço e a legenda destacava:“O Presidente Getulio Vargas, chefe
supremo da Revolução com honras e poderes de generalissimo acompanhando pela
officialidade do Exercito Revolucionario, na capital do Estado do Estado do Paraná que
adherira á causa revolucionaria.”
332
Com mapas que mostravam a estratégia de combate dos revolucionários desde o
Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas até o Rio de Janeiro, o texto contava em
detalhes como as batalhas eram articuladas e quem dava as ordens de prosseguimento:
Para o combate a Itararé, o grupo de destacamentos Miguel Costa tinha sido
dividido em tres destacamentos, a cada um dos quaes foi dada uma missão
331
O CRUZEIRO. A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio de Janeiro, nov., 1930. p. 44.
332
Ibid., p. 56.
151
distincta. Ao destacamento Silva Junior, o maior dos tres, foi confiado o ataque
frontal, que tinha por fim unicamente fixar o inimigo, pois não contava progredir
deante das poderosas organizações defensivas do adversário. O destacamento
Flores da Cunha recebeu a incumbencia de fazer o ataque desbordante pelo
norte. [...]
333
Além disso, as atas do Exército Revolucionário, publicadas na íntegra,
mostravam como as conquistas iam acontecendo, o seu desfecho, como “a intimação de
rendição às forças de Itararé”. As atas mostravam ainda o anúncio da deposição do
presidente Washington Luis e a constituição de uma Junta Governativa Revolucionária
no Rio de Janeiro.
O documento “A revolução nacional” trazia também a festa da vitória. Em São
Paulo, os revolucionários foram aclamados e Getúlio Vargas foi recebido pelo povo:
No dia 29 de Outubro, vinte e seis dias após a proclamação do estado
revolucionário, o Presidente do Rio Grande do Sul, candidato da Alliança Liberal
á presidencia da Republica nas eleições de Março, chegava a S. Paulo,
acompanhado pelos seus companheiros de armas. O pronunciamento da
guarnição militar do Rio de Janeiro, no dia 24, apressara a victoria da Revolução,
evitando os mortiferos combates em que os soldados do Rio Grande do Sul, de
Santa Catharina e do Paraná iam enfrentar os soldados da legalidade e
suspendendo os movimentos militares das tres frentes de guerra com a
restauração da concórdia nacional.
Desopprimida das appreensões que o immenso conflicto armado gerara em todo
o Brasil, S. Paulo acolheu o chefe victorioso da Revolução como o homem a
quem a Providencia designara para encarnar as aspirações de uma nova era
política, e que restituía ao Brasil a paz alterada pelas dissenções partidarias.
Eram quase 11 horas da noite quando o trem presidencial entrou na estação da
Sorocaba, sendo o chefe da Revolução triumphante conduzido ao palacio dos
Campos Elyscos por entre as calorosas manifestações do povo, que em todo o
longo trajecto não cessou de acclamar o sr. Getúlio Vargas.
334
A revista registrou os discursos feitos pelos revolucionários sobre o ato histórico
brasileiro da conquista do poder através da revolução. As páginas do encarte especial
continham muitas fotos da multidão nas ruas de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro,
em cidades mineiras e da Bahia e Recife, mostrando a empolgação popular com o líder
revolucionário. E na varanda do palácio presidencial, Getúlio Vargas, ao lado de Oswaldo
Aranha, agradecia as manifestações populares, num registro para as páginas de O Cruzeiro.
333
O CRUZEIRO. A Revolução Nacional. Documentos para a Historia. Rio de Janeiro, nov., 1930. p. 66
334
Ibid., p. 84.
152
Segundo a revista, as mulheres, especialmente às esposas dos revolucionários,
teriam participado ativamente da revolução com a Legião da Caridade:
A mulher Brasileira na Revolução as legendas contam que: a senhora Getulio
Vargas, esposa do chefe da Revolução Nacional e actual Presidente do Brasil,
com seus filhos. A Legião da Caridade de que era presidente a senhora Getulio
Vargas, promove uma jubilosa manifestação por occasião da partida para o Rio
da esposa do Sr. Getulio Vargas. A senhora Getulio Vargas e as senhoras João
Neves da Fontoura e Luiz Aranha, por occasião da sua partida de Porto Alegre
para o Rio de Janeiro em hidro-avião.
335
A presença da mulher na revolução mostrada pela revista restringia-se as esposas
dos revolucionários, pelo menos conforme os registros dão conta. Uma edição antes da
matéria citada trouxe uma página totalmente dedicada
para o trabalho realizado pelas esposas dos triunfadores e dizia que as senhoras
Getulio Vargas, João Neves e Luiz Aranha viajam de avião de Porto Alegre ao Rio
de Janeiro pelo hydro-avião “Porygcar”, do syndicato Condor chegaram ao Rio, no
dia 29 de Outubro as senhoras Getulio Vargas, João Neves da Fontoura e [...]
procedentes de Porto Alegre, onde, durante os vinte dias que durou a campanha
revolucionaria, activamente se occuparam nos serviços da Cruz Vermelha e de
assistencia, secundando a abnegação patriotica de seus maridos. As photographias
desta pagina registram os aspectos da chegada das illustres e animosas senhoras,
quando desembarcaram do hidro-avião na Ilha das Enxadas, [...].
336
No dia 29, havia mais notícias sob o título “A mulher brasileira na revolução”
337
. No
texto, a legenda das fotos referia-se à chegada ao Rio das senhoras e senhoritas mineiras que
prestavam serviços de enfermagem e assistência às tropas do batalhão João Pessoa.
O episódio da revolução, que ganhou amplo espaço na revista, continuou a
repercutir por várias edições em 1930 e estimulava os leitores para que enviassem fotos
que ilustravam o acontecimento, as quais vieram de diversas partes do país. Uma delas foi
“a do esquadrão de cavallaria da serra, em Barbacena”
338
, que mostrava os soldados e os
comandantes do destacamento, o qual “tinha por missão a de guardar a serra da
Mantiqueira e operar na vanguarda de Bemfica”. A revista recebeu ainda fotos dos
335
O Cruzeiro. 15 nov. 1930. p. 13.
336
Id., 8 nov. 1930. p. 24.
337
Id., 29 nov. 1930. p. 12.
338
Id., 13 dez. 1930. p. 17.
153
bastidores da revolução, como a do barracão liberal de Carazinho. As sete fotos ocuparam
uma página e as legendas complementavam a informação:
Em Carasinho (Rio Grande do Sul), o sr. Ottomar Fleck, negociante, secundado
pelos srs. Camillo Scherer, Antonio J. Pereira Junior, Jose Biach e Rodrigo
Martinez, organisou com a denominação de “Barracão Liberal”, um serviço de
distribuição de café às tropas em transito para a frente do Paraná.
Foram fornecidas durante os dias de mobilização militar riograndense, mais de
30.000 cafés aos soldados em transito. Esta sympathica iniciativa bem merece
ficar registrada e incorporada a vastíssima documentação photographica de O
Cruzeiro, que até agora tem divulgada cerca de 500 aspectos documentaes da
Revolução.
339
Mas com essa relação de apoio tão próxima de Vargas, a revista era vulnerável e
veio a ruir com o enfraquecimento do governo. Chatô dificilmente se ausentava dos
meandros do poder, mas podia fazer um duplo jogo se este poder estivesse indefinido,
afinal o que não poderia acontecer era que ele perdesse dinheiro e privilégios. Então, fez
um acordo com o brigadeiro Eduardo Gomes e garantiu que o apoiaria à Presidência da
República, concedendo-lhe anúncios gratuitos, além de generosos espaços jornalísticos na
própria revista, nas rádios e nos jornais de sua propriedade. Mas, para não correr riscos,
Chatô fez jogo duplo e prometeu também a Getúlio espaços em seus meios de
comunicação, ainda que torcesse pelo brigadeiro, em cuja campanha ele se envolveu
pessoalmente, como conta Fernando Morais: “Como o resultado das eleições eram
imprevisíveis, ele fazia, no entanto, um jogo ambíguo: tomou a cautela de não deixar sair
na sua rede uma única palavra contra a candidatura de Dutra”
340
. Era preciso que o “poder”
continuasse a dar sustentação a seus projetos; assim, se estivesse se esvaindo, de imediato
Chatô tentaria encontrar outras fontes de interesses, como foi o apoio dado ao brigadeiro,
ao mesmo tempo em que não se esquecia de Dutra. Apesar do duplo comprometimento,
Chatô não poupou críticas a Getúlio e defendeu seus interesses com unhas e dentes.
A campanha dos Associados tornou-se particularmente dura a partir de meados
de 1945, quando Getúlio decidiu baixar o decreto-lei 7666, a chamada Lei
Malaia. Apelidada pejorativamente com esse nome por causa das afeições
asiáticas de seu autor, o ministro da Justiça Agamenon Magalhães (tratado pelos
adversários como “o Malaio”), a Lei Malaia pretendia, dizia o governo, proteger
339
O Cruzeiro. p. 23.
340
MORAIS, Fernando. Chatô o rei do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 455.
154
a economia e as empresas brasileiras contra a ação dos grandes trustes, nacionais
e estrangeiros. Chateaubriand, entretanto, tinha outra interpretação: achava que
havia sido feita sob encomenda para destruir os Associados, pois proibia que
empresas jornalísticas de um mesmo dono pudessem ser acionistas de outras do
mesmo ramo, ou que se fundissem entre si, ou se organizassem em associação ou
agrupamento sob um só controle. Ou seja, a lei impedia tudo aquilo que os
Associados faziam. Em uma transmissão de rádio, durante a campanha do
brigadeiro Eduardo Gomes, um bem-humorado Chateaubriand resumiu sua
opinião sobre a lei, que vinha sendo combatida com vigor por todos os órgãos
Associados: Não pensem que a Lei Malaia é uma lei de Agamenon Magalhães. É
uma lei de Getúlio, Agamenon é apenas seu instrumento. Creio que nunca se fez
no Brasil uma legislação com tal ferocidade, com o objetivo exclusivo de
exterminar uma organização que somos nós, os Diários Associados. Ao nos
defendermos dela, onde arranjaremos tempo para nos organizarmos, arrumarmos
dinheiro, comprarmos máquinas? Mas há muitos anos nossa vida tem sido essa:
defender nosso patrimônio. [...] Nesses últimos anos, minha vida foi estar de
carabina na porta dos Associados para defender este patrimônio. E acho que se
eu não fosse paraibano, e do sertão, esse gaúcho já tinha me comido.
341
O período, entretanto, não era pródigo para Getúlio Vargas, e até mesmo os aliados
do governo estavam se rebelando, quem antes era leal agora, passava a cuidar dos seus
próprios interesses. O comunicado de Góis Monteiro a Getúlio de que ele estava deposto
naquele 29 de outubro de 1945 rendeu na revista nove páginas. Graças à ousadia e à
amizade do fotógrafo Jean Manzon com o major Amílcar Dutra de Menezes, que vinha
ainda dos tempos do DIP, quando aquele fora fotógrafo, a revista foi a única no país a
registrar fotos e a contar o acontecimento em detalhes. Jean Manzon foi o único repórter a
registrar as últimas horas de Vargas em seu
gabinete. Com isso, O Cruzeiro entregou aos
leitores no dia seguinte uma revista repleta de
fotos e textos sobre a deposição do presidente,
com informações que nenhum jornal
conseguira, nem mesmo os do grupo dos
Diários Associados.
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 14 A queda de Vargas
342
O “furo” de reportagem viera com o convite do major: “- Venha fotografar o fim do
Estado Novo. O presidente acaba de ser deposto pelos militares.”
343
Então, o fotógrafo
conseguiu se aproximar do então ex-presidente e, mesmo fitando-o apenas pela objetiva,
conseguiu observar o impacto de Vargas em relação ao golpe:
341
MORAIS, Fernando. Chatô o rei do Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 456-457.
342
A QUEDA de Vargas (continuação). O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 10 nov. 1945. p. 10.
343
Ibid., p.457.
155
“Vargas tem o jeito de um homem cansado, mas atrás de seus óculos de metal
seu olhar ainda está muito vivo e frio ele parece um animal prestes a atacar ou
a defender-se com vigor.” Ao vê-lo, no entanto, Getúlio reage com monotonia:
- Ah, então aqui está o artista que veio fazer o meu último retrato antes da queda, não?
Apesar de embaraçado Manzon continua apertando o obturador da câmara. O
entra-e-sai de gente é muito grande. Só as nove da noite o presidente deposto
parece que vai deixar o gabinete. Agora dá ao fotógrafo a impressão de estar
relaxado e bem-humorado como nunca. Fumando um enorme charuto, abraça
cordialmente João Alberto e, sorridente (“como se estivesse fazendo a coisa mais
natural do mundo”, descreveria Manzon depois), anuncia aos presentes: - Está
tudo terminado. Vou embora. Podemos ir todos dormir.
344
3.3 Acertando os ponteiros: a renúncia de Vargas
Sentindo-se pressionado pelos militares e pela própria opinião pública, Getúlio
Vargas renunciou em outubro de 1945, assumindo, então, o governo o presidente do
Supremo Tribunal Federal, José Linhares. Em dezembro, como o próprio Getúlio já havia
determinado, aconteceram as eleições para presidente, nas quais concorreram o
brigadeiro Eduardo Gomes, pela UDN, apoiado por Assis Chateaubriand, o general
Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD, e Iedo Fiúza, pelo PCB. Eduardo Gomes fez uma intensa
campanha em várias cidades e recebeu o apoio da classe média urbana e da grande
imprensa. Já Eurico Gaspar Dutra representava os setores conservadores do PSD e
representantes do setor industrial. O candidato de Getúlio Vargas era Eurico Gaspar
Dutra, que representava bem seus interesses nacionalistas, enfim, era o mais afinado com
as suas posições políticas naquele período.
Com o título “A queda de Vargas”, como já relatamos, O Cruzeiro foi o único veiculo
impresso a registrar detalhes do episódio. Com fotos dos três principais impulsionadores do
golpe e as frases de efeito que haviam estimulado o ato “Eduardo Gomes, Todo o poder do
Judiciário”; “Góis Monteiro, o Exército garantirá as eleições”; “Eurico Gaspar Dutra,
dormiremos com a consciência tranqüila”, O Cruzeiro definiu-os como os: “três líderes da
noite histórica”. Abaixo do título, apresentava o crédito: “Reportagem fotográfica de Jean
Manzon texto de Freddy”. Dessa forma, O Cruzeiro contou detalhes do episódio, segundo
a ótica do fotógrafo, o que causou raiva e ciúmes aos demais repórteres, que também
esperavam por informações no Palácio Guanabara naquele 29 de outubro de 1945.
Reproduz-se aqui o texto da reportagem sobre aquele acontecimento:
344
A QUEDA de Vargas (continuação). O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 10 nov. 1945. p.458.
156
Acontecimentos importantíssimos são esperados para qualquer momento. A
nação vive horas de intensa preocupação. A campanha do “queremismo” está no
auge e o Ministério do Trabalho prepara a grave geral, em prol do continuísmo.
Getúlio Vargas assina o decreto 8.063. A palavra do Exército está em jogo. É um
desafio do Ditador às forças armadas. Os generais formulam um “memorandum”
que é enviado ao Catete, nos seguintes termos: revogação do decreto ou entrega
das interventorias ao Poder Judiciário, Getúlio Vargas nega-se. E nomeia,
inesperadamente, seu irmão, o sr. Benjamim Vargas, Chefe de Polícia. O
Ministro João Alberto, por sua vez, vai ocupar o lugar do Prefeito, sr. Henrique
Dodsworth, ao qual é oferecido o Ministério do Exército. Os meios oficiais e a
opinião pública estão estarrecidos. O sr. Benjamim Vargas, em companhia do Sr.
João Alberto, do Comandante da Polícia Especial, do Sr. Epitácio Pessoa
Cavalcanti e do Sr. Eurico Souza Gomes, dirige-se ao Palácio da Guerra, a fim
de transmitir ao General Góis Monteiro o novo rumo da política ditatorial,
afirmando ainda que não havia clima para as eleições de 2 de dezembro. O
Ministro da Guerra imediatamente pediu a presença de todos os generais,
comparecendo também o Brigadeiro Eduardo Gomes e o General Eurico Dutra.
Renuncia do Ministro da Guerra
Colocando-se ao lado de seus companheiros de armas, o General Góis Monteiro
solicitou prontamente a sua demissão, assumindo, porém, a pedido dos chefes
das fôrças armadas, a chefia do movimento. Decidiu-se, assim, que o Exército
não poderia ser afrontado pelo Ditador, cujas maquinações, para não realizar as
eleições honestas e continuar no poder, eram mais do que evidentes.
A Policia Especial guarnece o Palácio Guanabara
Eram precisamente 19 horas quando tôda a polícia do Capitão Queiroz rumou
ruidosamente para a residência do Sr. Getúlio Vargas. Cêrca de quatrocentos
homens entrincheiraram-se, armados com material moderníssimo. Mas a essa
altura dos acontecimentos os chefes militares davam ordem ás fôrças
mecanizadas para deixar a vila Militar, com destino à cidade. Da reunião dos
militares ficou decidido o envio de um “ultimatum” ao Ditador, cabendo o
comando em chefe das fôrças de terra ao General Góis Monteiro. Imediatamente
foi escolhido o nome do General Cordeiro de Farias para chefe do Estado Maior
das Fôrças.
A essa altura dos acontecimentos, o Sr. Agamenon Magalhães e o General Firmo
Freire dirigem-se ao Palácio da Guerra e tomam conhecimento da deliberação
das classes armadas.
- Ás 21 horas e meia diz o General Cordeiro de Farias o Sr. Agamenon, o
General Firmo Freire e eu, fomos ao Guanabara, para em nome do General Góis
Monteiro, dar conhecimento ao Sr. Getúlio Vargas dos acontecimentos que se
desenrolavam e formular a S. Excia., em nome do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica, o seguinte apêlo:
As Fôrças Armadas confiavam no espírito de renúncia e patriotismo do Sr.
Getúlio Vargas a fim de evitar o ensanguentamento da família brasileira, com a
declaração espontânea de que as classes armadas, apesar de sua firmeza, não
desejavam uma luta, principalmente nas regiões em que estavam sediados os
palácios do Governo.
Diante dessas afirmações categóricas o Sr. Getúlio Vargas “renunciou”. Mas na
realidade o ato era uma deposição inexorável. Êstes acontecimentos vieram
demonstrar a completa inutilidade da presença da Polícia do Sr. Queiroz e,
assim, logo foi transmitida ordem para que os choques regressassem ao quartel.
Estava deposto o Ditador.
Nesta ocasião o Ministro José Linhares já fôra avisado por telefone de que o
Govêrno do pais lhe seria entregue, na presença de todos os chefes das fôrças
armadas. Pouco mais tarde chegavam à residência do Ministro José Linhares o
General José Pessoa, o Almirante Adalberto Lara de Almeida e o Brigadeiro
Pederneiras. Comunicaram, oficialmente, a decisão dos chefes militares. E
decidiu-se ainda que o ato de posse tivesse lugar imediatamente.
Com estas notícias, verifica-se a renúncia de todo o Ministério do Ditador. Uma
guarda do Exército mantém o Presidente no Guanabara. Ninguém pode
abandonar o Palácio. Não se sabe do paradeiro do “coronel” Benjamin Vargas,
157
“pivô” de todos os acontecimentos. Seus chefes de gabinete, Srs. Nelson Batista
e Renato Bandeira, desapareceram da chefatura da polícia precisamente às 19
horas. Não durara, pois, mais de três horas a nova chefia de Polícia.
Mas verifica-se ainda um forte movimento “queremista”, alheio aos últimos
acontecimentos. Assim, o Sr. Segadas Viana tenta, num golpe desesperado,
deflagrar a greve geral dos transportes, alegando que forças “reacionárias”
ameaçavam o govêrno “democrático” do Sr. Getúlio Vargas. Tudo, porém, inútil.
A Ditadura está morta. O Presidente do Supremo Tribunal Federal já está à testa
do Gôverno.
E quarenta e oito horas são concedidas ao Ditador para arrumar a bagagem. Um
avião o levará para S. Borja. Esta a decisão do novo Gôverno.
No palácio da Guerra
Enquanto os acontecimentos se sucedem no Guanabara, o General Góis
Monteiro faz a seguinte proclamação ao Exército:
“O General Pedro A. de Góis Monteiro, em nome das classes armadas, declara
que o Exmo. Senhor Presidente da República, diante dos últimos acontecimentos
e para evitar maiores inquietações por motivos políticos, se afastará do govêrno,
transmitindo o poder ao Presidente do Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Presidente fará uma proclamação ao povo brasileiro, concorrendo com sua
renúncia e alto patriotismo para quem a ordem pública não sofra soluções de
continuidade e se mantenha inalterável o prestígio do Brasil (a) General Góis
Monteiro.”
Logo após essa proclamação teve lugar a posse do Ministro José Linhares,
cabendo ao General Góis Monteiro saudar o novo Presidente, que, respondendo,
de improviso, salientou que tôda a sua vida sempre fôra dedicada à magistratura
e era, pois, com o maior orgulho e honra que assumia a suprema chefia do país,
onde iria desenvolver todos os esforços para ser, apenas, juíz.
Jamais havia transgredido com a sua consciência, e, agora, como Chefe da Nação
Brasileira, podia afirmar que cumpriria, devotadamente, os seus deveres.
Os ministros já escolhidos
O Presidente da República concedeu, em seguida, breve entrevista à imprensa.
Disse que estava sendo organizado o seu Ministério. Confirmou então, alguns
nomes que os jornalistas apontaram: Justiça, Prof. Sampaio Dória, Educação,
Prof. Leitão da Cunha; Aeronáutica, Brigadeiro Armando Trompowsky,
Exterior, Embaixador Leão Veloso; Fazenda, Pires do Rio; Marinha, Almirante
Jorge Dodsworth Martins.
O Presidente da Republica, no correr de sua palestra, reiterou suas declarações
anteriores, no sentido de que as eleições se realizariam a 2 de dezembro próximo.
O Presidente da República foi cumprimentado, por fim, pelos membros da
magistratura, que o homenagearam.
345
As páginas recheadas de fotos dos principais autores do golpe, entre eles o
brigadeiro Eduardo Gomes, Gil Castelo Branco, Milton de Freitas Almeida, Cervasio
Duncan, Brigadeiro Carpenter, Newton Cavalcanti, general Cordeiro de Farias e Almirante
Vieira, além dos já citados, Góis Monteiro, Eduardo Gomes, Eurico Dutra, e legendas
complementavam o texto, com revelações de que houvera uma revolução, mas que não
tinha sido disparado nenhum tiro. Segundo o texto, o brigadeiro Eduardo Gomes, durante
todo o desenrolar dos acontecimentos, mantivera-se em comunicação com seus
companheiros. E ainda: “As fôrças motorizadas do Exército, sob o comando do General
345
A QUEDA de Vargas. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, nov. 1945. p. 9,10,11,14,15.
158
Álcio, garantiram o “contra-golpe branco que depôs Vargas.”
346
Também as legendas
informavam que “Fuzil-metralhadora, postado diante do Hotel Glória, guarnece uma das
principais vias de acesso ao Catete e ao Guanabara”
347
; “Bem adiante do Portão do
Guanabara, caminhões pertencentes às forças motorizadas do Exército permanecem em
guarda, esperando a saida do ditador deposto. Havia cêrca de quatrocentos homens da
Policia Especial, entrincheirados no Palácio Guanabara, para oferecer resistência às forças
armadas do Brasil.”
348
Em uma outra foto, a revista mostrava que soldados dormiam com
fuzil na mão em frente ao palácio do governo, enquanto outros guarneciam o local. A
legenda dizia: “Vinte e quatro horas sem dormir. Êstes soldados, após uma longa noite de
vigília, repousam alguns momentos”.
349
Na mesma edição da reportagem que acabamos de descrever sobre o que a revista
denominou de “A queda de Vargas”, O Cruzeiro dedicou ainda outros espaços, como o da
coluna “Sete dias”, que trazia o título “A semana deixou estas lembranças”, assinada pelas
iniciais F. O. Nela o autor fazia uma análise da deposição de Getúlio Vargas e traçava um
paralelo desse fato com o mundo em mudança, dizendo que o fim de guerra trazia um
sentimento de liberdade e emancipação do espírito humano que tomava conta das mentes,
um sentimento de um mundo que estava desvalido no tempo, como enfatizava. No
primeiro parágrafo F. O. comentava o episódio dizendo:
Acertamos os Ponteiros de nosso relógio pela grande hora do mundo novo. Este
deve ser o sentido mais profundo do colapso em que entrou o consulado do Sr.
Getúlio Vargas. Todo govêrno que quiser legitimar suas autoridade tendo hoje a
uma crescente diminuição da violência. O ditador exasperou-se e caiu. Servindo
esta ordem de idéias para explicar a origem da deposição de 30 de outubro, serve
igualmente como uma advertência na qual ressos o próprio sentido da vida do
após-guerra. Aqui e em outras partes do mundo, os resíduos do fascismo, ainda
latente nas esferas econômicas, políticas, moral e espiritual, estão sendo cada vez
mais anulados, e anulados serão de tal forma que se torna impossível a sua
reorganização como fôrça contrária á maior emancipação do espírito humano.
Nossa cultura e nossa civilização, nossos valores e concepções da vida chegaram
a um tão admirável grau de amplitude e universalidades, que dificilmente
poderemos hoje encontrar díques para transforma-los em gelados poços de
estagnação.
350
346
A QUEDA de Vargas. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, nov. 1945Ibid., p. 14.
347
Ibid.
348
Ibid., p.15.
349
Ibid., p. 14.
350
O Cruzeiro. 10 nov. 1945. p. 6.
159
O episódio de 29 de outubro foi ainda bastante explorado por O Cruzeiro em edições
posteriores. Numa delas, Austregesilo de Athayde sintetizou o sentimento dos dirigentes da
revista sobre um relacionamento que já não servia mais aos interesses do conglomerado de
comunicação dos Associados e que, acima da defesa dos princípios da República, como
escreveu o autor em sua coluna, estava a ruína de quem ajudara a criar a revista, que, no
entanto, já não expressava a força do poder; por isso, era preciso combatê-lo:
Disseram ao ditador: “Tome o seu chapéu e retire-se”. E êle obedeceu, não sem
postular pequenos favores e gaguejar algumas desculpas.
Um fim sem grandeza, sublinhado pelo sorriso alvar de sempre, próprio dos
entremeios do caudilhismo fronteiriço.
Algo de humilhante para os que o combatiam tão duramente, porque viram que
estavam combatendo uma sombra.
FAÇAMOS o voto solene de não permitir jamais que a República se desvaneça
em semelhante abismo, na negação dos seus grandes princípios, no desastre das
suas fórmulas posteriores.
Gerações e gerações lutaram pela liberdade republicana, desde Tiradentes,
sagrado no martírio imposto pelo absolutismo, até os seus apóstolos
contemporâneos, como Rui Barbosa, a voz profética das amarguras que
acabamos de sofrer. O que aconteceu foi a punição de erros imensos que não
podem ser repetidos, pois que tanto importaria em voltar a nação ao
desagregamento e à morte. República é sinônimo de tolerância, legalidade,
representação e justiça. É a própria emanação dos direitos solenes do indivíduo, das
prerrogativas e franquias do cidadão. República e liberdade são palavras que
traduzem uma mesma única realidade: o predominio das maiorias nos governos
oriundos do povo, respeito às minorias organizadas e possibilidade de progresso
social, no reconhecimento da completa igualdade de todos perante a lei.
351
Meses antes, a revista havia publicado uma reportagem sob o título “Encontro da meia
noite”, com fotos de Jean Manzon e texto de David Nasser. Em tom subjetivo e misturando
fatos atuais com uma ficção criada pelos autores
352
, o texto revelava diálogos de Getúlio
Vargas com o brigadeiro Eduardo Gomes
353
e deixava no ar a suspeita de que “o poder estava
351
O Cruzeiro. 17 nov. 1945. p. 5.
352
Uma velhicima lenda grega afirma que, à meia-noite, as almas dos vivos se desencarnam,
temporariamente, e se reunem em certos desconhecidos lugares, para dizer coisas que, à luz da razão,
jamais diriam. Valendo-se de um dos seus extraordinários recursos, dois dos mais famosos repórteres do
Brasil, David Nasser e Jean Manzon, conseguiram localizar esse misterioso solar e a Câmara mágica e
privilegiada fez o trabalho. Os leitores observarão nos tipos certas transformações. A isto devem atribuir a
diferente maneira que as pessoas aparecem aos nossos olhos. O espirituoso e mais sincero e mais honesto
e não faz deformações para melhor e sim para pior. Resta-nos desculpar a ausência do ex-deputado
Barreto Pinto, entre os retratados. É que a objetiva dos nossos não possuía micro-lentes para fotografar
insetos em sua faina. E as almas, por um milagre celestial, aparecem nesse conclave à meia-noite com a
sua estatura moral, e não física. Desejamos ainda advertir que todas as semelhanças desejam, com tôda
fôrça, ser propositais e um pouco mais que simples coincidências. Entremos, portanto, no solar das almas”
(ENCONTRO da meia noite. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 19 maio 1945. p. 9).
353
Parte do diálogo revela: “Segundo após uma farda, brilha às velas daquele solar. O Brigadeiro Eduardo
160
em ruína”, ou seja, o governo de Vargas estava acabando; assim, a revista se adiantava, afinal,
muitos militares leais a Getúlio já começavam a se manifestar contra o governo na tentativa de
depor o presidente e se articular para eleger um novo governo. Era uma insinuação obscura e,
no decorrer da reportagem, ia-se mostrando os problemas que assolavam o governo. Entre os
diálogos, estava um desabafo de Getúlio Vargas a José Américo:
Meus cabelos ficaram brancos, no serviço de minha pátria. Sacrifiquei minhas
melhores horas, meus melhores dias, perdi anos que poderia ter dedicado a
outras coisas. E agora, vocês querem rebaixar minha Avenida para simples rua!
Não consentirei nessa monstruosidade.”
354
Em um outro: “José Américo diz a
Getúlio Vargas: “- Eu não o traí. Eu o avisei, porém, você não quis me ouvir.
Preferiu acreditar nas megalomanias do capitão do DIP. O resultado foi essa
transformação.
355
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 15 Samaritana Brasileira
356
Gomes, absolutamente calmo, sem perder a gravidade, senta-se numa das cadeiras distantes e
permanece silencioso. Getúlio, de longe, dirige-se à ele:
Bem, senhor brigadeiro, estamos aqui para conversar.
Tudo quanto, tínhamos para dizer, foi dito.
Quando?
Em seu discurso e em minha resposta.
O discurso do Campo do Vasco? Ora, brigadeiro, aquilo é uma peça de sabor popular, apenas para
efeito sobre as massas. Entre nós a linguagem é outra.
Senhor presidente: uso uma linguagem, tanto para cima quanto para baixo.
Quem está em cima?
O povo.
Um mosquito achou a porta aberta, vêm entrando e falando. O brigadeiro se volta, curioso, sem
perguntar quem é Mas o General Flores, à gancha, interroga:
Quem é êsse fenômeno?
Getúlio esclarece:
O antigo deputado Barreto Pinto.
Nossa! Ele não era dêsse tamanho!
É, mas houve um milagre celestial, segundo o qual tôdas as pessoas teriam, fisicamente, sua estatura
moral.
Flores olha para o espelho e se benze:
Graças a Deus fiquei no mesmo.
Soam passos lá em baixo, na estrada. Os presentes vão até à janela para ver quem é.
Uma sombra de “pince-mez” anda, vagarosamente, de cabeça baixa, e monolongando uma frase, uma
frase apenas:
“Clevelândia [...] Clevelândia[...].”
Flores reconhece o homem
É o Artur Bernardes. Nosso aliado.
Getúlio sorri para o brigadeiro:
Ele é democrático, também agora?” [ continua na p.16] (Ibid., p.14).
354
ENCONTRO da meia noite. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 19 maio 1945. p. 14.
355
Ibid.
356
O Cruzeiro. 19 set. 1942.
161
As críticas ao governo Getúlio eram enfáticas e mostravam que a revista não estava
interessada em amenizar o problema gerado na política brasileira com a deposição do
presidente. Era uma crítica muito específica ao regime ditatorial: “O Governo arbitrário
caiu apodrecido, sem um gesto de dignidade e beleza. Provou-se que estava vivendo da
tolerância das classes armadas e quando essas, percebendo que o usurpador tentaria a
guerra civil para salvar-se, resolveram alijá-lo, a nação inteira aplaudiu-as e os poucos
interessados que discordaram não foram suficientemente bravos para manifestar-se.”
357
Com as informações trazidas aqui sobre a deposição do presidente Getúlio Vargas
pelas páginas da revista queremos mostrar que existia um jogo de poder e interesses entre O
Cruzeiro e Vargas. Procuramos, dessa forma, contextualizar um pouco da história do Brasil
através das páginas da revista, que, como ficou claro, é uma história política com pouca
participação das mulheres, já que as colunas e reportagens ignoram qualquer posicionamento
feminino; até mesmo as colunistas que escreviam toda a semana para a revista não
expressavam a posição da mulher sobre os fatos que contamos aqui, apenas registros das
esposas dos revolucionários em atividades de reforço as tropas. Os temas políticos
relacionados ao poder eram praticamente inexistentes em colunas como “Donna na
sociedade e da mulher para a mulher”. A política e os acontecimentos que envolviam as
decisões mais importantes do país eram abordados amplamente em diversas páginas da
revista, contudo, nos espaços femininos, seguia-se falando de moda e de comportamento,
nada que se relacionasse à realidade política daquele momento, ainda que isso não signifique
que as mulheres não estivessem protagonizando acontecimentos políticos importantes.
3.4 Uma vítima de guerra: Margarida, a falsa espiã
O período que vai de 1930 a 1945, definido como o entreguerras e, depois, em
1939, efetivamente com a Segunda Guerra Mundial, influenciou profundamente a
sociedade mundial. Foram anos de agonia política, econômica e social, os quais a
humanidade atravessou com um forte sentimento de esperança de que a paz chegaria. O
governo de Vargas não tomou partido nos primeiros anos de guerra e manteve vínculos
tanto com os nazi-fascistas como com os países aliados. Entretanto em 1942, Vargas
autorizou os Estados Unidos a instalarem bases militares no Nordeste brasileiro,
declarando, dessa forma, guerra ao Eixo, que chegou a controlar a maior parte da Europa,
357
O Cruzeiro. 17 nov. 1945. p.5.
162
norte da África, China e Ásia e era formado por Itália, Alemanha e Japão; com isso, os
brasileiros acabaram se envolvendo com a guerra. As mulheres, mesmo não estando na
linha de frente dos combates, contribuíram com as organizações humanitárias, entre elas a
Cruz Vermelha. O Cruzeiro definia-as como as samaritanas brasileiras e dizia que a
Cruz Vermelha Brasileira, sociedade por todos os títulos benemérita, tem
desenvolvido os maiores esforços, recrutando, em suas diversas seções,
voluntárias para atender aos diversos serviços necessários a uma nação em
guerra. Centenas de jovens e senhoras, brasileiras e estrangeiras, estão prestando,
neste momento, sua cooperação desprendida, na mais bela cruzada de boa
vontade.
358
Além do tema que envolvia a Cruz Vermelha e que falava do trabalho das mulheres,
a revista registrava as notícias vindas das agências internacionais sobre a Segunda Guerra
Mundial e reportagens autorizadas pela censura: “Reportagem aprovada pela censura
militar, em nove de junho de 1945”. A matéria de Jean Manzon e David Nasser, tratava da
“Neurose de guerra”:
Trataremos aqui, de uma história, trágica e dolorosa história, em que são
personagens os Homens Esquecidos [...] Êles, somente êles, não nos poderão
entender: perderam a lucidez nos campos de batalha e voltaram à Pátria que os
esperou em lágrimas, angustiada, porque não a podiam ouvir, nem entender seus
aplausos. Mas, esta é também uma história para que não nos esqueçamos.
Sempre os ventos da discórdia laçaram as sementes da guerra entre os povos que
combateram pela liberdade e pelos direitos do homem que as figuras sombrias
dêsses “mutilados mentais” pesem no julgamento de cada atitude. E esta é,
também e finalmente, a história de uma estranha homenagem: a que nunca foi
prestada. A homenagem de uma gente humilde, que no cais do pôrto aguardava o
navio dos expedicionários, e que desejava carregar e abraçar aquêles homens,
mas não podia fazê-lo, porque êles, eram êles, os Homens Esquecidos.
359
358
O Cruzeiro. 19 set. 1942. p. 3. A reportagem segue ainda nas páginas 62 e 63.
359
A reportagem segue dizendo que: No mais aceso da luta, uma equipe de homens admiráveis, chefiados
pelo General Souza Ferreira, diretor de Saúde do Exército, pelo Coronel Marques Pôrto e outros
oficiais superiores, - realizavam uma das mais difíceis e nobres tarefas desta guerra, salvando vidas em
plena frente de combate, removendo feridos para a retaguarda, transportando-os para a pátria, utilizando
de todos os recursos disponíveis, terrestres, aéreos e maritmos. Para que essa missão de Saúde do
Exército Expedicionário Brasileiro seja perpetuada, um dia a narrativa completa será feita. Limitou-nos
hoje a fixar um dos ângulos mais doloroso dêsse conflito que envolvem a humanidade: a neurose da
guerra.[...].
A legenda desta mesma página registra ainda a chegada dos expedicionários brasileiros que foram para
163
Os anos de guerra incentivaram O Cruzeiro a lançar encartes especiais na
revista. No Suplemento de Guerra lançado em 11 de novembro de 1944, traziam-se
mapas, as estratégias e uma declaração que tinha por título “Rio de Janeiro novembro
de 1944”
360
. No texto, a revista fazia uma defesa das forças aliadas e noticiava-se que
os Estados Unidos, na pessoa do presidente Roosevelt, com habilidade, não aceitara as
provocações do fascismo chinês; com isso, impedira-se um perigo ainda maior ao
mundo haviam-se evitado, maiores dificuldades às Nações Unidas. Eram tempos de
mudanças trazidas com a guerra, e a revista tentava explicar essas transformações que
vinham com o crescimento industrial e com as mudanças de comportamentos da
população, influenciadas pela indústria do cinema, pela cultura de massa que arrastava
a guerra: O povo os recebeu com lágrimas Aquela gente humilde que estava no cais do pôrto do Rio
trabalhadores duros e calejados acompanhou com lágrimas nos olhos a descida dos expedicionários
brasileiros que voltaram da frente de batalha com neurose de guerra. Eles olhavam a multidão
indiferentes a tudo (Id., 12 dez. 1942. p. 3).
360
Diz o texto: A Decisão militar da guerra atinge o ponto culminante, com os rudes combates já dentro de
solo própriamente alemão. Isso significa, como tem acentuado o marechal Stalio aos seus soldados,
maiores e mais sangrentos combates. Os nazistas, pelo fanatismo de que são datados, e pelo mêdo inato
que constitui a sua formação moral, oferecerão a mais tremenda resistência numa tentativa de levar os
aliados a um entendimento favorável.
Demore um mês, ou vários meses, a derrota alemã está determinada pela decisão das Nações Unidas em
reunir suas tropas vitoriosas em Berlim. Aachem arrasada pela artilharia e pela aviação dos norte-
americanos é uma prova eloqüente de que nenhum obstáculo impedirá a marcha vitoriosa dos exércitos
aliados.
Os alemães sabem disso. Os russos repetem isso todos os dias. Os anglo-americanos, por sua vez, não
diminuem seus golpes para abrir caminho até Berlim.
Ao lado dos problemas militares, naturalmente de solução mais complicada para os aliados, há os
problemas políticos, também de muito mais difícil entendimento entre os aliados. Se os nazistas
constituem um só bloco, com finalidades determinadas, os aliados têm que dosar de grande espírito
compreensivo as suas relações, em virtude mesmo da diversidade política-econômica de suas
organizações estatais. O objetivo que as Nações Unidas buscam, porém, é o clima favorável aos seus
entendimentos. Esse objetivo, mais de uma vez apontado pelos responsáveis aliados, é antes de mais
nada o esmagamento total do nazismo na Alemanha e do fascismo em todo o mundo. A união militar
para a vitória é uma realidade em marcha vitoriosa. E todos os esforços estão sendo feitos para que a
união vitoriosa na paz se torne cada vez mais sólida, para que depois de tantos sacrifícios não te perca a
oportunidade para dar ao mundo uma vida mais digna, mais fraternal e mais confortável.
Naturalmente, em virtude da plasticidade dos regimes democráticos, muitos fatos têm ocorrido nas
Nações Unidas, que parecem perigosos para a unidade democrática no mundo de após guerra. Êsses
fatos, todavia, ainda são esperneios do fascismo, quer na Argentina, quer na China, na Espanha ou
noutros paises. Os elementos fascistas ainda existentes nesses países, mais para salvar a própria pele de
que sobrevivência do fascisismo, tudo têm feito para criar obstáculo à unidade em seus próprios paises.
O último caso e que poderia assumir proporções perigosas, verificou-se na China. Não fosse a
habilidade do Presidente Roosevelt recusando-se a aceitar as provocações fascistas na China, e a guerra
no Oriente poderia tomar um rumo muito difícil para as Nações Unidas. A solução mais aconselhável
foi encontrada, todavia, e o esmagamento do Japão chegará no dia previsto.
Outros casos têm surgido como o da Espanha, que os republicanos oportunamente resolverão a
contento das democracias.
Superando êsses restos da malenlundidas provocadas pelas tendências fascistas de certos governos,
como o do governo polonês exilado em Londres, as vitórias militares vão aplainando tôdas as
dificuldades. Na frente oriental, os exércitos russos, apoiado pelos guerrilheiros do Marechal Tito e
pelos exércitos filandeses, poloneses, romenos e gregos vão arrasando as últimas resistências nazistas, e
que acontece também em tôdas as demais frentes de combate. O Cruzeiro. nov. 1944. (Suplemento de
Guerra).
164
as populações para comportamentos novos, ao mesmo tempo em que trazia a esperança
de uma civilização mais consciente, como mostra este texto da revista: “Este menino
fez bem ao nascer hoje. Seus pais vieram de uma geração de guerra e êles próprios
pertencem a uma geração de guerra. Cuidarão para que isso não se repita pela terceira
vês. E as origens de tôdas as guerras e de todos os males serão atingidas, nesta hora em
que se cuida da salvação da raça humana.”
361
Apesar da guerra o dia-a-dia das pessoas prosseguia e novos comportamentos
surgiam: “Os elegantes rapazes poderão continuar a freqüentar as manicures e brilharem
suas unhas, que nada impedirá a consumação dessa inocente vaidade. Apenas certos limites
serão estabelecidos e certos deveres serão impostos. No mundo que hoje surge, todos os
seres válidos terão que trabalhar, sejam quais forem suas mãos”.
362
Mas a civilização do
pós-guerra precisava muito das mãos calejadas para reconstruir o mundo: “Mãos calejadas
de operários não se afastarão das máquinas, porém êste país precisa de outras mãos, um,
dois, três milhões de mãos, que o tornarão uma potência industrial, que farão erguer a nível
de vida, que melhorarão as condições em que se encontram as nossas abandonadas,
imensas e infelizes populações rurais”.
363
O momento
era de incentivo à industrialização e ao desenvolvimento
do país, esse que, segundo O Cruzeiro, não tinha lutas
de classes, mas uma luta de castas: “O chapéu da
madame viverá sempre. A verdade é que a luta de
classes não existe no Brasil. Há sim, a luta de castas,
mas êste é um país quase sem grandes fortunas e essas
mesmas fortunas nascem e se volatizam fácilmente. A
inflação faz milionários e o ‘pif-paf’ também o faz. Não
há um problema insolúvel”.
364
Fonte: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Porto Alegre, RS.
Figura 16 Margarida, a falsa espiã
365
Os problemas, nesse mundo novo, eram muitos, mas os heróis e as heroínas surgiam
para ajudar a resolvê-los, dizia a revista, trazendo o exemplo da chinesa Chiang-Kai-Chek.
Essa mulher era defendida como uma das personalidades do mundo moderno, filha do
361
O Cruzeiro. 12 maio 1945. p. 14.
362
Ibid.
363
Ibid.
364
Ibid.
365
Id., 24 nov. 1953.
165
fundador da República Chinesa e apontada como uma das lutadoras pela democracia.
366
Além disso, havia as heroínas da Cruz Vermelha e as esposas de grandes líderes, como a
do presidente dos Estados Unidos Roosevelt
367
; portanto, os anos de guerra não deixavam
apenas saldos de mortos e heróis, mas marcas de um jogo estratégico de interesses, cujos
personagens não se restringiam a sexo nem a nacionalidade. Na defesa de interesses que
surgem nas guerras de um lado ou de outro, buscando informações que possam levar a
ganhar espaços e até a própria guerra, muita gente foi usada. Mulheres como Margarida
Hirschman, que servira de espiã para os nazistas, foi motivo de polêmica nas páginas de O
366
A Grande Heroína Madame Chiang-Kai-Chek é uma das mulheres de maior personalidade do mundo
moderno. Filha do fundador da República Chinesa, grande Sun-Lat-Som, herdou-lhe o espírito de luta, o
amor à democracia e ao seu povo. Madame Chiang-Kai-Chek é, além do mais conselheira fiel de seu esposo,
o generalíssimo chinês, que lhe deve as melhores inspirações políticas e sociais, como aquela do assinar, com
sangue, o compromisso com as forças que se o detiveram para convencê-lo a prosseguir na luta contra o
invasor nipônico. A gravura mostra insigne dona chinesa ao lado do seu marido e do general norte-
americano Joseph Stilwell, chamado pelos chineses de General Sze. O General Stilwell fala corretamente o
chinês e é um ídolo das tropas da terra de Chiang-Kai-Chak. Ele é autor da frase grata aos chineses.
“O dia mais feliz de nossa vida será quando as tropas chinesas e americanas entrarem juntas em
Tóquio”. O Cruzeiro. 12 dez. 1942. p.3.
367
A Mulher de Roosevelt Lucia Benedetti No momento mais difícil de sua vida, Eleanor Roosevelt
revelou-se heróica. No instante em que desaparecia Roosevelt, em que se apagava essa imensa tocha da
liberdade humana ela não se abateu. Não se descabelou dramaticamente não se aniquilou. Mostrou-se
como um soldado que vê cair ao seu lado em pleno campo de batalha, um companheiro de luta. E, com
o mesmo valor que sempre revelara, teve para com o novo Presidente esta pergunta: Poderei ajudá-lo
em alguma coisa?”. Essa intrepidez diante do tamanho desastre me comoveu. Assim como deve ter
comovido o mundo inteiro.
Conheci a senhora Roosevelt, em Nova York, numa ocasião em que viera de Washington especialmente
para fazer a apresentação de Evo Curic, que ia dar ao povo americano um relato das coisas que vira na
sua viagem ao “Front”. A primeira norte-americana entrou em cena aberta, ao Mamhattan Center com
um ar jovial, nada solene, como se se tratasse de uma reunião intima, sem nenhuma formalidade.[...]. E
tomando a escritora carinhosamente pelo braço levou-a até o microfone.
Com o correr do tempo fui conhecendo melhor essa espantosa mulher, tão dinâmica, sempre jovial,
como se as tremendas responsabilidades diante da nação e do mundo inteiro, não passassem de uma
agradável recreação [...] O gôverno de Roosevelt teve uma colaboradora tão eficiente, tão notável,
como jamais houve exemplo na história dos Estados Unidos. Durante o primeiro ano de guerra, ano
amargo e cheio de derrotas, ela se mostrou sempre valorosa, sempre confiante na vitória. Com todos os
seus filhos mobilizados, no Exército, na Marinha e na Aviação, jamais se cansou de presidir, estimular
ou prometer instituições femininas, nem jamais se mostrou fatigada para defender a democracia,[...].
Muita gente deve estar lembrada do escândalo que causou entre os snobs o rompimento da senhora
Roosevelt com uma tradicional organização de Washington que se negava a ceder seus salões à cantora
Marian Anderson, por se tratar de uma negra. Eleanor Roosevelt foi irredutível. E, Marian Anderson,
que ela declarou ser uma legítima glória norte-americana, foi prestigiada pela Casa Branca da mesma
forma como foram sempre prestigiados todos os artistas dos Estados Unidos.
A senhora Roosevelt tinha uma seção diária muito curiosa no jornal “World Telegram”, na qual
estabelecia uma espécie de ponte entre a Casa Branca e o povo. Dava conta singelamente das suas
ocupações como um empregado conta como gastou o dinheiro das compras.[...].
Os soldados do Tio Sam eram seus filhos. Não se trata aqui de uma figura de retórica. Ela os amava
com sentimento maternal e seus próprios filhos estavam lutando com êles. Acredito que a pergunta de
Eleanor Roosevelt “Poderia ajudá-lo em alguma coisa?” não ficará vagando no ar como uma coisa
morta. O homem desapareceu, mas ficou a causa. Eleanor Roosevelt havia desposado a ambos. O
homem e a causa da Democracia. E com a sua experiência, seja de jornalista, de oradora ou de política,
ela tem ainda muito que fazer. O Cruzeiro. 26 maio 1945. p.3.
166
Cruzeiro, cujos posicionamentos mostravam a arbitrariedade a que a alemã brasileira fora
submetida. Num dos textos, David Nasser descrevem Margarida como vítima do medo:
Margarida Hirschman está sendo julgada por ter traído sua Pátria. Ela defende-
se, alegando coação. “- Ameaçavam-me de morte”. Esta reportagem historia o
medo da brasileira que atuava ao microfone da rádio inimiga, na Itália. Mas isso
é natural. Todos os ratos na hora final abandonam o navio, procurando salvação
de qualquer maneira. Portanto julguemos Margarida Hirschman. Julguemos sem
falsos pressupostos. Julguêmo-la sem part-pris, condenêmo-la se ela é culpada
como parece, absolvamo-la no caso problemático de ela ser inocente. Mas não
nos esqueçamos de julgar também os outros traidores da Pátria que não sairam
de casa.
Margarida Hirschman é uma vítima do mêdo. “- Nasci em São Paulo e meu pai,
José, e minha mãe, Madalena, residiam em São Paulo, onde o velho possuia um
comércio qualquer. Em, 1939, março, decidimos a viagem para a Alemanha, pois
o chefe da pequena família necessitava tratamento médico severo. Embarcamos
em um navio no pôrto de Santos e estávamos em Minich quando a guerra
começou”. Margarida não está falando ao repórter, mas a seu advogado, Tenente
Bento Leite Albuquerque, do Exército, nomeado ex-ofício para defende-la).
- “A princípios, os alemães não me obrigaram a trabalhar. Eu, para manter-me,
servia na Casa de Arte, porém depois, com a marcha da guerra desfavorável,
todos os homens válidos foram sendo gradativamente substituídos e ordenaram-
me a entrar para o Serviço de Trabalho Obrigatório. Dali fui enviada, sob pena
de fuzilamento, para a cidade italiana de Fino Monaco, no largo de Como, e
ainda sob ameaça disseram-me que atuasse como locutora e datilógrafa no
programa Auri-Verde, feito para os brasileiros. Durante os meses que esteve
nessa emissora, faltou-me talvez, a coragem necessária para trocar o microfone
pelo pelotão de fuzilamento. Desejo saber quantas mulheres preferiam a morte.
Várias vêzes tive conflito com o pessoal alemão e de tudo isso tenho provas
documentadas. Agora, surge um soldado brasileiro, capturado pelos alemães, e
que trabalhou sob coação ao meu lado; êsse soldado faz parte da acusação.
Pergunto eu se ele, homem e soldado, não encontrou meios de resistir, que
poderia fazer eu, uma mulher sozinha: confesso que tive mêdo. Podem até me
acusar de covardia. Mas não de traição. Em todos os anos que permaneci na
Alemanha ou na Itália, não deixei de ser forçada a realizar tarefas que
sinceramente não desejava executar. Deixei a estação alemã, na Itália quando os
aliados venceram a guerra e fui para Milão, onde encontrei diversos brasileiros,
convivendo com eles. Residi a êsse tempo num edifício de apartamentos situado
no Largo do Rio de Janeiro n.2. [...]
O Sr. Nicolau Baldine, que está sendo julgado pelo mesmo tribunal, saiu
diretamente da prisão, escoltado pela tropa SS, até à estação de rádio. Falávamos,
por assim dizer, com a faca encostada no pescoço. Todos nós, entretanto,
procurávamos ser úteis aos aliados, menos êsse tal Felício Mastrangelo, italiano,
e que não poderá ser julgado no Brasil, porque não nasceu aqui”. (Mastrangelo
vive em liberdade na Itália e é feliz). Ele era o chefe e o mentor dos programas.
Nós obedeciamos, apenas, milhões de pessoas estão nas mesmas condições e
foram perdoadas, porque não estava em suas mãos reagir contra a violenta
perseguição dos nazistas”.
O Tenente Leite de Albuquerque, um dos mais competentes advogados que
acompanharam a Fôrça Expedicionária Brasileira, está desenvolvendo uma
argumentação serena, precisa e sobretudo fartamente documentada, em tôrno da
atuação de Margarida Hirschman na Itália. Antes de tudo, espiã não é um têrmo
próprio, pois ela estava em terra ocupada pelo inimigo e se espionagem fazia,
somente poderia ser um favor dos aliados. Hipótese digna de atenção.
Confundiram-na com aquela criatura que atuava no Rádio de Berlim, fazendo a
intragável e mal temperada Salada Mista. Passou, Margarida, que é bela e loura,
167
pela mirrada Rosa de Tóquio, uma japonesinha que atuava ao microfone de certa
estação nipônica dirigida às forças norte-americanas. Embora não tenha sido uma
ou outra, suas funções eram semelhantes e o único ponto em dúvida é apurar se
até onde foi sua má vontade em fazer a propaganda do inimigo. Êste documento
que, anexamos à reportagem e que será apresentado na próxima audiência do
julgamento de Margarida Hirschman terá efeito surpreendente. Ei-lo.
- Quartel General do IV Corpo Seção G2 (Serviço de Informações), 15 de
junho de 1945. O Tenente Chiaparelli (Do Exército dos Estados Unidos) abaixo
assinado, em funções junto à Seção G-2 do 4
o
Corpo, declara que a Senhorita
Margarida Hirschman prestou, ao lhe serem pedidas informações úteis o
dispendeu atividade a favor dos inquéritos feitos pela referida seção. O seu
auxilio foi prestado com lealdade e amizade para com as Nações Unidas. (a)
Frederico Chiaparelli, 2
a
Tenente 1. A. Firma reconhecida pelo Consulado de
Portugal, encarregado dos negócios do Brasil na Itália.”
Naturalmente que este documento pode significar muito e pode, também, não
valer tostão. Margarida Hirschman com êle, somente com ele, não obterá sua
absolvição. Tudo depende das demais provas que ela apresentará em sua defesa e
das provas que contra ela serão apresentadas pela acusação. Está claro que ela
não soube resistir à pressão.
368
Não era, entretanto, apenas com interesses de um mundo em guerra que elas acabavam
se envolvendo, fosse como vítimas, fosse como vilãs, pois os espaços de vários outros campos
de atividades em todo o mundo se abriam. Conquistas pessoais já eram possíveis de serem
registradas, dando a dimensão de que o coletivo feminino era capaz de dar saltos nos tribunais
da justiça humana. Antigos sonhos, outrora tão desejados, começavam a despontar, as
mulheres estavam galgando espaço nos altos postos, antes assumidos apenas por homens. E foi
no ano de 1944 que uma notícia chamou a atenção de mulheres do mundo inteiro: a Inglaterra
acabava de nomear a primeira juíza, profissão essa de difícil conquista para as mulheres numa
escala do mundo do trabalho quando essa profissão fora por anos exercida por homens. Sob o
título “Eva nos séculos”, Marina Guaspari escreveu:
O país mais conservador da Europa acaba de nomear o seu primeiro juiz
feminino outro entre inúmeros indícios significativos de ascensão constante da
mulher às mais variadas funções da vida pública.
Companheira abnegada do homem desde nossa mãe Eva, a mulher atravessou
milênios, em doloroso e deplorável estado de servidão e obscurantismo.
Cleópatra, Aspásia, Egóris, Mme. Stael foram exceções tão singulares, que a
História lhes guardou os nomes.
Já em épocas modernas, George Sand escandalizou uma sociedade em pêso,
mais talvez pelo seu peregrino talento literário do que pelos seus caprichos
sentimentais.
A tragédia de duas guerreiras, que se alastraram pelo globo inteira, envolvendo
nas suas labaredas destruidoras os povos mais pacíficos, relegou a um passado
remoto o feminismo agressivo de “miss” Pankhurst, cuja reivindicações criaram
sérios problemas às autoridades britânicas, já que freqüentemente se traduziam
368
O Cruzeiro. 24 nov. 1945. p. 31.
168
em atitudes ridículas, em atos de sabotagem estulta e grotesca. Não admira que
as façanhas de “miss” Pankhurst repercutissem no mundo inteiro, como um
fenômeno chocante, se considerarmos que a mulher era, então, a criatura tímida,
crédula e apaixonada de que Ingrid Bergman nos deu recentemente, em
“Gaslight”, uma personificação perfeita. Foi, no entanto, dêsse mundo feminino
que emergiu a genial Maria Sklodowska, a célebre Madame Curie, a quem a
ciência deve tão magna descoberta.
Hoje, como tudo mudou!
A mulher hodierna rivaliza com o homem, nos múltiplos domínios da atividade
dos nossos dias. Ai a temos vencedora na ciência, na carreira jurídica, nas letras,
na arte, na imprensa, bem como perita nos vários ramos do campo técnico.
Ainda há de haver quem se lembre dos primórdios da navegação aérea entre nós,
quando em muitos lugares era espetáculo sensacional a subida dum aeróstato,
que se alçava laboriosamente do solo, para cair poucos quilômetros além, num
matagal ou num banhado, após uma breve trajetória ponteada de saltos perigosas.
Hoje até nesse domínio, que então parecia vedado ao homem pois mal se
esboçara a teoria do “mais pesado dó que o ar” a mulher se firmou
triunfalmente; as aviadoras já não são exceções e, não raro as vemos competir
com os homens em acrobacias arrojadas.
Em suma, a rajada renovadora penetrou em tôda parte: chegou à China, ao Japão;
revolveu até o que é dizer tudo os próprios povos do Islam.
Dada a propagação assombrosa do cinema aos recantos mais longínquos do
nosso planeta, seria ocioso citar o desembaraço, a independência econômica e
pessoal que caracterizam a mulher americana. E, como a despeito das suas
ficções e exageros, o cinema reflete, no fundo, a vida do povo que o faz, é lícito
dizer que, na generalidade dos casos, as filhas do Tio Sam se valem das suas
conquistas, sem quebra das tradições familiares, com uma dignidade que faz jus
à maior admiração.
À semelhança das suas irmãs doutras plagas, a brasileira avelvou, venceu um a
um os degraus dessa ascenção luminosa. Bemaventurada entre tôdas,
envolvendo, nada perdeu dos predicados que a tornam tão sedutora.
Ultrapassando o campo do magistério, onde vem, desde eras esquecidas,
moldando a mente e o coração da nossa infância, transpondo o âmbito já vasto da
arte, no qual tem dado expressões excelsas de renome mundial, a brasileira
conquistou um lugar em tôda a esfera de trabalho útil que lhe foi franqueada.
Honra agora as antepassadas ilustres, peregrinando com os soldados do Brasil às
terras do além-mar, afrontando com êles a travessia cheia de insidia, os perigos e
os padecimentos da guerra.
Mas, mulher moderna, continua a ser a mesma espôsa e mãe exemplar; nem
desdenha as prendas que lhe legaram as antigas sinhás.
369
O texto demonstra a inserção feminina numa nova fase, com a conquista de mais
uma profissão, mas ao mesmo tempo, não deixa de reafirmar que o papel verdadeiro da
mulher, que é ser mãe e esposa exemplar, o que também é sinônimo de mulher moderna. O
posicionamento da autora era uma síntese do próprio pensamento da revista, que, ao longo
das edições, deixou sempre claro que era preciso, sim, que as mulheres evoluíssem no
mercado de trabalho e nas conquistas sociais; no entanto deveriam manter-se femininas,
materna e, sobretudo, boas esposas. Se o envolvimento político chegou tarde para elas,
aqui não foi diferente, pois praticamente foram insignificantes os espaços permitidos para
369
O Cruzeiro. 2 ago. 1944. p. 53.
169
os posicionamentos políticos femininos e as suas manifestações sobre os temas políticos do
país, do mundo, além das suas preferências partidárias, que são praticamente inexistentes
nas páginas de O Cruzeiro. Compreende-se aqui que as questões políticas, segundo as
páginas da revista, não eram assunto para a mulher.
170
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos acontecimentos da vida, muitas vezes, há descompasso entre o real e o ideal,
entre o que se pretende e o que de fato acontece. Hoje o mundo vive o descompasso de se
buscar paz, mas o que acontece é a guerra. Os fatos mostrados pela mídia, nem sempre
estão em compasso com a realidade. No movimento dos instantes, vão se tecendo essas
realidades, que, além de ficarem registradas nas memórias das pessoas e nos meios
impressos, deixam pistas para serem mais bem entendidas, interpretadas, avaliadas em
também instantes, naquele que sempre estamos esperando, chamado “futuro”. Para
alcançar o futuro, atravessa-se o presente, seguem-se vestígios, procura-se desvendar
aspectos, e aí então, chega-se a considerações, muitas impregnadas por incertezas, afinal,
elas nunca deixam de existir, porque não há um fim, há, sim, vestígios para muitos
começos. Foi com o propósito de trazer aqui contribuições sobre alguns aspectos que
talvez estivessem ainda obscuros no entendimento histórico-jornalístico que este trabalho
sintetiza algumas considerações.
A primeira delas é justamente sobre o descompasso entre a modernidade que a
revista O Cruzeiro idealizava para o mundo feminino e a realidade em que viviam as
mulheres brasileiras. A preocupação em mostrar um mundo glamoroso, com padrões de
vida luxuosos, tinha, sim, um objetivo: o de atrair o público feminino para o consumo.
Eram padrões ditados numa firme convicção de que a modernidade se fazia necessária.
Era preciso reforçar os propósitos políticos do financiador da revista, o então
presidente da República Getúlio Vargas, de transformar o Brasil num país moderno, de dar
uma idéia de nação hegemônica; por isso, muitas matérias reforçavam a nacionalidade e
enalteciam nossas riquezas naturais, culturais, empresariais. A década de 1930
caracterizou-se, sobretudo, por dois acontecimentos que evidenciaram a nacionalidade: a
Revolução de 1930, que iniciou o período do governo Vargas, e a eleição de Yolanda
171
Pereira como Miss Universo, esta que representava o ingresso da beleza da mulher
brasileira no cenário internacional
370
. Os concursos de beleza foram a tônica principal de
grande parte dos espaços de O Cruzeiro, principalmente na década de 1930. A própria
revista chegou a ser a promotora dos eventos de Miss Brasil e enviou repórteres ao exterior
para cobrir o Miss Universo. Certamente, tudo isso tinha suas compensações, tanto que em
várias páginas se podem observar anúncios de sabão Lux e outros produtos que as beldades
mundiais anunciavam na revista.
Na relação de estreitos laços de interesses entre a revista e o governo de Getúlio
Vargas, observamos o relato dos feitos do presidente em quase todas as páginas do
semanário, com matérias e fotos, num resumo constante das atividades do governo até o
início da década de 1940. A partir dessa data, contudo, mudaram as perspectivas de
interesses de Assis Chateaubriand em relação ao poder, e Getúlio Vargas já não detinha a
mesma importância de antes. Então, novos nomes surgiam para o comando da nação, e
Chatô via aí novas possibilidades de se aliar. Por isso, principalmente a partir de 1944,
passou a fazer ferrenhas críticas ao governo de Getúlio Vargas nas páginas de O Cruzeiro,
numa forte campanha que apontava erros, desqualificava o chefe da nação e reforçava o
clima de golpe em 1945. Todas essas questões políticas envolvendo o governo,
especialmente, a Revolução de 30, que a revista denominava de A Revolução Nacional, e a
Segunda Guerra Mundial, que foram motivos de suplementos especiais encartados na
revista nas décadas de 1930 e 1940, em momento algum expressaram o pensamento
feminino em relação à política, à guerra, à situação do mundo e do Brasil nesse período.
Também outros temas considerados mais sérios, como eleições, educação, saúde, sempre
partiam da perspectiva de um pensamento masculino, o que evidencia que os espaços para
as mulheres em O Cruzeiro serviam mais para enaltecer o belo, o glamour e o consumo;
logo, não serviam para a defesa dos interesses femininos, como igualdade de direitos, mais
espaços no mercado de trabalho e outras conquistas pelas quais lutava uma parcela de
mulheres no país e no mundo nesse período.
Temas como esses aparecem envolvendo as mulheres, seja junto às frentes de
trabalho da Cruz Vermelha, seja na Revolução de 1930, quando as esposas dos
revolucionários prestaram ajuda aos soldados, apenas transparece complacência
humanitária, reforçando o seu lado maternal, de caridade e de bondade, jamais o seu
pensamento sobre os acontecimentos. No caso da Revolução de 1930, a perspectiva da
370
CORRÊA, Thomaz Souto. (Ed.). A revista no Brasil. São Paulo: Abril, 2000. p. 21.
172
revista era de mostrar as esposas dos revolucionários engajadas na luta, reforçando a
importância da revolução para o país, quando até mesmo as mulheres estavam envolvidas.
O posicionamento feminino mostrado pela revista dizia respeito às questões
domésticas, à educação dos filhos, no convívio conjugal, a roupas, moda e mudanças
comportamentais, que se dividiam entre os estilos ousados e os conservadores. Assim,
mostrava exemplos de algumas mulheres de sucesso, como a esposa do presidente americano e
a primeira mulher juíza, na Inglaterra, como abordamos no capítulo três. Isso não significa que
em outros números (após 1945 não foram examinados nesta pesquisa) não pudessem ter
existido colunas com posicionamentos mais fortes sobre temas como política, economia, entre
outros. No período analisado, no entanto, o tema política não era assunto para mulheres,
apenas para homens, que, com evidente preconceito, escamoteavam o posicionamento
feminino, até mesmo sobre conquistas que lhes interessavam, como era a luta pelo direito ao
voto em 1934. É um pensamento delineado por olhos masculinos, que discutiam as idéias e as
posições políticas do país e do mundo na revista.
Com uma variedade de informações sobre roupas da moda, comportamentos
glamorosos das atrizes do cinema americano, lançamentos de produtos de beleza, e ignorando
os posicionamentos femininos sobre temas mais “sérios”, como política e economia, por
exemplo, a revista acabou deixando às mulheres apenas um caminho: o de acompanhar os
ditames da moda em roupas e comportamentos, espelhados nas atrizes do cinema americano.
Para alcançar seus propósitos editoriais modernos, O Cruzeiro utilizou-se de uma variedade de
formas, de gêneros jornalísticos, técnicas do mundo das artes e dos impressos, o que de melhor
existia na época em termos gráficos e profissionais. Basta observarmos alguns nomes da
literatura, como Monteiro Lobato; das artes, como Portinari; do jornalismo, como David
Nasser; da fotografia, com Jean Manzon, e da gravura, com Millôr Fernandes, que estavam
engajados como colaboradores ou profissionais contratados pela revista. A comunicação era o
primeiro passo para essa transformação social moderna; por isso, revistas como a Life e a
Paris-Match foram fontes de inspiração e de informação para que O Cruzeiro adotasse padrões
modernos em termos gráficos, jornalísticos ou publicitários.
A modernidade apregoada buscava o novo, procurava mostrar para as mulheres que
a mudança tinha no consumo o caminho para alcançarem felicidade, através da moda, de
produtos de uso doméstico, das facilidades dos eletrodomésticos, como as geladeiras e
batedeiras, até as mais sofisticadas cozinhas com fogões a gás que dispensavam a sujeira e
o picumã, além de comportamentos que adotavam novos vocabulários, exercícios físicos,
passeios na avenida, cinema, teatro e muitas compras em modernas lojas com novidades
173
vindas de Nova York e Paris. A modernidade de O Cruzeiro não surge no âmago do real,
dos fatos da realidade brasileira como um todo, mas na imposição da linha editorial da
revista em adotar e anunciar padrões modernos de ser, de vestir, de se comportar e de
direcionar as próprias condutas de vida, porque receitas não faltavam. Nas fórmulas de
como ser uma boa esposa, de como se vestir e ser considerada uma girl, havia manuais de
comportamentos descritos em colunas mais conservadoras que reforçavam a submissão das
mulheres aos maridos, determinavam a elas apenas o papel de dona de casa, rainha do lar e
mãe e, nas colunas de Alceu Penna, “As garotas” ensinavam-se padrões mais ousados,
porque estimulava as moças a terem gostos próprios, usarem roupas da moda e
freqüentarem as avenidas, os espaços públicos. A coluna “As garotas” direcionava-se para
um público jovem e de elite
Era uma série de regras que reforçava a necessidade feminina no mundo doméstico,
esse que agora exigia que adotassem novos hábitos de higiene, que equipassem a cozinha com
práticos utensílios e se preocupassem muito com o corpo saudável, que se banhassem no mar,
tomassem sol e praticassem esportes. Esses padrões de consumo não faziam distinções entre as
mulheres consideradas modernas e as conservadoras. Os dois perfis femininos são
evidenciados em algumas colunas quando tratavam das mudanças que estavam acontecendo e
que exigiam posturas mais ousadas, ou a permanência do conservadorismo.
De todas as colunas voltadas para o universo feminino, uma delas pode ser
considerada a mais moderna de todas, por mostrar um perfil feminino mais ousado. “As
garotas” utilizando como recurso a sátira apresentava moças livres de preconceitos,
presentes nas ruas, nas calçadas, nos cafés, nos movimentos dessa nova forma de vida mais
urbanizada, as quais usavam roupas modernas e se comportavam como as girls americanas.
Eram elas que revelavam os novos comportamentos da modernidade, também anunciando
produtos e inserindo novas palavras no vocabulário; com esses termos americanos, elas
mostravam as influências culturais hollywoodianas, vindas principalmente pelo cinema.
Buscamos aqui ainda compreender a realidade daqueles anos e o modo como as
mulheres eram vistas e se viam, para entender as posições mostradas nas colunas, ora
inovadoras, trazendo uma mulher consumidora das novidades dos produtos de beleza, dos
eletrodomésticos, ora conservadora, conforme a uma sociedade que pouco se importava
com a liberdade e a independência delas dos maridos e que não permitia a muitas o acesso
ao mundo do trabalho e da política. A maior parte das colunas da revista era escrita por
homens, inclusive a considerada mais moderna “As garotas”, de Alceu Pena. As mulheres
escreviam nas seções denominadas “Assuntos femininos”. Como exemplo, a edição de 26
174
de maio de 1945 trazia um índice com uma variedade de 36 títulos entre artigos
reportagens, contos, poesia, cinema, humorismo, variedades, seções, assuntos femininos e
figurinos e modelos, desses 26 eram escritos por homens e apenas dez, por mulheres. No
período estudado as seções sofreram muitas alterações, mas a média de espaços destinados
para as mulheres chegava a menos de 10%. Ao longo dos anos, houve um acréscimo de
colunas femininas, mas antes da década de 1940 as mais significativas resumiam-se a
“Donna e “Dona na sociedade”. Além da desvantagem do espaço, o posicionamento
feminino restringia-se a temas amenos, que não comprometiam os padrões de constituição
social vigentes naqueles anos.
O universo feminino mostrado por O Cruzeiro em suas reportagens, publicidade e
colunas era glamoroso, inspirado nos padrões de comportamentos e modas do cinema
americano, já que o material que aqui chegava era farto em textos e imagens. Era nesse
contexto que a revista excitava o imaginário dos leitores, como com o culto ao belo. O
consumo de cosméticos, de produtos que garantiam beleza e conforto prometiam a
realização do sonho feminino de transformação, de dias melhores, de contentamento. Os
atores e as atrizes do cinema eram os divulgadores desses novos padrões a serem adotados
pelas consumidoras, que eram estimuladas, em cada edição, a usar roupas da estação e a se
comportar frente ao mundo e aos relacionamentos como as estrelas hollywoodianas. Era
uma variedade de formas simbólicas determinante para compor o panorama moderno
mostrado por O Cruzeiro.
Nada, entretanto, pode ser mais expressivo do que as capas da revista, saliências do
belo e com uma carga de significados, especialmente porque colocavam as mulheres em
evidência, num espaço que atraía os leitores na banca. As figuras das capas eram
distribuídas de diversas formas, com uma diagramação que não enfatizava apenas os
rostos, mas o corpo inteiro. Elas apareciam vestidas com os lançamentos da moda, ou a
caráter, para evidenciar os tempos de guerras, ou de carnaval, dependendo dos principais
temas abordados pelo magazine. Mulheres de traços perfeitos, expressivos, maquiadas, de
pele clara, eram desenhadas ou fotografadas em praticamente todas as edições da revista
para serem estampadas nas capas, ressaltando o feminino e o belo. É difícil identificar
quem realmente elas eram, quem estaria ali emprestando seus traços para chamar a atenção
dos leitores a cada semana. Isso porque a revista não costumava utilizar legenda nem
outros meios que identificassem as personagens, como se vê hoje em qualquer revista
feminina que traz uma atriz ou modelo para ilustrar a capa.
175
Pode-se dizer ainda que também a beleza mostrada pelas páginas de O Cruzeiro
partia de uma perspectiva masculina, ou seja, era a impressão dos homens sobre o belo.
Embora, aos poucos, procurasse dar as mulheres uma certa individualidade, abrindo
espaços em capas e colunas para registrar a beleza e o glamour feminino, a ótica sobre
tudo isso era masculina. Esse culto ao belo valia-se de uma variedade de produtos que não
apenas enalteciam as formas físicas, mas traziam no âmago o sentido da modernidade e as
idéias de que aqueles eram tempos novos.
Entretanto, a ascensão das mulheres nos espaços da revista precisava ser sutil; o
meio de comunicação não poderia levantar bandeiras feministas, nem mesmo para
defender seus desejos mais profundos de mudanças. Era o anseio de boa parte delas nesse
período modificar a forma de vida que levavam e buscar a igualdade de direitos com o
sexo oposto. Contudo, era preciso conter as aspirações para que os meios tradicionais não
fossem desconcertados; se vazão fosse dada às ânsias femininas de mudanças, as
transformações sociais seriam inevitáveis, como de fato ocorreria mais tarde, quando, aos
poucos as conquistas foram sendo alcançadas. Era preciso insistir na realidade tradicional,
que ganhava defensores e defensoras em diversas colunas e espaços da revista para que as
formas de relação entre homens e mulheres fossem mantidas. Segundo esse padrão, eles
prevaleciam no domínio e no controle da família, das profissões, dos costumes e da
sociedade e a elas cabia o papel da companheira, de ajudante, ou seja, elas não poderiam
passar dos limites constituídos na hierarquia patriarcal.
Essa sociedade, marcada pelo predomínio do patriarcado, estava experimentando
uma nova ordem, que surgia em decorrência da industrialização e da modernização da vida
em geral: o consumo. A lógica do mercado industrial não podia mais restringir
consumidores; era preciso avançar e atrair até mesmo quem estava fora da engrenagem
social, o que justificava o estímulo às novas formas de vida e de comportamento feminino,
como uma estratégia para ganhar mais consumidores. De qualquer maneira, isso significou
espaços que enalteciam o imaginário feminino, sem levar em consideração o que de fato
acontecia em todas as camadas sociais do país naquele momento, mas, sim, a formação de
novas concepções e comportamentos que levassem a consumir.
Com toda a certeza, este trabalho não deu conta da totalidade da análise das mais
variadas expressões simbólica representadas na revista. São espaços que registram
acontecimentos sobre as brasileiras de uma parcela restrita das mulheres que viviam em
grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro. Mas essas, segundo as páginas de O
Cruzeiro, eram referência para mostrar uma realidade de Brasil moderno e de brasileiras
176
que adotavam uma nova forma de vida, consumista e motivada para realizar vontades e
desejos, fosse na área artística, fosse na esportiva, entre outras. Para O Cruzeiro, era o
cinema a sua maior fonte de inspiração para lançar novas modas, uma ditadura que vinha
das elegantes estrelas, principalmente da Metro-Goldwyn Mayer, além de agências
cinematrográficas como a Paramount.
É por isso que aqui ainda ficam pontos a serem investigados, como a audiência, a forma
como essas informações ditadas pela moda se inseriam na sociedade como um todo. Ficam
ainda evidências para serem decifradas nessa relação estreita da sociedade com o cinema, com
a fotografia, com a publicidade, que dizem mais que o sentido modernizador e simbólico, mas
também abrem portas para um estudo das múltiplas linguagens nas várias formas de expressão,
na história da moda, da comunicação feminina e de uma relação de poder que une governo e
imprensa, de uma política que se vale da propaganda como a maior ferramenta de governo; da
possibilidade, ainda, de uma história das idéias, da história da propaganda no Brasil e da
história do Brasil, criada a partir da realidade mostrada pela revista e pelo imaginário da época.
Além dessas, podem ser levantadas ainda outras possibilidades, uma vez que a revista está
inserida num contexto histórico rico em acontecimentos e em aspectos, tanto da comunicação
como da história, ainda a serem considerados.
Com o desafio constante de se descobrir que mulheres eram aquelas mostradas por
O Cruzeiro e que mereciam estar sempre na primeira página, fomos entendendo o universo
feminino e os reflexos da modernização no país no período. Entendemos que a revista
priorizava aquelas que faziam parte do “mundo novo”, mulheres consumidoras de
cosméticos e eletrodomésticos, ganhadoras de concurso de beleza, seguidoras da moda e
dos padrões hollywoodianos de ser, pertencentes a uma elite social que promovia festas
fabulosas e que era notícia nas colunas sociais. São histórias de um período significativo
para o país e para as mulheres, afinal, a década de 1930 trouxe, pela primeira vez, o direito
de voto às brasileiras.
Além de exaustivo, foi desafiador contar um pouco dessa história brasileira
feminina, vista pelo olhar da objetiva e da visão de um batalhão de colunistas e jornalistas
de uma revista que priorizou mulheres belas e que lhes atribuiu um papel: o de
protagonistas da modernidade, da sociedade de consumo que emergia.
Ao mesmo tempo, entretanto, o magazine não contribuiu com a luta por conquistas
femininas que se levantavam naqueles anos, atendendo ao clamor por igualdade de
direitos, de espaços no mercado de trabalho, na própria família e nas decisões políticas do
país. O Cruzeiro não levantou as bandeiras reivindicativas das mulheres e contribuiu para
177
sufocar as vozes femininas, não apenas daquelas, pelas quais priorizou em suas páginas, as
belas, as ricas e as que a própria revista definiu como “modernas”, porque se encaixavam
nos padrões de comportamentos moldados pelo cinema americano, mas também das pobres
e trabalhadoras, das que já eram excluídas socialmente.
Ainda hoje é de se perguntar: a história se repete? Observamos que os meios de
comunicação estão vendendo cada vez mais uma imagem depreciativa das mulheres e
instigando uma disputa acirrada pelos melhores padrões de beleza. Ainda é possível
verificar o culto ao corpo pelo corpo, em detrimento à saúde, à qualidade de vida e até aos
padrões morais e éticos.
Mesmo tendo alcançado alguns direitos e alguma igualdade, principalmente no
âmbito profissional, é possível encontrar na esfera da realidade mulheres vítimas de
violência, que vivem na mais completa opressão, independentemente da classe social a que
pertençam. É uma violência, além de física, financeira que muitas vezes está mascarada
pelo medo, pelo status social ou, ainda, por uma necessidade de sobrevivência. Podemos
confrontar essa realidade atual, com a mostrada por O Cruzeiro e verificamos semelhanças
nas formas de mascarar os fatos. A revista transferiu a submissão total das mulheres aos
maridos e a sociedade patriarcal, aos ditames da beleza e do consumo, ignorando dessa
forma a verdadeira realidade em que as mulheres viviam. Hoje muitos meios de
comunicação continuam mascarando a imagem feminina ao utilizar, de forma depreciativa
mulheres em músicas e programas de baixo-calão, escamoteando desta forma, conquistas
femininas em diversos espaços na sociedade, tornando-as cidadãs.
Diante de tudo isso, e por mais longe que voltemos na história, compreendemos que
a subordinação feminina ao pensamento masculino não é de todo permanente e vai se
reduzindo aos poucos, em razão de pequenas conquistas que permitem avanços seja na
profissão, seja na vida doméstica e social. É o despersuadir das imposições culturais,
sociais e de consumo que vão possibilitando novas conquistas, e cada uma delas coloca as
mulheres na condição de seres humanos em igualdade de direitos, mesmo que isso seja
lento e gradativo.
178
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