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SHEILLE SOARES DE FREITAS BATISTA
BUSCANDO A CIDADE E CONSTRUINDO VIVERES
RELAÇÕES ENTRE CAMPO E CIDADE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE HISTÓRIA
2003
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SHEILLE SOARES DE FREITAS BATISTA
BUSCANDO A CIDADE E CONSTRUINDO VIVERES
RELAÇÕES ENTRE CAMPO E CIDADE
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Uberlândia,
como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em História.
Área de Concentração: História Social
Orientação: Professora Drª. Heloísa
Helena P. Cardoso
UBERLÂNDIA - MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2003
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Dissertação defendida e aprovada, em 13 de fevereiro de 2003, pela banca examinadora:
_______________________________________________________
Professora Drª. Heloísa Helena Pacheco Cardoso
(Orientadora)
_______________________________________________________
Professora Drª. Déa Ribeiro Fenelon
_______________________________________________________
Professor Dr. Paulo Roberto de Almeida
Aos entrevistados, pela
colaboração e parceria
neste trabalho. Saudades e
admiração por aqueles que
questionam, experimentam
e constroem a História.
Ao Sr. Venâncio (In
Memorian), que me
emocionou durante a nossa
conversa e marcou para
sempre a minha vida
AGRADECIMENTOS
Quando pensamos em agradecer pela produção de um trabalho, muitas vezes as
palavras não conseguem expressar tudo que precisamos dizer e nem lembrar todos que
precisamos agradecer.
Quando começamos o Mestrado, foram tantos os conselhos, os choros, a
partilha. Por isso àqueles que, a seu modo, com um sorriso, um abraço, um aceno
participaram desse momento, agradeço, pois foi a torcida e o companheirismo que me
impulsionou a prosseguir.
Queria, em tão pouco tempo, fazer tanto, fiz o possível e por ele tantas mãos
percorreram este trabalho, dando sugestões, contribuindo com leituras, pesquisas que,
até mesmo, estavam passando despercebidos.
Hoje, encerro esta dissertação vendo que, entre muitos tropeços, construí muitas
amizades, fortaleci laços de solidariedade e até criei estratégias e táticas para cumprir
os prazos e ter tempo para garantir a sobrevivência.
A Deus pela chance de viver esses momentos que, com certeza, se tornaram
fundamentais para a minha formação profissional e pessoal.
Aos meus pais, Fabiano e Maria de Lourdes, por terem me propiciado a
construção de tudo o que sou.
Ao meu irmão, Glauber, que não haveria palavra melhor para defini-lo do que
irmão, uma pessoa que esteve sempre ao meu lado e a quem devo muito do que tenho e
do que valorizo na vida.
Ao meu marido, João Aurélio, que soube respeitar meus sonhos, partilhar
minhas angústias e ser o meu porto seguro, companheiro desta trajetória. Sem ele, não
teria a inspiração e a força que tive, não estaria tão feliz como estou.
A companheira Maucia, que dividiu comigo todos esses momentos, sendo minha
outra face neste trabalho, aquela em quem sempre pude me apoiar, alguém que junto
com este trabalho marcará minha vida para sempre.
A Professora Heloísa, que na sua calma cotidiana e profissionalismo impecável,
conseguiu lidar com minhas dificuldades e deficiências, contratempos e angústias. Uma
convivência maravilhosa que apagou qualquer marca de desilusões acadêmicas,
mostrou-me que é possível produzir um trabalho com sentimento, pesquisa, dedicação e
companheirismo. Ajudou-me, assim como todos os professores com os quais convivi, a
entender um pouco mais o que é ser historiador, o que é ser um sujeito político, o que é
ser pessoa.
Ao Professor Paulo Roberto de Almeida que durante todo o Mestrado nos
estimulou, com o seu jeito carinhoso de ser, a sairmos do cômodo lugar de
expectadores e partirmos para a investigação, a análise, a construção de um bom
trabalho. Devo a ele muito da minha insegurança, mas também muito do que aprendi e
escolhi como historiadora.
A Professora Déa Ribeiro Fenelon, que se disponibilizou a acompanhar a
produção deste trabalho já na qualificação e que, sem dúvida, foi fundamental para as
questões levantadas na investigação e os caminhos que a dissertação tomou.
Aos meus amigos de linha de pesquisa, Luciana, Ana Paula, Adriana, Alexandre
e Paulo Inácio, que partilharam as expectativas e caminhos para a dissertação, assim
como as amigas da sala de estudo, Ivani, Rejane e Elizete, que tantas vezes nos viam
naquela correria e tentavam nos passar ânimo e alegria. Devo a elas muitos dos meus
sorrisos e tranqüilidade, a vocês, um grande abraço.
A Cinara, que me auxiliou com a correção do trabalho e na superação do
nervosismo e apreensão. Uma amiga que conquistou o meu carinho e admiração, não
medindo esforços para me ajudar nos momentos conclusivos deste trabalho.
Aos funcionários do Instituto de História que tantas vezes facilitaram o acesso
às salas, acreditaram no nosso trabalho e ajudaram, a seu modo, que ele se
concretizasse.
Aqueles que pelo corredor, ou em uma conversa rápida, estavam na torcida por
esta dissertação que se sintam contemplados, assim como eu sinto, no meu íntimo toda
a ajuda que eles me trouxeram.
Agradeço, e sempre serei grata por tudo e a todos.
É um sonho, sei que é. Mas
quem disse que sonhar não é
possível? Por isso, viver é
ultrapassar limites, tentando
alcançar o infinito...
(Sheille)
SUMÁRIO
Resumo.....................................................................................................09
Considerações Iniciais...............................................................................10
Capítulo I ...................................................................................................26
Vamo embora, chega!: o homem do campo em busca de um lugar
Capítulo II ..................................................................................................57
A gente é excluído de Uberlândia: experiências dos moradores do Vila
Marielza
Capítulo III .................................................................................................93
A vida tem que continuá: relações de convivência e o sobreviver na cidade
Considerações Finais.................................................................................119
Fontes ........................................................................................................125
Bibliografia................................................................................................129
Anexo I .....................................................................................................131
Anexo II ....................................................................................................133
Anexo III ...................................................................................................135
Anexo IV....................................................................................................137
RESUMO
A mecanização e a inserção do capital na zona rural, especialmente da década de
1970 em diante, fizeram com que vários pequenos proprietários e trabalhadores rurais
procurassem um novo espaço para viver. As relações pessoais de trabalho no campo
estavam se transformando, dando lugar a um projeto agrícola pautado na alta
produtividade e tecnologia.
Nesse sentido, discutir as tensões que se estabeleceram no prosseguir das
pessoas expropriadas do meio rural se torna fundamental para problematizar o viver na
cidade, analisando as vivências, incorporações, lutas, valores e experiências que se
formulam ao longo da trajetória dos migrantes rurais.
Dialogar com os sujeitos deste trabalho foi imprescindível para que o viver em
Uberlândia fosse colocado em questão, descortinando-se, a partir dessa discussão,
tramas da disputa social por pertencimento à cidade e os territórios que foram sendo
construídos pela população pobre local. Expulsos do campo, a exclusão da cidade passa
a ser um ponto questionado e problematizado por esses sujeitos que passam a construir
modos de vida que, estrategicamente, garantam a sua sobrevivência na urbe.
O Bairro Vila Marielza foi um dos locais onde os vindos do campo se
estabeleceram. Ali, convivendo com graves carências urbanas e sociais, seus moradores
vão criando modos de viver e lutando por seus direitos.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Uma vida de muito
trabalho
no campo e no roçado
pra se acabar assim...
desterrados
(Sheille)
Percorrer a história, como nos diz FONTANA, é perceber um pouco a íntima
relação existente entre as questões tidas no presente e o foco, as opções e o
procedimento utilizado no processo de reflexão do passado. Não resta dúvida de que o
compromisso com a realidade faz da pesquisa um caminho de questionamentos, um
momento de se repensar os rumos e as expectativas do seguir da História, contribuindo,
assim, para um novo olhar e para a construção de um projeto social melhor
1
.
Destacamos, como fundamental nesse caminhar, a troca de experiências e
debates que promovemos na sala de estudo (alunos e professores) e, principalmente, a
leitura e discussão do texto Folclore, Antropologia e História Social, o que deu um
novo vigor às nossas pesquisas ao tratar a questão das normalidades aparentes nas quais
não nos debruçamos para desvelar as tensões e os sentimentos dos sujeitos,
THOMPSON nos sugere que isso interfere na percepção e significados atribuídos às
mudanças dos modos de vida
2
.
Quando o autor levanta a questão de que a transformação histórica acontece (...)
pelo fato de as alterações nas relações produtivas serem vivenciadas na vida social e
cultural, de repercutirem nas idéias e valores humanos e de serem questionadas nas
ações, escolhas e crenças humanas
3
, indica como pesquisar, em que devemos estar
atentos e, com isso, os marcos e os recortes históricos foram perdendo os seus padrões e
modelos. Eles são elementos constitutivos da investigação, não resta dúvida, assim
como a teoria e os conceitos, mas não delimitam a pesquisa do historiador. Podem ser
construídos ou desconstruídos, conforme indicado pelo olhar dado às fontes e pelas
indagações propostas. A pesquisa deve estar aberta ao repensar. Foi com a
1
FONTANA, J. Epílogo à edição brasileira. In: ______. História: análise do passado e projeto social.
Tradução de Luiz Roncari. Bauru: EDUSC, 1998. p. 267-282.
2
. THOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e História Social NEGRO, Antônio L.; SILVA, Sérgio
(coord.). As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos, Campinas: UNICAMP, 2001. p. 227-267.
3
Idem. Ibidem., p. 263.
disponibilidade de repensar que esta dissertação foi elaborada a partir de escolhas de
procedimentos e, da mesma forma, construindo passo a passo o objeto de estudo.
Por considerar relevante essas prerrogativas, hoje entendemos que dialogar com
mais afinco com os sujeitos que compõem a pesquisa, percebendo sua cultura, suas
relações de convivências, os consensos e descensos estabelecidos em alguns momentos,
permitiu-nos atentar para as diversas formas de se buscar pertencer ao espaço urbano,
onde garantem a sua sobrevivência.
Escrever esta dissertação nos fez ultrapassar limites e ir em busca da
materialização de um trabalho que visasse recuperar os modos de vida das pessoas
egressas do campo, as relações que estabelecem no meio urbano e como ocorrem
transformações, interferências e tensões nele. O espaço da cidade serviu como pano de
fundo para percorrermos os territórios, os hábitos e as experiências da população pobre
uberlandense, assim como os projetos de cidade que estavam em jogo.
No projeto de pesquisa apresentado ao Mestrado em História para a III Turma
(2001/2002) havia, além da análise do projeto modernizador da agricultura, o interesse
em refletir os movimentos sociais que emergiam no campo na década de 80, mais
especificamente, o movimento dos sem-terras na região, que se estende pela década de
90.
Com o aprofundamento teórico, principalmente com base no marxismo inglês e
nas discussões sobre o uso de fontes orais, tornou-se pertinente redimensionar o objeto e
os sujeitos em estudo, até porque pesava também o curto prazo determinado pela
CAPES (24 meses) para a elaboração do trabalho.
Nesse sentido, dialogar com os migrantes rurais das décadas de 70 e 80 que se
instalaram em Uberlândia nos permitiu pensar a cultura dessa gente, que valores
estavam arraigados a seus viveres e o quanto suas trajetórias influíram nos caminhos
seguidos e nas estratégias de sobrevivência criadas. Tendo como base a diversidade de
experiências dos sujeitos desta pesquisa para a construção de um olhar sobre a história,
os procedimentos de pesquisa foram fundamentais para o tipo de elaboração do
conhecimento histórico e para a análise feita sobre as fontes documentais.
Em primeiro lugar, a análise das trajetórias desses sujeitos fez com que nós
percebêssemos, a partir da diversidade de vivências no campo, como as possibilidades
de sobrevivência se esgotaram nesse meio e lhes forçaram a se estabelecer em várias
regiões da cidade. Desse modo, fomos delineando os caminhos percorridos por aqueles
que vieram do campo e as expectativas criadas para esse vir. Assim, no Vila Marielza,
onde a maior parte dos moradores vêm do campo, constroem-se espaços e modos de
vida em um misto de atividades rurais e urbanas, por isso, dialogar com essas pessoas e
refletir suas memórias se tornou, para nós, uma grande contribuição no pensar a cidade
de Uberlândia.
Trabalhar com esta temática foi desafiador à medida que não se pesquisa com
freqüência na área de História, sobre os migrantes rurais, sua relação com o campo e
com a cidade. É mais comum percebermos essas análises nas áreas de Geografia e
Economia. Entendemos, pois, com um pouco de pesar, que a tendência por algumas
temáticas ainda prevalece em muitas pesquisas, deixando, em segundo plano, questões
cruciais sobre o viver das pessoas.
Os estudos realizados durante o Mestrado, na linha Trabalho e Movimentos
Sociais, como discussões teóricas, missões de trabalho e palestras, foram fundamentais
para que a discussão sobre a cultura, as lutas sociais e o papel do historiador definisse,
paulatinamente, o que se buscava com este trabalho.
Tendo o marxismo inglês como base para a incorporação de procedimentos,
encontramos, especialmente em THOMPSON, discussões importantes sobre a História,
a experiência dos sujeitos, os modos de vida, o trato com a documentação e com a
teoria.
Chamamos a atenção para a idéia do costume tão diferente dos costumes
habitualmente utilizados na academia. O singular apreende sem compartimentalizar, o
costume nos permite entender que as ações, os valores, as elaborações dos sujeitos
interagem e interferem umas nas outras. Vê-las separadas (como costumes), é perder a
noção do sujeito no seu todo
4
.
O aprofundamento nos trabalhos de THOMPSON propiciou avançar além dos
fatos
5
, entendendo que o sujeito é formado por um todo de interferências materiais,
simbólicas e subjetivas. Percorrendo o dia-a-dia dos sujeitos, percebemos o quanto são
relevantes suas expressões simbólicas
6
, as suas práticas habituais, os caminhos que
transitam, os laços que mantêm, as táticas de sobrevivência que constroem.
4
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (1ª reimpressão), p. 14; 16-
17, respectivamente.
5
Idem, ibidem, p. 230.
6
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (1ª reimpressão), p. 21.
As relações que as pessoas estabelecem são negociações sobre o pertencer a um
espaço, a um grupo. Na realidade, o viver é um jogo, onde o mercado instiga nossas
necessidades, determina nossas atitudes. Como num jogo, acordos são feitos, pressões
são exercidas e, mesmo que em desvantagem, a população pobre consegue, ocupar e
criar seus próprios territórios.
Ao recompor o cenário de expulsão do campo e rearranjo na cidade, fica a
pergunta: como essas pessoas entendem e percebem essa trajetória que realizam?
Muitas vezes, ela foi marcada por um abandono do meio rural e, outras, por uma
rearticulação: viver na cidade e trabalhar no campo, ou, de alguma outra forma,
vinculado a ele. Privilegiamos essas diferentes escolhas neste trabalho por entender que
a investigação do historiador se inicia com a postura adotada, definindo a direção da
pesquisa.
A saída de um grande contingente da população rural para as cidades nas
décadas de 1970 e 1980 revela um descompasso entre as condições de vida e relações
de trabalho no campo. Sair da fazenda e se mudar para a cidade tornou-se quase
sinônimos para trabalhadores rurais e pequenos proprietários. Não era apenas trocar de
patrão ou renegociar a parceria. Era, sim, vender a propriedade ou se tornar um
funcionário temporário que não morasse na propriedade rural e trabalhasse à medida
que fosse necessário na fazenda.
Foi preciso desfazer os vínculos com o campo - manter colonos na fazenda,
parcerias na roça - para se transformar as relações de produção no meio rural. As regras
de mercado (preço competitivo, qualidade do produto, mão-de-obra com menores
encargos sociais, alta produtividade) começaram a reger as mudanças no cotidiano.
Entretanto, entender a vinda dessas pessoas do campo para a cidade perpassa por
conhecer as expectativas depositadas na cidade, as mudanças ocorridas e as estratégias
de sobrevivência que criaram a partir de então.
À medida que o objeto de pesquisa foi se definindo, as questões começaram a
pulular: será que viver na cidade de Uberlândia estava tão distante daquilo que deixaram
no meio rural? Esse viver aparece como uma necessidade, mas ao mesmo tempo abre
espaços para se preservar na cidade seus modos de vida? Como reelaboram suas
expectativas quando estão na cidade?
Questionamentos como esses foram aparecendo e, com o avançar da pesquisa,
surgiram mais dúvidas, mais sugestões e mais inquietações. Inferir possibilidades,
refletir o que não era o esperado passou a ser um amadurecimento tanto como
pesquisadores quanto como sujeitos políticos. Refletir sobre o viver humano é se
debruçar nas surpresas das individualidades, às vezes não compreendendo a dimensão
dos costumes e sentimentos das pessoas, outras vezes, sentindo um misto de emoção e
indignação, principalmente ao se depararem com a vida sofrida da população pobre
deste país.
Propusemo-nos percorrer o espaço urbano, vislumbrando um universo de
disputas e táticas dos seus moradores. Nesse bojo, tornou-se imprescindível interpretar o
que mudou na vida desses desterrados, como foram sentidas as transformações, como
viam a cidade e se eles consideravam, ou não, que faziam parte dela.
Nessa diversidade de caminhos, tivemos como fio condutor os problemas,
anseios, sentimentos e lembranças desses sujeitos, refletindo em comum a busca pelo
viver melhor o sobreviver à segregação.
Entendemos que muitas vidas se propuseram a pegar a estrada rumo à cidade,
buscando um lugar, percorrendo caminhos que considero precários e provisórios.
Precários por acabarem vivendo como e onde a sua renda permite; provisórios, por ser
este o desejo de muito deles: um dia ver a moradia, o trabalho, as condições básicas de
vida mudarem. É a luta por pertencimento que enxergamos nessas estratégias de vida.
Conceito amplo que, para alguns sujeitos, aparece no ter moradia e trabalho e para
outros, no ter acesso à educação, assistência médica, água e energia elétrica. Mas, de
qualquer forma, pertencer reflete alcançar a dignidade almejada e elaborada durante
suas vidas.
O transitar pela cidade de Uberlândia, vendo os territórios que esta constitui e os
viveres que encerra, trouxe-nos grande inquietação. Ao depararmos, corriqueiramente,
com barracos, ocupações, conjuntos habitacionais, condomínios fechados, mansões e
pequenas chácaras no meio urbano, percebemos a diversidade do viver uberlandense.
Uma disputa por espaço, pela sobrevivência e pelo direito aos bens sociais da cidade:
moradia, educação, saúde, trabalho, água, transporte, energia elétrica, esgoto, asfalto.
Gente procurando um lugar nos bicos e brechas do espaço urbano, para buscar formas
de garantir o sobreviver de cada dia.
Assim, começamos a ver a cidade como uma construção itinerante, que toma
feições diferentes a cada novo espaço ocupado, nas atividades que transforma ou
incorpora, sofrendo ações de seus moradores e, em contrapartida, respondendo de forma
desigual às necessidades e ao usufruto de seus espaços, das políticas públicas e dos
projetos.
Aos poucos, paisagens vão se modificando, estabelecendo-se padrões de vida,
forçando a população pobre a se dirigir para onde sua renda lhe diz ser possível. Desse
modo, procuramos não apenas ver esses sujeitos na cidade, mas entendê-los como parte
constitutiva dela.
Nesse intuito, trabalhos como o de PETUBA
7
e MORAIS
8
foram
imprescindíveis para analisar as relações sociais e o modo como os trabalhadores pobres
vão ocupando e disputando a cidade, tornando-a um espaço diverso e que
escancaradamente tenciona interesses.
O diálogo entre os trabalhadores pobres e o Poder Público aparece como um dos
vieses que compõem essa reflexão, visto que, conforme os autores, ele ocorre à medida
que essas pessoas reconhecem o Poder Público como entrave, ou como solução para
seus problemas. Mas, como THOMPSON nos lembra, as expectativas iniciais de luta
nem sempre, são as premissas do resultado final, pois acordos e novas posturas
cotidianamente emergem no viver das pessoas e as levam a fazer escolhas voltadas,
muitas vezes, para a necessidade de sobreviver, e não, simplesmente voltadas para o que
se gostaria de viver.
Trabalhar com as mudanças e redimensões de viveres foi uma experiência árdua,
mas instigante e, hoje, podemos dizer, compensadora. Ao mesmo tempo em que
permitiu percorrer um pouco as diferentes formas de sobrevivência que os egressos do
7
PETUBA, R. M. S. Pelo Direito à Cidade: experiência e luta dos ocupantes de terra do bairro Dom
Almir - Uberlândia, 1990-2000. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de História, Universidade
Federal de Uberlândia, 2001. Neste trabalho, Petuba percorre desde a ocupação de áreas do entorno da
cidade, o processo de luta destas pessoas para legalizarem o local como Bairro, como também nos mostra
as relações que estabelecem, os conflitos que vivem, os valores que estes ocupantes procuram preservar.
Ao final do trabalho, Petuba analisa a concretização do B. Dom Almir que emerge das reivindicações e
incansável presença de seus moradores na Prefeitura, nas ruas, na linha de frente de confronto com a
polícia. Foi importante observar os sentimentos e as significações diversas que houve nessa luta, que, no
entanto, não deixa de expressar a experiência individual, construída nos momentos vividos e almejados
neste ocupar a cidade.
8
MORAIS, S. P. Trabalho e Cidade - trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de Uberlândia
1970-2000. Dissertação. (Mestrado em História). Instituto de História, Universidade Federal de
Uberlândia, 2002. Morais reflete a questão do mercado, mostrando-nos as agruras vividas pela população
pobre na ótica mercadológica do capitalismo, tendo que ir se favelizando ou mesmo construindo modos
de vida que lhes garantisse morar na cidade e viver com o que fosse possível. Analisando os jornais da
cidade o autor apreende neles o custo de vida em Uberlândia, mostrando-nos a dificuldade das famílias,
principalmente egressas do campo, de em conseguir um trabalho que lhes permitisse a compra de
remédios, alimentação adequada, tratamento médico de qualidade e educação para os filhos. Na verdade,
o que Morais nos aponta é que o trabalho com carroças foi uma das estratégias de permanecer e ser parte
da cidade de Uberlândia, da mesma forma que reestruturar este trabalho foi necessário à medida que as
necessidades de serviços foram se modificando. Por isso, readequar as formas de trabalho, passando de
carroças de frete, para serem, principalmente, coletoras de material reciclável e papelão, foi, a seu modo,
criar táticas de se manter na corrida pela sobrevivência.
campo construíram (e constroem), possibilitou também refletir os seus valores tantas
vezes entretecidos em suas atividades, gestos e dizeres.
A cidade de Uberlândia, como muitas das cidades brasileiras, se impõe por meio
de uma imagem progressista e que pode ser lida como possibilidade de desenvolvimento
para todos os seus moradores, dando a impressão de que depende do empenho da
coletividade e da cumplicidade de todos para que se tenha uma cidade melhor.
As artimanhas dos seus dirigentes, da elite local e da solidariedade da imprensa
prestigiando o Poder Público reforçam a intenção de garantir aos cidadãos uma cidade
que acolhe a todos com qualidade de vida. Essa propaganda atraiu muita gente para a
cidade em busca do eldorado, acreditando que as oportunidades de emprego e de uma
vida melhor seriam extensivas a todas as camadas sociais.
A análise do Sr. Alceu Francisco dos Santos (chamado pelos conhecidos de Seu
Zico e é como o identificaremos no decorrer deste trabalho) sobre sua trajetória não
reflete apenas a sua descrença individual de se aventurar em outras possibilidades de
vida. Reflete que, tanto no campo quanto na cidade, as pessoas pobres disputam um
lugar. A disputa é desleal, e arriscar é incorporar uma ilusão - vem achano que aqui vai
miorá, vai nada!
9
-, pois o que depois se materializa na cidade é a miséria e a
precariedade de vida.
Na cidade, os pobres enfrentam a falta de moradia, o desemprego, uma vida
cara, que os bicos e os trabalhos temporários não conseguem suprir. As favelas, os
barracos em beira de rio, construídos com restos de materiais (madeira, papelões,
plásticos, telhas), a morada de favor cedida por um conhecido ou parente, as
autoconstruções e até mesmo as casas populares financiadas são imposições a essa
população que busca ter um lugar na cidade. Além disso, enfrentam a realidade dos
planejamentos urbanos modernizantes, que determinam o lugar onde a população pobre
deve ocupar no espaço da cidade e em que condições.
Integram esse contexto os conjuntos habitacionais construídos na década de 80 e
os bairros novos, surgidos a partir dessa época, nos entornos da cidade. A política
habitacional em Uberlândia vem mostrando a efetivação de um jogo de interesses, com
9
Sr. Alceu Francisco dos Santos (Seu Zico), 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada,
residente em Uberlândia há 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
a valorização de áreas próximas aos novos empreendimentos ou seu uso eleitoreiro,
enaltecendo a administração pública responsável visando as campanhas futuras
10
.
Nesses espaços, os moradores vão construindo suas vivências, buscando, ao
longo de suas vidas, suprir suas necessidades, alcançar as suas expectativas. Para isso,
eles enfrentam constantemente o Poder Público na luta pela efetivação dos seus direitos.
Ficamos a pensar naqueles que não tinham uma terra, um trator, uma caixa de
tomates ou uma galinha para vender, em como prosseguiriam seus dias na cidade.
Seguir adiante nem sempre depende de um espírito empreendedor, muitas vezes, é mais
o desespero dessas pessoas de não se ter muitas escolhas. Às vezes, o sofrimento na
cidade, o desemprego, a falta de moradia e a saúde precária levam os trabalhadores a
repensar essa caminhada (do campo para a cidade). E, talvez, fazer o caminho de volta
(da cidade para o campo) se resume na incerteza da vida, mais uma vez, de não se ter
um lugar na cidade para se viver dignamente
11
.
O retorno para a zona rural aparece como uma das alternativas possíveis, porém,
em situações mais difíceis, com a idade avançada e com a família maior (filhos casados
e netos). Se ao longo dos anos as estratégias falharam, a necessidade de sobreviver fez
com que se acreditasse em novas investidas.
Andando pelo caminho de terra outra vez e avistando lá na frente da roça, o
retornar traz decepção, cansaço, mas garante uma certa satisfação ao perceber que a
cidade nunca foi, efetivamente, a sua escolha de vida, mas, sim, uma busca por viver
melhor que não deu certo.
Ao depararmos com as várias possibilidades de viver criadas pelos sujeitos em
estudo, sentimos a necessidade de analisar os espaços que ocupavam, como imprimiram
(e imprimem) valores e hábitos neles, as estratégias de sobrevivência que estabeleceram
(e estabelecem).
Para isso, a produção de fotografias sobre o Bairro Vila Marielza se tornou
muito importante para a reflexão desses territórios, sendo parte analítica do objeto de
estudo, permitindo compreender expressões e lugares demarcados pelos moradores.
10
Sobre essa questão ver: PETUBA, R. M. S. Op. cit., 2001; REIS, M. V. Entre viver e morar:
crescimento urbano e trajetória da classe popular. Uberlândia anos 80/90. (Qualificação Mestrado em
História), Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, 2002; BESSA, K. C. F. O.;
SOARES, B. R. O significado da especulação imobiliária no espaço urbano de Uberlândia. In: História &
Perspectivas, Uberlândia: EDUFU, n. 16/17, 1997, p. 121-148.
11
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, residente em Uberlândia há 22
anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
Isso não significa estar preso ao tempo e enquadramento da foto, mas em tê-la
como uma fonte de investigação, pois como nos diz CARVALHO, a fotografia
corresponde a uma realidade decodificada pelo nosso olhar e processada pelo nosso
intelecto, sendo eferente ao real, mas não a realidade recriada (...) será sempre um
artefato (...) parcial de percebermos a realidade
12
.
O trabalho com os jornais foi realizado no Arquivo Público Municipal e contou
com a colaboração de funcionários e pesquisadores, tanto na disponibilização do
material, quanto em sugestões para a pesquisa. Devemos ressaltar que o estado de
preservação da documentação não é dos melhores. A despreocupação com a memória e
com os acervos históricos é grande, esquecendo-se de que jornais, revistas, livros e
outras documentações são importantes para os pesquisadores como fonte de
questionamentos e de apoio para a construção de seus trabalhos. Esta é, infelizmente,
uma prática em nosso país. É preciso rever os valores culturais do Brasil, assim como da
pesquisa, permitindo que as produções documentais não sejam confinadas às traças e ao
mofo, e sim, possibilitem novas leituras e discussões sobre a nossa sociedade.
Para a elaboração desta dissertação, concentramos a análise no jornal Correio de
Uberlândia, atual Correio, visto que é um veículo que percorre todo o período de
análise, chegando aos dias atuais como o único sobrevivente dos percalços da imprensa
na cidade.
Por ter uma linha de trabalho voltada para as diretrizes do Poder Público,
consideramos desnecessário aprofundar as pesquisas nos demais jornais (Tribuna de
Minas, A Notícia, Primeira Hora) - estes jornais não veicularam (ou circularam) durante
todo o período da nossa análise, por não diferenciarem muito das análises jornalísticas
do Correio de Uberlândia e, nem mesmo, os temas que estavam sendo abordados,
exceto algumas reportagens dos anos de 1981 e 1983, em que utilizamos o Jornal A
Notícia, e uma matéria de O Município, de 1980, um jornal produzido pela Prefeitura
até os dias atuais.
A utilização dessa documentação nos fez atentar às tensões da cidade e como se
estabeleciam as relações entre Poder Público e população pobre uberlandense a partir da
visão jornalística. Nesse sentido, captar as opiniões dos jornais e os objetivos que
possuíam ao se manifestarem sobre as questões sociais (emprego, moradia, custo de
vida) contribui de forma mais intensa para a reflexão da expulsão dos pobres, o
12
CARVALHO, T. C. de. Fotografia e Cidade: São Paulo na década de 1930. Dissertação (Mestrado em
História). História, Pontifícia Universidade Católica, s/d, p. 8.
desequilíbrio urbano e o simbolismo do progresso, deitando suas raízes sobre a imagem
de Uberlândia. A crise social aparece esparsa e sem grande articulação com o todo do
jornal e isso serve para nos mostrar a visão de cidade que a imprensa propõe, assim
como a fidelidade que ela tem aos projetos da Administração local.
O jornal, como um veículo formador de opiniões, representa interesses bem
definidos e, aparentemente, resguarda o compromisso com o leitor, porém o que
observamos é que, antes disso, aparecem outras relações que acabam determinando as
diretrizes do jornal que, como empresa que é, visa lucros, benefícios e sua manutenção
no mercado.
A pesquisa
13
realizada no início de 2001 pela Universidade Federal de
Uberlândia e financiada pela Prefeitura Municipal de Uberlândia permitiu avaliar como
a administração pública municipal percebe os moradores da cidade e as temáticas que
priorizou neste trabalho, como a pobreza, saúde, migração, moradia, educação, trabalho,
renda familiar. Dados que, como o título sugere - Condições Sócio-Econômicas das
Famílias de Uberlândia -, não avançam em discussões sobre as problemáticas, apenas
apresentam os índices alcançados com as amostragens.
A sociedade uberlandense não estava totalmente representada nesse trabalho,
pois os bairros ilegais, como o Vila Marielza, não participaram da pesquisa e, com isso,
de acordo com a proposta da pesquisa - avaliar a situação dos moradores da cidade para
traçar metas de melhorias das condições de vida - deixou de fora os locais inexistentes
oficialmente, colocando-os, mais uma vez, à margem dos projetos da cidade. Sua
contribuição foi no sentido de refletir a proposta do Poder Público com esse trabalho,
assim como os resultados por ele alcançados.
Já a entrevista, mesmo sendo uma vivência particular
14
, traz grande contribuição
para a reflexão histórica. Como PORTELLI sugere, proporciona a investigação do
diverso, de experiências de vida, de sentimentos criados, pois cada entrevista é
importante, por ser diferente de todas as outras
15
. Possibilitando-nos, assim, ir além da
história economicista, cronológica e objetiva.
13
LEME, H. J. de C; NEDER, H. D. (coord.) Condições Sócio-Econômicas das Famílias de Uberlândia.
Uberlândia: UFU, novembro 2001, (mimeo). p. 24-49. (pesquisa CEPES-UFU/Prefeitura Municipal de
Uberlândia).
14
Como nos diz Portelli, a memória ainda que (...) seja moldada de diversas formas pelo meio social, em
última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. Cf. PORTELLI,
A. Tentando aprender um pouquinho. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 15, abril 1997, p.16.
15
PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 15, abril
1997, p. 17.
Trabalhar com fontes orais nos permitiu analisar os sentidos e significados da
memória, abrindo-nos oportunidades múltiplas de interpretação dos mundos possíveis
criados nas lembranças dos migrantes rurais
16
.
No momento em que se propõe o uso das fontes orais, deve-se estar aberto às
reelaborações que os entrevistados produzem e, não, simplesmente entendê-las como
uma documentação em que se conta fatos, pois as fontes orais contam-nos não apenas o
que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora
pensa que fez
17
. Na verdade, a fonte oral nos instiga a lidar com o humano, o sensível, o
parcial, mostrando-nos que possui uma lógica
18
.
Assim, quando KHOURY nos diz que mais do que buscar dados e informações
nas fontes, nós as observamos como práticas e/ou expressões de práticas sociais
através das quais os sujeitos se constituem historicamente
19
, ela nos chama a atenção
para observarmos o lugar de onde as pessoas falam e se colocam ao reelaborarem suas
trajetórias, porque isto é determinante para a análise da visão de mundo, dos valores, do
viver dos entrevistados.
As entrevistas possibilitam ao historiador perceber, não o que se passou, mas,
sim, a elaboração do passado à luz do presente que se vive. Entendemos que muitos dos
destaques ou reflexões sugeridas nesse olhar o passado é, em grande parte, o buscar
respostas para como se chegou ao que se vive hoje.
16
Quando mencionamos mundos possíveis, estamos nos remetendo às expectativas que permaneceram
nos indivíduos além do fato vivido, o que não se alcançou. Nesse sentido, rompe-se com o silêncio que a
objetividade constrói e mostra como a subjetividade, as esperanças, os desejos dos sujeitos é que
delineiam o remontar de suas lembranças. O imaginar possibilidades invade a memória e se insere nos
entrevistas, permitindo-nos desvelar os sentimentos que as pessoas trazem arraigados às suas trajetórias.
Ver PORTELLI, A. Sonhos Ucrônicos. Memória e Possíveis Mundos dos Trabalhadores. Trad. Maria
Therezinha Janine Ribeiro. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 10, dez. 1993, p. 41-58.
17
PORTELLI, A. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, São Paulo: EDUC, n. 14, fev.
1997, p. 31.
18
Sobre a lógica histórica, torna-se interessante nos remeter ao trabalho de THOMPSON, E. P. A lógica
histórica. In: __________. Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros. Uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 61. É Onde o autor escreve: A explicação histórica
não revela como a história deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira, e não de
outra, que o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade, que certos
tipos de acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionaram-se, não de qualquer maneira que
nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades,
que certas formações sociais não obedecem a uma "lei", nem são os "efeitos" de um teorema estrutural
estático, mas se caracterizam por determinadas relações e por uma lógica particular de processo.
19
KHOURY, Y. A. Narrativas Orais na Investigação da História Social. In: Projeto História. São Paulo:
EDUC, n. 22, p. 81, jun. 2001.
Ao propormos trabalhar com fontes orais, devemos assumir quais são os nossos
objetivos, o que procuramos questionar, o que queremos aprender
20
com esses sujeitos
sociais. Mesmo porque eles são colaboradores na elaboração das respostas que damos às
nossas indagações, são a trilha que percorremos em busca de encontrar um sentido para
o processo histórico que vivemos. Temos de declarar a grande contribuição desses
entrevistados para a discussão histórica e dos projetos de sociedade que estão em jogo.
A vivência que eles possuem e o quanto interagiram nas transformações de seus
cotidianos é que vão determinar a sua contribuição para a investigação. Nesse sentido, o
tempo de moradia, na cidade de Uberlândia, os movimentos em que estão (estiveram)
envolvidos são fatores que tornam as entrevistas mais representativas, pois traduzem as
práticas sociais vividas e as estratégias criadas pelos migrantes rurais na cidade.
A princípio, os entrevistados seriam os egressos do campo das décadas de 1970
e 1980 que se rearranjaram na cidade de Uberlândia
21
. Dentro dessa proposta, onze
entrevistas foram realizadas
22
, uma cedida por Maucia Vieira dos Reis para este
trabalho
23
. Porém, ao trabalhar com os moradores do Marielza, esmiuçando seu
cotidiano, outros sujeitos foram inseridos na produção da dissertação
24
: Dona Hilda,
20
PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho. In: Projeto História, São Paulo: EDUC, n.15, abr.
1997, p. 29.
21
Não buscamos, com isso, uma homogeneidade de viveres, mas, sim, como Portelli sugere, refletir as
lutas, valores, hábitos, sentimentos desses sujeitos, reconhecendo as diferenças e particularidades de cada
um. Cf. PORTELLI, A. Forma e Significado na História Oral. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n.
14, fev. 1997, p. 23.
22
Seu Zico, 65 anos, morador do B. Alvorada, residente em Uberlândia há 22 anos, entrevista realizada
dia 14/06/2001; Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B. Tibery, residente em Uberlândia há 24 anos,
entrevista realizada dia 14/06/2001, faleceu no dia 31/12/2002; Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos,
morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001; D.
Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista dia 21/07/2001; Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do
B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/19/2001; D. Maria
Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília, residente em
Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001; D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30
anos, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista realizada dia 09/05/2002; D. Elídia Maria dos
Reis, 76 anos, moradora do B. Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia 10/05/2002; D. Nilsa
Ferreira Coutinho. 53 anos, moradora do B. Vila Marielza há 10 anos, entrevista dia 10/05/2002; D.
Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002 e D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, moradora do B. Vila Marielza há 19
anos, entrevista dia 30/10/2002, a entrevistada não aceitou a gravação de nossa conversa.
23
Sr. Osvaldo Rodrigues do Nascimento, 58 anos, morador do B. Segismundo Pereira, residente em
Uberlândia há 22 anos, entrevista realizada dia 01/12/2001, feita por Maucia Vieira dos Reis, gentilmente
cedida para o meu trabalho.
24
Sr. Zaqueu Maciel Gomes, 30 anos, morador do B. Vila Marielza há 3 anos, entrevista obtida dia
15/08/2002. O entrevistado não aceitou a gravação da nossa conversa. D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59
porque é presidente da Associação de Moradores e D. Célia porque é dona de bar. Neste
espaço, circula grande parte dos moradores, notícias, entretenimento e negócios, por
isso, o espaço do bar passou a fazer parte da análise e, também, o Sr. Zaqueu, que me
auxiliou na compreensão da religiosidade dos moradores da vila.
Expandir as entrevistas para aqueles que não vieram do campo se tornou
pertinente à medida que ajudou na reflexão sobre as vivências dos egressos do campo na
cidade, os modos de vida, as relações de convivência e táticas que foram (vão) criando
no novo espaço.
Desse modo, passo a perceber que o trato com as fontes orais exige cuidado e
respeito à memória construída pelos entrevistados, pois ela traz anseios, sofrimentos,
conquistas particulares, cabendo a nós, historiadores, fazer a nossa leitura, tendo a
percepção de que o ato de recordar possibilita ao sujeito que lembra identificar-se com
suas próprias histórias
25
, e de que os sujeitos desse processo que irão remontar seus
objetivos e expectativas
26
, recriando sua identidade e sua própria história
27
e
constantemente apresentando a sua interpretação sobre os fatos
28
.
Com este trabalho, a tentativa foi seguir um pouco a proposta de KHOURY de
produzir um conhecimento histórico que crie um canal entre a vida e a história, que
crie um canal de visibilidade desses sujeitos, onde a nossa interpretação também ajude
a construir a história
29
.
anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista realizada dia 15/08/2002; D. Célia Custódio
Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5
anos, entrevistas realizadas dias 14/05/2002 e
30/10/2002.
25
LUCENA, C. T. Artes de Lembrar e de Inventar - (re)lembranças de migrantes. São Paulo: Arte &
Ciência, Coleção Universidade Aberta, 1999. Resenha de FENELON, D. R. Migrações e Memória:
campo e cidade nas lembranças de migrantes. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 19, p. 276,
novembro, 1999.
26
Observando essa questão, a fala de Portelli permite que percebamos o quanto a subjetividade se coloca
nas lembranças dos entrevistados, vendo que “o tempo é articulado conforme a reelaboração solicita”,
dando sentido às entrevistas tanto para si quanto para o contexto em questão. Essa discussão foi realizada
em palestra proferida por Portelli, na aula inaugural da IV Turma de Mestrado em História da
Universidade Federal de Uberlândia no dia 24 de abril de 2002.
27
LUCENA, C. T. Artes de Lembrar e de Inventar - (re)lembranças de migrantes. São Paulo: Arte &
Ciência, Coleção Universidade Aberta, 1999. Resenha de FENELON, D. R. Migrações e Memória:
campo e cidade nas lembranças de migrantes. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 19, p. 276,
novembro, 1999.
28
PORTELLI, A. A filosofia e os fatos. In: Tempo. Rio de Janeiro: s/n, v. 1, n. 2, 1996, p. 60.
29
KHOURY, Y. Missão de Trabalho PROCAD, 12/04/02, (transcrição).
Ao mesmo tempo, buscamos, na trajetória das pessoas, por que reconstroem suas
vivências de tais formas e não de outras, destacando o peso do simbólico em suas
entrevistas.
A produção dialógica (historiador e entrevistados) permitiu que um anseio
pessoal fosse compartilhado com esses sujeitos, amadurecido com a pesquisa e
aprofundamento teórico e publicizado por meio desta dissertação.
De certo modo, penso que um primeiro passo foi dado rumo às novas posturas
do marxismo e da História Social. Mais ainda, o posicionar-se de sujeitos políticos que
almejam viver melhor e com mais dignidade.
No primeiro capítulo, discutimos como se dá o processo de expulsão de
trabalhadores e pequenos proprietários rurais nas décadas de 1970 e 1980, observando
os motivos, as perdas, os ganhos, o quanto essa mudança de vida deixa marcas e traz
transformações nos viveres desta gente.
A partir das suas entrevistas, procuramos entender um pouco os significados
desta saída rumo à cidade de Uberlândia e como em seus sentimentos suscitam
carências sociais, esperanças e motivações para rearranjarem seus modos de vida. As
expectativas que constroem em relação a Uberlândia (estabilidade, direitos sociais,
conforto para todos) dão-lhes força para ocupar regiões e buscar trabalhos na cidade que
lhes permitam sobreviver.
Neste enredo, investigamos os lugares que ocupam, como imprimem seus
valores e hábitos. Os bairros pobres e de baixa qualidade de vida (distantes do centro de
Uberlândia, moradias precárias, falta de segurança, sem infra-estrutura, ou apenas parte
dela instalada) recebem a população de baixa renda, levando-a a conviver com as
mazelas da cidade bem de perto.
Portanto, discutir tais questões nos levou a indagar até que ponto a exclusão
vivenciada no campo não se prolonga na urbe, acarretando, assim, a luta por um lugar?
O segundo capítulo se dedica principalmente aos moradores do Vila Marielza,
discutindo também trajetórias comuns de egressos do campo e os locais ocupados por
trabalhadores rurais e pequenos proprietários na urbe.
O Vila Marielza foi um espaço de descobertas e de possibilidades de pesquisa.
Esmiuçar o que seus moradores buscaram (buscam) na cidade, que trabalhos e relações
firmaram (firmam) para sobreviver, como interpretaram (interpretam) seus viveres e o
que esperavam (esperam) para o amanhã, permitiu-nos encontrar brechas para refletir os
modos de vida e a exclusão social.
Nesse capítulo, a forma como utilizam os quintais, como constroem suas casas e
as estratégias que criam para driblar o alto custo de vida (o uso do fogão à lenha, o
alimento que se traz da roça onde trabalha, a criação de galinhas e porcos) são
importantes peças do mosaico de táticas da ocupação de territórios na cidade.
Os moradores do Marielza, por residirem num bairro ilegal, com graves
carências urbanas e sociais (infra-estrutura, creche, transporte coletivo, atendimento
médico), vão construindo formas de convivência com o precário, entendendo-o como
provisório e, às vezes, como a única possibilidade de vida.
Com isso, a discussão sobre o lugar da população pobre na cidade emerge como
uma dupla denúncia do descaso do Poder Público para com essas pessoas e das
tentativas de expulsão que elas enfrentam cotidianamente.
No terceiro capítulo, os moradores da Vila Marielza proporcionaram discussão
acerca das lutas e dos valores da população que veio do meio rural para a cidade.
Assim, a luta por melhorias, bem como os valores que elencam como
motivadores de suas relações de convivência, implica no modo de viver na vila, nas
prioridades a serem reivindicadas junto ao Poder Público. As entrevistas expressam os
sentimentos, os desejos dos moradores que os levam a lutar, ou não, por uma causa.
A diversidade de reelaborações do passado vivido na comunidade possibilitou-
nos mergulhar nas expectativas pessoais construídas no presente e entendê-las como
falas diferentes em seu conteúdo, mas tão próximas em relação às suas expectativas:
encontrar maneiras de viver melhor.
A Associação de Moradores foi um importante mote de reflexão a partir do
momento em que se observou a demora para a sua fundação (quase vinte anos) e, em
contraponto, o papel relevante que assume para o encaminhamento de reivindicações
dos moradores.
O terceiro capítulo se fundamentou na análise das estratégias dos moradores
diante da ausência de políticas públicas, como também os valores resguardados e
transformados no cotidiano de trabalho pesado e de poucos recursos.
A família, as festas nas fazendas e os bares são percebidos como espaços de
convivência importantes para essas pessoas que encontram nesses ambientes, diversão e
apoio para a sobrevivência (forró, namoros, auxílio de parentes, manutenção de relações
de trabalho).
Igualmente, a religiosidade, o convívio intenso na Capela da Fazenda de Olhos
d'Água permeia um costume de quando se morava na fazenda e, ao mesmo tempo,
fortalecido por ser o local de onde vem parte da ajuda que ameniza as suas carências
básicas (atendimento médico infantil, cestas básicas, remédios). Local onde as
promessas se tornam um caminhar de conquista e que se materializam quando se vê a
folia de reis chegando ao bairro para se cumprir o voto.
Todos esses momentos, de convivência e construção de um lugar, mostraram a
diversidade de reelaborações dos modos de vida dos migrantes rurais, assim como a
dificuldade e exclusão que enfrentaram (enfrentam) para se manter na cidade, morando,
trabalhando e resguardando valores e hábitos.
CAPÍTULO I
VAMO EMBORA, CHEGA!
*
:
O HOMEM DO CAMPO EM BUSCA DE UM LUGAR
*
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
Desterrados
Sobreviventes
Aqueles que mostram a
esperança no seguir,
No se arranjar.
Desmistificam a
inocência
Mostrando que a vida é
bem mais que sobrar
É também saber jogar
(Sheille)
A dinâmica das relações sociais que se dão entre o campo e a cidade demonstra
um conflito latente de costumes e interesses de pessoas que, por razões múltiplas,
deixam o campo e se reportam à cidade. Nela, integram-se a um cenário diverso e
contraditório, entremeado de ações e sentimentos que, à primeira vista, parecem
distantes de seus viveres, mas em conjunto com o seu passado rural, podem elucidar o
seu caminhar, levando-nos a perceber, a partir do cotidiano que constroem, os contrastes
e as aproximações entre viveres rurais e urbanos.
A vida difícil no campo (trabalho duro e pesado, falta de assistência médica, de
estudo para as crianças, dificuldade de manter a família) contribui, e muito, para se
vislumbrar a cidade como aquela que poderia preencher as lacunas provocadas pela
ausência de direitos sociais.
Percebemos diferentes elaborações sobre as razões da vinda para a cidade e
sobre a vida no campo na fala dos sujeitos. Eles, às vezes, tentam camuflar seus
sentimentos com palavras vagas, ressaltam o deslumbramento com a cidade como
motivo da mudança. Tudo isso são formas, mesmo que parciais, de se desviar dos
sentimentos sofridos nos seus viveres, na expulsão do campo, no vivenciar a
desigualdade de oportunidades:
Eu vim por vontade, sabe? (...) tentá sair, quebrá a cabeça (...) só vim
quebrano a cabeça, porque se eu tivesse lá até hoje eu tava lá ainda
30
;
Motivo de dinhero, aqui na cidade gera dinhero, na roça, não(...) lá só
tem dispesa
31
;
30
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
31
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
no campo, eu sofri muito, num ganhava dinheiro a gente... é bão, é
bonito, tem muito contato com a natureza, mas muito difícil a vida
32
;
eu vivo dentro daquilo que eu acredito e eu não acreditava mais (...) o
motivo da vinda... é que, o que feiz, lá fico
33
;
lá pra tráis era muito mais difícil do que hoje (...) eu vim com projeto de
educá os filhos (...) porque a vida nossa é sofrida
34
.
Torna-se necessário ultrapassar o discurso apresentado pelos entrevistados.
Entender, além da memória que elaboram, o que traduzem e reelaboram sobre a
realidade ao longo de suas experiências, identificar e explorar tênues vestígios ou
nuanças perdidas nos meandros dos enredos construídos pelos entrevistados,
reconhecendo, naquilo que nos parece estranho, elementos de suas culturas, com
profundos significados nos seus modos diários de ser, de pensar e de fazer
35
.
Como KHOURY sugere, quando o Sr. Venâncio diz que vem para Uberlândia
em razão dos estudos dos filhos, aponta para uma realidade precária: não seria
necessário mudar da roça se eles tivessem acesso à educação. Além disso, havia o sonho
de os filhos cursarem a Universidade e terem um destino diferente do seu (sem
continuar na roça). Da mesma forma, perder a credibilidade no campo seria algo difícil
se a realidade vivida por essas pessoas não lhes mostrasse o contrário: aqui na cidade
gera dinhero, na roça, não (...) lá só tem dispesa
36
, o que feiz, lá ficô
37
. Estas são
algumas decepções vivenciadas no meio rural que levam o homem do campo a buscar
outros horizontes, outros sentidos que a cidade seria capaz de oferecer, inclusive de
suprir a ausência de benefícios sociais (como a educação, atendimento médico,
trabalho). Na fala dos entrevistados, a cidade é um caminho, à medida que eles
32
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
33
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
34
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
35
KHOURY, Y. A. Narrativas Orais na Investigação da História Social. In: Projeto História. São Paulo:
EDUC, n. 22, p. 98, jun. 2001.
36
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
37
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
elaboram seus seguir a partir do que se perdeu no campo. A sua mágoa em deixar o
meio rural é simplesmente não ter restado oportunidades para nele se viver.
Quando eles buscam a cidade, almejam alcançar um viver que lhes traga um
sentido de pertencimento a ela. Pois, à medida que carregam em sua trajetória a vivência
da exclusão, não a querem nessa nova etapa.
Analisar o movimento do homem do campo para a cidade envolve olhar o seu
passado, penetrar em suas expectativas futuras e compreender suas aspirações do
presente. Para tanto, PORTELLI em muito auxilia este trabalho, quando discute que o
início da história ocorre no momento em que, para os sujeitos sociais, a realidade se
torna conflituosa, mexe com o seus modos de vida
38
:
Desse modo, entendemos que a reelaboração feita pelos entrevistados não é
muito diferente do que PORTELLI nos sugere, pois o momento em que a modernização
aparece em suas falas, não é quando a política do governo militar é implementada, mas,
sim, quando as suas relações e necessidades começam a se alterar. Nesse sentido, as
suas narrativas quase sempre se iniciam quando já estavam deixando a roça, ou quando
a crise já se apontava. O Sr. Paulo Henrique é muito claro ao perceber o que é
necessário no viver rural e a dificuldade em fazer parte desse meio: porque a roça dá
dinhero, mas precisa de muito dinhero aplicado pra depois tê retorno, porque na roça
precisa de energia (energia elétrica), precisa de maquinário, precisa de funcionário
39
.
O Sr. Boaneja, que tem certa recusa em falar dos problemas vividos, deixa claro
que, a partir do momento em que a insegurança se torna parte do seu cotidiano, já se
estabelece o conflito de viver, ou não, na roça: eu tocava lavora, tinha ano que eu
ganhava, tinha ano que eu num ganhava. Tinha ano que eu tava rico, tinha ano que eu
tava pobre
40
.
Tanto nos jornais quanto nas falas, percebemos que essa trajetória não se dá de
forma tranqüila. Os trabalhadores rurais, os pequenos proprietários e os arrendatários
são os mais prejudicados no processo de expulsão e capitalização do rural. São eles que
38
PORTELLI, A. O Massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política,
luto e senso comum. In: FERREIRA, A.(org.) Usos e Abusos de História Oral. 2ed. Rio de Janeiro: FGV,
1998. p. 112. “Em termos narrativos, o incipt, o princípio da história, assinala a passagem do equilíbrio,
do estático e da ordem para a desordem, o conflito e o dinâmico. Antes de a história ter início, por
definição, nada acontece, ou pelo menos nada que valha a pena contar”, e também cf. p. 114.
39
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
40
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
reconstroem a realidade vivenciada conforme a entendem e, a partir dela, explicam os
rumos tomados por suas vidas.
Ao repensar a saída do campo, os sujeitos indicam várias razões, se assim
podemos dizer, por optar pela cidade e, em particular, por Uberlândia: tentar a vida,
buscar conforto para a família ou atendimento médico e escolas para os filhos. Analisar
o porquê desse movimento das pessoas do meio rural e como ele ocorreu faz remexer
num passado contraditório, de desencanto e saudades, o bom que é difícil
41
,
ultrapassando a seqüência de fatos e percebendo os sentimentos envoltos nas narrativas
dos entrevistados: (na roça) parece que a gente num tinha assim uma segurança (...) a
gente plantá lavora é muito difícil. Aquilo ali ocê tá, ocê planta mais num sabe se ocê
vai coiê, é arriscado
42
.
Como o Sr. Osvaldo indica, a insegurança no campo o incita a dar credibilidade
à cidade, investindo nela os sonhos não realizados de estabilidade e vida digna.
Acreditamos que a cidade era um espaço que surgia para o homem do campo como uma
esperança de vida melhor. Para quem não tinha mais nada a perder, buscar novas
possibilidades de sobrevivência era imprescindível: Não, eu num tenho vontade mais de
morá na roça, muito cansativo mesmo
43
.
A partir do que vivenciaram na migração, da experiência que elaboram, eles vão
repensando essa trajetória. Nesse sentido, a reflexão do Sr. Venâncio sobre a vinda de
pessoas da roça parte da análise de sua própria prática migratória, deixando claro que
ela deve ser algo pensado e planejado, pois, para ele, a dignidade está em ter endereço
na cidade, isto é, ter casa própria, pois aluguel é permanecer fora, é continuar a
instabilidade que deixou no campo. Estar incluído é ter endereço e isto é uma melhora:
ela (migração) é feita, muitas veis, em pensamento que a pessoa do
campo (...) a família no geral pensa que vai miorá, pensa que lá é fácil
(...) e vem sem estrutura nenhuma, vem pensano que Uberlândia é uma
cidade fantástica, e de fato é, mas nóis tem que (...) não pode chegá com,
sem nada, tem que trazê as coisas pra já se fazê um suporte (...). Se vem
41
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
42
Sr. Osvaldo Rodrigues do Nascimento, 58 anos, morador do B. Segismundo Pereira, residente em
Uberlândia há 22 anos, entrevista realizada dia 01/12/2001, feita por Maucia Vieira dos Reis cedida para
o meu trabalho.
43
Dona Maria Rosa de Melo, 44 anos, moradora do bairro Jardim Brasília, residente em Uberlândia há 24
anos, esposa do senhor Paulo Henrique. Entrevista realizada dia 19/09/2001.
pra cidade. Se vem pra cidade com dignidade, pelo menos de tê uma
moradia
44
.
No momento que esses sujeitos mantêm uma relação com a cidade,
experimentam também a exclusão de benefícios e de sonhos. A partir de tal percepção,
elaboram a moradia como um valor. Ter casa é uma das estratégias de pertencer à
cidade, de se ter um lugar nela.
A reelaboração que esses expurgados fazem de suas trajetórias de trabalho, a
perda de tudo e ausência de direitos sociais faz com que traduzam a moradia como
conforto, um direito, o primeiro passo para se viver melhor. A moradia significa, para
muitos entrevistados, a estabilidade procurada. A exemplo do Sr. Venâncio e Seu Zico,
ela significa uma segurança no viver na cidade.
Nessa direção, encontramos grande número de matérias nos jornais de
Uberlândia sobre habitação ao longo da década de 70, o que nos leva a crer que a vinda
desse contingente rural não era proporcional às habitações urbanas acessíveis à sua
renda. O déficit de moradia para as populações de baixa renda irá justificar a prioridade
dada pelo Poder Público à sua política habitacional. Isso não significa, no entanto, que
se tenha resolvido o problema e, sim, que colocaram a questão em discussão,
apontando, em matérias, como a do fragmento que vem a seguir, as dificuldades vividas
nesse momento de grande urbanização: Uberlândia não tem condições de absorver a
mão-de-obra existente, o que enseja o favelamento, aumentando o índice de
marginalização social
45
.
O jornal Correio de Uberlândia, durante a década de 70, demonstra que o
problema da habitação se faz sentir em Uberlândia
46
. As reflexões, relacionando
expulsão do campo e favelização, tornaram-se correntes nesse período
47
:
44
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B. Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
45
OPINIÃO: Esvaziamento do Triângulo. Correio de Uberlândia, 09 jul. 1971. p. 03.
46
Cf., por exemplo, UMA Gota de Política. Portela Sucupira II. Críticas a Política Habitacional. Correio
de Uberlândia, 23 mar. 1973. p. 02; MIL Casas do BNH para Uberlândia. Correio de Uberlândia, 15 dez.
1970. p. 02; PROBLEMA Habitacional é grave na cidade. Correio de Uberlândia, 25 maio 1973. p. 01;
OPINIÃO: Nova estratégia Habitacional. Correio de Uberlândia, 28/02/73. p. 02; CASAS, Casas.
Correio de Uberlândia, 05 fev. 1973. p. 06.
47
Interessante também a visão sobre como evitar a expulsão do campo na matéria de OLIVEIRA, I. J.
Habitação rural. Correio de Uberlândia, p. 07, 23 ago. 1970; DESCUMPRIMENTO da legislação
a lavoura continua esperando o cumprimento das promessas, atuais e
antigas, novas e velhas. Enquanto espera, desespera. E muitos
abandonam a terra, abandonam a lavoura, e vêm buscar uma arriscada
e incerta existência nas cidades grandes. O drama da indigência é o
reflexo mais distante e mais doloroso da crise agrária. A favela é o
negro cartão de visita do êxodo rural(...). Então os problemas agrários
continuam sendo problemas
48
.
Gostaríamos de ressaltar que a grande preocupação em construir casas e o
aumento das favelas revela que as pessoas estão chegando à cidade e não estão sendo
acolhidas. Os jornais, mesmo mostrando de forma compartimentada as tensões da
cidade, possibilitam-nos vasculhar esses indícios das relações sociais, permitindo
compreender as implicações, ou não, da desestruturação do espaço urbano, do alto custo
de vida, das relações de trabalho no cotidiano das pessoas que estão vivendo em
Uberlândia. Neles, os migrantes, "a gente de fora", recebem a culpa
49
pelo aumento da
marginalidade e pelo agravamento da crise urbana:
O pior é que a nossa bela Uberlândia já começa a pagar o preço do seu
progresso. Quando era pequena e todos se conheciam, o marginalismo
tinha um volume menor. Agora os assaltos são praticados em plena via
pública, ao calor do sol do meio dia (...) é o preço do progresso (...) mas
creio tratar-se de elemento de fora, vindo em busca de oportunidade,
atraído pela cidade que cresce (...). É imprevisível a reação de um
indivíduo flagrado, frustrado em suas intenções
50
.
As matérias sobre habitação e replanejamento urbano apontam a necessidade de
se resolver o acúmulo populacional provocado pela chegada de novas indústrias e de
empresários, de estudantes universitários e de trabalhadores expulsos do campo. Se na
cidade o problema aparece mais como de denúncia dos efeitos do inchaço populacional,
provoca êxodo rural. Correio de Uberlândia, 23-24 ago. 1975. p. 02; A META é evitar o
empobrecimento rural. Correio de Uberlândia, 05 abr. 1974. p. 04.
48
ESTATUTO da Terra. Correio de Uberlândia, 17 jan. 1974. p. 04.
49
Sobre essa nomeação de culpas, Portelli, em aula inaugural da IV Turma de Mestrado em História da
Universidade Federal de Uberlândia, no dia 24 de abril de 2002, nos indica que a culpa aparece no meio
social como forma de resolver, ou seja, ocultar as contradições e ambigüidades da sociedade, pois à
medida que ela (a culpa) se estabelece não se questiona, nem se discute, ou mesmo se encara, os
problemas sociais vividos cotidianamente na cidade (desigualdade de renda, desemprego, carestia,
violência, etc.). Esse tipo de colocação sugere então questionarmos a quem e a quê atende incidir culpa
dos problemas urbanos aos ditos elementos de fora.
50
THEREZINHA. Lar & Mulher: Os Castigos do Progresso. Correio de Uberlândia, p. 03, 23 maio 1974.
para o campo, pensam-se formas de conter a saída dos trabalhadores e pequenos
proprietários. Desse modo, é perceptível que a transferência do lócus de discussão
(cidade ou campo) não sana a causa primeira: a exclusão.
Seja a expulsão direta ou indireta do campo, seja a periferização na cidade, o
problema permanece. As perguntas que emergem deste conflito começam a incomodar:
como as pessoas transformam seus viveres de modo a se sentirem pertencentes ao
universo social? O que simboliza não ser mais excluído? Para os migrantes rurais, até
que ponto campo e cidade não refletem um mesmo conflito?
À primeira vista, é o despreparo da cidade para receber esta população rural que
chama a atenção para o mover-se do campo. Falta de casas, aumento dos aluguéis,
desemprego, aumento do preço dos alimentos e favelização crescente são alguns dos
problemas que fazem a chegada à cidade não passar despercebida:
a expansão das cidades decorre, principalmente, dos altos índices de
crescimento demográfico, da industrialização e da mobilidade social,
estando implícita a migração de contingentes rurais para as áreas
urbanas
51
.
As discussões nos jornais, que começam a apontar a vinda de pessoas do campo,
indicam esparsamente alguns porquês dessa transferência e sugerem alternativas de
soluções para o crescimento populacional. O que tudo indica é que não havia políticas
de contenção da vinda desses migrantes e, menos ainda, soluções para os problemas
causados por ela.
O homem do campo, devido à sua dificuldade em se inserir no projeto agrícola
vigente desde 1964 (mecanização, política creditícia, seguro rural) acaba sendo
expurgado do meio rural, onde prevaleceram as empresas rurais, os tratores, as
colheitadeiras, as agroindústrias:
Os fazendeiros que não se adaptam ao sentido econômico da produção
começam a abrir mão da terra e se transformam em comerciantes
urbanos. Em compensação voltam-se para a agricultura e a pecuária
homens com o corte de empresários, vitoriosos em outras atividades,
inclusive na indústria. Aparecem na paisagem montanhesa os grandes
empreendimentos agropecuários, através de projetos ambiciosos, com o
apoio governamental
52
.
51
PROBLEMAS Urbanos. Correio de Uberlândia, 11 dez. 1974. p. 04.
52
UMA Gota de Política: Avanço Mineiro. Correio de Uberlândia, 29 jan. 1974. p. 02.
Porém, indo mais longe nessa análise, "o sentido econômico da produção", "o
abrir mão da terra", que parece tão simples e justificável (quem não se ajusta aos novos
tempos, não permanece nesse meio), leva-nos a entender que não foi a falta de arriscar
que excluiu uma camada significativa de pessoas. As práticas do homem do campo
pareciam não ser mais controladas pelos seus interesses e valores e, sim, por aqueles
que se legitimavam donos do rural, através do latifúndio, da maquinaria e da alta
produtividade, os considerados aptos a essa nova função econômica do campo.
A proposta para o meio rural, dinamizada no período militar, trouxe grandes
resultados de produtividade e qualidade, mas também mostrou a falência de muitos
produtores e demissão de trabalhadores, o estrangulamento das práticas de parcerias e
arrendamentos, restando indagar: para quem eram os saldos positivos? Quem estava
conseguindo o crédito fácil? E mais, quem era assistido pelo governo em seus
empreendimentos?
A terra agora visava, mais do que nunca, lucros e rendimentos. Não seria com as
relações tradicionais que o grande produtor alcançaria esses resultados. O processo de
expulsão se dá de dentro para fora, não começa pela política, pelo mercado ou pelos
implementos. Ele se inicia na alteração das relações de trabalho e de vizinhança, na
necessidade de sobreviver, confirmando a busca pela lucratividade e capitalização das
relações.
Se, em alguns lugares, as relações de parceria ainda resistem, começam a ser
atípicas
53
à tendência e a serem vistas como restritas e desarticuladas do processo vivido
pela agricultura. Assim, o reestruturar de viveres muitas vezes está se relacionando à
necessidade de sair da precariedade da meia, do arrendamento e das incertezas sobre a
possibilidade de sobreviver no campo.
A nova proposta de capitalização para o campo traz novas relações entre
fazendeiro e trabalhador rural. O proprietário, fugindo das obrigações trabalhistas, assim
como da fixação de trabalhadores na fazenda, utiliza o trabalho temporário de
funcionários não residentes na fazenda como a melhor alternativa para gerir seus
53
De acordo com o texto de E. P. Thompson. Folclore, Antropologia e História Social. In: NEGRO,
Antônio L.; SILVA, Sérgio (org). As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos, Campinas:
UNICAMP, 2001. p. 235, este termo nos possibilita entender que as relações de parceria são atípicas no
sentido de que estas atividades não deixam de existir, apenas não são as principais a serem desenvolvidas
neste momento, pois não atendem as exigências do mercado e das políticas estabelecidas no campo, mas
que estão sendo praticadas, mesmo que de uma outra forma por um grupo de pessoas.
negócios. E o trabalhador, necessitando do trabalho, aceita as condições colocadas pelo
patrão.
Uma propaganda veiculada em 1970 nos indica qual era a meta a ser alcançada
com a política governamental, qual era a visão que o produtor deveria ter da terra. Essa
propaganda mostra que, antes de se implantar uma proposta político-econômica, esta
proposta tem de ser incorporada pelos sujeitos sociais e, nada mais atrativo, do que esse
discurso ao homem do campo:
Cuide com carinho do seu chão. Plante.
Da terra nasce a riqueza. Prepare a terra com amor. Quanto mais amor,
mais lucro.
Plante.
O Govêrno está convocando todos os agricultores para aumentar a
produção.
Acaricie seu chão com um trator. Em troca, êle produzirá em dôbro.
O Govêrno financia com juros reduzidos e a longo prazo, a aquisição de
implementos agrícolas.
Alimente a terra com fertilizantes. Com mudas e sementes selecionadas.
O Govêrno também lhe oferece crédito para isso.
Plante.
Existem 90 milhões de brasileiros para consumirem a sua produção. Não
se contente. Também existe o mercado exterior, que o Brasil quer
conquistar.
Participe dessa conquista. Isso dá dinheiro.
A riqueza está no chão. Plante
54
.
A seqüência "plante, riqueza, lucro, aumentar a produção, produzirá em dôbro
(sic), plante, não se contente, isso dá dinheiro, plante" mostra a incisiva fala do governo,
reforçada pelo jornal indicando como produzir utilizando sementes, implementos,
fertilizantes e crédito facilitado, o que iria gerar lucro e riqueza ao produtor, garantindo-
lhe um vasto mercado, tanto interno quanto externo. Ora, o que se pretende é conquistar
o produtor. Assim, o governo faz sua propaganda e, se hoje alguns entrevistados dizem
que perderam tudo pro banco
55
, como o casal Sr. Boaneja e D. Neusa, é porque, mesmo
em parte, incorporaram esses novos valores de trabalho, de produção e de vida.
Na realidade, a simplicidade de produzir em dobro, presente em tantas falas e
políticas agrícolas, não se dá, na prática, com tanta tranqüilidade. Mas sim, de forma
esparsa e diversa, prejudicando muitos dos que acreditaram nessa proposta: só trabalhô,
54
O FUTURO está no chão. Correio de Uberlândia, 19 jul. 1970, p. 05.
55
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
viveu a época que a gente passô, a gente viveu lá, e trabalho e lá acabou tudo, perdeu
pro banco, né?
56
.
Nesse sentido, muitas políticas foram desenvolvidas beneficiando produtos e
modos de produzir. As matérias jornalísticas estimulam e direcionam o que produzir,
para onde e como se deve plantar e investir
57
.
A dupla imagem da modernização da agricultura percorre as décadas de 1970 e
1980, pois a propaganda incentivando a inserção de capital nas empresas rurais, a
divulgação de resultados positivos de produtividade e comercialização deixava, em
segundo plano, a expulsão e o empobrecimento dos trabalhadores rurais e pequenos
proprietários.
Uma discussão pertinente sobre as tensões vividas no campo, pode ser vista no
jornal local, onde, ao mesmo tempo em que traz boas novas sobre o aumento da
produtividade, exportações da produção, avanço agroindustrial, grande mercado para os
financiamentos, como sintomas do processo modernizador
58
, traz também as
insatisfações com os preços mínimos dos produtos, grande saída das pessoas do campo
em direção às cidades, diminuição do emprego no campo, diminuição das parcerias e
arrendamentos, perda total de safras, dentre outros problemas, que deixam claro que o
projeto governamental para o rural foi excludente
59
.
56
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
57
Sobre essa questão, conferir: SECRETARIA da Agricultura vai implantar um "programa impacto" para
estimular a cultura de soja. Correio de Uberlândia, 27 fev. 1973. p. 04; ALGODÃO, soja e amendoim
darão riqueza ao Triângulo. Correio de Uberlândia, 26 out. 1971. p. 01; UMA Gota de Política. Portela
Sucupira II. A importância da sôja (sic). Correio de Uberlândia, 28-29 fev. 1970. p. 06; BENKO NETO,
J. Por que a soja. Correio de Uberlândia, p. 05, 20 ago. 1971; OPINIÃO: Cultura de Soja. Correio de
Uberlândia, 17 mar. 1973. p. 02.
58
OPINIÃO. Campos Férteis. Correio de Uberlândia, p. 02, 14 abr. 1973; VIEIRA, J. V. A
racionalização no uso dos cerrados. Correio de Uberlândia, 06 maio 1976, p. 06; OPINIÃO. A
Revolução do Campo. Correio de Uberlândia, p. 03, 29 out. 1971; A SAFRA vai até a raiz de seus
negócios. Correio de Uberlândia, p. 06, 15 ago. 1971; ALIMENTE este país e engorde o seu bolso.
Correio de Uberlândia, p. 03, 29 ago. 1971; Aumento da produção. Correio de Uberlândia, p. 07, 20 jun.
1972, BENKO NETO, J. Agricultor: é necessário despertar. Correio de Uberlândia, 01/10/70, p. 04;
NOSSA agricultura vai muito bem. Correio de Uberlândia, p. 04, 04 maio 1972; CRESCENTE procura
de máquinas. Correio de Uberlândia, p. 01, 22/08/73.
59
TERRORISMO Agrícola. Correio de Uberlândia, p. 02, 15-16 mar. 1980; FORTE calor e estiagem
assustando produtores. Correio de Uberlândia, p. 01, 28 nov.1974; PREÇO de fertilizantes entrava nossa
agricultura. Correio de Uberlândia, p. 04, 14 ago. 1974; O PRODUTOR é o mais sacrificado. Correio de
Uberlândia, p. 04, 16 ago. 1973; SITUAÇÃO da lavoura é dramática: 70% destruída. Correio de
Uberlândia, p. 01, 14 fev. 1971.
Além disso, os entrevistados, relatam bem os problemas que vivenciaram, pois
ao mesmo tempo em que eles demonstram uma satisfação com o modo e padrão de vida
que têm, denunciam que a vida foi (é) dura e injusta: eu num quexo das coisa do tipo da
vida, sabe? (...) não adianta eu irritá (...) vou dar valor aonde eu tô (...) tem que caçá
um jeito pra comê
60
. Se a vida é injusta, ela poderia ser diferente se o pequeno produtor
pudesse contar com o apoio do Estado:
A dificuldade sempre existe (...) É uma dificuldade, porque
principalmente o homem do campo, o pequeno produtor, ele não tem
crédito à disposição, fala que tem, mas não tem, certo? Não tem. (...) não
precisava de nóis tê que precisá de avalista, pelo nosso passado, acho
que o governo poderia nos ajudá melhor... esse home paga! (...) isso é o
que falta: crédito pra quem presta
61
.
O Sr. Venâncio nos chama à atenção para um elemento importante no meio
rural, a palavra, a trajetória da pessoa. Em sua fala, diz que o homem do campo, embora
sujo, é honesto, reforçando o seu argumento quando menciona: pelo nosso passado,
acho que o governo poderia nos ajudá melhor... esse home paga! (...) isso é o que falta:
crédito pra quem presta. Esses são valores importantes no campo que muitos, ao virem
para a cidade, transferem para as novas relações que vão estabelecendo. O Seu Zico
procura não atrasar o aluguel para ter o nome limpo. Isso demonstra que, na cidade ou
na roça, pessoas como ele direcionam o rumo de suas vidas a partir de seus valores.
Quando o entrevistado reforça que sempre pagou direitinho
62
e entende do que faz, que
sabe como trabalhar
63
, está dizendo que fez o que pôde para se manter naquele meio.
O homem do campo passou a buscar financiamentos
64
na tentativa de se incluir
na dinâmica do agro implementada pós-64, contrariando a idéia de que ele não se
60
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
61
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
62
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
63
Essas são falas do Sr. Venâncio e do Seu Zico valorizando o seu saber e demonstrando que esse não foi
valorizado como deveria, pois caso fosse, Seu Zico"tava locado" no campo e para seu Venâncio o acesso
ao crédito seria mais fácil e, no caso de ambos e de muitos outros, a cidade não teria sugerido uma
melhora de vida.
64
CRÉDITO liberado para máquinas agrícolas. Correio de Uberlândia, p. 02, 18 set. 1974;
APLICAÇÕES de crédito têm permitido o desenvolvimento da agropecuária em Minas. Correio de
Uberlândia, p. 01, 10 jan. 1973; PRODUTOR recebe na hora crédito para plantar. Correio de
propôs a participar do projeto modernizador. Embora não tendo conseguido se manter
nele, procurou ser empreendedor. Para uns, o crédito e o seguro rural funcionaram, para
outros, nem tanto. E até mesmo a imprensa não pôde deixar de registrar as contradições
desse processo:
Reunidos os membros da Comissão de Crédito Rural da Faemg
manifestaram a apreensão dos produtores mineiros quanto ao fato de
serem os financiamentos, em sua maior parte, destinados às empresas
rurais ou aos grandes proprietários, em detrimento do pequeno
produtor, que, em sua lavoura de subsistência, sofre sérias restrições de
crédito dentro de sua faixa, já pequena, de financiamentos. Defendem os
ruralistas a necessidade de se abrirem extensas linhas de incentivo para
o pequeno proprietário sem que isto implique na diminuição dos
investimentos nas empresas rurais
65
.
No texto acima, o entrevistado contesta o fato de o pequeno produtor possuir
"restrições de crédito dentro de sua faixa já pequena", ou seja, reconhecem a
negligência de crédito ao pequeno, mas não querem diminuir o que é destinado aos
grandes empreendimentos. Assim, tornar-se defensor é simples. Discursa-se pelo
pequeno, mas não se mexe na estrutura e dessa forma a exclusão se perpetua. Nas
entrevistas, essa diferenciação também aparece, porém demonstrando que conhecem as
relações de favorecimento e consideram, em parte, que o rumo tomado em suas vidas
muitas vezes se deveu a essas práticas.
Nessa dinâmica de exclusão de crédito, o seguro rural também se apresenta
como uma extensão dessa restrição. Assim, os pequenos produtores, prejudicados na
aquisição de financiamentos, são excluídos do seguro rural diretamente pela dificuldade
em ter fonte de renda suficiente, ou em apresentar garantias e, indiretamente, pela
negação a um direito.
Na lei, o PROAGRO (Programa de Garantia da Atividade Agropecuária) foi
instituído em dezembro de 1973 com a finalidade de assistir o produtor rural em caso de
ocorrência de fenômenos naturais, pragas e doenças, ou se sua lavoura ou criação de
animais não desse o retorno necessário para cobrir o financiamento feito. Ele garante ao
produtor se desobrigar de parte da dívida, caso seja comprovada essa ocorrência pela
Uberlândia, p. 04, 18 ago. 1970; TODO mundo diz que é preciso ajudar a agricultura. Nós não dizemos,
nós ajudamos. Correio de Uberlândia, p. 07, 20 out. 1970 (propaganda do governo) esse tipo de matéria
fomenta a busca pelo crédito e a crença na modernização da agricultura como algo acessível e garantido.
65
FINANCIAMENTO para o pequeno produtor. Correio de Uberlândia, 04 jul. 1974. p. 04.
inspeção. A percentagem obtida de desconto da dívida é calculada a partir da gravidade
e análise do caso e pode chegar a 80% do valor da produção perdida
66
.
O programa surge como um apoio à permanência do homem no campo e às
atividades agropecuárias, incentivando a inserção no projeto modernizador, pois
indiretamente estimulava o uso de técnicas modernas na produção, que contavam como
fatores avaliativos na inspeção do PROAGRO. Diante disso, a imprensa divulgou o
programa como aquele capaz de dar segurança e permitir investimentos na produção,
sem o receio de ficar sem nada
67
.
Na prática, observamos que o PROAGRO não atendeu a todos. Mais uma vez,
prevaleceram os benefícios a quem tem maior aparelhamento tecnológico e uso de
defensivos, ou seja, o proprietário tem de estar inserido no projeto modernizador de
forma intensa, de modo que comprove que investiu na produção e que ela só não obteve
sucesso por imprevistos que atacaram sua produção ou animais.
Assim, a fala do Sr. Boaneja só encontra sentido se pensarmos que, mesmo o
pequeno e médio proprietário se mostrando empreendedor, arriscando-se em
investimentos, em caso de um contratempo, o seu grau modernizador pouco equivalerá
ao de uma empresa rural. Desse modo, os recursos do PROAGRO vão se diferenciando
e não atendem, como deveriam, àqueles que mais necessitam da sua assistência: os
pequenos produtores.
O Sr. Boaneja mostra que o acesso ao seguro rural não era garantido e sugere
critérios muito mais pessoais para conseguir o benefício:
antigamente cê perdia lavora, existia, existia o tal PROAGRO, mas só
para uns, uns, mísero... (...)era pra todos, mas fazia para alguns, aqueles
mais, é muito difícil (...) então cê tinha que tê amizade, as veizi tinha que
tê um contato, uma coisa né? (...) eu tinha um pedacinho, eu trabalhava,
ganhava dinheiro, comprava, vendia, comprava, era assim
68
.
66
Maiores informações em BRASIL. LEI n. 5969, 11 de dezembro de 1973, que institui o Programa de
Garantia de Atividade Agropecuária e dá outras providências; RESOLUÇÃO n. 301, 09 de outubro de
1974, do Banco do Brasil - Aprova o Regulamento do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária -
PROAGRO e o DECRETO n. 74686, 14 de outubro de 1974, que dispões sobre a inclusão, no Orçamento
Federal de dotações destinadas a assegurar a cobertura do Tesouro Nacional às despesas de custeio do
Programa de Garantia de Atividade Agropecuária - PROAGRO In: CAMPANHOLE. A;
CAMPANHOLE, H. L. (org.). Legislação Agrária. 14 ed. São Paulo: Atlas, 1985, p. 332; 553;559
respectivamente.
67
BANCOS estudam instruções para implantar o PROAGRO. Correio de Uberlândia, 07 jan. 1975. p.
04.
68
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
Assim, a fala da D. Neusa se torna compreensível: perdeu pro banco (...)
financiamentos (...) eles adiantam o dinhero pra gente (...) quando chega na época de
colhê cê num colhe o esperado
69
. Então, fica a pergunta: onde estava o seguro para
assistir D. Neusa e o Sr. Boaneja? Nesse sentido, observamos o quanto são importantes
as trajetórias das pessoas para se repensar o processo histórico.
Hoje o Sr. Boaneja vê seu passado com desolação. Investiu seus sonhos, sua
família, até mesmo sua sanidade mental na lavoura e, agora, o que resta é seguir os
horários da roça (para dormir, levantar, fazer as refeições), ficar na varanda imaginando
o que foi que deu errado e vendo o retorno como algo distante, tão distante quanto a sua
conformação com os rumos de sua vida.
O olhar nostálgico que muitos entrevistados lançam ao seu passado no campo
acaba por esbarrar nas decepções e dificuldades por que passaram e, num sobressalto,
deixam claro que a escolha pela cidade foi a tentativa de reestruturar a vida. Uma
decisão difícil que revela as tensões e como a cidade vai se tornando parte de seus
viveres por findar suas expectativas na roça: teve um dia eu cansei, falei: vamo embora,
chega!
70
.
Essa fala sugere a estagnação, o cansaço de persistir. Revela um momento
decisivo não só para o Sr. Boaneja, mas para muitos outros que, ao contrário do que
esperavam, tinham chegado ao limite:
o conselho que eu daria é respeitá o limite (...) você se respeita e respeita
as pessoas (diz D. Neusa, referindo-se a quando decidiu deixar o Sr.
Boaneja sozinho na roça, num momento em que haviam perdido toda a
lavoura e estavam quase sem nada, e veio para a cidade com os filhos),
eu acho isso muito importante; aceitação, renúncia, (...) a renúncia num
é muito boa, mas ela faz parte da nossa vida
71
.
69
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
70
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
71
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
Observamos, nas narrativas, uma diversidade de experiências que confluem na
busca de viver melhor, com dignidade: a gente tem que vivê satisfeito
72
, Trabaiá pra tirá
o dinheiro pra fazê as coisa
73
, ou como relata D. Neusa:
eu vim pra cidade com a expectativa de colocá os meus filhos dentro da
realidade e aprendê, estudá, né? Porque ficá na roça desse jeito, é
esconder da vida (...) pra tê um futuro (...) lá num tinha condição (...)
hoje eu vivo, (...) pensá o que eu fui e o que eu sô hoje, nossa! Eu tô no
céu (...). Nunca (voltar pro campo) (...) é o que eu falo pros meus filhos
(...) eu dô muito valor ao meu cantinho assim (...) essa lembrança só do
trabalho (...) num tem condição
74
.
Essa reflexão, mergulhada em tantos sentimentos, valores e esperanças, nos
remete às relações de poder que exploram as necessidades das pessoas, pois me faz
pensar um pouco na dinâmica do capitalismo, e na sua avassaladora faixa de exclusão e
na perversa ação sobre a vida das pessoas pobres.
Os projetos de modernização, bem definidos na ótica do capitalismo, criam a
idéia de um sujeito coletivo - toda a população que trabalha e vive da agricultura - que,
teoricamente, iria usufruir investimentos e dos resultados dos projetos implementados.
Um olhar mais atento e uma análise das ações realizadas são suficientes para descortinar
mais uma realidade pautada na exclusão, que obrigou aqueles que não se enquadravam
nos critérios de financiamentos a reordenarem suas atividades e suas vidas.
Para o trabalhador do campo, o início de seus problemas não é quando começa a
política modernizadora, em 1964, e de crédito em 1965, mas, quando eles têm de buscar
a sobrevivência noutro lugar e/ou de outro modo, pois isso muda seu modo de viver.
Nas décadas de 1970 e 1980, bem como em outros períodos, o setor rural
conheceu uma realidade marcada por conflitos e relações de desigualdade vistos nas
formas de apropriação da terra, nos acessos aos financiamentos, na competição por
mercado, levando muitos a questionar as possibilidades de permanecer no campo e o
significado de se viver nele:
72
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
73
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
74
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
é o tal negócio, na roça ninguém mais tá fazeno mais nada purque se vai
plantá lavora, num tem mais aonde plantá, porque as otras coisas tomô
conta: café, a soja. Pra fazê isso aí [soja] tem que sê alguém que tem
dinheiro purque vai fazê é muita coisa. Quê que a gente pobre vai lá pra
plantá um cinco alqueire vai fazê o quê com isso? Se a gente num dá
conta nem da despesa?
75
As relações tradicionais de trabalho, onde a palavra e o acordo entre as partes
bastavam, começam a ser fragilizadas à medida que a legislação trabalhista começa a se
inserir no rural
76
, quando alguns trabalhadores levam seus patrões na justiça em busca
de seus direitos:
eu morei lá eu sei, se você arruma uma pessoa pra trabalhá pra você na
roça, você tem a obrigação de legalizá ele entendeu? Agora eu te
pergunto: na situação que a gente tava, tinha condição de legalizá
alguém? E se ele fica dois, treis mêis lá, ele leva a gente na justiça. Um,
um levô nóis na justiça (...) todo mundo tem sua terra e todo mundo tem
medo disso, ninguém dá terra pra ninguém por isso, fazendeiro vai pô
pessoa lá seno que ele num tem condição? Num tem condição de legalizá
as pessoa pra podê, cê tem que fazê uma boa casa, entendeu? Agora, que
condição as pessoas têm pra isso?
77
Essas alterações incluem vários conflitos no viver rural, como a não contratação
e/ou dispensa de trabalhadores fixos da roça, seja pelos encargos que o pequeno
produtor não consegue arcar, seja porque vai privilegiar atividades mais vantajosas.
Assim, outras formas de se estabelecer relações de trabalho vão surgindo:
A lei do trabalhador parece que era mais do que a do proprietário, num
sei. Sei que o proprietário perdia tudo, aí chega, foi chegano a esse, esse
ponto que num aceitava mais, aceitasse morador (...) tinha que
normalizar ele completim, tinha que cadastrá ele, tinha que registrá
essas coisa tudo. (...) tinha veiz que tinha 20 morador na fazenda (...)
então hoje cabou, hoje num tem isso mais não.(...) ninguém qué dá
morada não. (...) se levá pra enchê a fazenda dele lá, ele fica sem a
75
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
76
Uma abordagem interessante sobre a Legislação trabalhista rural se encontra na dissertação de Maria
Andréa Angelotti Carmo. Trabalhadores Bóias-Frias: experiências rurais e urbanas em Araguari/MG,
1980-2000. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001, em
especial, p. 18-19.
77
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
fazenda (...) leva ali no, no Ministério do Trabalho ali, o advogado dá
tudo pra ele, o juiz, tudo a favor (do empregado)
78
.
Uma questão que trazia conquistas legais ao trabalhador rural marginalizado
mostra, à medida que a legislação se torna parte desse meio, que o trabalhador vai
perdendo seu lugar no campo para não ter que gerar custos - considerados prejudiciais
ao empregador. A legislação trabalhista para o campo não leva em conta a diversidade
de situações ocasionadas pela concentração da propriedade e pelas formas de relações
de trabalho que se estabeleceram nele:
precisa de funcionário, que as leis trabalhista estrova demais na área
rural (...) de primero, o fazendero dava uma casa pra morá, ele (o
trabalhador) podia plantá o que ele quisesse, dentro da casa dele tava
cheio de arroz, feijão, milho (...) hoje fazendero que tem fazenda ele
compra arroiz na cidade, feijão, carne, tudo ele vem comprá na cidade,
seno que ele tem lugá de trabalhá e num trabalha. (...) sozinho o cara
num tem como ele tocá uma roça (...) num pode pô funcionário junto que
invém o problema das leis trabalhista em cima que num compensa
79
.
Assim, o trabalhador rural tem algumas escolhas possíveis: ou vai se submeter a
atividades marginais nas cidades (construção civil, guarda noturno), ou vai se sujeitar a
outras relações de trabalho como trabalhador temporário no campo, empreiteiro e
outros. Ao analisar as mudanças nas relações de trabalho neste período, Carmo ressalta
os significados desse processo:
O Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado pela Lei Ferrari, n. 4214,
tinha como objetivo regulamentar as relações trabalhistas no campo,
oferecendo ao trabalhador rural, fixo nas fazendas e que trabalhavam
mediante salário, algumas normas que já haviam sido implementadas e
adotadas para os trabalhadores urbanos desde 1943, como o direito ao
salário mínimo, férias anuais remuneradas, aviso prévio, entre outros.
Embora o ETR tenha sido revogado, na década seguinte a sua
promulgação, alguns autores apontam que este, assim como o Estatuto
da Terra (ET) e ainda a criação da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) atuaram como elementos
importantes nas transformações das relações de trabalho no campo e o
78
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
79
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
conseqüente surgimento do trabalhador temporário, desprovido de
qualquer meio de produção
80
.
Observamos que a relação onde a palavra regia os acordos e serem estabelecidos
começa a dar lugar a acordos formais entremeados de interesses, seja do empregado em
garantir seus direitos legais, seja do empregador que procura encontrar formas de
diminuir os gastos com trabalhadores fixos
81
.
À medida que outros valores vão sendo incorporados e reelaborados por esses
sujeitos, como os direitos legais pelo trabalhador rural, as relações sociais tradicionais
vão se reformulando. A segurança mantida na oralidade, nos princípios do homem do
campo, vai cedendo lugar à modernização das relações trabalhistas. O meeiro vai se
tornando um ator desnecessário ao cenário econômico do fazendeiro que incorporou,
por exemplo, a atividade pecuária como vantagem a seus rendimentos.
Aos poucos novas formas de plantios se configuram (do arroz à soja), novas
imagens das fazendas (de lavoura a pasto, de pasto a hotel fazenda) e novas relações
sociais (de trabalhadores fixos de casa a funcionários).
Não só os termos mudaram, mas a vida dessas pessoas também. Nas falas dos
antigos pequenos proprietários e arrendatários, vê-se a defesa do produtor rural, o
quanto se considera o levar na justiça um ato de injustiça. Coloca o trabalhador como
aproveitador, quase como alguém que rouba: Cê trabalha, trabalha, trabalha, pra
depois otro pegá e levá?
82
. Entretanto, além desse questionamento, o que fica claro é o
conflito em que as duas partes se encontram, o trabalhador é expulso e o pequeno
fazendeiro reestrutura (quando possui meio econômico para isso) as atividades e os
modos de trabalho para diminuir o uso da mão-de-obra.
Com isso, a saída do campo reflete, a meu ver, a desestruturação da agricultura
familiar, do trabalho no campo, das parcerias, acelerando, concomitantemente, a
transformação das vidas dessas pessoas.
80
CARMO, Maria Andréa Angelotti. Op. cit., p. 18.
81
Um desses exemplos é o depoimento de Seu Zico, trabalhador rural de uma fazenda de pecuária
leiteira, que descreve como apenas dois funcionários exercem as atividades devido a instalação de
maquinário que dispensa a utilização de grande número de mão-de-obra. Além disso, fala sobre a
dificuldade do patrão em manter o salário e a produtividade, vendo a provisoriedade de seu trabalho,
mesmo os dois funcionários sendo essenciais.
82
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do bairro Jardim Brasília, residente em Uberlândia
há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
Hoje, percebemos que muitos trabalhadores temporários e meeiros preferem
manter relações amistosas com os patrões a levar na justiça, porque se leva um, os
outros ficam sabeno e cê num tem mais emprego
83
. O que está em jogo é manter a
sobrevivência, nem que para isso se tenha de abrir mão de alguns direitos (salário fixo,
carteira de trabalho assinada e fundo de garantia).
Dessa forma, os elementos que deveriam facilitar o viver no campo suscitam um
rearranjar. As práticas culturais desses sujeitos, que estão em constante construção, vão
se remodelando à medida que eles se deslocam para a cidade. Ali, costumes tradicionais
se revigoram ou se transformam à luz da incorporação de outros valores e modos de
viver
84
.
Ao chegarem em Uberlândia, acomodam-se como podem, com o que o dinheiro
possibilitar, pois mesmo que se tenha a ajuda de amigos e parentes, o se arranjar na
cidade é precário.
Seu Zico foi morar de aluguel com mulher e filhos, no B. Roosevelt, e depois se
dirigiu para o Alvorada, onde permaneceu por mais de 15 anos até retornar para o
campo. À medida que o aluguel do B. Roosevelt foi deixando de ser acessível (devido
às melhorias no bairro, o valor dos aluguéis aumentou), o caminho era se dirigir para
regiões onde o aluguel fosse mais barato e que permitisse maior facilidade em trabalhar
nas fazendas vizinhas, pois já havia desistido do trabalho urbano. Nesse sentido, o B.
Alvorada se tornou a sua escolha.
Sr. Venâncio, que infelizmente já não está entre nós, trouxe um dinherinho, para
comprar uma casinha em sociedade com o irmão, que também veio com a família.
Compraram uma casa no B. Tibery, onde as duas famílias se acomodaram. Alguns anos
depois, já arrendando terras para a plantação de tomates, conseguiu comprar a sua casa,
também no B. Tibery, onde hoje mora, nos fundos, um dos filhos casados e netos.
D. Neusa, sem grandes condições financeiras, ao chegar em Uberlândia com
vários filhos pequenos, num primeiro momento foi morar com a sogra até que pudesse
83
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
84
A obra de Raymond Willians nos sugere pensar um pouco sobre as permanências, reformulações e
descontinuidades de práticas e viveres. Desse modo, entendo que existem momentos na vida dos
campesinos em que se submergem algumas tradições e hábitos e emergem alguns sonhos que traziam
consigo, mas à medida que se torna possível inserir nesse seu novo começo traços de sua identidade rural,
ele o insere no seu cotidiano dando novo sentido e significado a modos de vida até então "residuais". Cf.
em WILLIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
arrumar um serviço ou pensar em algo mais. Depois, com a ajuda de parentes, montou
um pensionato no B. Santa Mônica e mesmo, começando a trabalhar na Universidade,
Federal de Uberlândia, levou o negócio por um bom tempo. Quando o Sr. Boaneja
resolveu desistir definitivamente da roça e vir para a cidade, ficou um período em
desacordo com aquela nova realidade: ver D. Neusa trabalhando fora, a casa pequena e
a vida regrada não foi fácil.
Ele começou a trabalhar como caminhoneiro, mesmo não sendo a sua vontade.
A luta pela sobrevivência determinou desde a saída da roça até suas novas escolhas.
Conseguiram, assim, ter a casa própria no B. Santa Mônica, que, na época, não era um
bairro tão valorizado como hoje, era distante do centro comercial e de outros bairros,
cercado pelo mato e terrenos vagos, sem grupo escolar por perto, além da falta de
ônibus para o transporte da população e de outros benefícios.
Porém, lá construíram os seus viveres na cidade e até hoje residem no local, em
uma casa mais espaçosa, com hortaliças no fundo de quintal, onde imprimiram seus
valores e hábitos da forma possível, respeitando os limites do seu terreno, já que os
vizinhos não partilham dessa trajetória, o que, para o Sr. Boaneja, resulta em um certo
isolamento, em uma solidão de vivências e costumes.
Para o Sr. Paulo Henrique e D. Maria, mesmo morando de aluguel no B.
Roosevelt por longo período, tinham uma vida estável. O Sr. Paulo Henrique possuía
caminhão para o trabalho de fretes, o que permitiu que D. Maria não precisasse
trabalhar fora para complementar a renda familiar.
Após dez anos morando em Uberlândia, conseguiram comprar a casa própria no
B. Jardim Brasília. Percebemos que, mesmo com uma condição financeira melhor, ter a
casa própria não foi tão fácil quanto o esperado e, mesmo assim, o local onde foram
morar não possuía asfalto, era rodeado de mato, sem grande parte da infra-estrutura
desejada. O preço, no entanto, foi decisivo para a compra naquele local.
Hoje, ainda moram na casa, que permanece praticamente igual a quando se
mudaram para há, há doze anos. Os filhos já cresceram, trabalham, mas a renda parece
não ser suficiente. Como ele mesmo diz a vida tá muito difícil
85
. Voltou a plantar na
roça que possui, mas sem muita ambição, pois num tenho como pagá alguém pra
85
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
cuidá
86
. Quando o agito da cidade cansa a cabeça
87
, passam uns dias na fazenda para
recuperar, mas depois retornam porque os negócios que mantêm a família estão na
cidade.
Os bairros mais pobres da cidade, que estavam em fase de melhora ou promessa
da mesma (implantação de asfalto, rede elétrica, postos de saúde, escolas, rede esgoto,
água encanada), foram para onde grande parte dessas pessoas se dirigiu (vide Anexo I),
muitas vezes porque a distância do centro comercial ou a ausência de benfeitorias
públicas fizesse com que o preço do terreno ou aluguel fosse menor, e que as pessoas
pudessem sair do aluguel tão caro também na década de 80.
Assim, o Vila Marielza também se coloca como um espaço de escolha dos
egressos do campo. Um local ímpar de viveres, pois mesmo sendo um loteamento
urbano, adquirido como outro qualquer da cidade, famílias inteiras com trajetórias
comuns se dirigiram para lá. Os laços de convivência, os valores e os hábitos
ultrapassam as casas e vão imprimindo na vila um jeito próprio de ser, determinado pelo
costume e sobreviver dos moradores, a maioria pobre, que viram o retorno ao trabalho
nas fazendas próximas como saída para o viver na cidade.
Com isso, conforme o mapa (vide Anexo II), vamos perceber que o entorno da
cidade nas décadas de 1970 e 1980 vai se tornando parte dela e isso acontece porque a
população pobre vai se encaminhando para esses locais, sendo excluída de direitos até
então só existentes nos bairros onde os moradores podiam pagar por eles. A população
de baixa renda vai sendo “empurrada” para os bairros sem infra-estrutura, para vendas
ilegais de imobiliárias, para o descaso do poder público.
Não só as décadas de 1970 e 1980, mas as seguintes também indicam a
manutenção dessa prática. Ainda vemos, nos noticiários, com aquela normalidade de
quem se acostuma com o caos
88
, as irregularidades dos loteamentos, as pessoas pobres
sendo lesadas nos compromissos firmados em contratos, as enchentes inundando as
casas e colocando a perder os poucos móveis que possuem. Também são freqüentes
notícias de crianças doentes sem atendimento médico, ou mesmo quando o conseguem,
a família não tem condição de comprar os remédios, reclamações de falta de água, do
86
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia
24 anos, entrevista realizada dia 19/19/2001.
87
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
88
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (1ª reimpressão), p. 200.
asfalto que não chega, a escola, o ônibus. Ou seja, essa realidade é vivida pelos pobres
que têm casa para morar. Há ainda as favelas e as ocupações dos sem-tetos.
Todos estes problemas urbanos que vão sendo levados de uma administração a
outra, acabam protelando por dez, vinte, trinta anos, dando a impressão de estarmos
vivendo aquele primeiro momento, só que cada vez pior.
Até quando a população pobre das cidades brasileiras vai pagar pelo
desequilíbrio social criado em prol da minoria rica? Uma resposta que cabe a nós,
sujeitos políticos, construir a cada dia, em cada ação.
Ao caminhar pelas estradas rumo à cidade, o homem do campo tenta resguardar
alguns laços e tradições, muitos não se enquadram na imagem do homem urbano e, por
isso mesmo, além de conviver com a segregação, fazem um duplo viver, moram na
cidade, trabalham na roça e mantêm o mínimo elo com o que suas necessidades os
fizeram deixar para trás. Para alguns, como Seu Zico, fica o desejo de vortá pra onde
sei vivê
89
. Para outros, como o Sr. Boaneja, a lembrança: eu tenho muita saudade, por
mais que seja eu tenho saudade (...) tem a família tudo junto, mas se tivesse uma
fazenda eu acharia bão mesmo ir pra lá
90
. Essa saudade não apaga a consciência dos
problemas vivenciados e a certeza de que a volta ao campo só pode acontecer se as
relações sociais se efetivarem em novas bases.
Na fala dos entrevistados, transparecem as expectativas e investidas na cidade
porque, de antemão, já se sabia que a vida não seria como antes. Cabe avaliarmos o
quanto deixar uma história para trás reflete o esgotamento dessa vivência e a
necessidade de se buscar novas alternativas: melhorô, pra mim melhorô muito porque
eu saí daquele sofrimento
91
.
Viver na cidade de Uberlândia não é apenas viver num outro espaço. É a busca
por viver melhor, mesmo com os seus percalços: novos horários, novas comidas, novos
vizinhos, ou seja, outras relações e práticas que terão maior ou menor influência nas
transformações dos valores individuais de acordo com as vivências desses sujeitos:
89
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
90
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
91
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
Aqui na cidade, a gente vive num sufoco danado com medo de tudo, tem
medo de ir na rua, se um fio da gente sai, a gente nem consegue dormi
(...) com aquela superstição, aquele medo que pode acontecê alguma
coisa, sei lá. Na roça não, na roça fica todo mundo dentro de casa, todo
mundo sossegado, aqui não (...) na cidade tem muita pessoa egoísta que
só pensa em si (...) na roça é todo mundo amigo, todo mundo ajuda todo
mundo.(...) aqui na cidade se você tivé o dinheiro, você tem se num tivé
você num tem ninguém(...). Na cidade a vida é mais dura nesse sentido,
ninguém ajuda ninguém
92
.
Era bão, mas era difícil, tinha fartura, tinha tudo, mas num é como é
hoje, que tudo ali se tivesse doença, se aduecesse, tinha que tá assim, né,
cum o dinheiro em cima, né? Num era fácil (...), mas farturão cê tinha
dentro da sua casa (...) suas criação, comida, (...) aqui não, aqui se num
fô a peso do dinheiro não tem né?
93
.
na roça, por exemplo, o morador que cê tinha, cê tava em contato com
ele toda hora né? Conversano. Aqui, aqui não, tem vizin que num sei
nem o nome deles. (...) lá tinha mais contato, aqui as pessoas cada um
vive pra si
94
.
É claro também que, mesmo na aparente ausência das tradições rurais, em alguns
casos, a vivência no campo continua fazendo parte da trajetória de vida dessas pessoas.
Muitas vezes, buscando negar seu passado, elas hoje se revestem de um padrão de vida
urbano e de valores citadinos. Por isso, não posso esquecer que o grau de relevância do
viver no campo interferirá no quanto as práticas rurais ainda fazem (ou não) parte do
dia-a-dia na cidade:
(a cidade é) Mais tranqüila, mais fácil, pensa você: morá numa roça (...)
não tinha luz, água é de poço, água às vezes através de cisterna, luz era
lamparina, lampião, passá uma ropa cum ferro de brasa, cê criá filho cê
tem que acendê fogo à noite pra fazê um chazinho pra criança. Você já
pensô que situação?
95
.
D. Neusa, quando se remete ao campo, tem sempre como parâmetro a energia
elétrica, o ferro de passar, a água encanada, todas as "facilidades" da cidade. Desse
92
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
93
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
94
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
95
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
modo, ela reafirma suas escolhas e incorporações como o padrão de vida que quer ter. A
lembrança do campo serve para alimentar, a cada dia, a construção deste novo modo de
viver, seja reafirmando valores antigos, como os moradores do Marielza o fazem
96
, seja
estabelecendo novas práticas, como D. Neusa
97
e D. Maria
98
nos demonstram com
maior vivacidade.
Em virtude de esse caminho se compor de tantas pegadas, algumas fortes e
marcantes, outras sendo apenas rastros desse caminhar, procurei me guiar por algumas
inquietações: como viver com esses dois "mundos" (campo/cidade) que confluem e
divergem em tantos momentos? O que essas pessoas esperam da cidade? Como suas
experiências interferem no modo de viver deles? E, principalmente, qual a ligação entre
a trajetória de vida que possuem e o modo como vivem e constroem valores, ações e
práticas?
Mediante essas questões, quando saímos para a pesquisa, procuramos refletir
sobre o movimento de pessoas - do campo para a cidade - durante as décadas de 1970 e
1980. Observamos que essa prática lenta e crescente revelava, muito mais que um
desvio, um processo de reestruturação de vidas. Elas se viram obrigadas a repensar e
reelaborar seus costumes, relações e cotidianos, ora porque lhes faltavam assistência
médica, energia elétrica, transporte, segurança e trabalho, ora por acreditarem que
poderiam construir um viver melhor do que aquele que levavam:
era uma vida assim muito sofrida, trabalhei muito em serviço pesado,
num tinha nem valor por esse serviço que a gente fazia, ganhava coisas
que, se tivesse tido valor eu teria alguma coisa hoje do meu serviço pelo
quanto que eu trabalhei, eu num tenho nada pra falá que é do meu
serviço, e trabalhei demais um serviço pesado (...). Serviço em lavôra,
serviço mesmo no campo de mexê cum plantação de tudo, de tudo de, da
roça eu fazia
99
.
96
Os modos de viver dos moradores do Vila Marielza serão o tema dos próximos capítulos. Destacando
as convivências, estratégias de vida, trabalhos, o viver e construir a cidade destas pessoas.
97
D. Neusa Pires Gonzaga, 63 anos, esposa do Sr. Boaneja, moradora do B. Santa Mônica, residente em
Uberlândia há 25 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
98
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
99
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
A cidade nasce aos olhos do homem do campo como a oportunidade, a
esperança. Entendo que ela só se tornou um centro atrativo à medida que o viver rural
desencanta e transparece inseguranças e incertezas.
E, se hoje o que os homens vindo do campo experimentam, num primeiro
momento, parece estar mergulhado no conformismo e na alienação é, na realidade,
muito mais a sua certeza de que a luta por pertencer ainda continua, só que agora na
cidade, e que o campo ficou cada vez mais longe de retornar ao seu cotidiano. Muitos
dão o testemunho de que a cidade não é todo o encanto sonhado e previnem:
corre gente pra cá, fala: 'não, Uberlândia tá muito mió de que pra cá,
vamo lá, as veis tá morano lá na roça, cumeno, saí pra vim achano que
tem miora aqui, as veis piora, as veis tá muito mais difícil (...) saí dali,
pensá que cê mais pra frente vai fica mió, que num vai não, é fria, fria,
vai não
100
.
Por isso, quando muitos agradecem por ter emprego, não significa contentar com
pouco, mas reconhecer o quanto está difícil viver. Outros, mesmo possuindo a
propriedade rural, tentam conciliar sua vida no campo e na cidade, pois só no campo
suas necessidades de sobrevivência não se garantem. O viver dessas pessoas se resume
em procurar manter alguns costumes e padrões e se adequar a outros, de forma que isso
lhes garanta viver: levo daqui pra lá, num trago de lá pra cá (...) cê trabalha muito pra
ganhá poco. E na cidade, cê trabalha menos e ganha mais
101
.
Nessa perspectiva, obter conforto reflete não luxúria e, sim, a conquista da
dignidade por pessoas que refizeram suas vidas e conseguiram ter, a seu modo, casa,
comida, manter a família perto e estar próximo do recurso, como me disse o senhor
Venâncio.
Outra face dessa disputa diária por pertencimento é a luta pelo ônibus, pelo
asfalto, pelo recolhimento do lixo, evidenciando que as buscas se remodelam a partir do
que vai se tornando importante para essas pessoas, com valores a serem conquistados e
construídos na cidade.
100
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
101
Sr. Paulo Henrique Alves Pereira, 53 anos, morador do B. Jardim Brasília, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
Tudo isso é querer que a distância imposta pela desigualdade social seja
quebrada, permitindo-lhes pertencer à cidade, garantindo-lhes necessidades básicas,
como o acesso à saúde, à escola, à casa própria. É da consciência do lugar que ocupam
no espaço urbano que emergem as análises sobre o lugar que habitam:
a gente tem que esperá melhora, né? Vê se o prefeito faiz alguma coisa,
igual, por exemplo, a gente fica aqui nesse bairro (Jardim Brasília) aqui,
nosso bairro aqui tá andano desdeixado, um bairro sujo, com esse tanto
de terreno vago que tem aí né? Ninguém faiz nada, a cidade inveiz de
melhorá nessa parte aí ela faz uns conjunto a 20 légua da cidade né?
Mas enquanto que os bairro, por exemplo, (...) pudia melhorá, (...) esses
terreno vago, ir encheno, melhorava muito a sujeira. O prefeito (...) só
olha pro lado de gente rico e pro centro da cidade, isso aí é uma verdade
né? Mas quem somos nós pequenos pra julgá os maior né?
102
Nas entrevistas, vem à tona a visão de cidade que os entrevistados têm, sua
relação com a exclusão do campo, o conhecimento da realidade vivenciada e as escolhas
que possuem: Na cidade tá mais perto do recurso, da saúde, cê tá mais perto de tudo
103
.
...Hoje, graças a Deus, a vida tá muito melhor do que de primero (...) de
primero, a pessoa trabalhava um dia pra comprá um litro de banha (...).
A gente não tem terra, então teria que lutá pra tê uma casa aqui na
cidade purquê a gente tano na cidade, teno um local, um endereço da
gente, tudo se torna mais fácil (...) com o endereço na cidade ino pro
campo trabaiá, a vida se tornou mais fácil
104
.
Eles sabem, que na cidade, se não tiver trabaiando, não conseguem recursos
nem para comer
105
. Olhar o passado e ver como está hoje o seu modo de viver muitas
vezes permite apreender a dificuldade, a saudade, a tranqüilidade do campo, as
facilidades da cidade. O viver no rural e o viver no urbano vão se entretecendo, restando
algumas vontades e certezas de saber que não adianta se mover de um lado pra outro
mais. Então, esse entrelaçamento entre eu vivê na cidade e tocá lavora, com a proteção
102
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
103
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
104
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
105
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
de Deus, ino e voltano todo dia me dá um poder mais aquisitivo melhor (...) mais
seguro, mais conforto
106
.
Por isso, o sonho de ter a sua terra já não reside sozinho em seu pensamento, a
casa própria na cidade também já se tornou um valor igual e, às vezes, maior que o
primeiro, mesmo porque pode facilitar a sobrevivência e até remediar a exclusão que
sofrem cotidianamente.
Esse mosaico de viveres (ino e voltano) aproxima tradições e padrões rurais aos
valores urbanos, como exemplo o conforto da cidade, a limpeza, o serviço mais leve.
Muitos deles se consideram pessoas do campo, mesmo morando na cidade há mais de
15 anos, permitindo-nos avaliar que, além do saber que trazem (lidar com o gado, com
plantação), está o valor do meio rural que pesa na afirmação de que são do campo, pois
deixam claro que o morar na cidade traz mudanças às suas tradições e hábitos, porém há
traços que não se apagam de suas trajetórias: músicas, festas, formas de relação com os
vizinhos
107
. Lá era tranqüilo
108
, mais natural
109
, à noite pudia i pras festa, festejava,
dançava a noite inteira (...). É o bão disso aí
110
. Talvez, dizer que são do campo é
afirmar que sair do rural não foi uma vontade e, sim, uma imposição da sobrevivência
que os levou a planejar novos modos de viver, diferentes daqueles que almejavam.
A cidade aparece como sinônimo da dignidade procurada e tão necessária que o
Sr. Venâncio afirma. Mais do que a disputa por inclusão, está o não-permitir que a
exclusão os segregue ainda mais e, por isso, o ficar quieto onde está
111
, não procurar
melhoras, resume-se em não se arriscar a se excluir ainda mais da sociedade.
106
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, morador do B Tibery, residente em Uberlândia por 24 anos, entrevista
realizada dia 14/06/2001. Faleceu no dia 31/12/2002.
107
Essas lembranças se referem às falas de Seu Zico,Sr. Venâncio, Sr. Boaneja, D. Maria. Claro que cada
um reforça aquelas que lhes são mais importantes, de modo geral, coloquei as que avalio como
definidoras do valor que atribuem ao meio rural.
108
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
109
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 24
anos.Entrevista realizada dia 21/07/2001.
110
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, esposa do Sr. Paulo Henrique, moradora do B. Jardim Brasília,
residente em Uberlândia há 24 anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
111
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada, pois agora retornou para o
campo com a família, residiu em Uberlândia 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
Entretanto, pudemos observar que Uberlândia, ao receber essa população, apesar
do discurso sobre as possibilidades da cidade em receber novos trabalhadores, guarda
em seu bojo a segregação, os enclaves, os focos de pobreza, silenciando, mas ao mesmo
tempo, explicitando as tensões que a definem - e isso constatamos bem de perto
112
. Em
busca de perceber suas interfaces e contradições, percorremos os limites do espaço
urbano uberlandense, procurando entender a territorialização que faz, qual população se
destina aos espaços que a compõem, como estão distribuídos, os interesses imobiliários
que agem na cidade, nos vazios que a caracterizam dentro de uma rede de valorização
de terrenos e locais e, mais que isso, que limites se estabelecem para a constituição do
perímetro urbano
113
.
Nesse sentido, nosso intuito de percorrer a cidade favoreceu não só o descortinar
de imagens a que estávamos presas, mas também, vislumbrar outros possíveis olhares a
Uberlândia e seus moradores.
Ao pensar nessa análise sobre o espaço e a sociedade uberlandense, não
podemos nos esquecer das incorporações que as pessoas que chegam e se estabelecem
aqui fazem, agregando valores e, muitas vezes, o próprio discurso progressista
desenvolvimentista da cidade. Este é apenas um lado de tantos que compõem este
processo, o qual, às vezes, responde em parte ao porque de eles apresentarem a
necessidade de se ter um endereço na cidade, o porquê de não retornarem à roça.
Entretanto, em outros momentos, o vivenciar a cidade entra em conflito com
esse discurso, pois as decepções e lutas que essas pessoas travam no dia-a-dia (moradia,
empregos, saúde, educação, asfalto, ônibus), fazendo-as perceber que, se num primeiro
momento Uberlândia lhes transmite a sensação de ser um local bom para se construir
novos modos de viver, aos poucos vai demonstrando a segregação e as dificuldades para
o viver melhor que buscam
114
.
112
Realizamos, Maucia, Ana Paula e eu, um reconhecimento do espaço urbano de Uberlândia no dia
19/06/2001, percorrendo os limites da cidade, observando os espaços vazios, ocupações, bairros
populares, condomínios fechados, favelas. Entendemos que a cidade está demarcada e territorializada
conforme o poder aquisitivo das pessoas e, dessa mesma forma, está distribuída também a infra-estrutura
(água, luz, esgoto, asfalto, ônibus, vias de acesso).
113
Sobre a organização do perímetro urbano e as relações sociais que se estabelecem nos diferentes
espaços que se tem na cidade ver CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de Muros: crime, segregação e
cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/EDUSP, 2000, principalmente p. 211;231 e 235 e ainda,
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. 2 ed.
São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 1999.
114
O Sr. Venâncio e D. Maria principalmente deixam claro essa dubiedade da cidade de Uberlândia.
Com isso, percebemos que esse caminhar do campo à cidade, e vice-versa,
encobre muitas tramas que se entrelaçam no viver das pessoas. Procuramos mostrar que
a cidade é, nada mais, nada menos, que o resultado das relações que se dão entre as
pessoas, demonstrando as tensões, contradições e a diversidade de interesses e valores
que elas possuem, afirmando, assim, que são relações complexas e, não, um mero
transitar de indivíduos.
Para tanto, a análise do Vila Marielza irá contribuir para o entendimento dessa
problemática à medida que mostra a construção de viveres e como a experiência de seus
moradores influi no modo como vivem e nas relações que firmam. Imprimindo um novo
ritmo de vida, fazendo o prosseguir ter sentido à medida que responde aos anseios e
valores dessas pessoas. Esta é a proposta de reflexão para os outros capítulos: perceber
as experiências, valores e relações que os moradores do bairro constroem no viver a (e
na) cidade.
CAPÍTULO II
A gente é excluído de Uberlândia
*
:
experiências dos moradores do Vila Marielza
*
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
Desterrados
Sobrantes
Sujeitos que escrevem a
História
Do seu jeito, com o seu
coração.
Cansados da miséria, do
desemprego
E muito mais da segregação.
(Sheille)
Ao entrar na rodovia e percorrer cerca de dois quilômetros após o B. Morumbi, a
distância se faz parecer muito maior do que realmente é. Ao avistar em meio ao cerrado
as plantações e a estrada de chão, percebe-se que chegamos ao B. Vila Marielza.
A principal via de acesso ao local sai da BR 365, que liga Uberlândia a
Patrocínio, e a primeira impressão que se tem é que ela é um caminho de acesso às
fazendas do município. Antes de chegar ao bairro encontramos uma área desabitada,
que cria um hiato entre o Marielza e os bairros próximos - Morumbi e Alvorada.
Foto 1: Entrada do Vila Marielza, maio 2002/Acervo da autora
À procura de prosseguir suas vidas na cidade, percebemos a diversidade de
rearranjos elaborados por estes sujeitos. O Vila Marielza significou uma possibilidade
para aqueles que não se inseriram no meio urbano oficial
115
e reelaboraram suas vidas à
medida que a sobrevivência foi lhes pressionando a fazer escolhas.
Para falar do Marielza, como é chamado por seus moradores, é preciso buscar os
sujeitos que o compõem para refletir sobre alguns traços que demarcam os hábitos e o
cotidiano dessa comunidade, percebendo onde eles se aproximam ou se distanciam
daqueles que vieram do campo e se estabeleceram dentro do perímetro tido como
urbano
116
.
O Vila Marielza, em formato de triângulo (vide mapa - Anexo III), cercado pelo
mato, resguarda valores, interesses, dificuldades e experiências que transpõem os
limites do bairro e da distância. Cabe ao historiador questionar essa situação.
Essa busca em compreender aspectos e sentimentos que interferem nos rumos
dessas pessoas fez com que mergulhássemos nos valores, nas renúncias, no que foi
possível viver, seja no Vila Marielza, no Tibery, no Alvorada, no Jardim Brasília... São
pessoas que diferem nos seus caminhos, mas não no objetivo, o de viver melhor.
Quando essa expectativa vai se frustrando, a fala vai se transformando em lamento: Se
eu tivesse coragem de vendê aqui eu ía morá com a minha mãe na Olhos d’Água (...)
pra me ajudá
117
. A mãe de D. Ercília tem renda fixa, é aposentada, podendo assim
trazer maior segurança e tranqüilidade para ela e sua família (uma filha, dois netos e um
filho). Porém, o medo de perder o pouco que tem a faz recuar e deixar a possibilidade
de sair dessa provisoriedade de trabalho e de sustento: Depois eu vendo (...) e onde eu
me enfio? É güentá as ponta aqui
118
.
115
Estamos denominando meio urbano oficial a região que legalmente está inserida no limite urbano, o
que não inclui o Vila Marielza. Porém, em conversa com seus moradores eles expressam a expectativa de
que essa questão seja resolvida em breve. Essa situação não é assimilada com tranqüilidade pelos
moradores e muitos deles se revoltam ao pensar que são vistos como ilegais ou que não existem como
parte da cidade.
116
Essa reflexão terá como referência as trajetórias de pessoas que vieram do campo residentes no
perímetro urbano, para que se perceba, de modo geral, a diversidade de viveres e como as problemáticas
com a cidade nem sempre se distanciam tanto quanto os locais de moradia.
117
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
118
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.D. Ercília
Nesse sentido, caminhar pelo Vila Marielza observando os gestos e práticas de
seus moradores sem a preocupação de entrevistas, trouxe-nos contribuições relevantes,
que se reafirmaram nas conversas e depoimentos gravados.
Arriscar-me nesse universo foi, ao mesmo tempo, um descortinar de viveres
urbanos e rurais, como também uma tentativa de compreender algumas possibilidades
de sobrevivência que essas pessoas tiveram após sair da roça: falei não, num quero
fazenda mais não! (...) a gente trabalha demais criatura! É muita responsabilidade
tamém, né?
119
.
Dessa forma, o desencanto com o rural, tanto no trabalho quanto nos valores, vai
descortinando, na fala de muitos, uma vida de sacrifícios e muita responsabilidade.
Fatores que antes eram suportáveis, mas que agora expõem a falta de condições de
sobrevivência naquele meio.
Assim, esses, até então moradores do campo, vão se arriscando rumo à cidade,
passando de fazenda em fazenda, de meeiro a peão, de peão a trabalhador temporário e
daí seguindo para a cidade, em busca de algum caminho, a gente vei vino, vei vino, até
chegá aqui (Vila Marielza)
120
.
A movimentação de população rural rumo às cidades teve, ao final da década de
1970 e início da década de 1980, grande presença no jornal local, como já foi discutido
anteriormente, demonstrando que isso não foi um mero mudar de lugar. Ela foi um
reflexo das contradições e expulsões promovidas pelo projeto modernizador na vida
dessas pessoas, ocasionando um desequilíbrio nas cidades que não possuíam as
condições esperadas por eles. Os jornais noticiam essa movimentação, anunciando os
possíveis problemas sociais que a cidade já enfrentava no começo da década de 1980:
Nós sabemos que na maioria das vezes a vida no campo é difícil. Falta
emprego, faltam boas condições de vida. Falta até mesmo água, esgoto,
escolas e assistência médica.
Mas sabemos também que a solução não é trocar o campo pela cidade.
Porque para quem vem do campo, a cidade acaba se transformando num
pesadelo, numa amargura. Também na cidade faltam empregos e as
condições de vida acabam sendo até piores
121
.
119
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
120
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
121
MAIS de dois milhões de pessoas saíram de casa na esperança de uma vida melhor. Correio de
Uberlândia. 06 ago. 1980, p. 07.
Para os que vieram do campo, o começo na cidade dependeu muito da ajuda de
parentes residentes nela por mais tempo, dos recursos financeiros que conseguiram
trazer e da persistência em disputar não simplesmente um lugar, mas um viver mais
digno (emprego, moradia com infra-estrutura, assistência médica, estudo para os filhos).
Para os moradores do Vila Marielza, a cidade não correspondeu a essas
expectativas e, muitas vezes, o abandono é a maior discriminação que sofrem, pois se
saíram do campo, não foi aleatoriamente, foi por dispensa do patrão, por mudanças nas
relações pessoais de trabalho mantidas nas fazendas. Mas agora, sair do bairro seria
arriscar ainda mais por um destino incerto. Falta emprego, falta assistência médica,
policiamento e infra-estrutura, mas, lá, as pessoas possuem a moradia e o não se arriscar
por aí vem, talvez, do sentimento de que essa precariedade ainda pode aumentar.
Até onde o reconstituir viveres foi possível é uma questão a investigar. Talvez
eles possam estar sendo redimensionados para que a vida se torne mais fácil de ser
levada e alguns sonhos possam continuar existindo e que outras expectativas surjam na
vida dessas pessoas.
O jornal Correio de Uberlândia, em artigo que trata da vinda dos trabalhadores
rurais para a cidade, afirma: a esperança de uma vida melhor não pode nunca morrer
dentro da gente. Porque se ela morre, leva junto a vontade de viver
122
. A análise do
autor tenta apaziguar o descrédito e a desilusão da população pobre uberlandense,
jogando para o individual a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso das pessoas. Na
matéria veiculada, seriam as capacidades individuais e, não, as relações sociais que se
desenvolvem em um país como o nosso, que justificariam as más condições de vida de
uma parcela significativa da população.
Por isso, quando os jornais discutem a dificuldade da cidade em se articular com
esses moradores pobres está, na verdade, dando vazão ao que não pode ser contido: o
desequilíbrio urbano, fazendo-nos pensar que essa cidade, intitulada do progresso, da
expansão
123
, nem sempre reflete um viver melhor de sua gente: correm o perigo de ter
122
MAIS de dois milhões de pessoas saíram de casa na esperança de uma vida melhor. Correio de
Uberlândia. 06 ago. 1980, p. 07.
123
Cf., por exemplo, UBERLÂNDIA é fácil entender porque este nome significa terra fértil. Correio de
Uberlândia. 30-31 ago. 1980, p. 02 e também GOMES, M. E.; SPARTACUS, I. Crise a distância. VEJA,
São Paulo, n. 1002, p. 66-73, 18 nov. 1987.
que suportar, nos próximos dez anos uma estagnação, com o gradual empobrecimento
da cidade. Cidade grande, jamais foi sinônimo de cidade rica
124
.
Muitas vezes, correr perigo parece denotar algo que pode vir a acontecer.
Porém, muitas pessoas já viviam, na época dessa matéria, os problemas do desequilíbrio
urbano. Elas já sabiam, e sentiam na pele, que a cidade grande camufla várias faces do
seu todo, e que não faziam parte do que se destinava aos ricos e, sim, da parte dos
sobrantes, apontados como causadores das contradições sociais.
Nos jornais, uma das principais questões a serem resolvidas no país era o
crescimento urbano desordenado, promovido principalmente nas décadas de 1970 e
1980: visa-se, ainda, a eliminar gradativamente a pobreza que se acumula, sobretudo
pelas migrações, nas periferias urbanas. Com esse propósito, deve-se atuar,
concertadamente, no campo e nas cidades
125
. O artigo sugere que se fixe o pequeno
agricultor e trabalhadores rurais no campo, de forma que as cidades consigam ter
condições para garantir melhores condições de vida aos seus legítimos moradores, pois
caso o contigente de migrantes perdurasse (o que se concretizou ao longo da década) o
desequilíbrio urbano só tenderia a piorar
126
.
Com isso, à medida que a cidade não se afirma como o lugar de trabalho e
sobrevivência dessas pessoas que são expulsas do campo, o trabalho temporário no
meio rural vai aparecer como a alternativa possível, o que não é discutido pelo jornal, as
relações sociais estão fora dos noticiários. O que tem lugar nas suas páginas são os fatos
políticos considerados notáveis e, ao lado deles, alguns percalços, como a mudança de
administração que apoiava a edição do jornal. Discutir a cidade, porém, é bem mais que
isso.
No caso do Vila Marielza, tanto pela distância do centro urbano, quanto pela
precariedade de condições das famílias, trabalhar nas proximidades, além de viável,
significou retornar de onde vieram, mesmo porque, como D. Lucimeire nos anuncia,
124
QUIRINO, Luiz Fernando. A vida é mesmo assim. O aumento semestral. Correio de Uberlândia. p.
05, 01 jul. 1982.
125
CRESCIMENTO urbano com melhoria da qualidade de vida. Correio de Uberlândia. 21 nov. 1980, p.
05.
126
MIGRAÇÃO Controlada. A Notícia. Uberlândia, 01 ago 1981, p. 01.
aqui (Marielza) num tem como ganhá a vida, aqui dentro do bairro, não!
127
e D. Nilsa
adverte a gente vai passando como Deus manda
128
.
O retorno ao campo é partilhado pela maioria dos migrantes, pois a
desqualificação profissional e a dificuldade de adaptação principalmente para os mais
velhos aos trabalhos da cidade horários, ambientes fechados, rigidez da chefia, baixos
salários, uso do transporte coletivo - fazem com que o trabalho no campo, ainda que
precário, seja uma opção quase imediata ao desemprego na cidade: vortei prá roça
(quando ficou desempregado), fui prá roça trabaiá lá (...), eu ía prá lá trabaiava e
vortava. Era um bico, né? É assim, ó num foi os seis mêis direto não. Eu fui ajudá é
batê pasto e ajudá a plantá arroiz... eu tinha uma irmã que morava lá
129
; é na
plantação de lavôra, verdura, que os homem vive daqui
130
. Situação vivida tanto pelo o
Sr. Osvaldo, Sr. Venâncio, como para D. Ercília e o marido de D. Lucimeire: mais num
tem seviço sempre não, um dia tem seviço outro não...
131
.
Por isso, quando ao se tentar outras formas (doméstica, caixa de supermercado,
carregador de mercadorias), o retorno financeiro não vem com tanta facilidade. O filho
de D. Nilsa tentou ser borracheiro em outro bairro da cidade, mas acabou indo para a
lavoura. A saída para essas tentativas é voltar para a atividade que lhes garanta pelo
menos o que comer
132
.
A provisoriedade é o que rege a vida dessas pessoas, assim como trabalham hoje
para viver hoje, amanhã, grande parte não sabe onde vai trabalhar ou o que irá comer.
Quando D. Ercília menciona o trabalho para a granja paulista, explicita a
oscilação de seu viver indo e voltando para onde tem serviço: trouxeram nóis (para
trabalhar) aí nada deu certo, aí nóis pegô teve que vortá pra tráis (roça)
133
. Essa
127
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
128
D. Nilsa Ferreira Coutinho, 53 anos, moradora do Vila Marielza há 10 anos, entrevista dia 10/05/2002.
129
Sr. Osvaldo Rodrigues do Nascimento, 58 anos, morador do bairro Segismundo Pereira, residente em
Uberlândia há 22 anos, entrevista realizada dia 01/12/2001, cedida gentilmente por Maucia Vieira dos
Reis.
130
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002
131
D. Nilsa Ferreira Coutinho. 53 anos, moradora do Vila Marielza há 10 anos, entrevista dia 10/05/2002.
132
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era morador do bairro Alvorada, residente em Uberlândia há
22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
133
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
realidade não é apenas uma experiência isolada de D. Ercília, mas de tantos outros que
vivem à mercê das condições possíveis de trabalho, de saúde, de educação, de
sobrevivência.
Com isso, o retornar para as atividades na roça, mesmo não residindo mais nas
fazendas, aparece como alternativa de sobrevivência entre os moradores do Vila
Marielza, à medida que o serviço na cidade se tornava uma possibilidade cada vez mais
distante. O Vila Marielza não oferece muitos outros meios de sobrevivência além de
cultivos complementares à renda, horta, pés de frutas, criação de galinhas e porcos.
O trabalho na roça, em sua maioria temporário, atende, ao que se diz dá pra
viver. Mesmo inseridos nestas condições precárias e provisórias, parecem as mais
acessíveis a eles, pois além de exigir um saber que já possuem, não gera problemas de
deslocamento, pois podem até mesmo ir a pé, em grupos, para as fazendas
134
.
A inserção dos moradores do Marielza no meio urbano, ao mesmo tempo em
que é restrita pelas suas possibilidades financeiras, também o é pelo abandono em que
foram deixados pelo Poder Público durante essas últimas décadas.
É uma região que, apenas há aproximadamente seis anos, tem água encanada,
não possui asfalto, nem rede de esgoto e nem energia elétrica
135
. Estas são questões que
interferem diretamente na visão que as pessoas de fora têm da vila, como também na
visão que os próprios moradores constroem, pois percebem que, de certa forma, estão
separados do restante
136
da cidade.
Um lugar tipicamente formado por meeiros, peões, pessoas que residiam nas
fazendas próximas, aqui do Olhos d’Água, da Saudade, tem da Tenda dos Morenos,
alguns
137
. São pessoas que de lá saíram em direção à cidade.
À primeira vista, o Vila Marielza seria um local que possibilitaria a essas
pessoas - expulsas do campo pelo projeto de capitalização rural adequarem seus
134
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
135
O que só agora parece chegar para além da Rua 2, única Rua iluminada desde o início da década de
1980 e que muitos moradores justificam agora estar sendo iluminada em razão do período eleitoral que se
inicia, tendo em vista as eleições municipais de 2004.
136
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
137
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
modos de vida à emergência de sobreviver, e a cidade parecia ser a resposta mais
próxima e possível, pois, de algum modo, para além do preço mais acessível dos
terrenos, morar no Vila Marielza garantia proximidade de um possível trabalho nas
fazendas circunvizinhas, caso não houvesse outro emprego no meio urbano.
Entretanto, houve outro fator marcante para que essa escolha ocorresse: a
presença de parentes já residindo no bairro, o que na fala de D. Lucimeire fica
expressivo quando perguntamos a ela sobre o futuro dos filhos. A entrevistada diz que
será como o dela, ir ficando por ali, pois os parentes estão ali, cresceram ali
138
, fator
que, ligado ao preço mais acessível dos terrenos, determinam os caminhos e territórios
que vão sendo demarcados por essas pessoas.
A respeito desta questão o valor do terreno - entendemos que os preços dos
terrenos na cidade influíram diretamente no onde morar dessas pessoas, elas não
sobraram apenas no campo, mas também são tratadas como sobras da cidade, se
instalando em regiões precárias, às quais vão dando forma de acordo com seus valores e
hábitos e necessidades.
Percebe-se que o Vila Marielza é um local onde famílias, praticamente inteiras,
se refizeram e tentam levar a vida como é possível. São três grupos familiares onde
primos, irmãos, sobrinhos, avós, tornam as relações no bairro muito mais próximas,
cujos laços de família fazem com que partilhem experiências e intensifiquem as lutas
em comum: a maioria (moradores) é família. São pocos os que vêm de Uberlândia, que
não são daqui (...) muito morador daqui é tudo parente, é tio, é tia, é primo, é avô, é
avó
139
.
Todos se conhecem e sabem o que se passa na vila, mesmo entre aqueles que
vieram de outros bairros de Uberlândia ou compraram terrenos para fazerem chácaras
de fim de semana. Se houver um assalto, uma morte, pode se chegar em qualquer uma
das casas que eles saberão do acontecido, pois, como eles mesmos afirmam, aqui todo
mundo é conhecido
140
, aqui todo mundo é conhecido de todo mundo
141
.
138
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
139
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
140
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
141
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
Essa noção de todos, no entanto, longe de ser uma expressão de homogeneização
dos moradores, é também indicativo dos conflitos e tensões vividos por eles. Muitas
vezes, encobre particularidades de sentimentos e problemas vividos na vila, como
drogas e brigas.
Muitos moradores vêem esse morar como sossego, outros entendem como
solidão, mato e sujeira: aqui é calado, muito poca gente, a gente fica quase, bem dizê
sozinho. Aqui tem que miorá muito; tem muito mato, muito desmazelado, né?
142
. A
imagem que D. Elídia nos sugere do bairro pode ser percebida em várias fotos do local,
entre elas, a foto 2.
Foto 2: Imagem da Rua 2, Vila Marielza, maio 2002/Acervo da autora
Nesta imagem da Rua 2, destacam-se os espaços vazios com a falta de infra-
estrutura, a poeira das ruas de chão, os animais soltos pelas vias, o mato nos terrenos e
contornos do bairro. São estes elementos que preenchem a visão que D. Elídia tem ao
sentar no quintal da parte da frente da sua casa. O silêncio a leva a sentir certo
isolamento, um abandono. Depois de tanto trabalho durante a vida, hoje aos 76 anos,
com um grave problema de coluna adquirido ao longo dos vários anos de trabalho
pesado, o seu viver se resume a olhar nas frestas do portão, a realidade da vila e pensar
na sua própria trajetória.
142
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos. Entrevita realizada dia
10/05/2002
Foto 3: D. Elídia, sentada no quintal da frente de sua casa, Rua 2, Vila Marielza,
maio 2002/Acervo da autora
As diferenças também aparecem quando os moradores avaliam o que é essencial
no bairro: para uns é o esgoto, precisava de arrumá a rede de esgoto
143
, para outros o
policiamento, a energia elétrica, o posto de saúde, a creche e a escritura da casa, visto
que o bairro não possui registro na Prefeitura.
Os direitos pelos quais eles lutam - energia elétrica, esgoto, escritura - diferem,
em parte, dos direitos almejados pelos moradores de outros bairros, como, a D. Maria,
moradora do bairro Jardim Brasília, que vivendo no perímetro urbano oficial, enumera
algumas reivindicações que gostaria de ver atendidas: limpeza dos lotes vagos do bairro,
143
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002
.
combate à violência, policiamento do local. Neste caso, a infra-estrutura não é colocada
em questão por D. Maria, pois essa já existe, e são outros os problemas que permeiam o
seu cotidiano. Em qualquer dos casos, seja quais forem as reivindicações, elas
demonstram que os pobres estão vivendo mal, inseguros e à margem das políticas
públicas.
Acima dessas reivindicações está a exclusão que sofrem em ambos os espaços,
onde a Prefeitura não assume os moradores pobres, deixando-os à mercê da sorte e de
outros mecanismos de auxílio (no caso do Marielza; Olhos d’Água, Tenda dos Morenos
e bairros próximos - Morumbi e Alvorada). Não estou querendo dizer que o Vila
Marielza seja o mais precário da cidade, pois temos outros exemplos próximos de
regiões paupérrimas, como o Joana D'arc
144
e São Francisco. Porém, no caso do Vila
Marielza, é o silêncio das fontes oficiais
145
sobre a sua existência há mais de 20 anos
que faz com que o abandono seja sentido e reconhecido com tanta intensidade:
isso aqui (Marielza) já teve num ponto de todo mundo querê abandoná
isso aqui (Marielza) de tão ruim que era. Agora, devagar, andando que
nem tartaruga, invai caminhando
146
.
Ao ver que as melhorias não vêm, depois que eu mudei pra cá só aumentô mais
umas casa, assim, valorizá, valorizá, num valoriza, num apareceu nada novato que
fizeram não
147
, ao fazer uma compra em que o vendedor não sabe que tal bairro existe, a
gente é excluído de Uberlândia! Tanto é que todo mudo que vem passeá aqui, da nossa
própria família, pergunta, nossa cêis mora longe demais! No centro quando a gente vai
fazê alguma, assim prestação, uma coisa assim, a gente fala mora em tal bairro, fala:
'onde é iiiiiisso?!' ninguém sabe onde é Marielza, quase ninguém, isso aqui é um bairro
144
De acordo com esta colocação conferir: ÁGUA com açúcar no lugar do café da manhã. Correio, 06
jan. 2002, p. A-9; MULHER tem seis filhos desnutridos. Correio, 06 jan. 2002, p. A-9; ANEMIA
aumenta entre os pobres. Correio, 06 jan. 2002, p. A-8; FALTA de alimento mata 280 crianças por dia.
Correio, 06 jan. 2002, p. A-8.
145
Em pesquisa recente da UFU e Prefeitura Municipal, não constam dados sobre o Marielza. Além disso,
o mapa da cidade não o inclui como bairro urbano, a não ser o mapa de 1993. Muitas outras fontes e
pesquisas são utilizadas para discutir áreas de maior necessidade no setor urbano da cidade (com relação a
saúde, educação, infra-estrutura). O Vila Marielza se encontra ausente destes dados e discussões,
dificultando ainda mais, a difusão de melhorias para aquela região.
146
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
147
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
desconhecido
148
. Seja pela distância que se impõe entre o bairro e o restante da cidade: é
muito difícil a gente i lá (Medicina), porque pra gente i lá tem que pagá carro (ônibus),
eu num dô conta de pagá a condução pra levá (...) eu vô no mais perto. Eu vô aqui (...)
no Alvorada, eu vô lá (se referindo à Tenda dos Morenos)
149
.
A fartura, a moradia, o trabalho, tudo que perderam com as mudanças na
agricultura e na economia do país parece ser difícil de reconquistar nesse novo espaço.
Além disso, até mesmo os direitos urbanos parecem não chegar lá: quando eu vim pra
qui (...) um dia tinha, otro dia num tinha, era assim que era a água (...) era um trabaio
(...) carreguei muita água na cacunda até a água (encanada) chegá
150
.
Ao conversar com os moradores, percebemos que a expectativa de se conseguir
a escritura de suas casas é visível e, ao contrário do que esperávamos, reconhecem a
provisoriedade do contrato que têm em mãos, sabem que o bairro é clandestino e se
sentem injustiçados e enganados pela ausência das benfeitorias a que têm direito: é
engraçado, então a gente não existe? Mas pra pagar IPTU, água, luz a gente existe
né?
151
. Nóis comprô isso aqui, no contrato isso aqui tem, tinha: água, luz (...) rede de
esgoto (...) asfalto, tudo tinha, só que ela (Sônia
152
) não feiz nada ainda
153
.
Ao comprarem o terreno da Imobiliária Vereda ou casa de terceiros, os
moradores adquiriram, no ato, um contrato, porém a escritura da casa não saiu, devido
ao loteamento ter sido feito ilegalmente, sem registro na Prefeitura, situação que, ao
longo, das décadas de 1980 e 1990 se prolongou e que agora parece estar sendo
resolvida, devido a pressão da Associação de Bairro, por meio da presidente D. Hilda e
da participação dos moradores.
148
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
149
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
150
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
151
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
152
Sônia, citada por D. Ercília, é a responsável pelas negociações com a prefeitura sobre a escritura,
mesmo que o dono do local seja seu irmão, Reginaldo. D. Ercília levanta a questão de que por essa estar
passando por dificuldades financeiras agora está correndo atrás de regularizar a situação, e como diz é só
se interessá pra ela é que vai saí alguma coisa reconhecendo a morosidade das benfeitorias e a exclusão
que o pobre sofre na cidade.
153
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
Eles procuram estar a par das negociações e como devem proceder com relação
a essa causa, excetuando muitas vezes os que moram de favor na vila, que pouco se
remetem à questão da escritura, e aqueles que não são donos dos terrenos onde vivem,
como é o caso do missionário da Igreja Assembléia de Deus, o Sr. Zaqueu, que toma
conta da Igreja e mora no fundo
154
. O envolvimento dos proprietários com a luta pela
legalidade dos lotes nos faz inferir que a relevância de um fato ou luta por ele depende
dos interesses imbuídos nessa causa, isto é, a identificação dessa luta com um direito
negado.
Em outros casos, como o combate à violência, a necessidade de telefone, de
creche, mesmo os moradores que não são donos da propriedade compartilham dessas
lutas, pois, se concretizadas, estendem-se a todos que vivem no bairro, independente da
relação de moradia estabelecida pelos mesmos.
A ilegalidade do loteamento serve, em grande parte, para justificar o descaso da
Prefeitura com o bairro, mas não satisfaz os moradores, que não têm medido esforços
nestes anos pela concretização de seus direitos. Como D. Lucimeire nos fala, a diferença
de tratamento é perceptível, porém ela, como muitos, não encontra razões para que
sejam discriminados:
diz que não tem condição (posto policial), que o bairro vizin, é muito
próximo, então o policiamento de lá vale pra cá, mas num vale porque
ora que a gente chama que a gente mais precisa... (...) Morumbi três
quilômetro e ês fala que não pode por aqui, por ser próximo (...). Então
porque que no Alvorada tem e lá (Morumbi) também tem? Muito mais
próximo num é? E aqui a gente não consegue... (...). Porque já começô
errado, tanto é que diz que isso aqui (Marielza) não faz parte da
prefeitura, não faz parte do mapa de Uberlândia! (...). É clandestino
155
.
Assim, demonstram que desejam garantir um lugar, conseguir demarcar seu
território na cidade, dá a escritura pra nóis ficá sabeno uma coisa certa
156
. Como o Sr.
Venâncio diz o que importa é ter um endereço.
154
Sr. Sr. Zaqueu Maciel Gomes, 30 anos, morador do Vila Marielza há 3 anos. Depoimento obtido dia
15/08/2002. O depoente não aceitou a gravação da nossa conversa.
155
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
156
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
Eles entendem que a luta pelos direitos e por pertencimento se fortifica à medida
que não forem mais excluídos da cidade, como diz D. Ercília: isso aqui não é registrado
na prefeitura, num existe
157
.
Desse modo, passar a existir significa poder usufrui melhorias e pertencer ao
meio social com mais dignidade, a hora que o bairro animá mais, ou seja, D. Elídia
entende que, quando as melhorias vierem, o bairro pode deixar de ser tão pouca gente
(...) sujo, cheio de mato (...)
158
. Para ela, a partir daí, o bairro melhora.
Parte dos moradores mantêm uma relação de dependência com as fazendas, em
especial, Olhos d’Água e Tenda dos Morenos. Nestes locais, são encontrados serviços
básicos, o lazer e a solidariedade que precisam - escola, atendimento médico, festas,
trabalho, auxílio nas reivindicações - o que demonstra que, de certo modo, quem atende
os valores e direitos básicos desta gente não está sendo a cidade e, sim, o local de onde a
maioria deles saiu, o campo.
Por isso, quando se referem a Uberlândia é quase como se tivessem
incorporando a idéia de que não estão na cidade eu quais num vô na cidade
159
. Sentimos
como se falassem da vila como um meio lugar (nem campo, nem cidade).
Quando os moradores dizem que vão à cidade fazer compras, estão se referindo
aos bairros Morumbi e Alvorada: pra fazê compra eu vô no Morumbi (...) aqui tem,
mais é caro demais, num dá conta de comprá (...) Cê compra um butijão de gás no
Morumbi tá 19,50 (reais) o butijão de gás no Morumbi; aqui eles tá cobrano 28
160
; vô
no Morumbi e no Alvorada, fazê compra
161
, referem-se também à Unidade Básica de
Saúde no Alvorada, eu vô aqui (...) no Alvorada
162
. Só no fim das conversas diziam que
recorriam raramente ao centro, fazendo referências às avenidas principais do centro
157
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
158
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
159
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
160
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
161
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
162
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
comercial de Uberlândia como Av. Floriano Peixoto e Av. Afonso Pena - eu vô lá
(centro) só quando é preciso
163
. O centro é também o lugar das escolas (após terminar a
8ª série no Colégio de Olhos d’Água), do recebimento de aposentadorias nos bancos -
levá minha mãe pra recebê
164
- e, em última instância, fazer compras e procurar a
Medicina
165
e hospitais particulares. Além desses locais, poucos outros foram citados,
como a casa de show de forró, Fazendão, também no centro da cidade.
Mediante isso, a distância que imprimem da agitação da cidade, até certo ponto,
é uma opção, num primeiro momento, pelo sossego do Vila Marielza
166
e, em outros,
pela ausência do dinheiro para desfrutar das lojas, casas de show e bares.
A maioria das pessoas que vivem em Uberlândia ignora a existência do Vila
Marielza e como sobrevivem seus moradores. Da mesma forma, a relação dos
habitantes da vila com a cidade é tênue uma viagem quase. Pela distância e pelo
costume aqui né?
167
. Entendemos tal costume como o que determina a diferenciação
que fazem entre a cidade e o Vila Marielza.
Ir à cidade, como D. Lucimeire diz, é um passeio - lá (Uberlândia) é muito
agitado, acho que é isso (...) Uberlândia é um passeio
168
- o que demonstra reconhecer
não fazer parte desse meio, construído para alguns, restrito para outros. A exclusão que
vivem não é simplesmente de infra-estrutura, distância. É o abandono que sofrem em
ver a cidade crescer e não chegar lá e, sim, o lixão, a poeira, os bandidos que circundam
o ambiente de moradia dessas pessoas.
Em frente ao bairro, do lado esquerdo da BR 365, havia, até meados de agosto
de 2002, uma movimentação de caminhões, de entulhos e lixo, que depositavam a carga
naquele local, onde mesmo causando muita poeira, fornecia restos de materiais
(madeira, telhas, aparelhos) reutilizados pelos moradores. De qualquer forma, acharam
163
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
164
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002
.
165
Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia Campus Umuarama.
166
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
167
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
168
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
um alívio o fim do descarrregamento
169
, pois entendem que estes não devem ser feitos
tão próximos do bairro, porque senão aqui vai ser sempre desprezado, né?
170
.
A sensação de não pertencer à cidade não é exclusiva daqueles que habitam o
Vila Marielza, muitos dos que moram nos bairros oficiais não partilham dessa cidade, o
que demonstra que não é o lugar onde se vive que determina a exclusão e, sim, a sua
condição social, numa cidade excludente onde alguns se julgam dela.
Os pobres da cidade vivem em busca de pertencer ao meio urbano, tendo que
enfrentar as barreiras econômicas (desemprego, alto custo de vida) assim como as
sociais (exclusão de planos de saúde de qualidade, escolas, cursos, locais de lazer)
presentes no planejamento urbano. A elite local procura demarcar territórios na cidade
vislumbrando políticas e empreendimentos que atendam às suas necessidades, porém a
população pobre se articula driblando esses limites e criando estratégias de conviver e
sobreviver para além da periferia ou da ilegalidade
171
.
Entretanto, a disputa se faz presente, o resistir está no lutar por melhorias, no
improvisar moradias e formas de trabalho. A prefeitura até hoje não ajudou a gente,
falta de reclamá não é
172
, como também no dizer que é um bairro, mesmo que a cidade
se recuse a aceitá-lo.
Caso essa inserção legal ao meio urbano aconteça, não se vai alterar apenas o
mapa da cidade, mas também alguns traços característicos do bairro, até mesmo
limitando a chamada liberdade que possuem. Ou seja, até agora seu território é
ordenado e traçado conforme interessam aos moradores e não ao Poder Público: é
assim, o que dá conta de comprá mais de um terreno, forma uma chácara...
173
.
169
Em outubro de 2002, quando retornamos no B. Vila Marielza, D. Célia nos informou que o
descarregamento dos caminhões encerrou, e que agora, resta apenas, o mau cheiro das pocilgas dos seus
vizinhos.
170
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
171
O que não é exclusividade do Vila Marielza, há vários bairros que aguardam a regularização por parte
da Prefeitura e da Imobiliária que vendeu os terrenos. Atualmente tem-se loteamentos como o Jardim
Europa em que estão sendo vendidos os terrenos, até mesmo noticiado na imprensa televisiva, porém não
possui registro na Prefeitura, o que indica a propagação da ilegalidade e do descaso com a população que
compra e reside nesses locais.
172
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
173
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
Construindo seus viveres no Vila Marielza, os moradores articulam o bairro
conforme suas necessidades. Fazer um atalho para ter acesso à outra rua e à residência,
puxar a energia do vizin, como D. Lucimeire diz (antes da rede de energia elétrica
chegar a toda a vila), encher o quintal de plantas e hortas, ir redimensionando a casa e o
terreno à medida que a família aumenta, ou o desemprego se faz sentir. Isso é
improvisar o viver, são algumas formas de sobrevivência que, quando outro recurso não
existe, torna-se a única alternativa.
Mas também não podemos nos limitar a vê-los apenas como um grupo de
pessoas pobres que sofrem com a marginalização. Há outras intenções que permeiam o
viver no Vila Marielza: a compra de terrenos para a valorização e revenda daqui alguns
anos, ou seja, especulação imobiliária “a la Marielza”, uma forma de inserção no
mercado, a permanência na vida precária como justificativa à busca de auxílio, sendo
essa atitude quase uma mendicância, que explora a noção de doação tanto do Poder
Público como das pessoas.
Na foto abaixo, a abertura do caminho para mover-se entre vizinhos não obedece
a nenhum planejamento, mas, sim, demonstra como o bairro tem como principal
característica a interferência dos moradores no modo como o espaço e os seus viveres
foram e são construídos.
Foto 4: Avenida Vereda travessia para Rua 2, maio 2002/Acervo da autora
Nas fotos seguintes vemos outros exemplos da improvisação e da precariedade
de vida. Na foto 5 - a seguir - temos parte do quintal de D. Nilsa
174
, que equivale a dois
terrenos, além do tanque com escoramentos de madeira, cano de ligação de água e parte
de uma bacia. Do lado direito, aparece parte do puxadinho do fundo da casa, que é feito
de pau-a-pique. A casa, muito simples, é composta por móveis doados e expressa bem a
provisoriedade de vida que essas pessoas levam. Posteriormente, na foto 6, o cômodo
situado no quintal de D. Nilsa é o banheiro, onde guarda em seu interior a privada de
buraco. Madeira, pedaços de telhas e latarias: são com esses materiais que se faz, muitas
vezes, um puxadinho, um conserto na casa, um banheiro. A mangueira esticada em sua
direção indica como é o banho dessa moradora e nos instiga a pensar nos hábitos de
higiene que se têm em várias partes da vila por não haver uma rede de esgoto instalada
(água de lavar roupas e louças corre pelas ruas).
174
Na realidade, o terreno não pertence à D. Nilsa e, sim, à sobrinha de seu marido (já falecido) que
esperava o momento de regularizar o bairro, para passar a escritura para o tio. Porém, com a sua morte, D.
Nilsa suspeita que a sobrinha irá pedir a casa, o que prejudica ainda mais o seu viver, pois até mesmo sua
moradia é instável.
Foto 5: Quintal da D. Nilsa, em destaque o tanque e parte da casa,
maio 2002/Acervo da autora
Foto 6: Quintal da D. Nilsa em destaque o banheiro no fundo do terreno,
maio 2002/Acervo da autora
A visualização do bairro através da fotografia, mesmo para aqueles que não
conhecem a realidade dos moradores, nos transmite a precariedade da forma de se viver
ali, contradições e ambigüidades do lugar no espaço da cidade. Além das tensões
decorrentes das condições de vida e da relação com o Poder Público, existe o contraste
entre as moradias: barracos, casinhas, outras residências no estilo tradicional, de tijolos,
rebocadas, pintadas, com carros na garagem, parabólicas, portões, muros e, ainda,
algumas ocupando dois a seis lotes, em forma de chácaras, com plantações de verduras,
frutas e criação de animais. Os moradores mais pobres constroem suas casas, em sua
maioria, em demão, com a ajuda de vizinhos e parentes.
Em outras, em lugar do número da residência, os moradores utilizam placas de
identificação como se fossem chácaras, lembrando-nos a zona rural, com aqueles
quintais de chão batido, com fogão à lenha e tanque improvisado.
Foto 7: Frente da casa na Avenida Vereda, em destaque a antena parabólica,
maio 2002/Acervo da autora
Foto 8: Frente da casa na Avenida Vereda, em destaque a placa de identificação
da residência, maio 2002/Acervo da autora
Nas fotos 7 e 8, além da diferença de valores que cada uma representa (a porteira
e a antena parabólica), o que não impede de coexistirem a poucos metros de distância
uma da outra, vê-se que as incorporações do meio urbano se materializam e se confluem
com as práticas rurais.
Por isso, tipificar o Vila Marielza, ou mesmo dizer o que é cidade e o que é
campo nele, é na verdade, forjar espaços homogêneos que não existem. Ambos são
construídos por relações onde as pessoas trocam, imprimem valores, modos de vida de
acordo com suas trajetórias. Constrói cada um a seu modo um viver que lhes
identifiquem enquanto sujeitos sociais.
Entretanto, a miséria está estampada à frente da maioria das casas,
demonstrando, como a D. Nilsa diz estar-se à espera de alguma providência, uma ajuda
que não é a solução, mas que vai permitir prosseguir. Uma cesta básica ou uma
promessa de aposentadoria por doença, viuvez ou idade, seja qual for a alternativa,
sempre se resume em uma longa espera pelo acolhimento por parte da cidade
175
.
Durante os dias da semana as ruas são vazias e barulho só se for dos carros e
caminhões que trafegam na rodovia próxima. O silêncio junto à poeira e o mato
prevalecem. A televisão ou o rádio ligado desperta-nos para os entretenimentos dessa
gente, assim como os bares, que não são poucos (cerca de sete). O vaivém das crianças
que percorrem as ruas a pé ou de bicicleta se encarrega, por sua vez, de dar vida aos dias
do Marielza.
Andando pela vila procuramos identificar como eram feitas as construções. Dois
bares da avenida principal nos mostraram essa noção com maior precisão: um
puxadinho de tijolos que divide parede com a residência. No geral, o morador
175
D. Nilsa Ferreira Coutinho, 53 anos, moradora do Vila Marielza há 10 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
economiza o terreno, permitindo a plantação de hortas no quintal e, ao mesmo tempo,
construindo a casa e, quem sabe, um comércio.
Desse modo, unem-se duas fontes de renda e, mesmo assim, pouco se consegue
desses recursos. Dona Célia diz que o movimento no bar não dá para viver e que a renda
tem que vir de fora, com o aluguel de duas casas que possui no Estado do Mato Grosso.
Assim, ela expressa, de certo modo, um desânimo, quer vender o local, pois acha que
aqui num vai melhorá, mas, ao mesmo tempo, conta-nos que se a presidente da
Associação fosse deixar o cargo gostaria de assumir, demonstrando que o seu desânimo
oscila entre a vontade de mudar o bairro, sendo a Associação o veículo para que isso
aconteça, e o descrédito que possui de que essa mudança aconteça.
Ao percorrer o Vila Marielza em finais de tarde (entre dezessete e dezoito horas)
vimos que os trabalhadores, principalmente homens, visto que não se tem creche para
deixar as crianças para as mulheres trabalharem, começam a chegar da lavoura, a pé ou
de carona, trazendo nas suas vestes, e nos veículos que circulam, a cor e o cheiro da
terra.
O trajeto que fizeram, durante as vezes em que os observamos, mostra que
chegam pela Avenida Vereda e, por ali mesmo, vão se acomodando nos diversos bares,
uma estadia que se intensifica aos finais de semana, quando jogam sinuca, cartas e
bebem
176
.
Na foto 9 destacamos o bar da D. Célia, e em particular o seu interior, as
prateleiras de bebidas alcóolicas.
176
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
Foto 9: Interior do Bar da Célia, maio de 2002/Acervo da autora.
Esse hábito foi sugerido em uma das entrevistas, na qual a moradora considera
que o bairro apresenta graves problemas com brigas nos bares devido a bebidas: aqui
começa dia de 5ª fera até 2ª fera, cê num tem um pingo de sossego! (...) bagunça, só
bagunça (...) é nos bar, nos buteco aí, ali embaixo no barracão (Barracão de festa na
Olhos d’Água) tem um, uma festa lá (...) eis vai pra lá, já vem tudo tonto, já vem aquela
narquisera na rua e já começa tudo a brigá, já topa os buteco aberto, ali já junta uma
turma, um joga caxeta, aí começa uma brigaiada e aí o pau quebra
177
.
Além disso, o transporte de van - que ocorre desde o início de 2002 e percorre
cerca dois quilômetros do Morumbi ao Marielza pela BR 365 - vem causando algumas
alterações no bairro, devido ao convívio mais intenso com os bairros vizinhos,
agravando, conforme dizem nas entrevistas, as brigas, pois consideram os moradores
vizinhos os desencadeadores das confusões. Com a van
178
, o acesso ao bairro se tornou
mais fácil.
Antes, o transporte mais freqüente era feito com caronas pedidas no acostamento
da rodovia, nos caminhões de verdura que vinham das fazendas, ou a algum vizinho que
possuísse moto ou carro e acerca de dois anos (2001), havia horários de ônibus duas
vezes ao dia, e nos últimos seis meses de 2001, eram quatro.
Além do transporte de van propiciar maior movimentação no bairro, visto que
ele é gratuito, traz moradores dos bairros próximos (principalmente Morumbi e Dom
Almir), com esse negócio de van ês tá dexano os passagero pá traizi e trazeno a
molecada do Morumbi porque num pode falá nada, porque ês reage e bate. Fala que
177
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
178
O transporte de van é gratuito, e é um serviço prestado pela Prefeitura para atender àquela região, caso
a pessoa precise ir a outro local, tem que ir de ônibus, pagando passagem. O Sistema Passe Livre, criado a
partir de 2002, substituiu, e até em parte resolveu, a ausência de ônibus coletivo no local. A van sai do B.
Morumbi, passa pelo Vila Marielza, Fazenda de Olhos d’Água e Fazenda Tenda dos Morenos e retorna.
Esse transporte está disponível de uma em uma hora.
vai quebrá a van tudo
179
. Na visão dos moradores, isso não é muito bom, pois
consideram os visitantes baderneiros e perigosos devido ao grande número de assaltos
em que estiveram envolvidos no bairro e nas fazendas próximas, eu penso que num é
não, eu penso que é do Morumbi, Dom Almir (...) os ladrão que mais é, do Dom Almir e
do Morumbi, que já pegaro assim, que já sabe quem é, é mais é di lá
180
.
Assim, com a presença desses visitantes, o divertimento dessas pessoas
demonstra um certo conflito entre moradores do Vila Marielza e gente de fora. De
quinta a segunda-feira, há grande movimento nos bares e forró da Olhos d’Água, o que
traz a reboque assaltos e brigas com muita freqüência. Isso parece incomodar os
moradores preocupados com a violência - aí ninguém dorme, ninguém tem sossego, é
briga uma atrás da outra
181
- agravado, mais ainda, com a falta de policiamento - Eu
acho que até ês (polícia) tem medo de vim aqui
182
. Esta é uma denúncia que a maioria
dos moradores faz questão de ressaltar, vem, mais já vem fora de hora, né?(polícia)
183
.
No Vila Marielza, eles se defendem, descartando a hipótese de que um deles seja
responsável pelos assaltos. Mas, entre uma conversa e outra, os entrevistados revelam a
participação de vizinhos em delitos, estando em muitos momentos drogados e bêbados
fazendo “arruaça” no bairro
184
.
Entretanto, as festas nas fazendas vizinhas se resumem nos momentos possíveis
de se desvencilhar do trabalho pesado e da vida difícil que levam, fortalecendo também
os laços de amizade. As festas da roça são formas deles garantirem ao menos alguns
vestígios de costumes importantes de suas trajetórias.
E é nesse entretecer de relações que vemos a precariedade aparecer como
elemento fortalecedor dos vínculos dos moradores. O que assustou os migrantes
entrevistados no meio urbano oficial, pois percebem no viver urbano um isolamento,
179
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
180
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
181
D. Lucimeire Rodrigues Martins, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista realizada
dia 09/05/2002.
182
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
183
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
184
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos, entrevista dia 14/05/2002.
(roça) tinha mais contato, aqui as pessoas cada um vive pra si
185
, enquanto no Vila
Marielza, isso é amenizado pelos laços de família que os moradores mantêm, tendo
quase toda a família residindo no bairro. Exceto no caso de D. Elídia que, pelo fato do
seu único filho morar no Alvorada, gostaria de morar lá, próxima dele, já que não tem
nenhum outro parente próximo (ver foto 3, p. 60).
Com o gravador desligado, D. Lucimeire faz questão de ressaltar que no bairro
tem muitas ligações clandestinas de energia elétrica, mas adverte, ninguém tá robano, a
gente paga direitin, num pode é ficá no escuro sem ter como viver, né?
Além disso, muitos moradores assistem os vizinhos que mal têm o que comer, o
que difere muito daquele vizinho dos outros bairros que mal sabe quem é o morador da
casa ao lado, ninguém vem aqui, nem eu vô lá
186
e que D. Maria estranha tanto:
É mais difícil, é complicado (relacionamento com as pessoas na cidade)
(...) purque aqui na cidade, tem muita pessoa egoísta que só pensa em si.
Na roça é todo mundo amigo, todo mundo conhece todo mundo, todo
mundo procura ajudá todo mundo (...) na cidade se você tivé o dinheiro,
você tem se num tivé você num tem ninguém (...) na cidade a vida é mais
dura nesse sentido: ninguém ajuda ninguém
187
.
Mesmo na roça, com os vizinhos morando longe e tendo que percorrer estradas
de chão e muito mato, o convívio era maior, por causa das festas, da missa que
participavam, das visitas aos compadres. Ia-se a cavalo, a pé ou de carona. E quando era
colono de fazenda, tornava-se mais fácil ainda, havia o contato intenso com os outros
colonos e o fazendeiro todos os dias.
Na cidade, mesmo que as distâncias se equiparem ao campo, a correria de se sair
de um serviço para o outro, de ir para a escola e chegar em casa só na hora de dormir, o
tempo gasto na espera e no percurso do ônibus, impedem uma relação mais próxima de
visitas e conversas de portão.
Além disso, visitar vizinhos passou a ser um incômodo, à medida que esse
tempo tirado para a visita poderia estar sendo utilizado para realizar as tarefas de casa,
adiantar o serviço para o outro dia, consertar roupas, telhados ou mesmo para descansar.
185
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do bairro Santa Mônica, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
186
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do bairro Santa Mônica, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
187
D. Maria Rosa de Melo, 44 anos, moradora do bairro Jardim Brasília, residente em Uberlândia há 24
anos, entrevista realizada dia 19/09/2001.
Na verdade, o ritmo de vida urbano imprime novas relações pessoais, que pela
violência da cidade e a luta pela sobrevivência, acabam por distanciar e individualizar
os viveres das pessoas.
D. Maria repete uma frase corriqueira na fala dos moradores do Vila Marielza:
na roça (...) todo mundo conhece todo mundo. Ela nos leva a pensar que os vínculos
rurais com o campo se fazem mais fortes no Vila Marielza. É por isso que o tom de
comunidade se aplica ao Marielza, não por serem coesos em tudo, mas pelos laços de
solidariedade, de lazer, de convivência que mantêm em alguns momentos vividos no
bairro.
A morte de duas parentas de D. Lucimeire na rodovia foi mencionada por quatro
entrevistadas, (duas porque eram parentas, outras porque lembram do acidente como um
acontecimento terrível no bairro). A neta de D. Olívia estava indo ao Colégio de Olhos
d’Água buscar a transferência (já que havia concluído a 8ª série) para um colégio mais
no centro e levou junto à cunhada com o bebê de seis meses. Indo a pé, no encosto da
rodovia, o ônibus acabou indo de encontro a elas e levando todos a morte: foi um
choque, não só pra família, mas pra comunidade
188
.
Vê-se, assim, que as relações pessoais mantidas por eles demonstram uma forte
presença dos laços rurais de vizinhança, na roça, por exemplo, o morador qui cê tinha
cê tava em contato com ele toda hora né? conversano. Aqui... aqui não! Tem vizin que
num sei nem o nome deles
189
, levando-nos a pensar que a mistura de hábitos e modos de
viver que o Vila Marielza nos mostra, muito além dos próprios costumes que traziam, o
descompromisso da Prefeitura com o bairro foi um fator, de certo modo importante,
para que tivessem maior liberdade de imprimir, ao seu local de moradia, traços
relevantes aos seus modos de viver: o qu'eu achei muito bom (ter casa própria) é nesse
ponto aí, a gente pode fazê o que a gente qué, ocê plantá um pé de flor, ocê planta, se
quizé planta um pé de fruta ocê planta, se quizé aumentá... então ali, ocê fica a vontade
(...) a gente tem mais liberdade, é muito diferente
190
.
188
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
189
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do bairro Santa Mônica, residente em Uberlândia há
24 anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
190
Sr. Osvaldo Rodrigues do Nascimento, 58 anos, morador do bairro Segismundo Pereira, residente em
Uberlândia ha 22 anos, entrevista realizada dia 01/12/2001 por Maucia Vieira dos Reis.
Por isso, tem-se grande permanência dos costumes rurais - horta, fogão à lenha,
plantações - e, junto a eles, é claro, as incorporações de outros valores que se fazem
presentes ao longo da vida no bairro, que se tornaram também importantes, se não
essenciais, como televisão, telefone, energia elétrica, rede de esgoto, asfalto.
Tudo isso nos sugere que os viveres não são pré-estabelecidos e que as pessoas
não são facilmente encaixadas na ótica ordeira e progressista, ou excluída dela. Esses
viveres são construídos num jogo de forças onde interesses, necessidades e valores
desses sujeitos se perdem, se reformulam e se revigoram, fazendo com que, a partir da
troca de experiências e disputas vivenciadas no dia-a-dia, eles elenquem escolhas e
estratégias de um viver melhor, mesmo que para isso se abra mão de algumas coisas.
A renúncia tão difícil que D. Neusa nos chama a atenção, a renúncia num é
muito boa, mas ela faz parte da nossa vida, né? Na verdade se refere à dificuldade de se
abrir mão do viver na roça, e no caso dela, decidir abandonar o marido porque ele não
queria vir para a cidade, mesmo após ter perdido tudo. Ela entende que esse foi o seu
limite e que cabia ao marido renunciar ao sonho da fazenda para prosseguirem suas
vidas onde era possível criar os filhos e viver mais dignamente.
Da mesma forma, abrir mão da vaidade, para D. Lucimeire, é algo necessário
para garantir a sobrevivência: Vaidade tem que i largano de lado
191
. Assim, a vaidade
não cabe porque está difícil até mesmo manter a sobrevivência, quanto mais reformar a
casa, cuidar do cabelo, comprar roupas novas, passear.
Na realidade, pensar a vida dessas pessoas inclui também saber como é a sua
sobrevivência e as formas como se dão o ir passando
192
, ou mesmo as outras táticas que
articulam para garantir o sustento: isso aqui (o bar) é só pra passar o tempo, não dá
nada não, eu vivo é de duas casas que eu alugo no Mato Grosso
193
.
O trabalho eventual nas fazendas, que é uma característica comum para a
maioria dos entrevistados, garante serviço para dois, três dias e, quando se tem mais
191
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
192
D. Nilsa Ferreira Coutinho, 53 anos, moradora do Vila Marielza há 10 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
193
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
sorte, quem sabe para a semana; trabaia um, dois dia na semana e passa
194
. Trabalham
no que for necessário: plantar, colher, cercar, o que tiver: panhar jiló, quiabo
195
.
Seja quando o pessoal da fazenda vai atrás deles
196
, ou quando saem em busca
de trabalho nas fazendas próximas
197
, principalmente nas lavouras de verduras, eles
estão em busca da sobrevivência, de saídas para as lacunas em que se encontram
(isolamento, falta de infra-estrutura e a necessidade de se iniciar cedo no trabalho para
trazer renda para casa).
O sustento vem do pagamento em dinheiro e em alguns alimentos e mercadorias
ganhadas nas fazendas ou de meia com o fazendeiro, o que de certo modo, além de
auxiliar na retirada de gastos da cesta básica (que difere muito do padrão que
possuímos), retira, em parte, o efeito do aumento dos preços individuais dos produtos
no cotidiano desses moradores. Mas, no geral, sabem quão caro está saindo sobreviver:
se sobe um poquim a gasolina, já é motivo pra ês aumentá tudo
198
; É um vivê assim que
tem que largá mão de muitas coisa, porque se não... (...) tem que sê o necessário:
comida, ropa pras criança, o que precisa né?
199
.
No relato de D. Nilsa se vê um certo cansaço, eu num reclamo, mas a gente
podia tê um poco de conforto, de sossego. Quando diz isso, ela estava me contando
sobre o tormento que é não saber como passar o dia de amanhã, o que comer. Nesse
sentido, parece que essa prática, a angústia, não é de agora, mas de muito tempo. Com
isso, a saudade da roça demonstra que lá você tem mais condição, ou seja, mais garantia
de sobreviver,
num era fácil, mas era bão, mas farturão cê tinha dentro da sua casa,
num tinha, num fartava nada, era tudo mais fácil tinha suas, suas
criação, comida, de tudo, né? Aqui (cidade) não, aqui si num fô a peso
194
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
195
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
196
D. Nilsa Ferreira Coutinho, 53 anos, moradora do Vila Marielza há 10 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
197
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
198
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
199
D. Lucimeire Rodrigues Martins Ramos, 30 anos, moradora do Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 09/05/2002.
do dinheiro, não tem, né? (...) ao meno plantá um pra cumê, pra ês cumê
tem, num digo falá pra vendê, prá miorá as coisa (...) na cidade, num tem
jeito docê fazê pelo menos o que dá pra comer se num tiver um emprego
(...)plantava um pé de couve na horta, aí num jogava nada, a pessoa
enjoava de comê
200
.
Porém, isso ficou para trás, quando o marido de D. Nilsa, como muitos outros
trabalhadores rurais, resolveu deixar a precariedade em que já estavam na roça por falta
de serviço e seguir para o garimpo, no seu caso, e depois acabar vindo para Uberlândia
nas fazendas e por fim para o Vila Marielza.
Mediante isso, o mover, o rearticular, o mudar o cotidiano tem muito a ver com
as mudanças nas formas de sobreviver que se põem em questão na vida dessas pessoas.
As plantações tidas em casa, nas chácaras e quintais, a criação de porcos e galinhas
demonstram que, quem tem essas práticas complementam o orçamento vendendo e
consumindo o seu produto. Os demais complementam como podem: pelo menos alguns
pés de mandioca, frutas (banana, manga, mamão) e ervas são mantidas no quintal.
Muitas vezes, outras razões impedem o aumento do orçamento: cê planta pro cê
vendê (horta) ês (vizinho) acha que é de graça, vem, vem panhando, vem pegano (...) cê
fica só com o trabai de plantá, gastá a sua água (...) aí é mió ficá assim, sem plantá
201
,
o que demonstra um certo constrangimento em não dar para os vizinhos, mas também
uma certa indignação por não ter como aumentar a renda da casa.
200
Seu Zico, 65 anos, na época da entrevista era mordador do bairro Alvorada, residente em Uberlândia
há 22 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
201
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
Foto 10: Plantação de berinjela, na Av. Vereda, maio de 2002/Acervo da autora.
Na foto acima observamos, em primeiro plano, a plantação de berinjela. Ao
fundo estão as bananeiras e, na lateral, a pequena residência. Além de o cultivo ser fonte
de renda para a família, que deve vendê-la no Ceasa ou para vizinhos e compradores
particulares, esse ato também reflete que o saber rural se aplica onde é possível às
pessoas imprimirem seus valores, hábitos e saberes, em maior ou menor grau, conforme
as restrições urbanas se apliquem e se forjem como práticas dos sujeitos.
Junto às várias plantas e roseiras dos quintais, a pobreza circunda as moradias
pela precariedade das construções (casas em parte de tijolos, outras partes de tábuas e
outras de pau-a-pique) e do viver das pessoas (roupas, móveis). Nesse sentido, mesmo
com o trabalho e as hortas do quintal, as ajudas de fora e o assistencialismo (prestado
por instituições, parentes e/ou pessoas comuns), em muitos casos correspondem não só
a um complemento, mas o único sustento possível (comida, remédios, roupas) em certas
épocas (de doença e desemprego) um vem traiz uma coisinha, outro vem traiz uma
coisinha
202
.
O fundo de quintal tão valorizado pelos moradores é variado, às vezes meio
terreno, outras vezes mais de três. Na verdade, resume-se ao espaço de liberdade dos
moradores onde plantam parte do seu sustento (mandioca, chuchu, mamão, banana,
202
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
maracujá), resguardam sentimentos e costumes (o vaso de cebolinha, a criação de
galinhas e porcos), delineiam estratégias de reduzir o orçamento (como as ervas
medicinais), ou simplesmente delimitam pelo menos na sua moradia, o que para si é
importante (plantas, privacidade, sustento, casa nos fundos para os filhos).
Foto 11: Imagem do fundo de quintal da D. Lucimeire, Rua 7,
maio de 2002/Acervo da autora
Em muitos casos, é tão grande o conflito que, ao ver uma pessoa de fora (que
não é morador do bairro), a primeira reação de muitos deles é deixá-la a par de como
vivem, para, talvez, sensibilizá-la para ela lhes forneça alguma ajuda ou para que ela lhe
indique alguma solução
203
.
Sabem que as coisas encarecem, e reagem a isso como lhes é possível. No caso
do gás de cozinha, não é só comprar onde está mais barato (bairros vizinhos), é usar o
fogão à lenha para poupar e não ter mais um gasto a sobrecarregar as despesas
essenciais: inda agora o gás encareceu muito né? Precisa poupá cada vez mais
(falando do uso do fogão de lenha)
204
.
203
Exemplos característicos dessa fala são os casos de D. Nilsa e D. Ercília e alguns passageiros
desconhecidos das vans que observamos em conversas com outros moradores. Porém, consideramos que
se tivesse percorrido mais algumas residências, teria tido a mesma impressão: pobreza, clamores por
alguma ajuda e denúncia do descaso do Poder Público.
204
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
Foto 12: Dona Nilsa utilizando o fogão à lenha, maio de 2002/Acervo da autora.
Foto 13: Imagem do interior da casa de D. Nilsa, vendo-a a partir do fundo,
Maio de 2002/Acervo da autora
Nessas fotos vê-se a utilização do fogão à lenha por D. Nilsa, onde observamos,
ao fundo, parte da cozinha onde se encontra o armário e o fogão a gás, ambos ganhados
e sendo este último pouco utilizado, visto que o fogão à lenha diminui gastos, além de
fazer parte dos hábitos trazidos do campo. Ao transitar pelas ruas e olhar para as casas,
muitas sem muros, elas nos mostram os montes de lenha, o que indica o uso comum do
fogão à lenha como uma alternativa ao gasto de gás.
Se os bares da vila não atendem mais às donas de casa, visto que com a van
facilitou a ida aos bairros vizinhos para comprar as mercadorias mais baratas (arroz,
feijão, fubá, açúcar, remédios
205
), para os homens e algumas acompanhantes, os bares
são o ponto de encontro, às vezes após o trabalho, mas principalmente aos finais de
semana, o que, de certo modo, sugere pensar que o pouco que se levaria para casa seja
desviado para as bebidas e jogatinas
206
, ou seja, se num primeiro momento, o dinheiro é
pouco para pagar condução para ir à Medicina, pagar a instalação da energia elétrica, ao
mesmo tempo, ele possibilita ir ao bar, ir ao forró, fazer as festas no bairro (festas
juninas, festa das crianças e aniversários).
Porém, é nesse contraditório viver, ter e não ter, que as estratégias de
sobrevivência vão emergindo e fazendo-os suportar e, em parte, superarem a exclusão
que sentem na cidade, a expulsão que sofreram no campo e a desigualdade social que
experimentam no País.
No terceiro capítulo, retomaremos questões sobre a problemática dos migrantes
rurais e a cidade, analisando o significado desse rearranjar a vida, as expectativas que
ainda persistem e qual a relação de pertencimento a essa cidade.
205
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
206
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002 e D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Vila Marielza há 5 anos,
entrevista realizada dia 14/05/2002.
CAPÍTULO III
A VIDA TEM QUE CONTIN
*
:
RELAÇÕES DE CONVIVÊNCIA E O SOBREVIVER NA CIDADE
*
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista dia
30/10/2002.
Desterrados
Desrespeitados
Quem são os expurgados?
São aqueles que seguem
Pela estradinha de chão
São aqueles que lutam
Dia-a-dia
Por teto, água, saúde, escola, pão.
(Sheille)
As pessoas que vieram do meio rural trouxeram uma bagagem que, a princípio,
definia seus valores e expectativas. Porém, à medida que elas experimentaram o viver
na cidade, mudanças foram se dando, seja por imposição dos rumos da sobrevivência
(desemprego, custo de vida), seja por incorporar alguns valores urbanos
(profissionalização, casa própria, busca pela propriedade).
Digo alguns porque passar a viver na cidade é construir um viver diferente.
Pessoas vindas do meio rural começaram a se estabelecer em grande parte das cidades
brasileiras a partir da década de 70, imprimindo novos valores cotidianamente, os quais
consideram pertinentes às suas necessidades e condições de vida: quando eu vim, morei
na casa do meu fio na rua Vereda até que ês compraro aqui e construíro na demão (...)
ês me ajudaro muito depois que o meu marido morreu, mas depois veio a pensão né? Aí
melhorô mais
207
.
Ao analisar as entrevistas, percebemos que as tentativas de prosseguir se
revestem de várias práticas culturais e é por isso que se torna fundamental recorrer às
tramas tecidas no dia-a-dia dos sujeitos, pois passo a compreender como a vida deles
continua e o que se renova (ou se perde) em meio às transformações empreendidas nos
seus modos de vida.
A moradia, o sustento, o trabalho e a educação são elos de uma mesma corrente
de anseios onde, às vezes, se perde ou se exalta alguns deles e, até mesmo, se incorpora
a outros mais, desencadeando uma denúncia das carências sociais: falta de
policiamento, de atendimento médico, de esgoto, de creche e de tantas outras coisas.
São várias as expectativas que surgem ao sentir a dificuldade de se viver sem esses
direitos porque, no pensamento dessas pessoas, a imagem de viver na cidade é
entendida como o espaço onde os benefícios sociais estão ao seu alcance.
207
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista dia
30/10/2002.
Mas, à medida que a realidade se impõe, outras relações se firmam e se tornam
necessárias: Deus vê que eu mereço a aposentadoria. Se eu aposentá, aí manera bem a
barra pra mim. Aí já num pricisa d'eu ficá trabaiano nesse solão quente, que eu num
posso trabaiá óia aí ó (me mostrando as manchas nos braços)
208
.
Nos primeiros anos do B. Vila Marielza, início da década de 1980, havia poucos
moradores e a situação era bem mais precária que hoje, não havia coleta de lixo,
comércio, água, energia elétrica. Para fazer compras, ou em caso de emergência médica,
era por meio de carona, ou indo a pé até o bairro mais próximo para remediar a situação.
Obter água era uma das dificuldades: Ih! Quando mudei era difícil, água no
poço, lá embaixo e era raro tê. Era melhor ir lá na fazenda buscá muito melhor!
209
.
Como D. Elídia menciona, ainda bem que, naquela época, ela tinha saúde, porque
senão, comé qu’ia fazê?
210
. Era mais viável buscar na fazenda Olhos d’Água, onde era
certeza que iam encontrar água e ainda podiam ganhar uma carona. Aos poucos, foram
sendo utilizadas cisternas, procurando sanar a falta d’água e o peso de carregá-la do
poço artesiano ou da fazenda.
Mas, ao mesmo tempo em que construíam as cisternas, os moradores também
encaminhavam à Prefeitura cartas de reivindicação para instalação de água. Eles iam até
a Prefeitura para falar com o Prefeito, a Câmara falar com o vereador, com quem fosse
preciso, em busca de uma solução
211
. Entretanto, as remediações tiveram que durar por
mais de 15 anos até que a água encanada chegasse.
Mas, D. Olívia fala com orgulho da “amiga da rua de cima” - Rua 2 - hoje uma
senhora já com seus 60 anos, dizendo que foi graças a ela que puxou essa luta e não
desistiu enquanto não viu a água em todas as casas do bairro
212
.
208
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
209
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
210
D. Elídia Maria dos Reis, 76 anos, moradora do B. Vila Marielza há 8 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002. D. Elídia hoje tem graves problemas de coluna não pode fazer nenhum esforço físico
(arrumar casa, lavar, passar) isso para ela é muito ruim "dependê dos ôtros pra tudo".
211
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
212
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
Precisão de datas e horários em depoimentos é algo difícil de se concretizar,
mesmo porque existem outros modos de defini-los: eu mudei pra cá meu fio era bebê (a
idade não menciona), hoje ele tá com onze ano
213
, com isso dizer que a água foi
instalada há mais ou menos seis anos é o que posso inferir, ou seja, por volta do ano de
1996. Mas, o que se sabe com certeza são as alterações que a água trouxe: abri a
tornera e vê a água saí foi uma alegria
214
. Ao mesmo tempo que resolveu o buscar água
em latas e garrafões no poço, apertou o orçamento, porque havia os gastos para a
instalação de hidrômetros, contas de uso no final de mês, encanamentos a realizar. Nesta
mistura de sentimentos viu-se o dia-a-dia melhorar (para lavar a roupa, tomar banho),
mas também ter um preço, em dinheiro, a ser pago.
Esse misto de satisfação e preocupação se repete no ano de 2002 com a
instalação da energia elétrica, pois até o primeiro semestre desse ano clandestinamente
obtinham energia de vizinhos que moravam na Rua 2:
A maioria da comunidade da vila não tem instalação elétrica, fazendo
com que os moradores tomem providências ilegais, como a ligação
clandestina de energia
215
.
O morador dividia com os vizinhos os gastos de energia elétrica. Porém, com a
instalação da rede elétrica em todas as ruas, antes de se pensar na melhora do viver na
vila com a energia elétrica, havia a preocupação em como pagar taxa de iluminação, o
padrão para se instalar a energia, a fiação a se fazer e, mais uma conta a se pagar no fim
do mês.
No entanto, a dificuldade não se encerrava por aí. Havia a carência de emprego
que fazia da miséria uma realidade constante aos moradores.
Na década de 1980, os poucos moradores do bairro Vila Marielza
compartilhavam os trabalhos ocasionais nas roças vizinhas e, além disso, problemas
financeiros, de doenças e de moradia. Essa convivência auxiliou na superação de vários
percalços, assim como estimulou a vinda de outras pessoas filhos, irmãos, sobrinhos que
213
D. Nilsa Ferreira Coutinho, 53 anos, moradora do B. Vila Marielza há 10 anos, entrevista realizada dia
10/05/2002.
214
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
215
MORADORES apresentam pedidos ao prefeito. Correio. Uberlândia, 30 jun. 2001, p. A-7.
foram para o Marielza, ora morando de favor em casa de parentes, ora de aluguel,
enquanto não compravam seu terreno ou casa.
Dentro do possível, os moradores mais pobres, com a ajuda de parentes e
vizinhos, foram comprando e construindo o seu lugarzin
216
, ficando na vila e
engrossando também o número de moradores a buscar, junto ao Poder Público, as
melhorias das condições de vida naquele lugar.
A gente juntava num caminhão, descia pra cidade, a gente ia atrais
mesmo, mas num resolvia nada. Mais nóis falava cum secretário,
vereador, todo mundo que fosse preciso(...) Era um (morador), era ôtro
todo mundo queria melhora, tanto que foi a D.... esqueci como chama,
aqui (apontando pra outra rua) da rua de cima que encaminhô a água
pra nóis. Foi devagar e ainda é, né?
217
.
Com essa fala entendemos um pouco mais o valor da fonte oral como uma
reconstrução feita pelos sujeitos, de momentos vividos e/ou elaborados, recontando-os
conforme suas lembranças. Como PETUBA indica, a memória possibilita percorrer
outras significações além dos meros fatos vividos pelas pessoas. Desse modo, o
historiador, ao analisar a reelaboração do passado que os entrevistados fazem e o
contexto em que está inserida essa memória, observa o sentido que é dado a este
passado por esses sujeitos e a compreensão que têm dos rumos tomados por suas
vidas
218
.
No caso da luta no início do bairro, D. Olívia se tornou uma entrevistada
extremamente importante, pois viveu esse momento e participou ativamente das
reivindicações dos moradores e deixa claro, em sua fala, a dificuldade de ser ouvida e
atendida, assim como a persistência dos moradores em lutar por seus direitos
219
.
A fala de D. Hilda, presidente da Associação de Moradores do Bairro, entra em
contradição com esta versão, dizendo que a água chegou na vila porque a Prefeitura a
216
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
217
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
218
PETUBA, Rosângela M. S. Pelo Direito à Cidade: experiência e luta dos ocupantes de terra do
bairro Dom Almir - Uberlândia, 1990-2000. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de História,
Universidade Federal de Uberlândia, 2001, p. 17.
219
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
quis colocar e que, antes da Associação de Moradores, não havia encaminhamento de
reivindicações. A sua justificativa é que os moradores eram muito simples, por isso não
se manifestavam: eles são muito parados
220
. Mas, então, com ela própria morando lá há
mais de 15 anos, por que demorou tantos anos para se tomar a iniciativa de criar a
Associação? Por que isso aconteceu há apenas quatro anos?
Conforme PORTELLI, as falas dos depoentes não são falsas, muito menos
procuram nos enganar, elas possuem um sentido em si mesmas, pois respondem às
esperanças, desejos e possibilidades que eles incluem nos seus momentos vividos. Os
entrevistados nos apresentam versões de como a história se deu, de modo a satisfazer
suas expectativas
221
.
D. Hilda se importava em ressaltar a Associação de Moradores, vendo-a como
uma possibilidade de resolver os problemas do bairro, enquanto para D. Olívia, o que
interessava era narrar as possibilidades dos moradores de viver melhor.
Nessa construção de relatos, expõem as dificuldades de afirmação dos sonhos, o
cansaço perante as demoras de políticas públicas e o descaso da Prefeitura. Todas essas
reelaborações apresentadas nas entrevistas confirmam que cada um, a seu modo, sente e
sofre com a marginalização e pobreza, resguardando esperanças de uma vida melhor e
diferente.
Nessas questões sobre a luta por melhorias no bairro, a rotina de trabalho na
roça, iniciada ao amanhecer, também fazia com que o cansaço ocupasse a maioria das
noites desses moradores, dificultando uma maior participação ou envolvimento nessas
causas: eu num tem tempo porque tem que trabaiá e o dia de trabaiá é terça, quarta,
quinta
222
.
Porém, sabe-se que o Conselho Municipal de Entidades Comunitárias
(CMEC
223
) atuava auxiliando os vários moradores antes da formação da Associação de
220
D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59 anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista
realizada dia 15/08/2002.
221
PORTELLI, A. Sonhos Ucrônicos. Memória e Possíveis Mundos dos Trabalhadores. Tradução Maria
Therezinha Janine Ribeiro. In: Projeto História, São Paulo: EDUC, n.10 , dez. 1993, p.41-58.
222
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
223
O CMEC foi criado no início da década de 1980 para ser um centro auxiliar às Associações de
Moradores e Conselhos de bairro, localizado na Prefeitura. "O Conselho Municipal de Entidade
Comunitária (CMEC) representa uma forma aprimorada do sistema de representação. Aglutina todas as
AMs (Associações de Moradores) e organizações populares, desempenhando um papel mediador entre
estas e o Poder Municipal". ALVARENGA, N. M. O Movimento Popular: a Democracia Participativa e
Moradores. Entendo que, a seu modo, D. Hilda, como presidente e co-fundadora da
Associação, quis ressaltar seus trabalhos, desprezando o trabalho realizado
anteriormente, querendo passar a idéia de que viviam pacatamente e sem grandes
conflitos com o Poder Público antes de 1999 (data de fundação da Associação de
Moradores) e que, graças a ela e Jane (fundadoras da Associação), o bairro começou a
ganhar benfeitorias, com destaque para a chegada da energia elétrica em 2002.
Nesse sentido, questionar a passividade é sempre importante porque, mesmo em
pequenas ações, as pessoas estão se arranjando, criando táticas de viver na cidade. A
disputa por um lugar não pode ser ignorada, por isso as fontes orais, muitas vezes, nos
despertam para momentos que elas mesmas não mencionam diretamente, mas que
aparecem na forma de narrar, nos fatos que são descritos, ou nos sentimentos
manifestados.
Ao longo da conversa, D. Hilda acaba revelando que o pessoal do CMEC a
auxiliou a montar a Associação, o que nos leva a inferir que havia, anteriormente à
Associação, movimentação das pessoas do B. Vila Marielza no sentido de conquistar
melhorias e pressionar o Poder Público para garantir os seus direitos.
Mesmo existindo há apenas quatro anos, a Associação de Moradores do
Marielza apresenta como mediadora das reivindicações e pressões dos moradores ao
Poder Público, como também promotora de discussões no bairro, seja a favor ou contra
a sua atuação.
Desse modo, mesmo que efetivamente a maioria não esteja presente nas reuniões
ou envolvidos na elaboração de cartas e abaixo-assinados, sabem como estão indo as
negociações com a Prefeitura. O bar da D. Hilda é um ponto de referência, onde alguns
buscam informações ou então perguntam ao vizinho em que "pé” andam as coisas,
oportunidades para trocas de opiniões sobre os problemas vividos no bairro.
Depois de tantos anos no Marielza, os moradores entenderam que, de imediato,
as benfeitorias não se efetivam. Talvez por isso, criar alternativas de sobrevivência se
tornou necessário até que se concretizassem reivindicações, como a ligação clandestina
de energia elétrica remediando a ausência da iluminação no bairro.
o Poder Local. In: ______. As Associações de Moradores em Uberlândia: um estudo das práticas sociais
e das alterações nas formas de sociabilidade. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Departamento
de Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1988, p. 93.
Para atrair a participação e, até mesmo, renda para a Associação, rifas, bingos
224
e festas são promovidos. Porém, as atividades embora sejam promovidas para
aproximar os moradores da Associação, em alguns casos, acabam por distanciar e até
mesmo questionar a boa intenção dessas promoções.
D. Célia sugere, em suas falas, ações ilícitas da presidente, que não fornece
dados sobre os ganhos e os gastos com as atividades. De acordo com suas afirmações,
D. Hilda, por mais de uma vez, ao ser questionada por moradores sobre os lucros de
eventos, não soube responder, pois misturou o dinheiro da Associação ao do caixa do
seu bar.
Para D. Célia, essa atitude está errada tem que prestá conta, você num
concorda? Isso é um absurdo!
225
e fez com que ela se afastasse da Associação, assim
como outros moradores que agora acompanham de longe as atividades e lutas da
Associação de Moradores.
No entanto, o fim do mandato de D. Hilda era esperado por estes moradores, que
vislumbram a possibilidade de assumir a Associação e aí, sim, imaginam, melhorar a
vida dos moradores: num faiz quais nada não! Acha que porque saiu a energia feiz
muito!
226
.
Tive a impressão de que D. Hilda, ao conversar comigo, estava respondendo aos
questionamentos dos moradores insatisfeitos com a Associação: Mesmo que eles num
entende, num agradece, mas né? O importante é melhorá
227
. Algumas condições
precárias da vila que foram sanadas: a coleta de lixo que não havia e que foi colocada
no seu mandato (2001/2002) e que acontece duas vezes por semana, o transporte
coletivo inexistente antes da Associação e que depois de muito falar com o Dotor
224
Os bingos, mesmo sendo proibidos, eram realizados. A Associação costumeiramente os realizava no
Bar da D. Hilda, até que por uma denúncia anônima a polícia foi lá e repreendeu essa ação. D. Célia diz
que D. Hilda acha que foram pessoas contrárias à Associação que fizeram isso para prejudicar a sua
administração, porém D. Célia se redime de qualquer culpa e acha que mesmo quem é contra a sua
administração quer o bem da Associação de Moradores e não faria uma coisa dessas.
225
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5
anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
226
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
227
D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59 anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista
realizada dia 15/08/2002.
Zaire
228
, conseguiu dois horários ao dia. Menciona que depois de algum tempo,
aumentou esses horários para quatro.
Avaliando o ano de 2002, conta duas grandes vitórias da Associação: o passe
livre, que tornou o transporte dos moradores mais rápido até o B. Morumbi (de uma em
uma hora) e a instalação da energia elétrica no segundo semestre. Como ela mesma diz:
conseguí iluminá o bairro num é fácil, né? E quem tava esperando há quase 25
anos...
229
.
As dificuldades das pessoas em se movimentar além do bairro e do trabalho
foram comuns por mais de 18 anos. Sem transporte coletivo, as pessoas se viravam com
as caronas ou marcando passos à beira da rodovia e nas estradas de chão.
Ir à Unidade Básica de Saúde do Alvorada, aos comércios, ou mesmo às
fazendas, era uma rotina de sol e chuva feita sem ônibus. Além da falta do transporte,
não se tinha atendimento médico e posto de segurança, o que dificultava ainda mais o
caminhar pela escuridão em caso de emergências.
À medida que o transporte coletivo foi implantado, continuar os estudos,
trabalhar em outros bairros, visitar parentes, divertir em outros lugares se tornou uma
possibilidade. Com a instalação do Passe Livre (mesmo que ainda seja insuficiente à
demanda da região), este transporte gratuito do bairro Morumbi à Tenda dos Morenos,
de uma em uma hora, permitiu aos moradores do B. Vila Marielza construírem outras
alternativas de trabalho, de lazer, de usos e pertencimento à cidade.
A prioridade para a Associação agora é as escrituras, ficando como lutas futuras
o esgoto, o atendimento médico e o asfalto. Estes são remediados de forma precária. No
momento, a insegurança e a angústia vivida pela possível perda de terrenos e casas,
devido a ausência da escritura, causam maior urgência nesta luta. Principalmente porque
D. Hilda está com um novo mandato (2003/2004).
Entretanto, a escritura, a legalização dos terrenos, parece-me uma causa
importante a ser perseguida, pois foi mencionada em quase todas as conversas e
entrevistas que realizei. O medo de perder o lugar onde moram é algo angustiante para
os moradores que sonham em ter segurança, isto é, a escritura em mãos. Neste caso, os
228
D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59 anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista
realizada dia 15/08/2002.
229
D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59 anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista
realizada dia 15/08/2002.
moradores nomeiam a Associação como a principal interlocutora para essa luta junto ao
Poder Público e cobram rapidez neste sentido.
Promessas já foram feitas de que, até o final da gestão Zaire Rezende (2004),
essa situação será resolvida
230
. Os moradores confiam mesmo é na pressão que a
Associação deve continuar fazendo senão esquece o prometido, né?
231
. E D. Olívia
lembra da promessa feita quando receberam o contrato:
O dono disso aqui era um tal Reginaldo, que era da Vereda (imobiliária)
(...) disse que tava dano o contrato e que tava passano pra Prefeitura e
até hoje nóis num temo o papel.
232
A narrativa acima permite entender que, prometer não basta, tem de fazer,
efetivar o dito, porque, senão, a espera se prolonga.
O IPTU chega às casas dos moradores, porém, no lugar do nome do proprietário
está o nome da Imobiliária Vereda
233
, confundindo os moradores, que não sabem se
devem, ou não, pagar o IPTU. Afinal, estarão beneficiando a Imobiliária, ou garantindo
a sua propriedade?
Neste caso, muitos moradores, na dúvida, pagam o imposto e, como D. Hilda
diz, aqui o IPTU vem no nome da imobiliária não no nome da gente, por isso que nóis
não pagava (...) mais aí, lá na Prefeitura, falô que si nóis num pagá e a imobiliária
entrá com uma ação contra nóis, nóis perde
234
.
Porém, D. Ercília já me disse outra história. Indo à Prefeitura para saber o que
fazer e como pagar o IPTU, lhe deram outra recomendação a ela:
230
D. Hilda menciona promessa do Sr. Leonídio Bouças em reunião do Orçamento Participativo. E ela se
mostra confiante na resolução desta pendência. O orçamento participativo faz parte de uma proposta de
trabalho da gestão administrativa de 2000-2004, do prefeito Zaire Rezende, onde anualmente procura-se
levantar, nas regiões, os benefícios necessários para a população daquele local, assim como propor
algumas ações para a cidade. Sendo estas depois encaminhadas para o Poder Público, no sentido de
viabilizá-las à população.
231
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
232
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
233
Conforme Anexo IV do IPTU de D. Célia.
234
D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59 anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista
realizada dia 15/08/2002.
eu cheguei fiquei (...), nóis ficô na fila muuuito tempo aí chegô a nossa
veiz, nóis pois os papele em cima do balcão, a muié falô assim: 'quê a
senhora tá fazeno aqui na fila?' falei: nóis viemo pagá o IPTU do
Marielza. Aí ela falô assim pra mim: 'dobra o papel minha fia e vai
embora e guarda o dinhero pro cê pagá o ônibus, cê num vai pagá nada
de IPTU não, isso aqui num existe. Isso aí tá pagano, quem tivé pagano,
tá pagano isso à toa
235
.
Ou seja, enquanto uns pagam, na esperança de garantir a certeza de que são os
donos dos terrenos, outros aguardam sem saber o que deve realmente ser feito.
Se esta é uma luta encaminhada pela Associação como sua grande prioridade,
para os moradores ela não é, mesmo que a considerem importante. Para eles, a creche
aparece como a reivindicação fundamental mais esperada, uma luta de mais de 15 anos
que parece não estar chegando ao fim.
Para as mulheres da vila, torna-se difícil arrumar um trabalho na roça, ou na
cidade (doméstica principalmente), pois os filhos não têm onde ficar. Deixá-los com os
parentes nem sempre é possível, ou porque trabalham, ou porque não agrada à mãe a
forma como cuidam das crianças:
a Lucimeire (filha) teve que dexá o serviço lá na minha sobrinha porque
a sogra num tava muito boa pra oiá os menino, né? Sem a creche fica
difícil, porque tem que trabaiá, mas onde fica os menino?
236
A creche é um elemento que se destaca nas falas das entrevistadas, pois
auxiliaria as mães no sentido de garantir aos seus filhos um cuidado enquanto trabalham
para complementar a renda da família.
As mais novas e sem filhos ainda conseguem trabalhar como caixa de
supermercados, em lojas e até mesmo nas fazendas, como domésticas, ou diaristas nas
lavouras. Porém, as que têm filhos ficam com o serviço de casa e o cuidar das crianças,
o que não é pouco, no entanto, não contribuem com o aumento do orçamento de casa, o
que D. Ercília lamenta com certa indignação, pois, com os seus 62 anos e muito doente,
ainda tem de ir para a roça trazer o sustento, já que a filha fica em casa com as duas
crianças pequenas, pois não tem onde deixá-las
237
:
235
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
236
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
237
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
creche pras muié podê trabalhá sussegada, senão como vive? (...) A
Lucimeire tá istudano pra passá no concurso da Prefeitura, porque ela
pricisa trabalhá e num tem onde dexá os menino, porque eu já tem que
oiásse meu menino que tem probrema, então ela tá precisano, num tem
creche aqui né?
238
Ou seja, se a creche não chega, outras possibilidades vão se criando para o
sobreviver dessa gente. A luta não pára, falam da creche na Associação, nas reuniões do
Orçamento Participativo, para os políticos e para aqueles que os ouvem por alguns
instantes.
Acreditam que a dureza da vida tem de ser superada, manerá um poco
239
, porque
consideram que está muito difícil viver do jeito que estão as coisas (sem emprego, sem
atendimento médico, sem creche, sem segurança com relação à propriedade... sem
esgoto, sem um lugar na cidade).
Mas, refletindo sobre uma fala de D. Hilda. Quando indagada por que deixou
sua casa própria no B. Custódio Pereira e veio morar no Vila Marielza, ela responde: eu
sempre quis vivê fora da cidade
240
. Até que ponto ela também não exclui o Vila
Marielza de Uberlândia? Como luta para trazer ao bairro as melhorias de outros bairros
e diz querer morar fora da cidade?
Por meio dos questionamentos e contradições, vejo o Vila Marielza construir o
seu jeito próprio de ser, um não querer ser que acaba sendo, de um outro modo, parte da
cidade, onde a pobreza não limita os sonhos (que os moradores guardam) e as disputas
sociais. Pelo contrário, muitas vezes são eles que os instigam a não desistir de construir
o seu pertencimento à cidade, seja lutando para sobreviver, seja criando estratégias e
táticas para enfrentarem o cotidiano.
Nesse sentido, o apego à família aparece como um valor muito forte para os
entrevistados e, particularmente, aos moradores do Marielza, transparecendo que a
presença de parentes na vila faz o feio parecer mais bonito, o viver difícil ser um pouco
238
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002. Ela ressalta que passar no concurso da Prefeitura para serviços gerais, garantiria
à sua filha Lucimeire deixar os filhos na creche da Prefeitura, resolvendo dois problemas: onde deixar as
crianças e o trabalho que tanto precisa.
239
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
240
D. Hilda Olinda Martins Vieira, 59 anos, moradora do B. Vila Marielza há 15 anos, entrevista
realizada dia 15/08/2002.
mais suportável. Sair do Marielza só se for para morar com a minha mãe, como a D.
Ercília diz, ou então morar no Alvorada, que para a D. Elídia seria maravilhoso, pois
estaria perto do seu único filho e netos.
Estar próximo dos familiares parece fortalecer essas pessoas diante das agruras
da vida. Não são apenas os moradores da vila que apontam isso. Quando entrevistado o
Seu Zico
241
, Sr Boaneja
242
, e Sr Venâncio
243
, moradores de outros bairros, essa também
era uma questão fundamental. Viver só é possível onde a família pode ir junto, porque
sozinho, não dá pra agüentar
244
.
Portanto, estar sobrando na cidade reflete o modo de viver dos sujeitos, em parte
se adequando a hábitos e ainda criando outros para driblar a exclusão e sobreviver. A
família, na mesma medida, vai se constituindo em uma âncora para eles. Concilia apoio
financeiro e sentimental, remedia as carências de condições dignas de se viver,
permitindo a alguns morar de favor com parentes por algum tempo, obtendo ajuda
financeira ou utensílios básicos durante o mês, ou mesmo, sendo mais um para trabalhar
e aumentar o orçamento da casa.
A família auxilia, em parte, a resolver o baixo poder aquisitivo que as pessoas
têm individualmente, permitindo que um auxílio considerado provisório seja
estabelecido e, muitas vezes, torne-se uma garantia prorrogada da sobrevivência de
parentes na cidade (casas de fundo construídas para filhos e sobrinhos, que vão morar
com os tios e pais, filhos e netos que acabam residindo em uma mesma casa para que o
orçamento dê para todos sobreviverem).
Nesse sentido, as relações de convivência no Marielza são muito intensas
porque, além de vizinhos, são, em sua maioria, parentes. Com isso, os acontecimentos
do bairro não passam despercebidos e não acontecem isoladamente.
Sem muitas visitas nas casas uns dos outros, existem outros pontos de encontro
para troca de informações, idéias, planejamento de festas e para se informar sobre
241
Seu Zico (Alceu Francisco dos Santos), 65 anos, na época da entrevista era morador do B. Alvorada,
residente em Uberlândia há 21 anos, entrevista realizada dia 14/06/2001.
242
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 23
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
243
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, foi morador do B. Tibery, residiu na cidade de Uberlândia 24 anos,
entrevista realizada dia 14/06/2001. Falecido no dia 31/12/2002.
244
Sr. Boaneja Honorato Gonzaga, 68 anos, morador do B. Santa Mônica, residente em Uberlândia há 23
anos, entrevista realizada dia 21/07/2001.
trabalhos: o caminho para a roça, o clube de mães, o trajeto percorrido de van, a espera
pelo atendimento médico na Tenda dos Morenos e também as festas e bares da vila.
Assim, chamou-me atenção como os bares e seus donos (em especial donas) são
peças importantes no Marielza: as festas, os negócios de trabalho, as lutas e as notícias
passam por lá. D. Célia nos informa sobre os namoros, problemas conjugais de vários
de seus clientes, mostrando que seu bar não é só para beber e jogar, muitas conversas e
conselhos saem dali
245
.
Ressalta que não fica até de madrugada funcionando - pra que vou arriscá, sou
só eu mesmo, num priciso de muito
246
-, ou seja, até às 22 horas atende normalmente os
casais e amigos da vizinhança, que se acomodam para beber ou "prozear" um pouco.
Depois fecha. Orgulha-se de que no seu bar há poucas brigas e bagunças: aqui vem
gente de família, não tem bagunça não
247
. Manter esses fregueses faz parte dos valores
que quer preservar e do nome que quer manter para o seu bar (bar de gente de família).
Assim, o bar não é o local onde apenas se compra alguns utensílios para casa,
bebe-se e joga, ele também é uma referência para os moradores sobre notícias do bairro,
dentre elas a organização de festas da comunidade.
Desse modo, é nos bares, nas festas juninas, nas folias de reis, na festa do 12 de
outubro
248
, casamentos e aniversários que o silêncio do bairro dá lugar a uma verdadeira
festa. Lógico que nem todos compartilham, mas esses momentos no Vila Marielza se
transformam em costume da maior parte dos moradores. Esses dias mesmo teve folia lá
no Bar da Jane, mas é organizadim, faz fila pra servir a comida é tudo arrumadim, é
muito bom! (...) na festa junina, os meninos dançam no colégio e tem festa aqui nos dia
dos santos, acende fogueira e tudo, é um farturão!
249
.
245
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
30/10/2002.
246
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
30/10/2002.
247
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
30/10/2002
248
No dia 12 de outubro comemora-se em uma das casas a festa das crianças e o dia de Nossa Sr.a de
Aparecida. D. Célia diz ficar por conta do bolo para os meninos e cada um leva um pratinho ou bebida. E,
antes de comer, tem-se a reza do terço para a "Santa" e também para agradecer pela festa, depois começa
a correria da criançada. "Primero a gente reza o terço e depois vem o bolo e é uma correria só de
menino", diz D. Célia.
249
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do B. Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
As rezas realizadas antes de iniciar as festas - são uma constante na vila, os
terços, as novenas, como também a participação de vários deles na igreja da Olhos
d’Água (indo à missa, participando do clube de mães e pastorais). Por intermédio da
Pastoral da Criança e da Saúde, conseguiu-se atendimento médico para as crianças da
região toda terça feira na igreja. Ou seja, por mediação de movimentos da Igreja de
Olhos d’Água, muitos moradores remediam as suas necessidades.
Pensando nisto, vale ressaltar a visita feita à pequena Igreja da Assembléia de
Deus que existe na Vila, onde conversamos com o Sr. Zaqueu
250
, missionário da igreja,
que nos disse, meio sem jeito, que quase ninguém do bairro participa dos cultos e
eventos, mesmo estando lá há três anos.
Ele menciona que os participantes das atividades da igreja são, em maioria, do
Morumbi, onde era anteriormente missionário, e diz que é devagar mesmo que se vai
crescendo no bairro. Foi para o Marielza porque o pastor lhe nomeou e ficou muito feliz
com essa "missão" de ir em busca de fiéis e da expansão da sua igreja.
Quando lhe pergunto sobre as condições de vida no Marielza, isso pouco lhe
preocupa, pois, para ele, a sua causa maior é Deus.
Mesmo que o Sr. Zaqueu não mencione sobre o porquê da dificuldade de
expansão da Igreja no Marielza, consideramos que as relações entre a comunidade e a
Igreja Católica da fazenda Olhos d’Água acabam atrapalhando o avanço da Assembléia
de Deus, mesmo esta sendo localizada mais próxima dos moradores, a capela de Olhos
d’Água faz cadastro das famílias mais necessitadas da vila, fornece remédios, cestas
básicas. As pastorais auxiliam doentes, crianças, orientam gestantes, assim como as
atividades do clube de mães (bordados, costura, pinturas), acabam por tornar estas
associações mais próximas da realidade que os moradores do bairro vivenciam.
Mesmo porque, nas entrevistas, os moradores estão falando de seus problemas,
de coisas que fazem parte do seu cotidiano e a Igreja Assembléia de Deus não foi
mencionada em nenhuma delas. Para grande parte dos moradores, a Assembléia de
Deus, da Rua 2, passa desapercebida presente aos seus enfrentamentos diários. E penso
que, por isso, o número de fiéis não aumenta, pois ela não corresponde, até o momento,
ao que os moradores acreditam e buscam para a sua sobrevivência.
É claro que os laços com as folias, as rezas do terço, o dia dos santos, são muito
mais do que rituais católicos dos moradores. É mais uma expressão do costume dessas
250
Sr. Zaqueu Maciel Gomes, 30 anos, morador da Vila Marielza há 3 anos, entrevista obtido dia
15/08/2002. O entrevistado não aceitou a gravação de nossa conversa.
pessoas, que sofre adequações ao novo espaço e ao modo de vida que estabeleceram (e
estabelecem) no seu dia-a-dia. Além disso, ainda têm, nestas manifestações de cunho
religioso, movimentos que ajudam a resolver algumas carências sociais da população do
Marielza.
As pessoas, mediante o prosseguir de suas vidas, conciliam os seus costumes às
necessidades e aos novos padrões que criam. Desse modo, as folias de reis são uma
clara expressão desse adequar de costume. Elas são, agora, recebidas nos bares. E como
diz D. Célia as pessoas daqui são simples, mas são muito farturenta
251
. Recebendo a
folia com muita comida e bebida
252
.
Com isso, entendo que economizar não é um valor incorporado pela maioria, os
moradores apenas fazem para viver. E, em muitos momentos, nem isso é possível. A
compra de remédios, o pagamento da caderneta do bar, que já está pendurada há um
bom tempo, são ações que se prorrogam, protelando os compromissos.
Nesse sentido, a lógica da sobrevivência é outra. Percebem que, se amanhã
pouco terão para se alimentar, entendem que depois de amanhã será um outro dia, com
chance de melhorar a situação. A sobrevida vai sendo incorporada como provisória e
vai, ao mesmo tempo, deixando suas marcas nessa gente: saúde precária, alimentação
irregular, alcoolismo e violência.
Assim, os remédios caseiros expressam um saber que convém à realidade dos
moradores que, financeiramente, não conseguem comprar remédios e vão se curando
com as ervas de fundo de quintal. Alguns até vendem, quase de graça
253
, os remédios
produzidos em casa, aumentando até mesmo a renda da família.
Este saber é um orgulho para estas pessoas, pois entendem que nenhuma
situação de precariedade é capaz de lhes roubar este conhecimento. E como tudo tem
251
D. Célia Custódio Gomes, 45 anos, moradora do Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
14/05/2002.
252
Conforme entrevista de D. Hilda, as folias são convidadas pelos moradores para se cumprir promessas
e pelo costume de algumas famílias em recebê-las todos os anos. Muitos aproveitam que há um vizinho
que faz o contato com os foliões e fazem seus votos esperando que possa cumpri-los já para o próximo
ano.
253
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
sua utilidade, né?
254
, é assim que vão vivendo, usando o que sabem, como podem, para
sobreviverem:
Nóis num tem Posto de Saúde e os remédio é trem caro demais. Eu ,
quando meu marido era vivo fazia remédio pra fora, iiiiii! curei muita
criança e adulto também com meus remédio, bronquite, pneumonia, rins,
tá tudo ali ó (aponta para as plantas no quintal) eu e ele que fazia. Aqui
em casa inchia de gente que só veno! (...) Agora sozinha, num faço
mais.
255
A solidariedade vai se tornando um elo comum entre os moradores (Dar um pé
de couve, um chá para bronquite, um mingau para o bebê). As dificuldades vão sendo
burladas e, como diz D. Olívia, A vida tem que continuá, não é mesmo?
256
E, pensando nisto, é que as festas se incluem no viver do bairro. Para
descontrair, o forró, no salão de festas da Fazenda Olhos d’Água, torna-se uma
alternativa, assim como nas festas e jogos de futebol na escola. O convívio se intensifica
e acaba se perpetuando nos namoros, casamentos e batizados. Os laços entre os
moradores da fazenda e da vila são assim fortalecidos e ganham novas significações.
As festas em fazendas de compadres, como alguns dizem, festas de casamento e
aniversários, fazem com que fazendeiros e trabalhadores criem uma relação de
convivência.
Os moradores chegam como convidados, mas, na maioria das vezes, a ajuda na
organização, no preparo das comidas e durante a própria festa encobre diferenças
sociais que em muitas ocasiões os trabalhadores querem esquecer.
É como se o convite para a festa e estar naquele meio resolvesse simbólica e
momentaneamente a exclusão clara e evidente que vivenciam dia após dia. Um desses
laços foi percebido em uma visita à D. Olívia. Quando me falava sobre a vida na
fazenda, mencionou que durante esse período moravam de graça em uma casinha que
um compadre tinha lhe cedido, em troca de lhe prestar alguns serviços. Aliás, ela me
254
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
255
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002. Ela conta que, após chegar da roça, o marido (doente), que tomava conta do
filho, já tinha separado as ervas e a esperava para terminar os remédios. Disse-me que era muito
cansativo, mas ajudar as pessoas que não tinham condição de comprar os remédios da farmácia
compensava.
256
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, viúva, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista
realizada dia 30/10/2002.
lembra que o garoto que estava lá de fora - sentado em um banco debaixo da árvore -
ajudando Lucimeire, sua filha, a estudar para o Concurso da Prefeitura, era filho desse
seu compadre e que freqüentemente vem da fazenda passear em sua casa e na dos seus
filhos.
Para grande parte dos moradores do Marielza, “a gente da fazenda” (os
fazendeiros) faz parte dos seus laços de convivência e, por isso, eles expressam tanta
indignação ao se referirem aos roubos nas propriedades rurais. Eles sugerem que vêem
os pequenos proprietários muito mais próximos de suas vidas do que os moradores
pobres dos bairros vizinhos.
Os malandro do Morumbi faiz o que qué aqui e nas fazenda, roba bicho,
quebra cerca, é um perigo! Na rua, aqui tem que tê cuidado! (olha
apreensiva para a porta para ver se ninguém está ouvindo). Eles são
bandido, num sei porque deram pra ficar por aqui, perturbano a gente e
o povo da roça, é gente trabalhadô, perdeno as coisa pra malandro
257
.
Não queremos dizer que sejam alheios à exclusão que partilham com os
moradores vizinhos (Dom Almir e Morumbi), mas que, ou pela necessidade de nomear
a culpa dos roubos, da violência, drogas a alguém que não seja do bairro, ou pela revolta
devido à falta do policiamento, da assistência médica, da escola, da creche que existe
em outros bairros e não chega ao Marielza, os moradores acabam não os associando às
suas lutas.
Vêem os moradores pobres da vizinhança como pessoas que enchem a van do
passe livre e os atrapalham ir à Tenda dos Morenos consultar, ao Morumbi fazer
compras ou, ainda, são aqueles que perturbam o sossego do bairro causando violência e
vadiagem
258
.
Ao contrário, os fazendeiros são, para eles, ponto de referência de novos
trabalhos, de garantia da sobrevivência e, por isso, talvez, sejam, aos olhos dos
moradores do Marielza, mais trabalhadores, mais honestos e bons do que os moradores
dos outros bairros.
Esses modos de viver me levam a inferir que os grupos familiares que moram no
local entendem o Marielza como seu território, mesmo sem infra-estrutura, sem
257
D. Olívia Rodrigues Martins, 65 anos, moradora do B. Vila Marielza há 19 anos, entrevista realizada
dia 30/10/2002.
258
D. Ercília Aparecida Carrijo Rodrigues, 62 anos, moradora do B. Vila Marielza há 16 anos, entrevista
realizada dia 14/05/2002.
legalização dos terrenos. Um lugar onde puderam criar suas galinhas, porcos, fizeram
suas hortas e fortaleceram grande parte dos vínculos e hábitos que possuíam nas
fazendas, rearranjando-se à nova realidade e espaço em que vivem. Se as políticas
agrícolas da década de 1970 e 1980 não favoreciam a moradia nas propriedades rurais,
morar no Vila Marielza se tornou uma alternativa para o migrar para a cidade de
Uberlândia.
O Vila Marielza era um local onde, para muitos que vinham do campo, a
prioridade não era o bem estar urbano (infra-estrutura) o que nós, filhos do asfalto,
fazemos tanta questão. O que prevalecia era a busca pelo espaço da sobrevivência, onde
fosse mais barato morar e garantisse a família próxima.
Embora esses viveres fossem se firmando no local, à primeira vista, o silêncio e
um deixar seguir prevaleciam na imagem do Marielza, como se conquistas e táticas de
luta social não ocorressem.
No entanto, o que podemos dizer, após as andanças e conversas, é que, além de
os caminhos de conquistas não serem fáceis de penetrar, às vezes, atos simples e
corriqueiros revelam uma indignação e movimentação dessas pessoas, tanto quanto uma
manifestação na Prefeitura.
Mostram-nos que alguns anseios, como o Posto de Saúde, remédios e trabalho,
tinham outros meios de serem alcançados, que não a simples reivindicação dos
moradores. Percebe-se que relações de poder se estabelecem na vila, como se
participassem de um jogo, onde conquistas sociais eram obtidas, ou não, de acordo com
a “cartada” e o peso de quem apoiava essa luta.
O consenso que essas pessoas possuem é o de que fazem parte dessa cidade, não
importando o que individualmente buscam. Manifestam desejo de pertencer a ela
259
, e
isso os motiva a criar formas de pertencimento.
Reconhecem que, em muitos casos, o patrão da fazenda e o candidato político
são forças latentes que podem se posicionar, a seu favor perante o Poder Público.
Porém, se esses não são (os meus e até mesmo o de muitos deles) os meios sonhados
para as conquistas sociais, são os meios viáveis em um espaço de disputa desleal.
Portanto, como nos lembra uma matéria jornalística sobre o lixo num bairro
pobre da cidade, a "indiferença dos responsáveis" pode custar muitos votos: Seus
moradores estão desolados com a indiferença dos responsáveis. E são 120 famílias que
259
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (1ª reimpressão),
p. 152;186.
dão quase 500 votos
260
. Ou seja, a assimilação que o autor da reportagem faz entre
melhorias e votos nos chama a atenção para uma das motivações do Poder Público para
atender com políticas públicas os pobres da cidade.
Muitas relações de barganha são realizadas, nem sempre porque aproveitam da
inocência dos moradores, mas por eles também entenderem que, no jogo por pertencer e
demarcar espaços e direitos nesta cidade, a barganha quase sempre é a saída mais
concreta que possuem
261
.
Como diz CALDEIRA, muitas das pressões que os citadinos fazem acabam
forçando uma ação do Poder Público, visto que Mesmo políticos de direita perceberam
que seu futuro político em um sistema de eleições livres dependia da atenção que
prestassem à periferia
262
.
Como sugere Thompson
263
, reagir à precariedade nem sempre se expressa na
agitação popular. Devido ao aumento dos preços e ao desemprego, as pessoas estão
criando estratégias, alternativas de vida: trazer parte da alimentação da lavoura em que
trabalha, manter o hábito de possuir ervas medicinais plantadas no quintal como saída à
compra de remédios, usar o fogão à lenha para sentir menos a alta do gás de cozinha e,
ainda, pressionar o político por meio do voto.
Assim, os moradores prosseguem, construindo mecanismos de sobrevivência
sem deixar, é claro, de reivindicar melhorias. Fazem reuniões no bar da D. Hilda para
saber as metas da Associação, indo nas reuniões do Orçamento Participativo,
procurando viabilizar ações da Prefeitura no Marielza (creche, atendimento médico,
escritura), ou mesmo se inteirando das decisões com a vizinhança no correr dos dias.
Entender o lugar dessas pessoas na cidade é reconhecer que eles fazem parte de
um processo excludente, marginalizador e contraditório, onde, muitas vezes, os próprios
moradores se contradizem, assumindo serem simples e pobres, mas tendo, alguns deles,
condições de comprar dois, três ou mais terrenos no Vila Marielza. Nem todos têm essa
possibilidade e querem estar investir no Marielza.
260
FEIRA livre - Invasão. Correio de Uberlândia. 05/12/71, p. 03.
261
THOMPSON, E. P. Op. cit., p. 261.
262
CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania. São Paulo: Ed.
34/EDUSP, 2000, p. 239.
263
THOMPSON, E. P. Op. cit., p. 206.
Porém, nem mesmo o morador que vive em condições estruturais melhores em
relação aos demais, pois partilha da poeira, do mato, da falta de rede de esgoto, da
ilegalidade, da ausência de atendimento médico e tantas outras questões. Por isso, se
nem todos os moradores são pobres, excluídos eles são, à medida que lhes são negados
direitos sociais básicos.
Conversar com essas pessoas me fez perceber o quanto valores e significados
que dão aos seus viveres são particulares e que não se restringem a perguntas e
respostas, passa muito mais pela convivência que estabelecemos com eles.
Às vezes, as indagações diretas não traziam as respostas, como quando perguntei
a D. Ercília para onde saía, onde freqüentava. Ela me disse que apenas trabalhava e ia
ver sua mãe, estava sempre muito cansada para ir a festas, ou a qualquer outro lugar.
Porém, conversando sobre a violência do bairro, acabou revelando que, em uma das
vezes em que foi assaltada, estava indo à missa na Olhos d’Água. Ou seja, ir à missa é
algo comum a seu viver, por isso não a mencionou na resposta à minha pergunta.
Trajetórias diversas se intercalam em alguns pontos, fortalecendo o prosseguir
dos pobres de Uberlândia. Percebemos que, no fundo, as pessoas querem denunciar sua
situação precária, assim como satisfazer as suas necessidades e anseios que elencam
como importantes para suas vidas.
Desse modo, a condição precária de vida se coloca como provisória à medida
que algumas questões vão sendo resolvidas e, outras, proteladas (adiam-se algumas,
enquanto a realidade vivida não as torna imprescindíveis). As análises de Rosângela
PETUBA sobre o crescimento da cidade e o assentamento de populações nas áreas
periféricas nos ajudam a entender como situações, como a do B. Vila Marielza,
tornaram-se possíveis:
A partir dos anos 30, especialmente, foi sendo montado o quadro dos
problemas urbanos com que hoje a sociedade se defronta, pois a
expansão cada vez mais rápida das cidades colocou como questão
central, para a manutenção de seu crescimento econômico, a garantia de
canais de comunicação dentro desse espaço, para dar abrigo aos fluxos
crescentes de mercadorias e pessoas, principalmente, os trabalhadores,
que foram se assentando nas áreas periféricas onde seu baixo poder
aquisitivo lhes permitia. Para que os custos fossem mínimos, as
exigências legais eram poucas. A clandestinidade dos loteamentos que
seriam, na verdade, aqueles que o poder público desconhecia
oficialmente dava a este a desculpa institucional para não instalar os
equipamentos sociais urbanos
264
.
Essa reflexão de PETUBA mostra que o processo de formação das cidades
brasileiras leva a uma formação ilegal de bairros e viveres de pessoas pobres.
Descortina-se, aí, a tentativa de demarcação de territórios para alguns e o Poder Público
conivente com as elites locais na tentativa de deixar os pobres à margem das políticas
públicas. E, por isso, as tensões sociais se fazem sentir à medida que os lugares
escolhidos para essa população não são aceitos, a precariedade é questionada e a ordem
sonhada pelos administradores é burlada por estes sujeitos:
Essas práticas no cotidiano dos lugares de moradia desses trabalhadores
fazem do espaço urbano habitado por eles um espaço diferenciado, onde
convivem modos de vida não vislumbrado nos projetos de cidade que se
pretendem hegemônicos. As práticas as quais o poder público, em nome
da saúde, do embelezamento e da racionalização dos espaços, tenta
extirpar do cotidiano urbano, por não se adequarem a visão que se tem
da cidade, expressam traços característicos da própria trajetória de vida
desses moradores e atuam, em muitos momentos, como fatores de
resistência e preservação de uma certa identidade, no sentido de
estabelecerem um elo com experiências anteriormente vivenciadas
265
.
Desse modo, por mais que a clandestinidade se perpetue, a população não se
reconhece como inexistente na cidade, procura ocupar seus espaços, e conquistar sua
cidadania, cumprindo com seus deveres e usufruindo seus direitos. Buscam uma vida
digna, intenção construída a partir de suas vivências e experiências, isto é, "o viver a
cidade e na cidade constitui-se em experiências de reconhecimento de espaços, de
alternativas, de mudanças, de práticas de formação de sujeitos políticos"
266
.
Embora a ilegalidade de terrenos, bairros e obras seja freqüente em Uberlândia, a
melhoria do viver daqueles que moram nesses locais vem de forma lenta e parcial. O
ilegal não é aleatoriamente estabelecido, na verdade, soluciona algumas questões
pendentes na cidade, o lugar dos pobres.
ROLNIK, ao discutir as obras clandestinas em São Paulo, menciona que o
tolerar essas obras é, para o Poder Público, criar um pacto com esses moradores, pois à
264
PETUBA, Rosângela M. S. Op. cit., p. 27.
265
Idem, ibidem, p. 40.
266
Idem, ibidem,p. 76.
medida que não estão em regiões que perturbem a ordem urbana progressista da cidade,
permite-se que ganhem direitos de morar, infra-estrutura e serviços urbanos
267
.
Desse modo, as relações sociais se tornam inversas, em vez de o Poder Público
ter a obrigação de garantir aos pobres um lugar na cidade, estabelece-se uma dívida dos
moradores para com ele e, como ROLNIK menciona a retribuição não tem uma data
final nem um conteúdo previamente definido é o reconhecimento de uma obrigação
que vai além de uma dimensão puramente utilitária e ainda, essa relação envolve um
compromisso que, a qualquer momento, pode ser invocado e assume formas variadas
de retribuição
268
.
Uberlândia se caracteriza por perpetuar essa prática, colocando a serviço do
mercado (imobiliárias que negociam terrenos em áreas fora do perímetro urbano, ou
sem registro na Prefeitura) o destino da população pobre.
Com isso, os limites entre o rural e o urbano se perdem. Devido aos preços mais
acessíveis, esses moradores vão sendo empurrados para o entorno da cidade, criando
espaços que mesclam o viver do campo e da urbe. De certo modo, reflete a crise urbana
em não atender igualmente a todos os seus integrantes.
Na realidade, os hábitos rurais aparecem como válvula de escape ao mercado.
Como lembra MORAIS, estes modos de vida existem como estratégias de permanência
na cidade
269
, criando alternativas para conviver com a falta de atendimento médico, de
alimentos, de roupas e com a dificuldade de construir a casa: ao elevar relativamente o
preço da terra na zona urbana, ‘empurrava’ os arruamentos populares para as áreas
rurais
270
.
Tudo isso, demonstra a degradação do viver dessas pessoas, que não se
restringem ao Marielza. A falsa inclusão na cidade fantástica acaba se balizando em
267
ROLNIK, R. Op. cit. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e território na cidade de São
Paulo. 2 ed. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 1999, p. 169.
268
Idem, ibidem, p. 170.
269
MORAIS, S. P. Trabalho e Cidade - trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de Uberlândia
1970-2000. Dissertação. (Mestrado em História). Instituto de História, Universidade Federal de
Uberlândia, 2002, p. 133.
270
ROLNIK, R. Op. cit., p. 202.
possuir moradia, estar com saúde (sinônimo de conseguir trabalhar) e ter comida na
mesa
271
, o que considero muito pouco para quem constrói essa cidade.
Mas, quando outras necessidades surgem, esbarram na exclusão, a que procuram
remediar e vencer paulatinamente: Essa cidade depende de nóis, do nosso serviço, do
nosso imposto, por que que o prefeito num lembra disso?
272
Nesse sentido, a colocação de MORAIS se faz pertinente:
A cidade é múltipla, por haver diferentes interesses em ação. A cidade é
contraditória, pela relação e embate entre os diversos interesses
presentes. Porém, a cidade não pode ser, nessa perspectiva plural. Pois
a gerência do poder público, no decorrer desses períodos, privilegiou
(privilegia) e agiu (age) em favor da legitimação da ética do mercado e
da dinâmica do capital
273
As políticas criadas para essa população tendem a não ser apenas legitimações
de direitos, mas sim concessões que desarticulam uma postura mais firme destes
moradores perante o Poder Público. Ao contrário do que se esperaria de pessoas
vivendo marginalmente, a luta por pertencimento, em muitos casos, foi substituída pela
aceitação do assistencialismo (vale-gás, pró-pão, casa fácil).
Porém, a disputa prevalece, em alguns momentos, mais ou menos desarticulada,
mas nem por isso ela deixa de existir e de se fazer sentir no cotidiano da cidade,
procurando desmantelar as ações do mercado que, como ROLNIK bem define, desenha
“muralhas invisíveis” nas relações sociais e no viver urbano.
Para CALDEIRA, as cidades modernas foram sempre marcadas por
desigualdades sociais e segregação espacial, e seus espaços são apropriados de
maneiras bastante diferentes por diversos grupos, dependendo de sua posição social ou
poder
274
.
Essa idéia de CALDEIRA nos leva a questionar para quem essas cidades estão
existindo e, quando digo isso, penso na prestação de serviços, disponibilização de
trabalho, educação e moradia, porque no plano material ou simbólico, os pobres estão
sobrando nas cidades brasileiras, forçando-os, muitas vezes, a criar espaços e modos de
271
Sr. Venâncio Vilela, 65 anos, foi morador do B. Tibery, residiu na cidade de Uberlândia 24 anos,
entrevista realizada dia 14/06/2001. Falecido no dia 31/12/2002.
272
D. Célia Custódio Gomes, moradora do B. Vila Marielza há 5 anos, entrevista realizada dia
30/10/2002.
273
MORAIS, S. P. Op. cit., p. 112.
274
CALDEIRA, Teresa P. do R. Op. cit., p. 303.
viver que, mesmo temporariamente, driblem a exclusão social, trabalhando como
diarista, vendedor ambulante, carroceiro, pedinte, ocupante de lotes urbanos, isto é, seja
qual for a tática de sobrevivência, há uma questão social a ser resolvida neste novo
século. O capitalismo enraizou suas marcas em nossa sociedade. O individualismo, a
lógica mercadológica, a exploração do trabalho são alguns traços desse sistema.
Porém, cabe a nós, sujeitos deste processo histórico, construir nossas escolhas,
reavaliando a ótica capitalista e propondo novas formas de estabelecer relações sociais e
modos de vida.
Considerações Finais
Desterrados desrespeitos
Desterrados vivendo no urbano
Lutando
Vencendo, perdendo...
Sobrevivendo
(Sheille)
A década de 70 foi marcada por transformações nos meios urbanos e rural do
país que ampliaram o desequilíbrio social e da pobreza. Em 1973, o Presidente da
República, Garrastazu Médici, não podia ocultar os contrastes da nossa sociedade, que
excluía a população pobre, privando-a de vários direitos, dentre eles, a moradia: a
população de menos poder econômico permanece à margem dos benefícios
proporcionados a muitos reconheceu o Chefe do Governo em seu discurso
275
.
Ao longo dos anos, a situação se protelou e a miséria corroía mais ainda grande
parte da população brasileira.
Em Uberlândia, os ecos do desequilíbrio urbano são sentidos com o aumento de
favelas, migrantes tentando a sorte, desemprego, alto custo de vida, uma realidade que
perpassou as décadas de 70 e 80, agravando-se ainda mais nos últimos tempos:
Aqui pelas nossas bandas pelo menos os preços não só dos comestíveis
como de todas as utilidades continuam numa ascensão que apavora a
gente
276
.
Em relação aos aluguéis em nossa cidade, o crime é perfeito e não há
força maior neste mundo capaz de detê-lo e puni-lo na forma da lei.
(...) a alucinação coletiva está fazendo com que, dentro da base salarial
de Uberlândia, os aluguéis cheguem a representar 80% do salário de
muitos trabalhadores.
(...)Uma casa alugada em 1971 por 200 cruzeiros, hoje está sendo
alugada por 900 cruzeiros, como se Uberlândia tivesse um mercado de
trabalho, capaz de oferecer aos chefes de família condições de pagar,
sem problemas, uma importância dessas mensalmente
277
.
275
CASAS, casas. Correio de Uberlândia, 05 fev. 1973, p. 06.
276
PAES, Lycidio. A Carestia. Correio de Uberlândia, p. 02, 03 abr. 1970.
277
INFLAÇÃO no preço de aluguel em Uberlândia é um crime perfeito. Correio de Uberlândia, 29 jan.
1974, p. 01.
Consumidores que receberam talões para pagamento este mês de água,
certamente já devem ter verificado que o DMAE, sem nada comunicar,
aumentou em 10% a taxa mensal de água e esgoto
278
.
Os preços sobem a cada minuto que passa... vão subindo... subindo...
sem parar... na marcha para o além...
Homens, mulheres e crianças, todos juntos comemorando o Ano
Internacional da Criança batem palmas com as mãos esqueléticas, como
que traduzindo a certeza de que a esperança é a última que morre.
Uns choram. Outros riem. São as lágrimas da fome. É o riso do
desespero.
Enquanto isso a vida continua... e os preços vão subindo...
subindo... sem parar na marcha para o além
279
.
Aqui em Uberlândia, como em todo este imenso país, já não se pode mais
alugar uma casa perto do centro, o patriota que perceba menos de doze
a 15 salários mínimos mensais. O preço de um terreninho qualquer, em
qualquer vila ou bairros, como diz o brasileiro na sua giria, ‘já virou
bicho!
(...)
subiu o preço do leite,
do pão, o preço subiu,
subiu o preço do gás ...
dos salários ... ninguém viu!
280
Analisando essas matérias publicadas no jornal Correio de Uberlândia, percebe-
se o descompasso entre a realidade vivida pela população pobre uberlandense e o
discurso grande eloqüente em outras páginas desse mesmo jornal, que descreve a
modernidade, o crescimento, a cidade-modelo, sem mendigos, com trabalho e bairros
com infra-estrutura completa.
No entanto, a desigualdade social é crescente no país e, em Uberlândia, não
acontece diferente. A cidade exclui seus moradores pobres e tenta colocá-los à margem
dos benefícios sociais, de forma a se promover a ordem progressista verticalizada.
Portanto, é fácil lançar reportagens prestigiando Uberlândia, ignorando as
precariedades que ela apresenta. Dizer que os indigentes que se encontram na cidade
vivem assim por preferirem viver de esmola é muito simplificador. Conforme outras
matérias nos mostram, Uberlândia, nas décadas de 70 e 80, vivia (e hoje ainda vive)
278
ÁGUA está custando mais de dez por cento em Uberlândia. Correio de Uberlândia, 10-11 jul. 1976, p.
01.
279
FAGUNDES, I. No Palco da Vida. Correio de Uberlândia, p.06, 04 jan. 1980.
280
OLIVEIRA, A. Coluna Livre. Congelamento de salários com os preços estourando não dá pé! Correio
de Uberlândia, p. 03, 19 jun. 1987.
grave problema de moradia, emprego, saúde, não conseguindo atender às necessidades
de seus moradores.
Os favelados de Uberlândia não são marginais. O índice de desocupados
é muito pequeno. A maioria absoluta é de gente que trabalha e que não
pode pagar os aluguéis nos níveis atuais da cidade (...) cerca de 90%
desses moradores em precárias condições de moradia, ao contrário do
que se esperava, não vieram de fora, e sim, são residentes de
Uberlândia, alguns egressos de nossa própria zona rural (...) A renda
familiar (...) provenientes de trabalho informal, ou seja, o
subemprego
281
.
A cidade grande não tem lugar para ele (migrante): ondas pesadas
colocam-no à margem, nas periferias. Sem moradia, sem emprego, sem
dinheiro, começa o seu itinerário de cadinho e sal
282
.
Por isso, se torna desmedido se conformar com as agruras do progresso.
Portanto, a frase do comerciante Rubens Spirandelli, publicada na revista Veja, em
1987, demonstra claramente para quem se constrói a cidade de Uberlândia: O progresso
que temos e nossa qualidade de vida superam qualquer deficiência da cidade
283
.
Ora, em nossa qualidade de vida, de quem ele está falando? Certamente não é
dos sem-tetos que ocupam o entorno da cidade, nem mesmo os moradores do Marielza,
ou os migrantes pobres que se espalharam pela urbe.
Estes estão disputando um lugar, querendo também alcançar essa qualidade de
vida que lhes é de direito. Por isso, fazer apologia ao bem viver é fácil, mas que se diga
de quem se fala e para quem: Nossa cidade é um resumo do que o Brasil tem de
melhor
284
.
Nossa cidade a falta de benefícios sociais é notória, como postos de saúde,
iluminação nos bairros, água encanada, esgoto, escolas. O que demonstra a grande
distância entre a população pobre uberlandense e o que a citação acima sugere.
Na realidade, considero o título da reportagem condizente com Uberlândia,
Crise a Distância. Pelo menos, esta é a intenção: manter distantes os problemas e as
contradições sociais distantes da elite, da idéia que se quer construir sobre a cidade.
281
FAVELADOS em sua maioria são de Uberlândia. O Município. Uberlândia, 10 set. 1980, p. 01.
282
PIMENTA, S. A hora e a vez do migrante. Correio de Uberlândia. p. 04, 07 mar. 1980.
283
GOMES, M. E.; SPARTACUS, I. Crise a distância. VEJA, São Paulo, n. 1002, p. 71, 18 nov. 1987.
284
Idem, ibidem, p. 64.
O jornal foi um grande apoiador dessa proposta, apresentando constantemente
questionamentos ao modo de viver e sobreviver dos pobres, deixando claro os espaços
que não deveriam ocupar para não mancharem a imagem da “metrópole”:
Que nos perdoem aqueles que autorizaram o funcionamento de uma
barraca de tiro ao alvo em plena avenida Afonso Pena esquina com a
rua Goiás. Esqueceram que ali é um ponto central.
(...)um comércio que foge totalmente (...) traz um aspecto de cidade
provinciana (...) as autoridades precisam tomar uma providência urgente
para arrancar da Afonso Pena esquina com Goiás aquele monstrengo
285
.
Uberlândia, apesar de ser uma cidade de liderança em uma região, não
faz funcionar o Código de Posturas do Município, permitindo
arbitrariedades que já não podem existir.
(...)observamos a tomada dos passeios por caixas de frutas ou então
bancas de tecidos (...) calçada é espaço reservado ao pedestre e não (...)
de bagunçar o centro da cidade
286
.
As tensões continuam, pois os citadinos criam táticas de sobrevivência e
conseguem, a seu modo, criar territórios, resistir às regras da elite, transformar e
construir a cidade. São pobres e excluídos, mas lutam por um lugar.
Os sujeitos desta pesquisa não são diferentes, cada um, à sua maneira, constrói
seus territórios e imprimem valores e modos de vida nessa cidade.
A vida destes sujeitos passou pelo nosso olhar e ganhou um significado na
história de Uberlândia, pois, ao transformarem, incorporarem e manterem
comportamentos e valores nos seus modos de vida, mudam e interferem no lugar onde
vivem. Por isso, discutir a cidade revela as disputas sociais, permitindo refletir como os
sujeitos se percebem, se movimentam e constroem suas lutas e viveres.
Os entrevistados saíram do campo em busca de prosseguir suas vidas. Deram
uma nova organização a ela criando seus territórios e estabelecendo quais seriam seus
laços de convivência, os valores e as estratégias de sobrevivência que iriam seguir de
acordo com as necessidades e interesses do momento.
Sader considera que a história é feita pelos homens não como desejam, mas
como decidem fazê-la, a partir das condições materiais e culturais que encontram; é
285
TIRO ao alvo: aspecto provinciano enfeando a metrópole. Correio de Uberlândia, 14 abr. 1972, p. 01.
286
CÓDIGO de Posturas do Município precisa existir. Correio de Uberlândia, 18 abr. 1973, p.01. E
conferir ainda as reportagens: Uberlândia tem que assumir seu verdadeiro papel. Correio de Uberlândia,
30 dez. 1976, p. 06; A cidade tem que pensar em termos de grandeza para se adaptar ao progresso
surpreendente. Correio de Uberlândia, 30 abr. 1974, p.04.
um espaço aberto, cujos destinos continuam a ser decididos pela luta social, política e
cultural entre os homens, individual e coletivamente
287
.
Percebemos, que neste construir a história, temos de propor alternativas e
questionamentos, denunciar as mazelas na sociedade porque, mesmo parcialmente,
estamos fazendo algo por um mundo melhor. O compromisso do historiador com a
sociedade em que vive não pode, em nenhum momento, se perder diante das barreiras
do capitalismo e da estrutura acadêmica. Estamos falando de viveres de pessoas pobres
que também constituem o fazer da história. E como Portelli propõe, o verdadeiro
serviço que (...) prestamos a elas, (...) consiste em fazer com que sua voz seja ouvida,
em levá-la para fora, em pôr fim à sua sensação de isolamento e impotência, em
conseguir que seu discurso chegue a outras pessoas e comunidades
288
.
Trabalhadores rurais e pequenos proprietários, que são obrigados nas décadas de
70 e 80 a deixar o campo, têm a necessidade de fazer escolhas
289
e de transformarem
seus viveres. Investiguei as marcas deste processo, analisando a diversidade de
possibilidades e elaborações de modos de sobrevivência na cidade, porém não resta
dúvida de que a exclusão e a desigualdade social esmagam grande parte dos desejos e
expectativas da população. No entanto ela não desiste, continua como for possível,
sonhando e rearranjando o viver melhor.
A crueldade do sistema se expressa nas lacunas que deixa na sociedade e,
simplesmente ignorá-las, é seguir em frente, procriando a especulação, o alto custo de
vida, a segregação, o medo, por não se ter mais escolhas possíveis para se viver
290
.
O que nos propusemos neste trabalho foi um pouco do que Thompson nos
propõe: interrogar os silêncios reais, através do diálogo do conhecimento. E à medida
que esses silêncios são penetrados, não cosemos apenas um conceito novo ao pano
velho, mas vemos ser necessário reordenar todo o conjunto de conceitos
291
.
287
SADER, Emir. Século XX: uma biografia não-autorizada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000
(1ª reimpressão), p. 11.
288
PORTELLI, A. Tentando Aprender um Pouquinho. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 15,
abril 1997, p. 31.
289
KHOURY, Yara A. Missão de Trabalho - Procad/Linha Trabalho e Movimentos Sociais. Mestrado
em História. 12/04/2002 (transcrição).
290
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia das Letras, 2002 (1ª reimpressão), p. 162.
291
Idem. O Termo Ausente: experiência. In: ______. Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros. Uma
crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 185.
Sabemos que a exclusão vivenciada pelos sujeitos não se encerra neles e nem no
limite destas páginas e, por isso, devemos assumir a que viemos na sociedade. E,
quando conseguimos incomodar e trazer dúvidas e inseguranças é porque conseguimos,
de alguma forma, atingir o leitor, atingir nós mesmos. Os entrevistados deram voz às
nossas inquietações, nossos questionamentos
292
. Interrogar, refletir, fazer emergir
questões, tudo isso foi com a finalidade de suscitar transformações no nosso viver.
O B. Vila Marielza resguardou em seu bojo silêncios, tensões, rearranjos,
possibilitou-nos perceber práticas de sobrevivência, solidariedade e de lazer. Permitiu-
nos ver pessoas que não se limitam à marginalização e tentam manter valores, garantir
dignidade, mesmo na pobreza.
Às vezes, em um dos acenos de D. Nilsa
293
, com um sorriso meio sem jeito,
pudemos sentir que, ao sair daquela casa deixava para traz uma mulher cansada, em
dificuldades, mas com esperanças de um dia ser diferente.
E é assim que encerramos este trabalho. Vendo que muito ainda ficou por se
dizer e refletir, os padrões de vida, a influência da droga e violência nos viveres dessas
pessoas, as medidas legais para regularizar o bairro e os terrenos. Mas, cada passo é
dado na sua vez, por isso, muitos caminhos ainda existem para serem trilhados daqui
para frente.
292
PORTELLI, A. Aula inaugural da IV Turma de Mestrado em História, da Universidade Federal de
Uberlândia, no dia 24 de abril de 2002.
293
D. Nilsa Ferreira Coutinho, 53 anos, moradora da Vila Marielza há 10 anos. Entrevista dia 10/05/2002.
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