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Cláudia Helena da Cruz
Encontros entre a Criação Literária e a Militância
Política: Quarup (1967) de Antônio Callado
Uberlândia
2003
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Cláudia Helena da Cruz
Encontros entre a Criação Literária e a Militância
Política: Quarup (1967) de Antônio Callado
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História do Instituto de
História da Universidade Federal de
Uberlândia, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em História.
Orientadora: Profª. Dr.ª Rosangela Patriota
Ramos.
Uberlândia
2003
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Banca Examinadora
______________________________________________
Profª. Dr.ª Rosangela Patriota Ramos (Orientadora)
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
______________________________________________
Profª. Dr.ª Kátia Rodrigues Paranhos
Universidade Federal de Uberlândia - UFU
______________________________________________
Prof. ª Dr.ª Tânia Regina de Luca
Universidade Estadual de São Paulo UNESP/Assis-SP
Aos meus pais Maria Helena e José
Luiz, pelo amor e pelo apoio
incondicional e ao Adegmar pelo
carinho, incentivo e presença
constante.
Agradecimentos
Obrigada é o mínimo que posso dizer a todas as pessoas, que de alguma maneira
compartilharam e contribuíram para o desenvolvimento deste estudo.
A Profª. Dr.ª Rosangela Patriota Ramos, pela orientação e por fazer parte da minha
caminhada, contribuindo sempre em nossos diálogos e me fazendo crescer.
Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos pelo material que disponibilizou e pela boas
sugestões.
Ao CNPq por ter possibilitado minha dedicação à pesquisa durante os dois anos de
mestrado.
À coordenação do Mestrado Profª. Dr.ª Maria Clara Tomaz Machado e a equipe
administrativa: Maria Helena, Sandra Fuiza e Gonçalo.
À Profª. Dr.ª Kátia Rodrigues Paranhos pela contribuição no Exame de Qualificação
e pela gentileza de me disponibilizar materiais.
Ao Adegmar por ser um companheiro presente, incentivador em todos os momentos
e por acreditar em minha capacidade.
À minha família, meus pais Maria Helena e José Luiz pela apoio, aos meus irmãos
Fábio e Cristiano pelo amor e carinho, a Juscilene pela pessoa maravilhosa que é, aos meus
sobrinhos Lorranny, Laryssa e Yan por serem minha alegria. Obrigada por tudo que vocês
representam.
À Sírley por tudo que compartilhamos durante esses dois anos e pelo surgimento de
uma amizade.
À Nádia e Kátia amigas queridas.
Às minhas amigas Silveira, Christine que mesmo distante nunca deixou de dar o seu
incentivo, Cláudia e Alessandra por sempre me ouvirem.
Ao Miguel pelas gentilezas e por ter se revelado uma pessoa tão prestativa.
A todos os membros do Núcleo em História Social da Arte e da Cultura - NEHAC,
em especial aqueles com quem mais convivo: Rodrigo Freitas, Thaís, Jacques, Sandra,
Ludmila, Marcos Menezes, Aguinaldo, Manoela, Luciano, Daniella e André.
Aos colegas do mestrado, em especial ao Alexandre Pacheco, Rodrigo Fázio e Yara
Toscano.
Ao Adilon, Isaura, Cleuza, Gilson e Sidi, pessoas que significam muito para mim.
Ao amigo Rodrigo Martins por ser sempre tão prestativo.
Um agradecimento especial para minha mãe Maria Helena, a primeira pessoa a me
incentivar a buscar meus ideais, a ir em frente, mesmo que para isso eu tivesse que ficar
distante. O seu amor e carinho sempre me deram forças para continuar os meus projetos,
por tudo isto você é a razão de hoje eu estar alcançando mais uma conquista. Obrigada.
Sumário
Resumo...........................................................................................................................
Viii
Introdução.....................................................................................................................
002
Capítulo I
Quarup à Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960.........................
023
1 - Antônio Callado e seu Brasil de Dentro para Fora....................................................
028
2- A Década de 1960 á Luz das Experiências Democráticas em Pernambuco.............. 047
2.1 - As Ligas Camponesas............................................................................................ 055
2.2 A Formação dos Sindicatos Rurais: Igreja Católica e Partido Comunista
dividindo espaços e influências......................................................................................
060
2.3 O Movimento de Cultura Popular MCP em Pernambuco..................................
065
Considerações Finais......................................................................................................
071
Capítulo II
A Busca do Brasil no Percurso do Herói....................................................................
074
1 -A Trajetória de Nando na Busca Pelo Centro do Brasil e Pelo “Centro de Si
Mesmo”...........................................................................................................................
083
2 - Do Centro do Brasil a Periferia: do Xingu a Pernambuco.........................................
105
3 Nando em sua Vida ao Sol e as Conseqüências do Golpe Militar............................
112
Capítulo III
Quarup: Repercussões Literárias e Historiográficas.................................................
120
1 Quarup Resistindo ao Passar do Tempo”: Recepção e Repercussão do
Romance.........................................................................................................................
126
2 A Academia em Visita a Quarup: Teses e Dissertações..........................................
142
Conclusão.......................................................................................................................
172
Bibliografia....................................................................................................................
179
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de
Catalogação e Classificação / mg
C957e Cruz, Cláudia Helena da.
Encontros entre a criação literária e a militância política
:
Quarup (1967) de Antônio Callado / Cláudia Helena da Cruz. -
Uberlândia, 2003.
185 f. : il.
Orientador: Rosângela Patriota Ramos.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em História.
Inclui bibliografia.
1. Literatura e história - Teses. 2. Brasil - História - 1964-1985.
Teses. 3. Callado, Antônio, 1917-1997 - Quarup - Crítica e inter -
pretação. I. Ramos, Rosângela Patriota. II. Universidade Federal
de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.
CDU:
930.2:869.0(81)(041.3)
Resumo
viii
CRUZ, Cláudia Helena da. Encontros entre a Criação Literária e a Militância Política:
Quarup (1967) de Antônio Callado. Dissertação (Mestrado em História Social), Programa
de Pós-Graduação em História do Instituto de História da Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, 2003. 186 p.
Este estudo trilhou o caminho interdisciplinar História e Literatura, tendo como documento
privilegiado o romance Quarup (1967) de Antônio Callado. Está é uma obra representativa
da literatura engajada da década de 1960, que estabelece constante comunicação entre
“ficção” e “realidade”, trazendo no seu enredo temas candentes da sua contemporaneidade,
como a luta do camponês pernambucano, concomitantemente com a criação das Ligas
Camponesas, o Movimento de Cultura Popular MCP -, o surgimento de Sindicatos
Rurais, entre outros. Contudo, a narrativa de Callado tamb ém mostra a desintegração de
todos estes movimentos a partir do Golpe Militar de 1964. Haja vista que Quarup surgiu
em plena ditadura militar, período em que a censura e a repressão permeavam todos os
espaços, e a arte tornou-se uma forma de combater, denunciar e resistir à usurpação do
poder, às arbitrariedades e à soberania de um governo ditatorial. Nessa perspectiva, a obra
literária foi capaz de remeter-nos às representações de acontecimentos de nossa história
recente, que este estudo resgatou com base na criação/produção da narrativa de Callado,
tornando possível pensá-la historicamente, à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da
História Cultural, que concebe o profícuo diálogo com a obra de arte, uma vez que a
criação artística é dada a partir de uma determinada realidade, conjuntura e historicidade
específica.
Fontoura pôs os joelhos no chão e leu: Centro
Geográfico do Brasil, latitude dez graus e vinte
minutos sul, longitude cinqüenta e três graus e
doze minutos oeste de Greenwich. Fontoura caiu
de cara no chão, as mãos para frente, o ouvido
colado à terra, enquanto inquietos bandos de
formigas lhe cobriam os dedos e o pescoço.
“Nando!”, gritou Francisca. “Levanta, Fontoura,
levanta!” “Ponha o seu ouvido na terra”, disse
Fontoura. “Para quê? Levanta.” Mas, na
impossibilidade de erguer Fontoura, Francisca se
curvou, deitou o rosto sobre as formigas
enlouquecidas, sentiu viva e feroz a terra de
Levindo. “Está ouvindo?” disse Fontoura. “O
quê?” “O coração.” “Estou ouvindo”, disse
Francisca. “Agora levanta, Fontoura!” “Você
ouviu bem?”, disse Fontoura. “Ouvi, ouvi, agora
vamos!” “Estou perguntando, porque a gente
ouve de leve. A batida é funda.”
Cena da descoberta do centro geográfico do
Brasil, trecho de Quarup escolhido por
Antônio Callado.
Introdução
2
Para o historiador a literatura continua a ser um documento
ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que
ela comporta. Ou seja, a leitura da literatura pela história
não se faz de maneira literal, o que nela se resgata é a
representação do mundo que comporta a forma narrativa.
Sandra Pesavento
Discutir a obra literária, à luz dos pressupostos teorico-metodológicos da História
Cultural, consiste na proposta deste trabalho, que parte do princípio de que a obra de arte é
para o historiador um documento e, como tal, é uma representação, e cada representação
constrói suas particularidades e especificidades. Assim, pensar o romance Quarup
1
mediante o binômio História e Literatura é o caminho a ser percorrido.
A utilização da literatura como documento não é algo novo. O historiador Jacob
Burckhardt (1818-1897)
2
elegeu a Divina Comédia como sua principal fonte de inspiração
para o estudo da Renascença italiana, no século XIX, tornando-se, assim, um dos primeiros
a recorrer à obra literária no âmbito da pesquisa histórica,
3
bem como a interpretar a
História sob a visão da interação do Estado, da religião e da cultura.
Burckhardt tinha Dante Alighieri (XIV) como um dos precursores do Renascimento,
identificando, em sua obra A Divina Comédia, elementos importantes para a compreensão
de seu momento histórico: Dante observa a realidade a natureza e a vida humana e usa
as observações não como meros ornamentos, mas com o objetivo de proporcionar ao leitor
1
CALLADO, A. Quarup. 12ª ed., 19ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
A estrutura narrativa, a composição dos personagens, o enredo e as categorias literárias do romance Quarup
estão presentes no capítulo II.
2
BURCKHARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. Brasília: UnB, 1991.
A obra A Cultura do Renascimento na Itália tornou-se um paradigma no âmbito da pesquisa, criando uma
tradição historiográfica sobre o tema do Renascimento.
3
No que se refere à pesquisa histórica, Burckhardt chama para a possibilidade de outras interpretações, uma
vez que a História é um processo de construção e o documento poderá receber olhar diferenciado, suscitando
uma nova perspectiva de abordagem. Além do mais, Burckhardt foi um dos primeiros a enfrentar o tema do
Renascimento e sua escassez de material. Quando começou a investigar, a Renascença era um território quase
inexplorado. Somente Voltaire, cem anos antes, havia escrito sobre o ressurgimento artístico e literário na
época dos Médici.
Introdução
3
uma idéia mais completa e adequada do que quer dizer.
4
Como constatou o historiador Peter Gay, em O Estilo na História, Burckhardt
“abarcou a enorme vitalidade da Renascença e sua singularidade histórica”, pois para ele a
“imaginação era mãe da história, bem como da poesia”. Isto permitiu a Peter Gay falar do
“estilo na história”, em um debate sobre a “definição de história” em que reuniu ensaios
sobre: Gibbon, Ranke, Macaulay e Burkhardt e seus diferentes “estilos” de narrativa. Sobre
Burckhardt, afirma:
E Burckhardt, conforme mostrei com algum detalhamento, considerava um
determinado tipo de poesia não só aliado, e sim como o próprio fundamento da
história narrativa. Da perspectiva desses historiadores, e, em verdade, do ponto de
vista da profissão histórica moderna em geral, a arte e a ciência não se separam
nitidamente; condividem uma longa fronteira cheia de meandros, que é
atravessada pelo trânsito erudito e literário sem grandes impedimentos nem muitas
formalidades.
5
O historiador holandês Johan Huizinga compartilha com Peter Gay a opinião sobre
a contribuição que a obra de Buckhardt deu para o tema do Renascimento, considerando
que foi o primeiro que enfocou o esse período desligado de seus nexos com a ilustração e o
progresso, como ideal de cultura “sui generis”, ou seja, compreendeu o momento dentro da
especificidade histórica, dentro de sua particularidade. Huizinga concebe o estudo de
Burckhardt como um modelo para a história da cultura, mesmo fazendo algumas restrições
ao conceito de “ruptura” que Burckhardt estabelece entre a Idade Média e a Renascença.
Para Huizinga, houve uma “transição” entre estes períodos: el renascimento no puede ser
considerado como atítesis pura e simple de la Edade Media, siqueira como zona divisória
entre la época medieval e los tiempos modernos.
6
Esse debate de Huizinga com a obra de Burckhardt, assim como o de Peter Gay, faz
parte de um profícuo diálogo da historiografia contemporânea com a História Cultural, em
4
BURCKHARDT. J. Op. Cit. p. 174.
Jacob Burckhardt entendia que o único erro de Dante foi escrever sua obra em dialeto toscano em vez do
latim, que era a língua oficial. Mesmo assim, considerou-a uma obra “universal”, que transcende ao seu
tempo, construída com parâmetros estéticos que ultrapassaram o autor. Para Burckhardt Uomo Universale foi,
sem dúvida, uma das grandes invenções da Renascença, e Burckhardt os reverencia, dentre eles, o próprio
Dante, Shakespeare e Leon Batista Alberti.
5
GAY, P. O Estilo na História na História: Gibbon, Ranke, Macaulay e Burckhardt. São Paulo: Cia da
Letras, 1990. P. 167.
6
HUIZINGA, J. El Concepto de la Historia. México: Fondo de Cultura Economica, 1992. P.154.
Introdução
4
que os historiadores buscam refletir sobre o campo da pesquisa histórica, bem como a
ampliação da concepção de “documento histórico”. Nesse sentido, Huizinga observa sobre
as abordagens da história cultural:
No hay incoveniente en ver, si queremos, los cantones naturales de la historia de la
cultura en la historia de la religión y de la iglesia, en la historia del arte, en la
historia de la literatura, de la filosofía, de la ciencia y de la técnica, Y no cabe
duda de que en todos estos campos existe el deber de entrar en detalles; la
determinación de los objetos requiere todavía no poco trabajo. Sin embargo, los
resultados de estos estudios históricos especializados, aunque se expongan en
forma de sínteses y de interpretación de hechos, no constituyen de por sí una
historia de la cultura. Ni siquiera puden interpretarse como historia de la cultura
en el pleno sentido de la palabra la historia del estilo y la historia del espíritu. Par
ello, es necesario que procedamos a destacar las formas de vida, las formas de
creación y las formas de pensamiento. Pues bien, el carácter de estas formas no es
algo dado. Es nuestra mano la que lo modela. Precisamente por ello, porque la
historia de la cultura es, en una medida tan considerable, producto del libre
espíritu del investigador y del pensador, se impone aquí una cautela mayor en el
modo de plantear los problemas.
7
Outro estudo de grande relevância para História Cultural é o de Mikhail Bakhtin
(1895-1975), em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais (1965), nesta obra, adverte-nos para os enigmas da literatura
Rabelaisiana Gargantua e Pantagruel. Observa, também, ser necessária a realização de um
estudo aprofundado em suas fontes populares, pois elas decifram e iluminam a cultura
cômica de vários milênios. Suas constatações ancoram-se em seus esforços para entender e
comprovar porque Rabelais foi pouco estudado e conhecido pelas gerações posteriores; no
final, conclui que ele não se adequava à forma pela qual a história da literatura foi pensada,
pois suas obras eram romances de ficção com fundo de realidade e possuíam tradição
literária e um código estético próprio.
Mikhail Bakhtin atenta para importância da presença do grotesco, do riso e do
humor praticados no âmbito do não oficial, isto é, no espaço das festas populares,
ressaltando que os contemporâneos de Rabelais compreendiam e amavam-no. Referencia-
se no fato de ter se deparado com inúmeras marcas de sua influência, como o grande
número de imitadores, afirmando estar nessa relação a maioria dos prosadores que
sucederam Rabelais.
7
Ibidem, p. 22-23.
Introdução
5
Outro grande tema suscitado por Bakhtin é a circularidade,
8
o espaço em que o
erudito e o popular se entrecruzam. Este espaço seria a festa popular, em que a hierarquia é
quebrada e se estabelece a igualdade. Detecta em Rabelais essa representação, no princípio
da vida material e corporal, permeada por elementos como o corpo, a comida, a bebida e a
vida sexual, e também por meio das imagens do baixo material e corporal, que definem o
realismo grotesco,
9
como sendo o elemento diferencial, aquilo que deforma, caracterizado
pelo rebaixamento: rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a
terra concebida como um princípio de absorção, e ao mesmo tempo de nascimento: quando
se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá a vida em seguida,
mais e melhor.
10
Degradar significa remeter-se às partes inferiores do corpo, e isso não tem
aspecto negativo, porque a degradação do corpo leva à morte, dá origem a uma nova vida,
criando, assim, uma unidade indissolúvel. Esse realismo é percebido em Rabelais na
representação do universal e do popular.
Nesse sentido, Bakhtin direciona para uma perspectiva de pesquisa histórica,
conduzindo-nos a perceber a forma como Rabelais construiu seu personagem Gargantua,
um nobre herdeiro de um reino, que consegue apreender elementos do erudito e do popular,
(a circularidade), rompendo com a concepção de mundo hierarquizado. Essa ruptura
possibilita o surgimento de novas relações e de viver uma cultura universal, burlando uma
sociedade séria e soberana à qual Gargantua e seu filho Pantagruel pertenciam.
8
O nascimento do gigante Gargantua elucida o caminho percorrido: O episódio em que a giganta
Gargamelle, em estado de gravidez mais que adiantada, mete-se a comer tripas demais, numa espécie de
banquete, e sai da sala passando mal, dando a impressão de que ia ter a criança, quando não ia e os
sintomas era de pura dor de barriga. Afinal apertado pelos remédios ingeridos pela mãe, o futuro Gargantua
foge pela corrente sangüínea e sobe-lhe a cabeça, para acabar nascendo pela orelha, após onze meses de
gestação. Este é o primeiro gesto de rebeldia do gigante Gargantua, dos muitos que ele iria praticar mais
tarde, implícita senão explicitamente”. O episódio é construído a partir do baixo material e corporal,
chegando até o alto. A priori a giganta Gargamelle come tripas, insinuando-no o significado do ventre, das
entranhas que dá a vida. Contudo, Gargantua nasce pelo ouvido, representação do alto. Temos aqui o
princípio da circularidade no próprio corpo. Este movimento do baixo para o alto não é freqüente em
Rabelais; sua tendência é o movimento para baixo. Segundo Bakhtin, a justificativa é o fato do baixo
representar a terra, onde está o centro do universo, onde se encontra as verdadeiras riquezas, muito superiores
às do céu. RABELAIS, F. Gargantua. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
9
O realismo grotesco em Rabelais é uma forma modificada da cultura cômica popular, que tinha como
característica peculiar a concepção estética da vida prática, que a diferencia nitidamente das culturas dos
séculos posteriores. Esta discussão poderá ser encontrada em: BAKHTIN, M., A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais. 2ª ed. Brasília/São Paulo: UnB/ HUCITEC,
1993. p. 59.
10
Ibidem, p. 19.
Introdução
6
Atualmente, a História Cultural é herdeira de estudos como o de Jacob Burckhardt,
e enriquecida com obras como a de Bakhtin, entre outras. Entretanto cabe ressaltar as
contribuições do movimento da Escola dos Annales que surgiu em 1929 com a criação da
revista Annales d’Histoire Economique et sociale, por Lucien Febvre e Marc Bloch. Esse
movimento trouxe mudanças, propostas e ampliou as fronteiras da pesquisa e do
conhecimento histórico. Os Annales combateram a “história historicizante” e, ao mesmo
tempo, alargaram a interlocução com outras áreas do conhecimento, estabelecendo uma
relação interdisciplinar, que Roger Chartier historiador da quarta geração dos Annales
diz ser:
A definição de novos espaços de investigação supondo cada um manejando
tradições, instrumentos disciplinares diferentes e cada um tornando-se um
investigador interdisciplinar em si mesmo(...) Mas o elemento-chave é que cada um
deve partir de sua própria tradição e de sua própria formação, manejar, mobilizar
os recursos propostos para estas técnicas ou perspectivas de investigação, para
construir o objeto. Dessa forma , o historiador cultural que estuda os textos
literários deve manejar a crítica literária, ou as correntes da crítica literária, e o
saber das disciplinas técnicas que descrevem os livros impressos. Por outro lado, o
crítico literário não deve esquecer de ser ao mesmo tempo bibliógrafo e historiador
cultural. A partir deste momento, o encontro das disciplinas se volta como
conhecimento necessário para cada um de nós, das disciplinas, das técnicas, dos
instrumentos, das categorias que podem ajudar na compreensão de um objeto, de
uma prática, de um texto dentro de um espaço partilhado.
11
A Segunda geração dos Annales, liderada por Fernand Braudel (1956-1969), autor
de obras como História Total e também problematizador da relação das unidades de tempo
(divididas em três), mas dando enfoque para a unidade da longa duração. A historiadora
Lynn Hunt, em A nova história cultural, definiu-as como sendo:
(...) structure, ou longue durée, dominada pelo meio geográfico; a conjoncture, ou
média duração, voltada para vida social, e o ‘evento’ efêmero, que incluía a
política e tudo que dizia respeito ao indivíduo. A estrutura, ou longa duração, tinha
prioridade, enquanto os eventos eram equiparados à poeira ou à espuma do mar.
12
(grifo nosso)
11
CHARTIER, R. Entrevista com Roger Chartier. Revista Pós-História. Assis-SP, UNESP, vol. 7, PP. 17-
18, 1999. Entrevista concedida a Comissão Editorial.
12
HUNT, L. (org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 04.
Introdução
7
A essa segunda fase dos Annales, Peter Burke chamou de “a era Braudel”, e
Ronaldo Vainfas, ao tecer suas considerações sobre ela, observa:
(...) Em sua vasta obra, incluindo o modelo de história total apresentado no
Mediterrâneo, o autor pouco deu atenção aos usos e mores das sociedades
estudadas, e concebeu sempre a longa duração como um domínio temporal
basicamente ligado às relações entre o homem, a geografia e as condições da vida
material. Manteve-se fiel, portanto, à concepção sintética da história presente em
Febvre e Bloch, conferindo-lhe mesmo uma densidade conceitual antes ausente.
Deles se afastou, no entanto, ao ‘marginalizar’ o estudo das mentalidades que
tanto agradava aos fundadores da história nova
13
No final da década de 1960, Braudel aposentou-se, e, em 1972, Jacques Le Goff
iniciou a terceira geração dos Annales, e a historiografia francesa caminhou rumo as
mentalidades, campo privilegiado pela Nova História. Nesse período, surgiu a metáfora do
porão ao sótão, utilizada para refletir a mudanças no enfoque das preocupações. O que
antes era direcionado para bases socioeconômicas e para vida material, agora voltava-se
para os “processos mentais”, a “vida cotidiana” e suas “representações”, com temas ligados
à morte, à família, à mulher, ao amor, à criança, aos loucos, aos homossexuais, às bruxas
etc.
Algumas das características que marcaram a “história das mentalidades” foram: a
confirmação da vocação interdisciplinar dos Annales, principalmente no diálogo com a
antropologia, psicologia e a lingüística; maior abrangência no campo documental; a
utilização do tempo braudeliano da longa duração e a preocupação de seus historiadores
com a quantificação. Essa quantificação, segundo Ronaldo Vainfas, é a pretensão de medir
os padrões de comportamento e sua lenta variação no tempo, seja, quando menos, a
tendência de pesquisá-los a partir de fontes em série, de preferência as fontes singulares.
Entretanto, Vainfas alerta para o fato do quantativismo não ser considerado um traço
universal da historiografia das mentalidades, sendo que alguns historiadores descartavam
esse procedimento, como Michel Vovelle e Philippe Áriés. Sobre os pressupostos da
“história das mentalidades”, Roger Chartier observa:
Majoritariamente, a história das mentalidades construiu-se, pois, ao aplicar a
novos objetos o princípio de inteligibilidade previamente provados na história das
economias e das sociedades. Por isso, suas características específicas: a
13
VAINFAS, R. (org.) . História das Mentalidades e História Cultural. In: Domínios da História Rio de
Janeiro: Campus, 1997, p.134.
Introdução
8
preferência pelo maior número, portanto `a pesquisa da cultura tida como popular,
a confiança no número e na série, o gosto pela longa duração, o primado conferido
ao recorte sócio-profissional.
14
A partir de 1980, a história das mentalidades entra em desgaste, recebe críticas
contundentes, tanto “de fora”, daqueles que rejeitavam o tema das mentalidades, quanto “de
dentro” seus próprios historiadores. A exemplo, Michel Vovelle que fez restrições a
concepção tempo de longa duração, apontando para necessidade de “compartilhar a curta
com a longa duração”. Com todas as críticas, a história das mentalidades acabou sendo
“abalada” e seus historiadores refugiaram-se em novos campos como: “história de Gênero”,
“história da sexualidade”, “micro-história” etc. Todavia, o grande refúgio das mentalidades
foi a História Cultural.
E para entender a pluralidade da Nova História Cultural, o historiador Ronaldo
Vainfas aponta três características, sendo elas: a recusa do conceito vago de mentalidade; a
preocupação com o popular; e a valorização das estratificações e dos conflitos
socioculturais como objeto de investigação. Ao lado disso, mencionou três historiadores
que tratam de maneiras distintas a história da cultura, sendo eles: Carlos Ginzburg
historiador italiano, notadamente pelas suas noções de cultura popular e de circularidade
cultural, presentes quer em trabalhos de reflexão teórica, quer nas suas pesquisas sobre
religiosidade, feitiçaria e heresia na Europa quinhentista. Roger Chartier, historiador
francês, e seus conceitos de representação e apropriação presentes em seus estudos sobre
“leituras e leitores na França do Antigo Regime”, e por fim, Edward Thompson historiador
inglês, especialmente sua obra sobre movimentos sociais e cotidiano das “classes
populares” na Inglaterra do século XVIII.
Após essa trajetória, que culminou na História Cultural, cabe elencar alguns olhares
que ela vem recebendo, sobretudo dos historiadores que atuam no campo interdisciplinar,
como Sandra Pesavento em Indagações sobre a História Cultural, ao discutir os níveis
epistemológicos de método e objeto da História Cultural:
(...) A nova história cultural pressupõe abertura à interdisciplinaridade e à
comunicabilidade entre os diferentes discursos que falam do real; pelo seu lado
14
CHARTIER, R. O Mundo como Representação. Estudos Avançados. São Paulo: USP, 5(11) Jan/abr.
1994. P. 175.
Introdução
9
divisa, ela preserva o lugar da história como o campo a partir do qual se
estabelece a pergunta e se constrói o objeto, problematizando-a.
15
Quando a História incorpora novos objetos: “pintura, arquitetura, desenho, filme,
televisão”, o historiador passa a atuar no que Sandra Pesavento definiu de “territórios de
fronteiras”, estabelecido pela especificidade de cada objeto. Nesse sentido, a autora recorre
ao enfoque epistemológico da “representação” e à função da História e do historiador
atuando nesses novos campos:
No bojo destes questionamentos que cercam os novos objetos delimitados pelo
conceito da representação, coloca-se a outra dimensão da fronteira: a de que o
historiador, no domínio destes novos campos, não deixam de firmar as suas
fronteiras, delimitando que as questões que se formulam ao objeto são enunciadas
a partir da História.
16
Nesse sentido, a História delimita suas fronteiras ao formular questões ao seu
objeto, que foi selecionado e escolhido pelo historiador, que, por sua vez, diz “respeito à
inserção histórica do historiador no mundo”.
A respeito da operação historiográfica, Michel de Certeau também observa que o
historiador, ao selecionar suas fontes, fazer sua pesquisa e realizar sua escrita, também
segue critérios próprios desta operação:
Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir de transformar em
“documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição
cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais
documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos
mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em
“isolar” um corpo, como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para
construí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori.
Ele forma a “coleção”. Constitui as coisas em um sistema marginal, como diz Jean
Baudrillard, ele as exila da prática para estabelecer como objetos “abstratos” de
um saber. Longe de aceitar os “dados”, ele os constitui. O material é criado por
ações combinadas, que recortam o universo do uso, que vão procurá-lo também
fora da fronteira do uso, e que destinam a um reemprego coerente. E o vestígio dos
atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social. Instauradora de
signos, expostos a tratamentos específicos, esta ruptura não é, pois, nem apenas
nem primordialmente, o efeito de um “olhar”. É necessário uma operação
15
PESAVENTO, S. J. Indagações sobre a História Cultural. In: Artcultura. Uberlândia-MG, vol. 3, n. 3,
Dezembro de 2001, p.10.
16
Ibidem, p. 13.
Introdução
10
técnica.
17
O historiador Roger Chartier também realiza reflexões nesse sentido, alertando para
importância da reconquista do conceito de representação, formulado por ele, e que é muito
caro aos historiadores da cultura. Esse conceito permite designar e ligar três realidades
maiores:
Primeiro, as representações coletivas que incorporam no indivíduo as divisões do
mundo social e estruturam os esquemas de percepção e apreciação a partir dos quais
estes classificam julgam e agem; em seguida, as formas de exibição do ser social ou
do poder político tais como as revelam os signos e ‘performances simbólicas’ através
da imagem, do rito ou daquilo que Weber chamava de ‘estilização da vida’;
finalmente, a ‘presentificação’ em um representante (individual ou coletivo) de uma
identidade ou poder, dotado assim de continuidade e estabilidade.
18
Em O Mundo como Representação, Roger Chartier trabalha com o sentido da
palavra representação, ou seja, “a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma
distinção clara entre o que representa e o que é representado.” Assim, a relação de
representação pode ser entendida como: “relação entre uma imagem presente e um objeto
ausente, um valendo pelo outro porque lhe é homólogo.” Em A História Cultural entre
Práticas e Representações, Chartier desenvolve o conceito de representação numa obra
composta entre (1982-1988), em que diz buscar uma resposta à insatisfação sentida frente à
História Cultura no período de 1960 à 1970, que a História Cultural era entendida como
“dupla vertente de História da Mentalidades e História Serial, quantitativa”. Assim, sua
obra parte do principal objeto da História Cultural, ou seja, “identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler”, ou seja, a maneira como as sociedades deixam sua marca no mundo.
A noção de “representação” permitiu um novo olhar dos historiadores que atuam no
terreno interdisciplinar, como História e Literatura, promovendo um avanço em termos
epistemológicos no campo historiográfico:
(...) A rigor, poder-se-ia dizer que as vinculações entre literatura e história
correspondem a uma abordagem bastante antiga. Mas, a nosso ver, a maior parte
dos trabalhos que dela se valem ou fazem uso recorrente da contextualização
histórica do discurso literário ou empregam a literatura como fonte alternativa
17
CERTEAU, M. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982. P. 81.
18
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. P. 108.
Introdução
11
para a construção do conhecimento histórico. Entendemos, contudo, que tanto uma
como outra prática não avançam em termos epistemológicos (...)
O entrecruzamento da literatura com a história, que permitisse superar este tipo de
abordagem, importaria no endosso de uma nova literatura, na qual fosse possível
pensar a história como literatura e a literatura como história. Cremos que o
patamar conceitual que torna possível este entrecruzamento e este novo olhar é
dado pela noção de “representação”.
19
(grifo nosso)
Nessa perspectiva, a historiadora Sandra Pesavento argumenta sobre a importância
da categoria de representação para as análises da história cultural, que tem como
pressuposto “o modo como, através do tempo, em momentos e lugares diferentes, os
homens foram capazes de perceber a si próprios e ao mundo”, e assim construindo “sistema
idéias e imagens de representação coletiva e se atribuindo uma identidade.”
Além de ter recuperado o conceito (representação) que é a fundamental como
princípio teórico-metodológico para a história cultural, Chartier contínua legando à história
suas obras e suas idéias. A exemplo do balanço que realiza sobre os desafios enfrentados
pela história cultural em: A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas;
20
em que elabora
um diagnóstico sobre a história nos últimos anos e afirma que a História deparou-se com
“tempo de incertezas”, “epistemological crises”, “tournant critique”. Aponta como causa
desse “tempo de incertezas” duas declarações que suscitaram “reflexões coletivas”.
A primeira, feita pela revista dos annales em 1988, ao declarar:
Hoje, parece ter chegado o tempo das incertezas. A reclassificação das disciplinas
transforma a paisagem científica (...) os paradigmas dominantes, que se ia buscar
nos estruturalismos ou nos marxismos, assim como no uso da quatificação, perdem
sua capacidade estruturadora (...) A história, que havia baseado boa parte de seu
dinamismo em uma ambição federativa, não é poupada por essa crise nas ciências
sociais.
21
A Segunda declaração foi de David Harlan em 1989, que lançou uma discussão que
se prolonga até hoje: A volta da literatura mergulhou os estudos históricos numa extensa
crise epstemológica. Questionou nossa crença num passado fixo e determinável,
19
PESAVENTO, S.J. Contribuições da História e da Literatura para a Construção do Cidadão: A Abordagem
da Identidade Nacional. In: LEENHARDT, J. ; PESAVENTO, S. J. (Orgs) Discurso Histórico e Narrativa
Literária. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1998. P. 19.
20
CHARTIER, R. A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: CPDOC, v. 7, n. 13, 1994. pp. 97-113.
21
Ibidem, p. 100
Introdução
12
comprometeu a possibilidade de representação histórica e minou nossa capacidade de nos
localizar no tempo.
22
Tendo suas certezas abaladas, a História defrontou com vários desafios, como a
ameaça de romper qualquer laço da História com as Ciências Sociais. Para Chartier, quem
lançou essa “ameaça” foi um movimento norte americano chamado linguistic turn, assim
definido:
Toma a linguagem como sistema fechado de signos, cujas relações possuem por si
só significações, onde a realidade não deve ser pensada como referência objetiva,
exterior ao discurso, pois ela é construída pela e dentro da linguagem.
23
Em síntese, esse movimento defende a idéia de que a História, por pertencer ao
gênero da narrativa, é ficção, não trazendo mais ou menos conhecimento do que a literatura
e o mito. As críticas de Hayden White são as que mais repercutem atualmente mais do
que quando foram proferidas na década de 1970. Em O Texto Histórico como Artefato
Literário (1974), White lança questões aos historiadores, entre as quais, podem ser
ressaltadas: Quais são as formas possíveis de representação histórica e quais as suas
bases? Que autoridade podem os relatos históricos reivindicar como contribuições a um
conhecimento seguro da realidade em geral e as ciências humanas em particular?
24
Lançadas essas questões, White remete-se à “narrativa histórica”: considerada
exclusivamente como um artefato verbal que pretende ser um modelo de estruturas e
processos há muito decorridos e, portando não-sujeitos a controles experimentais ou
observacionais.
25
Chama atenção para o fato de ser um problema que os historiadores e
filósofos não encaram com muita seriedade.
22
Ibidem, p. 101
Chartier observa que esse diagnóstico é paradoxal, pois o movimento editorial tem demonstrado uma
vitalidade incrível e uma inventividade renovada, grandes obras coletivas foram publicadas e traduções
importantes foram feitas em várias línguas. Seguindo seu raciocínio, é válido pensar que essa falta de
“parâmetros” historiográficos aguçou a capacidade inventiva dos historiadores.
23
Ibidem, p. 104. Chartier aprofunda esta questão em outro artigo: La historia entre representación y
construción, onde dialoga com Hyden White.
24
WHITE, H. O Texto Histórico como Artefato Literário. In: Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a
Crítica da Cultura. São Paulo: EDUSP, 1994. P. 98.
25
Ibidem, p. 98.
Introdução
13
Para sua crítica, White recorre ao que denominou de “urdidura de enredo” para
afirmar que as histórias conseguem “efeito explicativo”, porque têm êxito em criar histórias
partindo de “simples crônicas”. Assim, a forma como uma “urdidura” é criada depende do
ponto de vista do historiador, podendo uma situação histórica ser trágica, cômica, irônica
ou romântica:
O modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada depende
da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo como
o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido
particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, vale dizer, criadora
de ficção. E chamá-la assim não deprecia de forma alguma o status das narrativas
históricas como fornecedores de um tipo de conhecimento.
26
Tendo esses pressupostos, Hayden White compara história à literatura, pois a
história tem seu “interesse mais no ‘real’ que no ‘possível’”, o que é também
“supostamente o objeto de representação da obras ‘literárias’”, e é mais incisivo ao afirmar
que”: os documentos históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo
crítico literário.
27
Após inserir a escrita da história no gênero da narrativa e associar seus objetos aos
da literatura, White parte para a relação entre “história” e “ficção”, ou seja, o elemento
ficcional, que é inerente a todas as narrativas históricas:
(...) Sei que essa insistência sobre o elemento ficcional de todas as narrativas
históricas desperta com certeza a ira dos historiadores que acreditam estar fazendo
algo fundamentalmente diferente do romancista, visto se ocuparem dos
acontecimentos “reais”, enquanto o romancista se ocupa dos eventos
“imaginados”. (...) Na realidade, a história o mundo real ao longo de sua
evolução no tempo adquire sentido da mesma forma que o poeta ou o romancista
tentam provê-lo de sentido. (...) Não importa se o mundo é concebido como real ou
apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma.
28
Por fim, White conclui dizendo que “a história enquanto disciplina vai mal
atualmente porque perdeu de vista as suas origens na imaginação literária”.
Inseridos neste diálogo com Hayden White, estão vários historiadores entre eles
26
Ibidem, p. 102.
27
Ibidem, p. 106.
28
Ibidem, p. 115.
Introdução
14
Roger Chartier, que é incisivo ao afirmar que a história tem suas operações específicas,
como a construção e o tratamento dos dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de
resultados, validação entre o discurso do conhecimento e seu objeto. Mesmo a história
pertencendo ao gênero da narrativa, para ele, o historiador não faz ficção. Em La Historia
entre Representación y Construción, Chartier recorre a Paul Ricoeur e responde a Hayden
White:
Es porqué me parece necesario recordar con Ricoeur que el objetivo de un
conocimiento específico es constitutivo de la intencionalidad histórica misma.
Haciendo referencia a la obra de White, escribe: “Una cierta arbitrariedade
tropológica no nos debe hacer olvidar el tipo de construción que el pasado ejerció
sobre el discurso histórico mediante los documentos conocidos, al demandarle una
rectificación sin fin”. La intencionalidad referencial de la historia fundamenta las
operaciones técnicas de la disciplina: elecciones de fuentes, construcción de datos,
produción de hipotésis, crítica y verificación de resultados. Aun si escribe en forma
“leteraria”, el historiador no hace “literatura”, y ello a partir del hecho de su
doble dependencia. Dependencia en relación con el archivo, por tanto en relación
con el pasado del cual éste es la huella.
29
Para firmar o pertencimento da História às “ciências sociais”, Chartier ancora-se no
sociólogo Norbert Elias, chamado para o fato do seu trabalho permitir articular duas
significações, que os historiadores sempre embaralham no uso do termo cultura:
A primeira designa as obras e os gestos que, em uma sociedade, estão ligados ao
julgamento estético ou intelectual. A segunda refere-se às práticas ordinárias, ‘sem
qualidade’, que tecem a trama das relações quotidianas e exprimem a maneira
como uma comunidade, em um determinado tempo e lugar, vive e reflete sua
relação com o mundo e a História.
30
Chartier ainda enfatiza que, para pensar historicamente as formas e as práticas
culturais, faz-se necessário elucidar as relações alimentadas por essas duas definições.
Nesse sentido, também direciona para questão das obras não terem aspecto estável,
universal, serem congeladas, pois elas são investidas de significações plurais e móveis,
construída entre uma proposição e uma recepção (que também inventa, distorce, desloca).
Por fim, conclui expondo, não ser possível pensar o conhecimento histórico
instalado na “ordem do verdadeiro”, e que o caminho é estreito para os historiadores que se
29
CHATIER, R. La Historia entre Representación y Construción. In: Seminário Internacional Dimensões da
História Cultural. 1.: 1999: Anais. Belo Horizonte: Unicentro Newton Paiva, 1999. P. 97.
30
CHARTIER, R. História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. Op. Cit. p. 106-107.
Introdução
15
recusam à redução da história a uma atividade literária e à definição de cientificidade a
partir do modelo do conhecimento do mundo físico.
Nesse perspectiva, Chartier remete-se também a Michel de Certeau
31
, quando este
diz que a história é um discurso que aciona construções, composições figuras que são as
mesmas da narrativa, da ficção, mas é um discurso que produz enunciados científicos, “a
possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem ‘controlar’ operações
proporcionais a produção de objetos determinados”, convidando-nos a pensar o específico
da compreensão histórica, em que o historiador tem que oferecer um conhecimento
apropriado, controlado sobre a “população de mortos-personagens, mentalidades preços”
que são seu objeto.
Adotando uma perspectiva diferente da Chartier e Michel de Certeau, Carlo
Ginzburg também se insere nesse debate. Reconhece, assim como os demais historiadores,
que a escrita da história pertence ao gênero da narrativa e busca na literatura o conceito de
“estranhamento” para atribuir ao historiador sua função. Ao retroceder em busca desse
“conceito literário”, um dos exemplos que elege é o de Montaigne, quando narrou o
estranhamento de três índios brasileiros ao serem levados à França:
A surpresa dos índios brasileiros demostrava a que ponto a sociedade européia,
marcada pela desigualdade política e econômica, estava distante daquela que
Montaigne chamava de “ingenuidade original” (naiveté originelle). “Naif”,
nativus: o amor de Montaigne por essa palavra e sua respectiva aversão pela
artificialidade nos levam ao âmago da noção de estranhamento: compreender
menos, ser ingênuos, espantar-se, são reações que podem nos levar a enxergar
mais, a apreender algo mais profundo, mais próximo da natureza.
32
Após percorrer o conceito, Ginzburg lança como questão para o leitor, que ele, um
historiador, que trabalha com documentos e arquivos, estaria perdendo tempo com
“estranhamento e com conceitos semelhantes elaborados pelos teóricos da literatura?”, e
responde expondo o objetivo de seu estudo:
Parece-me que estranhamento é um antídoto eficaz contra um risco a que todos nós
estamos expostos: o de banalizar a realidade (inclusive nós mesmos). As
implicações antipositivistas dessa observação são óbvias. Mas ao salientar as
31
A esse respeito consultar: CERTEAU, M. “A operação historiográfica”. In: A Escrita da História. Rio de
Janeiro: Forense, 1982.
32
GINZBURG, C. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia da Letras,
2001. P. 29.
Introdução
16
implicações cognitivas do estranhamento, eu gostaria tamb ém de me opor com a
máxima clareza possível às teorias da moda que tendem esfumar, até torná-los
indistintos, os limites entre história e ficção. Essa confusão teria sido repelida pelo
próprio Proust. Quando dizia que a guerra pode ser contada como um romance,
Proust não pretendia de modo algum exaltar o romance histórico; ao contrário,
queria sugerir que tanto os historiadores como os romancistas (ou os pintores)
estão irmanados num fim cognitivo. É um ponto de vista que compartilho
plenamente.
33
Assim, Ginzburg recorreu a um literato Marcel Proust para conceber a
especificidade do conhecimento histórico, em que um determinado acontecimento pode
receber diferentes olhares e diversas formas de ser apreendido, tanto pela arte, quanto pela
História.
Nesse debate, em que surge a questão: “qual a fronteira entre história e ficção?”
Peter Gay conclui que: “a história é um arte boa parte do tempo, e é uma arte por ser um
ramo da literatura”, e sobre a narrativa histórica afirma: “a narrativa histórica sem análise é
trivial, a análise histórica sem a narrativa é incompleta”. Quanto à ficção reconhece que ela
pode oferecer a veracidade dos detalhes e que os romancistas e poetas não são estranhos à
pesquisa, todavia “a verdade é um instrumento opcional da ficção, não sua finalidade
essencial”.
Assim, Peter Gay insere uma discussão entre arte e ciência - entre as musas Clio da
ciências e Calíope da poesia. Partindo do “estilo” na escrita, que é comum e essencial tanto
para ficção como para história, prossegue:
(...) O estilo não é uma roupagem do pensamento, e sim parte de sua essência.
Afinal é significativo que, embora a história, no decorrer dos séculos, tenha muita
vezes trocado de parceiro e desafiado a maioria de seus mestres, ela nunca
renunciou a profícua afeição pela literatura. Parece um pouco tarde para romper
essa ligação que persistiu tanto tempo e tem sido tão agradável para a duas
companheiras.
34
Ao lado disso, suscita o questionamento: “se a história é muita vezes uma arte, que
tipo de arte ela é?” Do ponto de vista da técnica estilística, ele conclui que história e
literatura recorrem aos mesmos recursos para “expressar suas verdades”. Contudo, (...) o
que não se requer da arte é o que se requer da história: descobrir, por chocante que seja a
33
Ibidem, p. 41.
34
GAY, P. O Estilo na História na História: Gibbon, Ranke, Macaulay e Burckhardt. Op. Cit. P. 171.
Introdução
17
descoberta, como era o velho universo, ao invés de inventar um novo. A diferença é
simplesmente decisiva.
35
Para esse historiador, estabelecer a distinção entre as “verdades da ficção e as
verdades da história” ajuda a compreender que tipo de arte “que é, ou pode ser, a história”,
ressaltando o compromisso que o historiador tem com a verdade.
Se história é uma arte “parte do tempo” por recorrer a um ramo da literatura, então,
“que tipo de ciência que ela é?” Peter Gay recorre ao fato da história estar sempre em busca
do “verificável”, ou em outras palavras, da “testagem”:
O que faz de uma ciência ciência é sua incessante pressão pela objetividade e suas
proposições verificáveis; o que a define não é sua capacidade de criar leis, mas
suas fundamentação em leis ao apresentar suas explicações, leis estas, que na
verdade, podem ser tomadas de empréstimo a outras disciplinas como, na
história, são tomadas principalmente da psicologia. Em todas essas características
definidoras, a história é quase uma ciência. Para empregar a expressão de
Lévi-Strauss, ela é uma ciência do concreto.
36
Assim, segundo as considerações de Peter Gay, pode-se concluir que a história é
arte, e ao mesmo tempo ciência, contudo o que torna “especial a ciência do historiador” é a
sua “própria maneira de dizer a verdade”, ou seja, “o estilo é a arte da ciência do
historiador”, a exemplo de Burckhardt com o seu “estilo”, que o tornou “o poeta da
história” e sua obra um paradigma para a história cultural.
Sobre essa crise dos paradigmas e sobre a presença da ficcionalidade no discurso
histórico, a historiadora Sandra Pesavento também é incisiva ao afirmar:
Estaríamos, pois, diante da presença da ficcionalidade no domínio do discurso
histórico, assim como da imaginação na tarefa do historiador. Não há dúvida de
que o critério de veracidade não foi abandonado pela história, assim como seu
método impõe limites ao componente imaginário. O historiador continua tendo
compromisso com as evidências na sua tarefa de reconstruir o real, e seu trabalho
sofre o crivo da testagem e da comprovação, mas a leitura que faz de uma época é
um olhar entre os possíveis de serem realizados.
37
Não cabe dúvidas da importância das questões suscitadas por Hayden White,
35
Ibidem, p. 175.
36
Ibidem, 193.
37
PESAVENTO, S.J. Contribuições da História e da Literatura para a Construção do Cidadão: A Abordagem
da Identidade Nacional. Op. Cit. P. 21.
Introdução
18
contudo, apesar dos historiadores reconheceram que a escrita da história pertence a um
gênero da narrativa, por outro lado, as reflexões suscitadas mostraram que a história tem
um “compromisso com verdade” e suas técnicas de escrita são colocadas à prova, como a
recorrência a “notas’” que tornam o ofício do historiador susceptível de comprovação.
Tendo essas referências, tornou-se possível ampliar a concepção de documento,
levando o historiador a dialogar com outras áreas do conhecimento, como a literatura -
enfrentando-a como fonte, como representação
38
de um determinado momento histórico.
Assim, ao pensar em Quarup, um romance engajado da década de 1960, como uma
obra capaz de remeter-nos às representações de uma determinada época da História de
nosso país, é necessário, a princípio, ter em mente a relação entre História e Literatura, a
relação metodológica que diferencia essas duas áreas do conhecimento, pois a arte é para o
historiador um documento, e o documento só lhe diz alguma coisa quando ele pergunta,
interroga, questiona e estabelece o diálogo com momento de sua produção. Nesse forma,
Sidney Chalhoub afirma:
A proposta é historicizar a obra literária seja ela conto, crônica, poesia ou
romance -, no movimento da sociedade, investigar suas redes de interlocução
social (...) Em suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências,
sem reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório
sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para o historiadores a literatura
é, enfim, testemunho histórico.
39
Dentre os inúmeros historiadores que recorreram à literatura como objeto de
pesquisa, está Nicolau Sevcenko, que constrói sua análise sobre as tensões sociais e a crise
na Primeira República, com base nas representações contidas nos textos literários de Lima
Barreto e Euclides da Cunha:
A leitura dos seus textos literários nos levou a perscrutar o seu cotidiano,
familiarizando-nos com o meio social em que conviviam: a cidade do Rio de
Janeiro no limiar do século XX. As posturas, as ênfases, as críticas presentes nas
obras nos serviram como guias de referência para compreendermos e analisarmos
as suas tendências mais marcantes, seus níveis de enquadramentos sociais e sua
escala de valores. (...) Dessa forma, os textos narrativos nos ajudaram a iluminar a
38
A perspectiva de entender a obra literária como “representação” de um determinado momento histórico,
ancora-se no conceito de representação, apresentado por Roger Chartier.
39
CHALHOUB, S.; PEREIRA, L. A. M. Apresentação. In: CHALHOUB, S.; PEREIRA, L. A. M. (Orgs) A
História Contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998, p.7
Introdução
19
realidade que lhes era imediatamente subjacente, e o conhecimento desta
contribuiu para deslindar os interstícios da produção artística.
40
Para Nicolau Sevcenko, a literatura “fala ao historiador sobre o que não aconteceu,
sobre as possibilidades que não vingaram”, é o testemunho dos homens que “foram
vencidos pelos fatos”, é, portanto, pensar numa história dos desejos não consumados, dos
possíveis não realizados, das idéias não consumidas. Seguindo este raciocínio, ele afirma:
este é o caminho pelo qual a literatura se presta como um índice admirável, e em certos
momentos mesmo privilegiado, para o estudo da história social.
41
Os estudos de Sandra Jathay Pesavento, também estão entre as obras que utilizam a
literatura como “representações possíveis de acessar o passado”, assim, ela chama atenção
para a função da literatura para o historiador:
O historiador busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de literatura
cria um enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, ambas as
representações são plausíveis e tratam de convencer o leitor e transportá-lo a um
outro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstrar que a sua versão não
é apenas “poderia ter sido”, mas “efetivamente foi”. Sendo ambas representações
do real, a história tem a tendência de utilizar, por vezes, a obra literária como uma
“fonte a mais”. Nossa idéia é de que a literatura não pode ser entendida como uma
“fonte a mais”, mas justamente como a fonte que pode dar aquele “algo mais” que
os documentos comumente usados pela história não fornecem. Referimo-nos ao que
se poderia chamar as sensibilidades ou a “sintonia fina” de uma época, as
características essenciais que estariam na raiz dos modos de pensar, sentir, agir e,
sobretudo, de representar o mundo.
42
Ao mesmo tempo, volta-se para a especificidade do texto literário, uma vez que:
não é intenção do texto literário provar que os fatos narrados tenham acontecido
concretamente, mas a narrativa comporta em si uma explicação do real e traduz uma
sensibilidade diante do mundo, recuperada pelo autor.
43
40
SEVCENKO, N. Literatura como Missão: tensões sociais e criação da cultural na Primeira República.
4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.21.
41
Ibidem, p. 22.
42
PESAVENTO, S. J. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano Paris, Rio de Janeiro,
Porto Alegre. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRS, 2002. P. 13.
43
PESAVENTO, S.J. Contribuições da História e da Literatura para a Construção do Cidadão: A Abordagem
da Identidade Nacional. Op. Cit. P. 22.
Introdução
20
Dentre os historiadores que voltaram o olhar para o binômio História e Literatura,
está Roger Chartier em uma obra recente, Cultura Escrita, Literatura e História, em que
percorre várias etapas dessas relações, algumas essenciais para este estudo, como o
processo de fabricação do livro: (...) o fato de que o texto do autor não pode chegar a seu
leitor senão quando as muitas decisões e operações lhe deram forma de livro. Não dá para
esquecer isto ao lê-lo.
44
A obra também traz significações, imbuídas em “todo um processo
que resulta em um texto difundido, disseminado, acessível, legível”. Outro dado importante
refere-se à questão livro e à leitura, em que Chartier enfoca a “materialidade do texto e a
corporeidade do leitor”, isto é, (...) não só como uma coporeidade física (porque ler é fazer
gestos), mas também como uma corporeidade sociocultural construída.),
45
ou seja, o leitor
carrega toda a sua subjetividade, e seus referenciais social e culturalmente construídos, e
isto é um elemento na leitura de um texto.
Na relação que é primordial para estudos interdisciplinares, Chartier reflete sobre “o
historiador e a literatura”, partindo do princípio de que o livro é dotado de formas materiais:
“seu formato, sua tipografia, a presença de imagens, sua encadernação”, essas formas são
elementos que dão a “dimensão reflexiva de representação”. Ao lado disso, Chartier rompe
com o conceito de autor e obra “abstrato, invariável e universal”, tendo como motivo o fato
de: (...) os lugares sociais e instituições nas quais os autores produzem obras são muito
variáveis (o mecenato, a corte, a universidade, as academias, o mercado, os meios de
comunicação, etc.)
46
Quanto ao leitor e à forma do historiador ler a obra literária, observa
que existem várias maneiras de ler, e isto supõe que cada comunidade tenha seus “sistemas
de classificação dos gêneros”, que são diferentes dos nossos, mas que permitem a distinção
entre “ficção e verdade”. Estes são elementos que, para Chartier, podem restabelecer uma
leitura histórica da obra literária:
Estes elementos parecem indicar vários dos termos dignos de atenção para
restabelecer uma leitura histórica das obras literárias que não destrua sua
condição literária. Porque há historiadores que se interessam em fazer leituras das
obras literárias, mas freqüentemente sem sucesso, pois as liam como se fossem um
documento singular que ilustrava os resultados ou que corroborava o que as fontes
44
CHARTIER, R. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001. P. X.
45
Ibidem, p. 32.
46
Ibidem, p. 89.
Introdução
21
e as técnicas clássicas da história tinham mostrado. Assim, é uma leitura redutiva,
puramente documental e que destrói o próprio interesse de se confrontar com a
literatura. Para concluir, talvez possamos estabelecer estes dois temas de discussão
tendo em vista estarem vinculados. Por um lado, o retorno da história sobre si
mesma, pensando em sua dimensão literária; por outro, a literatura como objeto
possível ou necessário da investigação histórica. Estas duas correntes, que talvez
se desenvolvam de modo separado, confluem agora na pergunta sobre o estatuto da
história, que sempre se vincula a fórmulas literária, e com o enfoque histórico que
faz pensar que é possível produzir uma inteligibilidade mais densa, mais complexa
e mais ricas das obras literárias.
47
Nesse sentido, Chartier aponta para um novo olhar do historiador sobre a obra
literária, como um objeto “possível e necessário para investigação histórica”. Essa nova
maneira de ler e pensar a literatura como um conjunto mais amplo que engloba desde a
confecção do livro, passando pelo editor, pelo processo de criação do autor -que tem seus
referenciais socioculturalmente construídos - assim como o leitor, entre outros elementos,
possibilita conceber a relação interdisciplinar, que, segundo Chartier, foi viabilizada pelo
retorno da “história sobre si mesma” (não o retorno ao gênero da narrativa, porque a
história sempre foi narrativa e não há como retornar o que nunca partiu) Chartier refere-se
ao debate atual sobre “história e ficção”, sobre o “compromisso do historiador com
verdade”, sobre a “ampliação da noção de documento histórico”, ou seja, as bases da
história cultural.
Assim, ancorando nessas referência e considerações suscitadas pelos historiadores
da História Cultural, este trabalho foi dividido em três capítulos: o primeiro capítulo,
QUARUP À LUZ DOS IMPASSES POLÍTICOS E ESTÉTICOS DOS ANOS DE 1960,
apresenta a trajetória do homem/escritor Antônio Callado, suas influências e os referenciais
que o inspiraram na criação do romance Quarup. Em seguida, circunstancia minimamente
os romances engajados de Callado que sucederam Quarup, sendo eles: Bar Don Juan
(1971), Reflexos do Baile (1976) e Sempreviva (1981). Por fim, contextualiza a década de
1960 a partir da História de Pernambuco, no período de governo de Miguel Arraes, que
agregou importantes movimentos sociais como Movimento de Cultura Popular MCP -,
Ligas Camponesas e os Sindicatos Rurais. A opção por este caminho surgiu com as leituras
das obras de reportagem de Callado, em que ele transmite a expectativa do ideal de
democracia, ou como ele denominou a “revolução piloto” que acontecia em Pernambuco.
47
Ibidem, p. 91.
Introdução
22
O segundo capítulo, A BUSCA DO BRASIL NO PERCURSO DO HERÓI, é
dedicado ao romance Quarup, a princípio são apresentada a estrutura do romance e as
categorias literárias as quais pertence, posteriormente, os caminhos percorridos pelo
personagem central Nando. A trajetória de Nando, bem como a composição dos
personagens que dele se aproximam, é imprescindível para a apreensão dos referenciais que
Callado incorporou na construção de seu romance, uma vez que Quarup tornou-se uma
obra de referência para a literatura engajada de 1960.
O terceiro capítulo, QUARUP: REPERCUSSÕES LITERÁRIAS E
HISTORIOGRÁFICAS, consiste num balaço historiográfico das obras já produzidas sobre
o romance, tendo em vista suscitar os olhares que Quarup recebeu, e quais os temas de seu
enredo foram privilegiados. As obras presentes neste capítulo fazem parte de um conjunto
que possibilita entender por que Quarup, ao longo de seus trinta e seis anos de publicação,
tornou-se uma obra freqüentemente visitada.
A partir da composição destes três capítulos, serão apresentadas na CONCLUSÃO
algumas reflexões, do que esta leitura e pesquisa conseguiram alcançar.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
24
Quanto a mim, ainda que pudesse ou sentisse possibilidade
de fazer uma obra literária inteiramente abstrata, jamais
conseguiria ir contra minha natureza: preciso, sempre,
exprimir alguma coisa.
Antônio Callado
Na literatura engajada da década de 1960 principalmente a iniciada a partir do
golpe militar de 1964 , assim como o teatro, o cinema, a música e as artes plásticas,
estética e política caminharam juntas como instrumento de combate e denúncia à repressão,
à censura e ao autoritarismo instalados pelo Governo Militar. A geração de escritores que a
representava, foi definida de inúmeras maneiras. Antônio Cândido a denominava de
“geração da repressão”, e Lígia Chiappini, de “geração da representação”. “Representação”
porque assumem a tarefa de dar conta dos fatos que a imprensa censurada não pode
narrar e que só a literatura parecia poder salvar do esquecimento.
1
Entre esses artistas engajados, estava Dias Gomes, que, em 1968, definiu as obras
engajadas pelo conhecimento que trazem da realidade brasileira (e conhecer uma
realidade é denunciá-la com seus erros e injustiças) é, queiram ou não, engajada. Quanto
ao artista engajado, ele o descreve como:
O artista engajado exerce a liberdade sob forma de libertação contínua. E a exerce
de uma maneira integral, como artista e como homem, já que o homem pode existir
sem o artista, mas o artista jamais pode abdicar de sua qualidade e sua experiência
humanas. (...) É êsse engajamento (que não importa, necessáriamente, na
militância política, no ingresso em uma agremiação partidária ou em qualquer
agrupamento revolucionário), que define o verdadeiro intelectual dos nossos dias.
2
Outros estudos também se dedicaram à compreensão da arte engajada de forma mais
abrangente, como o de Benoît Denis:
Tratando-se de literatos e de literatura, percebe-se imediatamente que o que está
em causa no engajamento é fundamentalmente as relações entre o literário e o
1
LEITE, L. C. Ficção, Cidade e Violência no Brasil Pós-64: Aspectos da História Recente Narrada pela
Ficção. In: LEENHARDT, J.; PESAVENTO, S. J. (Orgs) Discurso Histórico e Narrativa Literária.
Campinas SP: Editora da UNICAMP, 1998. p. 203. Dentre os inúmeros autores desse período, a autora
destacou: Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, João Antônio, José Louzeiro, Renato Tapajós, Rubem
Fonseca, Antônio Torres, entre outros.
2
GOMES, D. O Engajamento é uma Prática de Liberdade. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro,
Caderno Especial n. 2, julho de 1968, p. 15-17.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
25
social, quer dizer, a função que a sociedade atribui à literatura e o papel que esta
última admite aí representar. No sentido escrito, o escritor engajado é aquele que
assumiu, explicitamente, uma série de compromissos com relação a coletividade,
que ligou-se de alguma forma a ela por uma promessa e que joga nessa partida a
sua credibilidade e sua reputação.
3
Inserido nessa arte de resistência ao pós-golpe, está Quarup, publicado em 1967 e
escrito durante os dois anos anteriores, durante os quais, Antônio Callado afastou-se da
atividade jornalística para dedicar-se inteiramente ao seu terceiro romance. No que se refere
ao conteúdo dessa obra, Callado admite: eu quis fazer um livro que considero o Brasil do
meu tempo.
4
As representações político-sociais e culturais “de seu tempo” foram internalizadas
por Antônio Callado em sua ficção por meio do verossímil.
5
Obteve êxito no seu desejo de
construir uma obra em sintonia com o seu momento histórico, pois Quarup está ao lado de
“várias obras engajadas”,
6
que marcaram a “cultura de oposição” e a resistência
democrática dos anos de 1960.
3
DENIS, B. Literatura e Engajamento: de pascal a Sartre. São Paulo: EDUSC, 2002. p. 31.
4
CALLADO, A. Entrevistas com Antônio Ca llado. In: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira:
Artes Plásticas e Literatura. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 236. Entrevista concedida a Lígia
Chiappini Moraes Leite.
5
O termo verossímil pode ser encontrado em qualquer dicionário da língua portuguesa para designar algo:
“semelhante a verdade”, “que parece verdadeiro”, “provável”. A literatura não foge ao termo, a
verossimilhança é algo que “não aconteceu”, mas que “poderia ter acontecido”. Aristóteles é tido como o
primeiro a utilizar o conceito de verossimilhança: (...) não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o
de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a
necessidade. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992. Tradução: Eudoro de Souza. p. 53.
6
A exemplo do ano de 1967, que foi de grandes resultados para a arte engajada, surgiram obras que se
destacaram no cenário nacional, como o romance Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony; no teatro, o
Grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa, montou O Rei da Vela (1937) de Oswald de
Andrade, e José Celso também dirigiu Roda Viva de Chico Buarque do Holanda; no cinema, estreava Terra
em Transe de Glauber Rocha; na música popular brasileira, destacaram-se Gilberto Gil com Domingo no
Parque em parceria com os Mutantes e Caetano Veloso com Alegria, Alegria. Nas artes plásticas, houve uma
exposição coletiva no Museu de Arte Moderna MAM do Rio de Janeiro Nova Objetividade Brasileira, entre
os expositores, estava Hélio Oiticica, que descreveu sua exposição como: Tropicália é uma espécie de
labirinto fechado, sem saída. Quando você entra, não tem nenhum teto e os espaços nos quais o espectador
circula estão cheios de elementos táteis. Conforme você penetra mais além, começa a ouvir sons que vêm de
fora, e de dentro também. E mais tarde se revelam como sendo sons de um aparelho de televisão que está
colocado no extremo fim dele. A estrutura fixa geométrica lembra casa joponesas mondrianescas, as imagens
táteis, o senso do tato, como pisar no chão, pois tem areia dentro de sacos, pedrinhas e tapete. Eu queria
neste penetrável fazer um exercício de imagens em todas as suas formas. OITICICA, H. Entrevista à
FUNARTE. 1977. Entrevista concedida a Jorge Guinle Filho. APUD. ZILIO, C. DA Antropofagia à
Tropicália. In. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. Op. Cit.Outras obras engajadas destacaram-
se nos períodos que antecederam e sucederam 1967, entre elas, merecem destaque as peças Moço em Estado
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
26
Contudo, em se tratando de arte, é preciso ressaltar que não somente a arte engajada
é política. Nesse sentido, Dias Gomes (1967), em O Engajamento é uma prática de
Liberdade, diz:
Claro que podemos generalizar, em qualquer arte o artista escolhe seu tema. E, no
mundo de hoje, escolher é participar. Tôda escolha importa em tomar um partido,
mesmo quando se pretende uma posição neutra, abstratamente fora dos problemas
em jôgo, pois o apolitismo é uma forma de participação pela omissão. Pois esta
favorece o mais forte ajudando a manter o status quo. Tôda arte é, portanto,
política.
7
(grifo nosso)
Toda “arte é política”, mas a arte engajada serve a uma causa, é uma arte de
denúncia, de crítica e de combate às estruturas. Como afirmou Dias Gomes, “escolher é
participar”, isto implica, o engajamento como uma forma de participação política.
Ao lado dessas considerações, não se pode negar que Quarup é um divisor de águas
na produção romanesca de Antônio Callado, o início de sua fase engajada. Se, antes do
golpe militar de 1964, seu engajamento e sua militância eram visíveis em sua atividade
jornalística, em 1967, quando surgiu Quarup, sua ficção tomou uma dimensão
extraordinária. Quarup tornou-se fruto da desilusão e da decepção de um “mundo” que
Callado viu ruir, de projetos democráticos que foram soterrados.
Quarup é a representação do país que Callado vivia, na efervescência de um regime
autoritário, portanto, é preciso saber qual era esse país que o inspirou na construção de sua
obra. Entretanto, em se tratando de contextualizar, cabem ressalvas, pois a proposta é
de Sítio (1965) e A Mão na Luva (1966) de Oduvaldo Vianna Filho, segundo a Historiadora Rosangela
Patriota, estas obras têm uma proximidade temática e dramática por enfocarem o conflitos políticos e estéticos
vividos pela intelectualidade de esquerda logo após o golpe de 1964. Nessa proximidade temática, está
também o filme O Desafio (1965 de Paulo César Sarraceni) protagonizado por Vianinha, sobre O Desafio: “a
fita ambienta-se logo depois dos acontecimentos militares de abril de 1964, e a personagem central, Marcelo
(Oduvaldo Vianna Filho), é um jornalista. Marcelo, sem Ter tido uma atuação política específica, deve ter
vivido intensamente a onda desenvolvimentista do início dos anos 60, deve ter acreditado plenamente na
renovação do país e na força do chamado movimento de esquerda, que não tinha bases e foi desbaratado em
1964. (...)” BERNARDET, J. C. Brasil em Tempo de Cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. APUD:
PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 114. Nesse
sentido, Ismail Xavier também posicion-se sobre O Desafio: “primeiro da série, resposta quase imediata ao
momento da queda, O Desafio trabalha o dissabor, a fossa a mescla da apatia e do incorformismo de um
intelectual para quem a crise deflagra a culpa e contamina tudo; qualquer gesto ou sentimento se projeta, de
imediato na dimensão histórico-política da existência. XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. São
Paulo: Brasiliense, 1993. p. 17
7
GOMES, D. O Engajamento é uma Prática de Liberdade. Op. Cit. p. 10.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
27
elucidar alguns movimentos políticos e culturais relevantes para o entendimento da criação
e da recepção de Quarup e para a leitura que será realizada neste estudo. Nesse sentido, o
historiador Alcides Freire Ramos adverte sobre o papel do historiador no desempenho desta
função:
Sabemos que aquilo que chamamos de real histórico, o que estaria a nossa
disposição para realizarmos o processo de contextualização não se apresenta como
um dado já pronto, disponível na prateleira, bastando esticar o braço para
alcança-lo e consultá-lo. Ao contrário, o processo de contextualização nada mais é
do que uma construção, uma operação intelectual, fruto do trabalho do próprio
historiador em contato com os documentos históricos, que muitas vezes se
apresentam sob forma de textos. O historiador, porém, pode, aqui e ali, utilizar da
obra de outros historiadores, buscando subsídios, confirmações, contrapontos etc.
(...) Contextualizar, portanto, é buscar estabelecer novas significações para o
objeto, analisando, justapondo, comparando ou contrapondo diferentes
documentos históricos. E tudo isso é, como sabemos há bastante tempo, o produto
de escolhas, muitas vezes arbitrárias. No entanto, não menos válidas
8
.
Ao lado disso, exigências metodológicas fazem-se necessárias nesse campo
interdisciplinar, como também alerta Nicolau Sevcenko:
A exigência metodológica que se faz, contudo, para que não se regrida a posições
reducionistas anteriores, é de que se preserve toda a riqueza estética e
comunicativa do texto literário, cuidando igualmente para que a produção
discursiva não perca o conjunto de significados condensados na dimensão social.
Afinal, todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma
vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou
sugeridos pela sua sociedade e seu tempo e é deste que eles falam.
9
Nessa perspectiva, as hipóteses que nortearão esta leitura partem da tríade: autor
(produção escrita), texto (produto) e leitor (leitura/recepção). Primeiro, é necessário
conhecer o autor: quem é Antônio Callado ? Em que tempo escreve? O que estudou? O que
leu? Viajou? Trabalhou? Que círculo freqüentou? De onde escreve? Qual a sua produção?
8
RAMOS, A. F. Canibalismo dos Fracos. Bauru, SP: EDUSC. 2002. p. 270.
9
SEVCENKO, N. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 20.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
28
1 - Antônio Callado e seu Brasil de Dentro para Fora.
Ele atravessou os anos de chumbo e encarou o chamados
anos débeis sem entregar a rapadura. Não escorregou nas
rampas do poder nem se atrelou aos elevadores do mercado.
Manteve-se sempre fiel a si mesmo, ao seu texto, às suas
idéias. O nome dele era Estilo.
Antônio Torres
Para o entendimento da narrativa de Antônio Callado, é preciso conhecer o escritor,
que exercia também a atividade de jornalista. Ao longo de inúmeras entrevistas, o “autor de
Quarup”, como ficou conhecido, deu mostras da sua formação religiosa e de sua postura
política, reconhecendo que ambas se refletiram na sua ficção e nos trabalhos jornalísticos.
As suas entrevistas possibilitam entendê-lo como: “um homem de seu tempo”, um
intelectual de esquerda.
Nascido em Niterói - RJ - (1917-1997), onde passou sua infância, era filho de
família de classe média e foi influenciado pela literatura desde cedo. O pai, Dario Callado,
médico e poeta parnasiano, tinha uma considerável biblioteca com obras brasileiras e
francesas. Nesse tempo, afirmou Callado: “qualquer pessoa de uma certa educação sabia
francês”. Foi na biblioteca de seu pai que leu os primeiros livros de poesia e começou suas
tentativas de ler em francês. Posteriormente, passou da leitura para “decisão de escrever
livros, literatura”, teve também influências do lado materno, sua mãe, Edite Pitanga
Callado, era filha de um desembargador magistral, um homem que viajou muito pelo país e
que gostava de estudar os índios, deixando trabalhos que não foram publicados.
Ao longo de sua vida, Callado recebeu outras influências, principalmente após ter
vivido na Europa, admitindo: eu diria que minha influência, do ponto de vista da técnica do
romance, é franco-inglesa,
10
por dominar tanto o inglês quanto o francês. Dizia que, entre
os franceses, não saberia quem o influenciou mais James Joyce ou Marcel Proust. Contudo
não poupava elogios aos grandes nomes de nossa literatura, talentos que admirava como
escritores e “pessoas fora de série”: Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice
10
Por fazer referência a sua influência obtida de escritores estrangeiras, sob o ponto de vista da técnica,
Callado justifica-se: eu digo a você do ponto de vista técnico, porque evidentemente você não aprende a
moderna técnica literária, em português, não? Nem em espanhol. Mesmo escritores, do ponto de vista
técnico, importantes, na América, como Cortazar, são escritores formados numa cultura estrangeira.
CALLADO, A. Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 260.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
29
Lispector.
11
Em sua última entrevista à Folha de São Paulo (1997), novamente surgiu a
pergunta, “quais são os escritores brasileiros importantes?” Callado respondeu: o Brasil tem
dois escritores de lascar, Machado e Guimarães Rosa. É pena que o Guimarães Rosa seja
tão difícil. Machado, não. Qualquer francês traduz o Machado. E você colhe aquele sumo
todo do Machado. O Rosa não. O Rosa é muito mais difícil de traduzir.
12
Quanto à família Callado, sua estabilidade financeira foi rompida com a doença do
pai, Dario Callado, que veio a falecer de tuberculose tornando-lhes a vida mais restrita. Por
isto, Antônio Callado começou a trabalhar cedo. Aos 17 anos, já publicava em jornais o que
denominou “alguma coisa de ficção”, estreando num jornal chamado A Notícia. Depois, em
1937, foi contratado como jornalista pelo Correio da Manhã, ano em que Getúlio Vargas
implantou o Estado Novo: tão logo entrei numa redação de jornal tive o primeiro contato
com a censura. Não era um regime militar como o que se instalou em 1964. Era uma
ditadura personalista, centrada na figura de Getúlio Vargas.
13
Mesmo trabalhando como jornalista, Callado formou-se em direito (1939), nesse
mesmo período, assinava uma coluna com o pseudônimo de Antony, em O Globo, e dois
anos depois (1941) partiu do Brasil, para trabalhar como correspondente na Rádio BBC de
Londres, convidado para cobrir a Segunda Guerra Mundial: Londres, naquela época, era o
centro da guerra. Eu ia visitar, como jornalista e escritor, o centro de uma guerra mundial.
Queria ver de longe essa periferia fascista que era o Brasil de 1941.
14
11
A relação de Callado com esses escritores brasileiros deu-se na maioria das vezes, em função de seu
trabalho como jornalista, atividade que muitos escritores também exerceram. Diz ter conhecido Clarice antes
de ir para Londres, ela estava começando trabalhar em Jornal, também conheceu Graciliano Ramos quando
trabalharam juntos no Correio da Manhã, foi um contato relativamente breve, mas que Callado confessa ter
lhe deixado marcas profundas: e o Graciliano era, em grande parte, o mestre. Ele ficava dentro da sua sala...
Só saia para tomar uma cachacinha no botequim da esquina. Era a essência do escritor brasileiro, que tem
que trabalhar na imprensa porque com livro não se sustenta. E quando Callado falava de literatura,
acreditava que, na América Latina, poderia ter obras tão originais quanto na literatura Russa, mesmo com a
influência européia. No Brasil, via Guimarães Rosa como um escritor de grande originalidade, originalidade
inconfundível com a literatura européia. A este respeito consultar: CALLADO, A. Antônio Callado. In: 3
Antônios e 1 Jobim: Histórias de uma Geração. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. Entrevista
concedida a Zuenir Ventura. p. 81.
12
CALLADO, A. Antonio Callado chega aos 80 anos e revê obra. Folha de São Paulo. 26 Jan. 1997.
Entrevista concedida a Matinas Suzuki Jr. e Maurício Stycer.
13
CALLADO, A. Antônio Callado. Op. Cit. p. 70.
14
Ibidem, p. 71.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
30
Quando foi para Londres, Callado tinha a intenção de ficar seis meses fora da
“pressão” e da “humilhação” a que estava submetida a imprensa brasileira, mas acabou
ficando seis anos, casou-se com a inglesa Jean Blackmore Watson, com quem teve três
filhos. Em 1947, voltou ao Brasil: foi um tempo precioso para mim, até porque foi me
dando uma saudade muito grande de um Brasil que eu conhecia mal, como em geral é o
caso dos brasileiros. Eu conhecia o quê? Rio de Janeiro, São Paulo, Recife...
15
Ao retornar ao Brasil, Callado quis “conhecer” o país, e sua atividade de jornalista
propiciou isto, e como ele próprio afirmou “viagem literatura caminham juntas”. A partir da
década de 1950, teve uma vasta produção ficcional entre peças teatrais e romances, além
das obras de reportagens.
16
Callado sempre foi um homem de esquerda, engajado politicamente, sem pertencer
a Partidos
17
- mesmo que, às vezes, concordando com suas idéias: eu, que nunca pertenci
ao PCB, continuo tendo as idéias do partido.
18
Isto demonstra a firmeza e a fidelidade de
suas convicções. Permitindo falar do “estilo Callado”, que lhe rendeu vários apelidos como:
15
Ibidem, p. 72.
16
Antônio Carlos Callado, ao longo de sua vida, foi autor de várias obras, as quais desenvolveu paralelamente
às suas atividades de jornalista. Sua produção literária perpassa pelo engajamento político denotando sempre
uma sintonia com o contexto histórico, dentre estas obras, podemos ressaltar algumas, Teatro: O Fígado de
Prometeu (1951), A Cidade Assassinada (1954), Frankel (1955), Pedro Mico (1956), O Colar de Coral
(1957), O Tesouro de Chica da Silva (1959), Uma Rede para Iemanjá (1961), Forró no Engenho Cananéia
(1964), A Revolta da Cachaça (1983), Romance: Assunção de Salviano (1954), Madona de Cedro (1957),
Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do Baile (1976), Sempreviva (1981), A Expedição Montaigne
(1982), Concerto Carioca (1985), Memórias de Aldenham House (1989). Conto: Prisão Azul (1943-1944), O
Homem Cordial (1967), Violeta entre os Felinos (S/D), Dona Castorina de Paissandu (S/D), O Último
Indivíduo do Tribo Rondon-Vilas Boas (S/D). Reportagem: as mais conhecidas são: Esqueleto na Lagoa
Verde (1953), Os Industriais da Seca e os Galileus de Pernambuco (1959), Tempo de Arraes (1964), Vietnã
do Norte (1977), Passaporte sem Carimbo (1978). Ensaio: Entre Deus e a Vasilha (1985). Biografia:
Cândido Portinari.
17
O único “clube” a que Callado filiou-se foi a Academia Brasileira de Letras ABL -, em 1994, ocupou a
cadeira que pertenceu a Austregésilo de Athayde. Referia-se à Academia Brasileira de Letras - ABL: sempre
vi a ABL como um clube de pessoas interessadas em literatura. De uns três meses para cá passei a
perguntar: porque não entrar? Sempre tive respeito pela academia, que foi fundada por Machado de Assis,
um homem distante da vaidade fácil das coisas passageiras. Depois dele, quase todos os grandes escritores
brasileiros à exceção de Drumond pertenceram à ABL. (...) Agora, minha única objeção é quanto ao
fardão, uma coisa horrível. Aquilo é coisa que pertenceu a uma determinada época. Hoje é totalmente
desnecessário. Confessou que, durante o período que viveu Londres (1941-1947), esteve tentado a entrar para
o Partido Comunista, mesmo porque tinha muitos amigos no Partido, mas resistiu, pois alguma coisa lhe dizia
que não ia dar certo por causa do lado dogmático aplicado a política. CALLADO, A. Um prédio de doidos.
Isto é. São Paulo: n.º 1276, mar. 1994. Entrevista concedida a Daniel Stycer.
18
CALLADO, A. Antônio Callado. Op. Cit. p. 63. Neste trecho da entrevista, Antônio Callado reafirma sua
opção socialista, que manteve ao longo de sua vida.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
31
o “doce radical”
19
e o “inglês da vida real”.
20
Ficou conhecido pelo seu jeito “elegante”
21
de
ser, diversas vezes reafirmado, inclusive pela jornalista Ana Arruda Callado, sua segunda
esposa, com quem viveu por vinte anos até sua morte (1997). Ana Arruda escreveu na
“orelha” da 19ª impressão de Quarup: Antônio Callado sempre fez tudo assim, muito
suavemente, sem estardalhaço. Quebrava pedras sem fazer barulho.
Mesmo não fazendo barulho, preocupava muita gente, incomodou até o governo
fascista italiano quando foi trabalhar em Londres (1941). Para embaixada italiana no Brasil,
Callado iria para Europa propagar idéias “antiitalianas” e “antigermânicas” e foi chamado
de “comunistóide”.
22
Callado só soube desse fato na década de 1960 ironizou: na verdade
eu não era um comunistóide, era um esquerdóide.
23
O fato de ser um intelectual de
esquerda preocupava sobretudo ao Governo Militar brasileiro, tanto que foi preso durante o
19
Apelido atribuído pelo psicanalista Hélio Pellegrino, a explicação de Callado para esta forma carinhosa de
Pellegrino chamá-lo é: estávamos metidos num processo de subversão e luta contra o governo militar.
Naturalmente, cada um tinha lá seu sistema de luta. O sistema do Hélio não era muito diferente do meu. Ele
também era capaz de convencer adversários com argumentos muito doces... Ibidem, p. 63.
20
Este apelido Callado recebeu de seu colega jornalista e escritor Nelson Rodrigues, quando trabalharam
juntos no Globo Juvenil em 1939 e 1940, Nelson passou a chamá-lo de “inglês da vida real”, ao saber que iria
trabalhar em Londres. Quando retornou ao Brasil, sua amizade com Nelson prosseguiu e Nelson continuou a
chama-lo de “inglês da vida real”. Callado via nisto uma coisa simpática e uma forma de distingui-lo dos
outros, mas também sentia como uma atitude um pouco distante e crítica. O desfecho disto foi à inspiração
para um personagem de Nelson Rodrigues: “o inglês da vida real”: ele tinha que levar tudo para o teatro, era
natural nele ... O “inglês da vida real” era um personagem. Era alguém que andava em pleno calor do Rio
de Janeiro mantendo um vago ar de explorador no meio dos matos... Nelson tinha uma tendência natural
para a caricatura. Ibidem, p. 64.
21
O tratamento que Antônio Callado recebeu dos amigos escritores e jornalistas evidencia o seu jeito de ser:
Daniel Stycer referiu-se a ele como “um verdadeiro lorde” (revista Isto é 1994), e na ocasião de sua morte
(1997) a mesma revista lembrou o escritor com uma matéria intitulada Um Gentleman indignado. Moacyr
Scliar para Folha de São Paulo definiu a impressão que tinha de Callado como: O que mais me impressionou
foi a elegância com que se vestia, a elegância de seu bigode e costeletas, a elegância de sua postura, a
elegância com que falava, sempre num tom baixo, quase um sussurro. A imagem que imediatamente me
ocorreu foi a de um gentleman. (...) Antônio Carlos Callado ajudou a devolver ao Brasil a dignidade - e a
elegância. A este respeito consultar: SCLIAR, M. A escrita sem trégua. In: Folha de São Paulo. 2 fev. 1997.
p. 4. Caderno Mais.
22
A história foi descoberta pelo seu amigo Ralph de la Cava, um historiador brasilianista, que encontrou
casualmente, quando fazia pesquisa em Roma sobre o padre Cícero, uma carta da embaixada italiana no
Brasil para o Ministério do Exterior da Itália, em que a embaixada alertava que Callado estava indo para
Londres para difundir suas idéias comunistas. A este respeito consultar: CALLADO, A. Antônio Callado. Op.
Cit.
23
Ibidem, p. 65.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
32
regime. Mas isso, não o impedia de continuar denunciando, tanto na ficção como no
trabalho jornalístico, as “mazelas” no Brasil
Antônio Callado sempre expôs o que pensava sobre a política no Brasil, não
poupava críticas quando falava dos rumos deste país, principalmente após o Golpe de 1964.
Declarou à Revista Veja (1976): infelizmente o Brasil o Brasil é um país desmemoriado
demais para meu gosto. Callado referia-se ao fato de pouco ter sido escrito sobre o governo
Vargas até aquele momento, e esperava que, com o material que possuíamos sobre a
ditadura militar, os brasileiros não seguissem esse exemplo.
Em outro depoimento para o Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande, em 1975,
disse haver dois Brasis “um, vasto ignorado e desassistido; e outro pequeno e cioso de seus
privilégios” e concluiu dizendo que o Brasil lhe parecia um grande país com vocação para
país pequeno. Noutra ocasião, ao ser entrevistado pela revista Ecologia e Desenvolvimento
(1993), falou abertamente que o problema do Brasil era a pobreza e a má distribuição de
renda, portanto, a população pobre nem tinha idéia sobre “o futuro ecológico da
humanidade”, e questionou “se a gente não liga para vida humana, como vai ligar para
plantas e passarinhos?”. Nesse sentido via como única saída para miséria do Terceiro
Mundo a “educação”, porque, educando as pessoas, “elas se recusam a servir de escravos
para as outras”.
Uma das grandes indignações de Callado foi presenciar os que apoiaram e fizeram
parte do Regime Militar continuarem na vida pública, enquanto os que foram presos,
torturados e mortos pela repressão permaneceram esquecidos. Falando à Isto é (1994),
desabafou, quando se referiu a uma Comissão Parlamentar de Inquérito CPI -, que teve na
comissão o Senador Jarbas Passarinho. Segundo Callado, Jarbas disse a um jornal que
“sentia saudade dos tempos do governo militar”. Callado achou ultrajante:
O Brasil não toma vergonha mesmo. Porque escolheram justo o Passarinho para a
comissão? Por que chamar um homem queimado desse jeito? Isto não acontece
num país civilizado. Ele, o Armando Falcão, o Delfim Netto e o Roberto Campos
ficam aí fazendo graçolas nos jornais. Que falta de vergonha na cara do País
aceitar que esses homens se perpetuem. (...) De vez em quando, eles reaparecem e,
em vez de dizer que erraram, não, dizem que aqueles eram tempos bons.
Nessa mesma entrevista, quando Daniel Stycer perguntou sobre o atual presidente,
Itamar Franco (1994), sucessor de Fernando Collor após o impeachment, Callado
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
33
respondeu que o Brasil tem uma certa falta de sorte. O que precisava era de um presidente
que zelasse “por este prédio de doidos que é o Brasil”, entretanto, tinha Itamar, que
considerava um homem “direito, honesto, mas medíocre”, um exemplo da falta de sorte,
pois os brasileiros escolheram Collor e Itamar: que diabo, a gente tem sempre de escolher
entre o ladrão e o jeca! Que falta de sorte.
Ao longo dos anos, Callado tornou-se descrente com o país. Se retornar ao Brasil
em 1947 lhe encheu de otimismo, quase meio século depois sua postura era outra. Em
1993, ele disse a Zuenir Ventura: estou com 76 anos. Quando escrevi Quarup, tinha mais
idéias sobre que revolução se ia fazer no Brasil. Hoje não sei se sou tão otimista.
24
Em
1996 foi mais incisivo quando discorreu a Marcelo Ridenti sobre sua desesperança com a
política ao passar dos anos:
(...) Eu tenho horror à política. (...) A única coisa que me interessou durante esse
tempo todo, da minha formação e do meu trabalho, foi exatamente a possibilidade
de uma re-vo-lu-ção que mudasse o estado de espírito de um país como o Brasil.
25
A falta de comunicação existente no Brasil também incomodou Callado, que citou o
exemplo da Segunda Guerra Mundial, fazendo referência ao período em que esteve na
Inglaterra, quando constatou que os ingleses tinham acesso ao jornal e “estavam preparados
para receber aquela mensagem”:
(...) Todo mundo tem um jornal, que lê. É outro mundo. Mas num país como o
Brasil você não tem como falar com as pessoas, quer dizer, realmente é muito
difícil se comunicar. Então, a gente fica com esse dilema de ter , como nós temos
agora, a democracia plena e ódio ao Congresso. É uma contradição em termos que
só ocorre na América Latina, numa merda de continente como esse. Hoje a gente
tem ódio dos deputados. No entanto, a gente quer o quê? A volta do Médici? Não é,
né? Então o que é que a gente quer, o que é que se pode fazer num país como o
Brasil? Eu não posso fazer nada, porque daqui a pouco morro, não tenho tempo.
Eu teria que ter mais 40 anos pela frente para ter esperança de alguma coisa.
Esperança.
26
24
Ibidem, p. 85.
25
CALLADO, A. A Guerrilha de Antônio Callado. In: KUSHNER , B. (org.) Perfis Cruzados: Trajetórias
e Militância no Brasil. Rio de Janeiro: Imago, 2002. P. 41. Entrevista concedida a Marcelo Ridenti, 24 jul.
1996.
26
Ibidem, p. 41.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
34
Para quem teve seus direitos políticos cassados em 1969 por dez anos e esteve
proibido de trabalhar em qualquer órgão de comunicação durante dois meses, o pessimismo
em relação ao Brasil tinha razão de ser. Isto fica mais nítido quando Marcelo Ridenti lhe
indaga: você tem esperança ainda? E Callado responde: absolutamente nenhuma. No
Brasil, nenhuma. O futuro não adivinho. Eu imagino o futuro da seguinte forma: no
momento, ano de 1996, mês de julho. Eu acho que os americanos vão governar a América
Latina inteira. (...)
27
O percurso de Callado é marcado por acreditar e lutar pela “utopia”
28
da tão
almejada transformação social que se esperava neste país, enfrentando a censura, a
repressão e a tortura. Entretanto, sofreu as conseqüências com algumas prisões: sua
primeira prisão no governo militar, ficou conhecida como o caso dos “oito do Glória”,
resultado de um protesto organizado por ele quando disse ter sentido que o governo militar,
instaurado em 64, estava tentando se afirmar internacionalmente, ao promover uma reunião
geral da “Organização dos Estados Americanos”, no Hotel Glória (Rio de Janeiro) em
novembro de 1965. Na ocasião, os militares receberam representantes de todos os países
latino-americanos e dos Estados unidos:
Os militares queriam convencer a opinião pública internacional de que no Brasil
tudo corria às mil maravilhas, de que vivíamos um regime magnífico, sem
opositores, regime de salvação dos horrores do comunismo e da democracia
populista, que eles muito justamente haviam derrubado.
29
Callado considerou tal situação um desaforo, e que não poderia ficar indiferente ao
que estava se passando, começou a falar com as pessoas que conhecia sobre um protesto.
27
Ibidem, p. 41. Antônio Callado concedeu esta entrevista a Marcelo Ridenti, seis meses antes de sua morte.
28
Herbert Marcuse define o termo de utopia, como conceito histórico: o conceito de utopia é conceito
histórico e se refere a projetos de transformação social cuja realização é considerada impossível. Mas quais
razões são tais projetos considerados irrealizáveis? Geralmente, quando se discute sobre o conceito de
utopia, fala-se de irrealizabilidade como impossibilidade de traduzir em fatos concretos o projeto de uma
nova sociedade, na medida em que os fatôres objetivos e subjetivos de uma dada situação social se opõem à
sua transformação. Trata-se da chamada imaturidade das condições sociais, que obstaculiza a realização de
um determinado fim. Exemplo: os projetos comunistas durante a Revolução Francesa ; ou, para nos
referirmos a um caso talvez atual: o socialismo nos países capitalistas altamente desenvolvidos. Ambos os
exemplos dizem respeito, talvez, a uma real ou suposta ausência de fatôres subjetivos e objetivos, capazes de
possibilitar a realização de um determinado projeto. MARCUSE, H. O fim da Utopia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira: 1969. p. 15.
29
CALLADO, A. Antônio Callado. Op. Cit. p. 66.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
35
Segundo ele, no dia da manifestação, sobraram poucos que aceitaram ficar em frente ao
Hotel Glória segurando faixas com dizeres: “abaixo a ditadura”, “abaixo Castelo Branco”
etc. Na manifestação, foram detidas oito pessoas: Antônio Callado, Glauber Rocha,
Joaquim Pedro de Andrade, Flávio Rangel, Carlos Heitor Cony, Jaime Azevedo Rodrigues,
Márcio Moreira Alves e Mário Carneiro.
30
Sua segunda prisão (1968), Callado considerou “uma coisa chata demais”,
prenderam-no de madrugada em sua casa, e o único objeto que levaram foi um retrato de
Che Guevara. O fato de Antônio Callado, no auge dos tempos de repressão, ter em sua casa
a fotografia de um líder revolucionário reflete o significado de Che Guevara. para homens
como ele:
O Guevara para nós era o próprio símbolo revolucionário. Quando ele morreu, em
outubro de 1967, eu estava em Paris e o Glauber estava lá nessa ocasião. Foi um
abalo. O Guevara, de todos os líderes revolucionários, foi indubitavelmente o que
deu mais esperança. Ele tinha muita imaginação, aquele negócio de fazer não um,
mas muitos Vietnãs. Na época parecia uma idéia absolutamente fantástica. É tão
boa que os americanos não sossegaram enquanto não acabaram com ele.
31
O desfecho de sua segunda prisão foi parar no Realengo num presídio em que
tinham estado Ferreira Gullar, Paulo Francis, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Ficou na
mesma cela com Gilberto Gil e mais dois presos. O seu tempo de prisão foi curto e, quando
saiu, disse ter deixado Caetano e Gil ainda presos, mas o pior para Callado foram as
tentativas de humilhação e desmoralização às quais eram submetidos: fingiam que iam
fuzilar a gente, levavam os presos para um pátio e treinavam a mira... Sei o quanto devem
ter sofrido Caetano e Gil. Era uma violência enorme.
32
30
Callado relata que, em meio a confusão e com a chegada da polícia, o maior temor era a possibilidade de
“não serem presos”. Confessa ter ficado apavorado com essa hipótese, pois, naquele momento, eram
necessárias suas prisões para que o caso ganhasse repercussão na imprensa, e todo o trabalho que tiveram não
fosse em vão. Obtiveram êxito, pois o caso repercutiu na imprensa e ficaram presos alguns dias. Para Callado,
o mais importante disso tudo foi à tentativa de passar para opinião pública mundial que o regime militar no
Brasil tinha opositores, principalmente num período em que o país não tinha consciência de luta e oposição
contra esse governo, que, por sua vez, prometia eleições e volta a democracia. Isto acontecia, segundo
Callado, porque “o golpe tinha sido fácil demais, praticamente sem resistência”.
31
CALLADO, A. A Guerrilha de Antônio Callado. Op. Cit. p. 39.
32
CALLADO, A. Antônio Callado. Op. Cit. p. 69.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
36
Em 1994, quando Daniel Stycer perguntou-lhe se ele havia tirado alguma lição
dessas experiências de prisões, Callado respondeu ceticamente: a única lição foi achar que
as pessoas que nos prenderam na ocasião não estariam hoje em dia ditando regras na
política. Acho isso ofensivo. Acho um absurdo que o País tolere isso como a coisa mais
natural do mundo. Que País sem memória, sem vergonha na cara.
33
A trajetória de Callado foi a de um homem/artista, que manteve sua postura política
e que, apesar das decepções, não deixou morrer seus ideais: eu acredito que a idéia
socialista não morreu e nem vai morrer.
34
Para ele, dizer que o socialismo morreu era
bobagem, quem morreu foi Karl Marx, mas “a idéia de uma sociedade socialista é anterior
a Marx e continua depois dele”. Todavia, Antônio Callado afirma ter ficado abalado com o
fim da União Soviética:
Eu achava exatamente o que o Kruschev numa ocasião disse, se não me engano ao
Kennedy: “Presidente, pode estar acontecendo o que for, mas o senhor sabe tão
bem quanto eu que o futuro é comunista”. (...) Eu tinha esse tipo de fé. Isso é fé. É
acreditar mesmo. E essa frase dele deixou os americanos também embatucados.
(...) Aquilo parecia inevitável. Quer dizer, vai haver tropeços, a União Soviética vai
se estrepar nisso, naquilo e naquilo outro, mas vai predominar. (...)O bom senso
indicaria. Eu caí nessa, tranqüilamente. Eu acho que muita gente nos Estados
Unidos caiu nessa. [...] Pô, o mundo não há de ser mais justo do que é, que merda
é essa? Por que é que você pode Ter dinheiro como a família Rockfeller e ... [...] O
Kruskev foi o líder desse movimento. No momento em que ele denunciou o que era
o funcionamento da União Soviética, aí realmente a coisa começou. Aí você viu o
seguinte, é a tal história, o ser humano não está preparado para esse tipo de
aventura, de abrir mão da sua coisa pessoal. Nós não estamos preparados. Nem
como ser humano, já não falo no Brasil. Falo de um modo geral. Não dá. Nem
Jesus Cristo, Nem Marx, nem coisa nenhuma. O homem podendo, ele explora o
outro de qualquer jeito. O homem é o lobo do homem, aquela coisa... Isso não
mudou. Num país como o nosso, então, nem tem graça discutir.
35
(grifo nosso)
Quando questionado (Isto é 1994) sobre como é ser de esquerda depois da
desintegração da União Soviética, Callado declarou que era mais fácil, mas menos
significativo, pois “o mundo está passando por um certo desencanto pelas idéias”.
Assim, ao expor sua opinião e evidenciar sua postura política, Callado deixa-se
sutilmente conhecer, o que torna possível compreender a intensidade de sua vida
33
CALLADO, A. Um prédio de doidos. Op. Cit.
34
CALLADO, A. Antônio Callado. Op. Cit. p. 66.
35
CALLADO, A. A Guerrilha de Antônio Callado. Op. Cit. p. 51-52.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
37
profissional. Uma vez que Callado foi reconhecido e respeitado como escritor e jornalista,
mesmo sempre fazendo questão de dissociar a influencia de suas obras jornalísticas sobre
as de ficção
36
. Em relação as constantes associações entre jornalismo e literatura,
confessou-se incomodado, dizendo que sempre respondia a mesma coisa, ou seja, que antes
de ser jornalista já havia ganhado um concurso de contos. Para ele, parecia que utilizavam o
termo jornalista como pejorativo, ou como expressou: “quando as pessoas querem falar mal
dizem: é um jornalista.” O jornalismo foi uma profissão mais próxima do que queria fazer,
e um meio de ganhar a vida assim como outros escritores, já que “a literatura não paga
salário.”
Eu acho isso uma coisa curiosa. Há uma espécie de fascínio, hoje em dia, em
estabelecer essa relação. No meu caso, eu sou jornalista e eu sou escritor. A minha
visão da coisa do jornal não tem nada a ver com fragmentação, não tem
complicação nenhuma. Eu sempre tive vocação literária, sempre quis me
manifestar por escrito, desde pequeno.
37
Literatura e jornalismo, para ele, eram coisas bem distintas, e dizia-se perplexo
quando consideravam que ambos tinham influência recíproca, era uma bobagem julgarem
que um escritor sempre escreveria como jornalista por trabalhar em jornal. Contudo,
mesmo discordando, isso aparece na crítica de seus livros.
38
Ou mesmo, o oposto, como
uma reportagem com dados de ficção, assim demostrou Davi Arrigucci Jr. em Esqueleto na
36
Em relação à postura de Callado sobre suas atividades (escritor e jornalista), sempre deixou claro preferir a
atividade de escritor, dizendo que seu sonho era dedicar-se exclusivamente à literatura. Entretanto, em 1992
voltou a escrever uma coluna para o jornal Folha de São Paulo, e posteriormente disse que a comunicação de
jornal é uma comunicação direta, e como ficou afastado por muito tempo aposentou como jornalista em
1975 descobriu a importância deste contato com as pessoas e com ele próprio. Portanto, mesmo não
gostando das associações feitas em relação as suas obras de jornalista e escritor, Callado não ficou sem as
duas coisas. Afinal, seu ofício era a escrita, nunca parou. Na década de oitenta, fazia uma coluna semanal para
revista IstoÉ..
37
CALLADO, A. Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 240.
38
A exemplo de Davi Arrigucci Jr., quando se refere ao seu quinto romance Reflexos do Baile, elogiando a
obra como o seu romance mais bem acabado: a estratégia de Callado para construir esse novo romance a
partir de fatos imediatos de nossa história contemporânea, foi a de servir da montagem. (...) A fim de formar
um mosaico que, aparentemente, reproduz a técnica de jornal.(...) ARRIGUCCI JR., D. Baile da Trevas e das
Águas. In: Achados e Perdidos. São Paulo: Polis, 1979. p. 65.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
38
Lagoa Verde (1953),
39
de Antônio Callado, resultado de sua viagem ao Xingu em 1952,
quando se integrou a uma expedição que acompanhava Brian Fawcett filho do Coronel
Percy H. Fawcett desaparecido na região em 1925. Sobre a reportagem, Arrigucci Jr.
explica:
É comum que ele junte a pesquisa historiográfica à forma da investigação policial
e tudo num mesmo desconcerto frente ao que não se alcança saber de todo. O
incrível desaparecimento de Fawcett é também a evaporação do eixo central da
reportagem em torno do fato verificável. A busca da verdade factual do jornalista
é, assim, sutilmente deslocada pela descoberta perplexa da força da ficção que vem
do que se imagina, com outro tipo de verdade, não menos esquiva, sobretudo
depois da desconfiança quanto à verossimilhança que pode trair a realidade por
uma mera coerência interna da narrativa.
40
(grifo nosso)
Esqueleto na Lagoa Verde foi, de acordo com Arrigucci Jr., uma das melhores
reportagens escritas no Brasil, como também uma espécie de desconstrução da reportagem
tradicional, minada pela fratura da crítica irônica com que faz e desfaz hipóteses sobre
ossos falsos. Arrigucci jr. dá-nos exemplos que justificam o “fascínio” que a relação entre
as obras de literatura e jornalística de Antônio Callado exercem sobre as pessoas.
Como jornalista
41
, Callado adquiriu prestígio, suas reportagens de cunho social,
como as que realizou no Nordeste: Industriais da Seca e os Galileus Pernambucanos
(1959) e Tempos de Arraes: a revolução sem revolta (1963-1964), tornaram-se referências
para estudos sobre os movimentos políticos e socioculturais em Pernambuco nesse período.
Essa experiência jornalística em Pernambuco teve outros frutos, pois influenciou Callado
na oposição ao regime militar, no sentido de tornar-se mais crítico. Assim, quando
questionado se participava do Centro Popular de Cultura CPC -, ele respondeu:
Não, eu participava da política, mais como jornalista, mas não conhecia muito bem
o pessoal do CPC, não. (...) Foi depois do meu contato com Julião, Arraes etc., que
eu fui insistindo mais na crítica, até entrar em choque com o governo. Então
39
O Jornal Folha de São Paulo, em 2 de fevereiro de 1997, homenageou Antônio Callado, na ocasião de seu
falecimento, reunindo no Caderno Mais, intitulado “A Escrita sem Tragédia”, jornalistas e escritores que o
admiravam, como Maurício Stycer, Moacyr Scliar, Davi Arrigucci Jr., Ferreira Gullar, Antônio Torres. A este
respeito consultar: A escrita sem trégua. Folha de São Paulo. Op. Cit.
40
ARRIGUCCI JR, D. Achados e Perdidos. Op. Cit. p. 04.
41
Antônio Callado foi o único jornalista latino-americano a ir ao Vietnã do Norte, quando estava em guerra
com Estados Unidos. Seu prestigio também lhe serviu para escolher no Brasil as reportagens que queria fazer,
assim conheceu o seu país.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
39
ocorreram aquelas minhas prisões...mas não do tipo de engajamento do CPC...
42
(grifo nosso)
A militância de Callado nos movimentos de resistência democrática não se resumiu
aos trabalhos jornalísticos e ficcionais, como sempre enfatizava. Em entrevista concedida a
Marcelo Ridenti, admitiu ter colaborado com a guerrilha do Caparaó, articulada por Leonel
Brizola:
Caparaó foi uma coisa muito confusa. Confesso que ajudei no que pude, no sentido
das informações que me davam e tal. (...) Era a ligação, a informação entre eles e a
cidade, o governo, o que é que se podia fazer. (...) Thiago de Mello é uma figura
interessantíssima[...]. Uma ocasião, Thiago me aparece com um carregamento de
armas. Armas mesmo, que eu nunca tinha visto tanta arma junta. [Lá fui] eu,
dirigindo o Volkswagen que tinha naquela ocasião, levando armas para um
subúrbio aí. O carro chegou a gemer em cima dos pneus... O Thiago não sabia de
nada, não sabia direito nem a quem tinha de entregar(...) É a tal história de você
querer ajudar, mas se meter numa coisa que não tem nenhuma organização. (...)
Caparaó foi um fracasso retumbante. Não adianta ir para Caparaó com a
espingarda na mão e munição[...]. Isto é uma maluquice como outra qualquer.
Você tem que ir para um lugar onde você tenha ligação com outras pessoas, com
outros movimentos.
43
Já em sua atividade de escritor,
44
Callado destacou-se como romancista e seu
reconhecimento veio com os primeiros romances Assunção de Salviano (1954) e Madona
de Cedro (1957), obras em que a questão política está presente, mas a religiosidade é o
elemento central. Temas como utopia, desencanto, desilusão, amargura, ironia etc. foram
recorrentes e, como observou Almeno Bastos, a narrativa de Callado propunha-se a
“interpretar a realidade brasileira, irredutível do maniqueísmo de uma simples luta entre
‘bons’ e ‘maus’ brasileiros”.
45
Seu terceiro romance Quarup (1967) tem o enredo imbuído pela utopia da
transformação político-social do país, e os demais que o sucederam, como Bar Don Juan
42
CALLADO, A. Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 238.
43
RIDENTI, M. A guerrilha de Antônio Callado. Op. Cit. p. 29-30.
44
O peculiar das obras de Callado é que os seus enredos desenvolvem-se em várias partes do Brasil: Assunção
de Salviano (Juazeiro-Bahia), A Cidade Assassinada (São Paulo), Frankel (Mato Grosso), Pedro Mico (Rio
de Janeiro), Sempreviva (Pantanal Mato-grossense), assim por diante.
45
BASTOS, A. O Aprendizado de Brasil na Ficção Política de Antônio Callado. In: ARAGÃO, M. L. SEBE,
J. C. (orgs) América: ficção e Utopias. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, São Paulo: EDUSP, 1994, p.
498-499.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
40
(1971), Reflexos do Baile (1976) e Sempreviva (1981), apontam para a desilusão e para
desencanto, tônica do período de repressão e censura ao qual estava submetido o país. Com
a abertura política na década de 1980, surgiram A Expedição de Montaigne (1982),
Conserto Carioca (1985), Memórias de Aldeham House (1989). Sobre esse conjunto de
obras que sucederam Quarup, Lígia Chiappini enfatizou: (...) ao longo das duas décadas
seguintes, com Bar Dom João, Reflexos do baile, Sempreviva, Expedição de Montaigne e
Concerto Carioca, vimos impor-se cada vez mais a ironia, desvelando machadianamente as
utopias alencarianas do País Novo, para chegar a uma amargura ainda maior no último
romance, publicado em 1989, Memórias de Aldenham House.
46
Como ficcionista, Callado (1980) admite que seu projeto de escritor está relacionado
com os seus romances do período de Ditadura Militar, momento em que a arte exercia
papel fundamental no movimento de denúncia e resistência:
O Quarup, o Bar Don Juan e sobretudo o Reflexos do Baile (onde há também a
mudança estilística e a mudança da técnica de montagem do livro), esse conjunto é
que dá o meu projeto de escritor, que é evidentemente parte da minha vida (na vida
o que eu mais quero é tranqüilidade e tempo para escrever).
47
Torna-se relevante enfatizar que nesses romances aos quais Callado refere-se,
Quarup, Bar Don Juan e Reflexos do Baile, a questão revolucionária se faz presente, e, para
o entendimento de sua ficção, é necessário acentuar a forte influência cubana sobre o
Brasil
48
, uma vez que o próprio autor admitiu ter participado do movimento guerrilheiro
46
A esse respeito consultar: LEITE, L. C. M. Ficção, Cidade e Violência no Brasil pós-64: Aspectos da
História Recente Narrada pela Ficção. Op. Cit.
___. Quando a Pátria Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado. Op. Cit.
47
CALLADO, A Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 236. Em se tratando dos romances que foram
considerados como fase engajada do autor, está também Sempreviva (1981).
48
Quanto à revolução brasileira, Cuba apoiou a formação de guerrilheiros, desde o momento em que
assumiu a função de exportar a revolução, quando o Brasil vivia sob o regime democrático do governo João
Goulart. (...) Cuba apoiou, concretamente, os brasileiros em três momentos bem diferentes. O primeiro, (...)
foi anterior ao golpe civil-militar. Nesse momento, o contato do governo cubano era com as Ligas
Camponesas. Após a instauração do novo regime e, desarticuladas as Ligas, o apoio cubano foi dado ao
grupo liderado por Leonel Brizola, composto de outras lideranças dos movimentos sociais do período pré-64,
tendo como base os sargentos e marinheiros expulsos das Forças Armadas. A partir de 1967, desmobilizadas
as tentativas de implantação da guerrilha ligadas a este grupo, Carlos Marighella, (...) surgiu, para os
cubanos, como o grande nome da revolução no Brasil. A esse respeito consultar: ROLLEEMBERG, D. O
Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: MAUAD, 200, p.
19.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
41
ligado a Leonel Brizola e revelou a importância de Che Guevara para a sua geração. No
período em que Callado tecia sua trama narrativa, guerrilheiros brasileiros eram treinados
em Cuba e compactuavam com o ideal cubano de “exportar a revolução” para todo o
Terceiro Mundo, começando pela América Latina.
Assim, é possível conceber porque Quarup foi o “divisor de águas” na produção
romanesca de Callado, e sua trama apresenta a revolução como alternativa possível aos
problemas nacionais. Já nos romances seguintes, a narrativa fragmenta-se e percorre a
perda das ilusões nos anos que sucedem ao golpe militar. Ao ser questionado sobre o
itinerário político de seus romances Quarup, Bar Don Juan e Reflexos do Baile, responde:
(..) Não acho que seja absolutamente obrigatório o autor fazer uma obra de cunho
político. O que me choca é a tendência crescente de nossos grupos intelectuais se
alienarem da vida do país. Quanto a mim, ainda que pudesse ou sentisse
possibilidade de fazer uma obra literária inteiramente abstrata, jamais conseguiria
ir contra minha natureza: preciso, sempre, exprimir alguma coisa.
49
Bar Don Juan
50
aponta para as tentativas fracassadas de se fazer a revolução,
marcada pela ausência do povo, que está preso ao “conformismo”, intimidado com a
repressão, com a falta de informação. Portanto, cabe aos intelectuais fazerem alguma coisa,
mesmo que sua realidade revolucionária seja a da teoria e não a da prática. A escolha de um
bar para as discussões políticas sobre a revolução já denuncia uma certa desorganização e
inexperiência da “esquerda festiva”.
51
Bar Don Juan não apresenta um personagem central
49
COELHO, J. M. Em nome da consciência. Veja, Jul. 1976, p. 3.
50
CALLADO, A. Bar Don Juan. 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
Em relação a trama de Bar Don Juan, o crítico Malcon Silverman disse, relacionando-a a Quarup: Bar Don
Juan retoma o tema revolucionário, tratando-o não como proposta séria aos males do Brasil, mas, como em
Quarup, de modo satírico, como fútil e até ridículo esperdício de energia. (...) A sua anárquica galeria de
participantes está espiritualmente unida pela causa e, na dimensão física, pela atração dipsomaníaca por
certo bar do Rio (o Bar Don Juan). À semelhança do Nando de Quarup, cada um dos seis personagens
centrais luta contra os seus próprios problemas, enquanto se empenha em derrubar o governo. Os incidentes
da ação são tão atuais quanto a novela (1971), e representam freqüentemente relatos romanceados de fatos
reais: cenas de tortura, atentados, assaltos a bancos, pirataria aérea e inclusive os últimos dias de Ché
Guevara. A este respeito consultar: SILVERMAN, M. A Ficção em Prosa de Antônio Callado. In: Moderna
Ficção Brasileira: ensaios. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 22.
51
A origem do termo “esquerda festiva”, segundo Zuenir Ventura, surgiu da seguinte forma: esquerda
festiva” era uma expressão inventada pelo colunista Carlos Leonam em 63, durante a primeira grande festa
que Jaguar organizou. O falecido ministro San Thiago Dantas acabara de decidir que havia duas esquerdas:
“a esquerda positiva e a esquerda negativa.” Leonam um atento cronista do comportamento carioca, estava
dançando quando teve a idéia. Correu para mesa de Ziraldo e disse: “Tem outra esquerda, é a esquerda
festiva.” No dia seguinte, ele denunciava sua descoberta na coluna que mantinha no Jornal do Brasil. Estaria
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
42
como em Quarup, mas, um grupo de intelectuais que se reúnem em um bar na zona Sul do
Rio de Janeiro, para beberem, fumarem e discutirem sobre a sufocante situação da vida
nacional, após Golpe Militar. Esse grupo, formado por artistas e boêmios, tem em comum o
compromisso com o ideal de libertação, que só poderia acontecer com a luta armada. Mas,
a vanguarda intelectual não estava preparada para pegar em armas. Dentre os personagens,
destaca-se o líder João (escritor e professor), sempre acompanhado de sua mulher Laurinha,
a única que tem uma visão crítica da situação:
Antigamente, quando algum companheiro balançava a cabeça, dizendo que o
Governo Militar era cada vez mais forte e a resistência cada vez mais
desmembrada, que as perspectivas revolucionárias eram negras, João, com seu
amor pela poesia espanhola, dizia: Aunque sea de noche, e ela concordava,
fervorosa, mas agora chega, chega. (...)
52
Os demais personagens da trama são: Mansinho (jornalista), Murta (cineasta do
Cinema Novo), Gil (escritor de sucesso), Geraldino (ex-padre). Mansinho organiza e
executa os assaltos a bancos para conseguirem fundos e iniciarem a guerrilha em Corumbá.
O único personagem histórico que surge no enredo é “Che Guevara”, João chega a
encontrar-se com ele sob o nome falso de Adolfo Mena. Contudo o movimento de guerrilha
que organizavam apontava para o fracasso desde o início, era a ação de um grupo isolado,
sem preparação, o único que sabia utilizar uma arma era Aniceto, um homem simples
“jagunço”, que trabalhava como “leão de chácara” no Bar Don Juan. Outros personagens,
já cansados de esperar, foram cuidar de suas vidas, como Joelmir, que ficou meses em Mato
Grosso esperando por notícias, e desistiu:
- Durante quatorze meses estive sem notícia de lugar nenhum, nem de Montevidéu,
nem de São de Paulo, nem de vocês no Rio. Nada, nada. (...)
Caíram os guerrilheiros na Serra de Caparaó, João, caíram de armas na mão,
caíram apodrecidos de esperar, como eu esperava.
53
inaugurada uma expressão que teria presença assegurada no léxico e no espectro ideológico da política
nacional. “A esquerda festiva começou mesmo a ser realidade depois de 64”, acredita o poeta Ferreira
Gullar, um membro assumido do grupo. “A esquerda recorreu então à festa com uma forma de se manter, de
ir adiante, de não morrer, de resistir.” A este respeito consultar: VENTURA, Z. 1968: o ano que não
terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 47.
52
CALLADO, A. Bar Don Juan. Op. Cit. p. 49.
53
Ibidem, p. 100.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
43
Quando o grupo finalmente consegue chegar a Corumbá, em vez de iniciarem a
resistência armada, sofrem um esfacelamento. João, diante das poucas perspectivas que lhes
sobraram, quer se unir ao que resta do grupo de Che Guevara. Mas os acontecimentos
encaminham-se para um fim trágico, Mansinho fracassa no assalto ao banco e acaba morto
pela polícia, Murta foge e termina entregando o esconderijo dos companheiros, João e
Geraldino morrem também, o grande herói Che é capturado e morto.
Assim, o movimento de resistência, cheio de boas intenções fracassou por falta de
organização, o que restou do grupo passou a refletir sobre o fracasso, no final do romance,
ressurgem. Laurinha decide voltar a combater a ditadura, Mariana, Aniceto seqüestram um
avião e fogem para Cuba. O fim aponta para rearticulação da luta, depois que aprenderam
com os erros.
Em Reflexos do Baile
54
(1976), romance alegórico,
55
o conflito central gira em torno
do seqüestro do embaixador norte americano Jack Clay, uma nova forma de resistência, à
medida que o fortalecimento do governo militar é inegável. Callado considerou Reflexos do
Baile, dentre a sua produção, o romance mais bem acabado, pois nele inova suas técnicas
de linguagem, uma vez que sua narrativa é construída com fragmentos de cartas, bilhetes,
ofícios, partes de diários etc. e o leitor é apenas o receptor dessa “correspondência”. Dos
vários personagens envolvidos na trama, destaca-se Juliana, personagem central, às vezes,
aparecendo como narradora, é filha do embaixador brasileiro, já aposentado, Rufino. Assim
como em Quarup e Bar Don Juan, a trama de Reflexos no Baile une amor e revolução, pois
Juliana, após a morte de seu namorado Beto, decide levar o seqüestro adiante, o que
culminará também em sua morte.
54
CALLADO, A. Reflexos do Baile. 6ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
O crítico Davi Arrugucci Jr. fez um excelente ensaio sobre Reflexos do Baile, em que menciona as
dificuldades que o escritor tinha para narrar nos tempos da forte censura do governo militar, por isto, Callado
recorre a ironia: é a ironia que permite ler entre os fragmentos, pois tece as entrelinhas entre um “esconde” e
outro, determinando a coerência interna do mosaico e garantindo a unidade estrutural do enredo. Fala
também das características do romance: Callado montou um mosaico que, a seu modo, é também um romance
histórico e político. (...) a obra toda de Callado tem sido um corpo a corpo cerrado com os pólos do fato e da
ficção. ARRIGUCCI JR., D. Achados e Perdidos. Op. Cit. p. 63 e 68.
55
É um romance apoiado na mediação da reportagem, e é um romance alegórico, que através de um fato
específico tende a aludir a uma situação mais geral o quadro geral da violência por meio de um segmento
social. Ele escolhe um determinado caso típico, ou que para ele aparentemente é típico, dentro da situação
da realidade brasileira, e tenta aludir com isso a uma totalidade de coisas que não é aquele fato específico.
Então, é um romance alegórico, baseado na reportagem. Ibidem, p. 80.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
44
Sobre os seqüestros de embaixadores, nos quais Callado inspirou-se para construir
seu romance, há novamente a de crítica, pela falta de organização da esque rda, assim como
Bar Don Juan. Nesse sentido, o autor afirmou:
O seqüestro do embaixador é uma beleza de coisa. É de uma audácia. Os sujeitos
seqüestrarem o embaixador americano, como eles fizeram, é uma coisa de se tirar
o chapéu. Mas é aquilo: você pega o embaixador, meia dúzia de malucos. Agora,
que raízes tinha aquele movimento do Gabeira? Não tinha. Quer dizer, valeu a
coragem, valeu a disposição que eles demostraram, valeu a história do seqüestro
do embaixador, até hoje eu acho uma coisa bonita.
56
Para fechar esse ciclo, em 1981, surgiu Sempreviva,
57
neste sexto romance, a
narrativa de Callado volta a ter um protagonista, nos moldes de Quarup, desta vez é Vasco,
que se esconde sob a identidade de Quinho, ao retornar do exílio antes da abertura
democrática. Quinho quer vingar a morte de Lucinda - sua mulher, assassinada pela polícia
política, numa prisão do Rio Janeiro, mesmo estando grávida. O amor por Lucinda está
associado ao amor a Pátria, vingar Lucinda também é vingar a Pátria.
Os demais personagens de Sempreviva estão sob identidade falsa, divididos em dois
grupos que vivem em Corumbá, de um lado os comerciantes (comunistas) e de outro os
fazendeiros caçadores (policiais/ex-torturadores): o fazendeiro Antero Varjão é Claudemiro
Marques, o naturalista criador de passarinhos e plantas carnívoras Juvenal Palhano é o
medico legista Ari-Knut. Nesse romance, Callado pesquisa a intimidade dos torturados, o
que difere das obras anteriores. A busca de Quinho pelos torturadores de Lucinda termina
quando consegue desvendar a identidade falsa do “caçador de onça” e acabar com o
suposto “Antero Varjão”, Quinho também é descoberto por “Juvenal Palhano”, que manda
matá-lo. No desfecho da narrativa, a volta do exilado será o eixo condutor do romance, ao
mesmo tempo em que marca o fim da utopia de uma transformação social. Afinal, Quinho
voltou por uma causa pessoal, já não consegue pensar no coletivo.
56
RIDENTI, M. Guerrilha de Antônio Callado. Op. Cit.
57
CALLADO, A. Sempreviva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
Assim como os outros romances que sucederam Qaurup, em Sempreviva o povo também estará ausente:
Quinho (...) uma personagem que não pertence nem a um grupo nem a outro e que passa marginalmente
velozmente por este romance, como já acontecia em Bar Don Juan e Reflexos do Baile: o povo. CALLADO,
A. Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 186.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
45
Nas entrevistas concedidas por Antônio Callado, e nos estudos sobre sua obras
ficcionais, nota-se a insistência de seus interlocutores em relação à “ausência do povo” nos
romances que sucederam Quarup. Nesse sentido, Callado afirmava:
É, como eu disse, historicamente, o povo está ausente. Na medida em que a gente
vai progredindo na investigação ficcional do país, realmente vai sentindo isso mais
agudamente. Não é que eu tenha chegado a essa conclusão e feito o livro a partir
daí. (...) De uma certa forma, pelo menos em Quarup você sente o povo, lá,
presente.
58
Sobre a fragmentação da narrativa em Bar Don Juan e Reflexos do Baile, romances
da década de 70, Callado relacionou a “perda das ilusões” dos anos de 1960:
É uma maneira diferente de você ver as coisas. Há uma diferença entre a confiança
que você tem na sua capacidade de organizar o mundo na sua cabeça, pelo menos,
de forma compreensível, e o momento que você começa a viver uma sucessão de
acontecimentos, nos quais passou a faltar, de sua parte, uma esperança de
organizá-los e deles próprios uma falta de coesão, uma falta de sentido, que eu não
acho só do Brasil, não, mas no Brasil aparece mais.
59
Nessa perspectiva, Callado traduz que, nos acontecimentos históricos que
sucederam ao golpe militar, quem almejava a revolução e organizava as guerrilhas era a
esquerda intelectual. Seus romances são representações desse momento em que o povo não
estava inserido no processo histórico, em que as guerrilhas e os seqüestros eram ações
isoladas da vanguarda. Quando Callado foi questionado sobre a crítica que faz a
“vanguarda intelectual”, que aparece em seus romances totalmente desorganizada, ele
responde que também se incluía nessa crítica.
Assim, as obras de Callado que sucederam o Golpe Militar, de 1964 até a abertura
em 1985, tornaram-se, como bem expressou o Davi Arrigucci Jr, “um corpo a corpo
cerrado com os pólos do fato e da ficção”. O itinerário político dessas obras é marcado
pelos acontecimentos históricos que se internalizam na ficção. Ao lado disso, é possível
detectar nas suas reportagens a inspiração na criação de alguns de seus personagens, e
mesmo as experiências políticas nacionais, como o Governo de Miguel Arraes em
Pernambuco, a formação das Ligas Camponesas, Sindicatos etc., presentes no romance
58
Ibidem, p. 243.
59
Ibidem, p. 239.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
46
Quarup e como o golpe militar de 1964 pôs fim nessa utopia. Tempos de Arraes mostra
que, para Antônio Callado, uma sociedade verdadeiramente democrática estava se
formando em Pernambuco no princípio dos anos sessenta.
2 - A Década de 1960 à Luz das Experiências Democráticas em Pernambuco.
O poeta fará novos versos. Afirmará que o Brasil existe.
Eliminará as dúvidas sobre a existência dos brasileiros.
Miguel Arraes
E na medida em que cria, recria e decide vão se
conformando as épocas históricas. E é também criando,
recriando e decidindo que o homem participa dessas épocas.
E faz melhor toda vez que, intregrando-se ao espírito delas,
se apropria dos seus temas fundamentais, reconhece suas
tarefas concretas.
Paulo Freire
Os primeiros anos da década de 1960 marcaram uma intensa movimentação política
no cenário nacional. Entre 1960-1964, o Brasil teve três presidentes: Juscelino Kubitscheck
(1956-1960); Jânio Quadros eleito em 1961
60
e renunciando com sete meses de mandato
(ambos tiveram como vice-presidente João Goulart). Com a renuncia de Jânio Quadros, o
vice-presidente João Goulart não assumiu a presidência de forma tranqüila, a posse gerou
conflitos que quase resultaram em um confronto civil e militar. A situação foi atenuada pela
adoção do regime parlamentarista (1961-1963), que, por sua vez, foi ineficaz, tornando-se
60
No governo de Juscelino Kubitscheck, a industrialização teve grande impulso, principalmente o setor
automobilístico, era o Estado como promotor no setor de infra-estrutura, influenciado pelo ideal nacional-
desenvolvimentista expressado no “Plano de Metas”, que teve apoio da classe empresarial. Ao lado disso, as
indústrias multinacionais puderam investir tranqüilamente no Brasil. Afinal, a promessa de JK era “cinqüenta
anos em cinco”. JK abriu os mercados brasileiros, internacionalizou a economia, construiu Brasília (1956-
1960) e deixou as marcas do desenvolvimento nas partes mais distantes do país: como a construção das
rodovias que cortavam o Brasil.
Quanto ao governo de Jânio Quadros, foi de curta trajetória, pois renunciou com sete meses de mandato,
seu vice João Goulart estava na China, assumiu então o presidente da Câmara dos Deputados Ranieri
Mazzilli. Alguns círculos militares reagiram com forte oposição à posse constitucional de João Goulart na
Presidência da República, ameaçando detê-lo caso retornasse ao Brasil. Diante de tal quadro, vários setores
sociais e políticos não concordaram com inconstitucionalidade do ato e apoiaram Goulart. Leonel Brizola
liderou o movimento mais importante da “resistência democrática” a favor de João Goulart, conseguindo
apoio do III Exército. Os militares cederam ao acordo criado por meio de uma ementa constitucional, que
instituía o regime parlamentarista no Brasil (1961-1963), nesse período houve três gabinetes parlamentares, o
primeiro chefiado por Tancredo Neves, o segundo por Brochado da Rocha e o terceiro por Hermes Lima.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
47
uma fonte de crises institucionais
61
. A situação de João Goulart complicava-se ainda mais,
com a postura do congresso, que, em sua maioria conservador, se tornou um obstáculo às
políticas de cunho reformista demandadas do executivo: tanto da presidência como do
gabinete parlamentar. Em 1963, por meio de um plebiscito, o país retornou ao sistema
presidencialista. Com fortalecimento do poder Executivo, Jango pretendia implementar as
Reformas de Base (Agrária, Bancária, Administrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana etc.), um
vez que o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1962), que visava
combater a inflação com uma política desenvolvimentista, fazendo com que o Brasil
voltasse a crescer, havia fracassado:
O malogro do plano se revelou de forma completa ao se proceder ao balanço do ano
de 1963: nem a desaceleração da inflação, nem a aceleração do acréscimo foram
alcançadas. Houve, sim, inflação sem desenvolvimento. Razão, pois, tinham os
críticos de esquerda quando denunciando a retórica progressista do Plano
advertiam para os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das
medidas concretas ali propostas.
62
O período em que Goulart esteve no poder teve que se equilibrar entre a esquerda
que se organizava e a direita que conspirava com apoio do Estados Unidos, principalmente
em torno do Instituto Brasileiro de Ação Democrática IBAD - e o Instituto de Pesquisa e
Estudo Sociais IPES.
63
Sob pressão da direita e da esquerda, Goulart acabaria isolando-se
61
No período em que o Brasil esteve sob o Sistema Parlamentarista, houve uma disputa pelo controle do
executivo: o caráter híbrido e dualista do sistema o presidente da República e o Conselho de Ministros,
além de disputarem o controle do Executivo, divergiam quanto aos seus programas e prioridades de governo
dificultava a tomada de decisões que a realidade econômica e social do país urgentemente demandava.
TOLEDO, C. N. O Governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 39.
62
Ibidem, p. 52.
63
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática IBAD -, criado nos fins da década de 1950, durante o governo
de Juscelino Kubitscheck, aproximou-se de organizações paramilatares e anticomunistas. Além de receber
recursos da Companhia de Inteligência Americana CIA -, o IBAD atuava diretamente sob a direção da CIA,
(...) interveio abertamente na campanha eleitoral, subvencionando candidaturas de elementos reacionários,
que assumiram o compromisso ideológico de defender o capital estrangeiro e condenar a reforma agrária,
bem como a política externa independente do governo brasileiro. E o Instituto de Pesquisa e Estudo Sociais
IPES -, foi fundado em 1961 por empresários, vinculados ao capital estrangeiro. Em defesa de seus interesses,
visavam combater os políticos de esquerda: O IPES Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais que iniciou
suas atividades publicando folhetos e livretos, patrocinando palestras, financiando viagens de estudantes ais
Estados Unidos e ajudando a sustentar associações democráticas estudantis e operárias. Quando João
Goulart tomou posse (...) o IPES acelerou seus esforços para influenciar a opinião pública. (...) Um dos
movimentos mais importantes contra João Goulart foi fundado por três sócios do IPES. SILVA, H.;
CARNEIRO, M. C. R. Os Presidentes: João Goulart 1961-1964. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro,
1984, p. 70, 102-103.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
48
politicamente.
De 1961 a 1963, desencadeou-se uma mobilização praticamente geral em todos os
setores da sociedade. Ainda que não houvesse uma aglutinação que canalizasse
todos os surtos populares para organizá-los numa hegemonia mais definida, cada
dia ficava mais claro que o Brasil caminhava a largos passos na direção de uma
mudança muito profunda. No horizonte do país iam-se desenhando movimentos
capazes de alterar a fundo a correlação de forças da sociedade brasileira. (...) O
ambiente era de verdadeira efervescência e enorme ativismo. No campo,
especialmente no Nordeste, proliferavam as Ligas Camponesas. O sindicalismo
rural, com apoio oficial, espalhava-se por todo o país. (...) O número de sindicatos
rurais, que no período de 1955-1957 era de apenas três, chegou a 300 em julho de
1963, e foi cerca de 1.500 em março de 1964. As Ligas Camponesas, que só em
Pernambuco chegaram a ser 64, estenderam-se por 20 estados do país havendo
registro de 218 organizações desse tipo.
64
Com os crescentes movimentos populares, As Reformas de Base eram vistas pela
esquerda como a alternativa para “evitar o golpe”, por isto, mesmo a esquerda estando
estremecida com João Goulart - pelo fato de ter mandado o IV Exército fazer treinamento
em Recife com objetivo de “advertir” Miguel Arraes, que se recusou a declarar “estádio de
sítio em Pernambuco”, contrariando as ordens de Goulart -, não lhes convinha romper
politicamente com o presidente e sim convencê-lo que a saída para o seu isolamento
político era aproximar-se dos setores populares progressistas.
A situação agravou-se, quando Goulart realizou o comício pelas reformas em início
de março de 1964, às vésperas do golpe militar, lançando dois decretos: a nacionalização
das refinarias de petróleo, e a desapropriação de terras com mais de cem hectares (a
margem de rodovias e ferrovias federais, e de açudes públicos federais). Se as medidas
agradaram aos setores de esquerda, por outro lado, a classe média e a burguesia, aliadas a
alguns setores da Igreja, intensificaram as manifestações contra o governo de Jango, e
diversas manifestações foram feitas em março de 1964 por várias capitais brasileiras,
pedindo o empechment do governo federal, a exemplo da Marcha da Família com Deus
pela Liberdade.
65
64
SEMERARO, G. A Primavera dos anos 60: a geração de Betinho. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p.
28-29.
65
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade caracterizou-se como uma ofensiva golpista, realizada em
São Paulo, no mês de março de 1964, reuniu cerca de quinhentas mil pessoas, foi organizada por movimentos
femininos, com a colaboração do governo do Estado de São Paulo, de setores da Igreja Católica, da Sociedade
Rural Brasileira e da Federação das Indústrias de São Paulo FIESP. A este respeito consultar: TOLEDO, C.
N. O Governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
49
Nesse contexto de intensa agitação político-social, o governo de Jango foi
considerado a maior experiência democrática que o Brasil havia presenciado, e o ideal de
revolução esteve mais próximo: Brasil, primeiros anos da década de 60: talvez em poucos
momentos da nossa história o que poderíamos chamar de “forças progressivas” tivessem
se visto tão próximas do poder político.
66
Mesmo havendo desavenças entre o governo federal e o governador do Estado de
Pernambuco, Miguel Arraes, que no final acabaria apoiando Jango, Pernambuco tornou-se
exemplo de melhorias político-sociais, e movimentos como as Ligas Camponesas,
Sindicatos Rurais ganharam força. A experiência democrática na administração de Arraes
propiciou um novo quadro social: os conflitos sociais ocorridos em Pernambuco, quando
tínhamos a responsabilidade do governo, vinham de longe e continuam a existir. Condições
particulares possibilitaram que, num curto período, tivessem um tratamento diferente do
tradicional.
67
Ou seja, o governo de Arraes contava com o apoio popular: convocamos o
povo para ajudar na solução de vários problemas, tendo a satisfação de contar com sua
colaboração.
68
Arraes admite que conflitos naturais existiam entre “bases populares” e a “burguesia
em geral”, mas, em Pernambuco, os movimentos populares conseguiram avançar mais do
que “noutros lugares”, porque se davam “dentro do sistema” e não fora dele:
Conflitos naturais havia entre as bases populares e a burguesia em geral.
Forçavam no sentido de uma maior distribuição da renda e da incorporação das
camadas marginalizadas, com os assalariados agrícolas. Não eram contraditórios
como os interesses dos produtores de bens tradicionais. Estes podiam vender mais
tecidos, mais alpercatas, mais panelas. Haveria mais feijão e mais farinha, talvez
um pedaço de carne num maior número de mesas.
69
Contudo a questão agrária era essencial para Arraes manter o equilíbrio de seu
governo, tendo que caminhar entre interesses divergentes. Nesse sentido, Arraes seguia
66
GONÇALVES, M. A.; HOLANDA, H. B. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense,
1999. p. 11.
67
ARRAES, M. Introdução. In: CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 11.
68
Ibidem, p. 14.
69
Ibidem, p. 27.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
50
duas linhas básicas: 1ª) reduzir e atenuar os conflitos e as greves no campo, através da
intervenção e mediação do governo; 2º) forçar o cumprimento, por parte dos proprietários,
dos dispositivos do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), decretado por Jango, em março
de 1963, e em vigor desde junho do mesmo ano.
70
Os esforços de Arraes tiveram resultados, o povo de Pernambuco mostrou que o
“diálogo era possível”, pois acordos foram feitos, graças ao trabalho dos movimentos
populares: foi possível assinar o “acordo do campo” entre usineiros, fornecedores de cana,
Federação dos Sindicatos Rurais, Sindicatos Autônomos, Ligas Camponesas, com a
assistência da Delegacia do Trabalho e do Governo do Estado.
71
Democratizar a relação governo-povo, e utilizar o aparelho estatal de maneira mais
legítima, ou seja, capaz de atender aos problemas político-sociais da população urbana e
rural era uma das propostas de Arraes. Tarefa difícil, em se tratando de Pernambuco, um
estado tradicionalmente governado pelas oligarquias rurais. Para isso, Arraes teve que
assegurar uma ampla legitimação ao governo, neutralizando a “oligarquia tradicional”, a
“burguesia urbana” e “agroindustrial”, mas tal posição implicava: a aplicação da lei e da
ordem para todas as classes e grupos sociais e a eliminação do caráter coercitivo do
sistema de segurança estadual, que sempre foi instrumentalizado em favor as classes
dominantes.
72
No que se refere à segurança estadual, que atuava em benefício dos interesses de
latifundiários, houve uma inversão do papéis na administração de Miguel Arraes. A polícia
passou a exercer a função de “vigilância” e não de “repressão”: o curioso é que essa
humanização da polícia em relação aos camponeses acarreta também uma humanização
da polícia em relação a si mesma”.
73
Quando polícia era chamada para resolver um caso de
conflito, os primeiros a irem para o local eram os acessores sindicais do estado, que
freqüentemente resolviam a questão sem a necessidade da polícia empregar a força. Mesmo
enfrentando diversas greves, o número de vítimas foi quase nulo. Arraes (1963), admitiu
não ter sido difícil mudar os quadros da polícia:
70
AZEEVÊDO, F. A. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982. p. 107.
71
ARRAES, M. Introdução. In: Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 29.
72
AZEEVÊDO, F. A. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 106.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
51
O problema foi só o de mudar a mentalidade da Polícia, sua orientação. A tropa é
a mesma. A diferença é que hoje se sente mais importante, por ser muito mais
respeitada do que temida. Ligadas à Polícia agem a Secretaria Assistente do
Governo e a Delegacia do Trabalho. Nosso objetivo foi colocar a luta dos
camponeses nos mesmos termos das lutas sindicais urbanas.
74
Quando havia conflito, os camponeses tornavam-se vítimas dos próprios senhores
de engenho, não da polícia: os poucos mortos como os cinco camponeses abatidos na
Usina Estreliana, pelo senhor de engenho José Lopes Siqueira, e como o moço trotskista
Jeremias morreram às mãos de latifundiários que resolveram fazer por conta própria o
trabalho que a polícia não faz mais para eles.
75
As maiores conquistas da Assessoria
Sindical e da polícia ocorreram no campo das greves e das reivindicações, os camponeses
conseguiram 13º salário, e o salário mínimo passou de Cr$ 6 mil cruzeiros para Cr$ 30 mil
cruzeiros mensais.
Nesse contexto de lutas e reivindicações por melhores condições de trabalho e de
salários, houve o crescimento dos movimentos populares no período compreendido entre
1961 a 1964. Tais movimentos populares depararam-se com situações adversas, como a
presença de grandes indústrias açucareiras aliadas aos interesses do capital estrangeiro,
gerando confronto de interesses, o que, por sua vez, dificultava, mas não inviabilizava o
processo democrático que estava se cristalizando em Pernambuco:
Enquanto isso, o movimento popular crescia no Brasil inteiro e não só em
Pernambuco. Mais importante ainda: ele começava a mudar a qualidade, tocado
pelas necessidades concretas da população. Ganhava autonomia na medida em que
percebia a inexistência das proclamadas alianças.
76
73
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 49-50.
74
Ibidem, p. 113.
Sobre a criação da Assessoria Sindical no Governo Miguel Arraes: o governo reativa e redefine a Secretaria
de Assistência, criada ainda no mandato de Cid Sampaio, formando e agregando à sua estrutura uma
Assessoria Sindical, subdividida em dois setores: um para atender aos sindicatos urbanos e outro para atuar
entre os sindicatos rurais. AZEEVÊDO, F. A. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 107.
75
Ibidem, p. 50
76
ARRAES, M. Introdução. In: CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p.
24.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
52
Com base nesses fatos, as reportagens de Antônio Callado mostram a evolução do
quadro político-social em Pernambuco. Nas coletâneas Os Industriais da Seca e os Galileus
Pernambucanos (1959), e Tempos de Arraes: a revolução sem revolta (final de 1963 e
início de 1964), entre outras, como O Despertar Nordestino (1961), Antônio Callado fala
da situação que lá encontrou em 1959 o “despertar” refere-se ao trabalho pioneiro que
Francisco Julião vinha desenvolvendo na formação das Ligas camponeses, em face a
situação de “escravidão” em que o trabalhador rural vivia, a exemplo da prática do
“cambão”:
O cambão, ainda em pleno vigor no Nordeste, é uma sombra direta dos dias da
escravidão. É um dia ou mais dias de trabalho gratuito que o foreiro dá ao
dono da terra. Há proprietários que só alugam a terra em trôco do cambão. Não
cobram ao foreiro, cobram-lhe trabalho. (...) José Daniel trabalha para o
proprietário Pinto do Rêgo sem pagar nada pelo seu sítio de um “quarto” de terra,
ou cêrca de 1 hectare. Não paga nada, só paga quatro dias por semana de cambão,
de trabalho que dá de graça ao proprietário. O hectare de terra, naquela zona,
vale de 10.000 a, no máximo 15.000 cruzeiros. Trabalhando 4 dias de graça por
semana, José Daniel dá ao seu senhor 208 dias por ano de trabalho gratúito. Se
alguém no Nordeste pagasse (excluído o governo) o salário mínimo de 100
cruzeiros por dia, José Daniel, no fim de um ano, teria comprado sua terra quase
duas vêzes. Assim na prática é o chamado cambão.
77
A exploração e a miséria do trabalhador rural no Nordeste chocavam Antônio
Callado, situação ainda agravada pela seca, que gerara uma catástrofe social. A seca
representava a falta da produção de alimentos: pela obstinação das chamadas elites
nordestinas, conservadoras, egoístas e politizadas no mais inferior sentido da palavra, e
em decorrência do paternalismo governamental de que as últimas se beneficiam.
78
O retorno de Callado a Pernambuco em 1963 - quatro anos depois de sua última
visita como repórter em 1959 - foi marcado pelas experiências democráticas que ali
aconteciam. Ao visitar novamente os engenhos e realizar várias entrevistas, suas
reportagens deixam claro que as condições do trabalhador pernambucano estavam sendo
alteradas e que o movimentação política, cultural e social que ocorria naquele momento
(1963-1964) era algo inédito na História de Pernambuco:
77
CALLADO, A. O despertar nordestino. Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 11, jun. 1961. p. 136-
137.
78
Ibidem, p. 143.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
53
O governo de Miguel Arraes em Pernambuco é o mais democrático da Federação
porque corre todos os riscos inerentes à democracia. Em primeiro lugar é governo
de fato. Arraes não está apenas preocupado com a Zona da Mata, a zona da cana,
onde ferve intensamente a revolução pacífica que elimina o intermediário senhor
de engenho entre os camponeses e a usina. (...) E toca a democracia para a frente,
aceitando a colaboração de quem possa prestá-la em termos eficazes. Privado da
função política e repressiva, que é das forças armadas nos demais Estados, o IV
Exército vive de férias, passando graxa nos carros de assalto para não
enferrujarem. Chega-se assim ao paradoxo de que é num Estado pequeno e pouco
desenvolvido que mais brilha a democracia no Brasil.
79
O contato direto com os agentes e líderes dos movimentos sociais que
transformavam Pernambuco deixou o repórter Antônio Callado visivelmente entusiasmado
com tudo que presenciava. A exemplo da entrevista com Paulo Freire, que seguiu com a
visita de Callado às escolas em que estava sendo aplicado o método de Alfabetização
Paulofreiriano, possibilitando-lhe conhecer o projeto de educação popular que estava sendo
desenvolvido por meio do Movimento de Cultura Popular MCP. Outras personagens
desse processo revo lucionário também foram entrevistadas por Callado como: Francisco
Julião (fundador das Ligas Camponesas), padres que fundavam os Sindicatos, pessoas do
Partido Comunista, estudantes trotskistas, Elizabete Teixeira (líder camponesa na Paraíba).
Entretanto, se tomarmos a expectativa de Callado em relação à “revolução piloto”
que acontecia em Pernambuco às vésperas do Golpe Militar de 1964 e após, nota-se a
quebra abrupta de todo um ideal de democracia que estava sendo construído. Na
reportagem intitulada “Laboratório de Experiências Sociais”, Callado inicia dizendo:
Pernambuco é, neste momento, o maior laboratório de experiência sociais e o maior
produtor de idéias do Brasil,
80
ou em “Revolução em Marcha”: Pernambuco, tomando
nojo, resolveu virar laboratório histórico do Brasil. Está experimentado para valer.
81
Acreditava que Pernambuco havia saído do marasmo de 400 anos para uma marcha
redentora: é, por enquanto, uma revolução manhosa, mas será heróica se for necessário.
82
Vê a política no Estado mais democrático da federação como: “pobre” e com as
79
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 129-130.
80
Ibidem, p. 46.
81
Ibidem, p. 12.
82
Ibidem, p. 61.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
54
dificuldades de sempre, contudo “justa” e “humana”, e se a política alcançou esse estágio,
era porque o Estado governado por Arraes estava apoiando as experiências sociais: se o
atual governador não aprovasse o que está acontecendo no Estado, não haveria apenas
uns poucos camponeses mortos, e sim chacinas e o IV exército garantindo a ordem. Acho
que é uma revolução que merece viver. Acho, mesmo, que já não precisa de licença de
ninguém para viver.
83
(grifo nosso)
Dentre os movimentos populares que propiciaram essa experiência peculiar em
Pernambuco, destacaram-se As Ligas Camponesas, Os Sindicatos Rurais e o Movimento de
Cultura Popular MCP.
2.1 - As Ligas Camponesas.
As Ligas Camponesas (1955-1964) surgiram inicialmente sob o nome de Sociedade
Agrícola de Plantadores e Pecuarista de Pernambuco SAPPP -, no Engenho Galiléia,
município de Vitória do Santo Antão:
O fôro alto fêz com que vários foreiros do Galiléia começassem a se atrasar, a
dever dinheiro, a tudo afogar em Pitu. E saltou, principalmente na cabeça de Zé
dos Prazeres, a chispa criadora. Êles precisavam organizar uma sociedade, criar
um Fundo, para amparar os que adoecessem e pagar as dívidas dos atrasados.
Assim Nasceu a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco,
hoje com filiais em todo Pernambuco e se alastrando pela Paraíba. São as
chamadas Ligas Camponesas.
84
Outros estudos apontam para fatos anteriores, que levaram ao (re)surgimento das
Ligas, pois, desde o início dos anos de 1950, os comunistas e os militantes das antigas
“Ligas” e “associações rurais”, que surgiram na década de 1940 com a redemocratização,
tentavam rearticular-se sob novas denominações. No entanto, as tentativas de formação de
associações eram sempre reprimidas pela polícia ou pelos proprietários rurais:
As primeiras Ligas Camponesas que surgiram em nosso país remontam ao período
imediatamente posterior à redemocratização de1945. Elas nasceram sob a
iniciativa e direção do recém-legalizado Partido Comunistas (...) Entretanto, as
Ligas e as associações rurais da época, ao se subordinarem à consigna da aliança
operária camponesa e a política de acumulação de forças que marcava,
83
Ibidem, p. 61
84
CALLADO, A. O despertar nordestino. Op. Cit. p. 132.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
55
taticamente, a ação do Partido Comunista, naquele momento, tornam-se incapazes
de ganhar nitidez e autonomia política próprias. (...) Essa Ligas e associações
rurais foram fundadas em quase todos os estados brasileiros, reunindo em torno de
si algumas dezenas de milhares de trabalhadores rurais e camponeses. Em
Pernambuco, as mais fortes e de maior expressão parecem ter sido as ligas ou
associações rurais de Escada, Goiana, Pau D’Alho e a da Iputinga (situada nos
arredores de Recife e dirigida por um antigo militante comunista, José dos
Prazeres, que teria um papel importante na criação da Liga da Galiléia, em 1955).
85
Assim, no caso específico da Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuarista de
Pernambuco SAPPP -,
86
seu surgimento apresenta objetivos bem específicos, de caráter
basicamente assistencialista, como: a formação de um fundo mútuo para assistência médica
e jurídica, criação de escolas e de caixas funerárias
87
para os associados.
Da Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuarista de Pernambuco para as Ligas
Camponesas,
88
que se espalharam por todo Pernambuco e Nordeste,
89
houve um longo
trajeto, iniciado com a resistência dos camponeses do Engenho Galiléia em pagar o foro,
que, por sua vez, levou à intervenção da polícia, que não conseguiu resolver o caso. Diante
do fracasso da polícia, o proprietário do Engenho recorreu à justiça, e os membros
Sociedade Agrícola decidiram buscar ajuda fora do Engenho e de Vitória de Santo Antão -
onde a Justiças e a polícia serviam aos proprietários de terras. Assim, os dirigentes da
Sociedade Agrícola, Paulo Travassos e José Ayres dos Prazeres, foram a Recife em busca
85
AZEEVÊDO, F. A. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 55-56.
86
A Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco SAPPP -, estava organizada da
seguinte forma: Presidente: Paulo Travassos, em seguida Zezé da Galiléia, 1º Secretário: Osvaldo Liboa; 2º
Secretário: Severino de Souza; 1º Tesoureiro: Romildo José; 2º Tesoureiro: José Hortêncio. Ibidem, p. 60.
87
A caixa funerária era destinada para comprar caixões e fazer o funeral dos membros da Sociedade Agrícola.
Antes de criarem esta reserva para fins funerários, pediam um caixão emprestado para o prefeito e quando
sepultavam o morto, colocando o corpo diretamente na cova, devolviam, em seguida, o caixão. No
depoimento de João Virginio Silva membro do Engenho da Galiléia, a Eduardo Coutinho, ele relatou como
procediam e que deram nome para o caixão de “nonô”. A esse respeito consultar: CABRA Marcado para
Morrer. Direção: Eduardo Coutinho, Brasil: Globo Vídeo, 1984. (1:19 min), son. Color.
88
A organização das Ligas tomou como modelo os estatutos da Sociedade Agrícola dos Plantadores e
Pecuaristas de Pernambuco, que se constituiu como uma sociedade civil de direito privado com jurisdição
para todo o estado. AZEEVÊDO, F. A. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 75.
89
As ligas ampliam-se e passam a crescer de forma horizontal, espalhando-se por diversos municípios do
estado. E cruzam a sua fronteira, tanto para o sul quanto para o norte, tornando-se particularmente forte no
Nordeste, em especial na Paraíba, cujas principais Delegacias (as de Sapé e Mari) foram controladas e
rigidamente pelo Comitê Estadual do PCB, que as manteve à margem da influência de Julião e dos grupos
dissidentes do Partido. Ibidem, p. 87.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
56
de apoio. A ajuda veio do advogado Francisco Julião, que se tornou o representante dos
foreiros e, mais tarde a principal liderança das Ligas Camponesas.
Em 1955, o I Congresso Camponês de Pernambuco marcou o surgimento das Ligas
Camponesas e contou com a presença de três mil camponeses e trabalhadores rurais:
Tal congresso foi importante para a consolidação inicial do movimento camponês
através das Ligas e representa a primeira grande manifestação de massa em apoio
à luta dos foreiros do Engenho Galiléia. Foi nesse congresso que a Sociedade
Agrícola dos Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco se transformou numa
associação estadual com a necessária amplitude para atuar em vários municípios.
Também durante o encontro foi eleita a primeira diretoria das Ligas. Na verdade, é
desse congresso que nasce a estrutura orgânica das Ligas Camponesas e se amplia
a sua ligação com as camadas populares e os setores mais progressistas da
capital.(...)
90
Uma das grandes conquistas das Ligas Camponesas foi a desapropriação do
Engenho da Galiléia em 1959, em fins do governo de Cid Sampaio, gerando várias críticas,
pois os latifundiários temiam que outros engenhos seguissem o exemplo e iniciassem a
“revolução no campo”. Seus temores se confirmaram, outros engenhos foram
desapropriados no governo Arraes, e, em 1963, o quadro se apresentava assim:
Ao Engenho Galiléia, hoje desapropriado, juntam-se os engenhos também
desapropriados de Barra e Terra Preta. As mulheres aprendem a fazer bolsas e
cestos de bananeira, bambu, cipó, e, como os rapazes, aprendem a ler. Os homens
plantam mandioca para vender na feira. O caso do Galiléia, resolvido graças à
desapropriação, “mediante prévia e justa indenização em dinheiro” (Constituição,
art. 141, parágrafo 16), não pode servir de modelo a nada, pois não haveria
dinheiro que chegasse.(...) O que se fez no Galiléia em fins do governo Cid
Sampaio foi um prudente investimento a favor da ordem vigente, uma tentativa de
apagar o fogo da rebelião camponesa que Francisco Julião soprava o mais que
podia .
91
Em linhas gerais, a trajetória política das Ligas Camponesas passou por três fases. A
primeira fase (1954-1959), momento em que a ação das Ligas voltava-se para assistência e
organização dos camponeses contra as condições sociais a que estavam submetidos, a
exemplo do cambão (trabalho não remunerado). A Segunda fase (1960-1962), período em
que Julião e outros líderes camponeses integraram a comitiva de Jânio Quadros, visitaram
90
Ibidem, p. 67.
91
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 66.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
57
Cuba, Venezuela e conheceram as experiências da reforma agrária cubana e as formas de
organizações sindicais e sindicatos rurais da Venezuela. Nessa etapa, ocorreu o grande
crescimento das Ligas Camponesas, e o Conselho Regional definiu a “reforma agrária
radical”, com as palavras de ordem: “na marra ou lei”. Nessa fase: as Ligas incorporaram
as concepções “foquistas” da revolução armada, criando vários campos de treinamento
guerrilheiro, em Dianopólis, Almas e Natividade, em Goiás, que seriam posteriormente
desarticulado pelas forças armadas.
92
A terceira fase, a partir de 1963, quando as Ligas entraram em crise, provocada pela
perda da hegemonia do movimento social agrário para os sindicatos rurais, controlados
pelos comunistas e pela Igreja Católica, com o apoio do governo João Goulart. Em 1963,
houve uma reestruturação nas Ligas, na ocasião da Conferência do Recife, transformando-
se nas Ligas Camponesas do Brasil, adotando uma nova organização: a Organização de
Massa OM e a Organização Política OP:
A OP constituía, desde já, o embrião de um partido agrário baseado nos princípios
do centralismo democrático e do marxismo-leninismo, e deveria dirigir e apoiar-se
na Organização de Massa das Ligas, definida como uma entidade aberta e de
caráter corporativo, com a função principal de coordenar a campanha pela
reforma agrária radical.
93
No decorrer de sua história, As Ligas Camponesas conseguiram formar uma
resistência coletiva que deu organicidade política ao movimento, pois visavam aos
interesses do camponês, sobretudo o da reforma agrária. Todavia, com o surgimento dos
Sindicatos Rurais, a ligas começaram a perder força , seu enfraquecimento se dava pela
transformação do meio rural, pelo avanço do capitalismo no campo. Ou seja, os
trabalhadores rurais deixavam de ser foreiros, parceiros e passavam a assalariados
organizados em Sindicatos. Começavam a reivindicar: salário mínimo, repouso semanal
remunerado, férias, décimo terceiro salário. Quanto à reforma agrária que lhes levaria à
propriedade da terra, era uma reivindicação mais difícil de ser alcançada, portanto, o
trabalhador concentrou-se nas conquistas mais imediatas. Assim, as Ligas iam perdendo
terreno:
92
AZEEVÊDO, F. A. As Ligas Camponesas. Op. Cit. p. 78.
93
Ibidem, p. 79.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
58
As Ligas Camponesas, um pouco irrealisticamente, radicalizaram a sua posição e
perderam terreno para os sindicatos rurais, que se expandiram face à facilidade de
organização por parte do Ministério do Trabalho e à assistência que recebiam de
amplos setores da Igreja Católica e do Partido Comunista que, apesar de
juridicamente ilegal, atuava ativamente no campo. Essa radicalização intensificou
a repressão as Ligas e o seu enfraquecimento no plano das articulações políticas, a
ponto de, em Pernambuco, apenas o seu principal líder Francisco Julião ter
conseguido eleger-se para Câmara Federal, com votação pouco expressiva, em
1962.
94
Quanto a Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, sabia das dificuldades de
organizar um movimento tão audacioso, num país de latifúndios. Julião disse a Antônio
Callado: - Seu Callado, agitar é uma beleza. Organizar é que é difícil.
95
Para Callado,
Julião foi de todos os líderes populares brasileiros o que mais ficou atraído por Cuba, teve
quatro filhos estudando lá. De ouvidos atentos, Callado observa que era “voz corrente que
Julião recebia muito auxilio de Cuba”: Fidel Castro terá ajudado, com dinheiro, o
movimento de Julião, ou talvez ainda ajude.
96
Julião ocupou lugar de honra entre a “brilhante equipe da educação pela agitação”
formada em Pernambuco pelos esquerdistas (padres de esquerda e comunistas confessos).
O primeiro contato de Antônio Callado com Julião foi em 1959: quando o conheci em 1959
e estudei mais pormenorizadamente seu belo trabalho nos campos então ainda escravos de
Pernambuco, Julião parecia fadado, apesar do seu despreparo teórico, a uma ampla
liderança do meio rural brasileiro.
97
Na reportagem “Julião contra Igreja, Goulart e PC”, Callado mostra a postura de
Julião, que não queria unir-se a nenhum deles, mesmo As Ligas Camponesas estando
perdendo terreno: diz Francisco Julião que o Presidente Jango Goulart quis transformá-lo
em pelego rural, durante o Congresso Nacional de Camponeses de Belo Horizonte, em
novembro de 1961.
98
O conflito foi mais longe, Julião explicou que, como não aceitou a
função de “pelego”, Jango encarregou a Igreja Católica e o Partido Comunista de
94
Ibidem, p. 15.
95
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 84.
96
Ibidem, p. 85
97
Ibidem, p. 84.
98
Ibidem, p. 85-86.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
59
desmoralizá-lo criando os Sindicatos Rurais. Do outro lado, o Partido Comunista e a Igreja
explicaram a Antônio Callado que o trabalho de Julião cessou com a fundação dos
Sindicatos. Ao saber dessa versão, Julião rebateu dizendo que os sindicatos erm filhos das
Ligas e que todos os camponeses sindicalizados deviam ser também membros das Ligas.
Callado, que transitava entre as lideranças de esquerda, observa: “as Ligas estão por toda
parte mas os Sindicatos as estão devorando”.
Quanto ao trabalho pioneiro de Francisco Julião ele relata:
Com suas Ligas Camponesas Julião já fez história no Nordeste. Muitos acham que
está, ou seja, que esteja, encerrada sua carreira. Mas no estranho e agitado
Nordeste de hoje há lugar para muita gente. Principalmente para um homem como
Julião, que, com todos os seus defeitos, foi dos primeiros nesta terra a se dedicar
ao camponês. Só porque hoje está muito mais na moda ajudar o camponês não há
razão para afastar os pioneiros.
99
Assim, as Ligas Camponesas desempenharam importante papel político-social na
reivindicação pela posse da terra, lutaram pela mudança da estrutura agrária, indo de
encontro com os interesses da propriedade privada, que, por sua vez, sairiam vencendo com
Golpe Militar de 1964.
2.2 - A Formação dos Sindicatos Rurais: Igreja Católica e Partido Comunista
Dividindo Espaços e Influências.
A ala progressista da Igreja Católica teve papel primordial na fundação dos
Sindicatos Rurais, com apoio do Presidente João Goulart, que, a partir de 1962, estimulara
a sindicalização no campo, visando agregar as mobilizações agrárias ao seu governo.
Os grupos progressistas da Igreja Católica fortaleceram-se com as orientações
pastorais do papa João XXIII (1958-1963). A Igreja brasileira teve maior impacto após o
Concílio do Vaticano II (1962-1965), com essa abertura, houve aproximação da Igreja com
os setores populares e o interesse pelos problemas político-sociais. A Igreja Católica no
Brasil ficou dividida: de um lado, os progressistas (os padres que fundariam os sindicatos
rurais), de outro, os tradicionalistas:
99
Ibidem, p. 87.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
60
No interior da Igreja aprofundava-se a divisão de grupos e facções que se
posicionavam a favor ou contra as mudanças no país. Temos, assim, segmentos de
católicos que se levantam pela manutenção do sistema vigente, estabelecendo
alianças com forças conservadoras. Ao desencadear as campanhas do “Rosário em
Família” e as “Marchas da família por Deus, pela liberdade”, mobilizavam-se
contra as reformas e as lutas das classes populares. Mas, havia também, grupos de
católicos que, condenando o capitalismo, se comprometiam ao lado das forças
política de esquerda na organização das massas populares para construir uma
nova ordem política nos rumos do socialismo democrático.
100
A esquerda católica, a partir do momento em que se voltava para as causas
populares, percebeu a necessidade da promoção do sindicalismo rural, incentivada por
vários setores da Igreja, como: episcopado em seus pronunciamentos, o Plano de
Emergência da CNBB (1962), as diretrizes emanadas da Encíclica Mater et Magistra, as
solicitações dos próprios núcleos do MEB e de outras entidades cristãs.
101
Diante na nova postura da Igreja Católica, entidades cristãs foram criadas para
atender a seus interesses e até mesmo do próprio governo, como o Movimento de Educação
de Base MEB -, fundado em 1961 pela Confederação dos Bispos do Brasil CNBB -,
102
com o apoio de Jânio Quadros, que garantia o financiamento pelo governo. Surgiu com o
objetivo de alfabetizar adultos através de escolas radiofônicas no interior e nas regiões
menos desenvolvidas do país. Os interesses por parte do governo eram de atenuar os
problemas da educação e aumentar o contigente eleitoral; e os interesses da Igreja estavam
voltados para o tradicional problema da educação, visando também garantir seu prestígio e
opor-se ao avanço do comunismo.
Contudo, com a presença da Juventude Universitária Católica JUC -,
103
e da Ação
100
SEMERARO, G. A Primavera dos anos 60: a geração de Betinho. Op. Cit. p. 31-32.
101
Ibidem, p. 76.
102
A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNBB -, em finais dos anos de 1950 e início dos anos de
1960 tornou-se importante para as mudanças na Igreja e de 1961-1964, intensificando seu envolvimento com
a reforma agrária. Seguia as diretrizes das duas grandes encíclicas sociais: Mater et Magistra (1961) e Pacem
in Terris (1963) que mostram as fortes contradições entre grupos e nações e exigiam novas atitudes da Igreja
e dos cristãos perante ao mundo atual. A esse respeito consultar: Ibidem.
103
A JUC tornou-se, nesta época (1959-1964), o movimento mais à frente de outros setores da Igreja,
inclusive daqueles ligados às classes operárias, como a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude
Agrária Católica (JAC), nestes anos mais voltadas para os problemas de “evangelização” e
“espiritualidade” do trabalhador e a própria Ação Católica Operária (ACO), ainda em fase nascente. A
organização da JUC era constituída basicamente da Equipe Nacional, com a função de orientar e coordenar
o movimento no território nacional, e das equipes regionais. (...) Alguns nomes da equipe de Belo Horizonte.
Além de seu assistente Pe. Luiz Viegas, deve-se lembrar de Herbert de Souza (Betinho), Antônio
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
61
Popular AP -,
104
as finalidades do Movimento de Educação de Base - MEB foram
alteradas, o que antes era basicamente uma finalidade alfabetizadora passou para uma
educação que incentivaria a consciência crítica, a politização, a valorização da cultura
popular, a autonomia das comunidades, a organização e a animação popular. Assim, os
sindicatos rurais foram espaços de atuação desses jovens católicos, e o Nordeste foi a
região em que se tornou mais intenso:
O campesinato surgia como a base maior da população brasileira, como a classe
potencialmente mais estimulante em face a realidade do campo. Não é a toa que o
Nordeste era tido como região explosiva na opinião pública mundial e as
transformações do campo vistas como tendendo a uma situação pré-
revolucionária.
105
A Igreja Católica não estava só no processo de formação dos sindicatos rurais,
dividindo espaços e influências, com ela, estava o Partido Comunista Brasileiro PCB -,
que percebeu a potencialidade revolucionária e a grande movimentação no meio rural e
mesmo na clandestinidade, passou a atuar junto aos sindicatos rurais. Tendo assim, de um
lado, os padres católicos que cuidavam de sua fundação, dos aspectos legais e do
movimento de alfabetização, do outro lado, os membros do Partido Comunista Brasileiro
PCB -, que atuavam aliciando os camponeses para filiarem-se aos sindicatos, ou seja,
faziam o trabalho de campo.
Em Pernambuco, os padres que mais se destacaram no movimento camponês foram
Padre Antônio de Melo, da cidade do Cabo, e Padre Crespo, de Jaboatão. Após a fundação
dos sindicatos rurais os padres dedicaram-se mais ao processo de alfabetização, pois
começaram a perder espaços, como relatou Padre Melo (1963) a Antônio Callado, que
resumiu da seguinte forma:
OtávioCintra, Henrique Novaes, Paulo Haddad, Vinícius Caldeira Brant. Este grupo terá um papel
importante no conselho de Belo Horizonte, em 1959, quando se inaugurava uma nova fase na JUC e
continuará a te um peso determinante em toda a fase posterior ao Congresso de 10 anos da JUC,
participando da fundação e da estruturação da Ação Popular AP. Ibidem, p. 51.
104
A Ação Popular AP (1962) - tinha os seguintes princípios ideológicos: a ideologia da AP justificava e
propunha o engajamento político dos cristãos no processo de transformação das estruturas sociais
brasileiras. Partindo de motivações humanistas cristãs, apontava-se para um projeto socialista, achando
possível a fusão de seus pressupostos com os do materialismo histórico. Ibidem, p. 61.
105
Ibidem, p. 76.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
62
Disse, (...) que tanto ele como Padre Crespo estão agora bastante afastados do
movimento camponês, propriamente dito, isto é, de movimento de aliciá-los para a
sindicalização. Fundados os sindicatos, prosseguiu, ele, no Cabo, e Crespo na
vizinhança de Jaboatão, se dedicam principalmente a educar os camponeses. Acha
que as massas brasileiras têm toda a flama, a inteligência, e, já agora, a vontade
de se governarem elas próprias. Mas não tê m quadros, não têm educação.
106
Na verdade, outros fatores influenciaram para esse “afastamento” do Padre Melo e
do Padre Crespo dos Sindicatos, primeiro a presença do Partido Comunista e o prestígio
que adquiriu junto aos camponeses, em segundo lugar, foram acusados de serem membros
do Instituto Brasileiro de Ação Democrática IBAD e romperem com Miguel Arraes:
A CIA procurou igualmente penetrar no campesinato. Através do IBAD (...) não
apenas visando a combater a candidatura de Miguel Arraes ao governo de
Pernambuco, mas, também, com o objetivo de dividir as Ligas Camponesas. (...) O
padre Antônio Melo, vigário do Cabo, tomou a iniciativa de arrostá-las, juntamente
com o padre Paulo Crespo, agrupando camponeses num movimento diversionista,
o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (SORPE), subvencionado pelo
IBAD e pela Cooperativa Leage (CLUSA), mais precisamente pela CIA, que
resolvera financiar, com recursos ilimitados, as cooperativas católicas, como
forma de ajudar a reprimir o potencial revolucionário no Nordeste brasileiro.
107
As circunstâncias reafirmavam a presença crescente de membros do Partido
Comunista no campo, a exemplo do mais importante dos sindicatos rurais de Pernambuco:
Palmares (o maior sindicato com trinta e cinco mil pessoas). Nele atuava o líder comunista
Gregório Bezerra, conhecido como Gregório de Palmares, ele, como muitos outros, passou
a atuar clandestinamente nos sindicatos rurais, organizando greves no campo para
alcançarem as reivindicação de melhores salários. Assim descreveu uma paralisação: parou
tudo, toda a atividade na lavoura canavieira. O movimento foi de uma coesão
extraordinária e transcorreu na mais absoluta ordem. (...) E o resultado foram os 80 por
cento de aumento salarial. Agora a legislação trabalhista chegou mesmo ao campo.
108
Essas experiências dos grupos de esquerda, de estarem dividindo o mesmo espaço,
para Callado, é algo que só acontece no Brasil. Ele vê o desenrolar dos fatos com ironia: a
Igreja Católica e o Partido Comunista Brasileiro (sem contar o Partido Comunista do
106
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 75
107
SILVA, H.; CARNEIRO, M. C. R. Os Presidentes: João Goulart 1961-1964. Op. Cit. p. 99.
108
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 102.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
63
Brasil e a chamada Vanguarda Leninista dos Trotskistas) estão juntos, doutrinando
as massas. Ambos esperam, como numa fábula de onça e jabuti, levar a melhor no fim.
109
Descreve o jogo de forças e a divisão de espaços da seguinte forma:
O Partido comunista tem mais organizações nos campos de Pernambuco do que a
Igreja. Uma vantagem, porém, a Igreja ainda leva. Ela está, no momento e
principalmente em Pernambuco, mais em evolução. Do maior desinteresse pela
sorte dos camponeses passou à militância entre eles. O P. C. também não chegou
muito cedo, preso estava à idéia de que a revolução seria urbana. A tradição da
Igreja junto aos camponeses é enorme. Seu prestígio declina há anos, mas durante
quatro séculos possuiu, deixando-o em grande parte improdutivo, todo aquele
latifúndio de almas. O latifúndio foi vigorosamente loteado por Francisco Julião e
os comunistas, que em pouco tempo carregaram impetuosamente os lavradores da
resignação à reivindicação.
110
O Partido Comunista Brasileiro PCB - assim como a Igreja Católica demoraram a
integrar os movimentos no meio rural nordestino. A Igreja por estar alheia aos problemas
sociais, e o Partido Comunista por achar que a burguesia teria o grande papel na revolução
brasileira:
A Burguesia estabele cera sólidas alianças com o latifúndio e o imperialismo no
processo de desenvolvimento econômico brasileiro. (...) Ao contrário do que
imaginava o PCB, a burguesia não “encerrava” nenhum “potencial
revolucionário”. Seu “caráter dúplice” não passava de duas faces de uma mesma
moeda: “uma cabeça de Janus com duas faces: uma entreguista e outra
nacionalista”.
111
No entanto, a importância dos papéis desempenhados pela Igreja e pelo Partido
Comunista é inegável, muitas conquistas foram feitas e o campesinato conseguiu sair de
anos de exploração, até irromper o golpe militar de 1964, quando todos os movimentos
populares caíram na ilegalidade e foram dizimados. Os líderes camponeses foram presos
torturados, e muitos foram mortos, os padres envolvidos no movimento de sindicalização
também. Antônio Callado relata a prisão, a tortura e humilhação a qual foi submetido o
líder do Partido Comunista, Gregório Bezerra:
109
Ibidem, p. 99.
110
Ibidem, p. 100.
111
REIS FILHO, D. A. A Revolução Faltou ao Encontro: Os comunistas no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1990. p. 34.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
64
Maltratado no Recife foi o líder comunista Gregório Bezerra, de 63 anos, um dos
entrevistados neste livro. Gregório foi preso no campo, onde aliciava camponeses
para os sindicatos rurais, e trazido para a cidade vestindo apenas um calção azul.
Amarrado com cordas foi passeado pelas ruas e apontado à execração pública pelo
coronel Darci Villocq. Diante do povo estarrecido Villocq apontava Gregório:
“Este é o comunista que queria destruir os lares de vocês. Agita agora, traidor”. E
Gregório, que só calava a boca aos puxões da corda: “Esta é a civilização cristã
que eles pregam”.
112
Assim, o Golpe de Estado pôs fim na experiência revolucionária que estava se
formando no meio rural pernambucano. Tudo que haviam conquistado foi soterrado em
muito pouco tempo. Os Sindicatos Rurais, as Ligas Camponesas, o Movimento de Cultura
Popular MCP -, tornaram-se “subversivos” aos olhos do autoritarismo das forças armadas
e da burguesia que as apoiava.
2.3 - O Movimento de Cultura Popular MCP em Pernambuco:
O Movimento de Cultura Popular MCP -
113
teve origem em 13 de maio de 1960
no Recife, na prefeitura de Miguel Arraes. A iniciativa foi de estudantes universitários,
artistas e intelectuais pernambucanos na intenção de erradicar o analfabetismo e melhorar o
nível cultural da população. Entretanto, havia outros interesses em jogo: Miguel Arraes
tinha a pretensão de candidatar-se a governo do Estado em 1962, e os intelectuais e os
estudantes buscavam uma aproximação com o povo, incentivados pelas idéias socialistas. O
Movimento de Cultura Popular MCP -, tinha como principal objetivo:
(...) conscientizar as massas através da alfabetização e da educação de base, o
MCP, partindo da cultura do povo, passou a atuar por meio do teatro, da
promoção das artes plásticas, do artesanato, do canto, da dança e da música
populares. Organizaram-se núcleos de cultura popular, construção de praças,
centros e parques de cultura. Foi promovido o cinema, teleclubes e educação
alternativa, além da ampliação e reorganização das escolas para crianças e dos
cursos de alfabetização para adultos.
114
112
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 35.
113
Entre os fundadores do Movimento de Cultura Popular MCP, estavam artistas e intelectuais: Paulo
Freire, Ariano Suassuna, Germano Coelho, Abelardo da Hora, Hermilo Borba Filho, Paulo Rosas, Luiz
Mendonça, Anita Paes Barreto, Norma Porto Carneiro Coelho, entre outros. O MCP teve como sede o Sítio
Trindade no Recife-PE.
114
SEMERARO, G. A Primavera dos anos 60: a geração de Betinho. Op. Cit. 1994. p. 85.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
65
Os esforços dos grupos envolvidos davam-se no sentido de buscar na arte e na
cultura popular o fundamentos para chegarem à análise e à crítica da realidade social.
Acreditavam que a educação e a cultura poderiam efetuar uma transformação, levando o
povo à conscientização política e social, “preparando o povo para efetiva participação na
História Nacional”: buscava-se a autenticidade da cultura nacional, a valorização do
homem brasileiro, a desalienação da cultura. Pretendia-se dinamizar a forma comunitária
de vida através de expressões coletivas de arte e comunicação, ampliando o diálogo sobre
a concepção de vida e sobre a problemática nacional.
115
No “Plano de ação para 1963”, o Movimento de Cultura Popular MCP apresenta o
“diagnóstico” da situação e ancorava-se em três preposições básicas, por meio das quais o
movimento deveria criar as condições para que o povo solucionasse seus problemas,
despertando sua capacidade crítica e seu engajamento político:
a)Só o povo pode resolver os problemas populares;
b)Tais problemas se apresentam como uma totalidade de efeitos que não pode ser
corrigida senão pela supressão de suas causas radicadas nas estruturas sociais
vigentes;
c)O instrumento que efetua a transformação projetada é a luta política guiada por
idéias que representam adequadamente a realidade objetiva.
116
A cultura do povo seria o ponto de partida para iniciar qualquer plano de ação, ou
seja, iniciando daquilo que lhe era comum e cotidiano, para tanto, conceitos sobre “cultura
popular” foram elaborados por diferentes grupos, como a Ação Popular AP -, que
elaborou (1963) seu plano de orientação para os militantes:
(...) É popular a cultura quando é comunicável ao povo, isto é, quando suas
significações, valores, ideais, obras, são destinadas efetivamente ao povo e
respondem às suas exigências de realização humana em determinada época; em
suma, à sua consciência histórica real. É popular a cultura que leva o homem a
assumir a sua posição de sujeito da própria criação cultural e de operário consciente
do processo histórico em que se acha inserido.
117
115
Ibidem, p. 85.
116
MCP/ Plano de ação para 1963. In: FÁVERO, O. (Org.)Cultura popular e educação popular: memória
dos anos 60. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1983. p. 91.
O plano de ação apresenta cinco tópicos: 1. Diagnóstico, 2. Linha Diretora, 3. Diretrizes Gerais, 4. Meios, 5.
Procedimentos.
117
AP/ Cultura Popular. Ibidem, p. 23.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
66
No I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, realizado em Recife
(1963), a comunicação intitulada De Pé no Chão Também se Aprende a Ler dedicou sua
primeira parte à cultura popular: tentativa de conceituação:
O significado do termo cultura popular assume para nós forma definida a partir da
compreensão mais profunda da situação de dominação externa a que está
submetido o Brasil, desde o seu descobrimento, até os dias atuais. (...) A tarefa da
cultura popular não é exclusivamente um meio político, um trabalho de preparação
das massas para a conquista do poder. Estaríamos reduzindo o sentido de
libertação humana ao plano político ou econômico. A tomada revolucionária do
poder não extingue a cultura popular, ao contrário, deixa aberto o caminho para
uma criação autêntica e livre, ou melhor, popular e nacional.
118
(grifo nosso)
O Movimento de Cultura Popular MCP -, agregou vários projetos que visavam
beneficiar as populações urbana ou rural que não tinham acesso ao meios de comunicação e
à educação, projetos como: música, teatro, cinema, artes plásticas etc. Mas, sem dúvida, o
projeto que mais se destacou foi o de alfabetização de Paulo Freire: o método Paulo Freire
tem como objetivo revelar o mundo de chofre ao homem. O projeto, politicamente,
empreendia aumentar o número de eleitores ao mesmo tempo em que aprende a idéia de
que aprender a ler é lutar para melhorar a vida. Paulo Freire explicou seu método de
ensino a Antônio Callado,
119
que estava sendo aplicado aproximadamente a dois anos, e
que conseguia alfabetizar adultos em 40 horas ou um mês e meio há dois meses de
instrução. Sobre a base intelectual de seu método, Paulo Freire disse:
- Entre as várias relações que o homem estabelece com a sua realidade existe uma
específica de sujeito para objeto -, de que decorre o conhecimento. Esta relação
também é feita pelo analfabeto. A diferença entre a relação e que ele trava nesse
campo e a nossa está em que a sua captação do dado objetivo e faz via sensível, e a
nossa, pela via crítica. Da captação via sensível surge uma compreensão da
realidade preponderantemente mágica, a que corresponde uma ação também
mágica. O que teríamos de fazer, baseados nas experiências e nas pesquisas de
118
I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular: De Pé no Chão Também se Aprende a Ler.
Ibidem, p. 71-74.
119
O Sistema Paulo Freire é um Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, com algum apoio
federal, mas não muito. Está em pleno desenvolvimento, e, quando tiver uma equipe suficientemente grande
de professores, pode modificar dentro de algum tempo o panorama cultural do Brasil. Tudo é Novo em
Pernambuco e o Sistema Paulo Freire começou há uns dois anos, no Movimento de Cultura Popular do
Recife, que estudava os meios de fazer Educação de Adultos mediante um Círculo de Cultura, que institui
debates entre analfabetos adultos. CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit.
p. 151.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
67
Paul Legrand, era colocar entre a compreensão mágica da realidade, que
informava a ação mágica sobre a realidade, em termo novo: pensar. Estaríamos
assim levando o homem a substituir a captação mágica por uma captação cada vez
mais crítica. (...) Outro dado de que partimos é o de que a educação trava uma
relação dialética com a cultura. O método ativo e dialogal usa os dados da vida e
das dificuldades que encontra o educando. Por isso é que os analfabetos, que
aprendem a ler e pensar ao mesmo tempo, não ficam idolatrando o mestre. Antes
dizem, como tantos, que ali “não tem nada de novo, a gente está refrescando a
memória.”
120
No artigo Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo, Paulo
Freire explica as fases
121
de aplicação de seu método e os conceitos que foram mudados,
por considerar “certas conotações muitos estáticas”, por isto, houve substituições: a escola
noturna para adultos passou a ser “Círculo de Cultura”, o professor foi substituído pelo
“coordenador de debates”, o aluno pelo “participante do grupo”, a aula pelo “diálogo”. Os
programas de aula partiam de “situações existenciais” capazes de levar os grupos ao debate
e a posições mais críticas:
A programação desses debates nos era dada pelos próprios grupos através de
diálogos que mantínhamos com eles e de que resultava a enumeração de problemas
que gostariam de debater. Nacionalismo, remessa de lucros para o estrangeiro,
evolução política do Brasil, desenvolvimento, uma política para o desenvolvimento,
analfabetismo, voto do analfabeto, socialismo, comunismo, “direitismo”,
SUDENE, democracia, ligas camponesas eram, entre outros, temas que se repetiam
de grupo a grupo. (...) Os resultados eram surpreendentes.
122
A alfabetização era um processo que demandava preparação, por meio de cartazes,
120
Paulo Freire fala de sua base intelectual ao repórter Callado: Ibidem, p. 153
A este respeito consultar também:
FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. 14ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
___. Pedagogia do Oprimido. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
121
O método de Paulo Freire foi dividido em cinco fases, e dentro destas fases houve desdobramentos: I
Levantamento do universo vocabular do grupo; II Seleção neste universo dos vocábulos geradores, sob um
duplo critério: a) o da riqueza fonêmica; b) o da pluralidade de engajamento na realidade local, regional e
nacional. III Criação de situações existenciais, típicas do grupo que se vai alfabetizar. IV Criação de
fichas roteiro, que auxiliam os coordenadores de debate no seu trabalho. V Feitura de fichas com a
decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores. FREIRE, P.
Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. In: Cultura popular e educação popular:
memória dos anos 60. Op. Cit. p.119-120.
122
Ibidem, p. 112.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
68
fichas, que suscitavam diálogos, questões, para então chegar a “palavra
geradora”.
123
O método Paulo Freire buscava na própria existência do educando tais
palavras, ao contrário do método tradicional, em que o programa já vinha pronto para ser
aplicado, independente da realidade em que iria ser inserido, era considerado humilhante
para o trabalhador cansado de um dia de trabalho ficar repetindo frases, desvinculadas de
sua realidade objetiva, como por exemplo: “Ivo viu a uva”.
O sucesso e a expansão do método de alfabetização de Paulo Freire contaram com
grupos estudantis católicos, como Juventude Universitária Católica JUC - e a Ação
Popular AP -, que contribuíram promovendo “diálogos” nos “círculos de cultura” e
treinando “coordenadores” dentro das próprias comunidades. Os militantes da JUC e da AP
viam a linguagem de Paulo Freire como familiar e confiável, e as propostas de seu método
traduziam para educação “a visão cristã e social que aprofundavam em suas reflexões”.
124
O Teatro popular também contou com bons resultados, o movimento construiu o
primeiro teatro ao ar livre do Recife (Teatro do Arraial Velho) e o primeiro teatro
ambulante (Teatro do Povo). Promoveu, ainda, em parceria com a Prefeitura do Recife o I
123
O manual do monitor, documento mimeografado para os círculos de cultura de Mossoró e Angicos em
1961 e 1962, traz o exemplo de como trabalhar a palavra geradora:
“Palavra geradora: salário
Idéias para discussão:
*a valorização do trabalho e a recompensa.
*finalidade do salário: manutenção do trabalhador e de sua família.
*o horário de trabalho segundo a lei.
*o salário mínimo e o salário justo.
*repouso semanal férias décimo terceiro mês.
Finalidades da conversa:
*levar o grupo a discutir sobre a situação do salário dos camponeses.
*discutir o porquê dessa situação.
*discutir com o pessoal o valor e a recompensa do trabalho.
*despertar no grupo o interesse de conhecer as leis do salário.
*levar o grupo a descobrir o dever que cada um tem de exigir o salário justo.
Encaminhamento da conversa:
*o que é que vocês estão vendo neste quadro?
*como é que está a situação do salário dos camponeses? por que?
*o que é o salário?
*como deve ser o salário? Por que?
*o que é que a gente sabe das leis sobre o salário?
*o que podemos fazer para conseguir um salário justo?”
A este respeito consultar: BRANDÃO, C. R. O que é Método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.
53-54.
124
A este respeito consultar: SEMERARO, G. A Primavera dos anos 60: a geração de Betinho. Op. Cit. p.
89.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
69
Festival de Teatro, que teve a duração de vinte dias e reuniu cerca de quinze mil pessoas.
Mas tinham a pretensão de alcançar resultados melhores ainda, como afirma o Presidente
do Movimento de Cultura Popular MCP -, Germano Coelho:
Sua ambição, porém, é maior ainda. Através de Seminário de Dramaturgia e de
Laboratório de Interpretação, criar novos dramaturgos, formar diretores e atores,
contribuir, enfim, para o desenvolvimento da dramaturgia nacional, com um teatro
nascido do povo, de seus dramas, inquietudes, conflitos e esperanças. Teatro que
retrate, artisticamente, a nossa realidade social. Que afirme os valores
genuinamente regionais e nacionais com a dimensão universal, que lhes confere a
arte autêntica.(...) A aliança que no Movimento de Cultura Popular se consolida
entre estudantes, intelectuais e as camadas populares torna invencível a sua causa:
teatro e cultura para a emancipação do povo.
125
Outros estudos sobre o Movimento de Cultura Popular MCP -, também falam dos
excelentes resultados que obtiveram, a exemplo de Moacyr de Góes, que apresenta um
balanço do movimento, mostrando que, em menos de três anos de funcionamento, tiveram
201 escolas, 626 turmas, 19.646 alunos entre crianças, adolescentes e adultos, uma rede de
escolas radiofônicas, um centro de artes plásticas e artesanato, mediante cursos de
tapeçaria, tecelagem cerâmica, cestaria, cartonagem, fantoches, pintura, desenho,
estamparia, modelagem gravura e escultura (destinado principalmente a especializar o
professorado do próprio MCP). Ao lado disso, expõe a “visão de mundo do Movimento de
Cultura Popular”:
A visão de mundo do MCP não é a de produção de bens culturais para a posterior
doação ao povo. Pelo Contrário, a participação do povo no processo da
elaboração da cultura é fundamental para os pernambucanos. Por isso, em 1963, o
MCP recomenda uma estratégia que privilegiava atividades que se
caracterizassem: a) pela oferta de assessoramento a esforços criadores de cultura
desenvolvidos pelos núcleos de cultura das próprias organizações populares; b)
pela aplicação das várias modalidades de incentivos ao surgimento, ao
florescimento e à multiplicação de tais fontes produtoras de cultura popular; c)
pela criação de mecanismos de estímulo e de coordenação capazes de criar
interdependências e ajudas mútuas entre as diversas organizações nos seus
diversos níveis de existência social, facilitando desse modo que as deficiências de
umas sejam completadas pelas potencialidades de outras e permitindo, em última
análise, que as mais atrasadas encontrem condições favoráveis para ascender ao
nível das mais adiantadas.
126
125
COELHO, G. O MCP e o Teatro. Centro de Documentação e Pesquisa Teatral: Acervo Van Java. s/d.
126
Moacyr de Góes utiliza um documento mimeografado do Movimento de Cultura Popular MCP, para
falar da “visão de mundo do MCP”. A este respeito consultar: GÓES, M. Antigos (novos) papeis revisitados
O MCP. In: Revista da UFRJ. s/d. p. 24-30.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
70
O Movimento de Cultura Popular MCP -, desenvolvia suas atividades com
camponeses das Ligas, dos Sindicatos e com apoio dos grupos de esquerda que estavam
envolvidos no processo de luta pela democracia. A valorização da cultura popular, a
alfabetização como instrumento de conscientização e de luta pelos direitos do trabalhador
eram ideais compartilhados pela maioria. A busca de uma cultura “nacional” e “popular”
eram as bases para a tão almejada transformação social.
Considerações Finais
A trajetória de Antônio Callado revela um homem politicamente de esquerda, que
sempre fez as críticas que julgou pertinentes, que criou obras que marcaram a literatura
brasileira e realizou reportagens que o consagraram. Esse conjunto visto em sua totalidade,
possibilita o entendimento do que veio a ser o Golpe Militar para Antônio Callado, e como
isto influenciou na sua narrativa, permitindo, também, conhecer as bases que propiciaram
construção da obra que o consagrou como ficcionista: Quarup.
Algumas questões são elucidadas, ao perceber o estarrecimento de Callado diante do
golpe, a pergunta que pairava era: Como um movimento tão promissor como o de
Pernambuco foi facilmente derrotado?
Em Tempo de Arraes, mesmo Callado alimentando entusiasmo com as experiências
pernambucanas, alertava, em suas reportagens, para o perigo que representavam as forças
armadas, sentiu isto em Recife, como relatou em “O Partido Político das Forças Armadas”,
quando Miguel Arraes declarou-se contra o “projetado estado de sítio”, e o IV Exército
desfilou pelas ruas sem qualquer pretexto, a não ser: lembrar ao governador eleito pelo
povo que o poder civil é neste País uma concessão especial das Forças Armadas.
127
O
Sobre a estrutura do MCP: O MCP estruturou-se em três departamentos: o da Formação da Cultura (DFC),
o da Documentação e Informação (DDI) e o da Difusão da Cultura (DDC). Sendo que o Departamento da
Formação da Cultura “foi o que desenvolveu a ação educativa mais criativa e o que mais empolga’. Esse
Departamento era integrado por dez divisões: Pesquisa (Paulo freire); Ensino (Anita Paes Barretos); Artes
Plásticas e Artesanato (Abelardo da Hora); Música, Dança e Canto (Mário Cancio); Cinema, Rádio,
Televisão e Imprensa (...); Teatro (Luiz Mendonça); Cultura Brasileira (...); Bem Estar Coletivo (Geraldo
Vieira); Saúde (Arnaldo Marques); Esportes (Reinaldo Pessoa). p. 25
127
CALLADO, A. Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Op. Cit. p. 122.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
71
Exército pairava sobre tudo e todos como um “Santo Ofício”, e continua a reportagem
declarando que a democracia no Brasil tem sido “escamoteada” e que o “grande partido
político” no Brasil é o Exército Nacional.
Apesar de alertar para os perigos que representava o “grande partido político das
forças armadas”, Callado também não contava com o golpe, por isto, em pouco tempo
passou da “utopia revolucionária” à “desilusão”. No prefácio da coletânea, escrito em julho
de 1964, ele faz um resumo da situação em Pernambuco e, ao mesmo tempo, um desabafo,
carregado de crítica e ironia. Pois, segundo ele, até final de março de 1964, suas
reportagens eram uma “palpitante realidade”, quatro meses depois, haviam se tornado “uma
evocação histórica”, já que o golpe de 1º de Abril de 1964 havia tornado “passado” a mais
“viva experiência social já tentada no Brasil”:
Estas reportagens, tão recentes, não se referem a mais nada que exista. Nada. Os
fatos aqui narrados deixaram de ser. Uma severa intervenção militar torna difícil
até mesmo saber o que está acontecendo a alguns dos principais criadores da
revolução social que se realizava em Pernambuco: seus vultos andam esfumados e
vagos como se a poeira dos séculos tivesse caído sobre eles em meses.
128
As pessoas com quem esteve e entrevistou haviam sido presas, algumas torturadas e
humilhadas publicamente, como o líder comunista Gregório Bezerra; Miguel Arraes estava
preso; Paulo Freire também e Celso Furtado teve os direitos políticos cassados. Em em face
de tais fatos, Callado questiona, de maneira irônica o teor de suas reportagens:
Pernambuco, ao contrário do que dizem minhas reportagens, devia mesmo estar
cheio de mal feitores e o Governo de Miguel Arraes estaria levando o Brasil à pior
das anarquias. A meu favor, no entanto, está o General Justino Alves Bastos,
comandante do IV Exército. Ele depôs Arraes, é bem verdade, mas garante duas
coisas:
1)que não havia perigo comunista em Pernambuco.
2)que Arraes era anti-janguista.
129
Com o Golpe Militar, a “utopia” de uma “revolução pacífica” foi minada, não havia
outra saída, o ideal de democracia que estava sendo construído e derrepente foi
“implodido”. Pois essa foi à sensação do repórter Callado ao ver a que foi reduzido
Pernambuco após o golpe:
128
Ibidem, p. 33.
129
Ibidem, p. 36.
Quarup À Luz dos Impasses Políticos e Estéticos dos Anos de 1960
72
A revolução de Pernambuco era “piloto”, no sentido de que provavelmente
inspiraria a revolução maior, brasileira, e ambas tinham jeito de triunfar a
brasileira, com bons modos e pouco sangue. Agora não sei. O que
inconscientemente deseja talvez o regime do Ato Institucional de 9 de abril de 1964
é contrariar a revolução do povo para ver a cara do Brasil desconhecido que há
séculos borbulha por baixo da nossa preguiça de fazer História.
130
Callado escreve o prefácio de suas reportagens quatro meses depois do golpe de
1964, Quarup foi escrito entre 1965 e 1967, e o protagonista de Quarup já aprende que a
saída “a brasileira” com “pouco sangue” já não era possível. Mas fazer História no Brasil
ainda era uma “utopia”. Diante de tal quadro, o protagonista de Quarup passa por uma dura
aprendizagem para descobrir que a única saída para o país era a guerrilha. Essa alternativa
vem ao encontro dos anseios de Antônio Callado, que primeiro presenciou as experiências
de Pernambuco, “a revolução sem violência”, que não vingou, em seguida, (1965)
colaborou com o movimento de e guerrilha de Leonel Brisola. Nesse sentindo, Callado não
via outra saída para o Brasil e sua ficção corresponde a essas expectativas.
130
Ibidem, p. 42.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
74
Em 1979, Antônio Callado observou a função da arte e os problemas que ela
enfrentava:
À medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada, mais
dividida em interêsses e classes, mais “independente” da vida dos outros homens e
portanto esquecida do espírito coletivo que completa uns homens nos outros, a
função da arte é refundir êsse homem, torná-lo de nôvo são e incitá-lo à
permanente escalada de si mesmo. Tôdas as grandes fases da evolução da
sociedade tiveram aquêle momento de pujança em que sem esfôrço o artista,
integrado no processo, fêz do homem do seu tempo um retrato imortal. (...) O
problema principal da arte do nosso tempo, em que estala por tôdas as juntas a
armadura do capitalismo, é criar uma ponte nova entre o povo e o artista e por
povo entenda-se todo o mundo, todos os não artistas.
1
Na década de 1960, o intelectual de esquerda também estava em busca do elo entre
“povo” e uma arte popular, Quarup (1967) veio ao encontro dos ideais de um projeto
“nacional” e “popular” da cultura brasileira. Tendo esses referenciais, é possível perceber
que Nando é a representação do intelectual que abandona os problemas individuais em
busca do coletivo, do povo. Por isso, mesmo com uma ditadura recém implantada, o fim do
romance aponta para uma perspectiva otimista, ou seja, o fim é exatamente o começo para
uma revolução, em que a força motriz vem do povo, daí a necessidade do intelectual ir ao
seu encontro.
O romance foi construído intimamente ligado à política nacional (1954-1964),
Callado cria seu herói Padre Fernando ou Nando, ligado aos dogmas da Igreja Católica
tradicional,
2
que vai transformando-se e absorvendo experiências até chegar à conclusão de
que a única saída para o Brasil era à luta armada. Mas, para chegar a esse estágio
revolucionário, Nando sofre uma dura aprendizagem, iniciada no segundo governo de
GetúlioVargas, passando por Juscelino Kubitscheck e pela breve estada de Jânio Quadros
na presidência e, por fim, o governo de João Goulart, que tem um rompimento abrupto com
1
CALLADO, A. Introdução. In: FISCHER, E. A Necessidade da Arte. Tradução de Antônio Callado. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
2
A Igreja Católica tradicional ficou conhecida por desvincular-se dos problemas sociais e estabelecer alianças
com o Estado e a burguesia. A respeito do grupo tradicionalista da Igreja Católica, na década de 1960,
Giovanni Semeraro observa: (...) tradicionalistas, enquanto defendiam um projeto de neocristandade
preocupado em combater a secularização e cristianizar a sociedade servindo-se do Estado para garantir seus
privilégios. A este respeito, consultar: SUMERARO, G. A Primavera do Anos 60: a geração de Betinho.
Op. Cit. p. 38.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
75
o Golp e Militar de 1964. Nesse percurso de dez anos de governos “populistas”,
3
Nando vai
do devaneio místico, fazendo uma trajetória circular: Pernambuco, Rio de Janeiro, Xingu e
Pernambuco, até engajar-se na luta do camponês pernambucano, o que também pode ser
lido como a busca do “intelectual” pelo “povo”.
Antônio Callado procura, na década de 1950, as bases populista-
desenvolvimentistas, que desembocaram na ditadura militar: o período populista-
desenvolvimentista (45-64) havia permitido que viesse à tona uma geração extremamente
sensibilizada pelas questões do desenvolvimento e da emancipação nacional.
4
Na geração
de 1950, os intelectuais alimentavam um ideário de uma cultura nacional-pregressistas,
estimulada no governo JK, quando foi criado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros
ISEB (1955)
5
-, que surge com a “ideologia reformista” de modernizar o país, representando
os setores progressistas: a função dos intelectuais seria diagnosticar os problemas da
nação e apresentar um programa a ser desenvolvido. Não há utopia, a realização do Ser
nacional era uma questão de tempo, cabia à burguesia progressista comandar esse
processo.
6
A cultura assume papel importante, “como um elemento de transformação sócio-
econômica” na busca da “identidade nacional”. Nesse contexto, pretendia-se que os
3
Simplificando muito, pode-se dizer que o “populismo” foi definido como o produto de um longo processo de
transformação da sociedade brasileira, instaurado a partir da Revolução de 1930 e que se manifestou de uma
dupla forma: como estilo de governo e como política de massas. Assim, o tempo das “origens” das principais
características explicativas do “atraso” de nossa formação política desloca-se do “período colonial” para
“os tempos” do liberalismo oligárquico da Primeira República e para as bases do poder do Estado pós-30,
postulado como um “Estado de compromisso”. Tal compromisso remeteria a duas frentes, que
estabeleceriam, ao mesmo tempo, seus limites e potencialidades. Um compromisso junto aos grupos
dominantes, consagrando um equilíbrio instável e abrindo espaço para a emergência do poder pessoal do
líder, que passa a confundir-se com o Estado como instituição. E um compromisso entre Estado-líder e as
classes populares, que passam a integrar, de modo subordinado, o cenário nacional. Ou seja, estilo de
governo e política de massas, envolvendo três atores básicos: uma classe dirigente em crise de hegemonia; as
classes populares pressionando por participação mas fracas e desorganizadas, e um líder carismático, cujo
apelo transcende instituições (como partidos) e fronteiras sociais (de classe e entre os meios urbano e rural).
GOMES, A C. A Política Brasileira em Busca da Modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In:
SHWARZ, L. M. (org.). História da Vida Privada no Brasil. V. 4, São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 545.
4
GONÇALVES, M. A.; HOLANDA, H. B. Cultura e participação nos anos 60. Op. Cit. p. 20.
5
O ISEB agrupou intelectuais que discutiam a cultura brasileira: os isebianos, ao construírem uma teoria . do
Brasil, retomam a temática da cultura brasileira, mas vão imprimir novos rumos a discussão. (...) os
intelectuais do ISEB analisam a questão cultural dentro de um quadro filosófico sociológico. ORTIZ, R.
Cultura Brasileira & Identidade Nacional. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 45.
6
Ibidem, p. 65.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
76
intelectuais desempenhassem um papel específico, isto é, eles criariam subsídios para
realização de uma “revolução democrático burguesa”.
7
Desse modo, em 1960, a cultura
recebeu forte impulso da década anterior, como afirma Renato Ortz:
Na esfera cultural a influência do ISEB foi profunda. (...) toda uma série de
conceitos políticos e filosóficos que são elaborados no final dos anos 50 se
difundem pela sociedade e passam a construir categorias de apreensão e
compreensão da realidade brasileira. No início dos anos 60 dois movimentos
realizam, de maneira diferenciada, é claro, os ideais políticos tratados
teoricamente pelo ISEB. Refiro-me ao Movimento de Cultura Popular no Recife e
ao CPC da UNE.
8
Os movimentos culturais intensificaram-se em 1960 e 1970, contrariando todas as
expectativas, em face ao autoritarismo exacerbado e à forte censura e repressão instauradas
em todos os meios de comunicação, pelo governo militar. Contudo o modo de revolução
democrático burguesa, empreendido antes do golpe de 1964, será substituído por outras
formas de luta, que também serão expressadas na arte engajada do período. Com a
imposição de um governo militar, a intelectualidade se vê diante de um quadro inusitado, a
exemplo de Antônio Callado em suas reportagens em Pernambuco (1963-1964), que
mostram seu otimismo antes do golpe e sua perplexidade após este. Diante dos novos
rumos da política brasileira, os intelectuais optaram por diferentes formas de combate e
oposição ao regime autoritário, como: a “resistência democrática” e a “luta armada”. A
exemplo dessas diferentes posturas, tem-se o dramaturgo Vianinha (membro do Partido
Comunista), que optou pela resistência:
Manifestou-se contra a censura, promoveu vigílias, denunciou o arbítrio, mas, em
nenhum momento, advogou a proposta da “guerrilha a qualquer preço”, tanto que
na passeata que acompanhou o corpo de Édison Luís até o cemitério “(...)
Vianinha gritava feito louco: ‘o povo organizado derruba a ditadura!’ A poucos
metros de distância, Hugo Carvana puxava o coro dos ‘revolucionários’ ou ‘porra-
loucas’, conforme a ótica: ‘o povo armado derruba a ditadura’”.
9
7
Nesse sentido, o ISEB chegou a ser considerado “fábrica de ideologia” do governo JK, do que Renato Ortiz
discorda: Eu diria que o que é atual no pensamento do ISEB é justamente que ele não se constitui em
“fabrica de ideologia” do governo Kubitscheck. Se de fato o Estado desenvolvimentista procurou uma
legitimação ideológica junto a um determinado grupo de intelectuais, não é menos verdade que os avatares
desta ideologia caminharam em um sentido oposto ao do Estado Brasileiro. Ibidem, p. 46.
8
Ibidem, p. 47-48.
9
PATRIOTA, R. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. Op. Cit. p. 121. A historiadora
Rosangela Patriota também discute como estes impasses manifestaram-se na obra de Vianinha: (...) uma das
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
77
Antônio Callado optou pela “luta armada”, isso ficou evidenciado quando o escritor
admitiu sua participação como informante do movimento guerrilheiro de Leonel Brizola, e,
no plano ficcional, seus romances Quarup, Bar Don Juan, Reflexos do Baile trilham este
caminho. Outro exemplo na ficção de Callado é o conto O Homem Cordial (1967)
10
,
contemporâneo a Quarup. Essa obra também enfoca o intelectual na figura do protagonista
Jacinto, um professor de História e Sociologia, que teve seus direitos políticos cassados
após o Golpe Militar. O motivo da cassação foi o conteúdo das obras que publicava. Nelas,
defendia a teoria do homem cordial: circunstâncias várias haviam criado tão
imperativamente no Brasil o tipo do homem cordial que estávamos a caminho de ser o
primeiro povo a construir um grande país por meios não-violentos: o primeiro pais
racional.”
11
Mesmo se dizendo de esquerda, Jacinto acreditava que as coisas resolveriam de
maneira pacífica, ao contrário de sua filha Inês, estudante de Filosofia e engajada na luta
estudantil. Jacinto participava das reuniões da “esquerda festiva”, tinha a solidariedade de
políticos, pessoal do teatro, mas descartava qualquer possibilidade de confronto, como os
da filha envolvida em protestos, ou do movimento guerrilheiro, desacreditado por ele: -(...)
Há gente aí disposta a chegar até a luta armada contra o governo. Uma asneira. Uma
loucura.
12
Jacinto pensava que a situação pode mudar sem o uso da violência e
demonstrava confiança nos rumos da vida política do país:
- O governo já marcou as eleições e depois...
(...)
- Eu sei, disse Jacinto. Vocês falam numa troca de ditadores e isto é verdade
quanto ao método da substituição de presidentes. Mas a eleição indireta, apesar de
tentativas manifestou-se na peça Papa Highirte (1968). Ao professar concordância com a tática do PCB, este
texto teceu um diálogo com a militância em geral com base em duas orientações específicas. A primeira
exaltou a atuação do militante do referido partido como a opção “correta” em face as dificuldades do
momento. A segunda, por sua vez, realizou uma crítica contundente à prática da luta armada, avaliada como
irracional e inconseqüente no combate à ditadura. Ibidem, p. 127.
10
CALLADO, A O Homem Cordial e Outras Histórias. o Paulo: Ática, 1994.
11
Ibidem, p. 9.
12
Ibidem, p. 14.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
78
ser tapeação, denota uma promissora fraqueza, uma concessão ao ritual da
democracia.
13
Mas Jacinto percebia que a solução pacífica não viria e sua teoria do “homem
cordial” junto com tudo que havia escrito cairia pôr terra:
Seus olhos encontraram na máquina o papel: “Mesmo quando eram ainda um povo
de rudes camponeses, os lusos, comparados aos de Espanha, já denotavam
cordialidade”... “Houve sem dúvida os momentos cruéis mas ficaram guardados
como momentos, como um vácuo num processo em que... cordialidade... cordial...
cordial...” Jacinto parou, curvado, dedo no interruptor. Nas páginas espelhadas
pela mesa ao redor da máquina a palavra também se repetia obstinada e viscosa
como uma lesma viva fiada entre palavras datilografadas.
Jacinto não teve sequer tempo de se endireitar. Curvado como estava foi de tal
forma agredido pela ânsia que só conseguiu mesmo abrir a boca e deixar que as
golfadas de bile verde projetassem sobre a máquina, os papéis, as notas.
14
Isso ocorreu quando Inês a filha de Jacinto foi agredida por policiais numa
manifestação estudantil, e ele teve que ingerir a dura realidade, o que lhe provocou náuseas,
ou seja, não havia saída pacífica para o Brasil, a democracia não retornaria se não lutassem
para tê-la de volta.
Os dois protagonistas de Callado, Nando de Quarup e Jacinto de O Homem Cordial,
aproximam-se no sentido de acreditarem, inicialmente, em uma saída pacífica e, depois,
perceberem que o confronto com o governo militar para a restauração da democracia era
inevitável. Contudo, Jacinto apresenta uma postura crítica sobre o guerrilha: propor às
Forças Armadas a luta pelas armas é como um homem qualquer desafiar um pugilista na
rua.
15
Enquanto que, para Nando, a luta armada era a única saída possível, por isso, ele
adere ao movimento guerrilheiro.
Em 1967, outro romance de grande peso também foi publicado, Passach: A
Travessia
16
, de Carlos Heitor Cony, que narra a vida de Paulo Simões, um escritor que até
aos quarenta anos, é alienado politicamente, mas cuja vida muda ao relacionar-se com
Vera, que é politicamente engajada e acaba envolvendo-o, sem que ele queira, no
13
Ibidem, p. 18.
14
Ibidem, p. 30.
15
Ibidem, p. 14.
16
CONY, C. H. Pessach: A Travessia. 5ª ed. São Paulo: Companhia da Letras, 1997.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
79
movimento guerrilheiro. Paulo Simões é induzido a colaborar com a guerrilha, contudo tem
a chance de desistir e partir, mas ele opta por ficar e contribuir com a luta revolucionária.
Todavia, o grupo do qual fazia parte é destruído e ele sobrevive, mesmo diante do fracasso,
Paulo Simões resolve continuar a resistência à ditadura e o combate às forças repressoras.
Ao confrontar o protagonista de Quarup, Nando, e o de Pessach: A Travessia Paulo
Simões, vê-se que eles distanciam-se no sentido de que Nando vê a guerrilha como uma
alternativa logo após o Golpe Militar, ao passo que, em Pessach, esse movimento é
derrotado, o que o aproxima do enredo de Bar Don Juan (1971), nesse sentido Renato
Franco observa:
Em certo sentido, há aqui uma diferença importante em relação ao romance de
Callado: esse último, embora alimente, com os vagos ventos da esperança, a
chamada da Revolução que deveria ser popular -, está mais próximo dos ideais
políticos que vigoram nos anos 60; o de Cony, por privilegiar o projeto
guerrilheiro, está mais atado às circunstâncias políticas que geraram a luta
armada no final dos anos 60 e início da década seguinte.
17
(60)
O enredo de Pessach: A Tavessia foi também definido por Paulo Francis (1967) na
seguinte perspectiva:
(...) O rumo e os acontecimentos da guerrilha, assim como o seu precário
fundamento ideológico, são plausíveis. Tem tanta fôrça documental, que o leitor
inadvertido poderá julgá-los reais. E são reais, porque proféticos, pois sentimos
que a coisa aconteceria assim, e não seguindo o modêlo de Mao, Ho, ou de outra
novidade importada no momento. A bagunça faz parte do patrimônio nacional.
18
Tomando como referência as obras de Antônio Callado e Carlos Heitor Cony, e
diante desses impasses vividos pelos intelectuais após 1º de abril de 1964, Paulo Francis
definiu com propriedade o papel que desempenhavam: os intelectuais são uma espécie de
sismógrafo social, retendo e retransmitindo em sua sensibilidade as mínimas perturbações
na ordem dos direitos humanos.
19
17
FRANCO, R. Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa. o Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1998. p. 60.
18
FRANCIS, P. A Travessia de Cony. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: n. 13, anos III, maio
de 1967. p. 182.
19
Ibidem, p. 183.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
80
Ao lado disso, pode-se concluir que Antônio Callado fez suas opções na construção
de Quarup, como afirmou Davi Arrigucci Jr. em Achados e Perdidos: Quarup se narra
ainda, para empregar conceitos do grande crítico do realismo, G. Lukács, o percurso de
um herói problemático e individual, Nando que enfrenta um difícil caminho do religioso ao
político.
20
Outra referênc ia nesse mesmo sentido é de Malcon Silverman, ao descrever o
protagonista Nando: (...) ele é uma espécie de prótotipo de Lukacs, um herói
problemático.
21
Já Lígia Chiappini, reconhece a narrativa épica de Quarup, “herdeira dos
grandes modelos realistas do século XIX”, uma narrativa coerente, verossímil e simbólica.
Contudo, adverte para as críticas que denominou de “Os Críticos da Primeira Hora”
realizadas no lançamento do romance. Para Lígia Chiappini, essas críticas têm como ponto
de referência o modelo narrativo totalizador do romance realista (não por acaso Lukács
era, na época, um teórico de cabeceira).
22
A partir dessas considerações, que concebem Quarup como um romance
23
épico-
realista, tornando possível recorrer a teoria de Lukács:
24
20
ARRIGUCCI JR., D. O Baile da Trevas e das Águas. In: Achados e Perdidos. Op. Cit. p. 65.
21
SILVERMAN, M. Protesto e o novo romance brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
22
LEITE, L. C. M. Quando a Pátria Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado. Op. Cit. p. 149.
23
Sobre o surgimento do movimento romântico, Antônio Cândido o descreve: o Romantismo surge como
movimento de negação; negação, neste caso, e na literatura luso-brasileira, mais profunda e revolucionária,
porque visava redefinir não só a atitude poética, mas o próprio lugar do homem no mundo e na sociedade.
(...) O Romantismo, porém, revoca tudo a nôvo juízo: concebe de maneira nova o papel do artista e o sentido
da obra de arte, pretendendo liquidar a convenção universalista dos herdeiros da Grécia e Roma, em
benefício de um sentimento nôvo, embebido de inspirações locais, procurando o único em lugar do perene.
(...) Olhando em conjunto o movimento romântico nas literaturas do Ocidente da Europa e nas que lhe são
tributárias, como a nossa, temos a impressão de um nôvo estado de consciência, cujos traços porventura
mais salientes são o conceito de indivíduo e o senso da história. (grifo nosso) A este respeito consultar:
CÂNDIDO, A O Romantismo como Posição do Espírito e da Sensibilidade. In: Formação da Literatura
Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Martins, 1969. p. 23.
24
As leituras realizadas nesta pesquisa demostraram que Georg Lukács foi um teórico muito procurado na
década de 1960, em seguida, foi considerado ultrapassado e depois retomado. Os vários estudos sobre o
romance Quarup, - alguns recentes, - em sua maioria, recorrem a Lukács como base teórica. Na década de
1970, a obra Realismo & Anti-realismo discute a questão: curioso equivoco cerca hoje a figura de Georg
Lukács no Brasil. Traduzido e divulgado entre nós a partir de 1965, suas idéias encontraram num primeiro
momento grande receptividade. (...) Com a substituição de temas e preocupações, desenvolveu-se entre nós
um precoce e sintomático desinteresse pela obra de Lukács, num momento em que apenas começava a ser
conhecida. Os equívocos foram acumulando. Sua imagem passou a ser definitivamente identificada com
certos “temas”, tais como “conteudismo”, “realismo do século XIX”, etc; e taxá-lo de “ultrapassado”
chegou a ser, em nossos meios, um gesto que denotava supremacia e modernidade intelectual. (...)
Atualmente, já se nota, junto com algumas tentativas de revitalização de nossa vida cultural, a gradativa
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
81
Esta ligação indestrutível com a existência e com a estrutura afectiva do real,
fronteira decisiva entre a epopeia e o drama, resulta necessàriamente do facto de o
objeto de qualquer poesia épica não ser mais nada senão a vida. Enquanto que o
conceito de essência, logo que anunciado, requer a transcendência e se cristaliza
num ser novo e superior de que a forma exprime um dever-ser que, na sua
realidade nascida da forma, se matém independente de todos os conteúdos dados
que pertencem ao simples existente, o conceito de vida exclui uma objectividade tão
nítida de trancendência captada e condensada.
25
O romance épico originou-se da poesia épica, conquistando uma liberdade maior de
narrar, “o narrador fala pessoalmente para um leitor também pessoal, individual”, numa
sociedade de classes: o narrador do romance perde a distância, torna-se íntimo, ou porque
se dirige diretamente ao leitor, ou porque nos aproxima intimamente das personagens e
dos fatos narrados.
26
Em Quarup, a narrativa é na terceira pessoa,
27
voz que costuma
observar a visão do personagem central, Nando.
28
Quanto ao enredo de Quarup, não há como fugir da forma “esquemática”, que é
seguir os caminhos de Nando pelos sete capítulos do romance: O OSSUÁRIO, O ÉTER, A
MAÇÃ, A ORQUÍDEA, A PALAVRA, A PRAIA e O MUNDO DE FRANCISCA. A cada
capítulo e a cada núcleo de personagens que o protagonista encontra, será influenciado e ele
absorverá esse contexto como parte de seu aprendizado. Nos quatro primeiros capítulos,
Nando está captando as experiências, preparando-se para realizar a “transformação social”
do seu país, que começa a acontecer no quinto capítulo. Nando contribui para um “mundo
possível”, e quando o sonho utópico parece realizar-se, o mundo que estavam construindo,
retomada de posições teóricas e filosóficas mais consistentes, que marcaram momentos da década anterior.
(...) tentativas de interpretação e reavaliação de importantes questões da literatura brasileira à luz das idéias
estéticas de Lukács. A este respeito consultar: COUTINHO, C. N. et al. Realismo & Anti-realismo na
Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
25
LUKÁCS, G. Teoria do Romance. Editorial Presença. s/d. p. 50
26
LEITE, L.C. M. O Foco Narrativo. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1985.
27
Lígia Chiappini, ancorando-se no critico inglês Percy Lubbock (1921), quando este apresenta a “teoria do
foco narrativo”, e categorias narrativas como o “estilo indireto livre”: onde ocorre uma narrativa em 3ª
pessoa, que se confunde com a narrativa de uma personagem que funciona como uma espécie de espelho
refletor das idéias do autor. Ibidem.
28
Sobre o herói romanesco, segundo Lukács, é aquele que esta sempre em busca, pois “os fins e os caminhos
não podem ser imediatamente dados”, quanto ao herói épico, “nasce desta alteridade do mundo exterior”. No
que se refere a forma interior do romance, o herói, ou indivíduo problemático caminha para o conhecimento
de si: (...) como forma interior do romance é a marcha para si do indivíduo problemático, o movimento
progressivo que a partir de uma obscura sujeição privada de significação para o indivíduo o leva a um
claro conhecimento de si. LUKÁCS, G. Teoria do Romance. Op. Cit. p. 90.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
82
o “mundo de Levindo” é destruído pelo Golpe Militar. Assim, primeiro, a construção do
“homem novo” será percorrida ao longo do romance, logo a após, Ter-se-á a sua
participação no processo de revolução político-social e a destruição da utopia de um mundo
melhor.
1 - A Trajetória de Nando na Busca pelo Centro do Brasil e Pelo “Centro de Si
Mesmo”:
Cada grupo de personagens que Nando encontra tem uma visão dos problemas
político-sociais do Brasil e/ou compartilham interesses em comum. Logo nas primeiras
páginas do romance, o plano religioso e revolucionário são enfocados, de um lado, o Padre
Nando compenetrado em suas meditações no ossuário (onde estão os restos mortais de
frades franciscanos),
29
lugar em que passa grande parte de seu tempo; e, do outro, Levindo
que ali estava, escondendo-se da polícia com um ferimento a bala:
- Me desculpe disse Nando - eu não tinha reparado. Como é que você se
machucou assim?(...)
- Se machucou, não senhor. Me machucaram. Tiro, Nando. Bala de rifle. O Brasil
se civiliza. (...)
- Qual o quê! Levei um desses tiros com que a gente sonha quando se mete na luta:
de raspão, abaixo do dedo pequeno da mão esquerda. Bastante sangue mas
nenhum osso partido. De encomenda (...).(Quarup, p.11)
30
Levindo é um jovem estudante engajado na luta dos camponeses contra os usineiros.
Levindo foi uma, dentre as várias inspirações da reportagem Tempo de Arraes para
construção de Quarup, como à história do assassinato de Jeremias (1963), semelhante à do
personagem Levindo:
Este gráfico em São Paulo, chamado Paulo Roberto Pinto e cujo nome de luta era
Jeremias. Jeremias, que foi para Pernambuco em busca da revolução, agitou a
mais não poder os camponeses e deixou um nome romântico entre eles. Tinha 23
anos. Foi ao Engenho Oriente, em També, chefiando camponeses que faziam
reivindicações, e caiu numa emboscada armada por Oscar Veloso e outros
proprietários.
31
29
Padre Nando pertence à ordem dos Franciscanos, fundada por São Francisco de Assis, tido como
reformador e transformador. O nome da personagem Francisca, pode ser entendido como uma homenagem ao
Santo.
30
A partir desse momento, as notas referentes ao romance Quarup, presentes neste capítulo, serão
incorporadas junto à citação.
31
CALLADO, A. Tempo de Arraes. Op. Cit. p. 131.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
83
Levindo é um personagem fundamental da trama de Quarup, seus ideais de
transformação social serão incorporados por Francisca e depois por Nando, percorrendo
toda a obra. Outro personagem, também inspirado em Tempo de Arraes e que compartilha
com Levindo a luta pelo campesinato, é Januário, inspirado em Francisco Julião, que, nesse
momento da narrativa (1954), está fundando em Recife a Sociedade Agrícola e Pecuária dos
Plantadores.
32
Januário, assim como Levindo, vê a violência como parte integrante de sua
luta, um vez que os senhores de Engenho detêm o poder e dita as ordens. Portanto, violência
não é algo que se escolhe, e é assim definida pelo personagem Januário:
- O engraçado é que quando se fala de violência no Brasil é como se a gente
pudesse decidir contra ou a favor da violência quando na verdade é como diz
Levindo: eles escolheram a violência há muito tempo. A violência de Belmiro não é
dele só. A violência contra mim é do sistema inteiro. (Quarup, p.42-43)
Outros personagens vão sendo incorporados pela narrativa, como o casal inglês e
protestante Leslie e Winifred. Os longos debates intelectuais de Nando, Leslie e Winifred
vão denunciar os anseios, as expectativas e os temores do protagonista, deixando
transparecer sua forte relação com a Igreja Católica e com a religiosidade, contrapondo duas
visões de mundo: católica e protestante.
Surge também Francisca, que freqüenta o claustro (lugar reservado aos membros
dos mosteiro) para desenhar os azulejos da História da vida de Santa Teresa D’ávila que
estavam faltando.
33
Francisca é uma jovem de origem burguesa e noiva de Levindo, mas
também alvo do amor do Padre Nando, amor que percorrerá todo o enredo, gerando a busca
de Nando por Francisca. Pode-se dizer que é a “essência do romance”, já que a obra
pertence a este gênero literário.
32
Padre Nando conhece Januário líder camponês em 1954, no primeiro capítulo O Ossuário, quando Januário
fundava a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores. No plano histórico, a associação será fundada em
1955. Torna-se relevante perceber nessa pequena diferenças de datas, que mesmo Quarup percorrendo um
espaço/tempo linear com o plano histórico, a ficção não tem o “compromisso” com a “veracidade”, o que
importa é a coerência interna da narrativa. Assim, as obras de reportagem são para o autor, uma das fontes
inspiradoras.
33
Santa Teresa D’Avila, religiosa espanhola do século XVI, fundadora da ordem das Carmelitas Descalças,
pregava excessiva pobreza e piedade. Santa Teresa exerce sobre Nando uma atitude religiosa contemplativa.
Assim como exercerá com a personagem Francisca no início do romance, a restauradora da imagem de Santa
Teresa.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
84
À medida que a relação de Nando vai estreitando-se com esses personagens que
pertencem a um mundo exterior ao do mosteiro, e ele começa a freqüentar os Engenhos,
onde se torna visível a abstenção da Igreja em relação aos problemas sociais. A questão se
aprofunda quando Leslie mostra a história de Maria do Egito, uma jovem que foi estuprada
pelo capataz Belmiro. O pai de Maria do Egito, o camponês Nequinho, ameaça matá-la,
caso esteja carregando uma semente do mal em seu ventre, isto porque: “Deus falou com
ele”, o camponês falava diretamente com Deus porque não havia padre no Engenho. A esse
respeito, Leslie cobra uma atitude de Nando (da Igreja):
- Mas vocês, brasileiros, é que precisam fazer alguma coisa a respeito- disse Leslie.
- Que é que vocês vão fazer?
Que chatos, Senhor, esses estrangeiros com sua eterna pergunta! Fazer o quê?
Primeiro as bases espirituais, a correção de erros históricos. Fazer, Fazer!
Objetividade. Índio-minério. Y en toda la villa de San Pablo no habrá más de uno a
dos que no vayan a cautivar indios com tanta liberdad como se fuera minas de oro y
plata. Haciendo vidas de brutos sin acordarse de sus casas y de sus mujeres
legítimas. (Quarup, p. 39)
Os camponeses sofrem um completo desamparo, por parte do Estado e da Igreja,
restando a ajuda dos Sindicatos e da Sociedade Agrícola liderada por de Januário. É Leslie,
um estrangeiro, que argumenta e mostra, para o Padre Nando na prática, a realidade dos
camponeses que vivem nos Engenhos: - Há três anos sem padre disse Leslie. E sem
nenhuma lei. Essa gente, a quem nem o Estado nem a Igreja jamais deram coisa alguma,
está sendo trabalhada pela Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores, que é em
grande parte obra de Januário. (Quarup, p.37)
Nando representa, nesse momento da narrativa, essa Igreja que se furta ao diálogo,
porque está mais próxima dos “Senhores de Engenho” e distante do “camponês”. Esses
problemas, que Nando passou à conhecer, são ressaltados a medida que ele torna-se
freqüentador assíduo da casa de Leslie e Winifred. Francisca e Levindo também ficam
amigos do casal, e as longas conversas delineiam a postura dos personagens. Leslie, por
exemplo, é jornalista e tem uma vasta cultura geral, é também descendente de holandeses,
por isto, pesquisa a influência da ocupação holandesa naquela região. Winifred, que quase
sempre participa dos debates, manifestando sua postura feminista e sua opinião sobre os
assuntos discutidos, tece ferrenhas críticas à atitude de Nando, que demonstra muito
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
85
conhecimento teórico e pouca atitude diante da vida, pois fica preso em sua utopia de
algum dia levar o cristianismo aos índios do Xingu (último Adão).
Leslie sempre provoca e questiona Nando, ora a própria história da religião, ora a
atitude da Igreja frente aos problemas sociais que o Brasil enfrenta. Provocações como as
de dizer que houve um mundo criado por Deus e governado pela Virgem Maria:
- Tenho uma novidade para você, Nando disse. - Sabe que também do ponto de
vista negativo os holandeses de Nassau teriam deixado sua marca no Brasil? Há
sinais de uma curiosa heresia que eles provocaram em Pernambuco e na Bahia.
Uma das razões do encarniçamento do Santo Ofício sobre o Padre Vieira foi talvez
essa heresia, fruto do desespero de portugueses e brasileiros dominados pelos
holandeses.
- Que heresia era esta?- disse Nando.
- Desanimados de rezar a Deus, que não parecia socorrê-los, deram uma espécie
de golpe de estado e puseram em seu lugar a Virgem Maria.
- Nunca ouvi falar em tamanho disparate disse Nando. (Quarup, p. 30-31)
A voz narrativa mostra um certo horror de Nando em discutir essas “heresias”,
34
devido ao seu forte vínculo com a Igreja Católica, e é justamente por isto que Leslie (um
protestante) o provoca. Nando sente-se incomodado em pensar num mundo “criado e
governado pela mulher”, o que denota sua ligação com uma sociedade patriarcalista:
- De volta ao mosteiro, e tentando em vão conciliar o sono, Nando procurou as
razões de sua inquietação na violência enunciada por Levindo. Mas não eram os
argumentos de feroz alegria que o perturbavam e o faziam rolar no leito: era por
trás dele a voz de Leslie com seu sotaques protestante, era aquela inominável
história do mundo não mais sob a doce intercessão de Maria mas criado e
governado pela mulher. (Quarup, p.33-34)
Em um outro momento da trama, essa atitude de Nando é reforçada, quando
Winifred crítica “uma atitude brasileira em relação à mulher”, e tem como alvo Levindo, o
jovem revolucionário que não inclui “as mulheres”, nem sua noiva Francisca, em sua causa.
Diante disto, Winifred o questiona: - em resumo, Levindo, sua revolução não inclui as
mulheres. Você nunca menciona as mulheres no seu esquema. Ou digamos que inclui as
mulheres. Mas não inclui a sua mulher, inclui? Presenciando o debate, Nando não se
manifesta, diz não entender dessas histórias de “mulher em casa e amante nas barricadas”.
34
A idéia de um mundo religioso governado por uma mulher “virgem maria”, pode ser remetida a influência
que as mulheres exercerão no aprendizado do herói. Está também ligado ao segredo do túnel do mosteiro que
reaparecerá no final do romance.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
86
Entretanto, seus pensamentos demonstram uma postura contrária, Nando estava a favor de
Levindo: Mas ah! como estava a favor de Levindo. Havia uma flor, Francisca, e diante
dela que votos faziam os anglicanos hereges? Queriam que a flor se transformasse em
soja, feijão de corda, fruta pão. (...)(Quarup, p.50-51)
Essa atitude de Nando de se omitir, de não tomar partido, também é revelada no
mosteiro, espaço onde se encontra o núcleo de personagens que representa a Igreja
Católica. No mosteiro, os personagens destacados são Padre André e Padre Hosana, os dois
têm posições bem divergentes: André é devoto e vive no devaneio bíblico, Hosana é
promíscuo está sempre quebrando o celibato com a prima Deolinda. A personalidade de
Hosana é marcada pela irreverência, ao ser proibido de visitar sua “prima”, ele compra um
revólver e mostra a Nando, que omite o fato não denunciando Hosana, mesmo não estando
de acordo com sua atitude.
O personagem Padre Hosana surgiu com base na história que Padre Carício contou a
Antônio Callado, quando esteve em Pernambuco realizando suas reportagens: sua paróquia
é a de Quipapá, onde ele teve o encargo sobre-humano de reerguer o prestígio da Igreja
depois que de lá saiu seu predecessor, Padre Hossaná, que matou o Bispo de Garanhuns a
tiros.
35
Outro personagem do núcleo ligado à Igreja Católica é D. Anselmo, com quem
Nando mantém boas relações. No mosteiro, existe uma forte tensão em relação ao
“desagradável assunto do túnel” que a Igreja quer manter em sigilo absoluto, foco da
atenção dos membros do mosteiro, ou seja, uma Igreja voltada para si. Nando também é
confidente de D. Anselmo, que lhe fala da sua preocupação em relação ao “comunismo”,
uma preocupação que não atinge somente a Igreja, mas também o exército. O exército é
representado pelo Major Ibiratinga (camisa verde e integralista). Nando, como
representante da Igreja, assume não estar inteirado dos problemas sociais do Estado
(Pernambuco) e do Brasil em geral. Portanto, o que tem é uma imagem popular do
comunismo, isto é: “distribuir entre todos o dinheiro que está na mãos de alguns”, e sua
técnica “prometer aos humildes o reino deste mundo”.
Ao comparar comunismo e cristianismo, a narrativa mostra que atuam em pólos
opostos isto se dá por meio do diálogo entre os personagens. Como afirma o personagem
35
CALLADO, A. Tempo de Arraes. Op. Cit. p. 105.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
87
D. Anselmo, a técnica do comunismo é como a técnica do cristianismo as avessas: nós
somos mais realistas. Nós prometemos o dinheiro do espírito, o Reino dos Céus, que dá
para todos. (Quarup, p. 54) Dessa forma, os católicos atuam no plano espiritual, querem
salvar a alma, guiar seus fieis para o “Reino dos Céus”, enquanto os comunistas pregam
algo difícil de alcançar, a “igualdade social” neste mundo. Nando deixa claro que a sua
incapcidade em dialogar com os marxistas, porque eles não debatem nada fora do
econômico:
- (...) Eles têm a mania, D. Anselmo, de explicar tudo pelo econômico, o que é
parcial e muito tedioso. Refugam a luta verdadeira, compreendeu? A gente diz,
com Newman, que a repetição dos pecados humanos é que retarda a construção,
na terra, de uma Jerusalém que reflita outra, e eles viram para a gente e dizem:
“Sabe qual foi a produção de açúcar este ano? Sabe quanto rendeu? E sabe que
parte do total foi paga aos camponeses que produziram o açúcar?” É claro que se
pode colher uma imagem de pecado e pecado de usura, tão verberado pela Santa
Madre Igreja no fato de uma boa safra de açúcar não melhorado a situação do
lavrador eles só dizem camponês, D. Anselmo que plantou e colheu açúcar.
Mas fazem uma escamoteação com o pecado. Pecado é o sistema vigente.
Compreendeu, D. Anselmo? O pecado é também comunizado. A alma do indivíduo
acabou. Existem só dois pecados: o pecado ativo e glutão dos que se aproveitam do
regime vigente e o pecado negativo e abjeto dos que não se rebelam contra tal
coisa. (Quarup, p. 54-55).
A aproximação de Nando do núcleo de personagens exterior ao mosteiro: Leslie,
Winifred, Januário, Levindo, Francisca etc. leva-o a reconhecer a omissão da Igreja e as
dificuldades de seu projeto de levar o cristianismo ao índios do xinguanos, salvar sua
almas, inspirado no que, para ele, foram os grandes modelos da humanidade, o “Império
Romano” e a “República dos Guaranis”. Partir para o Xingu tráz-lhe questionados e uma
grande hesitação, percebida por Winifred: - Acho que você se habituou de tal maneira a
justificar sua vida em nome desse sonho de transformar os índios não sei lá em quê, que
não vai para o Xingu de medo de falhar e ficar depois sem assunto. Você nem sabe o que
há de fazer com eles. (Quarup, p.57)
Padre Nando tem como seu grande fantasma, que o persegue e o atormenta, “o
medo de quebrar o celibato”, atitude contrária de Padre Hosana. Infringir esse dogma da
Igreja Católica ainda é inconcebível para Nando, mesmo alimentando um amor secreto por
Francisca. Por isso, encontrar as “índias nuas” no Xingu seria tentação extremada a sua
conduta de sacerdote:
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
88
- Escute, Leslie disse Nando falando de um jato. Você vai Ter a honra duvidosa
de ser a única pessoa a saber por que não segui ainda para o Xingu. Nem D.
Anselmo sabe. Só você e o meu confessor. Tenho medo de me defrontar com as
índias nuas.
- Medo de quê? disse Leslie.
- Da nudez das índias. Das índias sem roupa. (...)
- Medo como? disse Leslie sorvendo o vinho.
- Medo. Certeza de que perco os sentidos. Ou me atiro a elas. Medo. Medo. (...)
- Eu fiz com crina e com cento e cinqüenta preguinhos disse Nando uma espécie
de cueca-cilício como a do frade Suso, mas a nudez feminina me persegue. Acordo
com a maior freqüência molhado de sêmen e de sangue.
- Nando! disse Leslie. Que horror. Que Loucura. (...)
- Ou a castidade jurada ou a missão entre os índios. Nesse dilema risível vou
passar a vida inteira ficando aqui, como um dos coqueiros. Um coqueiro cheio de
aflição. É a única diferença.” (Quarup, p.79-80)
A auto flagelação do corpo e o espírito atormentado deixam Nando doente. O casal
inglês o acolhe para que se recupere, e Winifred, ao ver Nando restabelecido, toma a
decisão de libertá-lo, seduzindo-o. Ou, como disse Ferreira Gullar na Revista Civilização
Brasileira (1967): “êle come (ou é comido) a ruiva inglêsa Winifred”. Depois que Nando
teve o seu corpo católico usado e ocupado, ele diz: “Louvado seja Deus!”. Agora, parte
para o Xingu, já não tem mais nada a perder.
Após Winifred impulsionar Nando para a descoberta do sexo, ela o liberta dos
temores do “pecado carnal”, fazendo com que Nando inicie sua jornada, deslocando-se para
capital Rio de Janeiro, centro do poder político e econômico, à procura, junto ao Serviço de
Proteção ao Índio SPI -, dos meios para fundar sua Prelazia no Xingu.
As pessoas que Nando encontra no Rio de Janeiro estabelecem estreito vínculo com
a elite dirigente do país um país decadente -, mas que se mantém no poder. Como Ramiro
diretor do SPI, cargo conquistado graças a sua amizade com Gouveia o Ministro da
Agricultura. Ramiro
36
é um “homem urbano confesso”, detesta mato, é refinado e formou-
se em medicina, mas nunca exerceu a profissão. Tem uma situação econômica estável,
sendo proprietário de vários imóveis. A farmácia antiquário que possui “Farmácia
Castanho”, é seu orgulho, nela, ele preserva o seu saudosismo da influência francesa e
36
No que se refere ao personagem Ramiro, Antônio Callado confessou que tem um pouco de sua própria
história. Seu pai era médico e ele sempre teve contato com suas revistas francesas de medicina. Callado vê
com nostalgia a perda as antigas fórmulas de remédios que passaram a ser fabricados pelos grandes
laboratórios, que se tornam megas indústrias. Assim, Ramiro é parte desse seu passado.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
89
guarda suas fórmulas antigas de remédios. Para esse personagem, o Brasil parou, porque
deixou de seguir a França para seguir o ideal americano:
- Porque nós deixamos de seguir a França. (...) Buscar outro caminho é que foi a
loucura. Aí pelas alturas do ragtime, do charleston e do black-bottom deu-se a
melodia. Pegamos andando o bonde do American Way of Life. Viramos uma
civilização pingente. Paramos de crescer em nosso corpo latino, pequeno mas
elétrico e musculoso, para nos fundirmos até fisicamente com o homem ideal
americano, Tarzan. (Quarup, p. 133)
Ligada a Ramiro está Vanda, sua sobrinha e secretária - trabalha no SPI -, porque
seu tio lhe “arranjou” o trabalho e as “provas do concurso”, confessa também que ele
empregou grande parte da família. Vanda denuncia a corrupção e o protecionismo do
serviço público, em suas conversas com Nando. Vanda será a segunda personagem
feminina a aproximar-se intimamente de Nando, tornam-se amantes, e os encontros
ocorrem durante o período de sua estada no Rio e quando voltam a encontrar-se no Xingu.
Agora, Nando envolve-se com uma mulher divorciada e que tem filhos, mas sua relação
com a perda da castidade é outra:
Nando sentiu, para consolo seu, menos culpa no burlar seu voto de castidade.
Usando de cautela, como Labão quando experimentava Jacó, o Senhor lhe
permitira acesso à mulher. Mas lhe reservara uma surpresa. De certa forma seu
pecado só podia ser escriturado como meio. Entre a hora em que os meninos iam
para o colégio e Vanda saía para o trabalho, ficou freqüentador do pequeno
apartamento do Flamengo. (Quarup, p. 144)
Festas, bebidas, éter e discussões sobre a política nacional marcam os encontros
desse grupo, mostrando pontos de vistas diferentes como o de Falua, jornalista da Folha da
Guanabara e inteirado da conjuntura política, este personagem expõe a verdadeira situação
do governo Vargas. Em algumas situações, encontra defensores categóricos de Vargas,
como o Ministro Gouveia:
- Pois eu não acho nada boa a posição do Presidente disse o Falua. Ele está
perdendo substância todos os dias. A oposição se avoluma. (...)
- Inteiramente falso disse o Ministro Gouveia. Só a Folha da Guanabara é que
acha isso, Falua.
- Não, Ministro, pelo amor de Deus não se iluda. Aliás, eu acho que foi um erro
esse novo período do Governo. O homem é outro, muito mais moroso, fraco.
- Ao contrário, Falua, agora ele está no auge da sabedoria política. Ninguém pode
com ele no Brasil.(Quarup, p. 110).
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
90
Dois personagens estão no Rio de Janeiro, mas não fazem parte daquele “mundo”,
um é Otávio Cisneiro, comunista, herdeiro da Coluna Prestes, que esteve envolvido na
intentona de 1935. As características do personagem Otávio, como a sua idade e seu
vínculo com o Partido Comunista lembram Gregório Bezerra, líder comunista, que atuava
no Sindicatos Rurais de Pernambuco, entrevistado por Callado em Tempo de Arraes.
Contudo, o que aproxima Otávio desse grupo heterogêneo do Rio de Janeiro, é seu vínculo
com o Serviço de Proteção ao Índio SPI. O outro personagem é Fontoura, também é
funcionário do Serviço de Proteção ao Índio SPI -, ele é um sertanista que leva a sério a
causa indígena, foi inspirado em Cláudio Villas Boas, que Callado conheceu fazendo
reportagens no Xingu. Fontoura personifica a contradição do discurso público, pois o
Serviço de Proteção ao Índio - SPI - é para proteger os índios, inclusive, sua cultura.
Portanto, ele se opõe a idéia de cristianizá-lo e argumenta contra, o que para ele significa o
desejo de Nando e da Igreja: não queremos fazer sacristães, (Quarup, p. 102).
Fontoura repudia também a atitude protecionista do Governo em relação aos
latifundiários, imagem personificada pelo fazendeiro Gonçalo, que não aparece em cena,
mas é discutido seus desmandos, por ser primo do Governador do Mato Grosso, que, por
sua vez, é amigo do Ministro da Agricultura. Segundo Fontoura, o fazendeiro Gonçalo vive
expandindo sua terras, apropriando-se das terras da reserva indígena, e seus “afilhados” são
empregados nos Postos do Serviço de Proteção ao Índio - SPI. Tudo isto com aval do
governo.
As personagens femininas, além de Vanda, são Sônia Dimitrovna, de origem russa,
bailarina e alvo do assédio masculino e Lídia. No grupo existe o núcleo intelectual,
composto por Falua, Otávio, Lídia, Nando, Ramiro. Lídia é a terceira mulher do grupo de
personagens, é psicóloga, tem um relacionamento com Otávio e demonstra sempre
perspicácia, Nando é freqüentemente alvo de sua observação.
A breve estada de Nando na capital do Brasil faz com que consiga alcançar o seu
objetivo inicial de conseguir meios para ir ao Xingu, Ramiro passa a ver a união da Igreja e
do Estado como um meio favorável para resolver a questão do índio. A festa do quarup
será o motivo que reunirá todos os personagens no Xingu, inclusive, o Ministro Gouveia.
O dois espaços em que Nando esteve (Recife e Rio de Janeiro), impulsionaram-no a
refletir sobre sua condição; primeiro, no mosteiro, vive longos momentos de reflexão,
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
91
voltado para seu devaneio místico. Depois, em um jantar no apartamento de Ramiro
Castanho, Nando cheira lança-perfume pela primeira vez. Assim, o protagonista caminha
do devaneio místico para o êxtase do éter, esta “prise” que o éter lhe proporciona, fazendo
com que penetre no seu íntimo, estimula Nando a continuar cheirando. O éter terá
conotação diferente para algumas personagens, como Falua, que defende a “missão
educadora do éter”, distribuindo éter nas escolas. É também associado ao carnaval, “festa
popular”, dando a ele um sentido de libertação, mesmo sendo algo proibido.
Nando conseguiu concluir sua tarefa no Rio de Janeiro e desloca-se para o Posto
Capitão Vasconcelos no Xingu - Mato Grosso -, nos últimos dias de julho de 1954. Nando
está fazendo um caminho, em que os espaços que percorre, direciona-o da periferia:
Pernambuco e Rio de Janeiro, para o Centro do país: Xingu, ao mesmo tempo estava
conhecendo o Brasil.
Ao chegar no Posto Capitão Vasconcelos, Nando é surpreendido pela encenação do
“pecado original”, encomendada por Lídia e Otávio para lhe pregarem uma peça. Nando
encontra a aldeia vazia, e preocupado, dirige-se à casa do Posto de onde saiu um casal de
índios nus: Canato e Prepuri. Ela, com uma maçã, oferece-a ao companheiro que recusa, ela
então morde e oferece a Nando. Nando, confuso, aceita.
O casal representa Adão e Eva e a maçã, a tentação de Adão. Novamente, a
narrativa é tomada pelo plano religioso, Lídia, com a “brincadeira”, capta o espírito de
Nando, quando, no primeiro capítulo, alimenta a expectativa de encontrar no Xingu “o
homem em seu estado natural” o “último Adão”.
A experiência sexual fortalece Nando, nota-se sua evolução, ele vê no “pecado da
carne” abandono do celibato um alento para seu corpo e espírito. O grande medo da
nudez das índias, que o leva ao uso do cilício como auto flagelação, é sanado por Winifred,
depois Vanda. Ele está mais seguro de si, podendo contemplar as índias: apaziguado na
carne e no espírito, podia olha-las como homem de Deus e do espírito. (Quarup, p. 156)
A “sonho da Prelazia” de Nando vai se diluindo, à medida que convive com
Fontoura e com os índios uialapitis. Fontoura defende a preservação dos índios em sua
essência, sem transformá-los, precisam ser protegidos e não adulterados, por ele, o parque
seria cercado com arame farpado e eletrificado, para proteger os índios “contra o Brasil”.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
92
Sempre que os latifundiários avançavam sobre as terras indígenas, a sua
sobrevivência (caça, pesca, coleta etc.) dificultava-se. O que importa para Fontoura é que
os índios não morram todos, que tenham meios para sobreviverem, meios vinculados a sua
cultura. Em suas conversas com Nando, Fontoura fala do dessabor que foi a aproximação
do homem branco com o índio, que trouxe consigo doenças como: tuberculose, gonorréia,
sarampo, sífilis etc. A referência de defesa da causa indígena, para Fontoura, começou com
os trabalhos pioneiros de Rondon e Pirineus de Souza.
Nando admira Fontoura e sua dedicação aos índios, mas continua preocupado com a
“alma imortal” dos silvícolas e aponta como solução, para facilitar sua sobrevivência,
montar “serrarias e peixarias”, destoando completamente dos meios naturais entendidos por
Fontoura. Mas, aos poucos, Nando aproxima-se da tribo e conhece seus costumes e
problemas, como a cena marcante de seu primeiro encontro com Aicá, quando ele percebe
que os índios não se encontram no estado puramente selvagem como imaginava. Aicá, um
rapagão de uns vinte e poucos anos, era morfético, tinha o corpo coberto de feridas pelo
“fogo selvagem” ou pênfigo foliáceo. Nando mostra-se cheio de zelo, querendo tratá-lo:
tinha mais anos do que Aicá, pensou Nando, mas não pode ter tido mais chagas. (Quarup,
p.174), mas Fontoura já fizera tudo que era possível, e Nando vê seus ideais irem caindo
por terra: (...) devia conduzir da felicidade silvestre em que viviam para o trabalho na
vinha do Senhor.( Quarup, p.177)
Isolados no Xingu, o rádio é o único meio de contato com o mundo civilizado, as
notícias chegam através dele e dos que começam a chegar ao Posto Capitão Vasconcelos. A
notícia que deixou a todos em polvorosa, é a vinda de Getúlio Vargas ao Xingu, para
inauguração do Parque no dia da “festa do quarup”. Fontoura encontra-se
entusiasmadíssimo com a expectativa da inauguração do Parque: o Parque é um golpe
terrível para todos os filhos da puta de grileiros. Otávio já vê a vinda do Presidente ao
Centro do Brasil com outros olhos: a situação política vai tão mal que cada vez se
patenteia mais a conveniência do Presidente parecer alheio a ela e entregue a obra de
Governo mais sólida e séria. (Quarup, p.184)
Lídia é a primeira a chegar para a festa do quarup, ela é companheira de Otávio,
mas defende o “amor livre” e será a terceira mulher com quem Nando se envolverá. Estar
com Lídia será importante para Nando compreender o seu “problema” de ejaculação
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
93
precoce ou, como disse Lídia, ejaculatio praecox. Resolvendo este problema, Nando
conseguiria aperfeiçoar sua vida sexual, dando prazer às mulheres.
Religião, Política e problemas sociais marcam o espaço do Xingu, de um lado, os
desmandos dos dirigentes políticos, que utilizam as verbas públicas indevidamente. O
exemplo de quando destinaram verbas para Vilar plantar coco anão, sendo que a primeira
necessidade da comunidade de trabalhadores, na construção de estradas, chefiados por ele,
era uma escola e não ornamentação. Moral da história ficcional, é que Vilar desvia a verba
ou melhor “direcionou” corretamente e teve mais um processo administrativo para se juntar
aos outros que possuía. Outro exemplo é quando Vanda fala a Nando da importância para o
governo em se ter obras para inaugurar.
No plano político, os povos indígenas sofrem o mesmo descaso do camponês
pernambucano, uma vez que também estão abandonados pelo Estado e têm uma Igreja que
quer salvar o seu “espírito” e ignora o fato de suas terras, fonte de sua sobrevivência,
estarem sendo invadidas. O camponês pernambucano tem Januário como defensor, e o
índio tem Fontoura, que luta pela preservação de sua cultura, mas se vê impotente perante
os “grileiros”, na sua maioria, latifundiários, aqueles que se apossam indevidamente das
terras indígenas, recebendo o aval do poder público. Assim, embora mudando de região, o
Brasil enfrenta o mesmo problema com a questão da terra nas mãos dos grandes
proprietários protegidos pelo Estado.
Nesse sentido, o deslocamento da periferia para o Centro do Brasil mostra que o
Centro está sendo invadido. Os japoneses estão comprando terras em alianças com
fazendeiros locais, ou seja, o governo nacionalista e populista de Vargas abre concessões
aos capital estrangeiro.
Ao aproximar a festa do quarup, o núcleo de personagens, formado no capítulo
anterior (O Éter), já se encontra em sua maioria no Xingu. Vão chegando aos poucos e
incorporando a trama narrativa. Sempre trazidos por um personagem que surge neste
capítulo (A Maçã), o piloto do avião, Olavo. Entretanto, novos personagens entram em
cena e permanecem por pouco tempo, como Rolando Vilar, cuja personalidade é marcada
pela irreverência, é funcionário público e seu grande projeto ou “sonho” é construir a
“transbrasiliana”, que se concretizará com a política desenvolvimentista de Juscelino
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
94
Kubistschek. Vilar tem o respeito e a admiração de Fontoura e Otávio (estes considera-no
um líder nato, capaz de comandar a revolução).
No Posto Capitão Vasconcelos, já estão Lídia, Ramiro, Vanda, chegando, em
seguida, o Ministro Gouveia e sua atual amante, Sônia. Por fim, Falua, que viria atrás de
Sônia. Estão reunidos no mesmo espaço dois mundos: de um lado, os homens brancos
preocupados com a política nacional. Do outro, os uialapitis, alheios às preocupações do
homem branco, preparando o seu quarup. Mediando os dois mundos, está Fontoura, que
cuida para que o ritual saia como sempre foi, ou seja, preparado pelos próprios índios por
meio da caça, da pesca etc., pois se o homem branco interferisse com suas armas e seus
métodos lhes roubariam o sentido do quarup. Como disse Otávio: Fontoura ensina os
índios a se manterem índios.
A tensão entre o plano ficcional e o histórico intensifica-se com a chegada do
Ministro Gouveia e Sônia. O rádio está quebrado e ninguém ali sabe das últimas notícias,
relatadas por Gouveia:
- O Carlos Lacerda levou um tiro.
- Um tiro? disse Ramiro.
- Lacerda? disse Vilar. (...)
- No pé disse Gouveia.
- Ah, Ministro disse Otávio, reintegrando os músculos pensei que fosse a notícia
do ano.
- Acaso não é? disse Gouveia. Há toda uma infame tentativa de provar que o
atentado partiu do palácio do Catete.” (Quarup, p.201)
A partir dessas notícias, os ânimos ficam alterados, Lacerda foi ferido de raspão,
mas o oficial da Aeronáutica que o acompanhava morreu. Esse acontecimento do plano
histórico causará grandes preocupações aos personagens ficcionais. Como disse o Ministro
Gouveia discretamente a Ramiro:
- (...) que ninguém nos ouça, a coisa pode dar com o velho no chão. E a gente se
esborracha também, é claro. (...)
- O que todos temos ordem de fazer disse Gouveia é um esforço extra para que
cada programa do Presidente assuma um brilho excepcional. Minha idéia é fazê-lo
sair daqui como Pai dos Índios, além de Pa i dos Pobres. (Quarup, p. 202)
O leitor, após esta fusão do plano ficcional e histórico, tem a expectativa alimentada
pela ação narrativa, que se encarrega de prender-lhe a atenção para o desfecho do plano
ficcional. Como será que eles reagirão? Isto se dá por etapas e, à medida que as notícias
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
95
chegam através do rádio, a expectativa aumenta. Fontoura já sofre com a possibilidade de
que seu tão sonhado Parque não saia. Enfim, chega a notícia: Getúlio não vem mais ao
Xingu: volta para Itu. (Quarup, p. 233) Gouveia volta para o Rio de Janeiro e chega Falua
com mais notícias sobre o atentado.
Os dois mundos agora aparecem mais distintos ainda, pois o alvo da atenção do
“homem civilizado” é saber se Getúlio cai ou não. Enquanto isto, já começa o Quarup - a
festa funeral - do grande capitão uialapiti Uranaco,
37
preparada por seu filho Canato,
38
que
cuida do velório e da comedoria do pai. Otávio fala a Nando que esse ritual pode
desaparecer: mas não tem ninguém para fazer velório e comedoria de Canato. Depois de
Canato, o fim da picada. (Quarup, p.227)
A crise política chega ao ápice, a narrativa toma uma velocidade incrível. Otávio é o
mais tenso, pois sente-se inutilizado no meio do mato, enquanto uma potência estrangeira
ocupa a capital do país: precisamos socorrer Getúlio Vargas. (Quarup, p. 234) Ramiro
questiona-o, como ele, um comunista e ex integrante da Coluna Prestes, tem necessidade
em defender o homem que restituiu à Alemanha de Hitler Olga Benário, mulher de Prestes,
para que morresse num campo de concentração. Para Otávio, isso agora não importa, a
tarefa histórica imediata é defender Vargas, além do mais, disse Otávio: Prestes arranjou
outra mulher.( Quarup, p. 234)
As posição de Otávio mostra que o ideal de um governo nacionalista e populista fala
mais alto (mesmo para um comunista e ex-integrante da Coluna Prestes), do que um
37
A festa do Quarup e o significado da cerimônia funeral: quem oferece o Quarup tem a obrigação de não só
alimentar os convidados, como lhes oferecer hospedagem. (...) Quarup expor ao sol tem sua origem na
lenda da criação, do grande herói Mavotsinim, deus cultural de todas as tribos xinguanas, identificadas pelo
uso do uluri cinto de castidade - que as mulheres usam. (...) Sendo a lenda da criação, na qual se inspira e
da qual se origina, o Quarup saúda os grande mortos, os guerreiros de grande linhagem. (...) Antes do
Quarup de um grande lutador, toda vez que um índio de outra tribo encontra o parente do morto, ambos
choram juntos sua lembrança, recordam seus feitos. Depois do Quarup esse morto nunca mais será
lembrado, ele deixa de existir, ninguém mais chorará sua morte. Ao contrário, sua invocação provocará
alegria, felicidade. Ele foi conduzido ao Iuste céu onde só os bons e valentes podem ir. Os aleijados e
feios jamais irão ao Iuste.(...) Paramentados, pintados com óleo de piqui e tinta de jenipapo, os grandes
capitães são apresentados pelo mestre-de-cerimônia e depois de uma saudação demorada, começa a luta do
hu-ka-hu-ka. A este respeito consultar: MARTINS, E. Nossos índios, nossos mortos. São Paulo: Círculo do
Livro, 1978. p. 31-33.
38
Antônio Callado conheceu Canato, nas suas viagens como repórter no Xingu, disse, em uma entrevista, que
voltou a encontrá-lo anos depois, o jovem índio já era um senhor e contou orgulhoso para Callado que tinha
três esposas.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
96
acontecimento histórico que transformou Vargas em “carrasco” de Olga Benário e aliado
do nazismo.
Cenas justapostas vão compondo a trama narrativa. Em volta do rádio, está um
grupo de personagens. Ao mesmo tempo, Sônia deita-se na rede com o índio Anta
vaidoso e preguiçoso, passava a maior parte do tempo enfeitando-se e tocando flauta. É
flagrada por Ramiro, que a chantageia, ameaçando-a com um processo, caso não se
entregue a ele, pelo menos uma vez.
Enquanto isto, no terreiro da tribo, começa o quarup
39
(kuarup: Kuat: sol/rup:
madeira madeira exposta ao sol), eram três troncos, o maior e o mais enfeitado era o de
Uranaco: também convocados por Maivotsinim os visitantes caimaiurá, cuicuro, uaurá
atroam os ares batendo pé no chão, dançando e correndo em volta do fogo. Na casa do
Posto, ao pé do rádio, os brancos. (Quarup, p. 249)
Os brancos estão esperavam notícias e informações, assim como toda a nação que
também fica à espera de notícias para ver como os acontecimentos iriam desenrolar-se, mas
ninguém comparece à “revolução” que Otávio imagina ter iniciado na capital. Com a
intensificação dos acontecimentos políticos e a aproximação do fim de Getúlio, a
personagem Sônia, uma mulher desejada e disputada namorada de Falua, amante do
39
Assim teve origem a lenda do primeiro Kuarup, a festa dos mortos: Mavutsinim queria que os seus mortos
voltassem à vida. Foi para o mato, cortou três toros de madeira de Kuarup, levou para aldeia e os pintou.
Depois de pintar, adornou os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.
Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo
cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da
aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. (...) Os homens da aldeia perguntaram a
Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se continuariam sempre de madeira como
eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se transformar em gente, andar como gente
e viver como gente vive. (...) No meio do dia os paus começaram a virar gente de verdade. Todos mexiam
dentro dos buracos, já mais gente do que madeira. Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou
de fora, junto dos Kuarup. Só ele podia vê-los, ninguém mais. Quando estava quase completa a
transformação de pau em gente, Mavutsinim mandou que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer
barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. (...) Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles
que durante a noite tiveram relação sexual com as mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou
dentro de casa. Mas não agüentando a curiosidade, saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de
mexer e voltaram a ser pau outra vez. (...)Mavutsinim, depois de zangar, sentenciou:
-Esta bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quando se fizer Kuarup. Agora vai ser
só festa.
Mavutsinim depois mandou que retirassem dos buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os enfeites,
mas Mavutsinim não deixou. “Tem que ficar assim mesmo”, disse. E em seguida mandou que os lançassem
na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão até hoje lá, no Morená. A este
respeito consultar: VILLAS BOAS, C.; VILLAS BOAS, O. Xingu: os índios, seus mitos. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1976. p. 55-57.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
97
Ministro Gouveia e alvo do amor platônico de Ramiro , foge com o índio Anta para a
mata. Ela renuncia viver com o homem branco “encrencado”, para viver com o índio que
considera “menos encrencado”.
No ápice da festa do quarup, Ramiro dá pela falta de Sônia. Ele e Falua começam
uma busca desesperada pela mulher amada, gritando a todo fôlego o seu nome. Otávio não
se conforma com aquela situação: - Vamos para a Revolução disse Otávio, sacudindo o
Falua. - A revolução que foda disse Falua. Sônia, meu amor! So-ni-á! (Quarup, p. 254)
Os índios que assistem à cena, sabendo que Sônia tinha desaparecido com Anta,
riam de Ramiro e Falua. A voz narrativa, intermediada pelo olhar de Nando, observa o riso:
um riso que se o mesmo não era parecia até demais com o riso que em tais circunstâncias
seria rido em Olinda ou no Rio de Janeiro. (Quarup, p. 255) Esta é a atitude de Nando,
observar sem interferir tanto na festa quanto nas discussões, chega a receber críticas de
Otávio pela sua indiferença. Enquanto isto, prossegue o ritual do quarup noite a dentro,
festejado com o torneio do huka-huka:
Maivotsinim num prego de desgraça entregava os pontos e esperava que alguém
maior cumprisse seu sonho de virar quarup em gente que povoasse o mundo e
adorasse ele, Maivotsinim, que não podia mais viver sem a paparicação dos
homens. Mas desistia que ninguém é de ferro e tinha hora de descanso para quem é
Deus também, que diabo. (Quarup, p.253)
Maivotsinim, cansado, desiste, Getúlio pressionado suicida. A cerimônia funeral do
quarup funde-se com o suicídio de Vargas, que dá um tiro no peito. Enquanto o tronco do
quarup de Uranaco bóia no rio tuatuari.
(...) Fontoura berrando o velho se suicidou, o velho se matou, o velho morreu e
nem interessava também que o Cícero berrasse junto dizendo meteu uma bala no
coração e morreu, Getúlio morreu. Otávio saiu correndo como um doido do campo
de pouso e encontrou diante da casa do Posto Cícero aos soluços e Fontoura
repetindo Getúlio morreu e Nando e Vanda e Lídia de caras transtornadas também
(...)Falua e Ramiro estavam ao pé de uma mala aberta onde tinha uma caixa de
rodo metálico e os dois tinham lenço na mão (...) quarups que vinham rolando,
rolando pelo declive tocados pelos pajés e plaf plaf palf um atrás do outro foram
entrando n’água e o maior de Uranaco mergulhou um pouco, emergiu, saiu
boiando (...) (Quarup, p. 259)
O ritual do quarup redimensiona a vida dos personagens, e Nando tem que ir a
Pernambuco, devido ao episódio do assassinato de D. Anselmo por Padre Hosana. Nando
sente-se culpado, pois sabia que Hosana tinha um revólver e não fez nada. Ao visitar
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
98
Hosana na cadeia, insiste em sua parcela de culpa, mas o assassino diz que sua culpa é a
mesma do povo brasileiro, pois não houve a revolução popular, e o único tiro foi o dele:
- Tem disse Hosana. Como parcela que você é do povo brasileiro. D. Anselmo
foi assassinado pelo povo brasileiro. Logo ele, coitado, que era italiano.
- Você por exemplo, Nando, você calculou, nos confins do Xingu, que a morte de
Getúlio Vargas pudesse passar em branca nuvem? Que o velho metesse uma bala
no peito e pronto, fossem todos dormir depois? Sem que ninguém disparasse um
tiro? Você podia imaginar que o único tiro da noite de 24 de agosto fosse o meu?
(Quarup, p. 269)
Hosana imaginou que a revolução popular começaria com a morte de Getúlio, ou
que pelo menos, haveria alguma baderna. Mas o “povo faltou à revolução”, ninguém foi às
ruas, e Hosana, que matou D. Anselmo para dormir impunemente com a prima Deolinda,
foi pego em flagrante.
O depoimento de Nando sobre o assassinato de D. Anselmo provoca, segundo a
Igreja, sensacionalismo ao caso. Isto mais a atitude “libertina” de Nando tornam-no um
exemplo indesejável e uma presença nefasta para a Igreja. Diante dessas circunstâncias,
Nando volta para o Xingu e torna-se funcionário do SPI.
Em seu encontro com Hosana, Nando fica sabendo que Levindo também foi
assassinado, o motivo foi o fato de ter invadido um engenho com um grupo de camponeses
que reivindicavam salários atrasados. E sua amada Francisca foi enviada para Europa.
Ao retornar ao Xingu, Nando embrenha na mata, enquanto a narrativa dá um salto
no tempo de 7 anos da festa do quarup à chegada da expedição ao Posto Capitão
Vasconcelos. Nesse período, Nando descobre novas tribos, abandona o sacerdócio e
demonstra estar desligado da política do país. O enredo mostra seu protagonista
profundamente isolado, buscando avidamente o “Centro” o seu Centro ou o Centro de
Fancisca? ao seu lado no Posto, continua Fontoura, embriagando-se cada vez mais.
Fontoura é retirado da chefia do Posto Capitão Vasconcelos e Vilar demite-se, indo
trabalhar para o Fazendeiro Gonçalo, até Juscelino mandar chamá-lo de volta para fazer a
transbrasiliana.
No ritual do quarup, três troncos de madeira foram colocados no centro do terreiro
da tribo uialapiti. No plano histórico, morreu Getúlio e, no plano ficcional, morreram D.
Anselmo e Levindo, três funerais associados ao ritual de celebração da vida e da morte.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
99
Quanto à elite dirigente do país, o Ministro Gouveia caiu, mas Ramiro conservou
seu posto no SPI e organizou uma expedição em busca do Centro Geográfico do Brasil, ou
melhor, em busca de Sônia (no capítulo “A Orquídea”).
A chegada dos membros da expedição tráz uma grande surpresa para Nando,
Francisca veio como membro dela, sua função será de documentar a viagem para o Serviço
de Proteção ao Índio - SPI - e para o Museu Nacional: Francisca que não o viu e por isso
não lhe sorriu como Beatriz não sorria para não reduzir o poeta a negra cinza com a visão
insuportavelmente bela do seu semblante assim iluminado. (Quarup, p. 275)
A narrativa recorre à obra clássica Divina Comédia, ao amor de Dante por Beatriz,
para expressar o sentimento de Nando ao rever Francisca, e ao que sente por ela. Mas
Francisca está mudada, assim como Nando também mudou. Agora ela ensina os
camponeses a ler e escrever, em memória de Levindo. Está ali para cumprir uma promessa
que fez a Levindo, de levar a terra do coração do Brasil e colocar no Sindicato de Palmares.
Francisca não quer deixar morrer aquele jovem sonhador que foi morto a bala pela polícia,
em prol a causa do camponês pernambucano, e que não teve o devido reconhecimento, pois
foi enterrado por sua família como vítima de atropelamento. Francisca sente-se angustiada,
porque já faz quase dez anos da morte de Levindo e quase ninguém se lembra dele, cabe a
ela não deixar o mundo de Levindo morrer na memória das pessoas.
Os demais membros da expedição que haviam chegado, eram Ramiro, Vilaverde
que iria substituir Fontoura no cargo do Posto. Lauro (etnólogo, sociólogo, polígrafo e
especialista em lendas brasileiras) e Olavo, o piloto. Nesse núcleo de personagens, há
Francisca, que surgiu no primeiro capítulo e retornara agora; Ramiro, que está na trama
narrativa do “O Éter”, “A Maçã”, volta em “A Orquídea”; Fontoura, assim como Ramiro,
está presente desde “O Éter”; Olavo, o piloto que transportava as pessoas para o Posto,
aparece em “A Maçã”; os demais personagens como: Lauro e Vilaverde sugem apenas em
neste capítulo, bem como as tribos que encontrarão no percurso da viagem.
O momento da partida da expedição é marcado pela aversão ao estrangeiro, Lauro
diz estarem indo para um lugar que jamais foi pisado por estrangeiro. Todavia, o Centro
Geográfico do Território Nacional fica perto da Cachoeira Von Martius, o que já é uma
dicotomia apresentada pela narrativa. A Localização do Centro é de 10 graus e 20 minutos
ao sul do Equador e 53 graus e 12 minutos a oeste de Greenwich. (Quarup, p. 290)
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
100
O busca pelo Centro do Brasil tem conotação diferente para cada personagem,
Francisca, por exemplo, acha incrível que ainda exista um país em busca do seu coração. O
sentido do Centro, para ela, está associado à morte de Levindo: esse Centro tinha para ela
um sentido amoroso que acabara não em sangue de lençol mas em sangue empapando a
terra dura dum pátio de engenho?(Quarup, p. 291) Sua busca concretiza-se no final do
capítulo, quando colhe a terra, e Nando a questiona: - Você vai diretamente a Palmares, a
Levindo?- Vou disse Francisca. Também eu disse Nando. (Quarup, p. 373-374)
Lauro estava na expedição com objetivo de coletar material para provar sua teoria
psicológica sobre o indígena como formador da mentalidade brasileira. Esse personagem
representa o intelectual, sagaz em suas teorias, mas sem conhecimento prático. Sua
personalidade é marcada pelo forte nacionalismo e anti-americanismo, relata a Nando que,
em sua viagem ao Rio Amazonas, encontrou um portozinho com meio dúzia de cabanas,
mas que se chamava Liverpool. Entretanto, o mais humilhante para ele foi perceber que os
mapas pormenorizados do Amazonas, utilizados pelo Capitão nessa viagem a que se
referiu, eram do Departamento de Marinha dos Estados Unidos.
No decorrer da viagem, Lauro conta lendas como as do Jabuti (Quarup, p.287-293)
e da Cobra Grande (Quarup, p.323), reconhecidas por Nando como importantes para o
repositório cultural. À medida que rumam em direção ao Centro, Lauro fala do Brasil que
quer e da raça que imagina, a raça cósmica:
Eu quero um Brasil brasileiro de verdade, liderando o mundo, um Brasil nosso
mulato. (...) O que eu acho é que nós latino-americanos temos o encargo específico
de apressar o advento da raça cósmica, segundo a concepção do mexicano José de
Vasconcelos. (...) Nosso destino é evidentemente o de acelerar a mestiçagem no
rumo da raça única, cósmica. (Quarup, p. 305-306)
Lauro, ao se ver ameaçado por uma tribo de índios quase mortos, os cren-acárore, é
contra atitude de Fontoura e Vilaverde de ajudá-los, correndo o risco de sacrificar os
membros da expedição. Considera ridículo sacrificar homens civilizados e cultos a
selvagens.
Em dois outros momentos, Lauro demonstra, ao lado de sua capacidade teórica, a
sua incapacidade de reconhecer na mata os componentes de suas lendas. Francisca
pergunta-lhe se o tucumã, mencionado na lenda da cobra grande, é uma árvore, ele diz que
sim. Nando diz que é uma palmeira. Ele concorda também Claro disse Lauro
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
101
Astrocaryum Tucuma, classificada pelo Martius, esse da cachoeira. Na verdade, Lauro não
sabe que é uma palmeira que está bem à sua frente. O segundo momento é a sua descoberta
do pé de taperebá árvore do Jabuti, Lauro já havia consultado os mais entendidos sobre a
mata, se conheciam essa planta de fruto azedo. Até chegar em Vilaverde, que lhe disse
chamar-se, no Rio de Janeiro cajazeira o pé e a fruta cajá-manga.
A busca de Ramiro já foi declarada desde o início, ele apesar de ocupar um carga
público, não se preocupa com o Centro do Brasil, continua a fazer parte de uma elite e
dirigente do Serviço de Proteção ao Índio SPI -, é alheio aos problemas do indígena. Sua
busca é por Sônia, o que dá uma conotação instigante à narrativa, pois Sônia parece não
querer ser encontrada. Além do mais, ela é de origem russa, ou seja, ele procura uma
mulher de origem estrangeira, que conseguiu deixar o mundo “civilizado” para trás e viver
na mata.
Vilaverde tem a mesma dedicação de Fontoura aos índios, tem respeito pela sua
cultura e quer preservá-los. Se Fontoura já tivesse morrido, seria possível dizer que o Deus
Maivtosinim conseguiu recriar o seu quarup, personificado como Vilaverde. A busca de
Vilaverde é pela aproximação com tribos novas, para poder tentar conhece-las e preserva-
las.
Já Fontoura busca o coração do Brasil, para ouvi-lo ainda bater, personifica a
descrença de toda uma vida de luta em prol uma causa.
Olavo piloto, do avião que dá assistência ao Posto Capitão Vasconcelos, incorpora a
expedição para ver de perto o que via dos ares.
A busca de Nando é por Francisca, pelo centro de Francisca. No decorrer da
viagem, aproximam-se, e Nando vê seu sonho de ter Francisca realizado. O momento
divisor de águas entre Nando e Francisca é quando ele descobre uma vereda de orquídeas
40
na foz do Rio Jarina, abaixo da Cachoeira Von Martius.
Nando e Francisca não falaram. Apenas se voltaram um para o outro, braços
abertos, e o breve instante em que se separaram foi para deixarem cair no chão as
40
A orquídea que dá título ao capítulo, tem um conteúdo simbólico, segundo Lígia Chiappini: a palavra
(orchidion, do grego = testículo) símbolo da fertilidade, aparece no centro da floresta tropical, com muita
água e muita cor, no momento do encontro de Nando e Francisca, e no centro do livro. (...) A integração dos
amantes com a natureza é completa, a mulher se funde com as flores e a cena reatualiza o mito de Adão e
Eva, inocentes, a descobrir o amor no paraíso. A este respeito consultar: LEITE, L. C. M. Quando a Pátria
Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado. Op. Cit. p. 165.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
102
roupas sobre as quais se deitaram debaixo de orquídeas pálidas, separados do rio
por um cortinado de orquídeas coloridas. (Quarup, p. 319)
Nando persistirá na busca por Francisca até o final, pois Nando já descobriu que ela
nunca irá embora, porque está nele (a busca por Francisca é a busca por si mesmo e a busca
pelo Brasil). Diante de suas descobertas , Nando manifesta o desejo de acompanhá-la de
volta a Pernambuco. Ele está pronto para uma nova etapa, pois conseguiu encontrar
Francisca, mas primeiro Nando precisou encontrar a si mesmo, isto se deu graças ao éter:
- O sacerdote encontrou no lança perfume a confirmação da vontade de Deus disse
Nando. A qual era que eu amasse você.(...)
- O éter encaminhou você a mim?
- Me encaminhou a mim e a você.(...)
- (...) O éter me levou ao meu eu real e a busca desse real era você.
- E todo mundo imaginando que a busca de sua vida eram os índios do Xingu.
Quando acaba era só eu. Você é de uma desambição de dar pena, como diria
Winifred.
- (...) Mas eu me conheci no éter e sei que sou homem de dedicar a vida.” (Quarup,
p. 332)
A ação narrativa marca a dimensão temporal com o eclipse da lua no dia 25 de
agosto de 1961. Nesse dia, a expedição é atacada pelos índios cren-acárore, esfomeados e
moribundos, vítimas de sarampo trazido pelos seringueiros. Um índio que fazia parte da
expedição morre e em seu túmulo fica a inscrição: Jubé. Morto rumo ao centro. Agosto de
1961.
A expedição continua rumo ao centro, debilitados, pois tinham que alimentar os
índios que a beira da morte os seguiam. Nessa altura, o apoio aéreo havia desaparecido e os
suprimentos acabaram, quando retoma contato, o piloto explica o motivo de sua ausência:
Desculpem o mau jeito e o atraso mas estamos todos de prontidão. O Brasil ainda não tem
Presidente da República. (Quarup, p. 370)
O Plano histórico funde-se com o ficcional, pois Jânio Quadros renuncia à
presidência em apenas sete meses de governo. Por fim, a chegada ao Centro vai ser
marcada pela morte de Fontoura e pelo maior panelão de saúva do Brasil,
41
exatamente no
coração do Brasil. Ou seja, o formigueiro tomou conta, o centro do Brasil já fora invadido.
41
Antônio Callado faz referência a Macunaíma de Mário de Andrade.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
103
Fontoura, que estava gravemente doente, pede ajuda a Francisca para ouvir o
coração do Brasil. Fontoura com a cara enterrada no formigueiro, pergunta a Francisca se
ela ouve o coração bater: estou perguntando porque a gente ouve leve. A batida é funda.(
Quarup, p. 377) Francisca consegue tirá-lo de lá, mas não consegue evitar sua morte: (...)
Nando encontrou Francisca sem sentidos contra um tronco de árvore, sentada. Entre suas
pernas, aninhado no seu ventre, Fontoura como se tivesse acabado de nascer dela. Só que
estava morto.( Quarup, p. 378)
O socorro chega, Amaral, piloto do Correio Aéreo Nacional, veio para resgatá-los
no Centro do Brasil, com um americano Major Norry: um camarada louro, de macacão
azul-marinho brilhante com fecho ecler de alto a baixo. Um americano. (378) Amaral
explica que só conseguiu hidroplano na Missão Militar Americana.
A narrativa apresenta um Brasil invadido por todos os lados, não há saída. Só
restava içar a bandeira do Brasil no mastro improvisado e partirem. Mas, e a bandeira?
Todos esqueceram de trazer a bandeira do Brasil, o mastro vai ficar vazio, com a
companhia de Fontoura, que próximo dali, foi sepultado, após uma vida de dedicação à
causa indígena. Não se esquecendo das “saúvas” que invadiram o centro. Na ausência da
Bandeira, Ramiro iça o vestido que Sônia deixou para trás no dia em que fugiu.
O Brasil sendo invadido e o Presidente renunciando, Nando e Francisca falam da
situação, e ele a define da seguinte forma:
- Mas que coisa, o Jânio! Ele tinha o quê? Meses de governo, não?
- Sete meses disse Nando e aquela gana toda. Eu estou começando a entender a
História do Brasil. São uns apressados, Francisca.
- Como apressados?
- Veja o Jânio. Gozou depressa demais. Fica a Pátria sempre nessa aflição,
esperando, esperando, insatisfeita, neurótica.” (Quarup, p. 379)
Assim, encerra o fim de um período, em que o protagonista abandonou o sacerdócio
e enfrentou uma longa trajetória nos sete anos transcorridos (1954-1961). Vários tema s
foram colocados em cena, por meio de vários personagens, e Nando é impulsionado pelas
personagens femininas a tomar conhecimento de si mesmo, enquanto se afasta da Igreja
Católica e dos ideais de salvação da alma dos índios Xinguanos. Ao conhecer pessoas de
níveis sociais diferentes, de culturas diferentes, e com visões diferentes sobre o Brasil, ele
tem contato com diversos “Brasis” e, com isto, evolui.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
104
O encontro do “Centro Geográfico do Brasil” é o momento da grande virada, o
formigueiro gigante no coração do país é a constatação de que o Brasil foi tomado, por
outro lado, Fontoura morre ouvindo o “coração do Brasil bater lentamente”, sua morte no
meio das pernas de Francisca como se estivesse “nascendo” aponta para uma saída, pois
ainda há vida, mesmo que fraca. Ainda há esperança para o Brasil.
2 - Do Centro do Brasil a Periferia: do Xingu a Pernambuco.
Nando e Francisca fazem o caminho de volta, deslocam-se do Xingu para
Pernambuco (passando pelo Rio de Janeiro, onde permanecem por quatro dias). O Estado
está sob liderança do governador Miguel Arraes, eleito em 1962, um governo democrático,
que tem o apoio popular e que investe na alfabetização dos camponeses: “educação
popular”. Neste projeto, estão Nando e Francisca, alfabetizando pelo método de Paulo
Freire, que utiliza vocábulos ligados à realidade do indivíduo, em que os temas vão sendo
construídos: Constituição, Nações Unidas e cultura popular: caboclinhos, frevo, bumba-
meu-boi, maracatu etc.
O capítulo “A Palavra” é dedicado a um projeto de transformação, lento, mas eficaz,
transformar por meio do conhecimento, da educação, da “palavra”, não somente ensinar a
ler palavras, mas ler a realidade. Na narrativa, estão presentes os movimentos de esquerda
do período como: a Esquerda Católica, o Partido Comunista, as Ligas Camponesas etc.,
agentes que estão fazendo a transformação na realidade pernambucana.
Miguel Arraes é um personagem histórico, que recebe o mesmo nome no plano
ficcional, assim como os presidentes do país. Arraes é admirado e querido pelo povo, a
exemplo do diálogo entre Nando e Manoel Tropeiro, em que Nando explica a Manoel que o
Governador Miguel Arraes está obrigando os donos de terras a pagarem impostos, que, por
sua vez, o Estado utiliza em projetos como o da educação: para educar o povo; o povo
educado vai exigindo cada vez mais o que devem a ele.( Quarup, p. 404).
Os agentes históricos estão sob a máscara de personagens ficcionais, alguns já
identificados como Januário (Francisco Julião), idealizador e líder das Ligas Camponesas.
A Igreja Católica é representada pelo Padre Gonçalo (Padre Melo), que está fundando os
sindicatos rurais. Os sindicatos são um espaço divido entre a Igreja e o Partido Comunista,
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
1
05
representado por Otávio (Gregório Bezerra), e motivo de rixa de ambas as partes. Na
representação do Partido, está Otávio fundador do Primeiro Partido no Brasil, agora muito
mais contente, muito mais convencido, como dizia, de que afinal a Coluna Prestes fora
recebida numa cidade brasileira.( Quarup, p. 396) Como se vê, alguns personagens
retornam à cena, como Januário, Otávio, depois incorporarão a narrativa os ex-padres
André e Hosana, Lídia e o capitão Ibiratinga.
Novos Personagens entram em cena, como os estudantes Jorge e Djamil, Manoel
Tropeiro, os camponeses e jangadeiros, ou seja, o povo entra em cena.
No plano político, os movimentos de esquerda apresentam interesses diferentes, mas
com os mesmos objetivos, sendo eles os de promover em Pernambuco - palco de uma
experiência democrática única até então, o bem estar social, ou o mínimo de dignidade e
sobrevivência ao povo tão sofrido e explorado pelos coronéis em Pernambuco.
´Transformar através da palavra” e, quem sabe, levar está experiência para o resto do
Brasil, como deseja Nando, elegendo o Governador a Presidente da República em 1965.
Ou, como deseja Januário, iniciar a Revolução Armada no Brasil.
As Ligas Camponesas de Januário estão voltadas para os problemas dos Engenhos,
como o caso do Engenho Auxiliadora, em que trabalhadores não recebem os salários, e cujo
proprietário, Coronel Barreto, recusa a cumprir a determinação do Governo de pagar. Os
trabalhadores se recusam a sair de lá e enfrentam a fome e as doenças, como a varíola
42
ou
“bexiga” que chegou por lá. Januário vê como saída a marcha que está organizando junto
aos camponeses para reivindicarem uma solução junto ao Governo do Estado.
Januário é um homem de esquerda, que não se filia ao Partido. Para Nando, sua
atitude é “pirraça”, pois não ingressa no Partido Comunista, mas tenta conseguir armas de
Cuba para sua “Revolução Armada”. A narrativa mostra Januário liderando as Ligas
Camponesas e conseguindo melhorar as condições de vida e de trabalho do camponês
42
Na história de camponeses com varíola, Callado inspirou-se em Tempo de Arraes, como a grande parte do
capítulo “A Palavra”, o fato que relatou foi o do Engenho Serra, o proprietário Alarico Bezerra, que Callado
diz ter sido, em “outros tempos”, homem forte da Secretaria de Segurança do Estado. Agarrado a “civilização
da chibata” fechou seu engenho para que os camponeses partissem sem salários e indenizações. Os
camponeses que resistiram e permaneceram no Engenho, começaram a morrer de fome e de varíola: Se
alguém chegasse, em plena Idade Média e em tempo de peste, a uma aldeola miserável de Portugal, não
encontraria quadro mais fantástico do que o desses camponeses do Engenho Serra, que morrem de fome e de
revolta, alguns cobertos das bexigas de varíola. (grifo nosso) A este respeito consultar: CALLADO, A.
Tempo de Arraes. Op. Cit. p. 67.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
106
Pernambucano. Percebe-se, também, que as Ligas estão se espalhando pelo Nordeste, por
meio do diálogo entre Nando e Januário, quando Januário narra sua ida à Paraíba para
garantir a participação das Ligas na Marcha de Solidariedade ao Engenho Auxiliadora, e,
chegando lá, depara-se com o assassinato do trabalhador Pedro Monteiro de Mari, e com a
atitude de sua mulher Isabel Monteiro,
43
que enterra o marido e vai denunciar sua morte em
um comício.
O líder camponês Januário reconhece o trabalho que vem sendo desenvolvido em
Pernambuco, mas, ainda assim, julga que cabe aos camponeses serem solidários e cobrarem
do poder público medidas rápidas. Otávio, do Partido Comunista, teme que a marcha:
prejudicasse o trabalho sábio do Governador que altera as estruturas fósseis do Estado
sem dinamitá-las. Mas o final desta ação ficcional será a compra do Engenho Auxiliadora
pelo Engenho vizinho Maguari seu dono é cupincha dos gringos e comprou o Auxiliadora
com o dinheiro dos gringos. E a tão desejada Marcha de Januário acontecerá, mas com
outro motivo, será de apoio ao Governo do Estado, que se encontra ameaçado pelos
militares.
A formação dos Sindicatos deve-se à Igreja. Padre Gonçalo fala a Nando da
facilidade de se criar um sindicato: já temos uns dois mil por aí. A Superintendência da
Reforma Agrária dá à gente uns impressos que a gente enche e pronto, nasceu outro
sindicato.( Quarup, p. p.398). Nando e Padre Gonçalo têm pontos de vistas diferentes em
relação à presença do Partido Comunista nos sindicatos. A Igreja pensa que ganhará a luta,
pois o Partido “trabalha para eles”. Nando já considera que a Igreja cria os sindicatos e os
comunistas infiltram, sem que a Igreja possa fazer nada, a não ser aceitar. Padre Gonçalo
não admite essa teoria, pois, para ele, a Igreja está no leme, portanto, a infiltração do
comunismo nos sindicatos é planejada pela Igreja, o grande prêmio foi atraí-los: -Pla-ne-ja-
43
Isabel Monteiro foi inspirada na história de Elizabete Teixeira líder camponesa na Paraíba, viúva do líder
camponês João Pedro Teixeira morto em 1962. Callado a entrevistou na reportagem que intitulou “História
Trágica de Elizabete Teixeira”, presente na coletânea Tempo de Arraes.
Outra referência sobre a história de Elizabete Teixeira é o filme Cabra Marcado para Morrer de Eduardo
Coutinho, o projeto inicial do filme era contar a história de João Pedro Teixeira líder da Liga Camponesa de
Sapé, assassinado por latifundiários, sua morte teve repercussão e em seu enterro compareceram cinco mil
pessoas. O filme contava com os próprios camponeses como atores, mas não chegou a ser concluído, o
Governo Militar apreendeu equipamentos de filmagem, membros da equipe e camponeses, sob a acusação de
estarem envolvidos com o governo cubano e de ser “material subversivo”. Dezessete anos depois, Eduardo
Coutinho encontrou Elizabete Teixeira vivendo clandestinamente em São Rafael RN, com o nome de Marta
Maria da Costa. A esse respeito consultar o documentário: CABRA Marcado para Morrer. Direção: Eduardo
Coutinho. Op. Cit.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
107
da! Precisamos tornar o comunismo uma realidade para que o único Manifesto irrealizável
continue a ser o Evangelho.( Quarup, p. 398).
Para o Padre Gonçalo, Otávio e os comunistas perderam a luta no momento que
aceitaram lutar no terreno da Igreja, ou seja, “a alma dos homens”. Assim, fica nítida a
nova postura da Igreja e sua rixa com o comunismo:
- (...) Do momento em que os padres voltaram às fontes evangélicas e se colocaram
ao lado dos pobres, os comunistas só poderiam ganhar se levassem a luta ao
terreno do imaterialismos a-histórico. Aí perdem. Não tem os livros, não tem as
teses. Não sabem de que se trata. As heresias antigas eram muito mais perigosas do
que a comunista porque disputavam o homem inteiro.(Quarup, p.399)
Já Otávio calcula que, no final, quem vai ganhar é o Partido, e recorre a toda sua
ironia para dizer que os comunistas só aceitariam Deus de volta “se a Igreja canonizasse
Marx”. Para Otávio, Januário fez as Ligas, a Igreja fez os Sindicatos, e o Partido fornece os
quadros às Ligas e aos Sindicatos. Reconhece também que o Partido tem feito pouco no
Brasil:
(...) Eu sou o fundador do Partido no Brasil e pretendo morrer membro do
Partido. Mas aqui entre nós que ninguém nos ouça, o Partido tem feito tão pouco
no Brasil que o único jeito era empurrar a culpa para cima do Brasil. O
Governador está mostrando do que é que o Brasil é capaz. (Quarup, p. 409)
Já em Nando a transformação é evidente, agora está engajado nos movimentos de
esquerda, sua casa torna-se palco de reuniões espontâneas, as quais comparecem
estudantes, camponeses para conversar. Geralmente, os estudantes que visitam sua casa são
da “Assessoria Sindical do Governo do Estado” acompanham a Polícia quando os
engenhos e usinas requisitam força, para fazerem seu relatório depois. Assim, A força
Pública era o povo. (Quarup, p. 397)
Em sua conversas com gente simples, como Manuel Tropeiro, Nando, agora um
Nando “didático”, explica a razão do que parecia impossível àquela gente humilde, receber
seus salários e com aumento. Um das razões é o fato de o Governo mandar a Força Pública
ao dono de terra que não pagasse os salários, o segundo motivo era o embargo econômico à
Cuba, que produzia muito mais açúcar do que o nordeste brasileiro. Manoel Tropeiro
demonstra o receio que as pessoas comuns têm em falar de Cuba. Quando Nando questiona
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
108
Manoel, se ele já ouviu falar de um país chamado Cuba, ele responde: - Deus me proteja,
Seu Nando. Então quem é que não sabe disto? (Quarup, p. 401)
A mudança de Nando pode ser percebida em algumas de suas declarações, por
exemplo: Padre Gonçalo lhe indaga se está aliciando gente para o partido: - Eu não alicio
disse Nando. Encaminho as pessoas para o fervor que as atrai. É claro que só conheço
pessoas bem formadas, isto é, que vivem de costas para a direita.( Quarup, p. 397)
Ou quando diz a Lídia que não tem Francisca, mas o que tem ali, naquele momento
em Pernambuco, é peculiar e único:
Meu reino de Deus foi adiado disse Nando. Por pouco. Em nenhum lugar do
mundo o mundo está sendo tão rapidamente alterado e tornado melhor como aqui,
neste ponto do Brasil, neste momento. E eu estou dentro do turbilhão. Sou uma
faísca do raio. Quando além disto eu tiver Francisca vou viver ao mesmo tempo
nesse turbilhão e na eternidade. Entendeu? (Quarup, p.399)
A busca de Nando por Francisca continua, pois ela não consegue estar com ele
naquele lugar, que um dia seria o mundo idealizado por Levindo. Francisca teme que
Levindo tenha vivido inutilmente, mas Nando é otimista, para ele, há muita gente ao redor
deles ajudando a fazer um mundo melhor, mais feliz, o mundo de Levindo: - Será possível,
Francisca. Vem vindo, vem vindo disse Nando esse mundo vem vindo.( Quarup, p. 431)
Em meio a essa gama de otimismo, não só de Nando, mas de Otávio, Januário,
Padre Gonçalo, Camponeses etc. O país começa a sofrer o “Grande Golpe”, toda a ação
narrativa, que, até então, demonstrava uma perspectiva animadora do país, especialmente,
de Pernambuco, reverte para o pessimismo e o perigo eminente, sofre um baque, uma
ruptura. O que antes era um “ideal democrático”, agora se transforma em pesadelo.
Januário dá as últimas notícias para Nando e Otávio: Belo Horizonte não deixou o Brizola
falar e em Juiz de Fora nosso Governador só pôde se dirigir ao povo garantido por uma
tropa que não acabava mais. (Quarup, p. 434)
Essa não é a única má notícia, houve também a Marcha de São Paulo contra Jango,
segundo Otávio, com meio milhão de pessoas. Para o estudante Djamil, meio milhão de
grã-finos, ou seja, a burguesia brasileira está contra o governo democrático de João
Goulart. Nessas alturas, o Governador do Estado havia mandado uma carta a todos os
outros Governadores do Nordeste, denunciando a eles que a situação não estava nada boa:
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
109
se nós todos não nos unirmos, amanhã estamos com o país debaixo de uma ditadura de
milico e gringo. (Quarup, p. 435)
Para Nando, a melhor das hipóteses seria a guerra civil, ele alerta Francisca de que
aquele pequeno mundo que começaram a criar desmoronaria a qualquer momento. Os
temores de Nando se cumprem-se, a marcha de Januário, que antes era em defesa do
Engenho Auxiliadora, reverte-se em defesa do Governador, quando ele esperava de 30 a 40
mil camponeses, aparecem uns 3 mil vestidos em seus trajes de festa e levando, a maioria,
seu radinho a pilha.
O resultado foi que todos os líderes das Ligas são presos, inclusive, o líder Januário
e Nando, que também estava na manifestação. O Governador já estava cercado no palácio,
e o IV Exército o depôs. Os camponeses começam a protestar com as lições que
aprenderam:
(...) um deles se lembrou da frase inteira da Lição 74, a qual disse em voz alta:
- Isto não é democracia, governo do povo? (...)
Foram tocados para dentro dos carros aos empurrões por soldados pálidos que por
desconhecerem a Lição 74 acreditavam na súbita loucura daqueles homens um
momento atrás tão silenciosos e mansos.
- DECRETO, CRISE, LUCRO!
- O BRASIL CRESCE COM CRISES MAS CRESCE. DEMOCRÁCIA. CRA, CRE,
CRI, CRO, CRU! (Quarup, p. 445)
A confiança inicial de construir um país verdadeiramente democrático é banida,
agora, é a hora dos interrogatórios, da tortura, de irem ao “porão”.
Ressurge, na narrativa o Coronel Ibiratinga, o camisa verde e integralista, confessa a
Nando que o Exército estava se preparando desde de 1961, por isto, nas Ligas e nos
Sindicatos, havia gente do Exército infiltrada. O coronel queria que todos confirmassem a
Revolução Comunista que estava em Marcha no Brasil. O coronel Ibiratinga é um católico
devoto, toma a hóstia todos os dias, mas, para ele, a Igreja acabou em 1961. E faz relação
entre “tortura e inquisição”
44
, já que no Brasil ninguém foi para fogueira, ele assume os
deveres inquisitoriais, ele assume a tortura, legitima-a em nome de sua causa:
- Coronel disse Nando aquele seu porão me dá vergonha de ser brasileiro.
44
Esta relação tortura inquisição e golpe militar, também foi feita por outros autores, a exemplo da peça
teatral Galileu Galilei em 1937 por Bertolt Brechtt e encenada em 1968 sob a direção de José Celso Martinez
Correa.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
110
- Vergonha eu só tenho de precisar fazer o que faço num porão. Eu faria o mesmo
em salas de vidro, para que todos vissem da rua, ao passar, que este país defende
sua herança cristã. (...) (Quarup, p. 463)
Nando encontra conhecidos no porão, como Manuel Tropeiro, que foi torturado para
confessar que Januário e Nando os treinavam com armas vindas de Cuba, para fazerem
guerrilha. O ex-padre André, que todos sabiam ser louco, estava sendo torturado, porque
dizia que Fidel era “Jesus Cristo” de volta à terra. Libânio, um dos líderes da Liga,
“concordou” que iriam permitir a entrada de russos e cubanos no Brasil; Nando lhe
perguntou porque ele disse isto, e ele gritou: - Foi o eletricista, Seu Nando!( Quarup, p.
459) Nando não sofre grandes torturas físicas, a pior tortura para ele foi ter ficado em uma
sala sem condições de higiene e ter sido colocado na Sibéria (câmara frigorifica).
Ibiratinga diz que as piores torturas são contra gente mais simples, por culpa de
pessoas como Nando e Januário, que não podem ser torturadas, porque a imprensa
denuncia. Além do mais: a tortura para ele não faz ninguém inventar, inteiramente. No
máximo as pessoas exageram. (...) (Quarup, p. 471)
O Exército declarou que, no país, as coisas estavam sob controle, não houve luta.
Jango e Brizola foram refugiar-se no Uruguai e o Governador, em Fernando de Noronha.
Quanto a Nando e Januário, foram soltos; Francisca, enviada para Europa como diz
Nando: sua gaiola de prata. A consequência disso tudo foi que os Sindicatos e as Ligas
foram ocupados, na sala de aula de Nando e Francisca, novas palavras são colocadas na
parede. E o pior, o Governo Militar nega as torturas.
Após ser solto, Nando vai à sede do Sindicato e procura o monumento que
Francisca fez em homenagem a Levindo com a terra do Centro do Brasil:
(...) Já bem perto procurou na base o único azulejo diferente, a inscrição em letras
verdes no ladrilho branco: Terra do Centro Geográfico do Brasil. À memória de
Levindo, amigo dos camponeses. O azulejo tinha sido arrancado. Tapado o
buraco, apoiada contra a base do monumento, uma tábua quadrada, provisória,
com os dizeres: Terra do Centro Geográfico do Brasil. Viva a Revolução. 31 de
Março de 1964. Sem olhar para os lados, sem pensar em nada, concentrado a
fundo no que fazia Nando abriu a braguilha das calças e mijou pausadamente em
cima da placa.(Quarup, p. 475)
Francisca escreve a Nando da Europa, chamando-o para ir encontrar-se com ela,
mas ele não pode deixar o país, Padre Gonçalo convida Nando para fugir, não para a
Europa, mas para fugir para dentro da gente, não para casa dos outros. Nando recusa e diz
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
111
que por enquanto, iria ficar tomando sol na praia, Gonçalo parte: Lá vai ele, Gonçalo a
dentro, pensou Nando. E a busca por Francisca continua.
O Golpe Militar de 64 põe fim ao sonho de construir o “mundo de Levindo” por
meio da palavra, a partir do método de Paulo Freire, quando o golpe militar pôs fim a tudo
que “cheirasse democracia”.
O capítulo “A Palavra” é o momento em que Nando encontra o povo, e estão todos
envolvidos na construção de um “ideal democrático”, por isto, o título do capítulo é
justamente “A Palavra” Nando volta-se para os problemas coletivos, seu trabalho no
Movimento de Cultura Popular MCP - e as relações estreitas com os líderes de esquerda
fazem com que acredite na possibilidade de uma transformação, ou melhor, ele fazia parte
daquela mudança, em que o próprio Estado apoiava os movimentos populares.
Ao lado disso, com os projetos democráticos vão sendo destruídos, a vida de Nando
novamente será redirecionada, novamente volta para si mesmo em busca de respostas.
3 - Nando em sua Vida ao Sol e as Conseqüências do Golpe Militar:
Em meados de 1964, após Nando ter sido solto, ele continua a viver em sua casa na
praia da Boa Viagem. O Nando de agora é diferente daquele que, no capítulo anterior, junto
com Francisca e seus amigos, estava lutando pela transformação social.
O protagonista, nessa sua nova fase, dedica-se à arte de amar, amando
principalmente as mulheres feias e tristes, está prostituindo-se. Vaga pelas areais, pelas
calçadas à noite atraindo as mulheres sós, atraindo também o descontentamento de algumas
pessoas que viviam próximas e o consideravam feiticeiro, pajé etc.
Nando está cercado de gente simples, como jangadeiros e prostitutas, torna-se
conselheiro dessa gente na arte de amar. Uma de suas teorias para conquistar e agradar as
mulheres era a do 3 T: tempo, tesão e ternura. Começa a ter discípulos, como os
jangadeiros Amaro e Zeferino e o estudante Djamil.
Sua casa é freqüentada por várias mulheres, como: Margarida, uma professorinha
feia e mal amada, Júlia, ciumenta e possessiva, Jandira, que nasceu com a vocação de ser
“puta”. Nando defende o amor livre, não querendo prender-se a nenhuma delas.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
112
Outro ambiente freqüentado por ele são as “pensões de mulheres”, as quais
aconselhava a não deixarem sua profissão, como a prostituta Sancha:
- Eu não aconselho você a mudar de vida disse Nando. E você pode tornar essa
vida tão útil como qualquer outra, obrigando os homens a gozar com vocês, a
esperar por vocês. Ensinem aos meninos um amor fundo e sem pressa. O Brasil faz
planos de governo de cinco anos que duram cinco meses e planos de três anos que
duram três dias. Presidentes eleitos por cinco anos possuem a pátria e sete meses,
abotoam a braguilha e vão embora. E há Presidentes que duram dois
dias.(Quarup, p. 535)
Nando está voltado para si, para seu interior, descobrindo-se. Enquanto isso, o país,
sob o domínio dos militares, fecha cada vez mais o cerco contra os supostos
“conspiradores” - o país havia se fechado sob forte repressão, e Nando fecha-se em seu
próprio casulo. A maioria não entende a atitude de Nando em face aos acontecimentos, por
exemplo, Lídia e Jorge.
Mas não desistem de Nando, os estudantes, Jorge e Djamil, sempre lhe levam
notícias de seus companheiros que foram presos, e procuram-no para começarem a
reorganizar alguma coisa, mas Nando do ponto de vista político, não consegue ver nada de
reorganizável no país, preferindo o que, para ele, é o mais difícil no momento, que é mudar
a vida em vez de mudar o mundo. (Quarup, p. 503) Para Jorge, Nando se recolheu a vida
privada.
Djamil, que se tornou discípulo de Nando, percebe sua atitude com outros olhos: -
(...) Mas você acha que falhamos da primeira vez porque esquecemos de fazer antes a
agitação dentro de nós, os comícios interiores, as ligas de grupos de nós próprios contra
nós mesmos. Não é isto?(...) (Quarup, p. 508)
A visita de Lídia explicita bem o estado em que Nando encontra-se. Ela também diz
não entender o que Nando está fazendo, e dá-lhe a notícia de que Otávio fugiu para o
interior do país organizando a revolta. Lídia questiona-o dizendo:
- Exílio é no estrangeiro, Nando.
- Quando é a pátria da gente que viaja, não.
- Otávio, por exemplo, foi ao encontro dela, onde ela ainda existe de certa forma,
onde ela pode nascer de novo.” (Quarup, p. 512)
Nando está exilado em si porque, “sua Pátria viajou”, Otávio, ao contrário, está
buscando a Pátria no lugar onde ela ainda existe. Mas uma vez, o deslocamento à procura
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
113
do Brasil é da periferia para o centro. Nando vai continuar com sua vida ao sol, porque sua
situação ainda não está resolvida, ele continua almejando encontrar Francisca.
Seus amigos começam a sair da prisão, a exemplo de Manoel Tropeiro, que é solto,
a quem Nando tem grande admiração e amizade: Nando não conhecia outro homem tão
inteiriço e tão forte e socado em si mesmo. (Quarup, p. 494) Uma onça preta, Manoel. E
ele, Nando, um gato de louça de bigodes dourados. (Quarup, p. 587). Manoel personifica a
imagem do sertanejo forte, de herói/bandido popular como lampião. Alguns camponeses
também foram soltos (Bonifácio, Severino e Libânio), e procuram Nando para conversar,
pois não têm mais pontos de referência como antes (Ligas e Sindicatos). As notícias são
péssimas: as prisões e torturas continuam, um deles, Hemógenes, morreu torturado. Nando
lhes fala para recomeçarem a luta com prudência e, se quiserem, Manoel Tropeiro está
juntando gente no sertão.
À medida que a situação começa a se complicar, pois a presença de Nando ali já
está incomodando - vivendo escancarado bem debaixo do nariz dos militares, o reencontro
com Manoel vai fazer Nando decidir-se pelo Jantar em homenagem a Levindo: Manoel
Tropeiro não se tinha o direito de decepcionar. (Quarup, p. 521) Nando esteve relutante
até decidir dar esse jantar à memória de Levindo, pois esse jantar iria encerrar um período:
só a volta de Francisca ou a partida rumo a Francisca podiam compensar o encerramento
da sua vida ao sol. (Quarup, p. 521)
O jantar, para Levindo, começa a tomar grandes proporções - o Partido está
preocupado com Nando e o Governo já lhe concede o exílio -, mas Nando diz que só sai
dali “jantado”, primeiro, iria devorar Levindo, incorporai-lo, nutrir-se dele. Mas uma
dúvida começa a assolar Nando, agora que poderia ir ao encontro de Francisca, ele teme
que se o fizesse, ele estivesse fugindo dela para sempre: eu gostaria que ao voltar
Francisca me surpreendesse nos braços de Francisca.( Quarup, p. 543) Ou seja, há dua s
Francisca e uma está simbolizando a sua pátria.
Nando está voltando à luta, e, nos preparativos para o quarup de Levindo, volta
também “a palavra”. Nando espelha cartazes pelo muro do quintal e pela casa, com dizeres:
LEVINDO, VIVA LEVINDO:
LA LE LI LO LU
VA VE VI VO VU
VÃO VEM VIM
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
114
DA DE DI DO DU
VIVA LEVINDO
LEVE
VINDO
LELÊ
VIVI
LEVINDO.(Quarup, p.549)
O jantar reúne muito mais gente do que Nando esperava, e começam a chegar as
cozinheiras suas amigas, cada uma representando uma região: baiana, alagoana, paraense,
maranhense, amazonense, trazendo pratos típicos. Quando todos já estão bebendo e ainda
não havia começado a comedoria, Nando falou:
- Estamos aqui reunidos em espírito de festa para relembrar o único brasileiro
morto em luta por uma idéia. Brasilidade é o encontro marcado com o câncer.
Brasilidade é a espera paciente da tuberculose. Brasilidade é morrer na cama. À
frente de um grupo de camponeses, morrendo pelo salário do camponês, Levindo
morreu uma bela morte estrangeira. Estamos hoje aqui para comer o sacrifício de
Levindo, comer sua coragem e beber seu rico sangue de brasileiro novo. (Quarup,
p. 552)
Em meio a festa, Djamil dá a notícia a Nando de que a Marcha da Família já se
formou no centro da cidade: com círios, velas, tochas de resinas, confrarias, federações e
confederações, patronato, Governo, clero, nobreza e até povo. Tem música, com orfeão.
Está tocando Dies Irae. (Quarup, p. 552) A Marcha vem de encontro ao jantar e o
confronto é inevitável, algo esperado por ambas as partes e premeditado pelos que queriam
acabar com a “insubordinação” e “afronto” daquele jantar.
As ordens do Coronel Ibiratinga eram de levar Nando vivo, mas o sargento
Xiquexique, que tinha uma rixa pessoal com Nando, resolve espancá-lo até a morte. Nando
por pouco é salvo pelos seus amigos e levado para Quinta dos Frades, onde morava o ex-
padre Hosana. Lá ficou até recuperar-se.
Como Nando previa, o jantar foi o encerramento de um período, um divisor de
águas. Nando recobra a consciência, após vários dias convalescendo na casa de Hosana e
Deolinda, as seqüelas do espancamento são inevitáveis, Nando fica manco de uma perna e
cego de um olho. Para justificar o confronto, o Coronel Ibiratinga disse que Nando atacou
os seus soldados com ajuda dos cubanos e fugiu.
A Quinta onde Hosana mora, cedida pela Igreja, é a saída secreta do túnel do
mosteiro, que via dar em um poço. Agora, Hosana é seu guardião, e mal agüenta esperar
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
115
para mostrar a Nando o tão tenebroso “segredo do túnel” que a Igreja queria tanto esconder.
No túnel, há quadros religiosos sobre a vida de Maria, que testemunham o desenvolvimento
de um “culto mariano herético” durante o período colonial. As cenas representadas revelam
a humanidade de Maria que aparece sendo purificada no templo/ seu sangue, escorrendo
pelas próprias pernas/ o menino Jesus sendo circuncidado etc.
Nando esta recuperando-se, é o momento de tomar a decisão sobre qual iria ser o
novo período de sua vida. Djamil, ao visitá-lo, diz que está de partida para o sertão, lugar
em que muitos de seus amigos já estavam, confessa a Nando que não é ainda uma guerrilha,
por enquanto, estão se reunindo. Djamil não acredita que as coisas possam melhorar, para
ele, a melhor da hipóteses será uma falsa democracia com presidentes nomeados, portanto,
a saída é a resistência armada. Otávio já está contrabandeando armas nas fronteiras do
Paraguai e do Uruguai.
Manoel retorna do sertão com a notícia de que Januário também está de volta no
interior do país, em Goiás: Varou uma fronteira aí e apareceu de novo, garrucha na cinta,
entre o pessoal das Ligas. E eu que nem sabia que Goiás tinha Liga. (Quarup, p. 586)
Manoel Tropeiro diz que quer rever Januário, mas quer ir levando Nando. Ele decide por ir
com Manoel, mas diz que ficará lá por pouco tempo, pois precisa ir ao encontro de
Francisca na Europa.
Ao partir para o sertão com Manoel, Nando decide antes passar em sua casa para
pegar as cartas de Francisca, pois precisa continuar a busca por ela: mas sua alegria não se
consumava porque de pé no crescente havia duas Francisca incoincidentes. (Quarup, p.
593)
Era época de carnaval e o povo estava vivo, ele fica alegre quando percebe que não
era preciso salvar o povo. Muda seus planos, não iria mais com Manoel, primeiro o navio
para Europa, depois o cavalo para o sertão. A divisão de Francisca continuava: Duas.
Francisca de mar e Francisca de terra fugindo a sua absorção?( Quarup, p. 595)
Nando, sem saber, entra numa tocaia, havia dois soldados esperando por ele dentro
da casa, cabo Almerim e soldado Quirino. Nando já estava rendido quando Manoel também
entra na casa e, para defender seu amigo, apunhala o soldado Quirino e Manoel, o cabo
Almerim. Nando não sente remorso e diz a Manoel que gostou do punhal de Campina
Grande que Manoel lhe deu e da roupa de couro que lhe emprestou:
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
116
- Boa essa roupa, Manoel.
Manoel Tropeiro falou com sua ironia sem malícia:
- Com seu perdão, Seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre. Esse gibão de
couro não vai fazer o senhor cangaceiro não.(Quarup, p. 600)
Nando, após assassinar o soldado, consegue fazer a fusão de Francisca: e naquelas
trevas as duas imagens de Francisca se acercaram uma da outra, coincidiram, de novo
uma só. (Quarup, p. 599) Nando descobre que Francisca é apenas o centro de Francisca
(Quarup, p. 600), e fala ao seu amigo que vai para ficar:
Nando já a cavalo mal ouvia Manoel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande
visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A sela
do cavalo um alto pico. Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara
o sopro do fim da terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo
todo com sua cana, suas gentes e seus gados era Francisca molhando os pés na
praia e de cabelos ardendo no Sertão.
(...)
Estava descontínuo, leve, vivendo de minuto a minuto. Só tinha como sensação de
continuidade o fio de ouro de Francisca, assim mesmo porque era um fio fiado com
astúcia na trama do mundo a vir. Não vinha propriamente do passado(...).
(Quarup, p. 599-600)
Neste final belíssimo que Callado deu a sua obra, Nando continua a sua jornada,
agora como Nando/Levindo, pois ainda há um ideal a ser alcançado. Callado, assim,
encerra sua narrativa abrindo para o personagem uma possibilidade, o que torna o final de
Quarup enaltecido pelas inúmeras leituras que recebeu e recebe, como a de Nelson
Werneck Sodré (1967):
A sétima e última parte é a redenção de Nando, que opera a transformação para a
qual vinha sendo longamente preparado; guiado por Manel Tropeiro, depois de um
ato de violência nôvo e definitivo rompimento com o passado de conformismo
ganha o sertão.
45
Lígia Chiappini (1982) apresenta uma leitura mais centrada nos significados que a
narrativa carrega, enriquecendo o desfecho do enredo nos acontecimentos finais:
O mundo de Francisca é o centro de Nando, morto e ressugido com o nome e a
função de um novo Levindo. (...) Nando descobre a sua verdade, abandona o desejo
45
SODRÉ, N. W. O Momento Literário. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, n. 15, Set. 1967. p.
226.
A Busca do Brasil no Percurso do Herói
117
de juntar-se à Francisca de carne e osso na Europa, e parte para o sertão, narrando
a Manoel sua grande descoberta: “Francisca é o centro de Francisca”.
46
A absorção Levindo por Nando é vista por Alcmeno Bastos (1994) como uma
superação simbólica, o surgimento de uma nova existência:
A adoção do codinome, sem deixar de responder às exigências do enredo, pois a
clandestinidade impõe o disfarce de uma “marca” individualizadora; tem evidente
peso simbólico, é evidente batismo. (...) Sendo Levindo o elemento que ao mesmo
tempo o aproxima e o afasta de Francisca, apropriar-se do nome do outro não é,
sem deixar de o ser, simples homenagem, pois é também superação simbólica.
47
Renato Franco (2001) já vê a transformação de Nando em Levindo como parte da
visão revolucionária existente no Brasil (década de 1960):
Nesse painel, como já salientamos, o centro a trajetória de Nando é
determinado por sua transformação definitiva no guerrilheiro Levindo. Nele
aparecem os contornos gerais de uma visão do processo revolucionário que
deveria ser praticado no país: Iniciado em Pernambuco, deveria se espalhar
“como rastilho de pólvora”, pelas mais diversas regiões.
48
Diante dessas leituras, pode-se acrescentar, ou mesmo reafirmar, que o engajamento
de Nando completa-se no final da trama, no momento em que ele realiza a comedoria de
Levindo, e ela surte efeito, pois Nando nutre-se dele e adota seu nome, passando a ser
Nando/Levindo, conseguindo, enfim, alcançar sua deseducação após ter filtrado as
experiências e a visão de mundo que cada núcleo de personagens representou, por isto, os
personagens e vão e vêm ou saem da ação narrativa.
Antônio Callado encerrou sua trama, no momento em que Nando encontrou “o
centro de si mesmo” e findou sua busca por Francisca, ou melhor, “fez a fusão de
Francisca”, Nando está pronto para unir-se aos seus amigos e lutar pelo restabelecimento da
democracia. Sua trajetória continua, pois agora ele está em busca de um ideal
revolucionário, de uma saída, vai em busca da guerrilha.
46
LEITE, L. C. M. Quando a Pátria Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado. Op. Cit. p. 162.
47
BASTOS, A. O Aprendizado de Brasil na Ficção Política de Antônio Callado. In: ARAGÃO, M. L., BOM
MEIBY, J. C. S. América: ficção e utopias. Rio de Janeiro: Expressão e Culturas; São Paulo: EDUSP, 1994.
p. 490.
48
FRANCO, R. Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa, Op. Cit. p. 56.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
121
Tantos nas críticas favoráveis a Quarup como naqueles
que fazem rigorosas objeções, observa-se a tendência
de torná-la uma obra exemplar do ‘realismo novo’,
apresentando-o como romance da revolução brasileira.
Lígia Chiappini
Defender o direito da crítica de existir em qualquer
condição, portanto, é admitir que a crítica é uma
estrutura de pensamento e de saber, existente por
direito próprio, com o seu tanto de independência da
arte com a qual trabalha.
Northrop Frye
Na ocasião dos trinta anos do Lançamento de Quarup, em 1997, Antônio Callado
escreveu ao seu editor, pedindo-lhe que a data fosse relembrada: em 1997 meu romance
“Quarup” completa 30 anos de publicação. Como de costume resistindo ao passar do
tempo, talvez valesse relembrar a data com uma faixa, uma nota breve ou algo parecido.
Isto é lá com vosmicê.
1
O romance continua resistindo ao tempo e suscitando estudos, pois Quarup recebeu
grande atenção da crítica quando lançado (1967), mas os estudos acadêmicos não lhe deram
a devida atenção por longos anos. Em entrevista concedida a Lígia Chiappini (1982),
Callado fez referência a esse fato:
LÍGIA - Quarup tem sido bem recebido pelo público? E pela crítica?
CALLADO Certamente, nunca deixou de ser. E até hoje; está em 10ª edição. Pela
crítica? A crítica acadêmica, no princípio, ignorou praticamente Quarup. Não
houve nada, o que houve foi a crítica altamente entusiástica de gente que, para
mim, tinha um significado enorme, como Ferreira Gullar, por exemplo.
2
Hoje, Quarup tornou-se uma obra freqüentemente visitada já foi traduzido para
diversas línguas, inclusive o alemão, foi também adaptado para o teatro em 1987, sem
muito sucesso, a Folha de São Paulo publicou a seguinte crítica: Amadorismo prejudica
‘Quarup’. Contudo, a maior produção sobre o romance foi o filme: Kuarup (1990) dirigido
1
CALLADO, A. [bilhete]. Rio de Janeiro, 08/02/1996. Bilhete ao editor da Nova Fronteira, Carlos Augusto,
anexado à 19ª impressão do romance Quarup.
2
LEITE, L. C. Quando a Pátria Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado. In: Op. Cit. p. 236.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
122
por Ruy Guerra, o filme na sua totalidade decepciona, até mesmo pela expectativa que
causou, como relata Lúcia Nagib:
Muito antes de aparecer, Kuarup já tinha alvoraçado os ânimos da crítica
brasileira. O nome de Ruy Guerra, associado ao de Antônio Callado, a produção
milionária, a legião de atores famosos, a Amazônia unida à questão ecológica e
finalmente a seleção para o Festival de Cannes foram elementos de sobra para a
sensação, antes mesmo que avaliassem as qualidades reais do filme.
3
Apesar contar com um bom diretor, a autora conclui que “arte perdeu o pé na
realidade e o artista está decididamente divorciado da reflexão política”. Os tempos são
outros, e a arte não tem “intenções transformadoras”, nem traz atores engajados:
Não existe mais nem sombra da famosa “estética da fome”, extraída da
precariedade dos recursos, da instável câmera na mão, do corte seco e incoerente,
ditado em primeiro lugar pelos acontecimentos que se produziam quase que de
forma espontânea diante da câmera. Ruy Guerra é certamente outro. Seus atores
não vêm mais do palco vivo do teatro, mas da artificial tela de TV. (...)
4
Quanto ao roteiro do filme, Lúcia Nagib considera que ele peca justamente pela
“ampla compreensão” e uma “longa meditação” sobre o romance, para isso, “enxugaram
vertiginosamente as 500 páginas de Callado”, o que tornou certas partes do filme quase
sempre “incompreensíveis para o espectador”, e cita exemplos:
O bosque das orquídeas, onde pela primeira vez o ex-padre Nando, personagem
principal, ama Francisca, se resumiu numa simples flor nos dedos da moça; toda a
discussão sobre a mulher como centro gravitacional do universo, metaforizada
pela idéia da Virgem Maria como matriarca subversiva da religião cristã, se
reduziu a um passeio rápido da câmera pelos afrescos descobertos num túnel, e
assim por diante.
5
Com base nessa experiência cinematográfica, é possível concluir que até os dias
atuais, Quarup continua um texto que se resolve e tem força no romance. Talvez isto seja
uma das causas pela qual os demais romances de Callado vêm sendo estudados com bem
menos intensidade que Quarup, que já conta com o livro de Édison José da Costa, com
3
NABIB, L. “Kuarup”, o filme. Revista USP. São Paulo: 1989. p. 185.
4
Ibidem, p. 185.
5
Ibidem, p. 186.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
123
ensaios como o Lígia Chiappini Moraes Leite e Malcon Silverman; artigos como os de
Ferreira Gullar, Nelson Werneck Sodré, Arturo Gouveia Araújo, Beijamim Abdala Júnior,
Belmira Magalhães - publicados em revistas especializadas-, notas críticas em jornais,
como as de Wilson Martins e Paulo Hecker Filho etc. Também foi citado em obras
diversas, como por Dias Gomes e Roberto Shwartz etc. e em estudos específicos sobre os
romances políticos do pós 64, como de Renato Franco, ou obras panorâmicas sobre o “novo
romance brasileiro”, como a de Malcon Silverman.
No âmbito de pesquisas acadêmicas, conta com teses e dissertações que realizam o
diálogo de crítica e interpretação e que foram produzidas nas áreas de Teoria Literária e
Literatura Brasileira. Os oito trabalhos encontrados convergem no sentido de elegerem
Quarup como marco divisor na produção romanesca de Antônio Callado, compactuando
com aqueles (a crítica não especializada) que consagraram Callado como: “o autor de
Quarup”. Portanto, os estudos acadêmicos serão observados em seu conjunto, priorizando a
atenção que dedicaram a Quarup, sendo seus autores: Vera Lúcia Alonso, Giselle Larizzatti
Agazzi, Cristina Ferreira Pinto, Édison José da Costa, Robêni Baptista Mamizuka, Alice
Mitika Koshiyama, Francisco Sales de Souza e Lúcia Regina de Sá.
O estudo de Vera Lúcia Alonso,
6
talvez um dos primeiros a dedicar-se aos romances
de Callado, publicados até então: Assunção de Salviano, Madona de Cedro, Quarup, Bar
Don Juan e Reflexos do Baile, incorporou questões como: o papel social da arte do autor -
privilegiando Quarup como marco divisório no conjunto da obra narrativa também como
representativo de uma tendência significativa de Ruína e Utopia dos anos sessenta,
colocando o romance como pólo de resistência e instrumento de denúncia.
Giselle Larizzatti Agazzi
7
também discutiu A Crise da Utopias nos romances
Quarup, Bar Don Juan, Reflexos do Baile e Sempreviva. Objetivado buscar em sua leitura
“a composição dos personagens, do espaço, do tempo e da própria estrutura narrativa”,
recorre à tipologia da forma romanesca de George Lukács em a “Teoria do Romance”,
6
ALONSO, V. L. F. F. Quarup: Ruína e Utopia. 112 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira)
Pontifícia Universidade Católica PUC. Rio de Janeiro, 1979.
7
AGAZZI, G. L. A Crise das Utopias: A Esquerda nos romances de Antônio Callado. 1998. 237 f.
Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas e Vernáculas) - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
124
analisando a trajetória do herói nas obras de Callado, com exceção de Reflexos do Baile,
que nega a estética realista.
Cristina Ferreira Pinto
8
direcionou sua análise para sete romances de Antônio
Callado,
9
sua proposta consiste em perceber a estrutura da “viagem arquetípica do herói”.
10
Já Alice Mitika Koshiyama
11
busca da representação ficcional da História contida
no romance. Para tanto, recorre a historiadores como Fernad Braudel
12
em busca da noção
de tempo histórico da “ longa duração”. Para autora, o tempo histórico seria o do
personagem Levindo.
O livro de Édison José da Costa
13
é fruto de sua tese de doutoramento e apresenta
Quarup como “tronco da narrativa” de Callado, ressoando nos livros posteriores e deitando
raízes nos livros anteriores, ou seja, os romances publicados de 1954 a 1981.
14
Outro trabalho é o de Robêni Baptista Mamizuka,
15
que discute a questão do
“homem novo” personificado pelo protagonista de Quarup e, além disso, fala do que
considerou as minorias presentes na obra: a mulher, o índio e o camponês.
8
PINTO, C. F. A Viagem do Herói no Romance de Antônio Callado. 1984. 63 f. Dissertação (Mestrado em
Literatura Brasileira) Departamento de Espanhol e Português, Tulane University, New Orleans, Estados
Unidos, 1984.
9
Assunção de Salviano (1954), Madona de Cedro (1957), Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do
Baile (1976) e Sempreviva (1981), Expedição de Montaigne (1982).
10
Para trabalhar o conceito de viagem arquetípica, a autora recorre à obra The Hero Wiht a Thousand Faces
do crítico marxista Joseph Campbell.
11
KOSHIYAMA, A. M. O Tempo de Levindo: Ficção e História no Romance Quarup: 1986, 199 f. Tese
(Doutoramento na Área de Literatura Brasileira) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986.
O trabalho está estruturado em cinco capítulos: I Princípio da Leitura - introdução; II Quarup e o Tempo
de Nando; III - Quarup e o Tempo de Levindo; IV Levindo e o Tempo de História; V A Permanência de
Levindo conclusão.
12
FRENAND, B. História e Ciências Sociais In: Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1978.
Apesar de centrar sua referência teorico-metodológica em Braudel, cita outros autores e obras, tais como:
Lucien Goldmann: Ciências Humanas e Filosofia; Michel de Certeau: A Escrita da História; Jacques le Goff
e Pierre Nora: Faire de L’Histoire. Nouveaux Problèmas.
13
COSTA, É. J. Quarup : tronco e narrativa. Curitiba-PR: Scientia et Labor, 1988.
14
Os romances estudados são: Assunção de Salviano (1954), Madona de Cedro (1957), Quarup (1967),
Bar Don Juan (1971), Reflexos do Baile (1976) e Sempreviva (1981).
15
MAMIZUKA, R. B. O Romance Engajado na Década de 60: Quarup. 102 f. Dissertação (Mestrado em
Teoria Literária) Universidade de Campinas UNICAMP, São Paulo, 1983.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
125
Francisco Sales de Souza toma as questões “religiosa” e “revolucionária” como eixo
de trabalho,
16
Para realização de seu estudo, privilegia cinco romances de Antônio Callado:
Assunção de Salviano, A Madona de Cedro, Quarup, Bar Don Juan e Conserto Carioca,
justificando sua escolha pelo fato desses romances possibilitarem a apreensão ao longo de
quatro décadas (1950 1980), das diversas maneiras como os personagens de Callado
conceberam a religião e a revolução - sua atenção está direcionada para o comportamento
que os personagens centrais apresentam na narrativa.
Lúcia Regina de Sá
17
desenvolveu a análise de dois romances, Quarup (1967) e
Maíra (1978), de Darcy Ribeiro. Sua escolha é justificada pelo fato considerar que o índio
se ausentou quase que por completo de nossas letras, reconhece que em Quarup o índio não
está posto como tema principal, contudo, a obra lhe dá destaque. Considera Quarup como
uma obra de menção obrigatória ao falarmos de nossa literatura recente e Maíra como
uma das mais representativas e certamente a mais profunda abordagem da temática
indígena já feita em nossas letras.
18
Todo esse material, analisado dentro de suas especificidades, compõe partes
imprescindíveis para a compreensão das repercussões literárias e historiográficas do
romance Quarup, pois, como afirma o historiador Alcides Freire Ramos: o texto crítico
pode ser visto pelo historiador como uma forma de documento. Porém, o que o
pesquisador não pode deixar de observar é a sua especificidade.
19
Ao lado disso, pode-se constatar, no conjunto das obras sobre Quarup, que algumas
propostas aproximam-se, como as que enfocam a obra na perspectiva da questão religiosa e
revolucionária, ou da crise da utopia dos anos sessenta e assim por diante. Nesse sentido,
serão apresentados os material composto pelas críticas feitas na ocasião do lançamento de
Quarup. Em seguida, ensaios e artigos alguns produzidos no âmbito acadêmico e os
16
SOUZA, F. S. A Cruz e a espada (A questão religiosa e revolucionária nos romances de Antônio
Callado): 310f. Tese (Doutoramento em Literatura Brasileira) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
17
SÁ, L. R. A Literatura Entre o Mito e a História: uma Leitura da “Maíra” e “Quarup”: Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas. 1990. 303 f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.
18
Ibidem, p. 03.
19
RAMOS, A. F. Canibalismo dos Fracos: Cinema e História do Brasil. Op. Cit. p. 53.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
126
demais estudos desenvolvidos como pesquisa acadêmica: Dissertações de Mestrado e Teses
de Doutorado.
1 -Quarup Resistindo ao Passar do Tempo”: Recepção e Repercussão do Romance.
O rio que vinha avolumando suas águas e
aprofundando seu leito, até março de 1964,
desapareceu de nossas vistas. Mas um rio não acaba
assim. Êle continua seu curso, subterrâneamente, e
quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor
debaixo da terra.
Ferreira Gullar
A crítica “altamente entusiástica” a qual se referiu Callado, relembrando o
lançamento de Quarup (publicadas em revistas, jornais etc.), é de grande relevância para o
entendimento da recepção do romance, num período em que o intelectual de esquerda
expressava o seu compromisso político por meio de obras engajadas, enfrentando a censura
e a repressão do Governo Militar. Apesar da crítica acadêmica ter ignorado Quarup por
longos anos, esse material (a crítica entusiástica) serviu-lhe de fonte, e continua dando
subsídios para trabalhos como o nosso, que se propõem a uma análise histórica da obra de
arte, tendo em vista sua especificidade de representação acerca do momento histórico de
sua produção.
Antônio Callado mencionou Ferreira Gullar, como um desses críticos “entusiasta”, e
com razão, Ferreira Gullar escreveu Quarup ou Ensaio de Deseducação para Brasileiro
Virar Gente.
20
Publicado pela Revista Civilização Brasileira
21
- um meio de comunicação
de grande importância política e cultural para o país, na década de 1960, que reunia
intelectuais que se opunham ao regime militar. A revista contou com outras críticas sobre
Quarup, como a de Nelson Wernek Sodré e Dias Gomes, que o autor Antônio Callado
20
GULLAR, F. Quarup ou Ensaio de Deseducação para Brasileiro Virar Gente. Revista Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro, n. 15, p. 251-258, Set. 1967.
21
A Revista Civilização Brasileira foi publicada de março de 1965 a dezembro de 1968, trazia reflexões sobre
vários temas e denunciava violências praticadas contra pessoas que eram alvo de perseguições políticas, tendo
explicita sua postura, por agregar vários intelectuais de esquerda, foi alvo de repressão e teve suas atividades
encerradas.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
127
considerou como um referencial de recepção da sua obra: mas foram várias as pessoas que
leram Quarup e que gostaram. Saíram várias coisas aqui e ali, na Revista Civilização
Brasileira.
22
Callado, um intelectual de esquerda, que repudiava as mazelas impostas por um
governo autoritário, teve sua obra recebida com grande empolgação por Ferreira Gullar,
que vê em Quarup uma obra representativa da atualidade da vida brasileira (1967): Acabo a
leitura de Quarup, de Antônio Callado, e tenho de imediatamente escrever êste artigo. (...) Trata-se
de uma obra de tão ampla significação que abordá-la como um estilo ou um gênero é apenas
roçar-lhe a superfície.
23
Assim, para Gullar, Quarup surge em meio a perda da utopias sociais, quando o
homem se individualiza numa sociedade autoritária, e Callado flagra as incertezas da
própria ficção em um país que desrespeitou todos os direitos dos homens: toda a luta de
uma geração para a transformação das condições de vida no Brasil, resgatada em Quarup,
é corrompida pelo esvaziamento do sentido dessa luta.
24
Gullar diz que, em um livro como Quarup, se vê que revolução continua, e a luta
também está na arte dos Gonçalves de Magalhães, dos Mário Andrade, dos Prestes, dos
Pedro Teixeira como dos Levindo e dos Nando, que Callado criou:
Isto é que é, na verdade, a Revolução Brasileira. E a gente acredita mais nela
quando surge, diante de nós, um livro como Quarup, porque se vê, nêle, que a
Revolução continua e se aprofunda, que ela ganha cerne, densidade, penetra fundo
na alma dos homens.
25
Apresenta o romance, como ele mesmo diz, esquematicamente, por intermédio de
Nando, o protagonista, e alguns personagens que se destacam na trama narrativa, como as
mulheres, quem têm papel importante na “deseducação” de Nando, a exemplo da atitude da
inglesa Winifred, que libertou Nando do temor de ver as índias nuas no Xingu: mas depois
22
CALLADO, A. Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 237.
23
GULLAR, F. Quarup ou Ensaio de Deseducação para Brasileiro Virar Gente. Op. Cit. p. 251.
24
Ibidem, p. 251.
25
Ibidem, p. 252-253.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
128
que êle come (ou é comido) a ruiva inglêsa Winifred, já não há nada a perder e êle decide
partir para o Brasil Central.
26
Gullar diz não ser justo extrair um sentido definitivo de Quarup, mas acredita ser
possível afirmar que Callado descreve o processo de desalienação de um homem (Nando),
“que termina por se transformar em povo, que pode agora ser qualquer um”. Nando
representa o impasse vivido pelo intelectual de esquerda, diante de um sistema repressor,
em que a única saída possível, naquele momento, era a luta armada: pode-se discutir se o
único caminho de reintegração do intelectual brasileiro é o seguido finalmente pelo padre
Nando e mesmo se a melhor maneira de lutar contra a opressão é essa a que êle adere.
27
Na mesma edição da Revista Civilização Brasileira, em que se encontra o artigo de
Ferreira Gullar, está também a crítica de Nelson Werneck Sodré,
28
que utiliza o espaço
denominado “o momento literário” para fazer denúncias de perseguições políticas, e fazer
um balanço da produção cultural do país, não poupando críticas à qualidade do material que
está sendo veiculado:
Causa espanto, sem dúvida, o grau de alienação e o nível qualitativo do material
que encontramos em nossas revistas e jornais, particularmente naqueles que
pretendem ocupar-se de cultura. (...) É natural, pois, que, em um meio em que a
cultura foi expulsa dos órgãos e dos meios de divulgação, a imprensa como a
falada, o campo esteja preparado para a invasão de modismo e de tendências que,
antigas e já envelhecidas em outros meios, surgem aqui como originais, avançadas
e inovadoras.
29
Nelson Werneck aponta também traduções que ocupam a maioria dos títulos
lançados, obras que colocam, quase sempre de forma superficial, os problemas da
sociedade. Na parte que intitulou “nota crítica”, fala do lançamento de dois romances, o de
Antônio Callado Quarup e o de Carlos Heitor, Cony Pessach: A Travessia, chamando
atenção para pontos comuns entre os romances, como conciliarem qualidade literária e
sucesso de vendas, sendo obras de conteúdo político, e de compartilharem o mesmo público
leitor: a pequena burguesia é, no Brasil, produtora e consumidora de literatura, para não
26
Ibidem, p. 253.
27
Ibidem, p. 256.
28
SODRÉ, N. W. O Momento Literário. Op. Cit. 213-228.
29
Ibidem, p. 217.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
129
falar em outras artes. Até aí, nada de nôvo. Mas acontece que a pequena burguesia, no
Brasil, é também, produtora e consumidora de política.
30
Saber quem está recebendo esses romances é importante, declara Sodré, pois as
obras representam uma fase revo lucionária do Brasil, a que estavam vivendo (1967),
portanto, tem uma intencionalidade.
Em se tratando dos aspectos formais dos romances, Werneck não poupa elogios a
Pessach: A travessia é um bom romance, nada desmerece a obra, já com lugar assegurado
em nosso patrimônio literário”. Mas Quarup recebe algumas restrições, especialmente
sobre sua extensão,
31
e sua infinidade de temas:
A dificuldade em analisar o romance de Antônio Callado está ligada ao fato de que
se trata de um livro gordo, abundante, que se multiplica em aspectos menores, que
perde em unidade por isso, e não pela extensão em si. Podado, reduzido, teria
resultado, sem dúvida, mais forte, mais denso, pois é o acumulo do grande e do
pequeno, do verossímil e do inverossímil.
32
(grifo nosso)
Antônio Callado não gostou da expressão “livro gordo”, ao ser questionado por
Lígia Chiappiani sobre a crítica na ocasião do lançamento, precisamente a de Werneck
Sodré, ele responde: ele disse uma vez que Quarup é um livro gordo. Não gostei da
expressão... um livro gordo. Achei péssimo. (...) Ele acha o livro um pouco excessivo. É, eu
me lembro da crítica do Nelson. Agora, sem nenhum parti pris, eu não acho o Nelson um
bom crítico, não.
33
Divergências à parte, Nelson ainda expõe em sua crítica que Quarup é uma mistura
de influências literárias, que se refletem inclusive na linguagem, ora direta, simples, clara,
ora simbólica, e assim como Cony, Callado representa a intencionalidade em criação
artística:
Mas, enquanto Cony estreitou o mundo a representar, para poder representá-lo,
Callado ampliou êsse mundo, Callado ampliou êsse mundo, quis tê-lo todo em seu
romance, e desmandou-se em extensão. (...) Nesse gigantesco painel, há de tudo.
30
Ibidem, p. 219.
31
Quarup teve na primeira edição 500 páginas e Pessach: A Travessia 253 páginas.
32
Ibidem, p. 224.
33
CALLADO, A. Entrevistas com Antônio Callado. Op. Cit. p. 257.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
130
(...) as conseqüentes decaídas de interêsse, perda de fôrça, ao lado de momentos
realmente épicos, em que a grandeza invade o romance e domina o leitor.
34
Esse nível épico do romance só é alcançado a partir do quinto capítulo, e, de forma
geral, Nelson conclui que, apesar e seus desequilíbrios, o romance tem grandes méritos.
Ainda na Revista Civilização Brasileira (1968), Dias Gomes,
35
no seu artigo que
discute o teatro engajado, cita marcos da dramaturgia da década de 60 como: O Rei da
Vela, Roda Viva, Arena Conta Tiradentes, ressaltando o papel da arte: toda arte é,
portanto, política. A diferença é que, no teatro, esse ato político é praticado diante do
público.
36
Vai mais além, critica a censura por tirar do artista o que lhe é mais caro, a liberdade
de criar: a liberdade é essencial à arte e que compete ao artista defendê-la com palavras e
gestos no palco ou na rua.
37
. Para Dias Gomes, engajar-se não é perder uma parcela de sua
liberdade, mas, sim, ganhar liberdade permanente, E o artista engajado exerce a liberdade
de forma integral, como “artista” e como “homem”, por isso, discordou de Antônio
Callado, quando este escreveu: (...) o artista, como artista, não se engaja. Mas tem de
pagar um preço pelo consumo que faz da liberdade. Êsse preço é o seu engajamento como
homem.
38
Dias Gomes discorda de Callado no sentido de que: “o homem pode existir sem o
artista, mas o artista jamais pode abdicar da sua qualidade e sua experiência humana”:
Esqueceu-se Callado de que o escritor Antônio Callado é um exemplo admirável da
indissolubilidade artista-homem. Ou será que esta obra prima da arte engajada
que é Quarup foi escrita pelo homem Callado, enquanto o artista tomava uísque no
Antonio’s? E que fazia o homem Callado quando o artista escreveu Franke? Será
que estas duas obras não refletem claramente um processo de evolução do homem
artista em direção a um engajamento que lhe deu a grandeza hoje reconhecida?
(grifo nosso)
O objetivo não é mostrar pontos de vista divergentes, mas, sim, assinalar o fato de
Dias Gomes considerar Quarup uma “obra prima da arte engajada”, e reforçar a
34
Ibidem, p. 224-225.
35
GOMES, D. O Engajamento é uma Prática de Liberdade. Op. Cit.
36
Ibidem, p. 10.
37
Ibidem, p. 13.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
131
importância de obras como esta para o movimento de contestação ao regime militar, obras
que, segundo Dias Gomes, contestavam “os usurpadores do poder”. Contudo, apesar da
forte censura, esses “usurpadores do poder” deixaram uma “estreita faixa de liberdade
controlável” para o teatro, o livro e o cinema, “estreita” e “controlável”, porque o cinema,
apesar de atingir grandes massas, poucos filmes fez no Brasil, o teatro e o livro por agirem
sobre um público reduzido, não atingiam uma grande quantidade de pessoas.
Além das críticas e menções a Quarup e a Antônio Callado presentes na Revista
Civilização Brasileira, outras críticas surgiram próximas ao lançamento do romance, como
a de Wilson Martins (1967): O Ópio dos Intelectuais,
39
que abarca Quarup e Pessach: A
travessia:
Agora em 1967, o “romance da revolução” é o romance da decepção, da
amargura, do desencanto e da ironia. (...) Não são, ainda, os grandes romances
políticos que esperávamos e desejávamos, (...) muito melhores, no plano da
literatura do que no plano a realidade. (...)
40
Comparando os romances de Callado e Heitor Cony, Wilson Martins observa que “o
sr. Antônio Callado tem mais qualidades de estilo, mais instinto literário e maior capricho
artesanal”, enquanto Pessach: A travessia “tem mais unidade e coerência”. Entretanto, ao
referir-se à primeira parte de Quarup, faz suas restrições:
Pode-se lamentar que, em tôda a primeira parte do romance, não haja o sr.
Antônio Callado encontrado a “tonalidade” correta do diálogo, nem mesmo a
verossimilhança (como no encontro entre o padre Hosana e D. Anselmo); além
disso, na embriaguez da invenção romanesca, há momentos em que êle sacrifica
alegremente a plausibilidade da situação ou do personagem no altar suspeito do
pitoresco e do excêntrico.
41
A partir dessas considerações, Wilson Martins conclui que a resposta romanesca
mostra que a “revolução brasileira” continua na estaca zero, e os romances que ela inspira
estão melhorando em qualidade literária.
38
CALLADO, Apud GOMES, D. 1968. p. 16.
39
MARTINS, W. O Ópio dos Intelectuais. O Estado de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 1967. Suplemento
Literário. p. s/n.
40
Ibidem, p. s/n.
41
Ibidem, p. s/n.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
132
Outra crítica foi a de Paulo Hecker Filho (1968): O romance Justificado,
42
em que
tece ferrenhas restrições a Quarup, comenta algumas críticas que o romance havia recebido
até então e, como de costume, faz referência à obra de Heitor Cony. A principio compara
Quarup a uma receita de bolo:
Um competente jornalista publica um livro com 500 páginas maciças. Romance
está na capa, mas não exageremos. Trata-se antes de um bôlo a que a prosa enxuta
e ágil do jornalista, embora nem sempre adequada, dá maciez e sabor, torna
permanentemente digerível, o que já é uma façanha, convenhamos. (...) A receita?
Duas xícaras de reportagem; duas de ensaísmo dialogado, uma de crônica carioca;
uma colher de erudição e outra de pedantismo; umas nozes sem ralar de humor e,
como cobertura (aí vem o bom), um depoimento valioso sobre mulheres e, como
toque final, com consciência política autêntica, até romance.
43
Após apresentar sua receita, afirma que a melhor obra de Callado é a reportagem
“Industriais da Seca e os Galileus Pernambucanos”, as demais obras trazem “a marca de um
quê falso”. No tocante aos personagens de Quarup, refere-se a Nando como um
“camaleão”, a Ramiro como “pedante” e “dramalhão”, e a Falua como “mentecapto” e
Fontoura como: um dipsomano índio-maníaco talvez retrato do natural, é de uma
imbecilidade que supera a resistência do leitor, a gente chega a sentir mal.
44
Quanto à crítica sobre Quarup, Paulo Hecker afirma não se admirar que tenham se
confundido diante de “bôlo tão apetecível”: Ferreira Bullar e Wilsom Martins antes tiram o
corpo fora que afirmam alguma coisa. (...) Werneck Sodré viu o evidente, que a narrativa
ganha solidez artística só depois das 400 páginas.
45
Ao concluir mencionando Pessach: A travessia, não perde a chance de diminuir
Quarup, pois, para Paulo Hecker, Carlos Heitor Cony é “um romancista nato” e Callado é
“um jornalista culto que escreve um romance num prodigioso esforço sobre si mesmo com
resultados parciais”.
42
HECKER FILHO, P. O romance justificado. O Estado de São Paulo. São Paulo, n. 594, ano XII, 1968.
Suplemento Literário. p. s/n.
43
Ibidem, p. s/n.
44
Ibidem, p. s/n.
45
Ibidem, p. s/n.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
133
“Os críticos da primeira hora” (tomando emprestado o termo utilizado por Lígia
Chippiani) permitem considerações sobre a recepção de Quarup, pois alguns críticos
convergem e outros discordam redundantemente. Assim, “no calor da hora” Quarup teve
leituras diferenciadas, como a Ferreira Gullar que o elegeu como “o romance da
Revolução” ou “a própria Revolução” e sobre o qual, com grande empolgação, tece
elogiosos comentários. Já Nelson Werneck Sodré reconhece as qualidades literárias de
Quarup, apesar de chamá-lo de livro “gordo”, mas elege Passach: A Travessia como uma
obra em que “nada a desmerece”.
O fato de Quarup e Passach: A Travessia terem sido publicados no mesmo ano
(1967) serviu para que a crítica estabelecesse constantes comparações, como também o fez
Wilson Martins ao afirmar que a obra de Callado “tem mais qualidades de estilo” e da Cony
“tem mais unidade e coerência”. Sem dúvidas, são duas obras que marcaram a literatura
engajada da década de 1960, bem como a carreira de ambos os escritores, todavia, a
comparação das duas obras soa como uma juízo de valor.
Isto se torna explicito na crítica feroz de Paulo Hecker Filho, a princípio rotulou o
romance Quarup como “receita de bolo”, em seguida, debochou da composição dos
personagens, não menos, afirmou que Callado era “um jornalista” e Cony “um romancista
nato”, e, na comparação entre os dois romances, disse que Pessach: A Travessia surgiu para
“diminuir” Quarup. Por fim, ainda descordou da opinião dos críticos que reconheceram
qualidades em Quarup (Ferreira Gullar, Nelson Werneck Sodré e Wilson Martins.)
Se Paulo Hecker Filho fez tantas restrições a Quarup, outros renomados críticos
literários incorporaram Quarup como referencial para literatura brasileira, como Antônio
Cândido de Melo e Souza,
46
a exemplo do artigo em que faz um balanço da literatura
brasileira, passando pela década de 1960 que intitulou “amargura política e vanguarda
estética”, considerou Quarup e Bar Don Juan como obras renovadoras e de qualidade
literária:
Na ficção, o decênio de 60 teve algumas manifestações fortes na linha mais ou
menos convencional, como o romance de Antônio Callado, que renovou a
“literatura participante” com perícia e destemor, tornando-se o primeiro cronista
46
CÂNDIDO, A. Os brasileiros e a literatura latino-americana. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.1,
v. 1, p. 58-68, Dez. 1981. O título original deste artigo foi: “O Papel do Brasil na Nova Narrativa” em ocasião
de um Simpósio internacional realizado em Washington em outubro de 1979.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
134
de qualidade do golpe militar em Quarup (1967), a que seguiria a história
desabusada da esquerda aventureira em Bar Don Juan (1971).
47
Em se tratando ainda de trabalhos reconhecidos e utilizados nos estudos sobre as
obras de Antônio Callado, estão os de Ligia Chiappini, destacando-se o que recebeu o
prêmio Casa de Las América em 1983: Quando a Pátria viaja: uma leitura dos romances
de Antônio Callado.
48
Nesta obra, Lígia percorre os romances de Callado até Expedição de
Montaigne (seu sétimo romance), mas destaca em sua análise Quarup e Sempreviva. Inicia
pela crítica de Quarup, no que chamou de “os críticos de primeira hora”, pelas publicações
no lançamento do livro, mostrando os críticos que fizeram restrições à obra (como Paulo
Hecker Filho) e os que a julgaram a grande obra da literatura engajada (como Ferreira
Gullar). Em seguida, declara que ambas as posições foram parciais e expõe o que seria,
para ela, uma análise mais completa:
Uma análise que se queira mais abrangente e compreensiva tem de trabalhar com
essa ambigüidade curiosa que se manifesta em Quarup e continua cada vez mais
presente nos romances posteriores de Callado: a tenção entre a linearidade e a
fragmentação.
49
Para Lígia Chiappini, os críticos levaram ao pé da letra o projeto de Callado de
“escrever um novo retrato do Brasil”, pois recorreram ao “modelo narrativo totalizador do
romance realista” de George Lukács. Ao lado disso, a autora expõe a sua concepção sobre o
romance, ou seja, Quarup realiza uma reflexão sobre suas próprias “matrizes ideológicas”,
pois trabalha com várias “teorias” sobre o Brasil. Para confirmar tal afirmação, inventaria
projetos, utopias e obsessões de vários personagens do romance, demostrando diferentes
conceituações sobre o Brasil.
47
Ibidem, p. 65.
48
LEITE, L. C. M. Quando a Pátria Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado Op. Cit. p.129-234.
A escolha do título, por si só, é muito interessante, pois remete-nos a uma passagem muito significativa do
romance Quarup, quando a psicóloga Lídia tenta convencer Nando a deixar a sua vida de orgias e juntar-se
aos amigos nos movimentos de resistência que se formavam no interior do país: “Lígia: - Exílio é no
estrangeiro, Nando. Nando: - Quando é a Pátria da gente que viaja, não” Callado, A. Quarup, Op. Cit. p.
512.
49
Ibidem, p. 149.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
135
Ao lado disso, Lígia Chiappini também busca, na trajetória do herói Nando, suscitar
hipóteses que apontem para aspectos universais da obra, presentes na relação amor e
revolução:
(...) Ou talvez haja aí esta idéia radical: revolução e amor seriam muito mais do
plano do desejo do que do plano da realidade? E, paradoxalmente, seria isso que
os faria existir como conquista possível de todos os homens? A simples alusão a
essas questões gerais parece justificar uma crítica mais compreensiva de Quarup,
reveladora de significações universais que transcendem a problemática mais
restrita do projeto nacional popular.
50
Relata, também, que vários críticos leram Quarup como a trajetória do abandono da
religião pela política, o que, para Lígia Chiappini, não constituiu uma negação da
religiosidade nem do cristianismo, mas a abertura da Igreja e da religião para os problemas
sociais. Nesse sentido, contrapõe a trajetória do escritor Antônio Callado com a do
personagem Nando, pois em ambos parece ter havido um movimento progressivo do
“engajamento religioso ao político, acompanhado de um erotismo crescente”.
Em se tratando do conjunto da narrativa de Callado, Lígia Chiappini conclui que em
cada livro posterior a Quarup, Callado desdobrasse, aprofundasse e atualizasse, uma de
suas múltiplas vertentes: assim, Bar Don Juan, Reflexos do Baile e Sempreviva retomam as
andanças do padre Nando, procurando retratar diferentes brasis (das guerrilhas, dos
seqüestros, do submundo dos torturadores e torturados), ou seja, sempre buscando
alternativas para os problemas do Brasil e cada vez com menos esperança, com a ironia
minando a epopéia e desvendando o quixotesco nas mais belas utopias.
51
Lígia Chiappini publicou também, em 1982, um material de função paradidática na
coleção “Literatura Comentada”, o próprio título é Antônio Callado.
52
Com finalidade
pedagógica, o livro é bem resumido, apresentando parte de um entrevista com o autor,
pequenos textos sobre os seis romances de Callado publicados até 1981, que contém um
breve resumo do enredo de cada romance e trechos destes. Utilizou, também três
reportagens de Callado: Tempo de Arraes, Esqueleto na Lagoa Verde e Vietnã do Norte.
50
Ibidem, p. 163.
51
Ibidem, p. 221.
52
LEITE, L. C. M. Antônio Callado. Coleção: Literatura Comentada, São Paulo: Abril Educação, 1982.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
136
Por fim, de forma bem esquemática (característica de materiais didáticos), traz a cronologia
biográfica de Callado; sua produção em prosa; um breve panorama da época e uma
“cronologia histórico-literária”. Como é um trabalho de função pedagógica, tem no final
dez “exercícios de fixação” e cinco “atividades de criação”.
Em 1994, na Revista Brasileira de Literatura Comparada, Lígia Chiappini retoma
Quarup no artigo: Nem Lero nem clero: historicidade e atualidade e Quarup de Antônio
Callado.
53
Nesse artigo, a autora recorre a algumas questões que já havia discutido em
Quando a Pátria viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado, e desenvolve outras
questões como a historicidade e a atualidade de Quarup:
Mas Quarup resiste a essa leitura datada. Hoje podemos perceber isso, e essa é
uma das razões da sua atualidade, entendendo agora atualidade no sentido da sua
relação com o nosso hoje e não com o hoje de ontem. (...) De fato Quarup falou aos
leitores da década de 60, nacionalistas, desenvolvimentistas, populistas, anti-
imperialistas, pequeno-burgueses e “revolucionários”. Mas continua falando aos
leitores de 90, ainda pequeno-burgueses, porém mais cosmopolitas e modernizados
e céticos tanto diante dos programas desenvolvimentistas e modernizadores quanto
diante dos radicalismos de uma esquerda festiva. E consegue essa façanha porque
é um livro profundamente histórico e profundamente artístico, desmentindo os
preconceitos que freqüentemente levam a crítica a opor o histórico ao estético.
54
Para Lígia Chiappini, Quarup é um romance histórico não apenas por enfocar temas
da nossa História recente, “mas porque é ele mesmo história, enquanto memória e
reconstrução do presente”. A autora recorre a Pierre Nora em Lieux de mémoire, ou seja,
“lugares ao mesmo tempo materiais, funcionais e simbólicos, que permitem a retomada do
passado no presente.” Portanto, a atualidade e a historicidade de Quarup passam pelo
trabalho que o romance realiza com uma série de “lieux de memória”, sendo capaz de
“mudar enquanto perdura”.
Outro consagrado crítico de origem norte-americana, Malcon Silverman, tem
dedicado atenção à produção romanesca de Callado e, na coletânea de ensaios Moderna
ficção Brasileira, deu sua contribuição em: Ficção em prosa de Antônio Callado.
55
No que
53
LEITE, L. C. M. Nem Lero nem Clero: atualidade e historicidade em Quarup de Antônio Callado. Revista
Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo, n. 15, maio de 1994, p. 97-108.
54
Ibidem, p. 99.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
137
se refere a Quarup e Bar Don Juan, Silverman consagrou-os mais do que romances
políticos e engajados: felizmente porém, é muito mais do que isso: são romances de idéias,
que procuram descobrir, expor e reavaliar a identidade brasileira.
56
Quanto a estrutura,
“as duas novelas” apresentam maior complexidade em razão dos fatores externos, e afirma :
Quarup é certamente a melhor obra de Callado.
57
Ao que parece, Malcon Silverman preserva sua opinião em relação a Quarup, em
um livro mais recente, Protesto e o novo romance brasileiro,
58
Ele explica: publicado as
vésperas do sufocante AI-5, este trabalho longo, de quinhentas páginas, é o mais ambicioso
e o mais lido de Antônio Callado.
59
Nesta obra, Silverman realiza uma vasta pesquisa, mostrando o que chamou de
“amplo corte transversal”, reunindo obras que melhor exemplificassem “o espírito
diversificado de protestos durante o último quarto de século”, isto é, buscando nas técnicas
narrativas o que foi empregado para questionar e contestar o que aconteceu no Brasil,
pouco antes de 1964 até 1980. Quarup foi mencionado em vários capítulos, mas sua análise
surge de forma sucinta no sétimo capítulo, “O romance realista-político”, mesmo porque a
proposta de Silverman não consiste em fazer uma análise aprofundada, pois apresenta uma
infinidade de obras.
60
Entre elas, foram colocados lado a lado, em grau de
55
SILVERMAN, M. A Ficção em Prosa de Antônio Callado, In: Moderna Ficção Brasileira: ensaios. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 19-32.
Neste ensaio, Malcon Silverman incorporou os quatro primeiros romances de Antônio Callado, dividindo-os
em duas fases. Na primeira, “mística e romântica”, estão Assunção de Salviano, Madona de Cedro; a Segunda
“política e engagée” estão Quarup e Bar Don Juan.
56
Ibidem, p. 20.
57
Ibidem, p. 22.
58
SILVERMAN, M. Protesto e o novo romance brasileiro. Op. Cit.
A obra foi dividida em nove capítulos, em que Silverman diz considerar uma forma mais didática de
estruturar seu estudo e facilitar sua análise, sendo eles: O romance jornalístico; O romance memorial; O
romance da massificação; O romance de costumes urbanos; O romance intimista; O romance regionalista-
histórico; O romance realista-político; O romance da sátira política absurda; O romance da sátira política
surrealista.
59
Ibidem, p. 293.
60
Nesse capítulo, Silverman apontou como representante desse “realismo-político” as obras: Quarup (1967) e
Reflexos do Baile (1977) de Antônio Callado, Pessach: a travessia (1967) de Carlos Heitor Cony; No País
das Sombras (1979) de Aguinaldo Silva; Operação Silêncio (1979) e A condolência (1984) de Márcio Souza;
A Serviço Del Rei (só pode ser lançado em 1984 devido a censura) de Autran Dourado; Os Novos (1971) de
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
138
representatividade para sua geração e para as posteriores, Quarup e Pessach: a travessia,
que segundo o autor, “passaram a ser vistos como o tipo de romance da revolução brasileira
‘real’ ainda por vir”.
Quarup é visto também como uma obra que abandona o enredo convencional e
estruturado, “num relato fiel da situação caótica de sua época”, em que o protagonista Padre
Nando, é para ele:
Ele é uma espécie de protótipo de Lukacs, um herói problemática cuja metamorfose
desequilibrada de um celibato tímido, intelectualizado e sexualmente frustrado
num revolucionário entusiasta e fornicador alegoriza, também, a psique
nacional, prenhe de crises.
61
Tendo apontado a trajetória de Nando, Silverman conclui que, no romance, no final
de seu enredo, em 1964, Nando está seguindo “a estrada fatalista do desastre inevitável”,
assim como o Brasil, os índios e os camponeses, a burguesia corrompida e o governo
inconstitucional em formação.
Outra obra que também se propõe a discutir o romance pós-64, mais
especificamente dos anos 1970, é a de Renato Franco, Itinerário Político do Romance Pós-
64: A Festa.
62
Dentre as hipóteses e os objetivos apresentados pelo autor, ele diz pretender
por meio desse universo particular (análise do itinerário político do romance pós-64),
“elaborar uma imagem histórica das representações literárias acerca das experiências
sociais que prevaleceram nessa época”.
Reconhece que outros críticos preocuparam-se com essa questão, entre eles, Malcon
Silverman, em Protesto e o novo romance brasileiro. Fazendo algumas restrições a sua
obra: a exaustiva pesquisa de Malcon Silverman revela uma qualidade notável. (...) No
entanto, se sua pesquisa é extensa e apoiada em grande número de informações, ela perde
força nos momentos capitais da análise: o distanciamento do autor em relação ao período
considerado.
63
Luiz Vilela, O senhor embaixador (1965) e O prisioneiro (1967) de Erico Verissimo, A festa no castelo
(1982).
61
Ibidem, p. 293.
62
FRANCO, R. Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa, Op. Cit.
63
Ibidem, p. 22.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
139
Remetendo, agora, a Quarup: a revolução pacífica, subtítulo dado ao espaço que
dedicou ao romance, reporta-se à crítica de Ferreira Gullar, Hélio Pellegrino e ao estudo de
Lígia Chiappini - ao qual recorre com bastante freqüência. Em se tratando de Quarup, tece
observações como:
(...) Quarup: romance do excesso, ao mesmo tempo lúdico, erótico e político e
também algo religioso -, além de longo. Aparentemente caótico e fragmentário, ele
talvez resulte da dificuldade, partilhada afinal por todos os produtores culturais do
período, de se constituir uma visão de mundo coerente.
64
Destacando, por fim, que Quarup é “um vasto painel da vida brasileira, centrado na
questão da identidade nacional, como mostra a trajetória de Nando, que se transforma no
guerrilheiro Levindo.
Outros artigos já produzidos sobre Quarup têm objetivos semelhantes, a exemplo de
1992, quando se comemoram os vinte e cinco anos de publicação do romance e o
centenário de Gracilano Ramos. Na Revista Cultura Vozes, Arturo Gouveia Araújo lembrou
a data com Literatura em Cadeia,
65
em que também menciona os quinze anos de
publicação de Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós. Para contemplar os três escritores,
Arturo propôs um exercício de literatura comparada, buscando algo em comum nas
seguintes obras: Vidas Secas de Graciliano, o capítulo Cadeia; Quarup de Callado, o
capítulo A Palavra; Em Câmara Lenta, a cena que dá nome ao romance. Assim, visa
enfocar o ponto de vista da violência oficial e a relação dos personagens com o ambiente da
prisão.
Em A Palavra, aponta a relação entre literatura e ditadura, enfatizando a prisão de
Nando e a postura dos torturadores como o personagem Ibiratinga. Mas não se esquecendo
também de aspectos importantes do capítulo, como a alfabetização de camponeses, que
considera “um dos aspectos mais modernos do romance de Antônio Callado”, em que tipos
humanos socialmente esquecidos descobrem-se como sujeitos capazes de influenciar o
curso dos fatos: As palavras, assim, ao invés de terem negada a sua referencialidade,
64
Ibidem, p. 54.
65
ARAÚJO, A. G. Literatura em Cadeia. Cultura Vozes. São Paulo, n.º 5, p. 37-57, Set. Out. de 1992.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
140
procedimento típico de poéticas reacionárias, tem um conteúdo vital, relacionado com o
universo imediato dos receptores, mas transcendendo-o.
66
Em relação ao tema da violência nos três romances, Fabiano, de Vidas Secas,
também é preso e agredido, mas não se compara à modernização da violência vista em
Quarup, “enquanto Fabiano é um preso comum em cadeia convencional, Nando é um preso
específico em uma prisão estilizada”. Essa modernidade da violência não existe na cadeia
de Fabiano, mas Arturo a constata com depoimentos de exilados e prisioneiros do pós-64.
Em Câmara Lenta, tem-se a radicalização da violência, anula-se o direito do oprimido de
qualquer forma de expressão.
Também em 1992, Beijamin Abdala Jr. Publicou o artigo Do Brasil a Portugal:
imagens na ação política.
67
Com base em São Bernardo (1977), de Graciliano Ramos, faz a
aproximação entre a literatura de ênfase social produzida contemporaneamente no Brasil e
em Portugal. Ao lado disso, Quarup é apresentado como uma obra do “neo-romantismo”:
esse neo-romantismo da geração dos anos 60 impregna todo o discurso narrativo de
Quarup. (...) Não é só: os esquemas ideológicos neo-românticos modelizam as articulações
políticas.
68
Para o autor, Quarup trata-se da retomada da literatura populista da década de
30, por pretender comunicar com setores proletários, e que, na verdade, só se comunica
com um público leitor já conscientizado.
Outro enfoque é dado ao romance por Belmira Magalhães em Quarup:
subjetividade/objetividade faces da totalidade.
69
Como o título sugere, a partir do
protagonista Nando, discute a subjetividade na realidade objetiva, “através da práxis
política”. Considera que a riqueza do romance “está em não apresentar uma forma de
intervenção, mas discutir diversas formas da atuação subjetiva”, e que a única certeza em
66
Ibidem, p. 42.
67
ABDALA JR., B. Do Brasil a Portugal: imagens na ação política. Revista de Letras / UNESP. São Paulo,
n.º 32, p. 15-30, 1992.
68
Ibidem, p. 18.
69
MAGALHÃES, B. Quarup: subjetividade/objetividade faces da totalidade. Revista ESTUDOS. Alagoas,
n.º 5, p. 70-77, fev. 1993.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
141
toda a obra é que: a realidade precisa ser mudada com vistas à emancipação humana e
essa transformação só é possível se concretizada por mãos humanas.
70
Tendo como referência as críticas aqui apresentadas, percebe-se que as restrições
feitas a Quarup são da ocasião de seu lançamento e que a repercussão do romance ao longo
de décadas lhe reservou o lugar merecido na literatura brasileira. Assim, em seu conjunto,
estas críticas constituem numa importante fonte documental e num referencial para estudos,
que buscam representações desse período conturbado de nossa História recente.
Como afirmou a historiadora Sandra Pesavento (referindo-se à obra de Érico
Veríssimo, O Tempo e o Vento): “a proposta não é fazer do escritor um historiador, nem em
que medidas a obra fala verdades”.
70
Ibidem, p. 77.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
142
2 A Academia em Visita a Quarup: Teses e Dissertações.
Os trabalhos acadêmicos sobre o romance Quarup proliferaram ao longo do tempo,
um dos primeiros estudos surgiu no final da década de 1970, e, daí por diante se
avolumaram. Assim, a ausência da visita acadêmica às obras de Antônio Callado - que ele
próprio relatou deixou de existir.
O primeiro estudo, de Vera Lúcia Alonso: Quarup: Ruína e Utopia (1979), a
princípio, chamou atenção, assim como Callado, para a escassez de trabalhos no espaço da
crítica acadêmica, que recorreram a Quarup como objeto de análise. Fala de sua
experiência dizendo que seu trabalho focaliza uma obra “extremamente esquecida” pela
faculdade de letras que cursou de 1969-1972 e: Quarup estava à venda nas livrarias.
Provavelmente, a autocensura, vestida com belas racionalizações, impediu que se falasse
neste romance, assim como em outros de igual importância.
71
Diz que o romance assume “conscientemente o caráter de historiografia inoficial” e
justifica seu interesse pela obra de Callado, por ele “conceber a arte enquanto compromisso
com a construção de um país livre”:
Na linha da literatura social, (...) o romance de Callado é registro da concepção de
arte predominante na época em que foi escrito, e, diacronicamente, assume a
herança crítico-realista de uma das faces mais importantes de nossa tradição
literária.
72
Sua proposta de análise do romance ancora-se na estrutura formal e na sua
realização como ruína e utopia,
73
recorrendo a Walter Benjamin em A obra de arte na
época de suas técnicas de reprodução, como base teórica, e também à noção de arte como
ruína alegórica - como manifestação do outro, do reprimido, que não teve sua voz
registrada no discurso do poder. Nesse contexto, realiza a primeira parte da análise, a
71
ALONSO, V. L. F. F. Quarup: Ruína e Utopia. Op. Cit. p. 15.
72
Ibidem, p. 11.
73
A autora define esses conceitos como: Ruína, enquanto documento, registro do pensar de uma época,
ainda que transcenda: de alguma forma, nos fala do que foi, nos revela algo do tempo que viu nascer.
Utopia, porque também testemunha o não sido, nos remetendo às potencialidade não concretizadas na
História. Porque fala do que foi, deixando entrever o que poderia ter sido e, com isto, aponta para um ideal a
realizar. Ibidem, p. 11.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
143
segunda parte consiste em fixar traços constantes na produção literária de Callado, como a
“problemática da religiosidade”:
É esta concepção de fé, enquanto compromisso com a transformação do mundo em
que vivemos, luta pela justiça na terra, que encontramos em Quarup. O
personagem principal, envolvendo-se progressivamente com os problemas sociais
que o cercam, substituirá o utopismo, que norteou sua educação religiosa, pela
utopia de construção de uma sociedade mais justa.
74
Prossegue falando da formação cultural do protagonista Nando, sua preparação para
o trabalho missionário, sua primeira relação sexual com a inglesa Winifred - que o
“impulsionará para o mundo”-, o contato com os índios do Xingu e o abandono da batina.
Assim, Nando inicia uma nova fase “marcada pelo despertar da utopia”. Nessa fase, haverá
uma aproximação entre “cristianismo e comunismo”, que atingirá a síntese na figura de
Nando, que: ao contrário, Padre Gonçalo, embora engajado no trabalho social, preocupa-
se em estabelecer uma divisão entre reino do céu e reino da terra, separando corpo e alma
como campos distintos a serem conquistados.
75
Na seqüência, discute questões do romance, como espírito barroco e antropofagia.
Para falar espírito barroco, recorre a Roberto Shwartz em O Pai de Família e Outros
Estudos, no que se refere à coexistência do arcaico e do moderno como dois planos no
tempo ficcional, que seriam o contexto sócio-político e a “deseducação” sofrida por Nando,
superando gradativamente seus conceitos: ao iniciar-se o romance, a mentalidade de
Nando é barroca, os sonhos que alimenta são os mesmos dos missionários da Companhia
de Jesus, que aqui chegaram nos séculos XVI e XVII.
76
Outros personagens de Quarup incorporam esse espírito barroco, como Fontoura e
Villar, considerados “reedições do jesuíta e do bandeirante”.
Na antropofagia, utiliza o conceito Benedito Nunes A Antropofagia ao Alcance de
Todos. Buscando no capítulo A Praia, o momento em que a personagem Francisca viaja
para Europa e Nando completa sua deseducação: “o momento de repensar nossa realidade
buscando as raízes nos erros”, Nando prostitui-se e vive uma vida antropofág1ica,
74
Ibidem, p. 17-18.
75
Ibidem, p. 21.
76
Ibidem, p. 24
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
144
provocando uma sociedade patriarcal. A autora também faz referência ao jantar que Nando
oferece em comemoração à morte de Levindo, como uma cerimônia antropofágica,
recorrendo a Mikhail Bakhtin: após o banquete orgástico, em que Nando devora a
lembrança de Levindo, haverá a reencarnação do herói morto que se realizará no
carnaval, a festa do tempo destrutor e regenerador, segundo Bakhtine.
77
Em relação aos planos ficcional e histórico, faz menção à categoria literária épica a
que Quarup pertence, cita superficialmente a construção dos personagens inspirados no
cenário político, mas só dá o exemplo do personagem Januário, inspirado em Francisco
Julião, criador das Ligas Camponesas.
A busca de componentes temáticos como a religiosidade e suas conseqüências para
o indivíduo, misticismo do povo brasileiro, nos primeiros romances de Callado, Assunção
de Salviano, Madona de Cedro, retomados em Quarup, são recursos para construir o que a
autora intitulou Construindo/Desconstruindo o Mundo de Quarup.
A obra Assunção de Salviano recebeu bastante atenção, foi relacionada a outras
produções, como: o filme de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, que também
enfoca a questão do misticismo popular, com Pagador de Promessas de Dias Gomes e
Veredas da Salvação de Jorge de Andrade, mostrando suas divergências e aproximações
Temas dos demais romances de Callado são relacionados a Quarup (onde
aproximam e afastam) para, em seguida, retomar Quarup como marco divisório no corpo
da narrativa do autor, seguido por Bar Don Juan e Reflexos do Baile.
Quarup é um marco no corpo da obra narrativa de Callado, (...) a temática se volta
para a reconstituição do clima político no país, nos últimos anos. (...) O herói em
Quarup, não é retomado, o que poderia se esperar, já que o final deste romance
constitui-se num início. Em seu lugar, surgem vários personagens que continuam
sem aprender a lição que tentou ensinar. A busca orientada é substituída pela
inquietação, a necessidade se torna angústia e a utopia se fragmenta nos sonhos
dos jovens que irão participar do universo ficcional de Bar Don Juan e Reflexos do
Baile.
78
77
Ibidem, p. 45
78
Ibidem.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
145
Após a análise desses três romances, conclui reafirmando sua tese de ruína e utopia
em Quarup: a obra é, então, ruína e utopia, pela intenção de registrar reflexivamente o
ocorrido, em busca de soluções, na esperança de virar o jogo.
79
Em síntese, a proposta desse estudo é bem desenvolvida, principalmente pelo
trabalho de Vera Lúcia Alonso ter sido um dos pioneiros a dedicar-se à narrativa de
Antônio Callado. Porém, alguns pontos deixaram de ser aprofundados, ou apareceram a
título de menção, como o plano histórico pouco relacionado com o plano ficcional, aspecto
importante para melhor entendimento da obra e até mesmo da construção dos personagens.
No que se refere à estrutura do trabalho, a autora utilizou de conceitos, sem remeter-se às
fontes teóricas e, em diversas passagens, citou personagens do romance sem apresentá-los
ou circunstanciá-los no enredo. A exemplo de quando confronta Nando ex-padre com Padre
Gonçalo (que não é apresentado, pressupondo um leitor já conhecedor de Quarup). Dessa
maneira, a autora deixa de explorar um aspecto relevante, já que propunha uma síntese da
religiosidade em Quarup.
80
Outras informações faltaram, a começar pelo significado do
título, o ritual do Quarup, a importância que esse ritual simbólico terá redimensionando as
vidas dos personagens, concomitantemente com o plano histórico. Mas, em linhas gerais, a
autora cumpriu sua proposta de análise de Quarup como ruína e utopia.
O trabalho de Giselle Larizzatti Agazzi aproxima-se do de Vera Lúcia Alonso, no
sentido de também pesquisar nos romances de Callado: A Crise da Utopias: A Esquerda
nos Romances de Antônio Callado, em que vislumbra as obras Quarup, Bar Don Juan,
Reflexos do Baile e Sempreviva em seu conjunto, ou seja, “lidas em conjunto revelam a
crise da utopia das esquerdas nas décadas de 60 e 70”, e isso se traduz na estruturação das
narrativa- mais precisamente na trajetória dos protagonista. Organizou seu trabalho
analisando cada obra separadamente, e, a rigor, Quarup ocupa um significativo número de
79
Ibidem, p. 98
80
Um desses aspectos é o o fato de Padre Gonçalo ser um personagem de Antônio Callado que representa
uma Igreja Católica (década de 60) envolvida com os problemas sociais, criando sindicatos, padres aderindo
aos movimentos de resistência etc. Diferente daquela Igreja tradicional que Padre Nando representava no
início do romance (década de 50): alheia aos problemas sociais e ligada a elite dirigente. Foi essa
transformação que Callado quis absorver no plano ficcional dos três últimos capítulos, principalmente no
capítulo A Palavra ao colocar Padre Gonçalo vinculado aos sindicatos, o personagem Januário como líder e
fundador das Ligas Camponesas em Pernambuco e o personagem Otávio como representante do Partido
Comunista.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
146
páginas a mais na análise da autora em relação aos outros romances, assim justificadas:
Quarup conta com muitos aspectos que, para serem devidamente valorizados e
aproveitados na exploração do tema proposto, requerem uma leitura mais demorada.
81
Ao debruçar-se sobre Quarup (1967), segue os passos do herói Nando, e as fases
que ele cumpre no decorrer da narrativa, aproximando-se dos demais autores.
Compactuando com algumas idéias e justificando sua teoria da crise das utopias,
incorporadas nos movimentos de esquerda presentes na narrativa (Ligas Camponesas,
Sindicatos, Partido Comunista), concluindo que:
Antônio Callado aponta para a necessidade de reavaliarmos os projetos de
revolução socialista sugeridos no contexto histórico brasileiro, bem como a de
revermos a condição dos revolucionários que a História brasileira gerou ao longo
dos seus violentos anos, a começar pelo violento genocídio indígena.
82
Bar Don Juan (1971) é apresentado como um romance que busca registrar os anos
auge da ditadura militar e as “suas conseqüências para esquerda, que, diante da inesperada
violência do estado”, fragmenta-se, e a luta armada nascida para combater o terror “dilui-se
nas inconciliáveis divergências entre as facções revolucionárias”. Para discutir a esquerda
em Bar Don Juan, Giselle Agazzi recorre a Zuenir Ventura e Jacob Gorender.
Sobre o enredo, diz que, entre os diversos personagens, a maioria artistas que se
reúnem no Bar Don Juan, somente Laurinha consegue perceber os conflitos vividos pelas
esquerdas. A autora define o romance da seguinte forma:
Por entre assaltos a bancos, prisões repentinas e noites embriagadoras no bar Don
Juan, os revolucionários aguardavam algum sinal, vindo não sabiam bem de quem,
para que pudessem finalmente concretizar a revolução. Junto a eles, outros
revolucionários também esperavam na Serra Mineira de Caparaó o aviso de João
para tirarem a poeira das armas guardadas e derrubarem o poder opressor.
83
Nesse sentido, a autora conclui que o protagonista de Quarup “o ex-padre seria, em
Bar Don Juan, um daqueles que apodreceram no sertão à espera do aviso para darem início
às manobras dos focos guerrilheiros”. E no que diz respeito à resistência contra o estado
81
AGAZZI, G. L. A Crise das Utopias: A Esquerda nos romances de Antônio Callado. Op. Cit. p. 11.
82
Ibidem, p. 94.
83
Ibidem, p. 111.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
147
opressor, Bar Don Jan reverte as possibilidades encontradas em Quarup, ou seja, Antônio
Callado aponta para urgência de realizar uma crítica à luta armada e “repensar os caminhos
da sonhada revolução brasileira”.
Outros pontos divergentes em relação aos dois romances são: a impossibilidade de
amor e revolução em Bar Don Juan, já que o líder do grupo, João, é morto, deixando sua
amada Laurinha; outro exemplo é a relação com a festa: festa, enquanto meio de fuga, é a
expressão mais clara do medo dos homens diante da história latino-americana.
84
Já que a
bebedeira fazia parte do cotidiano do grupo que se reunia no bar.
Em meio a inúmeras questões apontadas, o trabalho conclui que Bar Don Juan,
além de mostrar o fracasso da luta armada e o esfacelamento do ideário utópico das
esquerdas, propõe, a partir de um olhar dialético sobre história, a construção da memória
dos comunistas, e o uso dessa memória como meio de superar os equívocos passados para
projetar a imagem de um Brasil viável.
Em seguida, apresenta o terceiro romance Reflexos do Baile (1976), tendo como
conflito central da narrativa o seqüestro do embaixador norte-americano. Tem-se a
construção de uma linguagem experimental inovadora,
85
uma narrativa descentralizada,
distanciamento do narrador, fragmentação das categorias narrativas. Nesse sentido, o
romance dialoga:
Reflexos do Baile dialoga com a falência, inegável, das utopias, causada pelo
violento poder dos militares, o que obriga o leitor a compreender a obra menos
através dos fatos que são narrados e mais através da maneira pela qual são
narrados, uma vez que os homens transformaram-se em peças de um jogo infernal,
no qual só se mantém vivo aquele que conseguir prever o próximo movimento do
inimigo.
86
Para Giselle Agazzi, Reflexos do Baile propõe um olhar mais crítico sobre a questão
da identidade nacional, pois reafirma a urgência de a população compreender a imagem
real, concreta, do Brasil, sem reinventá-la, mascará-la, escondê-la. O romance não é apenas
84
Ibidem, p. 124.
85
Ibidem, p. 139
86
Ibidem, p. 142.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
148
a história do fim da utopia, “mas é a mais lúcida lembrança de que é preciso sonhar, e de
que é possível, sempre, burlar o poder opressor e fazer crescer a voz rouca dos oprimidos”.
O último romance analisado foi Sempreviva (1981), a trama desenvolve-se em
Corumbá, onde se encontram dois grupos antagônicos: policiais e membros do Partido
Comunista. O protagonista, Quinho, volta do exílio para vingar a morte de Lucinda, grávida
de um filho seu, assassinada pela polícia. A ação narrativa é desenvolvida em torno desse
conflito. Em Sempreviva, a autora constata que “a utopia é um mero conceito soterrado pela
experiências do passado”, já que Quinho não consegue projetar um futuro nem para si,
quanto mais para a coletividade.
Os personagens de Sempreviva vivem sob identidade falsa, pois nesse romance
Callado busca pesquisar a intimidade dos torturados, o que difere das obras anteriores. A
única personagem da trama que sobrepõe seus interesses pessoais aos da coletividade é
Jupira:
É Jupira quem propõe, ainda que timidamente, uma saída para o caos brasileiro,
pois, com paciência e sabedoria, busca pôr em prática a justiça contra os que
violentaram o Brasil sem que, porém, isso signifique uma vingança pessoal. Essa
vingança, perseguida por Lucinda e por Quinho, ao invés de representar um
aprendizado (como é o da justiça tardia), representa o desabafo dos oprimidos e
a perpetuação do autoritarismo e da violência, já que não promove qualquer
mudança especial na vida do país.
87
Finalmente, analisando os quatro romances como um conjunto da narrativa de
Antônio Callado, a autora conclui que o autor levou os seus leitores ao doloroso
reconhecimento de que as esquerdas fracassaram e de que as tantas vidas que bancaram a
luta contra o autoritarismo não conquistaram a revolução sonhada. Mais ainda, Callado
como um atento crítico na condução do processo histórico brasileiro, “investigando através
do seu incansável engajamento político, social e intelectual, uma nova estética para leitura e
para vida”.
Giselle Agazzi realizou pesquisa e dialogou com as fontes em seu estudo, o que se
verifica no tema da “crise das utopias” em Quarup (1967) e Bar Don Juan (1971), obras
em que a narrativa de Callado, carregada de desilusão e desencanto pela luta
revolucionária, é bem explorada. Entretanto, torna-se relevante salientar que Giselle
87
Ibidem, p. 219.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
149
Agazzi, em determinado momento de sua análise, parte para “suposições” ao dizer que: “o
ex-padre Nando seria, em Bar Don Juan um daqueles que apodreceram no sertão à espera
do aviso para darem início às manobras dos focos guerrilheiros”. Nesse momento, a autora
caminha por um terreno frágil, uma vez que, deu um encaminhamento ao personagem de
Callado (Nando), o que não foi feito pelo próprio romancista.
Outro estudo é de Cristina Ferreira Pinto (1984): A Viagem do Herói no Romance
de Antônio Callado, sua proposta é perceber a estrutura da “viagem arquetípica do herói”,
dividindo a criação literária de Callado em três fases: a primeira fase é a religiosa, com o
tema da “contradição interior do homem em direção à auto-revelação e conhecimento”; a
Segunda fase é política, e a terceira inicia-se por Expedição de Montaigne, a autora
confessa, ainda não estar definida. Mas, dedicando uma atenção especial a Quarup, por ter
sido ele uma espécie de divisor de águas na obra de Callado, assinalando a transição do
autor de sua preocupação religiosa para a política.
88
Quarup é apresentado como uma obra que alcança inovações formais e temáticas,
que consegue realizar a caracterização verossímil dos personagens por meio da linguagem:
Com Quarup, Callado atinge a verossimilhança na reprodução de uma linguagem
brasileira , com suas variantes nordestina, carioca e do interior matogrossense
com os seus índios, aculturados ou não; e também com as variantes decorrentes
das diferenças psicológicas que formam o homem brasileiro.
89
A autora faz referência aos dois quarups que acontecem no romance: o banquete
realizado para os índios mortos em uma aldeia do Xingu e o outro, que Nando promove em
homenagem a Levindo. Para ela, esses banquetes não poderiam deixar de lembrar
antropofagia e ato sexual:
(...) A antropofagia de Oswald de Andrade. A ela também se liga a metáfora do
sexo, presente em todo o livro. Não é demais lembrar que ‘comer’ é um termo
comumente usado no Brasil para referir-se ao ato sexual. E, afinal, o ato sexual
significa união, troca, incorporação assim como no quarup.
90
Assim como Oswald, Callado quer encontrar “um mito autenticamente brasileiro”.
88
PINTO, C. F. A Viagem do Herói no Romance de Antônio Callado. Op. Cit. p. 11.
89
Ibidem, p. 25
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
150
Em relação às temáticas presentes no romance, aponta o compromisso de Callado
em fazer ficção com base na realidade brasileira, o de não ter abandonado o motivo
religioso, mas dando a este outro enfoque. Relaciona, também, experiência de repórter do
autor, a elementos da obra ficcional como: as Ligas Camponesas, Miguel Arraes
(governador de Pernambuco), o trabalho de Paulo Freire etc.
Inicia, assim, a viagem do herói, a partir das metáforas presentes em Quarup e a
importância que as mulheres assumem no papel arquetípico do conhecimento que Nando
irá alcançar. No seu percurso, o herói (Nando) transfere o que queria realizar junto aos
índios do Xingu, para o camponês pernambucano: “homens que se preparam para fazer a
história”.
Os três romances da segunda fase, que sucedem Quarup Bar Don Juan, Reflexos
do Baile e Sempreviva -, estão ligados à situação política do Brasil pós-64. Em Bar Don
Juan, Callado representa a esquerda festiva, uma crítica ao intelectual revolucionário
brasileiro no seu egocentrismo e “desesperado para realizar a revolução.” Já Reflexos do
Baile passa-se numa época em que a guerrilha urbana seqüestra embaixadores, e a ação é
reprimida pela polícia, a guerrilha é a única opção, mas já inicia perdida:
Reflexos do Baile representa o fechamento de um ciclo cujos dois outros pontos são
Quarup e Bar Dom Juan, e que pode ser esquematicamente resumido da seguinte
forma: revolução crítica da revolução falha da revolução.
91
Em Reflexos do Baile e Bar Don Juan, não há protagonista como centro do enredo,
um ou dois personagens recebem atenção especial na narrativa, mas Sempreviva volta a ter
personagem central como em Quarup.
Sempreviva fecha o ciclo das obras engajadas, a revolução foi morta, seus
participantes espalharam-se pelas prisões, pelo exílio, foram assassinados e
“desaparecidos”. Assim, fecha a fase política das obras romanescas de Antônio Callado
para a autora.
O trabalho, porém, é bastante resumido, foi desenvolvido em um programa de pós-
graduação nos EUA, e eles têm suas normas. Está estruturado de forma bem didática, no
capítulo Quarup, fala do significado do título e do aspecto formal da obra, em seguida,
90
Ibidem, p. 25
91
Ibidem, p. 34.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
151
aborda as temáticas: relação com a realidade brasileira, motivo religioso, associa elementos
das suas obras de reportagem a sua obras de ficção. No terceiro capítulo, trabalha a
estrutura da obra por meio da viagem do herói nos romances da segunda fase. Assim,
Cristina Ferreira deu sua contribuição para o estudo das obras de Callado, mesmo sendo um
trabalho que poderia ser mais aprofundado, comparado aos produzidos em nossas
universidades.
Um exemplo da produção acadêmica brasileira é a tese de Édison José da Costa, que
se tornou o livro Quarup: tronco e narrativa. Édison Costa introduz sua obra dando as
diretrizes de como pensou a produção romanesca de Callado: primeiro, a relação jornalista
e criador literário: “o profissional da informação e o criador literário harmonizam-se,
fecundamente”. Logo após, como o autor concebeu o engajamento como objeto estético:
Os romances do autor focalizam a história recente brasileira à luz dos interesses
nacionais e populares; propõem-se como ato de pensar a realidade que situa
dialeticamente a criação literária em face do mundo objetivo. (...) Define o objeto
estético, nessa formulação, como exercício de encantamento, caminho de
libertação através do qual o sagrado se manifesta ao homem.
92
Ao lado disso, fala dos critérios para se trabalhar com a obra literária, partindo de
uma leitura crítica, que saiba escutar a voz narrativa, para que ela possa “se revelar e se
dizer”, pois é o diálogo e a convivência com a obra que permite o seu conhecimento, uma
vez que a “obra literária traz inscrita em si mesma a sua verdade”.
Seguindo a disposição dos capítulos de Quarup, Édison faz desdobramentos dos
títulos do romance, realizando um jogo metafórico com os capítulos. Criando, assim, a
estrutura do seu próprio trabalho:
I O OSSUÁRIO ou Os meandros do latifúndio do Senhor.
II O ÉTER ou As flores do mal.
III A MAÇÃ ou O avesso do paraíso.
IV A ORQUÍDEA ou Noite negra, estrela rara.
V A PALAVRA ou No mundo de Levindo.
VI A PRAIA ou Morte/vida.
VII O MUNDO DE FRANCISCA ou Assunção de Nando.
92
COSTA, É. J. Quarup: tronco e narrativa. Op. Cit. p. 3
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
1
52
Cada capítulo é iniciado pela análise de Quarup (o tronco) para, em seguida,
remeter-se aos demais romances, entrecruzando os “elementos” e “motivos” recorrentes no
conjunto da narrativa de Antônio Callado.
Trilhando esse caminho, Édison defende sua tese, pois, assim como o ritual do
Quarup é um tronco cerimonial, a obra em si é um tronco da narrativa. Para justificar essa
tese, Édison apresenta os “motivos” recorrentes ao longo da criação ficcional de Callado,
como: água, reconstrução do mundo, invasão, penetração, impotência, fecundação,
catacumba, queda do homem, gravidez, túnel, arma de fogo, encontro, desencontro etc.
Partindo de Quarup persegue as representações desses “motivos”
93
nos demais romances,
conclui seu estudo dizendo:
Acompanhando, em Quarup, o entretecer do universo ficcional, perseguindo
motivos que nos demais romances encontram, de igual maneira, atualização,
percorrendo atalhos similaridades e recorrência (...) O ato de narrar, reassumindo
funções ancestrais , constitui-se ritualísticamente em Callado, de Assunção de
Salviano a Sempreviva.
94
Assim, justificou a tese de Quarup ser o fio condutor que entremeia o tecido da
trama narrativa de Callado, uma perspectiva de leitura que dá originalidade ao seu estudo,
pois as obras apresentadas mencionam algumas questões abordadas por Édison, mas não
desenvolvem propostas semelhantes.
O trabalho a seguir é o de Robêni Baptista Mamizuka, com o título O Romance
Engajado na Década de 60: Quarup.
95
Robêni inicia falando da sua experiência ao ler
93
Alguns exemplos de como esses “motivos” são relacionados as obras de Callado, partindo do tronco
Quarup: “1) Encontrando no quarup uialapiti o eixo que se responsabiliza pela estrutura mesma da
narrativa amarrando motivos, entre eles o motivo água, recorrente e intimamente associado à natureza da
cerimônia morte/vida este estudo mostra o tronco cerimonial a escorar a composição do painel do Brasil
apresentado em Quarup; a orientar, de forma semelhante, o painel mais amplo dos anos da ditadura
desenvolvido nos romances seguintes; a buscar raízes, ao mesmo tempo, em Assunção de Salviano e
Madona de Cedro.
2) O motivo catacumba associado, em Quarup, à aridez e à morte reaparecerá em Reflexos do Baile.
3) O motivo gravidez, assim proposto pelo material histórico e pelo plano social, deixa-se reconhecer na
própria situação subjetiva do protagonista (...) O motivo gravidez retornará em Bar Don Juan e Sempreviva.
Mariana e Lucinda, grávidas, são manifestação exuberante de vitalidade.”. Ibidem, p. 5, 26, 46,47.
94
Ibidem, p. 186.
95
MAMIZUKA, R. B. O Romance Engajado na Década de 60: Quarup. Op. Cit.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
153
Quarup, na ocasião do seu lançamento (1967), incluindo-se no que chamou de “leitor de
primeira hora”
96
: Ou seja, aqueles que receberam Quarup como:
(...) A conjuntura política, engajava a narrativa e o leitor de primeira hora de
Quarup o saudava como o romance programático: o grande romance histórico
brasileiro. Estéticamente a nação estaria aí representada: era o desaguadouro de
todo um povo oprimido.
97
Na década de 1980, Robêni diz ter realizado a segunda leitura de Quarup, confessa
não ter conseguido resgatar o significado da primeira leitura: “eram outros olhos, outro
momento histórico”. Vai além, quando diz ter descoberto as reportagens escritas por
Callado: Esqueleto na Lagoa Verde (1952) e Tempo de Arraes (1963), surgindo daí a
terceira leitura. A partir dessas três leituras, propõe o seu diálogo com o romance - essa
relação obra/leitor será perseguida no decorrer do trabalho.
Ao tentar percorrer “caminhos do padre Nando”, divide a narrativa do romance em
duas partes, a primeira são os quatro capítulos iniciais: O Ossuário, O Éter, A Maçã e A
Orquídea, que denominou de “viagem ao Centro Geográfico”; a segunda são os três
últimos capítulos: A Palavra, A Praia e O Mundo de Francisca. Estabelece esta divisão,
mas “Os caminhos do padre Nando” acabam sendo pouco percorridos.
Para discutir o protagonista Nando, apresenta a questão do “Homem Novo”, no
plano histórico este homem seria: “o homem do concílio do Vaticano II, passando por
Camilo Torres e Guevara, entre outros”. No plano ficcional: o padre Nando, que vive,
segundo Robêni, no “travessão da balança”
98
, produzindo a identificação
96
Define os primeiros leitores de Quarup como: o leitor de primeira hora de Quarup se limitou a um grupo
de indivíduos, socialmente determinado, participante da minoria que frequentou e frequenta bancos
acadêmicos e cuja problemática, identificada à identificada a problemática da narrativa, tinha pouco a ver
com que se passava nas demais instâncias sociais. Esta limitação não aparece na narrativa, e a ausência
acabou por reforçar os mitos e as necessidades colocadas também para leitora de 1967, participante
entusiasta da esquerda juvenil, que assume de peito aberto a prática social vigente no interior da
Universidade, recoberta pelo discurso do bem comum, que se diz novo e revolucionário, extrapolando-o para
as demais instâncias sociais. Ibidem, p. 18.
Lígia Chiappini também utilizou o termo “leitor de primeira hora”, em 1982, no ensaio Quando a Pátria
Viaja: uma leitura dos romances de Antônio Callado, referindo as críticas recebidas por Quarup no seu
lançamento.
97
Ibidem, p. 6.
98
Este termo foi retirado do próprio texto do romance, quando o personagem Nando medita no Ossuário do
Mosteiro, mas não foi citado: (...) É que o Cristo em Glória só julgava ali homens de Deus, que haviam
escolhido viver crucificado no travessão daquela balança. (Quarup, p. 9).
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
154
personagem/leitor, que faz Nando provar a si mesmo sua transformação num “homem
novo”:
Viver no travessão da balança leva o padre Nando a se provar como homem novo,
um quase Cristo. Macho que experimentou da ‘carne’ e gostou e que até então,
enquanto padre, abstraíra sua condição de homem, alimentando-se das citações de
Dante e Virgílio relativamente ao universo feminino.(...)
99
Surgem, dessa maneira, elementos que marcam a trajetória desse “homem novo”,
como a sexualidade e a religiosidade, culminando na constatação de que “é na luta entre
projeto cristão e a sexualidade que reside uma possível proposta estética à série social”.
Por fim, em seu terceiro capítulo, que merece atenção por ocupar mais da metade do
seu trabalho, Robêni Mamizuka expõe sobre as minorias raciais, sexuais e políticas que
Quarup incorpora como conteúdo, sendo representadas pelo índio, pela mulher e pelo
camponês. Cada um desses grupo, é analisado separadamente, nessa ordem, para justificar
sua teoria dos “projetos” que as personagens incorporam na narrativa.
O “projeto cristão”, incorporado pelo padre Nando, manifesta o desejo de salvar o
outro o índio: “a personagem tenta reeditar a experiência da República Guarani”. O
“projeto missionário”, que possui duplo objetivo: primeiro, o do personagem Fontoura,
“atrai as tribos para junto de si com a finalidade de mantê-las intacta”; o segundo, de Nando
e do Antropólogo Lauro, “de buscar nos índios um referente para suas teorias”. Essas
personagens marcam, também, a diferença entre quem vive a questão do indígena, como
Fontoura, e os que a teorizam como Nando e Lauro.
Recorrendo à fala de personagens como Ramiro Castanho, Lauro, Otávio etc.,
Robêni Mamizuka procura demonstrar que há um projeto maior, o de preservação do
universo indígena, em que a narrativa centra-se e fundamenta-se na identificação do índio
como coisa, animal, bicho. A conseqüência disso são projetos assistencialistas, como o
“projeto de apoio aos índios”: o projeto de apoio aos índios, que oculta este sentimento de
culpa, ao mesmo tempo que satisfaz, justifica a ação e a vida das personagens. (...) No caso
dos índios, são bichos. Este é o projeto da Igreja.
100
99
Ibidem, p. 40.
100
Ibidem, p. 42.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
155
Assim, conclui que a narrativa de Callado apresenta o índio na perspectiva do leitor,
como “objeto de exame, como um outro estigmatizado”, ele é visto como coisa, como
criança.
Quanto ao universo feminino em Quarup, foi dividido em três categorias
101
,
conforme a relação com os homens. Robêni justifica essa divisão, por entender que a
presença da personagem feminina na narrativa significa uma “grande ausência: ausência de
vontade, de ação própria, de fala própria”, a presença da mulher é determinada pela
personagem masculina, e “sua imagem é sempre a imagem que o narrador e as personagens
masculinas, fazem dela”. Portanto, vê na superioridade que o narrador confere aos homens
desembocar no machismo na relação homem/mulher.
Nesse sentido, trabalha o papel desempenhando por algumas das personagens, como
Lídia, psicóloga quarentona: “sua função na narrativa consiste em analisar as personagens
homens com as quais convive”. Outro exemplo é Sônia, vista pelo grupo social ao qual
pertence, sempre como “puta”, segundo Robêni Mamizuka: “o narrador fez da personagem
Sônia a sua mulher mulher-objeto” e as personagens Winifred (a inglesa feminista) e
Francisca confirmam a superioridade que a narrativa confere aos personagens masculinos:
Francisca se mantém coerente com a função que a narrativa reservou às
mulheres. (...) Ou seja, funciona para estabelecer, definitivamente, a superioridade
que a narrativa confere aos homens, ao conceder a palavra à personagem-mulher.
E, como tal, ela desaparece da narrativa deixando um vazio.
102
Robêni Mamizuka faz algumas críticas ao tratamento dado às “minorias” pela
narrativa, mas reconhece a importância das mulheres na transformação do protagonista
Nando.
Em relação ao universo camponês, diz que ele ocupa “posição de irrelevância na
narrativa”, mesmo a narrativa esforçando-se por conferir uma importância política ao
101
A divisão das personagens femininas: a. personagens cuja existência na narrativa é totalmente controlada
pela personagem masculina Nando. A este grupo pertencem Francisca, Margarida, Jandira, Cristiana,
Júlia, Cecília, Vitoriana, Sancha, Marta Preta, Arlete, Pórcia e Vanda; b. personagens cuja ação guarda
independência relativa à vida de Nando deste grupo participam Sônia, Lídia, Raimunda, Deolinda, Maria do
Egito, Izabel Monteiro, a mulher de Nequinho e Winifred; c. personagens que tomam iniciativas na narrativa
mas que acabam, de um modo ou de outro, na cama de Nando. (...) Nele se enquadram, pela ordem, Winifred,
Vanda, Lídia e Francisca. Ibidem, p. 49.
102
Ibidem, p. 67.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
156
elemento camponês. Visto do ângulo político, por um discurso de vanguarda o camponês, é
recortado como: “ignorante, bronco, cabeça dura”, diz, ainda, que o discurso da vanguarda
destaca “a ausência de consciência de classe da massa camponesa”:
Marcada a ausência de consciência, justifica-se a penetração da consciência desde
fora do universo camponês. Justificada e legitimada estaria, portanto, a presença
de militantes, de origem social diferente, das Ligas Camponesas, dos Sindicatos
Rurais, do Movimento de Cultura Popular e que vão aos camponeses, enquanto
quadros políticos, levando a consciência da revolução e da organização.
103
Dessa forma, conclui que o universo camponês inexiste, dado que a palavra é
prerrogativa da vanguarda, e o leitor não consegue apreender a fala do camponês, pois o
“eu” da vanguarda desfaz o coletivo e a narrativa marca uma relação “assimétrica” entre
camponeses e intelectuais militantes, uma relação “paternalista”:
Então, se era com a palavra que a vanguarda queria armar a massa camponesa,
que, por não ter ainda a palavra, permanecia na condição de massa de manobra,
está possibilidade esta descartada e, mais uma vez o leitor se depara com o
processo de esfarelamento que marca a narrativa de Callado.
104
Encerra o seu trabalho, fazendo o contraponto entre as obras de reportagem e
ficcionais de Callado, uma vez que Quarup partilha do “desejo manifesto de narrar a
verdade”, incorporando o romance na vertente do “romance-reportagem”, que apresenta a
“intertextualidade”.
Diante das questões suscitadas por Robêni Mamizuka, algumas observações se
fazem necessárias, como, por exemplo, o fato de ele “cobrar” da narrativa de Antônio a
forma como tratou as minorias, a superioridade masculina sobre as mulheres, a
estigmatização do índio, que segundo esse autor, é tratado como “objeto de exame”, e a
quase inexistência do universo camponês. Com essa postura, Robêni exige da obra um
compromisso com essas “minorias”, como se Callado fosse o “dono da verdade” e a
narrativa tivesse se comprometido a fazer essa “defesa”. Esses pontos, que considerou
falhas da narrativa, receberam outro olhar, como o de Arturo Gouveia Araújo, que
considera como “um dos aspectos mais modernos do romance de Antônio Callado” o fato
103
Ibidem, p. 69.
104
Ibidem, p. 78
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
157
de os camponeses, “tipos humanos socialmente esquecidos”, descobrirem-se como sujeitos
capazes de influenciar o curso dos fatos.
Alice Mitika Koshiyama, assim como Robêni Mamizuka, introduz seu trabalho
falando de sua primeira leitura de Quarup (1972), que lhe causou “atração” e “repulsa”. Só
mais tarde aventurou-se a uma releitura e conclui: como a cultura do leitor é elemento
mutável, verifica-se que um objeto, apreendido esteticamente, pode ser transformado por
quem o olha; mas o próprio objeto pode afetar a condição de um leitor apreciá-lo.
105
A proposta metodológica de Alice Koshiyama é a “interpretação” sobre o romance,
segundo a definição de Tzvetan Todorov em Análise Estrutural da Narrativa. Para
construir essa “interpretação”, ancora-se, também, em autores como Walter Benjamin, que
não dissocia a qualidade estética da obra de cunho político: “o uso político de uma obra
independe do seu valor artístico”.
Ao lado disso, expõe a proposta de seu trabalho e sua tese:
Para elaborar nossa interpretação de Quarup recorremos a uma perspectiva
oferecida por estudos propostas interdisciplinares de teoria literária, teoria da
história, literatura brasileira e história contemporânea do Brasil. (...) Nossa tese:
O Tempo de Levindo: ficção e história no romance Quarup formula uma
interpretação confrontando o texto de ficção, considerado como representação da
realidade, com outra forma de representação da realidade, a história
contemporânea do Brasil. Estabelece uma leitura para o livro a partir da posição
das personagens em relação à história fatual, conjuntural e estrutural do país, dos
anos cincoenta aos dias atuais.
106
Quarup é a única obra de ficção de Antônio Callado presente no trabalho, quanto à
noção de tempo histórico, recorre a Fenand Braudel:
Fernad Braudel estabelece a noção de duração do tempo histórico em medidas que
variam de fatos minúsculos, do microtempo, a conjunturas e estruturas, durações
estabelecidas conforme as interrogações feitas pelos historiadores aos documentos
disponíveis.
107
A personagem Nando, segundo a autora, corresponde ao “tempo curto”, tempo
abordado pela história tradicional, que guarda a pretensão de registrar o acontecido, tal
105
KOSHIYAMA, A. M. O Tempo de Levindo: Ficção e História no Romance Quarup. Op. Cit. p. 04.
106
Ibidem, p. 9 10.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
158
como foi. Por isso, questiona: “mas seria Nando a personagem a partir da qual é possível
articular uma representação conjuntural e estrutural do país?”
A resposta justifica sua tese, pois a noção de conjuntura e estrutura em história
detecta as mudanças e permanências dos fenômenos de média e longa duração.
Ultrapassando, assim, e tempo curto de Nando, para o tempo de Levindo: (...) O tempo de
Levindo, possibilita ter uma visão do romance enquanto totalidade coerente, onde Levindo
representa ficcionalmente a história como vida e como memória.
108
Assim, Levindo representa o tempo da História o da longa duração -, mantendo a
atualidade de Quarup, em que “permanece a representação ficcional da História de 1967
aos nossos dias”.
Para entender o Tempo de Levindo, primeiro, é preciso conhecer o trajeto de Nando,
para isso, Alice Koshiyama recorre a leituras que diferentes autores já realizaram sobre o
romance, algumas favoráveis, outras não. Ou por vezes, “ignorado em respeitada obras
panorâmicas da história da literatura e inteligência brasileiras”, os exemplos são as obras de
Alfredo Bosi e Wilson Martins, mas conclui que todas as leituras convergem no sentido de
analisarem Quarup por intermédio do protagonista Nando, o que a autora chamou de
“percepção esquemática ao falar do romance”.
Contudo chega a uma constatação um tanto quanto “óbvia”, uma vez que admite a
presença de Nando em noventa por cento das páginas da do romance:
Pelo visto, concluímos ser impossível ler Quarup e deixar de ver em Nando a
personagem central. E, se ficam evidenciadas as metamorfoses de Nando, o que as
motiva? Ou, quem conduz Nando em seu percurso histórico? Para tentar responder
às questões admitimos acompanhar a personagem Nando em seu quotidiano no
romance, vivendo o seu tempo histórico fatual. A representação ficcional da
história de Nando é da história de curta duração, na terminologia de Braudel.
109
Assim, Alice Koshiyama caí no que chamou de “percepção esquemática”, percorre
o itinerário de Nando no seu espaço: Pernambuco, Rio de Janeiro, Xingu e novamente
Pernambuco; e no tempo: 1954 a 1964. Ao trilhar os caminhos de Nando, a autora faz
107
Ibidem, p. 12.
108
Ibidem, p. 14.
109
Ibidem, p. 34.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
159
ressalvas para o leitor do seu trabalho, como a diferença entre “história” e “ficção”: “para
não cair na tentação de exigir do romancista a arte de um historiador”:
A ficção pede às personagens que sejam apenas verossímeis. Na história, é
imperioso que as personagens sejam representações documentadas de pessoas
reais. O tempo da História é o tempo passado. O tempo da ficção abrange todas as
possibilidades do ser nos tempos passado, presente e futuro.
110
Nesse sentido, critica uma entrevista publicada na folha de São Paulo (1985), em
que o cineasta Glauber Rocha “cobra do romancista a exatidão de um historiador”, segundo
a autora, trechos que a recepção de Glauber acusou como “falhas de informação” não
passam de liberdade criadora conscientemente assumida pelo escritor Antônio Callado.
Para demonstrar a liberdade criadora do “escritor”, analisa fragmentos da vida de
Nando, em situações que Callado articula textos “historicamente inexatos, mas
literariamente verossímeis”, um dos exemplos é o da referência histórica da personagem
Nando, sobre a “República Guarani” basear-se na leitura do livro A República Comunista
Cristã dos Guaranis (1610-1768), escrito pelo abade suíço Clovis Lugon, publicado na
França em 1949. Alice afirma que as crenças e o otimismo em relação a Lugon pertencem a
personagem Nando, que, nesse momento da trama, é um padre católico, pacifista, medroso
e submisso às ordens da Igreja.
Contrapõe com outro exemplo de leitura sobre os índios guaranis, a do cineasta
Silvio Back, fruto de uma extensa pesquisa, aproveitada no documentário República
Guarani, em que Back critica a perspectiva interpretativa de Lugon e apresenta três formas
possíveis de interpretação para o que aconteceu:
República Guarani: enquadramento harmonioso do indígena, uma sociedade
“comunista cristã”, elo perdido do socialismo dos Trópicos, único projeto
pedagógico da Igreja bem sucedido entre os povos primitivos, uma sociedade
alternativa dentro do mundo colonial escravocrata?
Ou um “império” teocrático, uma subjugação feroz do índio, sem precedentes
durante a Conquista e Colonização das Américas, com indígenas transformados em
vassalos do rei da Espanha e trabalhadores braçais?
Ou, ainda, uma destribalização cujos efeitos explicariam todo o drama e miséria do
índio moderno?
111
110
Ibidem, p. 39.
111
Apud, p. 43 - 44.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
160
Em síntese, Alice Koshiyama quis mostrar que o que Nando pensa sobre os índios
guaranis é uma posição ideológica da personagem, é uma ação verossímil da personagem e
não falta de informação de Callado.
Ao ilustrar a trajetória de Nando com alguns outros exemplos, conclui: (...) Quarup
tem um centro fisicamente imposto a personagem Nando, (...) Nando participa de um
mundo onde ocorrem transformações históricas conjunturais e onde circulam propostas de
mudanças estruturais o Brasil dos anos cincoenta para frente.
112
Após ter percorrido os caminhos de Nando, começa a percorrer o Tempo de
Levindo, como representação da história para além do tempo curto, tema dos três últimos
capítulos. O terceiro capítulo foi subdividido em duas partes: a primeira, denominada As
aparições de Levindo, é o mapeamento de todas as aparições da personagem no texto do
romance, somando quarenta aparições no total, em dez delas, a personagem ainda estava
viva e em trinta são “lembranças de Levindo”. A Segunda, Os Elos da Memória, ou seja,
após a morte de Levindo, discute a questão da memória, mas a autora centra-se no próprio
romance, recorrendo apenas a Walter Benjamin sobre o narrador e a três autores que
discutem lendas e rituais indígenas. As questões que buscou no romance foram: quem foi
Levindo? Como viveu? Como morreu? Por que morreu? Para que morreu? Como lembrá-
lo? Por que lembrá-lo? Quarup é Levindo.
113
Levindo está no início e no fim do romance: “morto e revivido na memória dos que
o jantaram”. A personagem está viva somente no primeiro capítulo nos demais ela vive na
memória de Nando, e Francisca e, no último capítulo, Nando torna-se Levindo: e a
presença de Levindo na trama de Quarup mostra a sua permanência no tempo do romance
visto enquanto representação ficcional da história conjuntural e estrutural do país, a partir
da sua condição de idéia que permanece na memória dos outros.
114
Levindo é parte do passado que vive no presente de toda a história, o “jantar-
quarup”, em comemoração aos dez anos de sua morte, que a personagem Nando lhe oferece
112
Ibidem, p. 50.
113
Ibidem, p. 87.
114
Ibidem, p. 89.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
161
é para nutrir-se dele: “o jantar para homenageá-lo é um modo de fazê-lo renascer e ao
renascer Levindo continua”:
(...) Nando acaba e Levindo continua pela vontade de Nando. Até quando Levindo
(Nando) sobrevive em sua jornada?
Levindo (Nando) sobrevive para além da última página do romance. (...) Nesse
sentido, Quarup é a representação ficcional não só de uma história que foi, mas de
uma história que irá acontecer.
115
Já que o tempo de Levindo é longo e está relacionado com a representação do tempo
histórico, em Levindo e o Tempo da História, a autora, irá remeter-se à História assinalada
pela ficção, fazendo um balanço da conjuntura política do Brasil, iniciando pela deposição
governo João Goulart, com o Golpe Militar de 1964, retornando ao governo Vargas,
passando pelo governo Juscelino Kubistschek e chegando ao governo de Miguel Arraes em
Pernambuco, para justificar alguns fatores que levaram à intervenção militar, bem como a
existência de Levindo antes e depois do governador.
Sobre resistência ao governo militar, fala da desorganização dos grupos de
oposição: “os brizolistas, segundo Schilling, ficaram ‘esperando que os generais
nacionalistas fizessem a revolução’”. A consequência disso, já sabemos, prisões, torturas e
repressões de todas as formas. Utiliza reportagens de Fernando Gabeira, Antônio Callado,
entrevistas como a de Paulo de Tarso Santos, Ministro da Educação do Governo João
Goulart.
Fala também da Imprensa de oposição: O Correio da Manhã e a Revista Civilização
Brasileira, e de intelectuais, que, assim como Callado, identificaram-se com a perspectiva
da esquerda em seus livros; destacou três autores e obras e apresentou-as, sendo: A
Revolução Brasileira (1966) de Caio Prado Jr.; As Opções da Revolução na América Latina
1968) de Miguel Urbano Rodrigues e Reforma ou Revolução?(1968) Roland Corbisier.
Todas proibidas pela censura política.
Fala da Revolução Cubana, do apoio dos EUA ao governo militar e do embargo
econômico a Cuba. Destaca os movimentos de Guerrilheiros, dando enfoque à Guerrilha do
Araguaia e à saga do Capitão Carlos Lamarca, e por fim conclui:
115
Ibidem, p. 95-96.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
162
Historicamente constatamos que as lutas dos trabalhadores, bloqueadas de alguma
forma a partir de 1964, continuam.
E se Levindo, personagem de ficção vive na nossa história, acreditamos que ele
permanece na atualidade, permanecendo no tempo de hoje.
116
Nesse sentido, A Permanência de Levindo é a percepção histórica, em que Levindo
é “elemento desencadeador das buscas sobre o que foi o Brasil dos anos cincoenta aos anos
oitenta”, tornando a ficção atual: (...) O quanto de atualidade há em Quarup verificamos
interceptando fragmentos de representações da realidade. (...) Se de 1967 até hoje houve
mudanças, notamos que em alguns sentidos nada mudou e por isso Levindo não pode
morrer.
117
Como Levindo transcende as páginas do romance, Alice Koshiyama convida leitor
para acompanhar a trajetória de Levindo de 1967 a 1986. Recorre a reportagens para
mostrar Levindo em: Levindo e o tempo de Repressão; Levindo e o Tempo de Resistência.
As reportagens de jornais como Folha de São Paulo e Correio da Manhã relatam nesse
corte cronológico, estabelecido pela autora, a violência sofrida pelo trabalhador rural, tendo
como resultado vários assassinatos de camponeses, inclusive, o do Padre Josino Tavares em
uma área de confronto de terras em 1986. Um dos exemplos da resistência é o depoimento
da líder camponesa Elizabeth Teixeira a Eduardo Coutinho para o roteiro do filme Cabra
Marcado para Morrer.
Assim como no passado, a luta de Levindo está presente em Um Sonho de Levindo:
a reforma agrária e, em Levindo = História e Ficção, ao encerrar, a autora recorre a uma
entrevista de Antônio Callado: certa vez um repórter me perguntou porque eu estava
querendo a revolução. É porque eu não acredito que este país vá virar alguma coisa no
mundo se um dia as pessoas não lutarem pelas suas idéias. (...)
118
Sobre o trabalho de Alice Mitika Koshiyama, não poderiam deixar de ser
observadas alguns ângulos: primeiro, a opção de trabalhar com a “questão” da memória
sem buscar suportes para tal discussão, centrando quase exclusivamente, no romance.
Segundo, utilizar o conceito de “longa duração” de Braudel foi uma opção, mas, quando a
116
Ibidem, p. 146.
117
Ibidem, p. 170.
118
Ibidem, p. 181.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
163
autora expõe que “na história, é imperioso que as personagens sejam representações
documentadas de pessoas reais, e que o tempo da História é o tempo passado.”
Essa afirmação contundente implica uma questão muito debatida e atual sobre a
escrita da história, discutida por historiadores como Roger Chartier, Michel de Certeau e
diversos outros, que compactuam com a certeza de a História ter um “compromisso com a
verdade”, e que, dentro dos pressupostos teóricos da História Cultural, viabilizam trabalhos
como este que está sendo desenvolvido, ou seja, a História recorrer a obras ficcionais como
documento, como a representação verossímil, não de documentos e pessoas “reais”, mas de
uma criação dada com base em uma determinada realidade e de condições específicas.
Como afirma a historiadora Sandra Pesavento:
Parto do pressuposto de que já considero ultrapassada a dicotomia clássica
rel/não-real, derivada da oposição epistemológica de compreensão do mundo que
opõe razão x desrazão, verdade x ficção. Mais do que isto, considero também
vencida a discussão em torno de que a escrita da história seja uma representação
construída sobre o passado. (...) Assumo a postura de que o historiador representa
o já representado e que sua narrativa se situa como um dos discursos que falam
sobre o real, construção esta datada e que se propõe atingir, não a veracidade
absoluta, mas a verossimilhança possível.
119
Ao lado, disso cabe ressaltar que a intenção não é cobrar de Alice Koshiyama a
postura de historiadora, mas apenas fazer algumas observações.
Na seqüência de estudos sobre a narrativa de Antônio Callado, está o de Francisco
de Sales Souza, intitulado A CRUZ E A ESPADA (A questão religiosa e revolucionária nos
romances de Antônio Callado), onde afirma:
Religião e revolução podem ser considerados termos opostos neste estudo, (...)
Existe uma política da religião, do mesmo modo que existe uma política da
revolução. (...) enquanto a política da religião consiste muito mais na esperança de
remissão de pecados (...) a política da revolucionária marcada pelo espírito
fraterno é vista, contudo, como tentativa de superar a crença religiosa ingênua e
como proposta de se modificar , para melhor, a realidade social.
120
Inicia relacionando os romances com a História recente do país, em seguida,
apresenta como a crítica recebeu essas obras específicas de Callado, para somente depois
119
PESAVENTO, S. J. Indagações sobre a História Cultural. Op. Cit. p. 10.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
164
entrar na análise dos romances. Pelos Caminhos da Cruz segue a trajetória dos personagens
principais, Manoel Salviano, de Assunção de Salviano e Delfino de Madona de Cedro,
objetivando mostrar que na década de 1950 a questão religiosa se adensa na obra ficcional
de Callado:
(...) O personagem de A Madona de Cedro se distancia, pelo pecado, de uma
rigorosa formação religiosa, o personagem de Assunção de Salviano se aproxima
irreversivelmente dos ensinamentos religiosos que praticamente até então
desconhecera. (...) a questão religiosa se adensa na ficção de Antônio Callado na
década de 50, muito mais do que em qualquer outro momento.
121
Nesses dois romances, a religião se intensifica, funciona como instrumento de fé e
libertação do pecado, resultante das desigualdades sociais. Já Pelos Caminhos da Espada, é
o itinerário de Nando, personagem de Quarup, que é percorrido:
Quarup que funciona como eixo principal da análise e mostra como a maneira de
ver a religião não é mais semelhante àquela vista nos romances imediatamente
anteriores. Isto é, os ensinamentos religiosos já passam a ser questionados a partir
do conflito que se estabelece entre a rígida obediência à doutrina religiosa e uma
nova concepção de liberdade individual e coletiva.
122
Quarup focaliza o momento em que “a espada substitui a cruz”, a fé toma outras
configurações, e o desejo de remissão dos pecados quase não existe, como o exemplo de
Nando, que inicia o romance como um padre, um homem religioso até tornar-se um
militante.
Para aprofundar o aspecto religioso de Quarup, Francisco Souza analisa o núcleo de
personagens ligados à Igreja Católica, Dom Anselmo e Padre André, apresentados como
conservadores; Padre Hosana, de um posicionamento mais liberal, pois defende o
casamento para os padres; Padre Nando, que abandona a batina e dedica-se à causa do
camponês pernambucano; por fim, Padre Gonçalo, que representa uma nova postura da
Igreja, preocupada com as causas sociais. O sentido religioso, para cada um desses
personagens, assume configurações diferentes, a exemplo de padre Gonçalo:
120
SOUZA, F. S. A Cruz e a espada (A questão religiosa e revolucionária nos romances de Antônio
Callado). Op. Cit. p. 4.
121
Ibidem, p. 137.
122
Ibidem, p. 15.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
165
Padre Gonçalo representa, de fato, um momento em que a Igreja tem de se reciclar
e de acompanhar os novos tempos. Na sua condição de religioso, Padre Gonçalo
funda o Sindicato dos Plantadores de Palmares, o maior do Estado de
Pernambuco. Procura, assim, uma conciliação entre os grandes usineiros e
camponeses nordestinos. (...) Pelo fato de não usar a violência, Padre Gonçalo
situa-se também entre a cruz e a espada.
123
O autor mostra que existem também personagens revolucionários sem vínculo
religioso, como Levindo, jovem estudante anarquista, sem nenhuma experiência
revolucionária - a sua morte pelo banditismo de encomenda confirma essa inexperiência.
Januário, fundador das Ligas Camponesas, representa “a indisposição do brasileiro em usar
a violência numa luta armada”; e Otávio, segundo o autor, o personagem que mais
apresenta consciência política e revolucionária e que melhor defende o Partido Comunista
Brasileiro - PCB. O que estes três personagens têm em comum é a aversão ao estrangeiro, a
dependência do Brasil em relação a países desenvolvidos, sobretudo, os Estados Unidos.
Finaliza o seu estudo apresentando os romances Bar Dom Juan e Conserto Carioca,
apontando A Frustração Revolucionária e a Desilusão Religiosa na narrativa de Callado.
Bar Don Juan é o drama da chamada “esquerda festiva”, um bar onde os intelectuais se
reúnem, para beber, fumar e falar sobre a revolução:
Sendo as classes inferiores alienadas e incapazes de lutar, cabe a intelectualidade
assumir o papel de conscientizadora. Daí a importância que tem o intelectual no
movimento revolucionário, mesmo que não saiba ou não tenha meios para fazer a
revolução. Ainda que sem saber pegar em armas, é um inexpressivo número de
intelectuais que, em Bar Don Juan, assume, a função de planejar a queda do
governo que não aceitam. Pertencendo a uma classe que pode tomar uísque,
escrever livros e fazer cinema, os integrantes da ‘esquerda festiva’ não parecem
sentir os verdadeiros anseios das massas por uma sociedade mais justa. (...) A
intelectualidade de esquerda encontra-se muito mais ligada à teoria do que a
prática revolucionária.
124
O personagem João e sua mulher Laurinha são destacados, João por representar a
resistência e a insistência do ideal revolucionário, mesmo tendo sido preso e torturado e
presenciado o estupro de sua mulher Laurinha (praticado por um policial torturador).
123
Ibidem, p. 195 196.
124
Ibidem, p. 222.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
166
Analisando o personagem João, Francisco Souza define Bar Don Juan como o
romance da resistência, que marcou no plano real a “História num momento dos momentos
mais dramáticos da vida política brasileira”.
Como representante da religiosidade, escolhe o personagem ex-padre Geraldino,
que considera a Igreja uma instituição que deva preocupar-se com os problemas imediatos
da realidade. Em Conserto Carioca, elege Jacqueline, a ex-freira francesa, que como os ex-
padres Nando e Gonçalo de Quarup e Geraldino de Bar Don Juan, abandona a religião com
os mesmos propósitos de “socorrer os injustiçados”. Jacqueline demonstra grande interesse
pelos problemas brasileiros, sobretudo os ligados aos índios do Araguaia.
Nessa perspectiva, apresenta a defasagem que a questão religiosa enfrenta no
conjunto da narrativa de Antônio Callado:
Antônio Callado representa ainda em Conserto Carioca a mesma situação de
defasagem da religião observada, de modo gradual em Assunção de Salviano,
Quarup e Bar Don Juan. Essa defasagem é criticada nesses romances para indicar
que, de 1950 a 1980, a falta de instituições políticas e sociais capazes de eliminar
as injustiças, colaboram também de maneia gradual, para a perda de uma crença
religiosa ingênua e para elaboração de projetos revolucionários que, embora não
se concretizam, são, todavia, indícios de que já existe uma luta em nome das
classes oprimidas.
125
Francisco Souza conclui seu estudo falando da ilusão religiosa e da frustração
revolucionária, que denunciam as experiências dos personagens de Antônio Callado e,
também, do próprio autor, confirmando a desilusão a respeito de suas idéias políticas no
contexto histórico do seu tempo.
As questões religiosas e revolucionárias estiveram presentes nos demais estudos,
contudo a pesquisa de Francisco Sales de Souza direcionou com mais especificidade para
estes enfoques, sendo um perspectiva de leitura do romance.
Lúcia Regina de Sá, analisa Quarup (1967) e Maíra (1978) de Darcy Ribeiro, tendo
como ponto de convergência a presença do índio em ambas as obras. Mas, para além da
questão indígena, diz que ambos os romances dialogam sobre religião e que existe também
semelhança na construção de alguns personagens por estarem vinculados aos dois temas:
índios e religião. Deveras, os romances têm algumas semelhanças, o próprio Antônio
125
Ibidem, p. 271-272.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
167
Callado admitiu esta proximidade, e Darcy Ribeiro também compactua com a idéia, mas,
na entrevista concedida a Lúcia de Sá, Darcy diz que a comparação é uma “idéia pobre”, e
Lúcia esforçou-se para demonstrar o contrário, é quando conclui:
Á amiga de Darcy Ribeiro que lhe perguntou porque fazer um livro tão parecido
com Quarup, talvez pudéssemos responder que a idéia do autor parece ter sido a
de inverter, com Maíra, o romance de 1966, fazer uma espécie de ‘anti-quarup’.
Não para criticar a obra de Callado, mas para dar conta de que os tempos eram
outros, e que a história precisava ser, uma vez mais, questionada.
126
Para chegar a essa conclusão, a autora analisou, nos dois romances, três aspectos: a
questão religiosa, os índios e a visão histórica e pensamento mítico, sempre começando por
Quarup, e depois, Maíra. Na questão religiosa, busca nas personagens centrais dos
romances seu vínculo com a Igreja Católica: primeiro, o Padre Nando que se encontra no
início voltado para o plano individual, “para salvação das almas isoladas”, mediante o
movimento que o personagem realiza para o conhecimento do Brasil e de sua história,
ganha uma dimensão religiosa inteiramente diferente. Ou seja, a busca de Nando é pela
felicidade coletiva, que só existe na perspectiva social: em Quarup, portanto a caminhada
do padre Nando se dá ao mesmo tempo para fora da Igreja Católica e para um sentido de
religiosidade cada vez mais forte.
127
Em seguida, o protagonista de Maíra Isaias o Avá
128
,
que também tem fortes ligações com o catolicismo, por ter quase se ordenado padre, mas
também ligado a sua origem indígena. Os dois protagonistas realizam cominhos inversos,
Nando, de Quarup, caminha para fora da Igreja tradicional, buscando o sentido de
religiosidade no coletivo, Isaías, de Maíra, retorna a sua tribo mairum, caminha para
dentro, ou seja, tenta retornar a suas raízes, tornando-se chefe religioso da tribo, cargo que
adquiriu por não conseguir adaptar-se à realidade de uma comunidade que vivia
126
SÁ, L. R. A Literatura Entre o Mito e a História: uma Leitura da “Maíra” e “Quarup”. Op. Cit. p.
269.
127
Ibidem, p. 27.
128
“Isaias ou Avá, seu nome tribal, é um índio mairum que foi arrancado do meio de sua gente ainda menino
durante uma enfermidade e submetido a um intenso processo de catequização que culminou com sua ida para
um seminário em Goiás e mais tarde para Roma, onde deveria se ordenar. Mas não é capaz de tornar-se
padre, pois não consegue se libertar de uma obsessão incansável: a consciência de não ser branco, de
pertencer a uma outra cultura que o torna para sempre excluído do mundo civilizado no qual tentara se
incluir. Em Roma, no início do livro, ele tem a sua aldeia indígena inteira gravada na memória, e a ela
resolve voltar, possivelmente para assumir o papel de tuxaua, o chefe, que lhe era destinado.” Ibidem, p. 38.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
168
coletivamente. Assim, o percurso do herói em Maíra (definido de herói trágico) aponta para
a tragédia e para o mito, tendo a religião no centro da trama, ao mesmo em tempo que a
critica: essas críticas que Maíra faz à atuação da Igreja catequizadora tradicional no
processo de aculturação dos índios são fruto de um enfoque ‘exterior’ do problema
indígena
Mesmo os protagonistas Nando e Isaias vivendo conflitos diferentes, a religião
desempenha papel importante na atuação de ambos no mundo. Desse modo, confrontando
os dois romances a autora diz:
Quarup é um livro otimista, visionário até, em que a religiosidade transplantada
para o ideal revolucionário, é a atitude que permite uma comunhão com a utopia, o
ponto -de-partida para as transformações sociais. Maíra, ao contrário é, em sua
tragicidade, um livro pessimista, pois coloca na morte de Deus o fim das
esperanças dos mairuns. (...)
129
No tocante aos índios, Lúcia de Sá começa a enfocá-los em Quarup, quando Nando
se preparava para ir ao Xingu, ou seja, Nando só conhecia os índios por meio dos livros, um
índio “teórico” e “idealizado”, o bom selvagem de Rousseau. Segue mostrando como
diferentes personagens do romance viam o índio: Ramiro, Fontoura, Sônia, Lídia, Otávio. E
retoma Nando, que, no transcorrer da narrativa, abandona a utopia da salvação dos índios:
Nando está assim substituindo a utopia da salvação dos índios por uma utopia pessoal, o
amor de Francisca, que irá, como vimos, adquirindo o sentido de amor à humanidade,
permitindo a ligação do protagonista com a revolução de Levindo.
130
Nesse sentido, o trabalho de Lúcia de Sá busca o universo indígena por intermédio
da relação que as personagens de Quarup têm com os índios, para ela, o que importa no
livro é a maneira como a cultura indígena é utilizada pelo homem “civilizado” e, sobretudo,
pelos intelectuais. Já em Maíra as visões que os brancos têm dos índios são múltiplas,
como também o universo indígena é visto de dentro, por personagens indígenas e a partir de
sua de sua própria lógica. O próprio enredo de Maíra está centrado na morte de uma cultura
indígena, é para autora um romance sobre a alteridade: no que ela tem de diferente do
“eu” e no que ela tem de semelhante ao “eu”. Mas sobretudo no que essa alteridade tem
129
Ibidem, p. 94.
130
Ibidem, p. 128.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
169
de essencial, isto é, a impossibilidade de se tornar “eu”. Quarup, apresenta outra
proposta: é um romance sobre nós. “Eu” e “outro” são chamados para integrar um todo,
onde as diferenças são neutralizadas em nome de um projeto comum: a utopia do país
ideal.
131
Por fim, quando autora faz a aproximação entre “visão histórica e pensamento
mítico”, por meio dos caminhos percorridos por Nando, e na construção de alguns
personagens, associa o plano ficcional ao histórico:
A relação de Nando com a história faz-se através de um mergulho nas origens e no
momento presente do país para, através desses dois fatores , definir sua atuação no
mundo. Seu objetivo é conhecer a história, e a partir desse conhecimento, ser capaz
de mudá-la.
132
Recorre a Geoge Lukács para conceber Nando como um herói problemático,
personagem épico, inserindo-o no que Lukács chamou de “romantismo da desilusão”, e
Quarup como “romance de educação”, sendo o romance “o retrato da necessidade de uma
época”, e duplamente histórico: porque pretende retratar a história e porque quer, ao
mesmo tempo, fazer história.
133
Ao lado das considerações e justificativas expostas pela autora, ela conclui dizendo
que procurou demonstrar Quarup vinculado ao discurso histórico, ancorando-se em George
Lukács, e Maíra como a busca de um modo mítico de pensar, ancorando-se em Levy-
Strauss, bem como a presença da religião nos dois romances.
Nessa perspectiva, apresenta Antônio Callado como jornalista, relacionando Quarup
à reportagem Tempo de Arraes, a Revolução sem violência, enfatizando o movimento de
alfabetização no interior de Pernambuco, dizendo: essas experiências estão reproduzidas
no capítulo “A Praia”, em Quarup. (Na verdade, é no capítulo: A Palavra.) Fala também
do papel da arte como ponte entre o intelectual e o povo.
Darcy Ribeiro, antropólogo, dizendo refletir em Maíra o sentido da antropologia (a
compreensão do outro), estando voltado para alteridade, faz a crítica ao progresso, partindo
131
Ibidem, p. 213.
132
Ibidem, p. 220.
133
Ibidem, p. 261.
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
170
de um modo de narrar contrário ao discurso histórico, assumindo como ponto de partida o
pensamento do selvagem.
Lúcia de Sá confrontou Maíra e Quarup, mesmo o autor de Maíra Darcy Ribeiro
tendo declarado que isto empobreceria sua análise, a autora esforçou-se e realizou seu
trabalho. Contudo, analisar Quarup da perspectiva do tema indígena não é fácil, pois
Antônio Callado não se aprofundou nesse aspecto, o que enfraqueceu sua análise, mas não
tirou sua consistência. Apesar das relativas menções da proximidade temática desses dois
romances, Lúcia de Sá propôs-se investiga-los mais atentamente.
Diante das diversas leituras elencadas neste capítulo, pode-se concluir que Quarup
já recebeu diversos estudos e olhares diferenciados, os aqui apresentados foram até onde
esta pesquisa conseguiu alcançar. Algumas pesquisas são mais atentas e aprofundadas,
outras mais sucintas ou até mesmo citações, quase que indispensáveis para quem caminha
pela década de 1960. A exemplo do ensaio Cultura e Política de Roberto Schwarz: Quarup,
o romance mais representativo da esquerda recente(...).
Vale ressaltar que, no conjunto, esses estudos aproximam-se em algumas questões,
como a recorrência a Georg Lukács como base teórica para entender o realismo épico no
romance, como também o fato de todos considerarem a importância da narrativa de Callado
em seu conjunto, mesmo que privilegiando determinadas obras e temas. Outro ponto de
convergência que se restringe apenas a duas obras - a de Vera Lúcia Alonso Quarup: Ruína
e Utopia e a de Cristina Ferreira Pinto A Viagem do Herói no Romance de Antônio Callado
- é o tema da antropofagia, visto na transformação de Nando, quando este vive uma vida de
prazeres na praia, e nos rituais de quarup, que ocorrem no romance, um no Xingu e o outro
no jantar para Levindo.
Os artigos, ensaios e as críticas, por outro lado, apresentam propostas específicas, ou
leituras condizentes com o seu momento histórico, como as leituras na ocasião do
lançamento ou próximas, a exemplo das palavras de Ferreira Gullar, que demonstraram a
expectativa do intelectual em relação a uma almejada “revolução”, assim como o
personagem Nando, que, após incorporar o nome de seu jovem amigo Levindo, parte para a
luta armada, ou seja, ainda há esperança. Em 1967, Callado e Gullar ainda não haviam se
deparado com o Ato Institucional n.º 5 AI-5 de 1968, que intensificou repressão, a
Quarup: Reflexões Literárias e Historiográficas
171
censura, apertou o cerco à toda e qualquer forma de resistência. O porão de torturas que o
personagem Nando conheceu, passa a ser muito mais freqüentado.
Os autores também dialogam entre si, como Lígia Chiappini, que discorda da
Ferreira Gullar, quando este diz que o personagem Nando abandona a religião, para Lígia,
Nando não abandona e sim personifica a transformação pela qual alguns setores da Igreja
Católica enfrenta.
Dessa maneira, o conjunto dos trabalhos sobre Quarup permitem uma apreensão de
como a obra já foi pensada, analisada e lida com diferentes olhares ao longo dos trinta e
seis anos de publicação do romance, respeitando cada leitura em sua especificidade:
Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
psicológica ou lingüistica, para utilizar livremente os elementos capazes de
conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico
ressalte o elemento de sua preferência, desde que o utilize como elemento de
estruturação da obra.
134
Em síntese, cada leitura contribui para esta pesquisa, as propostas e
questionamentos possibilitam reflexões de como diferentes leitores pensaram a obra em
diferentes momentos, assim são parte de uma novo olhar que está sendo construído, um
olhar histórico.
134
CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 9.
Conclusão
173
Um livro só adquire existência quando tem um leitor que o
lê.
Roger Chartier
As obras literárias não podem ser consideradas apenas
como meras manchas nas páginas do tempo.
Harold Bloom.
Ao privilegiar a literatura como fonte, este estudo voltou-se para o diálogo com a
obra de arte, tendo como objetivo específico direcionar um olhar atento às representações
que o romance Quarup traz em seu enredo, uma vez que a obra literária está inscrita em seu
momento e traz consigo os códigos e as referências do mundo que a ficção é capaz de
abarcar. Esse mundo que cerca o autor é a força motriz de seu ato criativo, é nele que se
inspira para dar vida aos seus personagens, dar a trama a sua narrativa e fazer sua ficção,
mas sem ter o compromisso com a verdade dos fatos e nem com realidade que o cerca.
A arte engajada não foge à regra, contudo traz explicita sua intenção política, diz a
que veio, por isso, está inserida em seu momento de criação e datada, entretanto, vale
ressaltar que essas características não diminuem o seu valor estético nem sua qualidade
literária. Mas, por outro lado, elucidam em sua trama o entrecruzamento do plano ficcional
e histórico, de forma que o leitor atento é capaz de absorver a verossimilhança dos fatos, ou
seja, aquilo que não aconteceu, mas poderia ter acontecido, aquilo que, no mundo
imaginário , está imbuído de conotação do real.
Assim, ao recorrer ao binômio História e Literatura, fez-se necessário resgatar a
criação/produção da narrativa de Antônio Callado, possibilitando pensá-la historicamente,
e, para tanto, esta pesquisa circunstanciou o momento em que surgiu Quarup, isto é, a
década de 1960 e a conjuntura política instaurada sob o regime militar, concomitantemente
com a utopia da vanguarda intelectual que almejava a restauração da democracia.
Recuperar o contexto histórico, bem como a trajetória de Antônio Callado, permitiu
o entendimento da obra como um processo, em que cada etapa contribuiu para formação do
todo, em que o plano histórico atuou como fio condutor da trama ficcional, direcionando,
redimensionando os caminhos de seu protagonista (Nando), que seguia a trajetória política
do país. E nessa fronteira interdisciplinar, conhecer os entornos do romance possibilitou um
olhar atento - uma visita de Clio a Calíope , que lançou luzes sobre o texto literário
Conclusão
174
resultando neste trabalho, que concebeu o documento em sua forma mais abrangente, por
estar revestido de significados, por suscitar temas e eleger questões, por denunciar um
período de censura e repressão, em que o ato de contestar era sinônimo de punição. Mesmo
assim, a arte construiu seus subterfúgios, revestindo-se de maneiras sutis para falar ao seu
público leitor e até mesmo opor-se ao sistema autoritário.
Mas como foi possível chegar a esta leitura?
Os caminhos percorridos em cada capítulo deste estudo trazem respostas para tal
questão, e apontam para a possibilidade de algumas reflexões. Como, por exemplo, a
recepção e a repercussão de Quarup até onde esta pesquisa alcançou estão voltadas para
a crítica literária, que requer seus próprios métodos, fazendo com que o objeto literário
também exigisse desta pesquisa determinadas perguntas e respostas, como: Quem cria?
Onde cria? E sob quais circunstâncias? Resposta que nenhuma outra leitura foi capaz de
apresentar, pois exigia a especificidade do conhecimento histórico, que desse as bases para
uma leitura que preservasse a integridade da obra literária e, ao mesmo tempo, absorvesse a
gama de possibilidades que carrega em si.
Dessa forma, o processo criativo em suas dimensões de texto e contexto, bem como
isso internalizou na obra, resultou na recuperação de um período de nossa história recente.
Para tanto, foi direcionado um olhar que penetrasse em um universo revestido de códigos e
significados, mas que a pesquisa histórica conseguiu transpor, pois teve como premissa
compreender o mundo que Antônio Callado quis representar. Assim, o romance tornou-se
um campo de investigação e seu próprio conteúdo revelou os percursos e as aspirações do
autor.
Tendo essas prerrogativas, coube enfrentar um território cercado pelo pólos da
realidade/ficção, que só a partir da circunstanciação do momento de criação da obra, foi
possível avançar e apreender sua dimensão estética, propiciando abarcar o que estava
contido em seus temas e enredo. Podendo, assim, investigar suas propostas, uma vez que a
trama narrativa está voltada para a renovação e transformação da realidade político-social
na década de 1960, quando se acreditava que as mudanças seriam realizadas por uma força
coletiva que viria do povo, mas cabendo ao intelectual o papel de direcionar e oferecer o
suporte para que a revolução acontecesse..
Conclusão
175
Ler Quarup com um olhar histórico significou primeiro entender a dimensão e a
proposta da obra, dimensão porque é uma obra que é lida ao longo dos anos, cuja leitura em
cada momento, é reelaborada e responde às questões que são colocadas no tempo presente
do leitor, portanto, é atualizada. Quanto à proposta da obra, ela está contida no próprio
enredo e na estrutura dos personagens, assim, ao debruçar sobre o romance essas questões
vieram à tona e permitiram que esta pesquisa filtrasse o não dito, mas o que estava nas
entrelinhas, pois toda uma jornada já havia sido transposta e outras fontes foram elencadas.
Partindo para a análise do romance em si, que cobrou um conhecimento adequado e mais
abrangente daquilo que estava ao seu redor, remetendo à intencionalidade declarada do
autor, pois Quarup é o Brasil que quis recuperar.
Um Brasil que Antônio Callado, na sua função de repórter, presenciou e concebeu
como uma experiência democrática inédita, a experiência de Pernambuco em Tempo de
Arraes. Contudo, o golpe militar de 1964 desmoronou o que vinha sendo conquistado e
instaurou uma nova ordem dos fatos. Como isto é resgatado na ficcionalidade de Callado e
reelaborado por meio de uma trama, tornou-se motivo de interesse deste estudo, pois a
ficção tece uma camada fina, mas transparente para quem se predispõe a enfrentar a obra
para além de um mero entretenimento, mas como um referencial de uma leitura que o autor
fez de seu momento.
Nesse sentido, pode-se constatar que Quarup é um documento que apresenta uma
determinada visão da realidade político-social do país, pois Antônio Callado foi agente
desse momento, viveu e escreveu nessas circunstâncias e nessa conjuntura política,
chegando a ser preso, ter os direitos políticos cassados, além de ser vítima da humilhação
da censura. Portanto, ele teve consciência do que quis representar em sua arte e da
dimensão política que implantou na sua narrativa, uma vez que internalizou na literatura um
período específico, cronologicamente delimitado e carregado de anseios, de expectativas e
dos ideais de intelectual engajado, ou até mesmo de um contigente muito maior de
intelectuais de esquerda, que viam em Quarup a reafirmação das aspirações e da utopia de
uma geração. Como o exemplo de Ferreira Gullar em Quarup ou Ensaio de Deseducação
para Brasileiro Virar Gente.
Tendo essas referencias, o transcorrer desta pesquisa possibilitou apreender as
particularidades de Quarup como documento, uma vez que, confrontado com diversos
Conclusão
176
outros sobre o mesmo período, o romance demonstrou que seu conteúdo é inovador para o
campo do conhecimento histórico. Haja vista que sua trama está revestida de personagens
imaginários, de intrigas e acontecimentos que nunca existiram, mas que foram bebidos na
fonte do mundo que cercava seu autor, um mundo que o homem/artista viu emergir e ser
dizimado, em que acreditou e, em seguida, teve suas esperanças tolhidas.
Nessa dicotomia de esperança e desilusão, Callado direciona seu personagem
central para busca de uma saída, um caminho que levasse o Brasil a restabelecer um novo
quadro político, mas isto não ocorreria pacificamente, era preciso “tomar” de volta o
controle político da nação. Tomar no sentido literal da palavra, ou seja, recorrer à luta
armada, por meio do movimento guerrilheiro, que, no plano histórico, já estava sendo
colocado em prática, a exemplo do movimento guerrilheiro de Leonel Brizola, com o qual
Callado colaborou.
Diante do que foi exposto, este estudo pôde chegar a algumas conclusões. A
primeira delas diz respeito à contribuição desta pesquisa, que bebeu na fonte
interdisciplinar, sem abandonar o objetivo do conhecimento histórico, uma vez que foi um
embate com a documentação da década de 1960 bem como, com os referenciais que
cercaram Callado no momento da crião de Quarup, permitindo vislumbrar a forma e o
contdo de sua obra.
Em seguida, foi possível constatar a necessidade de caminhar para além de Quarup
na narrativa de Callado, não no sentido de uma leitura aprofundada, mas como um
referencial para o entendimento do engajamento de Callado, pois as obras que sucederam
Quarup também estão imbuídas do plano histórico e ficcional, até a década de 1980, e
trazem as marcas do pólos (ficção/realidade). E foi a essas obras engajadas que Callado
atribuiu seu projeto de escritor: Quarup, Bar Don Juan, Reflexos do Baile e Sempreviva,
que por sua vez, dão margem para a compreensão da postura do intelectual, que ao longo de
sua vida, esteve em sintonia com os acontecimentos político-sociais de seu país, criticou
“enquanto pôde” e “como pôde” o Governo Militar, e fez da sua arte um instrumento de
resistência e uma forma de dizer “não concordamos” com a censura, com a tortura, com as
arbitrariedades. Ao mesmo tempo, estabeleceu críticas ao próprio movimento de
resistência, como em Bar Don Juan, que mostra a desorganização da “esquerda festiva”
inserida no movimento de guerrilha.
Conclusão
177
Ao lado disso, na busca de compreender Quarup, no conjunto de um projeto mais
amplo da ficção de Callado, foi possível observar uma consonância com a conjuntura
política do país da qual seus romances absorveram a amargura, o desencanto, a desilusão,
passando a uma narrativa fragmentada. Isso foi, por vezes, mencionado em estudos sobre a
narrativa de Callado, mas que para ele, fazia parte de uma maneira diferente de ver as
coisas, pois ocorria naturalmente, à medida que se dava uma sucessão de acontecimentos
no Brasil. Obviamente, Callado referia-se aos acontecimentos que sucederam ao Golpe
Militar e que se internalizaram não somente em seus romances, mas na arte engajada de
uma forma mais ampla. Ou seja, a arte foi capaz de absorver a crise do conturbado
momento da vida política brasileira, em que as narrativas condensaram esse processo da
“fragmentação”, surgindo obras em sintonia com o mundo que elas procuram significar.
Nesse sentido, a proposta de Callado em Quarup também é uma resposta de um
intelectual de esquerda à almejada revolução, e nos romances que se seguem e cujos temas
são reflexos do momento político vivido no país, pois Bar Don Juan traz em seu enredo a
derrota e o fracasso de um grupo de intelectuais que tentavam tornar-se guerriheiros, sem
experiência e sem preparo, que terminam tendo um fim desastroso. Em Reflexos do Baile, a
trama volta-se para o seqüestro de um embaixador, que também fracassa, e Sempreviva é o
luta solitária de Quinho, que volta para vingar a morte de sua amada Lucinda, destruindo
seus assassinos e torturadores.
Assim, o conjunto da narrativa de Callado é um “corpo a corpo com a conjuntura
brasileira”, com o “mundo que procura significar”, é a internalização do Brasil de “seu
tempo”, uma vez que a política brasileira sofria duros golpes, como o Ato Institucional Nº 5
AI-5 (1968), que foi considerado “um golpe dentro do golpe”.
Para entender, portanto, a mudança estilística de Callado, que vai da narrativa épica
e linear da trajetória de Nando, em Quarup (1967), à narrativa de Reflexos do Baile (1976),
marcada pela fragmentação e associada à narrativa jornalística, é preciso ter em mente toda
uma gama de acontecimentos que se sucederam no Brasil nesse espaço de nove anos,
porquanto o Brasil de 1976 não era o mesmo de 1967.
Ao lado dessas considerações, que resgataram o caminho transposto por este estudo
e pesquisa, pode-se acrescentar que o tema é rico em fontes, o que torna extremamente
instigante o ofício do historiador, ofício que foi calcado nos pressupostos teórico-
Conclusão
178
metodológicos da História Cultural e seguiu o viés de uma trajetória interdisciplinar. Nesse
sentido, contribuições foram dadas, mesmo porque esta pesquisa não deparou com
nenhuma outra realizada por um historiador. Mas teve como objetivo compreender a
questões inerentes da própria obra, que foi considerada pela crítica como “painel do Brasil”
e “retrato do Brasil”, e que, sem dúvidas, Callado chama para a utopia de transformação
dos quadros político-sociais, assim como seu título, um ritual Quarup, que celebra a vida e
a morte, para o surgimento de um novo ser. Como a comedoria de Levindo, que fez surgir
um novo Nando (Nando/Levindo), preparado para guerrilha em busca de um ideal
revolucionário.
Nando já a cavalo mal ouvia Manoel Tropeiro. Sentia que vinha vindo a grande
visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro éter. A sela
do cavalo um alto pico. Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste e sentia na cara
o sopro do fim da terra saindo das furnas de rocha quente. E viu: aquele mundo
todo com sua cana, suas gentes e seus gados era Francisca molhando os pés na
praia e de cabelos ardendo no Sertão. (Quarup)
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