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ANDRÉIA DE CÁSSIA HEINST
PIONEIROS DO SÉCULO XX: MEMÓRIA E RELATOS
SOBRE A OCUPAÇÃO DA CIDADE DE MIRASSOL
D’OESTE
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM HISTÓRIA
Cuiabá
2003
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
ANDRÉIA DE CÁSSIA HEINST
PIONEIROS DO SÉCULO XX: MEMÓRIA E RELATOS
SOBRE A OCUPAÇÃO DA CIDADE DE MIRASSOL
D’OESTE
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Universidade Federal de Mato Grosso, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE em História
sob a orientação da Profª. Drª. Regina Beatriz Guimarães
Neto.
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4
RESUMO
A partir do final da década de 1980 são produzidos, na cidade de Mirassol D’
Oeste, textos escritos, dirigidos especialmente às escolas do município, sobre a história
da cidade. Estes textos apresentam um modelo de história que elege o acontecimento
como algo já dado, natural a criação da cidade, os pioneiros sem considerar a
multiplicidade das experiências dessa ocupação.
Retrata-se, nesses escritos, uma história de progresso social e econômico, numa
caminhada quase obrigatória, ininterrupta e progressiva, reproduzindo assim uma
história que elege como tarefa, retratar os grandes feitos e os grandes homens, os heróis.
Guimarães Neto referindo-se a esta questão traz à tona os problemas e ilusões de tal
procedimento histórico que acaba por “banalizar” a história, (...) traçando
continuidades, perdendo-se a dimensão mais rica das rupturas, de scontinuidades e
múltiplos deslocamentos (...)
1
.
Portanto, o interesse desse trabalho, relativo ao objeto histórico de análise dessa
dissertação, - a ocupação da área de terras onde está localizada a cidade de Mirassol
D’Oeste - foi o de possibilitar uma outra leitura sobre o processo de abertura dessas
terras, considerando a multiplicidade das experiências vivenciadas no período inicial
dessa abertura.
Para compreender o processo de ocupação dessas terras, tornou-se imperativo
analisar as condições históricas que possibilitaram a aquisição e loteamento das
mesmas. Assim, a idéia central dessa dissertação foi, a partir da análise crítica das
fontes, construir um outro entendimento sobre a ocupação das terras que resultaram na
cidade de Mirassol D’Oeste.
1
GUIMARÃES NETO, Regina B. Grupiaras e Monchões, garimpos e cidades na história do povoamento
do leste de Mato Grosso primeira parte do século vinte. Campinas, IFCH-UNICAMP, 1996, p.9.(Tese
de Doutorado).
5
ABSTRACT
Since the final of 1980´s are produced in the city of Mirassol D´Oeste written
texts, focused especially to city school´s, about the history of the city. These texts
present a model of history that select facts like something ever natural done the
criation of the city, the pioneers without considering the multiplicity of the
experiences of this occupation.
Portray in these writing, a history of economic and social progress, in a long
walk almost obligatory, uninterrupted and progressive, reproduc ing like that a history
that select how task show only the great doings and the great men, the heroes.
Guimarães Neto refers to this subject that bring the problems and illusions such
historical procedure that finish to criticize the history, plotting continuities, losing the
richer dimension of the ruptures, uncontinuities and multiples dislocations.
Hence, the interest of this work, related to historical object of analyse this
dissertation the occupation of the area of lands where is located the city of Mirassol
D´Oeste was enable an other reading about the progress of opening these lands,
considering the multiplicity of the experiences lived on the initial period of this opening.
However, understand the process of occupation these lands became imperative analyse
the historical conditions which enable the acquisition these lands. So, the central idea of
this dissertation is, the beginning of the critical sources, build an other understanding
about occupation of the lands that result in the city of Mirassol D´Oeste.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço particularmente a minha orientadora Regina Beatriz Guimarães Neto
pelas valiosas interferências e contribuições no processo de realização dessa dissertação.
A João Carlos Barroso e Maria Adenir Peraro pelo papel decisivo que
desempenharam no exame de qualificação.
Agradeço especialmente aos meus amigos e interlocutores, Suzana e Clementino
pelas sugestões valiosas nos rumos dessa pesquisa.
A meu filho que sempre me apoiou incondicionalmente durante o percurso de
construção dessa dissertação e, a meu pai que foi um grande amigo e incentivador deste,
mesmo não estando mais presente entre nós.
Ao CNPq, agência de fomento à pesquisa, por me conceder a bolsa de estudos,
tornando possível a conclusão desta dissertação.
7
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................08
Capítulo I Lotes de Esperança..............................................................................19
A criação da cidade de Mirassol D’Oeste
Capítulo II Relatos femininos na abertura de terras em Mirassol D’Oeste....68
A experiência no interior do Estado de São Paulo
O tempo das estradas: eu levo os iludidos e trago os arrependidos
Comerciários de sonhos: os corretores das ilusões
Em tempos de abertura de terras; uma onça não come outra onça
Passos, rumores e vozes: constituição do cenário urbano
Capítulo III A memória em Mirassol D’Oeste: uma questão múltipla..........121
Mato Grosso: o Celeiro do Mundo
Os novos pioneiros do século XX
Mirassol D’Oeste: a cidade natureza à cidade urbana
Anexos.....................................................................................................................162
Considerações Finais..............................................................................................165
Bibliografia..............................................................................................................168
Fontes.......................................................................................................................171
8
INTRODUÇÃO
A cidade de Mirassol D’ Oeste está localizada a sudoeste do Estado de Mato
Grosso, numa distância de 329 Km da capital, Cuiabá, na microrregião do Vale do
Jauru. A ocupação da área de terras onde hoje se localiza a cidade, ocorreu a partir de
inícios da década de 1960
2
.
A partir do final de 1980 e início de 1990 são produzidos, na própria localidade,
textos escritos, dirigidos especialmente às escolas do município, sobre a história da
cidade. Nesses textos, inquieta e chama a atenção, o modelo de história utilizado para
criar e fixar a idéia de que o município é um lugar, que desde sua formação já nasceu
“predestinado” ao progresso. Suas terras são representadas como férteis e produtivas e
as pessoas apresentadas como pioneiras são consideradas aquelas que se estabeleceram
inicialmente na localidade. Tais pessoas são descritas, nesse discurso, como os que
trabalharam bem a terra, souberam aproveitar a fertilidade do solo, tornaram-se
prósperos proprietários, transformando a cidade também em próspera, portanto, são
verdadeiros heróis.
Essa história sobre a cidade, apresentada nos textos escritos, nivela,
homogeneíza e apaga as experiências cotidianas dos tempos iniciais da ocupação, é um
modelo de história que busca nas origens do lugar a resposta para afirmar o progresso
da cidade, e estabelecer o passado como verdade incontestável. Uma das preocupações
deste trabalho foi a de questionar esse passado, representado com autos de veracidade.
Keith Jenkins trouxe importante contribuição à nossa reflexão, na análise que faz em
seus estudos sobre a distinção existente entre passado e história. Para esse autor,
passado e história não coexistem como uma unidade e afirma: “O passado já passou, e a
2
Cf.Mapa 01.
9
história é o que os historiadores fazem com ele quando põem mãos à obra.”
3
. Nesse
sentido, a distinção entre passado e história é expressa nas várias interpretações que se
faz de um objeto de investigação, já que a história muda, inverte e dá novas
significações às coisas e aspectos do passado, pois, se passado e história ocupassem o
mesmo significado, esse objeto teria uma única leitura.
O questionamento a esse modelo de história, que institui os heróis pioneiros e
fixa uma determinada memória, foi o que motivou inicialmente a pesquisa que deu
origem a este trabalho. Entretanto, o contato com as fontes arrebatou-nos ao encontro do
inesperado. Desse encontro, o que mais nos surpreendeu foi constatar que, na história da
experiência da ocupação das terras que resultaram na cidade de Mirassol D’ Oeste, não
se menciona outros relatos, relatos que registram a abertura das terras por homens e
mulheres pobres. Nesse sentido, as análises de Paul Veyne sobre o trabalho do
historiador foram essenciais à construção dessa dissertação. Para Veyne, o historiador
tem como missão desconfiar das coisas que se apresentam como algo cristalizado e
imutável, ou seja, é função do historiador “espantar-se com o que é obvio”
4
, inquirir
sobre o insignificante e o que está ausente.
Assim, o objetivo desta pesquisa, foi buscar uma outra leitura sobre o processo
de ocupação da área de terras onde se encontra localizada a cidade de Mirassol D’
Oeste, considerando que os textos produzidos oficialmente sobre a história da cidade
apontam para uma imagem homogênea que apaga as diferenças e rupturas, pois não
levam em conta as experiências múltiplas vivenciadas nesse processo.
Os relatos de memória de pessoas que vivenciaram o período inicial de abertura
dessas terras, início da década de 1960, apontam uma outra leitura sobre a história da
cidade. Narrativas que expressam as experiências cotidianas e trazem o múltiplo e o
3
JENKINS, Keith. A história repensada, São Paulo: Contexto, 2001, p. 23-43.
4
VEYNE, Paul Marie, Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª ed., Brasília, Ed.
UnB, 1998,p.21.
10
descontínuo, rompendo o homogêneo, porque anunciam o cotidiano de lutas. Desse
modo, procurou-se apreender, através da análise dos relatos, as práticas cotidianas, “os
esquemas de ação”
5
, e não o sujeito autor, como nos textos escritos sobre a história da
cidade, que elegem os sujeitos fundadores da cidade como os pioneiros promotores do
progresso.
Os relatos de memória possibilitam conhecer um pouco mais os acontecimentos
cotidianos sobre o momento da ocupação dessa área de terras. São fragmentos de um
tempo vivido que apontam para a especificidade da abertura dessas terras, que de outra
forma não seria possível aflorarem, pois, como constata Antonio Torres Montenegro, a
análise desses relatos de memória convergem, “(...) num caminho de construção de todo
um conjunto de experiências, de comportamentos, de imaginários, de sonhos e reflexões
que comumente não se conseguiria extrair das fontes tradicionais, (...).”
6
Nesse sentido, as análises desse autor foram fundamentais para esse trabalho,
particularmente no que se refere ao tratamento dado às fontes orais. Com ele
aprendemos que a memória não pode ser pensada como um registro que contém todos
os fatos ocorridos ao longo do tempo vivido e que, num determinado momento, o da
entrevista, virão à tona, através da rememoração, de forma não linear e descontínua.
Mas, a memória traz em si o tempo das experiências vivenciadas que mais marcaram
profundamente a vida daquele que rememora, que narra, portanto, é particularmente
seletiva e, constantemente reelaborada. Para Montenegro: “O processo de construção ou
de produção, opera em uma dimensão em que, partindo do real, do acontecido, a
5
Aqui, utilizo-me das análises de Michel de Certeau quando o mesmo lembra que a “relação (sempre
social) determina seus termos, e não o inverso,” e que a “questão tratada se refere a modos de operações
ou esquemas de ações e não diretamente ao sujeito que é seu autor ou seu veículo.” CERTEAU, Michel
de. A Invenção do Cotidiano: I. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p.38.
6
MONTENEGRO, Antonio Torres. O sangue da terra. In:Territórios e Fronteiras- Revista do programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal doEstado de Mato Grosso, vol1 nº 1, jul-dez-
2000, p.220.
11
memória como um elemento permanente do vivido -, atende a um processo de
mudança ou de conservação”
7
.
Walter Benjamim em seu texto, “O narrador considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov fala da experiência enquanto fonte do narrador porque este, segundo o
autor,“retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros”
8
. Assim, os relatos de memória analisados, nesse trabalho, têm como foco a
experiência narrada pelos moradores da cidade que participaram do período inicial de
sua ocupação. Mas é preciso que se diga que a experiência é compreendida, não como
autorização de verdade, ou como evidência que revela a forma correta como aconteceu a
abertura dessa área de terras, mas sim como uma interpretação, ou seja, a experiência
não é “explicação de”, mas “aquilo que buscamos explicar”
9
. Portanto, os relatos de
memória sobre a experiência vivenciada nos tempos iniciais de abertura das terras, são
analisados nesse trabalho como leituras plurais de cada narrador.
Por outro lado, nos relatos de memória das pessoas que participaram do período
inicial de ocupação de Mirassol D’Oeste, expressam uma leitura das experiências
vivenciadas durante a abertura dessa área de terras, percebe-se que as mesmas se
afirmam também como pioneiras. Desse modo, reclamam para si um lugar dentre os que
são citados nos textos oficiais como os formadores da cidade, não apenas questionando
os textos, mas, sim reclamando para si um “posto” de pioneiro.
Mas, entendemos que o mais inquietante para o historiador não é descobrir e
apontar quem realmente são os pioneiros, mas, desconfiar de um modelo de história que
se institui como uma história única e contínua, que elege o acontecimento como algo já
7
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3ª ed. São
Paulo: Contexto, 1994, p.19.
8
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e cultura. Obras
escolhidas. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.201.
9
SCOTT, Joan W. Experiência, In:SILVA, Alcione Leite da & SOUZA, Maria Coelho de & OLIVEIRA,
Tânia Regina (orgs). Falas de gênero: teorias, análises, leituras, Florianópolis: Ed. Mulheres, 1999, p.
27.
12
dado, natural a criação da cidade, os pioneiros sem considerar a multiplicidade das
experiências dessa ocupação. E mais, questionar porque é tão importante, para essas
duas leituras sobre a história da cidade a dos textos escritos e a dos relatos de
memórias se afirmarem como detentores da verdade sobre a história da cidade.
Tornou-se imperativo para os propósitos deste trabalho, a fim de compreender o
processo da ocupação de terras, analisar as condições históricas que tornaram possível a
aquisição da área de terras de Mirassol D’ Oeste e seu loteamento para ocupação.
Procurar compreender, a partir da crítica às fontes - discursos oficiais, matérias
publicadas nos jornais sobre as terras de Mato Grosso -, como se procedeu a
distribuição das terras, por parte das autoridades governamentais do estado de Mato
Grosso, durante as décadas de 1950 e 1960 (período histórico dessa pesquisa).
Essa dissertação compõe-se de três capítulos. O primeiro capítulo Lotes de
esperança - destaca as práticas políticas e a forma como o Estado de Mato Grosso
disponibilizou para a venda, as terras consideradas ou descriminadas como devolutas.
Porém, mais que isso, apresenta o aparato propagandístico que deu suporte às vendas,
sobretudo estimulando o interesse pelas terras de Mato Grosso através da apresentação
de sua “vocação” agrícola, anunciando a terra como a que, “em se plantando tudo dá”.
Assim, durante as décadas de 1950 e 1960 há uma grande propaganda sobre as terras do
estado, destacando-se especialmente as qualidades dessas terras para a agricultura e as
facilidades em adquiri-las. Mas, ocorrem também várias denúncias a respeito do alto
número de negociações fraudulentas relacionadas à venda e compra dessas terras.
Nessa perspectiva, as articulações entre distribuição e ocupação de terras em
Mato Grosso, durante as décadas de 1950 e 1960, têm como ponto de partida as
reflexões e questões suscitadas por Alcir Lenharo em seu artigo “A terra para quem nela
13
não trabalha: a especulação com a terra no Oeste brasileiro”
10
, onde o autor traz
importante análise a respeito da distribuição e especulação com as terras devolutas do
estado durante o referido período, bem como o trabalho de Gislaine Moreno, “Os (des)
caminhos da apropriação capitalista da terra em Mato Grosso”
11
, onde a autora oferece
valiosas reflexões ao enfatizar os aspectos fundamentais da alienação das terras do
estado.
O segundo capítulo Relatos femininos na abertura das terras em Mirassol
D’Oeste - apresenta uma leitura da ocupação das terras de Mirassol D’Oeste através da
análise dos relatos de memória sobre a experiência vivida, sobretudo, por mulheres que
se deslocaram do interior do estado de São Paulo, em direção a essa área no início da
década de 1960. O interesse principal foi o de dar maior visibilidade às práticas sociais
cotidianas que tornaram possível a instalação e fixação das pessoas nessa localidade.
Procurou-se privilegiar os relatos femininos que apresentam uma leitura do
momento da ocupação dessas terras, momento em que essas mulheres têm uma atuação
fundamental para a instalação e sobrevivência das famílias. E, por entender que o relato
das mulheres possibilita leituras múltiplas dessa ocupação, pois, elas transitam
habilmente, tanto dentro da órbita familiar, cuidando dos filhos e da casa, tomando
conta do trabalho na roça, e atuando como parteiras, e ainda, participando do espaço do
mercado, comercializando os produtos caseiros ou mesmo a produção agrícola.
Portanto, este capítulo, focaliza, não só, mas, especialmente, as experiências de
trabalhadoras que participaram do período inicial de ocupação das terras de Mirassol
D’Oeste.
10
LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha: a especulação com a terra no Oeste brasileiro
nos anos 50.In: Revista Brasileira de História. “Terra e Poder”. São Paulo, Ed. Marco Zero/ANPUH,
V.6, nº 12, 1986.
11
MORENO, Gislaine. Os (des) caminhos da apropriação capitalista da terra em Mato Grosso.São
Paulo: USP, 1993. (Tese de Doutorado).
14
Margaret Rago
12
ao refletir sobre sua experiência de historiadora com o trabalho
de memória de Luce Fabbri, aponta para o tratamento que deve ser dispensado aos
relatos de memória e as experiências apresentadas por estes. Para a autora, o historiador
deve considerar que os relatos, assim como as experiências narradas por eles, não são
“reflexos da realidade”, antes são leituras que os narradores elaboram sobre seu
passado.
Da mesma forma as reflexões de Antônio Torres Montenegro
13
permitiram
analisar os relatos orais como reconstruções do passado que possibilitam dar
visibilidade a certos acontecimentos do cotidiano. Para o autor: “Esse reconstruir o
passado, trazendo à cena sujeitos antes esquecidos e tempos fragmentados em fazeres
ordinários, tem instituído uma história partilhada de múltiplos reais”
14
. Portanto,
entendemos os relatos de memória, apresentados neste capítulo, não como informações
que encerram em si toda uma verdade a ser desvelada, mas, sim como narrativas que
permitem outras leituras sobre a abertura de terras da área focalizada.
Nesse sentido, ao analisar as fontes orais é necessário que se tenha em mente que
estas depreendem um rigor crítico tal qual qualquer outra fonte documental, assim como
aponta Regina B. Guimarães Neto ao dizer que: “(...) deve-se assinalar a importância de
se levar em conta o relato oral como um texto onde se inscrevem desejos, reproduzem-
se modelos, apreendem-se fugas; em suma um texto passível de ser lido e interpretado e,
da mesma forma, um texto articulador de discursos”
15
.
12
RAGO, Margareth. Audácia de sonhar: memória e subjetividade em Luce Fabri.In: História Oral
revista da Associação Brasileira de História Oral,v.5, n5,São Paulo, jun.2002, p.34.
13
Cf:História oral e memória: a cultura popular revisitada. op.cit., 1994”; Padres e artesãos: narradores
itinerantes. In: História oral- Revista da Associação Brasileira de História Oral, v4,n.4, São Paulo, junho
de 2001; O sangue da terra. op.cit.,2000.
14
MONTENEGRO, Antonio Torres. op.cit.,2000, p,.220.
15
GUIMARÃES NETO, Regina B. Artes da memória, fontes orais e relato histórico, In: História e&
Perspectivas: Revista dos cursos de graduação e do programa de Pós-Graduação em História,
Uberlândia/MG, nº23, jul./dez. de 2000, p.102.
15
O terceiro capítulo A memória em Mirassol D’Oeste: uma questão múltipla -
investiga os textos produzidos na cidade de Mirassol D’Oeste e que retratam a formação
histórica da cidade. Estes textos representam uma única visão sobre a história da
cidade, fazendo uma leitura linear do passado, historicizando as origens da cidade,
chamando a atenção para as potencialidades do local, e elegendo aqueles que são
considerados os moradores pioneiros. Neste aspecto, os moradores pobres foram
excluídos da memória sobre a história da cidade.
Os pioneiros são representados por essa história como os heróis que
conseguiram através de sua dedicação e trabalho transformar uma área de terras
inóspitas em lugar próspero, produzindo uma memória de vencedores e uma história de
progresso.
Entretanto, existem outros relatos sobre quem são os pioneiros que deveriam
fazer parte dessa história e estar presente na memória de Mirassol D’Oeste. Assim, os
relatos de memória de pessoas que participaram dos tempos iniciais de ocupação
apresentam outros atores como os verdadeiros pioneiros e os que mais trabalharam.
Nesse ponto, estabelece-se uma disputa em torno das leituras sobre o passado e a
história de Mirassol D’Oeste.
Essas leituras querem dar a crer e fazer-se reconhecer como verdadeiras,
produzem o que Michel Foucault aponta como “um combate pela verdade”,
entendendo-se por verdade “o conjunto das regras segundo as quais se distingui o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”
16
. Portanto,
questiona-se, neste capítulo, porque e como num determinado momento tornou-se
necessário à produção de uma certa história para a cidade e, como se construiu e se
16
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1998, p.13.
16
instituiu uma memória de vencedores para Mirassol D’Oeste. E, mais, questiona -se por
que é tão expressivo ser reconhecido como pioneiro.
As fontes pesquisadas neste trabalho compreendem: os textos produzidos no
final da década de 1980 e 1990, sobre a história de Mirassol D’Oeste, bem como a Ata
de Fundação da cidade. São também analisados livros produzidos a partir do final da
década de 1970, que apresentam uma leitura sobre a história de Mato Grosso e seus
municípios reproduzindo uma idéia de progresso e pioneirismo. Outro caminho
percorrido na construção dessa dissertação foi o de fazer a crítica a matérias de revistas,
que circularam no Estado e até mesmo em outras localidades do País, apresentando as
potencialidades agrícolas do Estado e de seus municípios e, os respectivos pioneiros.
No que se refere às terras do Estado designadas como devolutas pelo discurso
oficial, representadas como sendo para a ocupação, durante as décadas de 1950 e 1960,
foram analisadas as propagandas do jornal “O Estado de Mato Grosso”, onde são
apresentados os anúncios sobre as facilidades em adquirir terras em Mato Grosso, e
denúncias sobre a venda fraudulenta das terras do Estado. No tocante a forma como o
Estado disponibilizou para a venda as terras consideradas como devolutas, durante o
referido período, foram analisados os discursos de governadores, dirigidos à Assembléia
Legislativa/MT, assim como os Relatórios do Departamento de Terras e Colonização de
1954 e 1964 referentes à venda destas terras.
Outro caminho percorrido por essa pesquisa diz despeito a análise dos relatos de
memória de pessoas que participaram do período inicial de ocupação e abertura da área
de terras loteada e vendida para formar a cidade de Mirassol D’Oeste.
As fontes são analisadas neste trabalho, levando-se em conta o que Paul Veyne
nos ensina a respeito da história. Para o autor, a história é conhecimento por meio de
17
documentos. Entretanto, nenhum documento “pode ser o próprio evento”
17
e mesmo
que o fosse, o historiador deve “falar sobre”, isto é, para o autor é preciso ir além do que
está registrado no documento, possibilitar uma outra compreensão sobre determinado
fato, pois, a narrativa histórica não é “um documentário em fotomontagem”
18
. Assim, a
idéia central dessa dissertação é, a partir da análise crítica das fontes, construir um outro
entendimento sobre a ocupação das terras que resultaram na cidade de Mirassol D’
Oeste.
17
VEYNE, Paul Marie. op.cit, p. 18.
18
Idem.
18
Figura 1 Mapa de Localização da área de estudo
RESSACA
JABOTI
VÁRZEA ALEGRE
CAETÉ
SONHO AZUL
PÉ DA SERRA
BABAÇÚ
PAUDALHO
RANCHO ALEGRE
GUARANI
MIRASSOL D’OESTE
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CURVELÂNDIA
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0 2 4Km
ESCALA
MT
MICRORREGIÃO DE JAURU
LOCALIZAÇÃO
FONTE: SEPLAN /ATLAS GEOGRÁFICO DE MT,2001
P
A
R
Á
AMAZONAS
MATO GROSSO DO SUL
G
O
I
Á
S
BOLÍVIA
RONDÔNIA
T
O
C
A
N
T
I
N
S
AMÉRICA DO SUL
MIRASSOL D’OESTE
MICRORREGIÃO DE JAURU
01-Araputanga
02-Curvelândia
03-Figueirópolis d’Oeste
04-Glória d’Oeste
05-Indiavaí
06-Jauru
07-Lambari d’Oeste
08-Mirassol d’Oeste
09-Porto Esperidião
10-Reserva do Cabaçal
11-Rio Branco
12-Salto do Céu
13-São José dos Quatro Marcos
19
CAPÍTULO I
LOTES DE ESPERANÇA
20
No dia vinte e oito do mês de outubro, do ano de 1964, foi lavrada a Ata de
Fundação do povoado de Mirassol D’ Oeste, como aponta o relato que se segue:
Aos vinte e oito dias do mês de outubro do ano de mil novecentos e sessenta e
quatro, às nove horas, foi procedida a Bênção do Cruzeiro, no local onde será
erguida a futura capela em louvor a São Judas Tadeu, dando assim esta
solenidade inicio à Fundação do Patrimônio de Mirassol D’ Oeste, no município
de Cáceres, Estado de Mato Grosso. O nome do Patrimônio hoje fundado, foi dado
em homenagem à Mirassol, progressista cidade do Estado de São Paulo, de onde
procedem grande parte dos pioneiros desta localidade, (...). Grande entusiasta do
Estado de Mato Grosso, (...), que sempre acreditou ser o futuro Celeiro do Brasil;
prognóstico que está se tornando realidade (...)
19
.
O que o documento acima busca indicar, de maneira precisa, é o dia “exato” da
fundação do povoado de Mirassol D’Oeste, mês e ano. Apresenta ainda, o ritual que se
procedeu no dia da “fundação” - a benção do Cruzeiro. A explicação sobre o nome do
povoado que nascia é que prestaria homenagem a uma cidade do estado de São Paulo,
de onde procedia a maior parte dos pioneiros, os que primeiro chegaram a essa área de
terras. No entanto, ao apresentar essas informações, o discurso institui um princípio, ou
seja, o início da história de Mirassol D’Oeste, que se instaura no ano de 1964.
Contudo é preciso pensar para além da origem o ano, o mês, o dia e se
inquietar com ela. Ousar indagar, não apenas o “início” dessa ocupação mas,
particularmente, como foi possível a aquisição dessa área de terras, seu loteamento e, a
revenda dessas terras para ocupação. Quais práticas, durante as décadas de 1950 e 1960,
19
Texto da Ata da Fundação do Patrimônio de Mirassol D’Oeste. Arquivo da Câmara Municipal de
vereadores do município de Mirassol D’Oeste.
21
fizeram parte da relação das autoridades governamentais do Estado com a política de
venda das terras devolutas
20
de Mato Grosso.
Portanto, mais que oferecer informações sobre a “data” em que ocorreu a
ocupação dessa área, como consta na Ata de Fundação da cidade, este capítulo, analisa a
política de ocupação das terras devolutas da parte sudoeste do Estado de Mato Grosso,
particularmente, durante as décadas de 1950 e 1960, bem como as condições históricas
que vão possibilitar o surgimento do povoado de Mirassol D’Oeste foco desses
estudos.
A documentação de referência são os discursos oficiais das décadas de 1950 e
1960 disponíveis no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso. Analisa também as
matérias da imprensa escrita (1950-1960), aqui representada pelo jornal, O Estado de
Mato Grosso
21
sobre a venda e compra das terras devolutas do Estado. Outro foco de
análise, neste capítulo, é o depoimento do proprietário da área de terras que foi loteada e
vendida, e onde hoje se estabelece a cidade de Mirassol D’Oeste.
Nesse sentido, um dos caminhos mais profícuos foi trazer a contribuição de
autores que tratam da política de distribuição de terras devolutas nas décadas de 1950 e
1960 em Mato Grosso. Em especial, Alcir Lenharo e suas reflexões sobre a grande
especulação e as negociações fraudulentas envolvendo a distribuição das terras
devolutas, que vinham ocorrendo com muita intensidade, não só, mas, especialmente, na
década de 1950 em Mato Grosso
22
; assim como Gislaine Moreno, que traz importante
20
O termo “terras devolutas” é utilizado de acordo com a autora Ligia Ozório que, ao analisar a Lei de
Terras de 1850 conclui que: “Aos poucos, terras devolutas passaram a ser: 1) as que não estavam
aplicadas a algum uso público nacional, estadual ou municipal; 2) as que não estavam no domínio
particular, em virtude de título legítimo”. CF: SILVIA, Lígia Osorio. Terras Devolutas e Latifúndios:
efeitos da Lei de 1850.Campinas: UNICAMP, 1996, p.161..
21
Este jornal tem sua sede na Cidade de Cuiabá, capital do Estado. É um jornal de circulação para o
Estado, mas, com representação para algumas localidades do País. O jornal foi fundado em 27 de agosto
de 1939. Cf: Jornal, O Estado de Mato Grosso. APMT.
22
LENHARO, Alcir. op. cit.
22
contribuição no seu estudo sobre a política e o desenrolar das leis em torno da
distribuição das terras devolutas em Mato Grosso
23
.
As terras devolutas de Mato Grosso, durante as décadas de 1950 e 1960,
recebem especial atenção nos discursos oficiais Mensagens de governadores à
Assembléia Legislativa e Relatórios do Departamento de Terras e Colonização - no que
se refere à distribuição das mesmas.
De acordo com a documentação, verifica-se que a questão das terras do Estado
de Mato Grosso destinadas à colonização, durante as duas décadas acima mencionadas,
é apresentada pelos discursos governamentais como sendo uma preocupação prioritária
para o Estado, como consta no seguinte trecho:
Necessária se torna uma revisão na nossa legislação de terras, visando entre
outros objetivos, a elevação do preço em algumas zonas, à designação dos
agrimensores pelo Estado e a inclusão de clausulas no contrato de venda, que
obriguem o concessionário a efetivar o aproveitamento das terras, de acordo com
o programa que for aprovado e dentro do prazo razoável (...)
24
.
Percebe-se aqui, a preocupação do governador, em incluir cláusulas nos
contratos de venda das terras, que estabelecem as obrigações dos adquirentes. Isso
aponta para o desejo do governador em “fazer crer” que as intenções das autoridades
políticas do Estado, naquele momento, estavam concentradas em assegurar a
“colonização” das terras devolutas de Mato Grosso.
Observa-se que as terras devolutas na década de 1950 recebiam grande atenção
nos discursos das autoridades governamentais de Mato Grosso. Nesses discursos
pretendia-se passar a idéia de que o Estado encontrava-se empenhado numa política de
23
Cf: MORENO,Gislaine. op.cit.
24
COSTA, Fernando Corrêa da. Mensagem do governador à Assembléia Legislativa, Cuiabá, 1951, p.44 -
5.
23
povoamento/ocupação de todo o território mato-grossense. Uma política de povoamento
sistemática, como se pode apreender da “mensagem” do governador:
A nosso ver, o povoamento, a colonização, do nosso território deveria se processar
por faixas no sentido dos paralelos, e nunca dispersa, o que redundará em muitas
desilusões (...) O que poderá fazer, que resultado algumas centenas de agricultores
dispersos em Aripuanã, Alto Diamantino, Chapada ou Barra do Garças, nos
limites com o Amazonas e Pará?(...)
25
.
No mesmo documento, o discurso do governador reforça sua compreensão sobre
as práticas de povoamento e colonização:
A dispersão, a diluição de populações em grandes áreas, separadas por enormes
distâncias, onde os meios de comunicação são deficientes, quase sempre implica
no fracasso dos empreendimentos por elas levadas a efeito (...)
26
.
O que se pode analisar lendo os documentos oficiais deste período é que assim
como a ocupação despertava grande interesse por parte das autoridades governamentais,
em promover um efetivo povoamento, exigia ações comprometidas com uma efetiva
articulação entre as áreas de povoamento. Nesse sentido a abertura de estradas de
rodagem, era especialmente visada, sobretudo, para atender a comercialização agrícola e
a mobilidade dentro do Estado. Um exemplo disto é o Plano Rodoviário Nacional e
Estadual:
Um dos setores de maior movimentação na vida administrativa do Estado é sem
dúvida a C.E.R.(Comissão de Estradas e Rodagem), à qual está atribuída a
construção e conservação das estradas de rodagem que cortam o território do
Estado, ligando seus diversos municípios, seja obedecendo ao Plano Rodoviário
25
Idem, p. 29
26
Idem, p. 59.
24
Nacional seja ao Plano rodoviário Estadual, ambos já aprovados pelo Governo da
República (...)
27
.
É importante perceber a preocupação com relação ao papel fundamental que as
estradas representavam tanto para a política de vendas de terras para a ocupação, assim
como para a economia do Estado. As estradas, nos discursos, sempre estiveram
estrategicamente relacionadas à questão da produção econômica, reconhecimento e
domínio territorial do Estado:
(...) não podemos deixar de mencionar pela sua importância econômica e
estratégica a BR-30 (Cuiabá, Poconé, Cáceres, Mato-Grosso BR-30), que ligara
as duas grandes bacias do Amazonas e do Prata, abrindo ao nosso estado os
mercados consumidores do Território do Guaporé e do Estado do Amazonas.
(...)
28
.
Portanto, a questão das terras para ocupação estava ligada a abertura das
estradas. Por elas entrariam os migrantes, que segundo os discursos oficiais, teriam a
certeza de que sua produção agrícola seria comercializada, vendida, para os “centros
consumidores”:
Além da construção das estradas previstas nos diferentes planos rodoviários e de
outras já contratadas pelo Estado, [...] executará o governo um plano de ligação
das colônias agrícolas com os pontos de entrada de colonos e centros
consumidores
29
.
27
COSTA, Fernando Correa da. Mensagem do governador do Estado à Assembléia Legislativa em 13 de
junho de 1951, p. 61.
28
Idem, p. 60-1.
29
Ibidem, p.60.
25
Percebe-se no texto acima que, uma das funções das estradas era a de facilitar a
vinda de colonos para o Estado, mas, também a de tornar possível a “ligação” comercial
entre Mato Grosso e outros estados, sobretudo São Paulo:
Dentre as estradas federais de maior interesse e cuja conclusão meu governo
considera de maior urgência salientam-se a BR-31, que liga nossa Capital a Alto
Araguaia nos limites de Goiás e a BR-16, que permite a ligação com Campo
Grande. A primeira é a chave de nossas comunicações com a Capital de São
Paulo, (...)
30
.
Em um outro registro, nota de jornal, encontra-se a preocupação em dar
destaque à construção de rodovias de ligação entre o Estado de Mato Grosso e outras
localidades, demonstrando o grande interesse, especialmente, de comercialização. Ou
seja, a abertura de rodovias representava também a abertura de possibilidades de lucros
com a venda da produção a outros Estados, facilitando aliás a divulgação de uma
imagem do Estado interligado a receptores de sua produção agrícola.
Esta preocupação com a abertura de rodovias ocasionava relevante luta política
que muitas vezes ganhava destaque nas páginas de jornais de Mato Grosso, como
pode-se notar nesta matéria:
“A exposição de motivos do ministro Oswaldo Aranha relativa a construção de
uma rodovia entre as cidades de Cuiabá e Porto Velho, foi aprovada pelo
presidente da República. Assim serão depositados, na conta Tesouro Nacional x
c/Plano Salte, cerca de 13 milhões de cruzeiros, destinados aquela obra e
determinou ainda fosse apreciado o plano de construção da referida rodovia”
31
.
Em um relatório do ano de 1958, encontram-se informações sobre a construção
de algumas estradas, entre elas a que passa pelas cidades de Cáceres e Porto
30
Idem.
31
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 28 de março de 1954, n°2385, p. 01.
26
Esperidião. Estas cidades atualmente se localizam nas proximidades da cidade de
Mirassol D’Oeste: Até o fim do ano anterior, todavia, concluídos foram, por
administração direta, (...), 50 KM da BR-30, no trecho Cáceres a Cuiabá e 64 KMS
no trecho Cáceres a Porto Esperidião
32
.
Portanto, o que a documentação, discursos oficiais, vinha apresentando era que a
política de abertura de terras para ocupação estava ligada a um plano rodoviário
estadual e federal. Para os que estivessem interessados em vir para o estado, mas
relutassem por receio de falta de comunicação com os “mercados consumidores”,
dificultando a comercialização de sua produção agrícola, o discurso governamental
esclarecia que:
Para um Estado das proporções do nosso, com núcleos de populações
disseminadas por todos os quadrantes e dando inicio, tardiamente, à execução do
nosso plano rodoviário, sempre haverá, agora e por muito tempo ainda,
localidades necessitadas de rodovias, outras servidas por estradas pioneiras, sem
características técnicas, mas, em verdade, já podemos apresentar uma rede
rodoviária, mais extensa que em muitos Estados da Federação, executada em
padrão técnico elevado, dando tráfego permanente.
33
Tendo conhecimento da relevância do papel das estradas e rodovias para a venda
e ocupação das terras do Estado, as propagandas de compra e venda procuravam dar
destaque ao que possibilitaria o comprador escoar sua produção e facilitar sua
mobilidade. Estradas de ligação entre o terreno ofertado para compra e as localidades
urbanas.
Assim, em diversas propagandas sobre terras para aquisição, juntamente com a
apresentação do lote de terras expunha-se a estrada mais próxima, como por exemplo,
em uma propaganda de jornal sobre determinado lote de terras posto a venda, dentre as
32
ARRUDA, João Ponce de. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, 1958.
33
ARRUDA, João Ponce de. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, 1959.
27
“várias qualidades”, ressaltava -se, a ligação do local com o espaço urbano: “Disponho
de excelente área em ARENÓPOLIS, distando da cidade apenas 6 quilômetros, com
estrada de rodagem até as terras. (...)”
34
.
Durante as décadas de 1950 e 1960, é grande o interesse das autoridades
governamentais do Estado de Mato Grosso, em produzir imagens que salientassem a
preocupação com relação a abertura de estradas e rodovias, tanto de ligação entre os
locais de terras para a venda e a localidade urbana mais próxima, como entre Mato
Grosso e outros Estados visinhos.
Procura-se assim produzir uma imagem de integridade e cuidado em torno da
produção agrícola do Estado, passando uma idéia de que as autoridades governamentais
estariam empenhadas na construção de rodovias que proporcionariam o escoamento da
produção agrícola. Essa idéia em passar uma imagem de preocupação das autoridades
em relação a construção de estradas e rodovias é estampada, exaustivamente nas
páginas de jornais, como o exemplo que segue:
(...) Sr. Presidente, quando o Brasil se achava em guerra contra as potencias do
eixo (...) foi iniciada a construção de uma estrada que considero das mais
importantes deste país a ligação rodoviária entre as bacias do Rio da Prata e da
Amazônica, através do trecho Cáceres à cidade de Mato Grosso. Como sabe V. Exª
Senhor Presidente, Cáceres se acha situada no Estado de Mato Grosso, à margem
do Rio Paraguai, e Mato Grosso, antiga Vila Bela, acha-se as margens do Rio
Guaporé. O Governo da República há 16 anos, mandou que uma companhia do
Exército Nacional iniciasse a construção daquela ligação rodoviária, de inegável
valor para a economia nacional. Terminada a guerra, as obras foram
abandonadas, assim abandonados foram os brasileiros que se mobilizaram para
as selvas amazônicas e lá morreram à mingua de auxilio e de amparo por parte do
Governo Federal. Sugeriria, S. Presidente, que o ilustre Diretor do Departamento
de Estradas de Rodagem levasse aquela obra em caráter pioneiro de modo a que
34
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 26 de Fevereiro de 1958, n°3222, p. 01.
28
ficassem ligadas, no tempo mais breve possível, as cidades de Cáceres, em nosso
Estado e Mato Grosso no Guaporé. (...)
35
Poder-se-ia indagar o que significava uma rodovia de inegável valor para a
economia nacional, como a estrada que liga as duas cidades acima referidas. Talvez
estivesse esse valor relacionado a posição geopolítica dessas áreas de fronteira, bem
como à interligação com centros consumidores de produtos agrícolas produzidos pelo
Estado, como também a facilitação da circulação de imigrantes interessados em comprar
terras e sua afixação em solo mato-grossense.
A estrada, no discurso, desempenha o papel de trazer a civilização, o transporte,
o poder de vir e ir, a garantia de comercialização da pr odução do proprietário da terra e
conseqüentemente da produção do Estado. Portanto, as estradas estavam relacionadas
tanto a economia como a integração deste Estado a todos os cantos do Brasil,
instaurando um mercado de terras mais valorizado.
Destacava-se não apenas o conjunto das estradas, que tornava o Estado parte
integrante do restante do país, mas também, nos discursos governamentais, aparece a
preocupação do Estado em promover a ocupação de suas terras.
A documentação nos indica que a ocupação dos denominados “espaços vazios”,
em Mato Grosso, exigia procedimentos que estabelecessem regras e normas para tal
empreendimento, pois, de acordo com os discursos governamentais, isso solucionaria
alguns entraves: Afim de evitar a grande exploração que vem processando sobre a
venda de terras devolutas do estado, providencias enérgicas e imediatas deverão ser
35
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 24 de junho de 1959, n°3538, p. 01.
29
tomadas(...)
36
. Um dos exemplos é a própria divulgação das áreas de terras devolutas do
Estado e as facilidades em adquiri-las
37
.
Os anúncios sobre essas terras são encontrados em jornais de maior circulação
em Mato Grosso e em outros Estados. São propagandas que tendem a apresentar Mato
Grosso como uma enorme mancha de terra fértil a espera de mãos ávidas por trabalho e
prosperidade. A intenção é despertar o interesse naqueles que, geralmente, têm uma
relação forte com a terra e que particularmente por esse fato podem se apresentar mais
sensíveis a tais anúncios. Chegam a mídia nacional, com um forte apelo patriótico,
como se pode apreender da nota de jornal intitulada, Estão vendendo terras em Mato
Grosso, transcrita de ‘O GLOBO’:
(...) Estão vendendo Mato Grosso! A febre de loteamento na região está destruindo
uma riqueza nacional que jamais se poderá recuperar. Terras ricas, capazes de
construir toda nossa riqueza agrícola do país, vão sendo impiedosamente
queimadas, para envergonha dizer serem trocadas por dólares e francos com a
conivência das próprias autoridades locais. Por onde se passa vêem-se anúncios
de terras para vender, mapas e contratos. Só indo lá para ver. É´o que devem
fazer, principalmente os moços, que são os interessados. Vão lá e dêem esse
socorro ao Brasil (...).
38
.
Em seu estudo sobre a política de distribuição de terras no Estado de Mato
Grosso, Gislaine Moreno, fazendo menção às propagandas que eram feitas sobre as
terras devolutas do Estado, diz que: Anúncios sobre as facilidades de aquisição de
terras foram espalhados em jornais de todo o país, onde “corretores autorizados” se
colocavam à disposição para efetuar a transação (...)
39
. Isso aponta para o grande
36
Relatório das atividades desenvolvidas pelo Departamento de Terras, Minas e Colonização, 1954.
p.03/4
37
LENHARO, Alcir. op.cit., p.57.
38
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de novembro de 1954, n°2485, p. 01.
39
MORENO,Gislaine. op.cit., p.212.
30
destaque, na mídia, que as terras devolutas de Mato Grosso recebiam, anunciadas como
terras para a ocupação.
Várias matérias destacavam também a falta de critérios na venda dessas terras
ditas para a ocupação. Uma matéria do “O Estado de S. Paulo” denuncia as condições
sem critério algum das vendas de terras em Mato Grosso, apontando para a grande
oferta e procura dessas terras e as devidas facilidades que, aliás, outros jornais de várias
localidades do país estavam divulgando:
(...) O volume de aquisição de fazendas no vizinho Estado é verdadeiramente
impressionante. Em todos os jornais do interior deparamos anúncios tentadores de
‘corretores autorizados’, circunstancia que demonstra ter o caso ultrapassado os
limites do razoável e entrou no domínio do extraordinário. (...) As glebas em Mato
Grosso são quase sempre imensas. Se em Minas Gerais o alqueire já é a dobra do
alqueire paulista, lá então as medidas usuais se fazem por léguas quadradas.
Núcleos e empresas colonizadoras aparecem nos mais estranhos e distantes
lugares, (...) Os preços contrastam-se violentamente com os que vigoram entre nós,
e pode-se adquirir terras devolutas, na região das dúvidas, na Barra do Garças,
do Bugre, em Diamantino ou Aripuanã, por mais ou menos 25 cruzeiros o alqueire
paulista! Paga-se o corretor, o despachante, paga-se o engenheiro que deve fazer
a divisão e fica-se latifundiário de um instante para o outro com menos de dois
contos de réis. (...) Qualquer jornal do interior paulista, ou da periferia mineira
insere sempre um aviso das colonizadoras ou dos concessionários autorizados.
(...).
40
O que se pode observar é que, durante a década de 1950 há uma intensa
campanha publicitária dos governos de Mato Grosso para o Brasil e para outros países,
apresentando as terras disponibilizadas para a venda, sob a representação de áreas
voltadas para a colonização. Uma matéria publicada pelo jornal O Estado de Mato
Grosso, tece críticas à política de “colonização” das terras devolutas do Estado, ilustra
40
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de janeiro de 1954, n°2358, p. 01.
31
as medidas tomadas para promover a venda de terras. Tal matéria apresenta dois
personagens que se apresentavam como compradores de terras, aos quais atribui-se,
estaria o governo do Estado, concedendo terras para a dita colonização.
Adelino Boralli e Luciano Helde, os tais comparadores, já teriam participação na
colonização do norte do Paraná e estariam usando dos mesmos artifícios para promover
a ocupação de uma determinada área a partir da venda de pequenos lotes:
Com um exemplo vamos revelar aqui o tipo de aventureiros que Mato Grosso
importou para a sua desastrada política de colonização. Trata-se de Adelino
Boralli e Luciano Helde, donos da Imobiliária Ipiranga, que obtiveram permissão
para lotear 200 mil hectares do Parque Indígena do Xingu, (...). Boralli e Helde
conheceram-se em Londrina, quando a Companhia de Terras Norte do Paraná
anunciava a aberture de Maringá; segunda maior cidade do Norte do Paraná. (...)
Embora não tivessem título de propriedade, nem registro legal, mas apenas opção
de compra, deram inicio imediato à venda de lotes, com corretores agindo na
calda de espalhafatoso plano de propaganda. Como denunciamos, esse mesmo
método esta sendo utilizado em Mato Grosso, com propaganda até em francês. Por
intermédio de um amigo comum, os dois aventureiros conheceram o governador de
Mato Grosso. Da aproximação, resultou a concessão para o loteamento de 200 mil
hectares de terras do Parque Indígena do Xingu. Essas terras compradas a Cr$ 20
o hectare, estão sendo vendidas a Cr$ 1.300. A ‘Ipiranga’ já anuncia a instalação
de agencias em Lausanne, Milão, e Paris. E Boralli, segundo a revista ‘Visão’, de
10-12-54, ‘se prepara para invadir os Estados Unidos com as suas ofertas’.
Repetindo seus processos de sempre, Boralli anuncia a cidade de ‘Cafeara’,
denominação de seu loteamento, fica perto de Cuiabá. Na realidade, está a quase
700 quilômetros, só podendo ser atingida por avião.
41
A matéria acima desvela a intensa propaganda ocorrida durante as décadas de
1950 e 1960, ou seja, o fato de se fazer alusão a propaganda que estaria sendo feita em
determinados países, possibilita compreender que durante os referidos períodos houve
41
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 18 de Janeiro de 1955, n°2508, p. 01.
32
um grande interesse em atrair para o Estado um fluxo significativo de compradores de
terras. Conseqüentemente, uma enorme gama de artifícios atrativos foram utilizados
para convencer os possíveis compradores de terras através de uma representação
“política maquiada” de colonização, porque isso dava legitimidade a essa política de
compra e venda de terras.
Um outro ponto da matéria apresentada requer atenção: o preço das terras
adquiridas do Estado pelos compradores de terras que obtiveram mais de 1000% de
lucro na revenda das mesmas. Isso demonstra o alto grau de especulação que ocorria em
torno da compra e venda das terras, apontando para as negociações com as terras
devolutas de Mato Grosso que resultavam em enormes lucros.
A venda de terras representava para o Estado, como assinala os discursos oficiais
através da documentação pesquisada, a saída do seu estágio de território pouco
povoado, semi-isolado, não integrado ao restante do país. E ainda, assinavam os ganhos
econômicos, isto é, aumento de receita. Assim esperava-se com a venda de terras povoar
os designados “espaços vazios” bem como absorver lucrativas somas para a economia
do Estado. Contudo, pode-se questionar se os altos lucros com a compra e venda das
terras devolutas resultavam em ganhos para o Estado, pois, de acordo com a matéria de
jornal apresentada anteriormente os ganhos iam direto para o “bolso” dos especuladores
e para a caixa da corrupção.
Entretanto, é comum aparecer, tanto nos relatórios de governador da década de
1950, como nos do Departamento de Terras e Colonização, referências às “cifras”
obtidas com a venda de terras devolutas:
Continua a despertar interesse a aquisição de terras em nosso Estado, pelo que
foram expedidos, em 1958, 552 títulos provisórios com a área aproximada de 1
800 000 hectares, enquanto 491 títulos definitivos foram lavrados, abrangendo
33
uma área de 2 637. 142 hectares. A renda decorrente da venda de terras
devolutas produziu a cifra de Cr$ 18. 938. 207, 60 [...]
42
.
Um outro relatório destaca que a venda de terras devolutas no Estado era
bastante intensa, informando especialmente a localização, onde a oferta dessas terras era
mais freqüente:
Nos restantes 14 dias desse ano, foram protocolados 2. 418 requerimentos, fato
que demonstra o interesse despertado pela aquisição de terras devolutas. [...] É
interessante perceber que o município, onde mais se concederam títulos
definitivos, foi o de Barra do Garças 62 títulos e 403 879 ha., seguido do de
Cáceres 58 títulos e 153. 596 há...
43
.
Não só os relatórios oficiais apontam para a enorme procura por terras em Mato
Grosso, mas as várias notícias divulgadas na imprensa escrita, como a apresentada
anteriormente, assinalam tanto a intensa propaganda sobre as terras do Estado para a
venda, como também a suposta fertilidade de seu solo e ainda, os locais onde se deveria
procurar por tais terras.
Numa nota de jornal a propaganda sobre a fertilidade do solo, bem como a
apelativa apresentação sobre a grande produção de um determinado cereal, o trigo, tenta
fazer com que quem leia o anúncio acredite e convença-se do enorme “potencial” fértil
das terras do Estado:
(...). Os resultados obtidos ultrapassam as linhas matogrossense, ecoando pelo sul
do Brasil, aliás, repercussão das mais benéficas para a nossa economia. Ao que se
sabe várias empresas colonizadoras voltaram suas vistas para a cultura do trigo,
42
ARRUDA, João Ponce de, Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa , 1959. p.30.
43
ARRUDA, João Ponce de, Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, 1958. p.25
34
sendo sem conta os colonos, de origem italiana, alemão e polonesa, procedentes
do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que vão se transferir para Mato Grosso
44
.
Nota-se que as propagandas estavam voltadas para determinados locais, ou para
determinados grupos sociais. As propagandas, geralmente apelavam para vários
artifícios, na tentativa de convencimento do maior número possível de compradores.
Entre esses artifícios, seguindo os passos da documentação, encontra-se em geral a
divulgação das facilidades apresentadas para adquirir as terras, ressaltando os baixos
preços destas e, especialmente, a fertilidade do solo. Isso possibilita dizer que, essas
propagandas anunciavam a riqueza da terra de acordo com o objetivo dos interessados
ou, a quem se destinava tais propagandas fossem eles do próprio país ou de outras
localidades fora do país, como a nota de jornal que se segue:
A redação do ‘Estado’ recebeu, do Agrônomo José Soares Brandão Filho, o
seguinte telegrama,(...). ‘Virtude (de) propaganda feita (sobre) a cultura do trigo
(em) Mato Grosso, Mário Shetini representante (das) Empresas brasileiras em
Roma, Itália, dirigiu-se (a) esta I.R., pedindo esclarecimentos sobre terras (em)
São José da Serra, informando estar sendo procurado (por) italianos organizados
(em) cooperativas quais desejam ali estabelecer-se,(...)
45
.
Além do trigo procurava-se destacar também a cultura do café, que era
apresentada, pelos discursos propagandísticos, como sinônimo de solo fértil e produtivo.
Essas propagandas procuravam direcionar -se especialmente, para as localidades em que
tais culturas já eram conhecidas pelos agricultores, particularmente, no sul do país e em
São Paulo.
44
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 7 de Fevereiro de 1958, n°3211, p. 03.
45
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 25 de Junho de 1959, n°3539, p.01.
35
Contudo, as propagandas de terras que circulavam dentro do Estado de Mato
Grosso também intencionavam dar ênfase à fertilidade das terras e as facilidades em
adquiri-las. Numa dessas propagandas feitas por uma imobiliária, o anúncio enfatiza em
letras proeminentes, aquilo que se tornou, durante essas décadas, o cartão postal de
apresentação das terras devolutas em Mato Grosso, ou seja, a sua fertilidade:
Terras no Estado de Mato Grosso; as melhores do Brasil: Desejando adquirir
terras para café e cereais, procure na Praça General Caetano de Albuquerque no
Edifício Ricci & Fava 1° andar salas 1 e 2. Imobiliária Setramar de Mato Grosso
Limitada. (...) Temos terras em lotes pequenos e grandes nos municípios de:
BARRA DO BUGRES, ROSÁRIO OESTE, CÁCERES, VILLA BELLA, CAPITAL,
etc. Pagamento em três e quatro anos. (...)
46
.
A propaganda acima nos dá indícios importantes sobre como se pensava atrair
compradores para as terras, focalizando-se, especialmente, as suas qualidades - As
melhores do Brasil - e as facilidades de pagamento - Pagamento em três e quatro anos.
São anúncios tentadores como este que foram espalhados dentro e fora do Estado de
Mato Grosso. É possível encontrar vários outros anúncios com teor apelativo
semelhante a este, isto é, enfatizando a qualidade do solo e o preço das terras, como os
que se seguem:
O trigo é lavoura de lucro certo. (...) Mato Grosso apresenta condições
inigualáveis para produção de trigo. Solo e clima dos melhores do mundo. As
terras são vendidas ou arrendadas a preços razoáveis. (...) O trigo produzido em
Mato Grosso é considerado um dos melhores do Brasil,...O plantio do trigo no
Estado é feito nos meses de abril e maio, com rendimento jamais verificado
noutras regiões do País. Em síntese: o trigo da bem em Mato Grosso,
46
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 26 de setembro de 1954, n°2462, p.04.
36
especialmente no sul do Estado. O rendimento por hectare é o mais alto do Brasil.
O produtor tem comprador certo. As terras são relativamente baratas...
47
.
Em uma outra nota, reafirma -se as intenções em fundir e difundir a imagem de
um Estado de imensuráveis qualidades, desde o solo perfeito para toda e qualquer
cultura, até as possibilidades infinitas de cultivo:
(...). Que os triticultores nacionais lancem suas vistas no rumo do Oeste para que
se capacitem de que Mato Grosso sendo, como é, a maquete do Brasil, tem terras e
clima para todas as culturas e possibilidades imensuráveis para todas as
atividades. Desde as geadas do altiplano maracanajuano, nas lides do Paraná, na
região do sul, até aos calores das terras baixas da bacia amazônica, no norte, tudo
se poderá colher ... em se plantando. (Transcrito ‘Brasil Oeste, São Paulo,
outubro de 58)
48
.
Ambos os anúncios destacam fatores que, notoriamente, despertam o interesse
para as terras do Estado, apresentando-o como o lugar “perfeito”, onde “o clima é o
melhor do mundo”, as terras as mais baratas e fáceis de adquirir e somando-se a tudo
isso se tem ainda as terras mais férteis, pois, são as “melhores do mundo” em que se
plantando tudo pode produzir.
Anúncios tentadores como estes funcionam como verdadeiros catalisadores de
interesses despertando as atenções dos que os lêem, como aponta uma outra nota do
jornal “O Estado de São Paulo”, que critica o teor apelativo das propagandas sobre as
terras de Mato Grosso: (...) O mesmo fenômeno que produz os loteamentos urbanos
manifesta-se e faz com que os paulistas se voltem para Mato Grosso, ainda que sem o
menor intuito de se quer viajar até lá. (...)
49
.
47
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 25 de dezembro de 1958, n°3426, p.03.
48
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 26 de dezembro de 1958, n°3427, p.06.
49
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de janeiro de 1954, n°2358, p.01.
37
Sobre a propaganda anterior
50
, chama ainda a atenção quando o anúncio traz o
nome da imobiliária de vendas, seu registro e onde se encontrava instalada. Emerge daí
outro indício sobre a política de venda de terras em Mato Grosso, durante o período, ou
seja, a participação da iniciativa privada no propósito da ocupação das terras devolutas.
Gislaine Moreno, assinala a preferência das autoridades governamentais,
inclusive durante as décadas de 1950 e 1960, em passar a tarefa colonizadora do Estado
para a iniciativa privada:
Ao assumir o governo em 1951, Fernando Corrêa da Costa...De acordo com a
política federal de ocupação dos “espaços vazios”, retomada por Vargas (1951-
1954), implementou no estado a política de colonização, entregando esta tarefa à
empresas particulares de colonização
51
A documentação, através dos discursos oficiais, nos revela essa preocupação e a
preferência pelo povoamento/ocupação efetuado por particulares:
Nenhum técnico possui o Estado que tenha conhecimento e especialização do
assunto. As reservas das áreas destinadas à colonização, não obedeceram a um
estudo prévio dos elementos e requisitos indispensáveis para o sucesso dos
empreendimentos dessa natureza. (...) Colonizar-se em Mato Grosso não é lotear-
se terras nos subúrbios do Rio, S. Paulo e Curitiba. (...) São essas cousas que
necessitam ser previstas e planejadas para que a esperança que o Brasil e o
Mundo hoje depositam nesta Canaãn não se transforme numa grande e dolorosa
desilusão..
52
50
Esta é uma referência ao trecho da propaganda citada na página 17, nota de rodapé 28.
51
MORENO,Gislaine. op.cit., p.199.
52
COSTA, Fernando Corrêa da. Mensagem do governador à Assembléia Legislativa, Cuiabá, 1954.
38
O discurso do governador complementava ainda: É bem verdade que o papel a
ser desempenhado por essas colonizadoras é o de verdadeira ponta de lança da
civilização, o de precursores do progresso.
53
Quanto a esse “papel” da iniciativa privada, especialmente durante o período de
governo acima mencionado, Gislaine Moreno assinala que: O discurso do governador
nas mensagens governamentais revela sua posição francamente favorável à iniciativa
privada, que teria competência para promover a valorização do território estadual
54
.
Em uma matéria do jornal, O Estado de Mato Grosso, desvela a estreita relação
do governo com a iniciativa privada. Mas, segundo a mesma matéria, esta relação
implicava algumas irregularidades, as quais são divulgadas na nota, especialmente sobre
as concessões de terras a determinadas “imobiliárias” que aparecem na documentação:
(...) No ano pré eleitoral de 1953, foram assinados quatorze contratos, que são
mencionados na mensagem do governador à Assembléia Legislativa, embora sem
discriminação das áreas concedidas. Para a Imobiliária Ipiranga, foi criada
especialmente uma reserva de terras, pois o decreto da reserva, que exclui os
direitos dos ocupantes, se assinou em 18 de novembro de 1953 (dcc. 1.699),
enquanto o contrato com o governo leva a data de 21 do mesmo mês e ano, isto é,
três dias depois. Estes exemplos são numerosos: Casa Bancária Financial
Imobiliária S.ª, decreto de reserva de 16. 10. 53, concessão em 4-11-53;
Companhia Colonizadora Cuiabá Ltda., decreto de reserva de 13-8-53, concessão
em 12-12-53. E assim por diante, demonstrando que só se beneficiaram aqueles
que dispunham de influencia junto ao governo. (...) Outro aspecto a assinalar no
sistema de concessões de terras do governo matogrossense é a preocupação de
desmembrar o projetado Parque Indígena do Xingu, área do norte do Estado, e no
seio da região das ‘matas’. Mais de 500.000 hectares foram concedidos à
Imobiliária Ipiranga, outro tanto à Construções e Comércio Camargo Correa S.A.
, outro à Colonizadora Norte de Mato Grosso, Casa Bancária Financial
53
Ibidem.
54
MORENO, Gislaine. op.cit.,p.200.
39
Imobiliária S. A. (Irmãos Brunini) e outras de interesses entrelaçados, figurando
até mesmo capitalistas de São Paulo, como Fúlvio Morganti e outros. (...)
55
.
Segundo Gislaine Moreno, a venda de terras devolutas, especialmente durante o
período entre 1950 e 1960, apresentava-se como uma prática de favores políticos, isto é,
as facilidades e concessões de terras faziam parte dum entrelaçado jogo de interesses.
56
O que se deve assinalar, observando os discursos de governadores desse período
(1950/1960), é que havia um interesse em vender (com todas as variáveis possíveis da
corrupção ligadas a política de favores) para a iniciativa privada, produzindo e
reproduzindo o discurso da missão de colonizar/povoar as terras devolutas do Estado.
Os interesses políticos/partidários e a prática de favores que envolviam a distribuição de
terras, transformava-se numa “ciranda” especulativa, onde grandes áreas eram
açambarcadas para posteriormente serem negociadas como mercadoria, e sua venda
como comércio qualquer
57
.
Sobre a questão da especulação, em relação à compra e venda de terras, durante
as décadas de cinqüenta e sessenta, a documentação pesquisada, informa que essa foi
uma prática corrente. Em um trecho do discurso do governador Fernando Correa da
Costa, de 1951, é apontada a prática de favoritismo político/partidário envolvendo a
venda de terras devolutas para a colonização:
O aventureirismo e a improbidade campearam no Departamento de Terras, com
sede nesta Capital, e na Delegacia de Terras do Sul. Os cargos técnicos dos
serviços de terras estavam entregues a funcionários administrativos sem
estabilidade, o que propiciava às autoridades superiores e aos políticos
situacionistas imposições no sentido de obter toda a sorte de facilidades. O
55
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 12 de dezembro de 1954, n°2494, p.03.
56
MORENO, Gislaine. op.cit., p.212.
57
LENHARO, Alcir. op.cit., p.54.
40
patrimônio público foi comprometido por muitos atentados aos direitos
individuais. Não se respeitaram as reservas feitas para a colonização,..
58
.
Os interesses pessoais, políticos e partidários dificultavam e comprometiam a
política de distribuição de terras no Estado. Isso acarretava muitas denúncias,
geralmente quando ocorriam mudanças, no governo e partido político, isto é, em início
de mandato. Contudo, não impedia que arbitrariedades semelhantes acontecessem no
governo que estivesse na direção do Estado
59
.
Pode-se encontrar nos discursos de governadores, do período de 1950/1960,
várias indicações do “jogo” que envolvia a venda de terras devolutas e a especulação
decorrente da compra e venda dessas terras ditas para colonização. Em uma denúncia,
feita pelo governador João Ponce de Arruda, com relação ao desfalque flagrado sobre a
reserva monetária da Comissão de Planejamento da Produção, pelo então tesoureiro, no
ano de 1956, há indícios do teor especulativo que envolvia a compra e venda de terras
devolutas:
Curioso notar que, como caução, deixara esse funcionário, apenso ao processo,
para cobrir o seu desfalque, dois títulos definitivos de terras devolutas adquiridas
ao Estado, retirados na véspera (27- I 56), ao preço de Cr$ 10,00 o hectare e
entregues na base de Cr$ 80,00 o hectare, em 28 I 56, viajando em seguida...
60
Muitas são as denúncias encontradas nos discursos oficiais, sobre as “falcatruas”
que envolviam os negócios em torno da terra, especialmente quando se tratava de
avaliar o mandato anterior. Em um dos discursos do governador Fernando Correa da
58
COSTA, Fernando Corrêa da. Mensagem do governador à Assembléia Legislativa, Cuiabá, 13 de junho
de 1954, p.43.
59
Cf: LENHARO, Alcir. op.cit.
60
ARRUDA, João Ponce de. Mensagem apresentada pelo Governador do Estado à Assembléia
Legislativa, 13 de junho de 1956, p.14.
41
Costa, ao tratar da sua administração, aponta-se as irregularidades, que segundo ele
ocorreram somente nos mandatos anteriores. Irregularidades estas que, de acordo com
seu discurso, passaram a ser corrigidas em sua administração. Dentre as irregularidades,
com relação à questão das terras destinadas para a colonização, algumas são
apresentadas pela mensagem do governador:
O Departamento de Terras e Colonização foi, dos órgãos da administração
estadual, o mais tumultuado e em cujo seio imperou a mais condenável forma de
arbítrio e nepotismo. As mais rudimentares formas e princípios de direito, foram
violados, para dar ensejo ao beneficiamento de protegidos e “profiteurs”, de
certas autoridades então imperantes
61
.
No mesmo discurso mais à frente, o então governador, faz alusão ao valor das
terras devolutas e a prática de usura a que eram submetidas:
O que temos visto, entretanto, é a alienação pura e simples, de grandes áreas, para
fins meramente especulativos; Mato Grosso vai perdendo gradativamente suas
preciosas reservas...
62
.
Contudo, não só os discursos de governadores apontam para determinada
prática. Várias são as denúncias encontradas também nas matérias de jornais, como a
que segue:
(...) De fato, ninguém entende a maneira de agir dos atuais governantes, no caso
das terras devolutas. Para uns, as glebas saem como por encanto, as petições
entram e saem das Secretarias respectivas, em Cuiabá, como a rapidez do raio.
Para outros, improvisadamente são criados mil obstáculos, a burocracia se
61
COSTA, Fernando Correa da. Mensagem do governador do Estado à Assembléia Legislativa, 1963.
p.68
62
Ibidem.
42
encarrega de sustar o andamento dos papéis, a pretensão do candidato morre
esmagada sob o peso de um despacho lacônico: INDEFERIDO. Entre as muitas
concessões, figura uma de arromba, que o Governador teria feito, a um dos seus
amigos residente em Campo Grande, o qual recebeu 25 mil hectares em
Bodoquena, (...)
63
.
A matéria acima indica que havia uma significativa procura pelas terras
devolutas do Estado a ponto de chamar a atenção para a quantidade de processos
indeferidos despachados pelos órgãos responsáveis por essa tarefa, entretanto, é
fundamental perceber a direção tomada pela política de distribuição das terras
devolutas, ou seja, a total falta de critérios para a concessão dessas terras. A terra que ao
mesmo tempo tem função de atrair pessoas para Mato Grosso, no intuito de
ocupar/povoar, também é usada como instrumento especulativo/comercial, servindo
como pagamento por favores políticos, ou como o documento aponta, como presente a
amigos.
Durante as décadas de 1950 e 1960, várias são as denúncias encontradas no
jornal, O Estado de Mato Grosso, sobre a venda arbitrária das terras devolutas. Assim
como o procedimento das chamadas imobiliárias que eram concebidas através do
discurso das autoridades governamentais como peça fundamental, para fazer crer que,
tanto o Estado como a iniciativa privada, representada por essas imobiliárias, estavam
empenhados na “colonização” das terras devolutas de Mato Grosso.
Essas empresas tinham o aval para divulgarem e venderem as terras para os que
se interessassem, no entanto, de acordo com a documentação, o que se processava era
um verdadeiro “leilão” de grandes áreas de terras para e pelas imobiliárias que
revendiam por um preço bem mais alto do adquirido. As imobiliárias ao que parece não
apresentavam projeto para colonização e quando o faziam não o executavam.
63
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 18 de abril de 1952, n°2080, p.01.
43
Pode-se encontrar vários indícios desse jogo, onde a terra representava a moeda
vigente e um dos negócios mais lucrativos. Segundo a documentação, essas imobiliárias
não se comprometiam em dar qualquer assistência aos compradores e quando se
comprometiam na maioria das vezes não cumpriam com as exigências dos contratos,
envolvendo-se apenas na propaganda dessas terras, como assinala o trecho abaixo:
As circunstancias sob as quais se processas as concessões de terras de Mato
Grosso, conforme temos visto, jamais se confundiram com um verdadeiro
programa de colonização. De fato, os contratos são de tal natureza que a
denominação colono só entra para figurar os adquirentes dos lotes, nas áreas
presumidamente demarcadas pelas empresas imobiliárias. Não se fala em
assistência mínima técnico-financeira, ou mesmo social, a não ser para mencionar
escolas e hospitais, de maneira vaga e imprecisa, sem especificação de moldes ou
padrões mínimos. Em todos os contratos as áreas concedidas recebem
delimitações incertas e registra-se a omissão total de estradas ou outros meios de
comunicação, ... Não houve, portanto, o intento da colonização na real acepção da
palavra, mas uma larga concessão de terras a empresas privadas, para efeito de
loteamento e revenda. (...)
64
.
Além do trecho acima aludir sobre o encaminhamento do processo de venda das
terras devolutas do estado para ocupação e o procedimento das empresas imobiliárias no
direcionamento da venda dessas terras, o texto do jornal também aponta para outro
ponto importante da política de terras do período, uma larga concessão de terras a
empresas privadas. Isso indica que durante a década de 1950 aconteceu uma enorme
“liquidação” das terras do Estado, envolvendo as autoridades governamentais do
período e a iniciativa privada.
Liquidação, pois tanto os discursos oficiais com o intuito de desqualificar o
governo anterior, fazem alusão a enorme procura pelas terras devolutas do Estado
64
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 12 de dezembro de 1954, n°2494, p.03.
44
através das numerosas concessões, como também na imprensa é possível encontrar
muitas denúncias em relação à venda exagerada dessas terras.
De acordo com a matéria acima as empresas geralmente adquiriam as terras a
preços irrisórios e multiplicavam em muito seus valores na revenda. Pode-se indagar se
essa elevação no preço das terras, acontece devido aos encargos que as empresas
supostamente teriam com a assinatura dos contratos de colonização da área adquirida.
Entretanto, apesar de as empresas terem conhecimento das obrigações para com
os compradores, ou seja, abertura de estradas, construção de hospitais, escolas entre
outras obrigações, firmadas nos contratos de colonização, não havia o cumprimento
desses contratos e muito menos das obrigações neles firmadas. Estas muitas vezes
figuravam apenas para efeito de propaganda, na revenda das terras.
A mesma matéria prossegue falando sobre a prática da propaganda utilizada
pelas empresas:
Conforme temos anotado em nossos trabalhos, as terras em Mato Grosso são
geralmente inadequadas ao cultivo do café, que parece ser a maior preocupação
dos ‘colonizadores’. Registra-se, é certo, a presença de muitas zonas em que o café
medra e produz satisfatoriamente, mas em áreas reduzidas, (...) Daí a dizer-se,
Mato Grosso é o novo Eldorado do café vai uma distancia enorme, (...) Mas as
empresas imobiliárias omitem tais características, quando se lançam na
propaganda para revenda. Algumas, considerando-se mais espertas, já
arrancaram vastas áreas no Médio Xingu, sonhando o desbravamento no
Amazonas e do porto de Belém, em futuro próximo. Imaginam que, com a terra
obtida de graça, nada lhes custa experimentar o cultivo e aguardar a valorização.
Para efeito externo, mandam trombetear que nestas áreas reside o celeiro do
mundo, na frase imbecil dos que desconhecem dispor todo o Estado do Amazonas
de menos de 10% de terras agricultáveis. (...) Qualquer um pode pedir e obter um
pedaço da ‘iniciativa patriótica’ de alguns brasileiros, como a classificou o
governador Fernando Correa da Costa, que nem por isso deixa de destroçá-la com
seus decretos de concessão. (...) Parece até que o governador de Mato Grosso
entende que as terras devolutas deverão acabar com o seu mandato, a exprimir no
45
ano vindouro. Não ficará um metro para o seu sucessor, se as concessões
prosseguirem no ritmo atual
65
No jornal critica-se a facilidade na aquisição das terras e o desempenho das
empresas imobiliárias. Somando a isso vem a propaganda das empresas que apresentam
o Estado como o - novo Eldorado do café ou seja, um lugar com vocação agrícola
para qualquer produto, incitando sonhos de cultivo e boa produtividade, despertando
desejos. Deste modo os anúncios tornam-se extremamente tentadores encobrindo as
concessões sem nenhum critério e as ações de corrupção em uma operação de
liquidação das terras devolutas.
Em seu texto, sobre a questão da especulação com a terra em Mato Grosso,
durante a década de 1950, Lenharo mostra as artimanhas que as chamadas empresas
colonizadoras utilizavam para burlar a lei e se apossar de grandes quantidades de terras:
“(...)Os lotes eram contíguos e pertencentes a elementos de um mesmo grupo, para
burlar as exigências constitucionais (...)
66
.
Notadamente a corrida pela compra de terras devolutas com a intenção de
aguardar sua valorização é corrente durante o período de 1960 como também durante a
década de 1950. Denúncias podem ser facilmente encontradas em notas de jornais,
como a que se segue:
No ‘Diário Oficial’ do Estado as relações de interessados em concessões de terras
são imensas. São esposas de funcionários públicos que firmam os requerimentos
para os escritórios especializados, transferindo-se depois os direitos aos
intermediários, que por sua vez transmitem aos interessados de São Paulo. (...)
Aos sociólogos compete perquirir as razões profundas desse desvio de interesse
coletivo, ou os motivos que tem levado tanta gente a realizar transações que na
65
Ibidem.
66
LENHARO, Alcir.op.cit., p.55.
46
maioria dos casos são feitas com intuito especulativo que jamais atingirão o
objetivo visado. (...)
67
Portanto, durante o período focalizado, de acordo com a documentação
pesquisada, os casos de compra e venda de terras para efeito especulativo não foram
poucos, assim como as artimanhas para burlar a lei com interesse de monopolizar várias
áreas de terras e revendê-las para pessoas interessadas. Reproduzindo desta forma uma
grande ciranda em que a terra dita para colonização figurou em muitos casos como
sinônimo de permuta por favores políticos/partidários recebidos, e outras tantas vezes
em prol de interesses pessoais ou de grupos.
Quanto a prática de pessoas de um mesmo grupo adquirirem lotes adjacentes,
para formar grandes áreas de terras
68
, aguardando sua valorização, o relato de memória
do dono da área de terras loteadas e vendidas em Mirassol D’Oeste, aponta que essa era
uma prática de distribuição de vários títulos entre os membros de uma mesma família
para depois uma só pessoa comprar e adquirir tudo:
(...) terra aqui não era devoluta. Essa família Saraiva fez os requerimentos, cada
membro da família recebeu um título de aproximadamente 2.000 hectares e, eu
adquiri esses títulos..Esse pedaço de terra pertencia a Eurico Saraiva, Alírio
Saraiva e mais os irmãos e cunhados....Cada título era de 2.000 hectares, era
nove..então eram 18.000 hectares aqui meu. Mato Grosso tinha muita terra barata,
ainda tava saindo daquela fase do devoluto para o terreno titulado né, então
comprava bastante terra com pouco dinheiro (...)
69
.
67
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de janeiro de 1954, n°2358, p.01.
68
Com relação a área de terras que o Estado autorizava para a venda, Gislaine Moreno aponta que: “Os
interesses políticos norteavam a outorga das concessões, que alcançavam 200.00 há cada uma, cujos lotes,
de 10.000 há eram contíguos e de pessoas de um mesmo grupo. A estratégia violava o prescrito na
constituição federal de (1948) que vedava a alienação de áreas superiores a 10.000 há, sem prévia
autorização do Senado Federal”. CF: MORENO, Gislaine. op.cit.
69
Entrevista com o proprietário das terras loteadas e vendidas em Mirassol D’ Oeste, realizada em sua
residência, situada na mesma cidade, em dezembro 2002. O senhor Paulo Mendonça ainda reside em
Mirassol estado de São Paulo, mas, por possuir propriedades em Mato Grosso, próximas de Mirassol D’
Oeste, mantêm também uma residência nessa cidade, local em foi realizada a entrevista.
47
Lenharo em seu trabalho faz alguns apontamentos sobre as facilidades que eram
dadas aos que podiam pagar por grandes áreas de terras, assim como a conivência das
autorida des para com tais ‘negociatas’, apontando para a política de distribuição de
terras em Mato Grosso, que sempre esteve relacionada à concentração e acumulação de
grandes extensões em poucas mãos
70
.
Quanto às conivências das autoridades com relação a tais negociatas, encontram-
se presentes, tanto nas facilidades ‘legais’ como também se acham estampadas em
anúncios de jornais onde corretores dispõem-se a tramitar as negociações: anúncios
tentadores em pequenos jornais do interior, nos quais ‘corretores autorizados’
colocavam seus serviços à disposição...
71
. Esses corretores autorizados, ao que parece,
compõem peças importantes no jogo de negociações de compra e venda com a terra.
Algumas destas negociatas podem ser encontradas nos depoimentos orais:
(...) Depois eu adquiri por procuração de causa própria, Drº Ambrósio foi
advogado em Cáceres, foi prefeito lá e ele adquiriu uma terra do Estado 10.000
hectares .....eu adquiri dele por procuração de causa própria, quer dizer continuou
sendo dele e eu adquiri pra vende. Então comprei ali 10 ou 12 títulos de 2.000
hectares cada um na região do Quatro Marcos onde tinha um pessoal também
tinha comprado do Estado e, num são daqui, é gente de fora, eu até comprei de
corretores através de procuração. Eu não conheci nenhum proprietário dali...
72
.
O depoimento aponta que, na maioria das vezes, os que adquiriam títulos de
terras devolutas do Estado, aguardavam a valorização destas terras para posteriormente
repassarem os títulos adquiridos a preços lucrativos. Muitas eram as artimanhas
utilizadas para se conseguir tal façanha, entre elas as procurações que autorizavam
70
Cf: Lenharo, Alcir. op.cit.
71
Ibidem, p.57.
72
Entrevista realizada em 2002 com o proprietário das terras que foram loteadas e vendidas para formar a
cidade de Mirassol D’ Oeste, o Senhor Paulo Mendonça.
48
determinada pessoa vender o lote de terras como se fossem os próprios proprietários. O
proprietário das terras que foram loteadas em Mirassol D’ Oeste, em seu relato aponta
como e sob que condições ocorriam as chamadas procurações em causa própria:
Eu comprei vários títulos, para não passar todas as escrituras no meu nome, então
eu pegava procuração de causa própria. A procuração de causa própria me dá o
direito de pagar o imposto, transmissão de inter vivos, eu tendo a procuração de
causa própria eu pago o imposto e requiro a escritura, independente do indivíduo.
Enquanto eu não faço isso, com aquela procuração eu posso ir vendendo os lotes,
quer dizer, não passa para o meu nome, então era do Luiz Ambrózio, eu passei
para o Zé Ferino direto. Luiz Ambrózio e Zé Ferino, não passou por mim, então
me livrou de pagar o imposto (...)
73
.
Mesmo pessoas ligadas ao governo como o prefeito, como no relato anterior, se
aproveitavam destas facilidades em burlar a lei, para conseguir lucros com a compra e
venda de terras devolutas do estado. Gislaine Moreno a respeito das facilidades e
fraudes envolvendo a questão da compra e venda de terras devolutas, diz que: (...) o
reordenamento fundiário no estado, no período de 1950 a 1964, teve como marca a
venda indiscriminada de terras devolutas e sua utilização nas disputas eleitorais,
servindo como premiação ou pagamento de favores políticos (...)
74
.
Entretanto essa prática não passa despercebida, podendo ser averiguada nas
inúmeras denúncias em mensagens de governadores a Assembléia Legislativa, sempre
se referindo ao mandato anterior quando fora ocupado pelo adversário político.
Contudo, mais incisivas são as acusações proferidas pela imprensa, aqui representada
pelo jornal O Estado de Mato Grosso. Em uma matéria intitulada, NEGOCIATAS DE
TERRAS, a qual será compilada em sua íntegra, percebe-se a tônica da política de terras
73
Idem.
74
MORENO,Gislaine. op.cit., p.525.
49
para o período, ou seja, um comércio em que as terras devolutas do estado representam
mercadoria tanto para atender aos interesses individuais e ou de grupos como aos de
cunho político/partidários:
Senhor Deputado: Na conformidade dos entendimentos mantidos pelos
participantes da bancada Udenista no Legislativo, devidamente credenciados e
com aprovação de S. Excia. O Snr. Dr. Governador do Estado, dando forma
concreta das conversações, , para o apoio irrestrito de V. Excia. às medidas de
ordem legislativas que o partido pretende aprovar, com o seu beneplácito, os
membros daquela bancada abaixo assinados, firmam com V. Excia. o seguinte
compromisso:
- V. Excia. dará decidido apoio para a aprovação e votação das emendas
Constitucionais que criam o Tribunal de Contas, aprovando inclusive, a lista de
nomes apresentada à Assembléia pelo Governador do Estado, para formação do
T.C. [Tribunal de Contas], bem como, da mesma forma, dará seu decidido apoio
para a votação da Organização Judiciária e criação da Guarda de Fronteira;
- V. Excia. dará seu voto para eleição de candidato do Partido U.D.N., à
presidência da Assembléia Legislativa, em substituição ao deputado Benedito Vaz
de Figueiredo;
Pelo alto espírito de cooperação demonstrado por V. Excia. na aprovação das
medidas legislativas supra referidas, receberá V. Excia., as seguintes medidas
legais:
- Assinatura até o dia 30 do corrente, pelo órgão competente, do contrato para
Colonização da Zona Camararé, município de Mato Grosso, cuja área é de
200.000 hectares, tudo de acordo com o processo já encaminhado na Secretaria da
Agricultura.
- Aprovação para V. Excia., quando desimpedidas as vendas dde terras do
excesso da C.A.N., depois de extremada a área reservada à colônia, do lote Sítio
Nívea, requerido em nome de V. Excia..
- Concessão de venda a V. Excia. que apenas terá despesas com medição, de um
lote com área de 5.000 hectares acima, situado no Município de Barra do Bugres,
imediatamente após a aprovação das leis supra mencionadas, respeitando os
prazos legais, correndo as despesas de aquisição por conta dos signatários desta.
50
Estando de acordo, assinam o presente, em duas via, os representantes da bancada
Udenista ao Legislativa, pelos seus delegados, bem como V. Excia. devendo serem
inutilizados após a execução de suas clausulas
75
.
Levando em conta a localização dos lotes ‘doados’ ao Deputado por sua
“cooperação”, tornam-se visíveis os critérios de apropriação das terras devolutas.
Lenharo também analisa a mesma matéria acima referida e ressalta que: “(...) só faltava
um lotezinho no Vale do São Lourenço e quem sabe mais um em Barra do Garças e o
representante do povo teria o estado mapeado no bolso (...)”
76
. No entanto, o que ainda
chama atenção é a enorme naturalidade em efetuar esse tipo de procedimento com as
terras do estado, pelas autoridades governamentais.
Tal situação demonstra que essa não era uma prática isolada, pois, durante as
décadas de 1950 e 1960, denúncias e mais denúncias foram recorrentes. Entretanto,
paralelamente a enxurrada de denúncias, os negócios arbitrários envolvendo terras
devolutas, perma neciam acontecendo e o que mais impressiona é tanto o aval das
autoridades governamentais como seu escancarado envolvimento nessa ciranda.
Pode-se encontrar, no relato do dono das terras localizadas em Mirassol
D’Oeste, sinais do envolvimento de pessoas ligadas ao governo que se aproveitavam do
posto que ocupavam, para premiar, com as terras do estado, não só favores políticos,
mas também gratificação a seus ‘protegidos’, por serviços prestados. A artimanha
utilizada era quase sempre a mesma, doava-se uma determinada área através de
requerimento:
(...), tem uma área de dois mil hectares que eu pesquisei e o camarada que foi
chefe do Departamento de Terras em Cuiabá, não me lembro mais o nome dele, ele
era de Dourados, lá do Sul. Ele arrumou para o empregado dele um requerimento
75
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 23 de setembro de 1954, n°2461, p.01.
76
LENHARO, Alcir. op.cit., p. 55.
51
de dois mil hectares e, eu pesquisando, eu achei o camarada. Fui a Dourados e
comprei essa terra dessa pessoa (...)
77
.
Note-se que os chamados requerimentos constituíam um documento de
autorização à aquisição da terra. Os requerimentos ao que parece, nas mãos de pessoas
que possuíam o poder de autorizá-los, transformaram-se na fonte principal das
concessões ilícitas, tornando-as válidas, até o momento em que outra pessoa ocupasse o
posto e emitisse novos requerimentos, em muitos casos, concedendo a mesma área.
O relato do dono das terras de Mirassol D’Oeste ao aludir sobre a aquisição
destas, aponta para a prática de adquirir terra devolutas através de requerimentos que
terminavam por beneficiar toda sorte de interesses, especialmente como pagamento de
favores ou como forma de se adquirir as melhores terras. Entendendo-se por “melhores
terras” aquelas que apresentavam maior fertilidade do solo e localização, para então
aguardar sua valorização e revendê-las:
Aqui aconteceu o seguinte; nessa região aqui, antes de eu vir comprar, veio
trabalhar um agrimensor francês que fez amizade com gente importante de
Cuiabá. Então ele descobriu essas terras aqui e requeriu para essa família
Saraiva. Edio Otolfo por exemplo, é médico da Santa Casa de Cuiabá, é cunhado
do Arnaldo Saraiva que é irmão do Eurico Saraiva, essa família Saraiva, gente de
bens em Cuiabá. Através do conhecimento do pessoal do estado e o engenheiro
agrimensor fazendo o levantamento dessas terras para atender o pessoal, que ai
compra isso aqui por requerimento. Nem sabia onde era! E ai o engenheiro dava
informação. Então aconteceu o seguinte, os amigos compravam essa terra aqui
que era muito boa. O Luiz Ambrózio era advogado ali em Cáceres, foi prefeito, era
pessoa bem colocada, ele comprou dez mil hectares através de requerimento, não
custou quase nada. (...) Comprei também do senhor Aurélio, do Cartório do 1°
Ofício de Cáceres, o homem é cacerense de nascença, então quer dizer, o pessoal,
77
Entrevista realizada em 2002 com o proprietário das terras que foram loteadas e vendidas para formar a
cidade de Mirassol D’ Oeste, o Senhor Paulo Mendonça.
52
os amigos, os mais chegados, adquiriram essas terras todas do Estado através de
requerimento, quase de graça, depois me venderam,..
78
.
O relato apresenta uma prática bastante comum no período focalizado e em todo
o Estado. Requeriam-se lotes de terras devolutas para si ou em nome de determinados
indivíduos e outras pessoas do mesmo círculo de influências que, muitas vezes, não
tinham nem mesmo conhecimento de localização exata desses lotes, e repassavam-nos
para outras pessoas a preços bem mais elevados.
Outro ponto que chama atenção no relato acima é a apresentação das pessoas
que se beneficiavam dos requerimentos e como elas o faziam. Ao que parece, não se
apossavam de terras “comuns” ou em localidades muito distantes. Essas pessoas que
geralmente ocupavam algum posto político como o prefeito, ou eram muito próximas de
autoridades políticas, cultivavam uma relação de amizade entre si e com pessoas do
Departamento de Terras e Colonização, como o engenheiro francês que passou a
informação sobre as terras e sua localização ao grupo de amigos. Desta ma neira a
prática dos requerimentos de terras para outros fins, que não a ocupação destas, por
mais criticada e denunciada que fosse continuou a acontecer, pois fazia parte de um
emaranhado jogo de relações de influências que escapava a qualquer controle.
Sendo assim, o que se processava era uma verdadeira corrida para vender as
terras devolutas de Mato Grosso a particulares. Segundo a documentação oficial e o
relato do proprietário das terras de Mirassol D’Oeste, não havia um direcionamento
específico à colonização, mesmo que nos discursos de governadores a palavra de ordem
fosse a colonização/ocupação das terras devolutas de Mato Grosso. Portanto, a palavra
colonização era utilizada apenas para maquiar a “venda” indiscriminada das terras do
Estado.
78
Ibidem.
53
Segundo o discurso do proprietário das terras de Mirassol D’Oeste, sobre como
aconteceu a compra e o loteamento dessa área, não houve participação do governo no
processo:
(...) nós não pegamos nada do estado. Nunca pedimos nada, isso aqui foi feito
completamente independente, com recurso próprio, sem depender de autoridade
nenhuma, (...) abrimos estradas com recurso próprio, com enxadão, com peão,
com machado. Promovemos o inicio de colonização, mas colonização nos moldes
de São Paulo e Paraná, quer dizer, pequenas propriedades de terras de mata alta,
(...) o governo veio depois abrir estradas, veio fazer alguma coisa pra montar os
postos dele de arrecadação de impostos, quer dizer pra ajudar na frente ele não
veio, nós também nunca fomos pedir, (...) não ajudou mas também não atrapalhou,
nem tomou conhecimento (...)
79
.
Primeiramente, seu discurso reclama a falta de apoio do governo estadual, dos
recursos financeiros, marca da colonização após a década de 1970, certamente pelo fato
dele hoje, ter conhecimento de como ocorreu a colonização do norte do Estado a partir
da década de 1970.
Requer ainda atenção o fato dele comparar o que ocorreu em Mirassol D’Oeste
com o que aconteceu no Paraná e em São Paulo, evidenciando seu desejo de não
diferenciar o ocorrido em Mirassol D’Oeste com outros trabalhos desenvolvidos no
Estado, pois em outro trecho de seu relato, árduas criticas, são direcionadas a projetos
desenvolvidos no norte de Mato Grosso, ressaltando; nós nunca tivemos aqui incentivos
como no norte, período após a década de 70 do século XX.
Seu relato também expressa que não havia uma proposta por parte do governo
para as grandes áreas que se destinavam à “colonização”. Portanto, é relevante detalhar,
de acordo com seu relato, como se processou o loteamento da área de Mirassol D’Oeste,
79
Ibidem.
54
e de quais mecanismos utilizou-se o senhor Paulo Mendonça na divulgação das terras e
conseqüente ocupação da área pesquisada:
(...) houve na época, mais ou menos 1960 e poucos, um interesse grande de quem
tinha fazendas em São Paulo, fazendas muito grande, que o pessoal desocupasse
de medo. Naquela época tomava posse o João Goulart, ameaçando uma reforma
agrária, então muitos pequenos lavradores receberam incentivo do patrão,
recebeu dinheiro, ajuda para adquirir terra longe. Como aqui era muito barato,
então podia adquirir uma quantidade maior, uma área maior por menos dinheiro,
então foi esse o motivo que o pessoal veio (...)
80
.
O relato expressa o grande medo por parte dos proprietários, da reforma agrária
identificada com o governo Goulart. Segundo Camargo nos anos 60: “as pressões pela
melhoria das condições de vida da população camponesa, através de uma Reforma
Agrária serão reforçadas pelas exigências de alargamento de sua participação política,
com o voto do analfabeto e a organização sindical”
81
.
Sobre as propostas relacionadas aos trabalhadores encontram-se as que se
referem à reforma agrária e a extensão das leis trabalhistas ao campo, pois: “(...) Os
trabalhadores, em reivindicações encaminhadas a Jango, pedem reformas de base,
dentre elas a sindicalização do homem do campo e a reforma agrária (...)”
82
. Mas,
certamente, o que mais causava receio aos grandes proprietários, era sem dúvida, as
propostas do governo de reforma agrária e a estreita aproximação política entre os
sindicatos e o presidente Goulart. Isso tornava ainda mais ameaçadoras as exigências
lançadas pelos trabalhadores, tanto no circuito urbano como no rural. Segundo,
Rodrigues, que analisa a atuação do sindicato durante o período de 1930 a 1964:
80
Ibidem.
81
CAMARGO, Aspásia de Alcântara, A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930 1964),
. In: FAUSTO, Boris. História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, Tomo III, 1983, p.129.
82
Ibidem, p.192.
55
O estreitamento das relações entre os sindicatos sob orientação do CGT
[Comando Geral dos Trabalhadores] e o governo Goulart, durante os primeiros
anos da década de 1960, permitiu, no geral, uma ampliação da influência das
lideranças sindicais na política nacional como nunca ocorrera antes
83
.
Esse estreitamento político, juntamente com as reivindicações para os
trabalhadores do campo, os conflitos entre estes e patrões ocorridos em várias
localidades, e as propostas de Goulart desencadearam, uma série de reações por parte
dos grandes proprietários de terras contra o governo:
(...), a reação das associações rurais chega ao seu ápice, estendendo-se por
municípios do interior, e culminando com uma enorme concentração de 1.500
entidades em Brasília, apoiadas por políticos hostis ao governo, e pela
Confederação Rural Brasileira. Em São Paulo, núcleos de proprietários,
espalhados pelo Estado, rapidamente se organizam, e alem da ofensiva mineira,
também no Estado do Rio e em Goiás os protestos aguçam a crise (...)
84
.
Analisando o relato do senhor Paulo Mendonça, proprietário dos lotes que
constituíram a localidade de Mirassol D’ Oeste, nota-se que, em relação aos
trabalhadores, também foram tomadas providências por parte dos grandes proprietários
de terras, por exemplo, os acertos, que segundo ele eram feitos com a intenção de que os
lavradores comprassem terras longe de onde se encontravam instalados. E, ao que
parece, representava-se Mato Grosso como uma terra longínqua e muita barata.
A designação de terra barata aparece em várias matérias de jornais referentes às
terras devolutas do Estado. O senhor Paulo Mendonça, ao disponibiliza-las para a venda
informa, em seu relato, sobre a diferença de valores bastante significativa entre as terras
83
RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e classe op erária (1930-1964). In: FAUSTO, Boris.
op.cit.,p.550.
84
CAMARGO, Aspásia de Alcântara. op.cit., p.218.
56
do Estado de São Paulo, onde ele mantinha propriedades, e as de Mato Grosso: ao redor
desse plano de Mirassol eu comprei mais ou menos cinqüenta a sessenta mil hectares
(...) eu vendia um alqueire em São Paulo, com aquele dinheiro eu chegava e comprava
aqui, cem alqueires. Vê que aqui era barato e lá era caro demais (...)
85
Essa comparação entre o valor das terras de Mato Grosso e a de outros Estados é
apresentada nos discursos de governadores das décadas de 1950 e meados de 1960 para
explicar o alto número de requerimentos de terras devolutas do Estado ocorrido durante
esse período.
Entretanto, esse alto número de requerimentos nem sempre representava a posse
da terra, pois, muitas vezes eram expedidos vários títulos correspondentes a uma mesma
área, eram os chamados títulos voadores. Isso acabava causando prejuízos as pessoas
que requeriam determinado lote de terras, geralmente por não terem conhecimento da
localização correta do lote requerido e por várias pessoas apresentarem documentação
referente ao mesmo terreno, como aponta o relato do senhor Paulo Mendonça:
(...) então acontecia o seguinte: o camarada requeria numa outra região, terra de
campo, ruim, e trazia o título pra cá, e invadia uma terra boa, botava aquele título
e o título voava, né? Ou então falava, aqui é meu, oh o documento meu é bom, mas
era outra comarca, outro trecho do mapa, depois chegava outro comprador, e
chegava o terceiro, o quarto, eles não tinha como verificar, eles não sabia nada
(...)
86
.
Pode-se perceber pelo relato que os chamados “títulos voadores” foram
utilizados como possibilidade, ainda que arbitrária, de se obter as melhores terras. Ao
que parece essa não foi uma prática isolada, pois, nessa trilha, apareciam o segundo, o
85
Entrevista realizada em 2002 com o proprietário das terras que foram loteadas e vendidas para formar a
cidade de Mirassol D’Oeste, o Senhor Paulo Mendonça.
86
Ibidem.
57
terceiro, o quarto comprador, todos eles com o título da mesma área. No entanto, aquele
que se estabeleceu primeiro apresentava sua documentação como sendo legal, legítima.
Gislaine Moreno, analisando a questão da terra em Mato Grosso, aponta essa prática dos
títulos voadores, destacando que:
Os “títulos voadores” que remontavam outros títulos expedidos pelo ex-DTC
[Departamento de Terras e Colonização], entraram no mercado de terras e eram
disputadíssimos por grileiros para dar “legalidade” a gleba usurpada (...) Uma
vez que a localidade da área, constante do título era muito vaga, (...) vários títulos
podiam cobrir a mesma área, assim como várias áreas podiam se ajustar ao
mesmo título
87
.
Considerando esta análise, os chamados “títulos voadores”
88
notadamente não
representavam casos esporádicos, ocorrendo com todos aqueles que se dirigiram para
áreas como as de Mirassol D’Oeste. Entretanto, o senhor Paulo Mendonça, procura em
seu discurso negar a possibilidade de terem acontecido casos dessa natureza em suas
terras, afirmando ter efetuado rigorosa pesquisa no intuito de averiguar a “seriedade”
dos títulos que estava comprando, para só depois iniciar o loteamento e
conseqüentemente a divulgação das terras para a revenda. Mas, segundo os relatos de
memórias de pessoas que participaram do período inicial de ocupação dessa área de
terras, houve casos de pessoas que compraram determinado lote de terras em Mirassol
D’Oeste e ao chegarem, a mesma terra já tinha proprietário
89
.
Quanto à divulgação das terras de Mirassol D’Oeste, mesmo com toda a
propaganda efetuada através de vários jornais, tanto dentro do Estado como em outras
87
MORENO, Gislaine. op.cit., p.249.
88
Sobre os chamados “títulos voadores”, ver também: FERREIRA, Eudson de Castro. Posse e
propriedade territorial: a luta pela terra em Mato Grosso, Campinas, Ed. UNICAMP, 1986 (Dissertação
de Mestrado).
89
Os relatos de memória de pessoas que participaram do período inicial de abertura da área de terras de
Mirassol D’ Oeste são discutidos no segundo capítulo deste trabalho.
58
localidades do país, o proprietário da área afirma, em seu relato, nunca ter visto ou
ouvido qualquer informação sobre as terras de Mato Grosso, e que a decisão de adquirir
as terras se deu em decorrência de um desejo de aumentar suas posses. Segundo ele,
viajou por vários locais até encontrar terras que condissessem com seu interesse, ou
seja, terras de boa qualidade. Contudo, interessa analisar o mecanismo utilizado por ele
para divulgar as terras que resolveu lotear:
(...) Não fiz propaganda no resto do país. Não fui buscar ninguém longe, eu trazia
para cá só aquelas pessoas da minha região, que me procurava. Eu tinha naquela
época uma equipe de corretores que eu dava uma lotação, uma comby, com
capacidade para carregar dez pessoas. E esses indivíduos andavam naquela
região lá de São Paulo. Eu não andei fora da minha região, eu não fiz
propaganda, nunca ninguém viu um cartaz ‘compre terra’. Era através da
conversação,(...)
90
De acordo com o relato acima, o proprietário dessa área de terras busca dar a
crer que utilizou, para divulgação somente o corpo a corpo dos corretores. Mas ao
afirmar que vendeu apenas para aquelas pessoas que o procuravam, pessoas da região
dele, indica que o artifício disponibilizado, por ele, na divulgação e venda dessas terras
foi lançar mão da confiança e da credibilidade que as pessoas de sua região e para as
quais apresentou e ofereceu as terras, lhe atribuíam pelo fato de conhecê-lo.
O fato do senhor Paulo Mendonça, afirmar que não se utilizou da mídia para
divulgar suas terras indica seu conhecimento a respeito das propagandas na imprensa
escrita sobre as terras devolutas de Mato Grosso durante as décadas de 1950 e 1960.
Pode-se encontrar propagandas até mesmo sobre a área onde se encontravam suas
terras.
90
Entrevista realizada em 2002 com o proprietário das terras que foram loteadas e vendidas para formar a
cidade de Mirassol D’ Oeste, o Senhor Paulo Mendonça.
59
No ano de 1964, por exemplo, o jornal O estado de Mato Grosso publica uma
série sucessiva de matérias, todas referentes ao município de Cáceres onde se
encontravam as terras compradas pelo senhor Paulo Mendonça postas a loteamento. As
matérias, todas com o mesmo título, “Cáceres A Nova Dourados de Mato Grosso”,
apresentavam os novos loteamentos que estavam ocorrendo e os povoados em
formação, enaltecendo o espírito de aventura dos que tiveram coragem de ir a procura
de uma nova vida nestas paragens, indicando insistentemente a qualidade do solo dessas
áreas:
(...) Mato Grosso e o Brasil estão convocados, nesta hora, a voltar suas vistas para
Cáceres: aí se encontram 2.000.000 de hectares de terras, 1.000.000 de 1ª
qualidade, fertilíssimas e 1.000.000 de terras de 2° qualidade, mas ainda
aproveitáveis para determinadas culturas. (...) Quem demora a vista, (...), tem a
sensação, repetimos de que a Natureza reuniu ali condições destinadas a
transformar a região numa nova Terra da Promissão. (...). 07/08/1964
(...) Aos 30 minutos, o piloto chama a atenção para Mirassol. Surgiam a nossa
frente as primeiras ilhas de lavouras, pequenos sulcos abertos na mata. Eram os
paulistas da região de Mirassol, que vieram plantar em Mato Grosso uma nova
cidade. Ao centro daquele conjunto de clareiras 2.000 famílias vivem nas
proximidades. (...). 11/08/1964
(...) A notícia de que o governo está doando terra chega a todos os estados do
Brasil. E os colonos se deslocam para Cáceres, em sucessivas vagas humanas que
enchem as nossas estradas empoeiradas.
Alguém, no Espírito Santo ouve falar, recebe a notícia e pronto: parte para a nova
Canaã em busca de melhores dias de sorte.
Em 2 anos, 7.000 famílias entravam em Cáceres. Nos próximos dois quantas
entrarão.
O espírito de aventura preside aquele fenômeno. Informações vagas sobre a
qualidade da terra entusiasmam milhares de seres humanos e eles partem em
procura daquilo que poderia ser apenas uma miragem.
60
Felizmente, em Cáceres é a realidade. A grande realidade, do Presente. A grande
promessa do futuro. 13/08/1964
91
.
A matéria traduz em seu conteúdo a dimensão das propagandas que, durante
todo o período de 1950 e 1960, foram disseminadas por todo o país e fora dele.
Propagandas de cunho extremamente sedutor que promovem uma imagem do Estado
como sendo o que contem as melhores terras agricultáveis do país, fáceis de adquirir, na
intenção explicita, de induzir o maior número de pessoas a se deslocarem para suas
terras.
Ao relacionar, desde o título, as terras localizadas a sudoeste do estado de Mato
Grosso no município de Cáceres com Dourados, cidade localizada no sul do Estado, e,
em seguida designar essas terras como “Nova Canaã e Terra da Promissão” a matéria
busca fazer com que quem leia a reportagem fique convencido de que essa área de
terras, por ser similar às terras do sul do Estado, consideradas férteis, é também de
inumeráveis qualidades.
As terras localizadas no sul do Estado são, conseqüentemente, relacionas as do
sul do País. Podem ser encontrados vários anúncios de jornais que se referem à
semelhança das terras de Mato Grosso com as do Estado do Paraná. Em uma matéria
publicada em 1954, referente a enorme alienação de terras que estava se processando
em Mato Grosso, naquele período, aponta a similaridade com o Paraná. Segundo o
jornal, naquele momento, Mato Grosso atravessa uma fase de muita prosperidade: O
transbordamento que beneficiou o nome do Paraná, fluiu para a fronteira do grande
Estado, incorporando-o a economia de São Paulo (...)
92
91
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, respectivamente em 7 de AGOSTO de 1964, n°4534, p.01 e
2; 11 de AGOSTO, n° 4536, p.2; 13 de AGOSTO, n° 4538, p. 2 e 4.
92
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de janeiro de 1954, n°2358, p.01.
61
Assim, a terra fértil e de fácil aquisição está sempre nas novas frentes de
abertura, após ter passado por Dourados, no sul do Estado, a Nova Canaã, segundo a
reportagem está localizada em Cáceres. Destaca-se, especialmente a presença dos
paulistas, que segundo a matéria, vieram plantar em Mato Grosso uma nova cidade,
reforçando ainda mais a idéia de terra de futuro, de progresso.
Nas fontes pesquisadas, matérias do jornal O Estado de Mato Grosso e os
discursos oficiais das décadas de 1950 e 1960, sobre os diversos registros a respeito da
distribuição de terras devolutas no Estado, é possível detectar ainda, a preferência dada
ao colono de determinados Estados para vir ocupar as terras devolutas de Mato Grosso.
Em uma outra nota de jornal, o teor do discurso é de agradecimento pela
presença de colonos vindos do sul do país: (...) O trigo tomará grande incremento no
sul de Mato Grosso, graças a agricultores gaúchos que vem aportando a Maracajú e
outros municípios, aproveitando a gratuidade das terras (...)
93
.
A preferência pelo colono vindo de outros países, o colono estrangeiro, aparece
em outro discurso como uma atitude que proporcionaria grande ajuda para a
“colonização” do Estado:
(...) Estou em contato com a CIME, Comissão Inter Governamental de Migração
Européia, para efeito do estabelecimento de colônias de elementos de
procedência estrangeira, devidamente selecionados e materialmente amparados,
que se destinarão ao Estado,(...)
94
Com relação a este aspecto de atrair para o Estado, compradores de
determinados lugares, ou mesmo de fora do país, Lenharo em seu trabalho sobre a
colonização de Mato Grosso, especialmente durante a década de 1950, diz que: “Em
93
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 04 de novembro de 1960, n°3822, p.04.
94
ARRUDA, João Ponce de. Mensagem apresentada pelo Governador do Estado, à Assembléia
Legislativa, 1956. p.19
62
primeiro lugar, abriu-se espaço para o colono do sul, branco, de origem européia,
preferido em relação ao nacional, geralmente de origem nordestina”
95
.
Segundo este autor, para as autoridades governamentais de Mato Grosso, o
colono do sul viria para o Estado, a partir de uma experiência da colonização, com outra
idéia em relação ao trabalho agrícola e, faria da produção uma atividade realmente
lucrativa
96
.
De acordo com as fontes pesquisadas, o trabalho ordenado e voltado para a
abertura e ocupação de terras esteve estreitamente relacionado ao progresso através da
“colonização” privada. Como assinala a seguir o discurso oficial de 1956:
(...) Sem dúvida, precisamos estabelecer também o plano de colonização do
Estado e fixá-lo em bases sadias, a-fim-de não só dar a segurança devida aos que
nos procuram, como atrair os que desejam vir colaborar no nosso progresso(...)
97
O trabalho como atividade fundamental para abertura das terras aparece nos
discursos oficiais como fonte principal para se conseguir executar com presteza a tarefa
de transformação do Estado de Mato Grosso. Em outro documento, discurso oficial,
encontramos o seguinte: (...) Todo o Estado vive em calma e dedicado ao trabalho
(...)
98
. Portanto, o trabalho direcionado à abertura de terras devolutas aparece sempre
como o antídoto que salva e protege o Estado contra o atraso econômico/social. E,
segundo um discurso oficial de 1960, relativo ao ano anterior - 1959 - era grande a
procura por terras devolutas em Mato Grosso:
95
LENHARO, Alcir. op.cit., p.50
96
Ibidem.
97
ARRUDA, João Ponce de, Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 13 de junho de 1956,
p.19.
98
ARRUDA, João Ponce de. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 1958, p.28.
63
(...) A procura de terras devolutas para aquisição, por particulares, tem sido
intensa, fazendo com que o Departamento de terras seja uma das repartições mais
movimentadas do Estado (...). No ano anterior foram expedidos 1.203 títulos
provisórios, com área aproximada de 5.029.721 hectares e 768 títulos definitivos,
(...)
99
.
O relato do proprietário da área de terras de Mirassol D’Oeste destaca que a
aquisição e o loteamento dessas terras aconteceu a partir de inícios da década de 1960,
mas, desde meados da década de 1950 ele já se interessava pelas terras do Estado: (...)
eu já vinha explorando Mato Grosso desde 1955, (...) Aqui nós começamos mais ou
menos no final de 1961, início de 1962 (...)
100
.
Entretanto, mais que se ater a informação sobre o período em que o senhor Paulo
Mendonça adquiriu essa área, interessa inquietar-se sobre como ocorreu o loteamento
dessas terras. E ainda, quais critérios foram utilizados para a divulgação e revenda
desses lotes para a ocupação.
1 A criação da cidade de Mirassol D’ Oeste
O senhor Paulo Mendonça em seu relato aponta os procedimentos utilizados por
ele, para estabelecer o local onde seria instalada a cidade de Mirassol D’Oeste , e os
critérios que nortearam o loteamento e a venda dos lotes para a ocupação:
(...) quer dizer não foi programado antes, vamos colonizar, vamos comprar terra,
vamos lotear. Não, tinha que haver um apoio, então vamos marcar aqui uma
cidade,(...) eu fiz o seguinte: a cidade eu tracei, quer dizer, eu estabeleci o
99
ARRUDA, João Ponce de. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 1960, p. 27.
100
Entrevista com o senhor Paulo Mendonça, realizada em sua residência em Mirassol D’ Oeste em
dezembro de 2002.
64
tamanho dos lotes, fiz um planejamento. Eu tinha cinqüenta mil hectares de terras,
então, eu fiz em 62, aqui dentro da cidade, onde estava projetada a cidade, eu fiz
um galpão coberto da moda de índio, e aqui o pessoal fazia a parada para
procurar a terra (...) até aqui onde está o Mirassol eu consegui chegar, porque
existia a rodovia. Então eu entrava no campo. O campo é uma terra mais limpa, de
natureza mais limpa e a mata começava daqui pra lá, então aqui era o limite para
eu poder chegar a pé, aqui eu marquei o lugar de fazer o barracão.Então dava
acesso mais fácil, se eu fosse um quilômetro pra dentro eu tinha que entrar dentro
da mata. (...) O Walbert, que eu havia esquecido, (...) era cunhado do secretário da
prefeitura de Mirassol em São Paulo. O secretário da prefeitura lá era cunhado do
Walbert, quer dizer o nome Mirassol aqui é porque eu sou de Mirassol. Sou
nascido em Mirassol de São Paulo, então o nome Mirassol. Agora o Walbert era
cunhado do secretário da prefeitura, e numa conversa com o Walbert, (...) ele
falou: não “perá aí”. Ligou pro cunhado dele, “- Ô Geovaldo, traz o mapa da
cidade” lá de Mirassol. Então mandei o engenheiro copiar e botei no chão aqui,
igual se for lá em Mirassol e olhar as ruas, praça, a igreja matriz e tal, vai ver que
repete tudo aqui, (...) quer dizer, tudo imitação, ninguém quebrou a cabeça não,
(...)
101
(Cf:mapa 03em anexo)
Ao dizer que não houve nenhum planejamento para a ocupação dessa área de
terras, o relato do proprietário indica a falta de qualquer critério no loteamento das
terras que ocorriam de acordo com as conveniências dos proprietários, isto é, sem
responsabilidade alguma sobre a vida dos pequenos agricultores que se deslocavam para
as áreas de terras no Estado de Mato Grosso. Portanto, a partir da venda indiscriminada
de terras, abre-se espaço para o aleatório e a provisoriedade.
Pode-se perceber pelo relato acima que, a cidade, já vinha com um modelo
pronto, ou seja, o modelo de cidade paulista, com suas ruas traçadas, os lugares
respectivos das praças públicas, da igreja, órgão públicos, escolas. Lugares que
supostamente seriam preenchidos, mas os pequenos agricultores que chegavam se
101
Entrevista realizada, no ano de 2002 na cidade de Mirassol D’ Oeste, com o senhor Paulo, dono das
ter ras loteadas para formar a cidade.
65
deparavam com a floresta fechada e com todo tipo de adversidades, especialmente a
falta de estrada para deslocarem-se caso precisassem de qualquer auxílio médico por
exemplo. Teriam certamente que contar com a sorte e o improviso.
Os “apoios” se resumiam a lotear e demarcar o local onde seria a cidade, não se
pensava em criar condições para fixar os pequenos agricultores à terra, assim a cidade
era apenas o local de parada, com o fim de lotear. O modelo da cidade é ainda à vontade
do proprietário, o espelho é ele mesmo, ou seja, o local onde residia.
Ao referir-se sobre a aquisição dessa área de terras em Mato Grosso e porque
decidiu loteá-la, aponta que na revenda dos lotes aos pequenos agricultores, os critérios
eram os grandes proprietários, ou seja, o proprietário é o começo o meio e o fim:
(...) O interesse meu por Mato Grosso era de adquirir propriedade. De adquirir
terra em maior quantidade. Mato Grosso tinha terra muito barata, ainda tava
saindo daquela fase do devoluto para o terreno titulado, né? Então comprava
bastante terra com pouco dinheiro. Em São Paulo acontecia o inverso, a terra era
cara. Eu tinha terra lá, mas, tinha a intenção de progredir, então procurava uma
região nova, onde a terra fosse boa e mais acessível. Foi esse o motivo de eu me
transportar para o Mato Grosso. Comecei pesquisando, procurando, andando em
Diamantino, Barra do Bugres, depois é que descobri terra boa aqui, no município
de Cáceres naquela época [...] A intenção minha não era fazer loteamento, nem
imobiliária, meu negócio é criar boi, e só isso. Eu resolvi lotear porque no
primeiro ano que eu cheguei aqui, eu vim na época das águas, cheio de
ribeirãosinho aí, cheio de peixe. Eu voltei na seca só tina peixe morto, secou tudo.
Aí eu consultei um geólogo de Cuiabá, e ele falou: enquanto ta coberto de mato
segura uma aguinha, mas quando tirar a mata vai secar tudo e vai acabar. Então,
vou lotear e vender, quem tem a área pequena fura um poço, bebe água, dá água
para vaca. Agora eu vou dar água para dez mil bois? Quer dizer, aí eu comecei a
vender, o pessoal começou a abrir. (...) Então vamos marcar aqui uma cidade,
fazer um loteamento aqui de cidade. Ao redor vamos fazer de chácara. Então
vamos tirar 400 alqueires, tira 40 para a cidade, 360 em chácaras. (...) eu tinha
uma equipe de agrimensores para cortar o terreno, então o pessoal vinha aqui, a
gente andava e procurava a terra que servisse para aquele indivíduo. Ele
66
determinava a quantia, a área que ele queria adquirir e o agrimensor cortava,
então foi feito de acordo com a possibilidade do comprador, podia comprar cinco
alqueires, dez, cinqüenta, duzentos, era de acordo com a possibilidade (...) pra
vender eu tinha que trazer gente de lá, vender picadinho, pra vender fazenda, dois,
três, quatro mil alqueires já dava trabalho (...) Foi feito na época o mapa, dividi os
lotes em chácaras de um alqueire e a pessoa comprava o que podia pagar (...)
102
(Cf: mapa 02 em anexo)
Notamos que em nenhum momento houve a preocupação com o pequeno
agricultor, se não tinha água, não dava para o boi sobreviver mas dava para o pequeno
agricultor, esse “detalhe” não era levado em consideração, portanto, nenhuma
assistência, seja ela qual fosse, foi programada.
O relato do proprietário refere-se a um período 1950 a 1960 - em que não
havia um direcionamento da política de ocupação das terras do Estado, em que
predominava a lógica da venda, que durante o mesmo período foi tantas vezes
denunciada na imprensa pela falta de qualquer assistência, por mínima que fosse ao
pequeno agricultor que viesse a adquirir um lote de terras, por exemplo, a abertura de
estradas para abastecimento no centro urbano mais próximo.
Portanto, ao pequeno agricultor, que na maioria das vezes trazia para essa área
de terras em Mirassol D’Oeste o sonho de melhorar de vida, como afirmou uma
entrevistada em seu relato de memória sobre o período inicial de ocupação dessas terras:
Se for terra que dá futuro, segura um pedaço pra mim (...)
103
, tornava-se imperioso
produzir suas próprias condições de enfrentamento, não somente do trabalho da abertura
das novas terras, como também coragem e astúcia para sobreviver num lugar onde só se
podia contar com o improviso.
102
Entrevista realizada, no ano de 2002 na cidade de Mirassol D’ Oeste, com o senhor Paulo, dono das
terras loteadas para formar a cidade.
103
Entrevista realizada com Dona Preta, na cidade de Mirassol D’ Oeste, em 2000.
67
CAPÍTULO II
RELATOS FEMININOS NA ABERTURA DE TERRAS EM
MIRASSOL D’OESTE
68
Os relatos de memória que fazem parte deste capítulo são de pessoas que
moravam/viviam em algumas localidades do interior do Estado de São Paulo, tais como:
Populina, Nova Granada, Prudente de Morais, Palmeira D’Oeste, entre outras. Essas
pessoas tinham uma experiência de vida no meio rural. Com a exceção (no caso deste
estudo) do senhor Ivo, um pequeno proprietário, todos os outros eram arrendatários, que
pagavam pela terra explorada uma certa porcentagem em espécie sobre a produção
agrícola obtida.
Dentre as narrativas privilegiadas, os relatos femininos ganham maior expressão,
pois, apresentam uma leitura do momento da ocupação das novas áreas. São relatos
ricos e reveladores de uma experiência de abertura de terras, na qual as mulheres
focalizadas têm uma participação ativa fundamental. Elas garantem a vida na “nova
moradia”
104
, trabalham na roça, cuidando dos filhos, algumas atendem como parteiras,
na maioria das vezes, pressionam os corretores de terras e participam do mercado ao
comercializar alguns produtos caseiros e até mesmo excedentes da produção agrícola.
Por outro lado, a memória que as mulheres guardam dos tempos da chegada é
pontilhada por lembranças minuciosas, revelando detalhes expressivos do cotidiano de
trabalho e da vida familiar.
Além disso, demonstram, o que nos lembra as palavras de Magareth Rago: “(...)
uma enorme habilidade para guardar os objetos pessoais, conservar e transmitir as
histórias vividas, individuais e coletivas, do grupo, da família, da região (...)”
105
. Em
especial, os relatos das mulheres que participaram do momento da abertura das terras de
104
Sempre que utilizarmos o termo “nova moradia”, estaremos nos referindo a área de terras onde hoje
está localizado o município de Mirassol D’ Oeste MT, pois, para essas mulheres e homens que se
deslocaram do interior do estado de São Paulo, naquele momento, início da década de 1960, essa área de
terras se apresentava para eles (elas) como um novo lugar onde muitos nem chegaram a visitar antes de
adquirir seus lotes de terras e estabelecerem-se.
105
RAGO, Margareth. op.cit., p.20.
69
Mirassol D’Oeste apresentam suas experiências com enorme desenvoltura, que lhes
permite tramitar entre os mundos distintos da casa e do trabalho.
Assim, os relatos femininos apresentados permitem desvelar, desnaturalizar e
desconstruir um quadro único e homogêneo da vinda dessas pessoas, de suas vivências
no “novo lugar”. Questionamos as evidências de que todos que se dirigiram para
Mirassol D’Oeste, estavam interessados exclusivamente em ficar “ricos”. Esta é a forma
de reproduzir os discursos oficiais, as mensagens de governadores das décadas de 1950
e 1960 e, ainda, as propagandas de jornais, em torno das terras devolutas de Mato
Grosso, como assinalamos no primeiro capítulo. Desse modo, a narrativa de histórias de
vida, a partir dos relatos orais daqueles que participaram dos tempos iniciais da
ocupação, permite conhecer os múltiplos significados do lugar, pois “as experiências
entrelaçam-se e constituem, desse modo, a matéria da memória (...)”
106
.
No entanto, não é o caso de anularmos a influência que o desejo pela terra
exerceu sobre este deslocamento dos grupos sociais. De uma maneira ou de outra, ora
para aumentar a propriedade por causa do tamanho da família, ora pela situação de
dificuldade e exploração de seu trabalho. Outras vezes, com o intuito de enriquecer. O
que não se deve permitir é a generalização dos motivos do deslocamento, porque
entendemos que desta forma homogeneizar-se-ão também as pessoas, desqualificando a
multiplicidade de suas experiências e a capacidade de criação e de escolha, pois, se
Mirassol D’Oeste oferecia chances de enriquecimento, outros locais do Estado que
estavam sendo retalhados, também as oferecia
107
.
Este capítulo objetiva apreender nos relatos de memória, as práticas sociais e
perceber as histórias de vida diferenciadas umas das outras, mas que possuem em
comum o fato de terem escolhido se deslocarem para a área de Mirassol D’Oeste, e que
106
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. op.cit., 2000, p.113.
107
Sobre as várias localidades do estado de Mato Grosso que estavam sendo postas à venda para
ocupação, ver o primeiro capítulo deste trabalho.
70
através de suas experiências cotidianas, produzem, inventam meios e condições de se
instalarem e permanecerem nesta terra onde se localiza Mirassol D’Oeste. A memória
enquanto construção social é seletiva e remete à vivência.
Estas memórias contadas através do relato oral, (...) organizam as caminhadas.
Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam
108
. Como que numa viagem aos
tempos iniciais da ocupação dessa área, as lembranças e recordações são reconstruídas e
transportadas pelos caminhos labirínticos da memória que ressignifica as experiências
vivenciadas naqueles tempos iniciais de ocupação. Dessa forma cada relato de memória
expressa uma leitura própria das experiências vividas naqueles tempos, individuais e
coletivas, mas apresentadas através da leitura de cada narrador.
1 - A EXPERIÊNCIA NO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO
Dona Preta
109
, veio de Populina, uma cidade pequena do interior de São Paulo.
Segundo seu relato, chegou em abril de 1960. Sua interpretação oferece a uma leitura de
como era visto o local que escolheu, juntamente com sua família, para morar no Estado
de Mato Grosso:
(...) Aqui era puro campo (...) tudo coberto de mato, e onça esturrando naquele pé
de serra que nem dois marrucos querendo brigar. Meus meninos quase morriam
de medo (...). Aqui era puro campo, ninguém, ninguém, ninguém morando (...). Os
povos de lá falavam: vocês vão ser comida das onças, diz que lá tem onça demais
108
CERTEAU, Michel de. op.cit., p. 200.
109
Dona Preta morava em Populina, uma cidade do interior do Estado de São Paulo e deslocou-se para a
área de terras de Mirassol D’ Oeste no início da década de 1960. A entrevista com dona Preta foi
realizada em sua residência localizada em Mirassol D’ Oeste, no mês de outubro de 2000.
71
(...). O patrão, você está ficando doida de ir para lá, vocês vão ser comida das
onças...
110
.
Ao lembrar-se das palavras do patrão dizendo que em Mato Grosso havia muita
onça e que eles seriam devorados por elas, dona Preta dá a conhecer qual representação,
naquele momento, para ela e para os que moravam no Estado de São Paulo, possuía esse
“novo lugar”, ou seja, para aquelas pessoas a ausência do que se acostumaram a ver e
conviver, como a não existência de construções tal qual se conhecia, ou a exuberância
da natureza vista como hostil, tinham significado de um “mundo desconhecido” e
inóspito, como é expresso na fala de dona Preta: (...) é Mirassol! Isso aqui era muito
feio, nem tinha casa (...). Mirassol isso aqui que você está vendo não existia (...)
111
.
Nesse sentido, seu relato aponta não só para a leitura que esses grupos sociais faziam
sobre a área de terras onde estavam decididos a estabelecer-se, mas também emite sinais
de que essas pessoas ao se deslocarem para essa área traziam um modelo construído
sobre o que significava o inverso de sertão: a cidade em que viviam.
Assim como dona Preta, o senhor Ivo traz em seu relato sobre a chegada nas
terras de Mirassol D’Oeste a sua leitura sobre esse lugar. O Senhor Ivo chegou em
Mirassol D’Oeste no mês de julho de 1963. Segundo ele, o lugar era “sertão”. Este
senhor morava em Palmeira D’Oeste, uma cidadezinha do interior do Estado de São
Paulo: Naquele tempo que nós viemos para cá era mato, sertão, (...).
112
Notamos nos relatos acima, que o que mais emitia sinais do lugar como sertão,
nas suas leituras, tanto de dona Preta como o senhor Ivo, era sem dúvida a exuberância
da natureza e a presença de animais selvagens, como a onça. Este animal condensava ou
110
Entrevista realizada em outubro de 2000 com Dona Preta, em sua residência, em Mirassol D’ Oeste.
111
Idem.
112
Entrevista realizada em setembro de 2000 com o Senhor Ivo, em sua residência localizada em Mirassol
D’ Oeste.
72
expressava a imagem do sertão, a idéia da vida selvagem, da ameaça, do medo. Medo
do desconhecido, do diferente.
Contudo, maior e mais forte que esse medo da vida selvagem, era a ameaça que
sofriam da fragmentação da família, da expropriação da terra e exploração de seu
trabalho somados à inquietude da provisoriedade das situações. Isso tudo, resultava no
desejo de traçar um outro caminho, construir uma nova direção para o futuro e inverter
o curso de suas vidas.
Para tanto, iriam à procura do que acreditavam ter o poder de ampará-los, a terra,
pois já possuíam experiência do trabalho agrícola. Para essas pessoas, este “novo” que,
nessa representação imaginária de “lugar inóspito”, de “sertão”, lhes possibilitaria
adquirir o seu lote de terras e manter a unidade familiar.
Este lugar representava a antítese do antigo lugar, alguma coisa da qual não se
possuía conhecimento, nem domínio, um lugar que não era o seu, (o “não-lugar”), mas,
que se dispuseram ali, neste “outro” lugar criar, produzir, inventar maneiras de agir
“dentro do campo de visão do inimigo”
113
. Essas pessoas que não se contentaram em
manter-se imobilizadas perante as dificuldades da vida e se dispuseram sair à procura de
novas possibilidades, vão, perante o “outro”, estar onde muitos não conseguiriam nem
imaginar, o lugar do medo, “vão estar onde ninguém espera (...)”
114
. Nos fluxos dos
deslocamentos sociais, as populações pobres produzem uma coragem própria de quem
não se permite ficar imóvel diante da exploração cotidiana de seu trabalho, e partem,
deslocam-se para as áreas onde acreditam terem a possibilidade de um futuro melhor,
mesmo que esse lugar, tenha representação em seu imaginário, de hostilidade.
Homens e mulheres que se deslocaram para as terras da área de Mirassol
D’Oeste estão à procura de “novas possibilidades de vida”, mas também, esperam que,
113
CERTEAU, Michel de. op.cit., p.101.
114
Ibidem. p. 100-101.
73
naquela área, possam manter sua família unida, sem a ameaça de fragmentação da terra,
para manterem a produção familiar.
Para o senhor Ivo, um pequeno proprietário, o trabalho, a falta de condições em
manter produtivamente a pequena propriedade deixada no interior do Estado de São
Paulo, foi o que representou uma ameaça a continuidade da unidade familiar, como bem
expressa em seu relato abaixo:
(...) A família era grande. Tinha nove filhos, mais nós dois. Eu e a mulher, então,
era família grande. [...] Tinha uma porção de filhos né. Então falei, quando
crescer, lá vai todos trabalhar. Meus filhos eram tudo pequeno.[...] Eu tinha
cinco alqueires e uma venda. Depois troquei a venda por mais dez alqueires, aí
ficou quinze. Mas não cabia o pessoal meu tudo, então falei, vou pra lá. Vou
pegar um pedaço de terra maior, pra criar tudo lá, a família. (...)
115
.
O senhor Ivo preocupava-se em adquirir uma área de terras maior, já que sua
família era grande e corria risco de fragmentação futuramente por não comportar todos
os membros na mesma propriedade, mas como já foi assinalado, a maioria dos relatos
de memória é de pessoas que eram arrendatárias no interior do Estado de São Paulo,
como é o caso de dona Preta, que morava em Populina.
Lá em São Paulo, trabalhava como arrendatária, era viúva e mãe de três filhos.
Dona Preta tem uma outra experiência de vida, que se diferencia do Senhor Ivo. Ela não
possuía, no Estado de São Paulo, propriedade rural, e nem uma família numerosa como
a do senhor Ivo, mas, segundo seu relato, tinha uma vivência, traduzida por ela, de
sofrimento e exploração de seu trabalho:
115
Entrevista com senhor Ivo.
74
(...) Meu marido bebeu veneno, tava de dieta do mais novo e tive que sair numa
chuva pra ir buscar ele no meio de uns mato, umas maloca, que já tinha bebido
porque tava com o bigode branquinho de veneno. Fui eu e a minha comadre. Olha
aquela mulher era mais que uma mãe para mim. Nunca mais foi bom, tava com
uns 8 meses ele faleceu. Olha eu sou mãe de 7 mas meu mesmo são 3, eu vim pra
cá com 3 filhos, o mais velho tava com 8 anos, o do meio com 5 e o caçula tava
com 4. Lá dava renda para o fazendeiro, não me perdoava uma espiga de milho,
nem viúva ele me perdoava (...) Eu quebrava os milhos e montoava, só via ele na
hora que ia lá receber, ele ia mas se sobrasse cinco espigas ele tirava a renda[...]
no fim não queria que eu saísse, A mulher que mais me dá renda aqui no sítio é a
senhora, eu falei agora eu vou embora, porque o senhor não perdoa um meio saco
de arroz, uns dez litros de feijão o senhor tem coragem de medir os litros para
tirar a renda, isso é patrão? Uma mulher com três filhos para criar! (...)
116
.
Nesta situação, dona Preta, uma mulher sem escolaridade, trabalhando direto na
propriedade rural, questionava a sua relação com o patrão. Morava no “sítio”, em São
Paulo, provavelmente uma fazenda, mas não era a única moradora do local. O “sítio”
certamente comportava outros empregados, um exemplo disso é a comadre que ela
menciona em seu relato.
Isso nos leva a pensar que as informações sobre o que estava acontecendo no
país chegavam até ela através dos que freqüentavam a cidade, ou, quando dona Preta se
deslocava até o meio urbano para fazer suas compras, e, com os demais moradores da
propriedade, acabava trocando informações. Ainda podemos pensar nos encontros
religiosos, nos dias de rezas dos terços, para celebrar algum santo, prática bastante
comum nas fazendas em que várias pessoas moravam.
Nos chamados “terços”, que reuniam os moradores, em geral para comemorar o
dia de algum santo, era uma prática comum a esses eventos, a reunião depois da reza,
para conversas e troca de informações. Montenegro, fala do sentido dessas conversas e
116
Entrevista realizada com dona Preta, 2000.
75
da importância desses terços para a troca de experiências, segundo este autor: “O ato de
conversar era o próprio meio de construir uma outra compreensão da história, (...)”
117
. É
nesse sentido que se pode pensar que dona Preta obteve o conhecimento, através das
trocas de experiências ocorridas nesses encontros, com os moradores da cidade como
nos dias de rezas, sobre as discussões políticas que ocorriam no país.
Quando dona Preta enfatiza o tratamento que o patrão dispensava a uma mulher
viúva com três filhos para criar, está se referindo a uma condição de trabalho que para
uma mulher sozinha, sem lote rural, não havia muita opção de escolha a não ser
submeter-se aos desmandos do patrão, “rompendo os rótulos e representações acerca do
trabalho masculino/trabalho pesado e feminino/trabalho leve”
118
. Não havia aí, portanto,
diferença entre homem e mulher, importando apenas o lucro e a exploração do trabalho.
Dona Preta também acaba tocando, indiretamente, em outro ponto sobre a
categoria de trabalhador designado como, arrendatário: aquele que repassa uma parcela
do que colheu da lavoura para o dono da terra explorada e que não tem segurança
trabalhista alguma, sendo obrigado a pagar a renda de toda a produção agrícola
resultante de seu trabalho.
Deste modo, ao questionar o tratamento que o patrão dispensava a ela,
mostrando que tinha conhecimento, ao menos parcialmente, do que estava ocorrendo
politicamente no país, seu relato traz à tona uma leitura sobre o início dos anos de 1960.
Como já foi assinalado no primeiro capítulo, de acordo com alguns autores que
trazem uma análise sobre o período
119
, os primeiros anos da década de 1960 são
117
MONTENEGRO, Antonio Torres. Op. cit., 1994, p.62
118
STADNIKY, Hilda Pívaro. Os discursos fundantes das diferenças de gênero: representações do
trabalho no cotidiano no processo de colonização do Norte Novo de Maringá. In: htp://www.
alast.org/PDF/Benencia/MyTR-Stadniky-PDF.
119
Cf: CAMARGO, Aspásia de Alcântara. op.cit. RODRIGUES, Leôncio Martins.op.cit.. Ver também:
DREIFUS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe. 5ª
edição, RJ: VOZES, 1987.
76
conturbados politicamente, pois é o momento em que ocorre uma aproximação
significativa entre os sindicatos trabalhistas e o governo
120
, decorrente de várias
reivindicações tais como: estender as leis trabalhistas urbanas ao campo, mudanças em
relação aos contratos de arrendamentos rurais
121
, proposta de reforma agrária, entre
outras. Entretanto, esse início da década de 1960 retrata não só as relações políticas
entre governo e sindicatos trabalhistas, mas também as condições a que estavam
expostos os trabalhadores, especialmente do meio rural.
Ainda sobre o período inicial da década de 1960, o proprietário da área de terras
onde está localizada a cidade de Mirassol D’Oeste e as terras loteadas, afirma que:
(...) houve naquela época, mais ou menos 1960 e poucos, um interesse grande de
quem tinha fazenda em São Paulo, fazendas muito grande, que o pessoal
desocupasse. De medo, naquela época tomava posse o João Goulart, ameaçando
uma reforma agrária. Então, muitos pequenos lavradores receberam incentivo do
patrão, receberam indenização, dinheiro, recebeu ajuda para adquirir terra longe,
(...)
122
.
Ao aludir sobre o início da década de 1960 e a ameaça de uma reforma agrária
por parte do governo de João Goulart, o relato acima do senhor Paulo Mendonça refere-
se a um período conturbado politicamente, em que não só, mas especialmente os
grandes proprietários de terra posicionavam-se contrariamente às propostas políticas do
então governo. Segundo Camargo:
(...) Havia sem dúvida, o incontrolável temor de ver ingressar na cena política
camadas sociais constituídas em “clientelas políticas” que pudessem ser
enquadradas, tal como o fora a classe operária com Getúlio Vargas. Tais temores
120
RODRIGUES, Leôncio Martins. op.cit., p.550.
121
CAMARGO, Aspásia de Alcântara. op.cit., p. 195.
122
Entrevista com o proprietário das terras loteadas em Mirassol D’ Oeste, em sua residência, situada na
mesma cidade, em dezembro 2002.
77
eram, sem dúvida, realimentados pela acelerada eclosão de conflitos rurais, que
cada vez mais se orientavam para a ocupação de terras. (...) Como no governo
Jânio Quadros, a reação dos proprietários não tarda. (...), a reação das
associações rurais chega a seu ápice, estendendo-se por municípios do interior, e
culminando com uma concentração de 1500 entidades em Brasília, (...). Em São
Paulo, núcleos de proprietários, espalhados pelo Estado, rapidamente se
organizam, e além da ofensiva mineira, também no Estado do Rio e em Goiás os
protestos aguçam a crise. (...)
123
.
Entretanto, segundo o que aponta o relato do senhor Paulo Mendonça, além das
ofensivas direcionadas contra o Governo, pelos grandes proprietários rurais, foram
tomadas também providências tais como os acertos que eram efetuados em dinheiro,
traduzidos por ele como indenização ou ajuda.
Interessa-nos apreender o significado desses incentivos que, segundo o senhor
Paulo, foram destinados, supostamente, às pessoas do lugar onde ele residia e para as
quais divulgou suas terras. Em momento algum os entrevistados fizeram, em seus
relatos, qualquer menção aos incentivos. O que as pessoas trazem em seus relatos de
memória são sinais de uma vivência de exploração social em que a luta para manter a
sobrevivência de suas famílias enquadrava -se em uma rotina cotidiana de muito
trabalho.
Com exceção do senhor Ivo, como já foi mencionado no início deste capítulo,
todos os outros entrevistados eram arrendatários nas terras de fazendeiros, em geral no
interior do Estado de São Paulo. A experiência do arrendamento se configura para essas
pessoas como uma experiência carregada de significados negativos e que esses homens
e mulheres não estavam dispostos a continuar vivenciando.
123
Cf: CAMARGO, Aspásia de Alcântara. op.cit.
78
Ao falar de sua experiência na cidade de Nova Granada, no Estado de São Paulo,
Dona Leonilda
124
apresenta os motivos pelos quais ela e sua família se dispuseram a
mudar de onde moravam, para Mato Grosso. Ela narra que depois de certo tempo
tiveram que vender a propriedade em Mirassol D’Oeste por motivos familiares, e
evidência o que representava, especialmente, para seu companheiro, ser arrendatário.
(...) Eu sou de Nova Granada, lá no estado de São Paulo. Vim casada. Lá nós
trabalhava de arrendatário, plantava roça e pagava vinte por cento para o
fazendeiro. Arroz, por exemplo, você colhia cem sacos e pagava vinte para o dono
da terra. (...) Eu nunca tive vontade de voltar, sabe por quê? Porque lá era muito
difícil, lá só produzia se pudesse plantar com maquinaria. (...). Moramos dez anos
no nosso sítio aqui, então meu cunhado casou, e veio para cidade. E meu velho
para evitar confusão resolveu vender o sítio nosso que era junto com ele. (...) Aí
meu velho disse que não iria morar no sítio de ninguém, de tanto que ele sofreu lá
em São Paulo, não iria ser mais humilhado por ninguém. (...)
125
.
A sensação de humilhação que o companheiro de dona Leonilda sentia com
relação aos tempos em que trabalhava como arrendatário, retrata um sentimento comum
que aflora em quase todos os relatos de memória. Esse sentimento expressa a angústia e
a tristeza que essas pessoas sentiam ao ver parte do produto de seu trabalho ser levado
pelo proprietário sem lhes conferir nenhum pagamento, pois, geralmente o dono das
terras arrendadas lhes procurava somente para receber a parte da colheita que lhe cabia,
como retrata dona Preta: (...) Só via ele na hora que ia lá receber.
Com relação à lembrança dos tempos em que trabalhavam como arrendatários,
os relatos apontam para uma sensação que vem à memória com a força de uma
experiência que é vivenciada em comum. Experiência esta com que desejavam romper,
124
Moradora da cidade de Mirassol D’ Oeste, entrevistada em sua residência no mês de outubro de 2002.
Dona Leonilda morava em Nova Granada no estado de São Paulo, chegou nessa área de terras em maio
de 1963.
125
Ibidem.
79
e que ao relembrarem expressa um modo de ver e estar no mundo, ou seja, “registra um
modo de freqüentar o mundo”
126
.
Esses relatos orais nos mostram que uma das razões pelas quais essas pessoas
deslocaram-se para Mirassol D’Oeste foi a esperança de manter a unidade familiar,
como destaca a seguir o relato de dona Preta. Ela, em uma das passagens de seu
depoimento, menciona as dificuldades que segundo sua leitura, enfrentava no interior de
São Paulo onde residia e uma rotina cotidiana que certa vez, acarretou em ameaça à vida
de seus filhos:
(...) Não te conto também que outra vez, quando eu morava lá em São Paulo, lá
perto de Jales, tinha uns moleques de escola, não jogaram uma bomba acesa no
meu rancho? Meu rancho era de sapé, mês de junho e queimou criatura (...)
chamei a vizinha para ver, queimou uma roda assim e caiu aquele borrão.
Acredita que eu cheguei da roça que eu olhava para aquele buraco lá, de tanta
alegria eu chorei, meus filhos preso, amarrado dentro de casa (...) na véspera de
eu vir embora. Eles ficavam tudo preso dentro de casa, na roça não tinha um
barraco para mim pôr eles (...) então eu furei a porta com arco de pua e eu
passava a corda por dentro naquele buraco e amarrava. A casa era feita de
coqueiro, coberta de sapé e, eu pegava e amarrava do lado de fora para eles não
saírem para fora, ficava o dia inteiro (...) só que eu não deixava fogo de jeito
nenhum, quando era meio dia eu vinha dar de mamar para os meninos, o caçula
dava o peito, e graças a Deus criei os meus filhos, dava um banho neles, enchia
bem a barriga deles e tornava amarrar eles aí só 6 horas, quando as luzes de
Populina acendia. Populina ficava no alto, que eu via as luzes que acendia, aí eu
dizia: agora é hora de eu ir embora (...)
127
.
O relato acima apresenta-nos uma certa rotina que retrata uma situação de
pobreza, de condições subumanas de trabalho, as quais dona Preta enfrentava
diariamente. Olhar para esse evento da atitude dos moleques em atearem uma “bomba”
126
GROSSI, Yonne de S.,& FERREIRA, Amauri C. Razão narrativa: significado e memória, 2001, p.31.
127
Entrevista com Dona Preta.
80
(fogo) no seu “rancho” não se resume a típica travessura de criança, mas sim, perceber a
condição de desamparo, que homens e mulheres, assim como ela, vivenciavam.
Somada a essa situação, havia ainda o cotidiano de trabalho que começava ao
amanhecer e se estendia até a hora em que as luzes da cidade se acendiam, isto é, ao
anoitecer. Essa rotina lhe retirava a convivência com os filhos, que ficavam expostos a
situações perigosas ao ficarem presos dentro de casa.
As situações vivenciadas por dona Preta, no Estado de São Paulo, e as
estratégias por ela produzidas, para não se abater perante as penúrias que lhes eram
apresentadas, bem como a decisão de deslocar-se para Mirassol D’Oeste, apontam para
uma postura de combate e luta na tentativa de proporcionar aos filhos um futuro que
certamente, para ela significava mantê-los juntos.
Um bom exemplo sobre a ação das mulheres pode ser apreendido no relato de
memória de dona Isabel. Ela morava com sua família em Prudente de Morais, no
interior do Estado de São Paulo e segundo ela, mudou-se juntamente com sua família,
para a área de terras de Mirassol D’Oeste no ano de 1962. Também ela se preocupava
com o futuro dos filhos, queria trabalhar no que era dela, deixar alguma coisa para os
filhos e não estava disposta a continuar pagando renda para o fazendeiro:
(...) Meu marido não queria vir de jeito nenhum, falava: eu não vou comprar terra
em Mato Grosso. Aí eu disse: vamos fazer um trato, você compra e eu vou com um
tanto de filho e você fica com um pouco aí. Mas eu vou, se Deus quiser. Por que
tenho que trabalhar toda a vida pros outros? Eu trabalhava na roça, (...) eu tenho
meus filhos aqui, e sem ter nada, nós precisamos de ter um lugarzinho para morar.
Eu pensei: se quer saber de uma coisa, eu vou fazer o negócio. Por que toda a vida
dando barrigada para os outros? E ele não trabalhava, era doente, quem mais
trabalhava era eu. Tocava aquele mundão de roça que você precisava ver, tocava
dez, quinze alqueires de roça. Tem muita gente aqui que tudo sabe que eu tocava
com pião. (...) Plantava arroz, algodão, e era renda né. Tinha que pagar renda.
(...) Só não vim antes por causa do meu pai que era doente e não queria que eu
81
viesse, aí um dia eu falei: pai, o senhor fala pra esperar e tal, mas o senhor pensa,
(...) eu quero formar pros meus filhos, eu vou abrir lá,se não der certo a gente
volta, (...) ele conformou. Conformou que eu precisava ter meu pedacinho de chão,
(...) eu vou morrer e deixar para os meus filhos, por que senão eu vou criar esses
filhos tudo sem ter nada? Eu sou mãe de dez filhos.(...) Aqui nós sofreu, mas nós
sofremos tanto, mas eu não tinha vontade de vender para ir embora. É mais fácil
no que é da gente, e lá eu trabalhava, trabalhava e só pagava renda né (...)
128
.
O relato de dona Isabel, assim como o de dona Preta, expressa uma linguagem
de combate, de mulheres que conhecem bem as asperezas de quem tem a “missão” de
educar, cuidar e proteger os filhos, e ao mesmo tempo percorrer a dura jornada de
trabalho com a terra para propiciar o sustento de suas famílias, pois, de acordo com
Stadniky: “(...) A possibilidade de combinar atividade econômica e trabalho caseiro é
muito maior no campo onde o lugar de trabalho e de moradia freqüentemente
coincide”
129
. Nesse sentido, essas mulheres vão estar criando, produzindo estratégias
diferenciadas de enfrentamento e sobrevivência na abertura das novas terras em
Mirassol D’Oeste.
As dificuldades da vida no interior do Estado de São Paulo são relembradas nos
relatos de memória por todos os entrevistados. Dificuldades, na maioria das vezes
ameaçadoras, como as que dona Preta contou em seu relato: a rotina de trabalho, a renda
que tinha que ser dada ao patrão e, especialmente a ameaça à vida dos filhos.
O senhor João em seu relato dá a dimensão dos problemas que ele e sua família
enfrentavam anteriormente. Ao relembrar os primeiros tempos em Mirassol D’Oeste,
fala dos obstáculos enfrentados nas novas terras, mas afirma não ter sentido em nenhum
momento, vontade de voltar para a antiga morada e, em poucas palavras traduz o porquê
128
Entrevista com dona Izabel em sua residência na cidade de Mirassol D’ Oeste, realizada no mês de
novembro de 2002.
129
STADNIKY, Hilda Pívaro. op.cit.
82
desse não querer: (...) nós nunca pensamos em voltar (...), porque lá nós passava
necessidade do que comer(...)
130
.
O senhor João residia em Populina, São Paulo. Junto com sua família trabalhava
como arrendatário. Ao afirmar que nunca pensou em voltar para o Estado de São Paulo
porque lá não tinham com o que se alimentar adequadamente, quer nos fazer crer que a
atitude do deslocamento para as terras de Mato Grosso teve como único motivo as
privações que passavam e não o desejo de adquirir uma propriedade rural. Nesse
sentido, talvez, seu relato expresse a intenção de que ele e seus familiares, ao decidirem
deslocar-se para Mato Grosso, estavam tentando romper com uma sofrida vivência, por
esse motivo são pessoas de ação.
Esses grupos sociais que em sua maioria eram arrendatários no interior do
Estado de São Paulo, ao deslocarem-se para Mato Grosso, percorreram um trajeto que,
para essas pessoas, não é medido em distância geográfica, mas sim em temporalidade,
ou seja, nos relatos de memória, sem exceções, não foi mencionada a quilometragem
entre os locais onde residiam e Mirassol D’Oeste. O que os relatos anunciam é o
período de tempo em que passavam na estrada desde a saída até o momento da chegada.
De acordo com as falas, as viagens duravam cinco, seis, até sete dias. As
famílias e seus pertences eram transportados em caminhões. Muitas dessas famílias não
eram as únicas a viajarem no mesmo caminhão, até cinco famílias eram transportadas
num mesmo veículo. Portanto, o período vivenciado na estrada aparece nos relatos de
memória dessas mulheres e homens que se deslocaram para Mirassol D’Oeste, como a
força de uma experiência ímpar e múltipla ao mesmo tempo.
130
O senhor João residia em Populina, no estado de São Paulo. Ele e sua família trabalhavam como
arrendatários. Mudaram-se para a área de terras de Mirassol D’Oeste no ano de 1966. A entrevista com o
senhor João ocorreu em sua residência, em Mirassol D’ Oeste, no mês de outubro de 2000.
83
2- O TEMPO DAS ESTRADAS: EU LEVO OS ILUDIDOS E TRAGO OS
ARREPENDIDOS
A viagem e o deslocamento são relembrados e recontados nos relatos de
memória como uma experiência rica em expectativas quanto ao rumo que tomaria suas
vidas. A viagem, segundo Matos, “(...) é “mudança de lugar”, é deslocamento entre
“lugares distantes” com o que se insinua a ação do tempo constituído de (...)
descontinuidades. (...)”
131
. Nesse sentido, o tempo da viagem constituía-se, para esses
grupos sociais, como um hiato entre a vivência no Estado de São Paulo e a perspectiva
de uma nova vida no sudoeste de Mato Grosso, em Mirassol D’Oeste. No entanto,
muitos não conseguiam estabelecer-se e faziam a viagem de retorno a São Paulo ou,
para outras localidades.
Dona Isabel mudou-se para Mirassol D’Oeste em 1962. Ela e sua família
moravam em Prudente de Morais, interior de São Paulo.
Seu relato sobre a viagem aponta vestígios sobre o fluxo de pessoas que se
deslocavam para esta localidade, bem como da mobilidade inversa, ou seja, mudanças
que chegavam e partiam freqüentemente:
(...) Naquela época vinha até de cinco mudanças em um caminhão só. (...) vinha
vários caminhões, não era só esse. Ficava caro, então juntava e trazia o básico.
Agora o nosso veio só a nossa mesmo, só nossa família. Aí, a frase do caminhão
falava assim: Eu levo os iludidos e trago os arrependidos. Então, voltava muita
gente. Então aquele caminhão estava marcado; Eu levo os iludidos e trago os
arrependidos (...)
132
.
131
MATOS, Olgaria. A narrativa: metáfora e liberdade In:.São Paulo: História Oral- Revista da
Associação Brasileira de História Oral, v4,n4, jun-2001, p. 17.
132
Entrevista realizada com dona Leonilda, moradora da cidade de Mirassol D’Oeste, no ano de 2002 em
sua residência.
84
O caminhão estava marcado para ser o encarregado de transportar as ilusões, ou
os sonhos dos que acreditavam na possibilidade de se instalarem e reproduzirem ali
naquele lugar seus projetos de vida, como também levar de volta o impacto causado
com o novo lugar, a certeza de que seus sonhos e projetos não seriam possíveis ali.
Essas pessoas, se retornassem para suas antigas moradas, enfrentariam o longo caminho
de volta, deixando para trás os sonhos não realizados, os projetos não efetuados.
Nesse sentido, as palavras do caminhão significavam mais que uma simples
frase. Indicavam que a situação que os aguardava não era simples nem passível de se
prever. O caminho a ser percorrido era longo, cansativo e dispendioso.
Essas pessoas não possuíam outro meio de transporte, e geralmente
acomodavam-se juntamente com sua família em meio a seus pertences no caminhão de
viagem. O senhor Ivo relembra com clareza o tempo que durou o deslocamento e quais
as estratégias pensadas para driblar o tempo na estrada:
(...) Nós chegamos em vinte e nove de julho de sessenta e três. Viemos de
caminhão. Gastamos cinco dias. (...), foi assim: o motorista era rápido, bom , esse
menino tinha três meses. Minha irmã falou: Olha você precisa ter paciência com
esse menino, porque ele não mama na mãe, só na mamadeira e vai precisar parar
na estrada. Eu falei que levasse as panelas no jeito e quando chegar a hora de
parar pára almoçar, nos para, faz o almoço e almoça. Preparava o almoço na
beira da estrada. A mulher fez um saco de pão, sabe, esses sacos de plástico? E a
fritada põe na gordura, né? E aí então o arroz era fácil, fazia a carne, lingüiça e
leite ninho trouxemos duas ou três caixas (...)
133
.
As fritadas a que o senhor Ivo se refere eram bastante comuns em tempos, ou
situações, em que não era possível refrigerar os alimentos. Essa prática constituía-se no
cozimento e fritura da carne e no armazenamento desta em recipientes que geralmente
133
Entrevista realizada com o senhor Ivo, em 2000, em Mirassol D’Oeste.
85
eram preenchidos de banha de suínos. Isso impedia que o alimento aí retido,
particularmente, a carne, viesse a se deteriorar, tornando-se impróprio para o consumo
humano. Uma outra estratégia utilizada para driblar o tempo na estrada, apresentada na
fala do senhor Ivo, é o transporte, juntamente com seus objetos, de utensílios
domésticos e de alimentos não perecíveis como o arroz e o leite em pó que permitia que
em momentos específicos, à hora do almoço ou às mamadas dos filhos, por exemplo,
fosse possível preparar a refeição.
O relato do senhor Ivo dá sinais de que ele e sua família possuíam certa
disponibilidade financeira, mas é preciso indagar se as outras pessoas que se deslocaram
para essa área tinham o mesmo preparo financeiro que ele.
Dona Leonilda em seu relato sobre a viagem dá indicativos de que as pessoas
que se deslocavam para Mirassol D’Oeste, especialmente no início da década de 1960,
vinham geralmente com pouca ou sem nenhuma base financeira:
(...) O caminhão foi pegando, pegou a nossa primeiro, que a nossa era mais longe,
os outros moravam tudo na fazenda dos Junqueira. (...) nós gastamos, na verdade
sete dias para chegar. Nós viemos em cinco mudanças. Cinco famílias num
caminhão só, com criança e tudo. (...) teve muita gente que voltou, (...). nós viemos
trazidos mesmo, pegamos beira. (...) nós chegamos em três de março de 1963
(...)
134
.
O fato de se aglomerarem em cinco famílias em um só caminhão e de a família
de dona Leonilda ter “pegado beira” indica a falta de recursos financeiros das pessoas
que estavam se deslocando para Mirassol D’Oeste em busca do que dona Isabel falou,
um pedaço de chão. Especialmente chama a atenção às estratégias utilizadas por essas
134
Cf: Entrevista com dona Leonilda.
86
pessoas para driblarem a situação de desvantagem financeira em que se encontravam,
tornando assim a viagem possível de acontecer.
A situação vivida no Estado de São Paulo, a família numerosa e o desejo de ter
sua própria propriedade, por si só não dão conta de responder por que essas pessoas
escolheram Mirassol D’Oeste para morar. Para tanto é preciso inquirir sobre o que
despertou, nessas mulheres e homens, a possibilidade de concretizar seus sonhos.
Certamente não foram apresentando frases como a do caminhão que transportou
dona Isabel e sua família, mas sim lhes apresentando o que ia ao encontro de seus
desejos, isto é, a perspectiva de aquisição da terra propícia ao cultivo. É preciso,
portanto, destacar aí a figura dos corretores de terras.
3 -COMERCIÁRIOS DE SONHOS: OS CORRETORES DE ILUSÕES
Os corretores de terras estiveram presentes na propagação e revenda das terras
do Estado de Mato Grosso, durante as décadas de 1950 e 1960, e como não poderia
deixar de ser, também na divulgação e revenda das terras da área de Mirassol
D’Oeste
135
.
Nas entrevistas, encontramos várias passagens que explicitam a ação desses
agentes intermediários na revenda das terras dessa área, como, por exemplo, o relato de
dona Preta que é esclarecedor quando narra como ela e sua família ficaram sabendo das
terras no sudoeste de Mato Grosso:
(...) tinha corretor que andava por lá tudo vendendo terras, então trouxe meu
irmão (...), meu irmão mais velho, aí eu falei: conforme a terra lá, se for terra boa,
se for que dá futuro, você segura um pedaço pra mim (...). Eu não conhecia nada
135
Cf: LENHARO, Alcir. op.cit.. MORENO, Gislaine. op.cit.. Ver também o primeiro capítulo deste
trabalho onde discuto a política de distribuição de terras no estado, durante as décadas de 1950 e 1960.
87
aqui. O corretor tava junto e ele trabalhava com uma perua KOMB, fazendo linha,
trazendo comprador de terra pra cá. Ele enchia a perua e vinha pra cá. Aí ele
falou: dona Preta, do tanto que a senhora trabalha,(...) e a terra lá é boa, aí se a
senhora ver que não dá conta, a senhora vende um pedaço e acaba de pagar o
outro. Eu falei: não. Quero só dez alqueires. (...) era a prestação, porque nós não
podia pagar tudo de uma vez, então eles fazia a prestação, (...) então ia plantando,
conforme ia colhendo ia pagando, eles fazia um recibo conforme ia colhendo ia
pagando (...). Depois que nós acabamos de pagar deu a escritura (...)
136
.
O relato acima elucida que havia uma certa mobilidade de corretores nas
proximidades do lugar onde dona Preta morava e o que eles ofereciam às pessoas do
lugar perpassava por aquilo que mais povoava seus sonhos: a possibilidade de
adquirirem terra. Uma terra de boa qualidade. Especialmente, esses agentes lhes
apresentavam as “facilidades” de aquisição de uma parcela dessa terra.
A figura do corretor que dona Preta nos dá informação foi de grande importância
na divulgação e venda de terras desta área de Mato Grosso. Lenharo, ao tratar sobre
essas práticas, apresenta um anúncio de jornal em que o corretor aparece como
personagem atuante na divulgação e venda das terras: “(...) Refere-se ao aparecimento
de anúncios tentadores em pequenos jornais do interior, nos quais ‘corretores
autorizados’ colocavam seus serviços à disposição (...)”
137
. Moreno também fala sobre a
divulgação das terras em jornais e o trabalho dos chamados “corretores autorizados”:
“(...) Anúncios sobre as facilidades de aquisição de terras foram espalhados em jornais
de todo o país, onde ‘corretores autorizados’ se colocavam à disposição para efetuar a
transação”
138
.
Dona Isabel, ao relembrar a decisão de mudar-se para Mirassol D’Oeste, oferece
em seu relato importantes pistas sobre a propaganda dessas terras e a atuação dos
136
Entrevista com Dona Preta.
137
LENHARO, Alcir. op.cit., p. 57.
138
MORENO, Gislaine. op.cit., p.212.
88
corretores na efetuação da propaganda e conseqüentemente, sobre a revenda das terras
do senhor Paulo Mendonça, proprietário de grande parte das terras dessa área:
(...) Nós ficamos sabendo pelo corretor. Esse corretor passava em casa, almoçava
lá. Trazia comprador, e, meu marido veio primeiro na Barra do Bugres. Depois ele
não gostou de lá, porque tinha muita maleita. Aí eu falei: se está dando maleita eu
não vou não. Eu tenho meus filhos pequenos. Aí o corretor passava lá e falava:
vamos comprar terra lá em Mirassol, que lá não tem nada disso. (...) O corretor
que vendia terra pra gente, pagava para ele mesmo. (...) Pagava a prestação,
conforme ia colhendo (...)
139
.
Ao indagar ao senhor Paulo Mendonça sobre a divulgação de suas terras para
revenda, ele mencionou que na época tinha uma equipe de corretores que se ocupavam
em fazer a propaganda dessas terras afirmando que, mesmo antes de adquiri-las, nunca
viu ou ouviu qualquer propaganda, em jornais, por exemplo, sobre as terras devolutas
do Estado. Nenhum dos entrevistados referiu-se a qualquer propaganda sobre as terras
de Mato Grosso. Nesse sentido, tanto a fala do proprietário das terras como dos
entrevistados dão a entender que os anúncios de jornais não chegavam até a essas
pessoas.
Mas, mesmo não tendo acesso aos jornais em circulação ou aos anúncios sobre
terras, as informações chegavam até essa população rural através de conversas,
indicações dos corretores que percorriam as cidades e vilarejos do Estado de São Paulo.
O relato de dona Isabel emite sinais do conhecimento que esses homens e
mulheres tinham das terras devolutas de Mato Grosso, uma vez que o marido dela foi
primeiramente para outra área em busca de adquirir propriedade. Isso aponta para uma
139
Entrevista com dona Isabel, moradora de Mirassol D’Oeste, realizada em sua residência, no ano de
2002.
89
rede de informação entre essas pessoas que ia, desde as conversas com vizinhos e
amigos, até a propaganda “corpo a corpo” feita pelos corretores.
O relato de dona Isabel emite um outro sinal importante: a persuasão do corretor
ao apresentar essa área como sendo um lugar de terras férteis, fáceis de adquirir e livres
de qualquer ameaça como a malária, por exemplo, doença da qual dona Isabel temia
tanto.
Entretanto, esses homens e mulheres que se deslocaram para Mirassol D’ Oeste
enfrentaram outras batalhas, outras dificuldades, muitas das quais ficariam inscritas em
suas memórias e, tornar -se-iam partes de suas vidas. As experiências vivenciadas no
período inicial da abertura dessa área de terras são, em geral, marcadas pela
improvisação e ao serem recordadas, ainda que ressignificadas pelo presente, são
narradas nas falas cortadas, nas lágrimas, nos silêncios que, por vezes, expressam mais
que a própria palavra.
4- EM TEMPOS DE ABERTURA DE TERRAS, UMA ONÇA NÃO COME OUTRA ONÇA
Muitas dessas pessoas que se deslocaram para Mirassol D’Oeste não conheciam
o lugar, especialmente, as mulheres e crianças. Na maioria das vezes eram os homens da
família, acompanhados pelos corretores de terras, que iam certificar-se de que eram
terras boas para o cultivo. O rela to de dona Preta emite pistas sobre essa prática: (...)
tinha corretor que andava por lá tudo vendendo terras, então trouxe meu irmão (...), meu irmão
mais velho, aí eu falei: conforme a terra lá, se for terra boa, se for que dá futuro, você segura
um pedaço pra mim (...). Eu não conhecia nada aqui. (...)
140
.
A falta de conhecimento sobre o lugar causava desde o momento da chegada
uma certa surpresa nos que aportavam nessa área de terras. A ausência de casas, de
140
Entrevista realizada com dona Preta em sua residência em Mirassol D’ Oeste, em 2000.
90
estradas boas como os próprios entrevistados aludem, até mesmo de um modelo
semelhante de cidade tal qual estavam acostumados a conviver no Estado de São Paulo
acarretava-lhes estranhamento.
Ao relembrarem suas experiências, especialmente, do período de abertura dessas
terras, o momento da chegada ocupa lugar especial em suas memórias e emite sinais que
vão além de um simples desembarcar. Dona Isabel, por exemplo, alude sobre as
dificuldades que encontraram já no momento em que chegaram e a reação de um de
seus filhos ao perceber que ali, naquele lugar, iriam morar:
(...) Quando nós chegamos não tinha um lugar pra gente ficar, nada. Aí pra fazer o
fogão, eu cortei a cabeça de um cupim e coloquei a chapa, fiz um fogo e coloquei a
chapa para fazer o de comer. Então o homem do caminhão vendeu a sua lona para
nós, porque como é que ia fazer? Nós chegamos quatro horas da tarde mais ou
menos, ia cortar folha de bacuri? Não. Então o motorista falou: fica com a minha
lona. Aí ele vendeu a lona, e nós fez acampamento urgente que já estava
escurecendo. (...) Nós chegamos e dormiu debaixo do caminhão. Aí nós escutava
onça a noite né, não via mas escutava. Então alguém ficava acordado vigiando.
Depois meu marido foi e tirava casca de madeira para fazer a cobertura da casa,
as paredes eram de pau-a-pique, então a gente carregava os paus, todo mundo
ajudava, os filhos tudo. Aí depois de uns dois anos nós conseguiu fazer outra casa
de coqueiro, barrear tudo, e aquela lá foi o acampamento de quem chegava e não
tinha onde ficar, ficava ali. (...) O meu menino era novo, aí ele falava: ô pai,
quando o senhor chegar lá, o senhor vai comprar picolé, guaraná? Ele achava que
nós ia saindo de uma cidade para outra né? Quando chegou ele falou: mas é aqui
que nós vamos ficar pai? É aqui que é Mirassol D’ Oeste? E abriu a boca a
chorar(...)
141
.
Segundo os relatos de memória, nos primeiros anos da década de 1960, período
em que se inicia o loteamento e ocupação dessa área de terras, muitos homens e
mulheres estavam deslocando-se para Mirassol D’Oeste. Alguns chegavam e partiam
141
Cf: Entrevista com dona Isabel.
91
em seguida, pois na maioria das vezes eram pessoas que possuíam pouco ou quase
nenhum dinheiro ou bens, chegavam e não encontravam nenhum tipo de assistência, o
que contribuía para a não fixação dessas pessoas às terras do lugar.
O relato acima aponta os obstáculos que enfrentavam desde o momento da
chegada. Sem um lugar para passar a noite, foi preciso comprar a lona do “homem do
caminhão” para então arranjar uma cobertura, além disso o próprio caminhão serviu de
parede para prenderem a lona e improvisarem uma caba na, na qual puderam passar a
noite. Isso denota a falta de preparo desses grupos sociais ao se depararem, nessa área
de terras, com uma situação que não lhes oferecia nenhuma assistência.
Essas pessoas podiam contar, naquele momento, apenas com o improviso e com
uma criatividade que é a própria das populações que têm que lidar diariamente com a
falta de recursos financeiros. Ao narrar a chegada: o improviso de um fogão e de um
lugar para passar a noite, o relato de dona Isabel emite sinais de que mesmo após vários
dias de viagem e sem estarem preparados “adequadamente” para enfrentar a falta de
infra-estrutura do lugar, aí produzem estratégias de enfrentamento, pois: “(...) O
cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada...”
142
.
O relato de dona Isabel chama ainda atenção à reação que um de seus filhos teve
ao chegar em Mirassol D’Oeste e a sua leitura daquele momento, quando ela relembra
que o garoto pensava que estavam saindo de uma cidade para outra cidade. O choro do
garoto e as palavras de dona Isabel assinalam a idéia de cidade que essas pessoas
traziam junto com seus pertences para essa área de terras. Essa era uma idéia alimentada
e reproduzida também pelas pessoas que ficaram em São Paulo.
Os relatos de memória sobre a experiência do deslocamento expressam
também, a leitura de cada um sobre essa área de terras. O relato de dona Preta, por
142
CERTEAU, Michel de. op.cit., p. 38.
92
exemplo, ao falar de como era Mirassol D’Oeste, quando ela e sua família chegaram,
marca a imagem que tinham do lugar no qual decidiram morar:
Os povos de lá falavam: vocês vão ser comida das onças, diz que lá tem onça
demais (...).O patrão: você está ficando doida de ir para lá, vocês vão ser comida
das onças (...)
143
.
Já para dona Leonilda, as pessoas da antiga morada no Estado de São Paulo
descreviam o local para onde sua família estava se deslocando como sinônimo de
inacessibilidade: (...) Ah eles falava: você vai pra lá? Se você ficar doente lá não tem
jeito de tratar. Vocês vão ficar a míngua (...)
144
.
Isso demonstra que além dos perigos que se imaginava ter que enfrentar, como a
ameaça das onças, havia ainda a distância de tudo, a falta de remédios, de estradas e de
transporte para se abastecerem no centro urbano mais próximo, a cidade de Cáceres:
(...) no segundo ano que eu financiei roça foi em Cáceres, você sabe que
nós carreguemos no domingo e, saímos na segunda-feira de madrugada, as
duas da manhã. Nós fomos chegar lá, na quarta-feira [...] O caminhão foi
quebrando, arrumano. Você já viu caminhão andar com freios amarrados
de corda?
145
.
Dona Preta também conta como acontecia, segundo ela, a ida para a cidade de
Cáceres:
143
Entrevista realizada em outubro de 2000 com Dona Preta, em sua residência em Mirassol D’Oeste.
144
Entrevista realizada com dona Leonilda, em sua residência em Mirassol D’Oeste, no ano de 2002.
145
Entrevista, realizada com o senhor Ivo, em 2000, em sua residência em Mirassol D’ Oeste.
93
(...)Ah! nós sofria pra ir em Cáceres (...). Nós ia em cima de carga de caminhão
para Cáceres, saía daqui três ou quatro horas da manhã para chegar lá no outro
dia meia noite ou duas da madrugada (...)
146
De acordo com informações dadas pelas pessoas da cidade, hoje se gasta, para
percorrer o mesmo trajeto, de uma cidade à outra, duas horas de viagem. Segundo os
relatos de dona Preta e do senhor Ivo, acima citados, demorava-se de dois a três dias de
Mirassol D’Oeste até Cáceres. O que nos chama atenção nesse ponto, é o tempo
percorrido entre essa área de terras e a cidade mais próxima. Isso implica pensarmos nas
pessoas que se deslocavam para Cáceres com urgência de assistência médica/hospitalar
(crianças, mulheres, homens). Quantos talvez, em decorrência do tempo de percurso,
não tenham conseguido chegar até o local de atendimento? E mais, como aconteciam
essas viagens?
Dona Isabel, ao relembrar as vezes que fora a Cáceres, conta como as pessoas
criaram estratégias de locomoção, num tempo em que nenhum dos moradores possuía
qualquer meio de transporte:
(...) Não era estrada, naquele tempo era picada. Era um dia para chegar em
Cáceres, outro para limpar o arroz, e outro para voltar. Então era três dias para
fazer compra. Nós ia em bastante gente no caminhão do Cezário, depois que ele
chegou, né. (...) Antes do caminhão do Cezário para sair era quando vinha os
corretor, aí era uma carona né. Se vinha uma mudança e levava os arrependidos,
não era só os arrependidos, era também quem precisava, eles fazia o favor. Não é
igual hoje que tem ônibus que vem e que vai com hora marcada. Então ele vinha,
levava os arrependidos e também os outros pegavam carona, e às vezes tinha que
esperar até uma semana para voltar. (...) Quando o Cezário comprou o caminhão,
aí então nós ia nele, chegava lá posava, fazia nossas compras. Se estivesse de
chuva, minha filha! Nós sofria tanto. Teve ocasião de eu dormir assim, no chão,
tudo embarreada, e dormir no chão porque não tinha onde a gente dormir. Assim,
146
Entrevista realizada em Mirassol D’ Oeste, em 2000, com dona Preta.
94
no meio da estrada (...) aquele mundo de gente tudo embarreado, aquela
mulherada tudo tomando chuva. (...) Meu marido era doente, não podia fazer
compra, então era eu. Tudo era eu (...)
147
.
O relato de dona Isabel possibilita conhecer um pouco o cotidiano da vida das
pessoas no período inicial de abertura dessa área de terras, quando tinham que lidar com
a falta de abastecimento e de infra-estrutura dessa localidade. A experiência de ida à
cidade mais próxima configurava-se em uma viagem repleta de surpresas para esses
homens e mulheres, especialmente antes de um dos moradores adquirir o caminhão, que
se tornou o meio de transporte mais acessível das pessoas do lugar.
Porém, mais ricas e reveladoras são as lembranças que dona Isabel tem das suas
idas a Cáceres. Essas lembranças trazem o imprevisto que representavam tais viagens
para aquelas pessoas, pois, “(...), a memória cumpre seu papel de guardar lembranças
que, pelo ato de recordar dos sujeitos, trazem de volta o que ficou inscrito”
148
. E o que
ficou inscrito sobre as idas a Cáceres foram os dias de chuva, as noites em que homens e
mulheres dormiam no chão, ali na estrada, todos molhados e sujos de barro, à espera de
retornarem para suas casas com os gêneros (o arroz limpo, tecidos para confecção de
roupas, talvez remédios) necessários à manutenção da família.
Além dos perigos da mata, da distância entre Mirassol D’Oeste e a cidade mais
próxima, da falta de infra-estrutura, esses grupos sociais enfrentaram outras
adversidades, por exemplo, a especulação em torno da venda de terras. A superposição
de títulos de um mesmo lote de terras foi uma prática constante durante as décadas de
1950 e 1960 em Mato Grosso
149
. O relato do senhor João expressa que essa prática
147
Entrevista com dona Isabel, em 2002.
148
GROSSI, Yonne de S.& FERREIRA, Amauri C.Razão narrativa:significado e memória. In: História
Oral- Revista da Associação Brasileira de História Oral, v.4,n.4, jun-2001, p.33.
149
Cf: LENHARO, Alcir. op;cit. e, MORENO, Gislaine. op.cit. Sobre a especulação em torno da venda
de terras em Mato Grosso e a emissão de vários títulos de um mesmo lote de terras, verificar também o
primeiro capítulo deste trabalho.
95
também ocorria nas terras da área de Mirassol D’Oeste: (...) Quando nós viemos para
cá, nós compramos 15 alqueires, mas aí a gente quando chegou aqui descobrimos que
o corretor era falso, que as terras já tinham dono, um tal de japonês (...)
150
Esse é um problema, segundo a documentação, discursos oficiais e as matérias
do jornal “O Estado de Mato Grosso”, bastante antigo, e que nos possibilita afirmar: o
caso do Senhor João não era uma exceção à regra
151
.
A partir do relato do senhor João nos é possível inferir que entre as maiores
dificuldades enfrentadas pelas pessoas que compraram lotes, em Mirassol D’Oeste, está
a falta de qualquer tipo de assistência quando as mesmas chegavam a esta localidade, e
ainda, como não poderia deixar de ser, a prática bastante comum em todo o Estado
durante o período de 1950 e 1960, de serem enganados com os chamados “títulos
voadores”.
Um documento que data de 1954 faz alusão ao problema das ilegalidades com a
venda de terras:
(...) A desfaçatez de alguns procuradores (...) vai a tal ponto de, conscientemente,
lançarem mãos de glebas já tituladas ou arrendadas pelo Estado como se
devolutas fossem (...). Muitas são as reclamações que tem chegado ao nosso
conhecimento de pessoas prejudicadas por esses aventureiros, que constituem um
verdadeiro caso de polícia (...)
152
O senhor João foi para Mirassol D’Oeste em 1966 e o documento acima citado
data do ano de 1954. Isso nos indica que tais procedimentos sinalizavam uma prática
política constante, principalmente durante a década de 1950. A fala do entrevistado
150
Entrevista com o senhor João, ocorrida em sua residência em Mirassol D’ Oeste, em 2000.
151
Sobre os chamados títulos voadores, ver: LENHARO, Alcir. op.cit. MORENO, Gislaine. op.cit. e,
FERREIRA, Eudson de Castro. Op.cit.,p.69/80.
152
Relatório das atividades desenvolvidas pelo Departamento de Terras, Minas e Colonização, 1954.
p.04.
96
deixa transparecer que o problema continuou a ocorrer sem nada ou quase nada foi
feito.
Lenharo em seu trabalho sobre a questão da terra aponta para a especulação e as
falcatruas em torna da venda de terras devolutas do Estado durante a década de 1950. A
terra para as autoridades, segundo o autor, não passava de mais uma “mercadoria”
rentável, que servia a eles para angariar lucro fácil, de formas as mais variadas. Desde a
especulação até a venda repetidas vezes de um mesmo lote
153
. A respeito deste último
ponto, Moreno oferece-nos informações valiosas sobre a expedição de vários títulos de
um mesmo terreno:
Os “títulos voadores” que remontavam outros títulos expedidos pelo ex-DTC,
[Departamento de Terras e Colonização], entraram no mercado de terras e eram
disputadíssimos...Uma vez que a localidade da área, constante do título, era muito
vaga, indicando mais a sua extensão e o município, sem menção dos confiantes e
sem precisão das coordenadas, com os correspondentes marcos no chão, vários
títulos podiam cobrir a mesma área, assim como várias áreas podiam se ajustar ao
mesmo título
154
.
Essa prática política de corrupção configurava-se em uma forma de exploração
da terra e um mecanismo de sujeição e exploração dos pequenos agricultores. A
situação em que ficavam depois de perderem a terra e o dinheiro gasto na compra era de
fragilidade e de desamparo. O senhor João conta que eles não tinham mais como voltar
para trás, nem como recorrer, porque no caso explicitado, “o japonês” tinha
documentação das terras. Então a solução era trabalhar na terra dos outros, já que o
dinheiro acabara:
153
Cf: LENHARO, Alcir.op.cit.,p.45/64.
154
MORENO,Gislaine. op.cit., p.249.
97
(...) aí nós fomos trabalhar num sítio, tocar roça, para o dono do sítio [...]. Mas
só tinha uma única mina para servir oito famílias, tinha dia de dar briga entre as
mulheres na hora de lavar a roupa, aí quando foi um dia a mina secou, daí nós
tinha que ir buscar água nas Pita
155
, andava uns oito quilômetros para lavar
roupa, ia uma vez na semana, [...] era muito sofrimento...
156
.
Mesmo com as adversidades encontradas na área de terras em Mirassol D’Oeste,
a família do senhor João não podia voltar para o antigo lugar, por motivos tais como: o
fim do dinheiro com a compra do sítio que já tinha dono, encerrando as possibilidades
de se aventurarem a voltar; ou ainda, a lembrança da experiência terrível que os fez
abandonar São Paulo: a experiência da fome, da “falta do que comê”.
As adversidades que essas pessoas vivenciaram neste primeiro momento,
período da abertura dessas novas terras, excedem, e muito, as da chegada ou a dos
primeiros tempos, vai muito além, se constroem na relação de experimentação com o
local e com a terra.
O senhor Ivo conta sobre os seus primeiros momentos em Mirassol D’Oeste.
Quando ele chegou já havia algumas casas, umas quatro ou cinco, e uns “triozinhos”
que, segundo seu depoimento, nem pareciam ruas. Seus planos eram de ficar no lugarejo
por um determinado tempo, até abrirem um local na sua propriedade, onde seria
construída sua casa e também, abrir a estrada do local até o lugarejo, contudo,
aconteceram alguns desvios de percurso. Um grande incêndio na mata que cercava a
cidade atingiu a localidade onde estavam instaladas as casas. O fogo queimou todos os
seus pertences, obrigando-o a apressar a mudança para suas terras.
Sua chegada em Mirassol D’Oeste data de 29 de julho de 1963, época de seca no
local, própria para desmatar e limpar a terra, preparando-a para o cultivo agrícola. Este
155
As Pita, córrego de tamanho médio, isto é, com capacidade de abastecer as famílias que moravam nas
redondezas da casa do senhor João. Esse córrego se localizava numa distância de oito quilômetros do
local onde residia o senhor João e sua família. Conforme o relato do senhor João.
156
Ibidem.
98
tempo do qual se lembra o senhor Ivo com invejável lucidez, é o tempo, segundo
Calvino, da memória da imaginação. Memória esta, das coisas em que as pessoas
acreditavam ser possível, ou seja, uma memória que traz coisas que se imaginava num
tempo passado, o planejamento, o cálculo de como iria se desenrolar suas vidas neste
novo lugar
157
.
(...) Quando eu vendi o sítio, eu tinha comprado bastante coisa, para passar uns
dois anos (...) açúcar, sal essas coisas, leite para os moleques, que precisava né.
Os moleques mamava só na mamadeira, então tratava assim com bastante coisa.
Quando eu fui buscar meu dinheiro eu trouxe um pouco e o resto em mercadoria
(...). Aí quando chegamos nós ficamos uns 60 dias na Mirassol, é que nós ia abrir
uma picada pra fazer a casa ali, na beira do estradão (...) aí veio o fogo, queimou
tudo a mudança, ficamos sem nada (...). Foi difícil, mais eu vou te falar, você
sabe o que é ver um pai chorar de ver o filho chorando de fome e não ter de onde
tirar, não ter nada pra dar? Tanta coisa, não gosto nem de lembrar isso (...).”
158
Quando o senhor Ivo fala desses tempos de aflição, de dificuldades incalculáveis
para quem as vivenciou, quando fala de tantas coisas que nem gosta de lembrar ele
deixa transparecer, não apenas na fala, mas também nos gestos das mãos, nas lágrimas
que caem e dizem da dor maior, a ameaça mais assombrosa, a de ver o filho bebê ainda,
chorando de fome e sentir-se como se encontrasse num labirinto, assistindo a tudo sem
encontrar saída, sem saber de onde tirar o sustento. Nota-se que a memória não se
manifesta somente na fala, tanto as experiências boas como as tristes, expressam-se
sobretudo no corpo, “(...)A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo
campo...(Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto
exclusivo da voz)”
159
.
157
Cf. CALVINO, Ítalo. O caminho de San Giovanni.São Paulo: Cia das Letras, 2000. p.75
158
Entrevista com o senhor Ivo em sua residência em Mirassol D’ Oeste, ocorrida em 2000.
159
BENJAMIN, Walter. op.cit.,p.220/221.
99
Dona Preta também vivenciou momentos ameaçadores e conta de sua batalha
com o desconhecido:
(...) O meu menino caçula, quando eu trouxe ele de lá para cá, veio doente, com
uma febre que não tinha remédio para cortar. Um febrão mesmo (...) cheguei da
roça o menino com febre, e nada de cortar com os remédios que trouxe de lá. Aí
me peguei com Nossa Senhora, com Deus, fiz um voto.Deus me protege o menino.
Ache um remédio para eu curar o meu filho dessa febre que não passa mais (...)
era oito, dez, quinze dias e o menino com febre que não cortava, aí falei vou
perder meu menino, aí me peguei com Deus e nossa Senhora da Aparecida,
quando foi à noite eu deitei, aí dormi. Sonhando, uma mulher morena chegou na
beira da minha cama e falou: você está com o remédio de cima de um tronco. A
fé, a fé vale muito, tem que ter muita fé em Deus. Aí acordei, e pensei, que
remédio que eu tinha, lembrei, é aquele da lata de plantinha da florzinha que eu
trouxe.Você duvida! A única planta que eu trouxe de lá. Aí eu falei vou levantar e
vou acender o fogo, vou escaldar uns três brotos e dar para o menino. Você sabe
que nunca mais deu febre no menino? Falei só tem que ser um milagre (...)
160
.
Assentada na sua própria experiência, dona Preta dá conselhos sobre a vida,
mostrando que é uma mulher de ação, dizendo que além de precisar ter muita coragem e
trabalho, é preciso ter persistência, traduzida por ela como fé.
Contudo, ao referir -se à maneira encontrada para superar o que ela não tinha
conhecimento, a causa da febre do filho, expressa sobre um outro saber, o de “driblar” e
encontrar meios de vencer o desconhecido. Armas que as pessoas inventam para lutar
nas situações difíceis da vida, e que de Certeau traduz como: ‘táticas’, “vitórias do
‘fraco’ sobre o mais ‘forte
161
.
160
Entrevista com Dona Preta, realizada em sua residência em Mirassol D’Oeste.
161
CERTEAU, Michel de. op.cit., p.47.
100
A memória traz as experiências mais profundas, sobretudo, aquelas que tratam
do inexplicável, do “inominável”, ou seja, da ameaça da morte. Seja em forma de onça,
seja na dor da fome ou na ameaça mais precisa da morte: uma doença.
Essas pessoas vivenciaram e experimentaram, nos primeiros tempos, o dissabor
do desespero, do insondável. As lutas que travaram no “novo lugar”, a natureza de
algumas se assemelham, por exemplo: a luta para não permitir que a família se
separasse. Contudo, é possível perceber, através dos relatos, que essas lutas cotidianas
assinalam diferentes desfechos. Situações de embate, de vida antagônica, mas que os
tornam iguais no sofrimento, no medo, na angústia. Calvino diz que as pessoas se
reconhecem iguais não no que é uniforme, quer dizer, no fato de terem vindo para o
mesmo lugar, mas sim no detalhe
162
.
A cidade de Mirassol D’Oeste só pode ser pensada levando-se em consideração
a multiplicidade de experiências das pessoas que a produzem. Só poderemos perceber
tais experiências se reveladas pela memória. É este o caminho para falar de tempos
passados, tempos vividos.
Quando dona Preta está narrando suas experiências no Estado de São Paulo para
não deixar os filhos passarem fome, e o que ela fez para salvar o caçula de uma doença,
num lugar que não tinha médico, nem hospital e muito menos remédio, ela está falando
de suas qualidades de mãe, sua coragem e ação de mulher.
Uma pessoa que, segundo seu discurso, não tinha medo nem do trabalho, nem
dos perigos que o novo lugar apresentava, passando assim uma imagem de força, de
luta, de coragem e acima de tudo de mulher trabalhadora. Ela está não somente nos
falando de sua personalidade e, ao mesmo tempo, da “redefinição do papel da mulher”,
mas também de (...) um outro jeito de se relacionar com o mundo, onde a intermediação
162
Cf. CALVINO, Ítalo, 2000. p.70.
101
do homem como aquele que estabelece o espaço para a mulher transitar no mundo é
substituída”
163
. Em nenhum momento essa mulher deixou transparecer que sentiu a
ausência de um homem para decidir por ela, ou fazer por ela qualquer coisa:
(...) o patrão falava: você esta ficando doida de ir para lá, vocês vão ser comido
pelas onças (...) eu falava, o tonto, você já viu uma onça comer outra onça? Uma
onça não come a outra onça, eu vou sem cisma. Eu falei, eu não tenho medo de
onça, uma onça não pega a outra onça (...)
164
.
Para uma tarefa que, geralmente, se necessita de muita coragem e de braços
fortes, que é a da abertura das “novas terras”, convocam-se homens. Num universo
“masculino”, dona Preta esclarece que é no embate das experiências vividas, que se
pode perceber a inversão dos papéis. Não é preciso se transformar em um homem para
enfrentar o trabalho duro de abertura das “novas terras”, para executar essa tarefa, dona
Preta não se transforma em homem, mas sim, em uma onça.
Essa apropriação de forças que dona Preta faz uso, para enfrentar as situações de
luta, conduz-nos a refletir sobre quantas mulheres tiveram, como ela, que se transformar
também em onças para não deixar os filhos e a família se separar ou passar por
necessidades impensáveis. É nesse quadro das experiências vividas que a vida se
constrói de várias outras maneiras que não as convencionais, onde, muitas vezes, os
papéis de homens e mulheres se encontram invertidos e, “(...) todo esse quadro é
rememorado, é narrado, carregado de um tom heróico de quem descreve uma batalha
onde a vida está por inteira”
165
.
163
MONTENEGRO, Antonio Torres. op.cit., 1994. p.45.
164
Entrevista com dona Preta em sua residência em Mirassol D’ Oeste em 200.
165
MONTENEGRO, Antonio Torres. op.cit.,1994. p.46.
102
Nesse embate da vida, mulheres se transformam em animais ferozes e, homens
fortes choram ao relembrar as experiências mais duras e difíceis na construção desse
espaço, denominado hoje Mirassol D’Oeste. Homens como o senhor Ivo que chorou ao
lembrar das dificuldades em arranjar alimento para os filhos:
(...) O que é ruim, amargo, é que a gente não esquece (...) Um filho né com fome.
Que a gente quer dar e não tem nada pra dar para ele, você sabe que sua força
dá para alimentar ele e não tem! (...)
166
.
O senhor Ivo e dona Preta tiveram que inventar para eles mesmos uma coragem
que só os mais fortes têm, foi o que fez o senhor João quando ao chegar descobriu que a
terra que haviam comprado tinha outro dono. Chama-nos atenção, nesse borbulhar de
experiências narradas nos relatos de memória das pessoas que vieram para Mirassol
D’Oeste no período inicial de abertura desse espaço, a atuação de mulheres como dona
Preta, por exemplo. Sua postura de enfrentamento ante as situações de extrema
dificuldade.
Em tempos de abertura dessas terras essas mulheres foram onças, pais e mães ao
mesmo tempo, como dona Preta; peões ao lado dos maridos, como dona Leonilda; ou
sem eles, como dona Isabel, pois seu marido era doente e não podia trabalhar. Essas
mulheres que, ao mesmo tempo, demonstram forças para enfrentar as dificuldades e o
trabalho duro de abertura das novas terras, são também mães exemplares e esposas, são
mulheres. E como tais, trazem em seus relatos de memória uma releitura, a partir do
presente, rica em detalhes, pois estão o tempo todo entremeando, em suas falas, o
cotidiano da casa (privado) e o espaço do trabalho.
166
Entrevista realizada com o Senhor Ivo, em Mirassol D’ Oeste, em 2000.
103
Essas experiências notadamente não são só suas, ao contrário, configuram
relatos de vivência dentre tantos outros. Porém, essas experiências se distanciam em
suas particularidades, mas mantêm proximidades entre si, ou seja, enredam as
experiências vivenciadas cotidianamente por muitas outras mulheres e homens que se
deslocaram para um mesmo destino. Por esse motivo, são experiências ao mesmo tempo
individuais e coletivas, trazem à tona uma bela leitura da ocupação dessa área de Mato
Grosso e pontuam a especificidade da construção desse espaço, hoje, denominado
Mirassol D’Oeste.
A respeito das experiências que marcaram a abertura dessa área de terras, a falta
d’água é relatada como uma situação vivenciada em comum, constituindo-se num
problema bastante significativo para as pessoas que vieram para Mirassol D’Oeste, dela
dependiam suas vidas e de seu familiares, essa, assim como muitas outras era uma
batalha diária para fixarem-se e sobreviverem naqueles tempos iniciais nas novas terras.
Para o dono das terras em Mirassol D’Oeste, um dos motivos que o levou a
lotear essa área foi o parecer de um geólogo sobre a água existente no local:
(...) eu consultei um geólogo, aí de Cuiabá, e ele falou: enquanto está coberto de
mato, segura uma aguinha quando chove, na hora que tirar a mata vai secar tudo
e vai acabar. Então, como é que eu vou criar gado no seco? Então, pensei, vou
lotear e vender. Quem tem a área pequena, fura um poço, bebe água e dá água
para a vaca, e, agora como que eu vou dar água para dez mil bois? Quer dizer, aí
comecei a vender (...)
167
.
No discurso do dono das terras o fato dessa área não ter água não traria
problemas aos “pequenos” proprietários. Isso demonstra um outro tipo de violência de
167
Entrevista com o dono das terras, loteadas e vendidas, de Mirassol D’ Oeste, senhor Paulo Mendonça.
104
quem só se interessa vender em as terras, pois ele já tinha informações sobre esse
problema. É possível observar que não existe aí nenhum compromisso social.
A falta d’água tornou-se mais uma dos muitos infortúnios vivenciados
diariamente. Dona Leonilda conta quais mecanismos tiveram que inventar para
driblarem a falta de água naqueles tempos iniciais:
(...) Nós ficamos em Mirassol. Todo mundo que vinha acampava aqui, ficava aqui
até conseguir a terra dele, construir a casa. Se dava certo ficar com aquela terra,
se não dava tinha que trocar, porque, um não queria aquela terra, outro não
queria serra. Virou uma confusão, outro queria lugar que tivesse água. E aqui não
tinha água em lugar nenhum filha de Deus! Não tinha não. Nós pegava e furava
um buraco no meio do campo, era só campo, tinha aquele capinzinho assim sabe?
Aí nós furava um buraco dessa altura, nós as mulheres sabe? Era nós mesmas,
cavava de enxadão, ali tinha água durante o dia, depois secava. Tinha dia que a
gente não tinha água para beber (...)
168
.
Ao relembrar a experiência da falta de água, obstáculo bem conhecido dos que
estavam presentes no período inicial de ocupação dessa área, o relato de dona Leonilda
traz dois pontos reveladores: o primeiro diz respeito sobre como se processava a escolha
e compra do lote de terras de cada um. Ela destaca que “todo mundo que vinha
acampava aqui, ficava aqui até conseguir a terra dele”, isso significa que a maioria das
pessoas se deslocava para aquela área sem saber onde é que seriam suas terras, ou seja,
primeiramente deslocavam-se e eram condicionadas a ficar no local que estava
destinado à cidade, para depois terem acesso a seus lotes. O que evidencia a falta de
qualquer assistência por menor que fosse, desde as vias de acesso aos lotes até a
ausência de local para ficarem até a mudança para esses lotes. Teriam que improvisar
eles próprios suas “cabanas”, fazendo uso das palavras de dona Isabel.
168
Entrevista com dona Leonilda, moradora da cidade de Mirassol D’ Oeste.
105
O outro ponto revelador é a presença da atividade feminina, a qual dona
Leonilda se refere ao pôr em evidência que quem ficava responsável em arranjar água
eram as mulheres, certamente se referindo a ela e sua filha mais velha que na época
estava com onze anos. Entretanto, a participação feminina no trabalho de abertura
dessas terras vai além da procura por água, revelando o que Stadniky aponta em seu
texto sobre as representações de trabalho feminino e masculino na lavoura, e segundo a
autora: “(...) ao contrário do que se supõe, não há separação de atividades tipicamente
masculinas e femininas”
169
. Os relatos dessas mulheres expressam que as funções
femininas não se restringiam apenas aos cuidados com a família e o trabalho na lavoura.
Dona Isabel, por exemplo, conta que havia muitos erros de demarcação dos
lotes, o que acarretava uma constante vigilância, pois outros podiam chegar e tomar
partes das terras já vendidas e demarcadas. Sua família não escapou desse tipo de
problema, mas ela percebeu a tempo o erro e tratou de corrigi-lo:
(...) Teve um povo que comprou em lugar e se assentou em outro, e essa terra até
hoje eles não podem vender. Eles dependem do Paulo Mendonça para vender. E o
duro é que hoje valorizou né. Não é mais igual ontem. A nossa também, se não
fosse eu perceber também tinha perdido terra. Eu falava pro velho que não tinha
os quarenta alqueires, e ele falava que tinha, então mandei colocar engenheiro,
(...) Engenheiro aqui tinha bastante. Tinha um que comandava e os outros que
eram picadeiros. Então eu chamei: eu quero que você vai medir minhas terras lá.
Ele disse: a senhora está achando que não tem tudo, dona Isabel? Eu estou
achando que não tem. Aí ele veio. Eu sou boba mas toda vida meu pai mexeu com
terra, então a gente sabe mais ou menos. Aí ele veio, chegou, mediu, faltou dez
alqueires. E era nós que tinha que pagar para ele vim. Foi nós que pagou, mas aí
já mudou no mapa. Colocou no lugar certo. Aí tinha que cuidar, deixar limpinho
para outro não tomar posse. Tinha que estar cuidando porque cerca demorou para
fazer(...)
170
.
169
STADNIKY, Hilda Pívaro. op.cit
170
Entrevista com dona Leonilda, moradora da cidade de Mirassol D’ Oeste.
106
Essas mulheres eram mães e pais como dona Preta, viúva que decidiu deslocar-
se para Mato Grosso sem necessitar de autorização de qualquer outra pessoa. Assim
como dona Isabel que expressa em seu relato, anteriormente citado, sua atitude diante
da demarcação errônea de seu lote. Essas mulheres, portanto, apresentam uma
linguagem de ação, de embate.
O relato de dona Isabel também expressa um certo medo que ficou em sua
memória, medo este transfigurado num sentimento de desamparo com que essas pessoas
tinham que conviver nos tempos iniciais de abertura das terras de Mirassol D’Oeste.
O medo é anunciado hoje, ao relembrarem “a confusão” para encontrar o lote
certo para cada um, e na vigilância constante com as divisas do lote “para outro não
tomar posse”, configurando um espaço e um tempo carregado de tensões, moldados pela
insegurança e pela falta de precisão nas demarcações que poderiam resultar em perdas
significativas para essas pessoas.
Dona Isabel, em seu relato, mostra que ao perceber o erro na demarcação,
providenciou para que fossem reparados e refeitos os marcos de seu lote, especialmente
no mapa. Mas para que isso fosse possível ela contou com seu conhecimento em
trabalhar com a terra e, especialmente, com algo que muitos não podiam contar, um
mínimo de recurso financeiro. Ela teve que pagar para o engenheiro e os picadeiros irem
e refazerem os marcos. Mas, nesse espaço que figuravam adversidades como essa, é
preciso indagar quantas outras pessoas tiveram esse mesmo problema e não puderam ter
seu prejuízo ressarcido, ou por não perceberem na época o que ocorrera, ou por não
terem condições financeiras para resolver como dona Isabel resolveu.
Essas pessoas, ou pagaram por algo que compraram e não adquiriram, ou
fizeram como dona Preta que comprou uma extensão de terra, recebeu outra, e, no
momento de revender, revendeu como comprou: (...) Comprei dez alqueires, ainda me
107
passaram a perna, porque, na escritura tava dez, me deram a escritura de dez mas era
só nove. Eu vendi por dez também (...)
171
.
Nesse espaço embebido em tensões, num tempo em que as distâncias eram mais
alongadas e o trabalho redobrado, as dificuldades pareciam, às vezes, não ter fim. Dona
Leonilda relembra as experiências vivenciadas naqueles primeiros tempos:
(...) quando nós veio, a gente trouxe compra para passar aí uns meses. E nós
plantava rocinha nossa mesmo e trabalhava para os outros. Eu e minha menina é
que cuidava da roça, ela tinha onze anos. Nós ia limpando a roça, que já estava
derrubada, queimada, né? Então a gente ia arrumando para plantar e o velho ia
fazendo serviço por dia.(...) Sofremos, se eu te contar o que eu já comi, já bebi! Eu
comi sem gordura aqui no Mato Grosso, não tinha nada para vender para
ninguém, e não tinha ninguém para vender as coisas. Comi sem gordura, lavei
roupa sem sabão. (...) já fiz sabão de carne de bicho, sem soda, só de tiquada (...)
É menina, vou te falar, só a necessidade mesmo faz a gente fazer isso. (...) Nós
enjoou de comer comida sem gordura, carne de bicho só cozida. Aí eu inventei de
quebrar coco de babaçu para tirar gordura. Então eu pegava socava no pilão.
Meu velho fez um, (...), uma tora de aroeira assim, quadrada, até grande. Aí ele
afinou e deixou aquele travesseiro, tipo de um martelo. Era uns cinco quilos, dava
bastante sabe? Dois, três litros. Aí eu socava no pilão, colocava na panela. Aí
cozinhava aquele pouquinho que soltava aquele olhinho. Aí eu coava, jogava
aquela massa fora, e fazia arroz ali dentro. (...) Para fazer o sabão, a gente
pegava, queimava casca de angico, aquelas casconas assim. Nós fazia aquelas
fogueiras, aquelas fogueiras de São João, sabe? Colocava aquele tacho de baixo.
Aí fazia aquele monte de cinzas. Eu esperava esfriar e colocava dentro de um saco.
Mas isso era eu, não era meu marido não. Ele estava cuidando da vida dele,
trabalhando na roça, eu também trabalhava na roça, mas o dia em que eu tinha
que fazer as minhas coisas, aquele dia era meu, eu é que cuidava. Então, aí eu
enchia o saco de cinzas, fazia aquele buraco no meio, pegava a bacia, assim dois
palmos com o saco em cima. Aquilo ia pingando, daí eu pegava aquela água,
colocava no tacho com aquela carne, gordura, sebo, até virar sabão (...)
172
.
171
Entrevista com dona Preta.
172
Entrevista com dona Leonilda, ocorrida em sua residência em Mirassol D’ Oeste.
108
As “rocinhas” das quais dona Leonilda lembra em seu relato tinham seu próprio
tempo de produção e colheita. E o que fazer até o momento da colheita, como
sobreviver ao intervalo entre o plantio da lavoura e a colheita? Uma das saídas
encontradas era trabalhar na terra dos outros. Porém, a experiência de aguardar pelos
tempos de colheita se prolongava, tornando os dias de espera mais longos, exigindo
mais do que “trabalhar por dia na terra dos outros”. O relato de dona Leonilda expressa
que as mulheres, nessa área de ocupação, mais do que cuidarem da casa, dos filhos e do
trabalho na lavoura, desenvolviam “esquemas de ações”
173
, criando as condições
necessárias de sobrevivência, pois, no dia que era só dela, o dia das invenções,
fabricava-se desde o óleo para a preparação dos alimentos, ao sabão produzido com
cascas de madeira, assegurando dessa forma a vida das pessoas da família.
Dona Leonilda fala de um tempo em que não havia ninguém para vender a
colheita e ninguém de quem pudessem comprar o que necessitavam, como gêneros
alimentícios, por exemplo. Num tempo e num lugar que não comportavam o necessário
para sobreviverem, foi preciso “inventar”, criar, eles mesmos, suas próprias
possibilidades. Naquele lugar onde a falta de “tudo” era uma constante, ela demonstra
uma astuta criatividade em produzir justamente o que não lhe era oferecido, como num
jogo de ocasiões, tal qual de Certeau afirma: “Sem cessar, o fraco deve tirar partido de
forças que lhe são estranhas”
174
.
Essas mulheres, como muitas outras que vieram para Mirassol D’Oeste, tiveram
atuação decisiva para a fixação e permanência de suas famílias nessa área. Foi preciso
juntar forças, produzir uma espécie de código, ali, onde todos se reconheciam como
173
As práticas cotidianas dessas mulheres são pensadas, a partir da análise de Michel De Certeau para
quem o cotidiano “se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” e não particularmente por um
sujeito fundante. Para esse autor, sua análise “se refere a ‘modos de operação’ ou ‘esquema de ação’ e
não diretamente ao sujeito que é seu autor”. CERTEAU, Michel de. op.cit.,p.37/53.
174
Idem. p.47.
109
estrangeiros em uma terra desconhecida. Para tanto, se tecia uma rede de amizade e
solidariedade que em certos momentos foi decisiva para aqueles homens e mulheres.
Em Mirassol D’Oeste onde, inicialmente, não havia remédios, nem médicos,
dona Isabel conta, por exemplo, as estratégias utilizadas pelos moradores para resolver
até problemas de saúde:
(...) Aqui não tinha médico, não tinha nada. Aqui a operadora de bezerros era eu.
A parteira era eu. (...) eu esforçava porque eu ficava com dó de ver aquelas
mulheres tudo e não tinha para onde ir. Eu peguei tanto menino aqui. Eu montava
na garupa de cavalo e saía para esse mundo, no outro dia chegava e ia trabalhar
na roça. Era sofrido, eu trabalhava demais na roça. (...) Aqui tinha os poaeiros.
Toda semana passava aquele mundo de homem. Coitados daqueles homens, eles
viviam dentro da mata. Eu não sei para que serve a poaia, diz que faz remédio, né?
Mas aqueles homens eram bons para ensinar remédio caseiro. Quando alguém
precisava de remédio, eles ensinava. Eles trazia “carapiá” que fazia chá da raiz,
era bom para cortar febre e até infecção. Então a gente aprendeu muito. Você
aprende muito, a necessidade faz você aprender coisa! Pois eu não te falei que eu
acabei de cuidar da minha menina, aqui, com pequi!(...)
175
.
Os bezerros que dona Isabel se refere são os partos que ela ajudou a fazer. Nesse
espaço em que não havia médico, a parteira era uma pessoa bastante solicitada. Ao dizer
que ela tinha “dó daquelas mulheres” que não tinham para onde ir, ela não está somente
falando de sua solidariedade com as outras mulheres. Seu relato é revelador porque traz
um “mapa de ações”. Trata-se de pensar um modo de ocupação ocorrido nessa área,
produzido diariamente no entrecruzar de experiências, na apropriação de saberes.
Para sobreviverem às dificuldades de acesso a remédios e assistência médica foi
fundamental adquirirem conhecimento das plantas medicinais que a floresta oferecia.
Isso só foi possível através da interação com os poaeiros.
175
Entrevista com dona Isabel, moradora da cidade de Mirassol D’Oeste.
110
Esses homens, como bem lembra dona Isabel, viviam dentro da mata, conheciam
como ninguém as plantas medicinais que ali existiam. Desenvolveram técnicas de
sobrevivência nesse ambiente, aparentemente inóspito, de floresta fechada. Entre essas
técnicas, a de conhecer quais as plantas medicinais utilizar para determinada doença e
como empregá-las, era primordial.
Ao passarem por Mirassol D’Oeste, na volta para Cáceres, eles levavam raízes
para os moradores e os ensinavam como aproveitá-las e a que serviam de tratamento.
Certamente, essa apropriação, por parte dos moradores dessa área do “saber do poaeiro”
sobre as plantas medicinais e sua utilização, foi especialmente importante na luta para
vencerem os problemas de saúde que viessem acometê-los.
5 - PASSOS, RUMORES E VOZES: CONSTITUIÇÃO DO CENÁRIO URBANO
Dona Isabel morava no local que estava demarcado para ser a futura cidade
dessa área, ou seja, Mirassol D’Oeste: (...) nós compramos três chácaras de dez
alqueires e três lotes na cidade, mas não tinha nada ainda, (...) A nossa casa era ali, na
rua vinte e oito, (...)
176
.
Quando ela fala que “aqui tinha os poaeiros”, e que eles passavam por aquela
localidade toda semana, ela está falando do local destinado à cidade. Ao dizer que
“quando alguém precisava de remédio eles ensinavam”, ela não está se referindo apenas
as pessoas de sua família, mas sim a todas as outras pessoas que moram na localidade
ou próximo do local que estava destinado à cidade. Isso leva-nos a pensar em pessoas
que compraram terras afastadas dessa localidade, como dona Leonilda, por exemplo.
Qual relação essas pessoas mantinham com o “povoado”, se mantinham? Havia
176
Ibidem.
111
diferença entre campo e núcleo urbano, em tempos de abertura das terras, quando as
dificuldades pareciam assolar a todos em igual proporção?
Nesse sentido, o relato de dona Leonilda, ao falar dos tempos iniciais em suas
terras, traz uma leitura da diferença:
(...) Nossa terra era lá no Caeté
177
. E nós não estava nessa felicidade do povo
daqui não! Porque a gente lá é mais perdido ainda. Tinha gente que levava anos
para vir aqui no Mirassol, não tinha coragem de enfrentar sabe, ainda a pé. (...)
Era longe para vir, então no começo a gente demorava para vir aqui (...)
178
.
Em um outro trecho de seu relato, ao mencionar um triste episódio do qual foi
acometida, ela sublinha que eles, lá no sítio, estavam mais perdidos do que os moravam
na “cidade”:
(...) Então, depois eu fiquei grávida, mas eu perdi a criança. Eu quase morri. Meu
marido não estava em casa, só minha menina e meu cunhado. (...) eu sou mãe de
sete, mas vivo, hoje é só tenho cinco filhos. Eu não tive eles lá no sitio não, eu
vinha para casa de um conhecido meu aqui. Para a parteira acudir, eu tinha que
vim para cá, porque lá não tinha ninguém para me acudir (...)
179
.
Dona Leonilda intuía que, se ela estivesse morando “na cidade” ou próximo
dela, teria maior amparo e cuidados numa situação dolorosa e delicada como aquela. Ela
lembra bem de que seu marido não estava em casa naquela ocasião, somente seu
cunhado e sua filha que era uma criança na época. Logo, ao dizer que eles ali estavam
mais perdidos que os que moravam na cidade, ela provavelmente estava se referindo a
177
Nome dado a um córrego. Com o decorrer do tempo denominou-se também a comunidade rural que se
constituiu nas proximidades desse córrego. Essa comunidade está localizada a 12 quilômetros da cidade
de Mirassol D’Oeste.
178
Dona Leonilda ocorrida em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2002.
179
Ibidem.
112
momentos como aquele. Momentos de total solidão. A parteira morava na cidade e, em
momentos como aquele ninguém seria melhor que a parteira para ajudá-la.
Por outro lado, seu relato ao retratar a situação menos favorecida a que estavam
sujeitos no sítio, longe da “cidade”, coloca em cena um espaço que paulatinamente vai
se trans formando em urbano. O espaço onde estava concentrado um certo número de
moradores, o povoado, mais tarde Mirassol D’Oeste.
Nesse espaço, o da futura cidade, aconteciam os encontros religiosos, as
festinhas. Apareceram os primeiros empórios e as idas à “cidade” , como lembra dona
Leonilda, passaram a ser mais freqüentes. Ela conta em seu relato, como passou a ser a
relação dos que moravam nos sítios com o espaço “urbano”:
(...) Primeiro não tinha nada. Tinha só o padre que vinha de Cáceres. Não tinha
igreja e o padre vinha batizar as crianças, (...) O batizado era no pé do cruzeiro,
porque não tinha igreja. Depois fazia festinha, missa, procissão, para arrecadar
dinheiro. Aí que criou a igreja, todo mundo ajudou, fez leilão. (...) Era o
divertimento que meus meninos tinha, a gente vinha de dia e voltava à noite. Nós
vinha a pé, nós não perdia uma festa. (...) Quando era tempo de festa, e a gente
não tinha dinheiro assim suficiente para gastar, você sabe como que é colheita da
gente, é de seis em seis meses. Então eu inventei de moer cana. Fazer melado,
rapadura, tijolo baiano, doce de mamão, doce de amendoim. (...) eu fazia isso aí
numa engenhoca de madeira. Vendia, tudo que eu trazia eu vendia aqui(...)
180
.
No espaço destinado à cidade, as mulheres foram tecendo uma rede de trocas
com as propriedades rurais e com os moradores do próprio núcleo. Experiências
múltiplas produzidas pelos próprios moradores dessa área recente de ocupação que ao
mesmo tempo possibilitam os primeiros esboços de um espaço urbano ainda que com
características rurais e também produzem uma rede de sociabilidades com os moradores
180
Ibidem.
113
das redondezas. Sociabilidade confeccionada nos encontros religiosos, nas festinhas e
pela procura de mercadorias que os “mercadinhos”, ainda incipientes, podiam oferecer.
As relações com o núcleo urbano que aos poucos vai se instalando naquelas
paragens, se estende para além da ruptura com a solidão a que estavam sujeitos nos lotes
rurais. O relato de dona Leonilda anuncia que, aos poucos, se estabelecia uma rela ção
comercial não só pela venda da produção agrícola que passa a ser efetuada no próprio
núcleo e não mais em Cáceres mas também pela venda dos doces produzidos
artesanalmente por ela, e que proporcionavam uma renda que se somava (ou mais que
isso) ao orçamento familiar.
Pensar esse espaço é pensar também o movimento que vai caracterizar o núcleo
urbano. Os relatos, nesse sentido, emitem pistas que expressam, mais uma vez, a
diferença na ocupação das terras dessa área de Mirassol D’Oeste.
O senhor Paulo Mendonça, dono das terras loteadas e revendidas, fala do mapa
que serviu de modelo para traçar a cidade de Mirassol D’Oeste. Esse mapa era da cidade
onde ele morava no Estado de São Paulo. Contudo foi preciso mais que um traçado de
ruas para tornar possível a construção do povoado, que mais tarde tornaria cidade.
Os relatos de memória dos que vivenciaram os tempos iniciais de abertura dessa
área dizem da ação desses homens e mulheres que para ali se dirigiram, e que vão por
meio de suas ações produzir as condições de instalação da “nova cidade”, como por
exemplo, as ruas que estavam apenas com os marcos, mas que foram os próprios
moradores do local que efetuaram, através de seu trabalho, sua abertura: (...) Aí só
estava traçada as ruas. Essas ruas do Mirassol foi meu irmão que abriu no braço. Ele e
o Elias Preto(...)
181
.
181
Entrevista com dona Preta em sua residência em Mirassol D’ Oeste em 2000.
114
Não só o relato de dona Preta fala da abertura das ruas, é possível encontrar em
outros relatos a referência feita aos moradores que cuidaram da abertura das ruas, como
o de dona Isabel: (...) Quando nós chegamos, não tinha nada. Só tinha os marcos, mas
tudo mato. (...) Essas ruas do Mirassol, o Paulo Mendonça mandou riscar, ali onde é a
cidade, e as pessoas que foi chegando aqui é que resolveu abrir, (...)
182
. Dessa maneira
a cidade começa a surgir como o resultado das “práticas de espaço”
183
, pois as pessoas
aí, segundo os relatos, participaram ativamente da construção do espaço urbano.
No entanto, esse movimento que vai aos poucos dando forma à cidade, nas e
pelas ações das pessoas que ali chegavam, configura-se em um movimento carregado de
tensões. Dona Isabel, ao contar sobre as estratégias, para melhorar o orçamento familiar,
especialmente em tempos de “festa” no “povoado”, dá notícias dos conflitos que
ocorriam:
(...) Aqui não tinha nada. (...) aí eu fazia doce. Aquele mundo de doce, o povo
comprava. Eu ponhava lá, meu marido tinha um botequinho, e, ele ia vendendo. Eu
fazia pão, e ele vendia para aqueles outros que ia chegando. Trabalhava o dia
inteiro na roça, aí quando eu chegava, eu ia fazer aqueles pão. (...) E com isso a
gente foi tocando a vida, eu não parava não. (...) nós também, depois, tinha olaria
de tijolo, telha. A gente forneceu um monte de tijolo, de telha. Era com uma caixa
de madeira, movida a animal, era tudo manual. Não era igual hoje. (...) e o sabão
que nós usava! A soda era cinza que virava soda. (...) Quando tinha as coisas,
assim, jogo né? A gente fazia as coisas para ganhar dinheiro. Era o dia que as
meninas mais trabalhavam. Por que iam tudo para vender as coisas. A gente não
tinha preguiça. (...) Pra cá veio muita gente. Nós é que sabe contar o tanto de
gente que morreu lá, na rua. Eles tinham um ditado que: matava um e deixava
outro amarrado para o outro dia. Matava gente trabalhando em roça, assim
trabalhando. Qualquer encrenquinha né? Todo mundo andava armado. Sorte que
com nós, graças a Deus nunca aconteceu nada, com ninguém da minha família.
182
Entrevista com dona Isabel, em sua residência em Mirassol D’ Oeste em 2000.
183
Segundo Certeau, espaço é o resultado das ações e das práticas das pessoas, onde, “o espaço é um
lugar praticado”. CERTEAU, Michel de. op.cit., p.202.
115
Polícia depois de um tempo que veio. Mas veio uns policiais carrascos. Invés de
fazer justiça, fazia era injustiça (...)
184
.
Dona Isabel sabia que, naquele lugar e naqueles tempos das colheitas, não
podiam “parar”, era preciso produzir outras formas de sobrevivência. Sua jornada não se
encerrava ao final do dia de trabalho na roça, ou seja, da limpeza das terras ou de
plantação e manutenção da lavoura. Estendia-se para além desse período.
Á noite dedicava-se aos doces e pães, para seu marido vende-los em seu
estabelecimento comercial visto que ele não podia trabalhar na roça. Mulher, como
muitas outras que vieram para essa área e que não queriam se contentar em esperar por
seus companheiros para consolidar seus objetivos, isto é, fixar-se em seu próprio
“pedaço de chão” e, concretizar a difícil empreitada de mantê-lo. Para tanto,
trabalhariam incansavelmente, mesmo nos dias destinados ao descanso, como em dias
de festa, ou de jogos.
Sua narrativa revela que grande número de pessoas se imbuía nesse objetivo. As
festas significavam a venda dos pães e doces, porém, proporcionava muita insegurança
e conseqüentemente vários conflitos. Todo mundo andava armado, isso implica dizer
que, de certa forma, as pessoas se sentiam ameaçadas. Eram tempos de tensões. Essas
pessoas precisavam contar com o improviso, para sentirem-se protegidas, traduzido por
dona Isabel como a sorte ou a “providência Divina”.
A vinda dos policiais não mudou o cenário de insegurança, pois estes, segundo
dona Isabel, faziam mais injustiças do que justiça. Isso aponta para o desolamento a que
esses homens e mulheres estavam sujeitos.
Provavelmente algumas das injustiças a que dona Isabel se refere estão
relacionadas ao que um outro morador, o senhor João, apresenta em seu relato. Ele fala
184
Entrevista com dona Isabel ocorrida em sua residência em Mirassol D’ Oeste em 2000.
116
de uma grande quantidade de trabalhadores que para cá se dirigiam para trabalhar na
abertura das terras de proprietários que detinham maior área. Esses trabalhadores,
segundo ele, geralmente eram trabalhadores soltos, ou como ele mesmo diz: “volantes”.
Nos finais de semana iam para a cidade, e geralmente abarrotavam os botecos do lugar.
Vale lembrar que o senhor João foi para Mirassol D’Oeste em 1966 e conta ter
presenciado violências que eram praticadas pelos policiais aos que se encontravam
presos:
(...) Pra cá, naquela época veio muito volante. (...) Esse povo vinha trabalhar nas
fazendas. Quando era no sábado eles vinham tudo para os botecos da cidade. Só
tinha dois botecos, aí ficavam bebendo pinga. Era confusão na certa. Era difícil a
vez que não saía briga. (...) Uma vez, eu era moleque e, eu ia buscar leite todo dia
cedo lá para os lado onde ficava a casa que os policiais ficava, que na época era a
delegacia né? Tava fazendo frio, aí eu vi um homem amarrado na árvore que tinha
em frente daquela casa. E eu fiquei espiando, moleque você já viu, curioso. Então
eu vi os policiais esquentando um arame no fogo e encostando no braço, no rosto
do homem.(...)
185
.
Provavelmente as pessoas da época tinham conhecimento das atitudes brutais
dos policiais, e se sentiam ameaçados. A sensação de temor ficou guardada na memória
de dona Isabel. Ela não descreve as atitudes policiais da época tal como o fez o senhor
João que chegou a presenciá-las, mas, dona Isabel, retrata a sensação de medo que
significava a presença dos policiais para as pessoas daquela época ao associá-los a
figura dos executores medievais: as policias que vieram eram carrascos.
Entretanto, nos tempos iniciais de abertura dessa área, os homens e mulheres que
se deslocaram para Mirassol D’Oeste vivenciaram outros conflitos. Dona Leonilda
185
Entrevista com o senhor João, morador da cidade de Mirassol D’Oeste.
117
conta que as pessoas no intuito de facilitar a venda de suas colheitas, na localidade,
acabavam tendo muitos prejuízos:
(...) no comecinho, quando a gente chegou, tinha o seu Odélio que chegou junto
com a gente. Ele tinha um jipão, hoje não existe mais , acabou. Então ele pegava e
levava a gente. Cada um pagava um tanto para ele, e ele pegava e ia em Cáceres,
levava o pessoal. Então, as colheitas vendia assim. Depois veio um maquinista
para cá. Só que esse maquinista foi embora logo. Aí veio outro. Esse encheu,
encheu a máquina de arroz, e não dava o dinheiro para a turma. Viajava, para um
canto, viajava para outro, só sei que no final ele morreu. Se matou. Ih! Menina,
perdeu muito mantimento. O pessoal perdeu dinheiro, perdeu milho na máquina
dele. Ele fez uma casa de pau-a-pique, (...), dizia que ia casar. (...) Então ele fez
uma casa tudo de madeira. Naquela época não existia serraria, era tudo de pau-a-
pique, tudo no machado. Quem pôde fazer no machado fez, quem não pôde fez de
palha. Aí depois que ele fez tudo, fez a casa e barreou, fez o fogão e encheu de
lenha. Depois de tudo, se matou. Acharam ele morto. Sem pagar nada.O arroz
carunchando. O pessoal vinha para buscar as coisas, a máquina estava trancada.
Não tinha quem entregava.Aí quando acharam ele, o arroz apodreceu, apodreceu
milho, apodreceu fubá que ele fazia, apodreceu tudo. Você só via gente
reclamando, perderam tudo (...)
186
.
O relato de dona Leonilda fala do grande número pessoas que perderam toda a
sua colheita, o seu trabalho e o dinheiro investido na venda da sua produção. Seu relato
traz a trágica experiência vivida pelos homens e mulheres que nessas “novas terras” se
depararam com a falta de água, a falta de transportes, de assistência médica/hospitalar e,
ainda com situações ante as quais só restou-lhes “reclamar” a perda de “tudo”, ou quase
tudo.
Por outro lado, seu relato apresenta uma leitura da transformação do cenário
inicial com a chegada das pessoas: a construção das casas, umas de “pau-a-pique”,
outras de “palha mesmo”. Isso aponta para o grande fluxo de famílias em direção a área
186
Entrevista com dona Leonilda em sua residência em Mirassol D’ Oeste em 2002.
118
de Mirassol D’Oeste e os problemas que essas pessoas, na época, enfrentavam para
obterem suas casas. Não só, mas também desamparo financeiro, que hostilizava ainda
mais as situações enfrentadas nos primeiros tempos de ocupação dessas terras, pois
quem não pôde fez de palha mesmo.
O desejo em adquirir seu lote de terras e a lembrança da exploração sofrida em
seu trabalho na “antiga morada”, geralmente no Estado de São Paulo, encontram-se e
misturam-se à persuasão dos corretores que lhes apresentam a possibilidade de
contraírem terras férteis e produtivas, no Estado de Mato Grosso, numa área que já
estava batizada com nome que lhes era familiar, Mirassol, cidade do interior de São
Paulo, próxima às localidades que residiam. A isso somava-se a inquietude em construir
um outro caminho para suas vidas, partiram em busca de uma “vida melhor”, de “um
lugar que desse futuro”.
Nessa área de terras em Mato Grosso, essas mulheres e homens vivenciaram nos
primeiros tempos de ocupação experiências únicas e ao mesmo tempo múltiplas,
individuais e ao mesmo tempo coletivas, tais como: a falta de água, o medo das onças,
medo esse que transforma uma mulher em outra onça, o trabalho duro e exaustivo de
abertura das novas terras, a precariedade das moradias, a deficiência de meios de
transportes, a longa espera dos tempos da colheita. A improvisação os acompanhou,
fazendo-se presente na construção desse espaço da cidade, hoje denominada Mirassol
D’Oeste.
Esses homens e mulheres, como muitos outros sem nome, nem rosto para os
textos escritos sobre a cidade, tiveram que driblar, inventar desvios que possibilitassem
um outro olhar sobre o viver, uma outra história assinalada pelas experiências cotidianas
do refazer sempre. Montenegro aponta que: “Nesse embate, marcado pela ameaça, pela
119
incerteza de ter alimento, essa população constrói um saber que lhe possibilita viver o
avesso da vida, a qual, insistentemente, se quer diferente
187
.
187
MONTENEGRO, Antonio Torres. op.cit.,1994. p.36.
120
CAPÍTULO III
A MEMÓRIA EM MIRASSOL D’OESTE: UMA QUESTÃO
MÚLTIPLA
121
A cidade de Mirassol D’Oeste, em princípios da década de 1990, recebe uma
produção escrita voltada à retratar a história da cidade as apostilas municipais e dois
livros publicados
188
todos apresentando uma mesma e única versão sobre a história da
cidade.
Essas três publicações fazem uma leitura linear do passado, historicizando as
origens da cidade seguindo um fio condutor até os dias atuais, chamando a atenção para
as potencialidades do local. E ainda indica aqueles considerados na produção escrita
189
os moradores pioneiros.
Tais textos são destinados ao público em geral, e especialmente, às escolas de
primeiro e segundo graus do município.
Para essa produção escrita que tem como público alvo as pessoas que residem
em Mirassol D’Oeste, particularmente as que freqüentam as escolas, interessa instituir
uma memória de vencedores onde se destaquem os que se instalaram inicialmente na
área destinada a colonização e, obtiveram êxito financeiro/social. Pessoas que, em sua
maioria, deslocaram-se do Estado de São Paulo.
Assim, a cidade retratada por essa memória, lembrando as palavras de Ítalo
Calvino, (...) é redundante: repete para fixar alguma imagem na mente
190
, portanto, a
188
Apostilas Municipais: material didático, confeccionado pela Secretaria Municipal de Educação e
Cultura de Mirassol D’Oeste em finais da década de 1980 e princípios da década de 1990, dirigido às
escolas de primeiro e segundo graus localizadas na municipalidade, constando informações sobre o
histórico do município e, informações gerais, tais como: dados geográficos, datas comemorativas
importantes para o município, dados populacionais, etc. Em meados da década de 1990, foram editados
dois livros que fazem uma leitura sobre a “história da cidade ou município” semelhante a das Apostilas
Municipais. Logo estes passaram a ser utilizados em todas as escolas do município, substituindo assim as
chamadas Apostilas Municipais. O primeiro destes livros foi escrito por Ataíde Pereira Leite que, na
época em que escreveu e publicou seu livro: História Poesia, editado em 1995, estava ocupando o cargo
de prefeito do município. O segundo livro foi escrito por uma professora do município, Tereza Dias
Pereira, intitulado: História de Mirassol D’ Oeste: Formação e Organização do Município, 1962-1994,
editado em 1998.
189
Sempre que for utilizado o termo “produção escrita”, estaremos nos referindo as Apostilas Municipais
e aos dois livros escritos sobre a história de Mirassol D’ Oeste.
190
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis.São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.23.
122
mesma deve sua formação aos pioneiros/heróis, que a transformaram de cidade
natureza em cidade urbana
191
.
Partindo da idéia de que a história da cidade está indissoluvelmente entremeada
à história dos que são, por esta produção escrita, selecionados, como os que primeiro
chegaram ao lugar e que, com sua força e trabalho, conseguiram transformar uma área
de terras inóspitas em lugar próspero, esses textos produzem uma memória de
vencedores e, fixam uma história de progresso.
Dessa forma, constrói-se para a cidade uma memória assentada em um tempo
retilíneo, contínuo e progressivo. Tempo do progresso, isto é, marca o local que
identifica Mirassol D’Oeste, como se nascesse para o desenvolvimento, uma vez que os
personagens escolhidos para fazer parte dessa memória e compor a “história” da cidade
são pessoas que conseguiram ascensão, seja social, seja financeira.
Essa produção escrita que se propõe a contar a história de Mirassol D’Oeste e
que cria para isso uma determinada memória, usando mais uma vez as palavras de
Calvino, repete os símbolos para que a cidade comece a existir
192
. O símbolo aqui é a
figura do pioneiro paulista, forte, trabalhador e vencedor. Essa figura é enaltecida nos
livros, nas apostilas, no hino municipal, nas comemorações municipais, nas datas
comemorativas. Desta forma, falam em nome de um passado, como se assim “fizessem
crer e dessem a conhecer” a “história verdade” de Mirassol D’Oeste. Uma história
contada, que tem no passado de “progresso e desenvolvimento”, seus autos de
veracidade.
Sendo assim, a partir de finais da década de 1980 e princípios de 1990 são
elaborados textos sobre a história da cidade em que um determinado olhar para o
passado é assumido como a único possível de sua história.
191
PEREIRA, Tereza Dias. História de Mirassol D’ Oeste: Formação e Organização do Município, 1962
1994. R.G.A. Gráfica e Editora Ltda, 1998, p.11.
192
CALVINO, Ítalo. op.cit., 1990, p.23.
123
Cabe, no entanto, ao historiador inquietar-se perante “laudos” que se apresentam
como verdades únicas e imaculadas e que, de quebra, trazem consigo, para afirmarem
suas versões, um passado entendido também como verdade e, portanto, história. Sobre
esse ponto vale lembrar as análises de Keith Jenkins. Para este autor: “(...) o passado e a
história existem livres um do outro: (...) O passado já passou, e a história é o que os
historiadores fazem com ele quando põem mãos à obra
193
.
O passado torna-se tal qual a memória algo de disputa por grupos que querem
estabelecer uma certa versão do passado, a sua versão, para então instituir uma memória
que atenda a determinados interesses, pois: (...) a memória coletiva é não somente uma
conquista, é também um instrumento e um objeto de poder
194
.
Para tanto, os interesses que elaboram a produção escrita sobre a história de
Mirassol D’Oeste e que estabelecem um tipo de memória - a memória do vencedor -
tomam como ponto de partida aquele que deve fazer parte dessa memória: o pioneiro.
Selecionam esses indivíduos que, via -de-regra, têm uma história de ascensão sócia
econômica e, ao mesmo tempo, excluem a multiplicidade das experiências vividas
quotidianamente pelas pessoas que fizeram parte da chegada e vivenciaram o duro
trabalho de abertura da área, tomando como parâmetro apenas o par progresso/pioneiro.
Contudo, existem outras memórias e relatos daqueles que chegaram a Mirassol
D’Oeste no início do povoamento e que elegem outros homens e mulheres que
reivindicam sua presença nessa história para fazer parte da memória social da cidade.
Nesse sentido, estabelece-se um conflito entre as várias leituras sobre a história de
Mirassol D’Oeste, não apenas um questionamento e, sim, um desejo em fazer parte da
memória social da cidade. Cabe, no entanto, inquirir por que é tão significativo ser
193
JENKINS, Keith. op.cit.,p. 25
194
GOFF, Jacques Le, História e memória. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 476.
124
reconhecido como pioneiro? E mais, por que num determinado momento tornou-se
necessário produzir e instituir uma certa memória para a cidade?
1 Mato Grosso: o Celeiro do mundo
É necessário inserir a produção dessa memória, vista não apenas de forma
localizada, mas analisar a partir de coordenadas mais gerais, sobretudo no âmbito da
produção de uma identidade política e cultural para Mato Grosso.
Neste aspecto, torna-se importante refletir que com a ditadura militar, palavras
como desenvolvimento e crescimento, especialmente econômico, circulavam
freneticamente por todo o país. Buscava-se por uma válvula impulsionadora de uma
imagem do Brasil como “um país predestinado a crescer e a se modernizar”. Naquele
momento, era necessário que todos os Estados fizessem ver e crer, para si e para o
restante do país, que eram partes importantes e integrantes de todo o território nacional,
em consonância com o ideário político da nação: segurança nacional, desenvolvimento e
integração.
Souza Guimarães, ao analisar a produção de “uma identidade cuiabana” a partir
de uma certa produção iconográfica para a cidade de Cuiabá entre as décadas de 1970-
1990
195
, traz valiosa contribuição ao apresentar a grande necessidade que se instaura,
para o Estado de Mato Grosso, de sair de sua condição de atraso encurtando as
distâncias, tanto econômicas como geográficas entre esse Estado e os grandes centros
produtivos do país. Assim, a partir da década de 1970, com a política militar de
“preenchimento dos espaços vazios”, e a procura de estabelecer-se como parte
integrante de um país “fadado ao desenvolvimento”, tornou-se imperativo para Mato
195
Cf: SOUZA GUIMARÃES, Suzana Cristina. Arte & Identidade: Cuiabá 1970 1990. 2003
(Dissertação de Mestrado).
125
Grosso construir um passado para si de progresso, ainda que em desenvolvimento. Pois,
de acordo com a análise da autora:
Tratava-se, segundo os discursos dos políticos daqui e ‘de fora’, de
preencher este lugar rondado pelo estigma da ‘falta’ com grandes
contingentes populacionais, que somados ao aproveitamento de seus
recursos naturais, realizariam plenamente a inequívoca vocação da região
de produtora de alimentos -, consolidando-a como grande centro
produtivo para o país e para o mundo. (...)
196
Assim, fez-se imperioso para Mato Grosso construir sua imagem como lugar de
inumeráveis possibilidades de desenvolvimento. Imagem esta, produzida do passado
para o futuro. É nesse sentido que uma luta pela memória, tal qual a autora analisa, é
deflagrada na concepção das elites governantes para “resgatar” a memória cuiabana,
preservando sua identidade cultural.
A preocupação em conclamar e instituir um passado de notável responsabilidade
na construção da história do país, é reforçada como missão histórica, pelas autoridades
políticas estaduais, especialmente depois da divisão do Estado, como no documento que
se segue:
(...) Um Estado que renasce, pela responsabilidade de seu passado, é muito
mais difícil de administrar do que um outro que apenas nasce. O Estado de
Mato Grosso, mais berço da História do Brasil do que qualquer outro do
Centro-Oeste, está renascendo. Precisa reconstruir sua vida político-
administrativa, refazer seus compromissos e, sobretudo, preservar a
história de seu povo, que, mesmo com a divisão, os que ficaram no Estado
do Sul, reclamam a sua origem. Inútil inobservar tal fato, sob pena de ser
julgado pela própria História, o governante que ignorar esta realidade,
porque, quando da proposição, pelo governo Geisel, para mudar o nome do
Estado de Mato Grosso do Sul, sua população foi unânime em afirmar que
196
Idem, p.37.
126
precisava manter a tradição, responsabilidade dos dois estados de Mato
Grosso. (...)
197
O trecho acima aponta para uma enorme preocupação em firmar um passado
para Mato Grosso, que estabeleça suas especificidades culturais, econômicas e sociais
e que contribuíram ativamente pra a construção da história do território nacional. Por
outro lado, o país projetava-se como “um dos principais produtores de alimentos do
mundo”, idéia bastante difundida a fim de inflamar os ânimos de todos os brasileiros,
especialmente dos agricultores, na “luta” pelo crescimento nacional.
Para Mato Grosso forja-se um discurso que a um só tempo quer dar visibilidade
a um passado de tradições, como na matéria citada, mas também necessita firmar-se
como um Estado de fundamental importância econômica na vida do país através do seu
desenvolvimento. Nesse sentido, o Estado, apresenta-se como possuidor de um enorme
potencial produtivo, tal como demonstra o trecho que se segue:
(...) O Estado de Mato Grosso, a nível nacional, aparece com destaque em
termos de potencial agropecuário, para a produção de alimentos e matérias
primas, quer pela diversificação dos seus recursos naturais, quer pela
qualidade dos seus solos, (...). Estes indicadores vêm nos mostrar a
capacidade de a curto prazo o Estado de Mato Grosso responder às
necessidades de aumento a oferta de alimentos, de excedentes exportáveis,
(...)
198
Percebemos que a tarefa de apresentar uma imagem progressista estende-se a
todo o Estado, especialmente no que diz respeito à idéia de grande produtor do país e
participante do crescimento econômico nacional:
197
Revista AGROESTE. Cuiabá, 1982, p.49.
198
Ibidem, p.21.
127
(...) Tudo nos indica que o setor agropecuário nas próximas décadas
responderá cada vez mais pelo desenvolvimento da economia nacional,
crescendo também paralelamente a contribuição do Estado de Mato
Grosso. E que nós, do governo estadual, estaremos atentos para responder
aos anseios nacionais de desenvolvimento, (...)
199
Seguindo essa linearidade progressista, entra em cena uma produção escrita
sobre os municípios que compõem Mato Grosso e, necessariamente, é apresentado o
histórico de cada município sempre envolto por uma história de desenvolvimento.
Buscam nas origens de cada um a marca que dê significado a ele e ao papel que
desempenha, contribuindo para a imagem do Estado como grande produtor do país. A
figura do pioneiro torna -se um ícone nessa construção.
Conseqüentemente, os pioneiros apresentados são sempre pessoas voltadas para
o trabalho com a terra. Essa história que busca as origens, para dar tons de verdade a
certos interesses do presente, encontra na figura do paulista o pioneiro mais ajustado aos
interesses de fixar uma história de progresso para o Estado. Sendo assim, elegem o
paulista que se deslocou para Mato Grosso como herdeiro dos grandes bandeirantes,
responsáveis por seus locais de origem, as regiões Sudeste/Sul, regiões mais
desenvolvidas que os demais Estados do país.
Entretanto, essa não é necessariamente uma produção de identidade nova,
fundada a partir dos anos setenta com a ditadura militar. Albuquerque Junior, em seu
livro A invenção do Nordeste e outras artes, analisa a construção das imagens das
regiões sul e sudeste como locais mais desenvolvidos em relação a outras regiões do
Brasil. Segundo o autor, desde a década de 1920, instituiu-se uma imagem das regiões
do sul e sudeste do país, formadas por elementos europeus, refletindo uma
199
Ibidem, p.22.
128
representação depreciativa do elemento nacional reafirmando o mito de que o nacional
era ocioso, preguiçoso, dado ao atraso: “(...) São Paulo seria, para este discurso
regionalista, o berço de uma nação ‘civilizada, progressista e desenvolvimentista’”
200
.
Estes estereótipos foram estabelecidos como referenciais para as diversas regiões
do país, especialmente aquelas em que, dizia-se, o elemento nacional era mais presente
(negros, índios, culturas híbridas), por exemplo, no Nordeste: “(...) Questionava-se
como podia tal povo ser a base de construção de uma nação”
201
. Como também na
região Centro-Oeste
202
.
Nesses discursos, os grupos brancos de descendência européia foram apontados
como aqueles que se fixaram em maior número nos Estados do sul do país, mais
precisamente em São Paulo, inventando a partir daí, década de 1920, uma visão de
superioridade do Estado paulista em relação aos demais, atribuindo a sua população a
responsabilidade por esta suposta “superioridade” populacional e de raça, como assinala
Albuquerque Júnior:
O regionalismo paulista se configurara, pois, como um “regionalismo de
superioridade”, que se sustenta no desprezo pelos outros nacionais e no orgulho
de sua ascendência européia e branca. São Paulo seria, para este discurso
regionalista, o berço de uma nação civilizada, progressista e
desenvolvimentista
203
.
No caso de Mato Grosso, refletindo sobre os aspectos que determinaram a
produção de um discurso voltado para reinventar a “superioridade paulista” na nova
“colonização” do Estado, pensada como ocupação, durante a década de 1950, a política
200
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, 1999, p.45.
201
Idem, p.44.
202
GALLETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas
representações sobre Mato Grosso, São Paulo, USP 2000, p.239/72(Tese de Doutorado).
203
ALBUQUERQUE JÚNIOR. op.cit., p.45.
129
para a “colonização” das terras devolutas procurou fazer propaganda de suas terras em
locais, de preferência, que carregassem essa marca, de que seus moradores fossem, de
alguma forma, descendentes dos ditos europeus.
As autoridades do Estado tentavam a todo custo estimular estes contingentes de
pessoas a se dirigirem para Mato Grosso. Alcir Lenharo analisa, em seu texto sobre a
questão da terra em Mato Grosso, tal aspecto, frisando: “Em primeiro lugar, abriu-se
espaço para o colono do sul, branco, de origem européia, preferido em relação ao
nacional, geralmente de origem nordestina”
204
.
Dessa forma, as propagandas das terras e as facilidades em adquiri-las eram
estampadas em jornais, tanto na capital do Estado de São Paulo como em cidades do
interior, como aponta Lenharo: “Já O Estado de Mato Grosso, em matéria transcrita de
O Estado de São Paulo refere-se ao aparecimento de anúncios tentadores em pequenos
jornais do interior, (...)”
205
.
Podemos encontrar, na documentação de 1950 do Arquivo Público do Estado,
indicativos dessa preocupação em propagar as terras de Mato Grosso em determinados
Estados:
A fim de se evitar a grande exploração que se vem processando sobre a venda de
terras devolutas do Estado, providencias enérgicas e imediatas deverão ser
tomadas que, a nosso ver, poderiam consistir no seguinte:“1) Publicação a mais
ampla possível, nos estados em que as terras de Mato Grosso tem despertado
maior interesse( São Paulo, Paraná, S. Catarina, Rio Grande do Sul, Minas etc )
sobre preços e normas de se adquirir terras devolutas do nosso Estado...
206
.
204
LENHARO, Alcir. op.cit., p.50.
205
Ibidem, p.57.
206
Relatório das Atividades Desenvolvidas pelo Departamento de Terras e Colonização no período de
1954. APMT
130
O documento aponta indícios de uma forte intenção em trazer para o Estado de
Mato Grosso, certos grupos sociais de determinadas regiões brasileiras. Deixa-se aflorar
o desejo em manter afastados outros que não os dessas regiões específicas
207
, pois, em
nenhum momento, analisando os relatórios de governadores e do Departamento de
Terras e Colonização da década de 1950, ou os jornais, encontra-se qualquer referência
a outras regiões do país como o Nordeste, por exemplo. Há uma tendência política de
exclusão de determinados povos.
Na década de 1960, as propagandas das terras do Estado continuaram a excluir
as regiões Norte e Nordeste. Vamos encontrar, novamente em São Paulo, o maior foco
propagandista das terras devolutas de Mato Grosso, um enorme leilão em que o lance é:
quem oferece menos leva mais terras. Numa nota de jornal publicada em 1963, é
possível notar que o paulista é visto como alguém que, indiscutivelmente, possui o
“dom” do progresso, do trabalho, da capacidade, por isso, é preciso trazê-lo para o
Estado. Pode -se verificar estes sinais através de um exemplo emblemático de uma
matéria do jornal O Estado de Mato Grosso. A reportagem vem trazendo informações
sobre uma homenagem ao então governador do Estado de Mato Grosso, Fernando
Corrêa da Costa, feita pela Câmara Municipal de São Paulo “outorgando-lhe” o título
de: Cidadão Paulistano José Sabino Saúda o Governador Discurso com a
Linguagem do Coração Apelo ao Povo Paulista.
Neste pequeno resumo, destacam-se os pontos principais da solenidade.
Entretanto, o que mais nos interessa é perceber as alusões ao paulista, proferidas pelo
governador de Mato Grosso em seu discurso:
207
Cf: LENHARO, Alcir. op.cit.
131
(...) Nós aguardamos os dias de hoje e estamos felizes por esta quase
obstinação, porque hoje nós já sentimos que os paulistas vão pular o Rio
Paraná, com a sua experiência, com o seu patriotismo, com o seu dinheiro,
com o seu poder econômico, que sem isso não há civilização possível. E lá
nós estamos, paulistas, e digo em nome de todos os matogrossenses, e hoje
paulistano também, aguardando de braços abertos a ajuda de vocês.
Venham nos ajudar a desbravar a maior gleba preparada para receber uma
civilização pujante, que é Mato Grosso. Venham povoar o pantanal, que é a
maior reserva criatória de gado do mundo. Venham plantar nas nossas
florestas. Venham trazer a Sorocabana até Dourados. Venham explorar,
para riqueza vossa e nosso conforto, aquela mata de mais de um milhão de
hectares de terras de primeira ordem, de terra roxa, igual a do Norte do
Paraná, pois que a terra de Dourados não é mais que a continuação da
terra do Norte do Paraná (...) venham para Cuiabá, e vamos conquistar a
Amazônia através do Mato Grosso.
Confesso-me sumamente honrado. Agradeço, comovidamenti a homenagem que
recebi nesta Casa e que levarei para todos os matogrossenses. Repito o meu apelo:
venham, paulistas, ajudar no desenvolvimento de Mato Grosso
208
.
No discurso do governador o Estado de Mato Grosso é apresentado como “a
terra prometida ao povo escolhido”. Somente essa grande mancha de terra pode
comportar uma civilização tão “forte” como a paulista: Venham nos ajudar a desbravar
a maior gleba preparada para receber uma civilização pujante (...). É essa figura
colonizadora do paulista que Mato Grosso esteve esperando e se preparando para
receber.
Falando em nome de todos os mato-grossenses, o governador colocava-se a si e
também o Estado todo, numa posição de total passividade, dando a entender que desde
sempre Mato Grosso e seus moradores estiveram esperando, como num “conto de
fadas” o príncipe-herói, salvador que o libertaria do sono do atraso, levando-o rumo ao
208
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 24 de fevereiro de 1963, n° 4.236, p. 01.
132
desenvolvimento. Nesse discurso, Mato Grosso é o “gigante adormecido” esperando
aquele que pode despertá-lo desse sono que o impede de desenvolver-se: E lá nós
estamos, (...) aguardando de braços abertos a ajuda de vocês (...). O paulista alargou as
fronteiras do país em outros tempos na figura do Bandeirante, elevou a região Sudeste à
condição de desenvolvimento supremo em relação às demais regiões do país e, agora, é
convocado novamente para salvar Mato Grosso: (...) venham, paulistas, ajudar no
desenvolvimento de Mato Grosso.
Tanto o documento acima citado, que data de 1963, como o anterior, que data de
1954, retratam uma preocupação enorme das autoridades estaduais em recrutar paulistas
para ocupar as terras de Mato Grosso. Na fala do governador homenageado, o paulista é
apontado como aquele que pode trazer o progresso, a riqueza e o desenvolvimento para
o Estado.
Em uma outra reportagem, de 1965, a matéria vem apresentando a preocupação
das autoridades com relação aos chamados espaços vazios, para os quais se encontrava
em estudo a transferência de colonos de determinados locais do país. O título da matéria
é: Colonização: Estuda-se Plano para Mato Grosso. Vejamos o plano:
BRASÍLIA: 7 (Agencia Press) O sr. Eudes de Souza Leão, presidente do Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA), no depoimento que prestou na CPI
da Câmara sobre a colonização de Mato Grosso, informou que está em estudos a
transferência de excedentes populacionais para a ocupação de espaços vazios no
Estado.
Acrescentou que deverão ser transferidos para o Norte de Mato Grosso, nas
regiões de Barra do Bugres, Cáceres e Barra do Garças, contingentes gaúchos e
catarinenses, (...)
209
.
209
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 08 de AGOSTO de 1965, n° 4738, p. 01.
133
A documentação alude o posicionamento das autoridades governamentais com
relação a quem deveria vir ocupar/colonizar as terras devolutas do Estado. Um exemplo
disso é o estudo, do qual fala o presidente do INDA (Instituto Nacional de
Desenvolvimento Agrário) para transferir excedentes populacionais a Mato Grosso,
direcionado ao sul do país, bem como a fala do governador que concebe o paulista
quase que como um ser predestinado a esse fim.
Este tipo de discurso dissemina-se nos quatro cantos do Estado e refletir-se-á
diretamente nos municípios que vão tomar como base uma história (suas histórias)
sempre de “desenvolvimento e progresso”, assentada na figura do “pioneiro”, que, em
geral, é alguém de outra localidade, ou seja, de outro Estado.
Várias produções escritas voltadas a difundir/fundir uma imagem e uma história
progressista dos “novos municípios” do Estado são postas em circulação, em todo o
território nacional, como o documento que se segue:
Quando viajamos e vislumbramos as cidades por onde passamos, nem
sempre nos ocorre pensar ou indagar sobre as pessoas que primeiro ali
chegaram e puseram-se a trabalhar como autênticos pioneiros e
desbravadores. Nossa história nem sempre fala, ou nada fala desses
audaciosos e destemidos colonizadores. Enquanto isso a história da
colonização americana esta cheia de seus heróis e até filmes são feitos para
imortalizar suas imagens e memórias.
Mato Grosso, tem muito do oeste americano, (...)
210
.
O texto chama atenção, especialmente, à procura por pioneiros/heróis tal qual a
história da colonização americana. Existe uma necessidade de construir uma história
para essas novas cidades, ressaltando as potencialidades econômicas do local e,
210
Revista O POLICIAL. Cuiabá, 1979, p.24
134
recheada de feitos grandiosos e heróicos dos que são escolhidos e apontados por essa
mesma história como pioneiros, os primeiros a chegarem ao local.
Nesse sentido, a matéria acima traz uma preocupação com a ausência de figuras
heróicas na história recente da “ocupação” em Mato Grosso e reafirma o desejo de
produzir novos heróis para essa história. Essa figura, a do pioneiro/herói, não é única,
o existe um único herói, tal qual o modelo americano, necessitar-se-á de vários heróis.
Sendo assim, esses elementos serão encontrados/produzidos nas cidades criadas,
com a ocupação das áreas de terras do município de Cáceres em Mato Grosso, mais
precisamente. Nessas produções, a figura do pioneiro é envolta por uma aura mítica e
profética.
2 Os novos pioneiros do século XX
Após a divisão do Estado de Mato Grosso
211
, várias matérias
212
abordando o
histórico de cada município entram em circulação através de revistas, jornais, tanto no
circuito estadual como fora dele. Essas publicações voltadas às representações locais, ao
abordarem as novas cidades que emergiram em finais da década de 1950 e início de
1960, arquitetam uma história de progresso e, para dar cunhos de legitimidade a esse
211
A divisão do Estado de Mato Grosso ocorre em 1977, através da Lei Complementar nº 31, que foi
determinada pelo presidente Ernesto Geisel criando o Estado do Mato Grosso do Sul e conservando a
parte norte do antigo território com a denominação de Mato Grosso. Cf. CAVALCANTE, Else &
RODRIGUES, Maurim. Mato Grosso e sua História. Cuiabá: Edição dos autores, 1999, P.127/8.
212
Essas matérias são geralmente, publicadas em revistas, livros e fascículos, que circulam em todo o
Estado de Mato Grosso e fora dele, como é o caso de algumas destas revistas. Publicações que se ocupam
de matérias sobre o histórico de cada município e dos seus respectivos pioneiros, dentre as quais algumas
são analisadas neste capítulo: Revista: O POLICIAL, ano 1 Cuiabá setembro de 1979 número 1. O
POLICIAL, ano 1 Cuiabá maio de 1980 número 2, AGROOESTE, ano II número 11 oeste
brasileiro janeiro/fevereiro de 1982. Os fascículos publicados pela fundação Júlio Campos que são
analisados neste capítulo são os de números: 02, 03, 04, 05, 07, 08, e, 87. Alguns livros publicados que
também abordam esse assunto: FERREIRA, João Carlos Vicente. op.cit. e, SILVA, José de Moura e.
Cidades de Mato Grosso: origem e significados de seus nomes. Cuiabá: JCV, 1998. E ainda outros que
serão analisados nesse capítulo.
135
histórico, focalizam particularmente a história dos chamados pioneiros destas cidades de
ocupação recente, como o texto aponta:
(...) OS BANDEIRANTES DE HOJE.
As conquistas daquela época foram apenas etapas do desenvolvimento por que
teria que passar esse imenso território brasileiro e, que ainda hoje, mantém
virgens imensas áreas de sua parte norte as terras amazônicas.
Para desbravar esses torrões nativos e virgens, ainda existem os pioneiros do
século vinte. Herdeiros daqueles bandeirantes audazes e de que nossa
memória jamais poderá esquecer.
Apenas, mudaram-se os tempos, o homem já não busca o ouro com tanta
ânsia, e acredita mais na terra naquilo que pode ser tirado através da
plantação e do cultivo. Mas, esse homem tem que ser um forte, um
trabalhador audacioso e de muita coragem (...)
213
.
Ao lembrar os bandeirantes como os grandes heróis nacionais de tempos
passados, o texto transfigura e reencarna esses heróis, nos tempos de hoje, na pessoa dos
pioneiros do século vinte. Heróis que a memória não pode esquecer. Ao selecionar o
que não deve ser esquecido, o discurso traz à baila as intenções a que essas produções
respondem: produzir e instituir uma memória legítima para o Estado, com a qual todos
os municípios que o compõem estejam em total consonância. Sendo assim, o foco
direciona-se para a pedra de base dessa fabricação, o pioneiro. Este “homem forte” é
revestido de uma aura, quase uma profecia que o induz fatalmente para o seu destino: as
terras de Mato Grosso.
O segundo número da revista
214
traz uma série de textos sobre os denominados
pioneiros de determinadas cidades. Apresenta o patrimônio financeiro de cada um,
213
Revista: O Policial. Publicação de divulgação das atividades civis, militares e municipalistas, editada
em Cuiabá Mato Grosso, com circulação dirigida em todo o país. 1979, p.28.
214
Revista: O Policial. Ano I, Cuiabá, maio de 1980, número 2.
136
particularmente sua localidade de origem e a “chamada” para dirigirem-se e ocuparem
as terras do Estado. Em geral, o modelo de apresentação desses homens, ou seja, a
história de cada um, sempre relacionada à história da cidade em questão, não difere em
quase nada de uma matéria para outra:
(...) Fazenda Lagoa das Flores, uma das mais belas propriedades rurais da
Grande Cáceres. Pertence ao Sr. Joaquim Luiz de Oliveira, 51 anos, natural de
Iturama Minas Gerais, (...).
Quando ouviu o canto da sereia dos pioneiros, chamando para as férteis terras
matogrossenses, foi conhecer de perto (...).
GERALDO ASSIS DOS REIS Fazenda São Jorge Jauru.
Proprietário de três Fazendas as São Jorge 1, 2 e 3, Geraldo de Assis é outro
mineiro presente em Jaurú Mato Grosso.
Como todos os pioneiros, também ouviu um dia o canto da sereia sobre as terras
matogrossenses, (...)
AZUIR JOSÉ GONÇALVES. Fazendas, Colina, Furna Linda, Cachoeira
Mirassol D’ Oeste.
DALVO ROSSI. Madeireira Rossi Jauru.
Grande tem sido a participação dos emigrantes italianos no processo de
desenvolvimento do país. Muitos deles permaneceram principalmente no sul
do Brasil, onde fundaram comunidades que hoje orgulhosamente são
prósperas cidades brasileiras. O povo italiano é na verdade um povo
trabalhador e um dos melhores imigrantes, pois facilmente se adapta ao
sistema comunitário nacional.
O Sr. Dalvo Rossi, nascido em Barra Bonita, Município de São Paulo, é filho de
imigrantes que trabalhavam em administração de fazendas na região de São
Paulo, vive em Jauru Mato Grosso, onde exerce funções de relativa importância
para a comunidade. (...)
137
WANDERLEY JOSÉ VALENTE Porto Esperidião.
Wanderley José Valente, é paulista de Cosmorama e proprietário da Fazenda
Córrego Branco (...). O exemplo de Wanderley Valente, é a mostra mais consciente
de que com despreendimento e coragem, o homem, (...) pode galgar na sociedade
privilegiadas posições apenas com a força de seu trabalho. (...)
215
.
As matérias acima referidas tais como as demais, apresentam não só o nome dos
que eram considerados os pioneiros das respectivas localidades, mas também as
propriedades que possuíam. Mostrando dessa forma que os primeiros a chegarem no
local, com muito trabalho conseguiram trazer prosperidade e desenvolvimento a essas
diversas áreas do Estado. Nessa construção da figura heróica do pioneiro chama atenção
a relação que se quer demonstrar entre o elemento que veio de fora e o progresso
material alcançado e proporcionado por ele à localidade em que se instalou.
Dessa forma, a matéria aponta num primeiro momento a construção da imagem
do Estado. Um Estado que tem terras de inegáveis qualidades e que oferece inúmeras
oportunidades para enriquecimento, como as conseguidas por aqueles apresentados na
reportagem da revista. Essas matérias querem demonstrar ainda, que são numerosas as
opções de escolha, pois, as várias localidades abordadas pe la reportagem contêm, cada
uma delas, pessoas que se instalaram e tornaram-se grandes proprietários.
Ao apresentar os chamados pioneiros como pessoas possuidoras de considerável
capital e trazer estampado o local de origem dessas pessoas, as reportagens analisadas
apontam para uma outra questão. A intenção de “fazer crer” que o elemento vindo,
geralmente do sul do país, traz com seu trabalho e força, desenvolvimento e progresso
para a localidade em que se instalou e para o restante do Estado. Nesse ponto, tal
“história” reproduz e fixa a idéia de depreciação do elemento regional.
215
Ibidem, p. 26-48.
138
O pioneiro é cercado de qualidades sempre ressaltadas que se resumem ao local
de origem e a descendência, italiana ou paulista, por exemplo. Sempre transformando as
localidades onde se instalam e adquirem propriedades, em prósperas cidades. Esses
pioneiros são apresentados como seres predestinados a cumprir a missão de levar o
desenvolvimento a essas áreas do Estado. Como por encantamento, um certo dia, ouvem
o chamado, o canto da sereia, chegam e se tornam afortunados proprietários de terra.
Portanto, a imagem do pioneiro retratada pelas reportagens acima é a de pessoas
que se deslocaram para as terras de Mato Grosso, alcançaram sucesso, tornaram-se
grandes proprietárias de terra e, ocupam na sociedade, privilegiadas posições.
Para essa “história” de pioneirismo e progresso, esses são: Os Bandeirantes do
Século XX. Homens que se deslocaram para Mato Grosso e conquistaram riqueza.
Referimo-nos a deslocamentos, porque o documento focaliza predominantemente
aqueles que são originários de determinados locais do país, como se o morador que tem
suas origens no Estado não fosse capaz de fazer e trazer o esperado progresso, pois, para
essa história é imperativo ressaltar que: Grande parte dessas famílias não são
originárias do Estado de Mato Grosso, a maioria delas veio principalmente do sul do
país, (...) A maioria veio, viu e venceu. (...)
216
.
Quando se fala de algum dos chamados “pioneiros” que, por ventura, é oriundo
do Estado, isso é feito com as devidas reservas, como o trecho que se segue:
(...) NESTOR CARDOSO LEAL. Fazenda Poções P. Esperidião.
A certa altura da vida o homem olha em torno de si e vê um universo nem tão
misterioso e por muitas coisas feitas por ele ao longo de seus dias. Nestor
Cardoso, outro dos pioneiros da Grande Cáceres parece-nos ser um desses
homens (...)
216
Ibidem, p.25.
139
Em Porto Esperidião a Fazenda Poções representa uma das poucas
iniciativas de progresso, encabeçada por um filho da terra, pois Nestor,
sendo natural de Cáceres se mistura a centenas de produtores e
agropecuaristas, vindos principalmente de São Paulo, Paraná e Minas
Gerais (...)
217
.
Essas reportagens traduzem o significado de ser um pioneiro. Alguém que se
estabeleceu nas novas áreas de abertura em tempos iniciais e, com muito trabalho,
conseguiu tornar-se bem-sucedido e proprietário, seja de terras ou de estabelecimento
comercial, angariando assim importantes posições na sociedade.
Notadamente o documentário da revista quer estabelecer uma imagem única: a
de que o pioneiro é uma pessoa bem estruturada financeiramente e, salvo algumas
exceções, são provenientes do sul do país. Esforça-se em dar ênfase a este detalhe,
mesmo quando se refere a alguém originário do Estado, como é o caso acima citado que
se trata de um filho da terra, esclarece, isso representa uma das poucas iniciativas de
progresso engendradas por alguém da própria localidade. Uma demonstração de que o
esperado desenvolvimento viria particularmente através do elemento de um outro
Estado.
Em princípios da década de 1990 é concebido um projeto
218
de divulgação da
“história do Estado de Mato Grosso”, através de seus municípios, a ser propalado em
todo o Estado.
Esse projeto recebe uma denominação significativa: “Projeto Memória Viva”.
Para realização do projeto, são utilizados não só a produção escrita mas também uma
produção audiovisual, onde são apresentadas as “potencialidades” de alguns
municípios selecionados:
217
Ibidem, p.30.
218
Cf: BERTHOLINI, José Amílcar. História e memória de Mato Grosso no Projeto ‘Memória Viva’.
Monografia. Cuiabá: UFMT/ICHS, 1997.
140
(...) Os outros vídeos seguiram a orientação exposta na apresentação, sendo
basicamente o registro de história do município desde sua gênesis até aquele
período, tecendo ainda referências sobre suas potencialidades econômicas, seus
vultos políticos, heróis, formação geográfica e turística enfim.”
219
.
Uma outra intenção do projeto “Memória Viva”, segundo Bertholini, é de
caráter “pedagógico”, ou seja, todas as informações divulgadas através do projeto
deveriam ser apreendidas em sua globalidade envolvendo a divulgação na mídia, uma
“vasta” produção escrita e também, uma orientação voltada para a educação, pois:
O Projeto “Memória Viva” foi concebido pelo Sr. João Ferreira, (...). Contou
também com a colaboração de sua esposa Pedagoga, (...). Devido a participação
da Sra. Ferreira, constou no Projeto a possibilidade de aplicação no ensino
básico, sendo oferecido à Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso,
(...)”
220
.
Sobre o projeto Memória Viva, interessa-nos particularmente os fascículos que
se encontram publicados. Todos seguem, geralmente, o mesmo modelo para
divulgação do “histórico” de cada município. Cada fascículo traz estampado na capa
um traçado do mapa do Estado, logo abaixo desse traçado uma frase é inscrita: Mato
Grosso tem História. Já na capa do fascículo, é criada uma idéia. A idéia de que o que
se retratará sobre o respectivo município é a história do Estado, ou a história de um
município que compõe esse Estado, portanto, uma parte que juntando a outras partes
formam a história de Mato Grosso.
Assim, cada município tem sua “história” retratada sempre de maneira
progressista. Notadamente o que se destaca são as “potencialidades” do município,
219
Ibidem, p.07.
220
Ibidem, pp.09-10.
141
buscando desde os tempos iniciais de cada um, o significado de seu surgimento, isto é,
um lugar que emerge da “ação destemida” de determinados indivíduos, os pioneiros,
para levar progresso a determinados pontos do Estado.
Chama-nos a atenção a proposta do projeto que é impressa na parte interna da
capa de cada fascículo, tal qual o trecho seguinte:
Plano da Obra Municípios de Mato Grosso é uma publicação da Fundação
Julio Campos através do Projeto Memória Viva.
Esta obra compõe-se de 117 fascículos ilustrados e mostra a memória histórica
dos municípios de Mato Grosso individualmente. Aborda temas culturais,
históricos, ecológicos, turísticos, sociais e econômicos (...)
221
.
Ao dizer que cada fascículo mostrará a memória histórica dos municípios de
Mato Grosso, o trecho acima apresenta a intenção da proposta do projeto, ou seja, a de
reproduzir uma certa memória e fixar uma determinada história tanto para o município
que será retratado, como para o Estado. Sempre uma história de progresso e uma
memória vencedora. Geralmente, é apresentada a história dos pioneiros acoplada à
história da localidade, representada em cada fascículo. Essa é sempre uma história de
conquistas e vitórias, como retrata o trecho abaixo:
(...) os alimentos de primeira necessidade sempre procedia de suas lavouras, para
esses homens que chegaram a Reserva quase sem nenhum dinheiro no bolso, mas
com a vontade indômita de arregaçar as mangas nos petrechos de agricultura,
vencer juntamente com a nova cidade que nascia foi apenas um passo (...)
222
.
A intenção do texto é apresentar e enaltecer a ação heróica dos chamados
pioneiros, ao mesmo tempo em que é ressaltada a “missão” progressista do município,
221
Esse Plano da Obra é impresso em todos os fascículos.
222
Cf: Fascículo número 02 do Projeto Memória Viva Reserva do Cabaçal.
142
quer dizer, esses homens com vontade indômita conseguiram vencer porque
escolheram uma área que continha todas as “potencialidades” favoráveis ao progresso.
Portanto, o pioneiro mais as qualidades do local formam um par indissociável. Sempre
ao retratar um determinado município, contando sua história desde os tempos iniciais,
destaca-se não só a ação “heróica” dos pioneiros como também as inigualáveis
qualidades do local. Isso é uma preocupação presente em várias publicações sobre a
história do Estado.
Em uma publicação sobre Mato Grosso, denominada, Mato Grosso: Política
Contemporânea, aparecem os municípios que compõem o Estado, dentre esses o de
Mirassol D’Oeste. Cada município tem seu “histórico” apresentado em poucas linhas,
pois, o que interessa é mostrar que o local nasce para trazer enriquecimento àquela
região e a todos que se interessaram por aquelas terras. Com o trabalho “vencedor” de
seus pioneiros, Mirassol D’Oeste tem sua “biografia” exposta tal qual apresenta a
produção escrita sobre a cidade que segue:
(...) A radicação colonizadora da região teve por base a cidade de Cáceres e
Mirassol D’Oeste teve a primeira entre as correntes migratórias colonizadoras.
Apenas após a construção da ponte Marechal Rondon sobre o Rio Paraguai, em
Cáceres, aconteceu o progresso, por sinal rápido e explosivo. Colonos
procedentes do Estado de São Paulo, chegaram à região no inicio da década de
sessenta,....companheiros de luta, fixaram residência e conseguiram com seu
trabalho e dedicação, transformar estas terras em lugar saudável e atrativo para
outros colonizadores (...)”
223
.
Tanto o texto acima, como os anteriormente citados - os fascículos do Projeto
Memória Viva - assinalam um desejo em mostrar os municípios que formam o Estado
com seus “históricos” voltados para o progresso. A missão desses municípios é
223
FERREIRA, João Carlos Vicente.op.cit.,p.133.
143
abrilhantar a memória histórica de Mato Grosso. Para tanto, se segue um ritual que vai
buscar no município e conseqüentemente em sua “história” as bases de sustentação de
uma imagem do Estado e para o Estado. Assim, a intenção é fazer com que quem lê
esses textos perceba e acredite o quanto Mato Grosso oferece oportunidades para
“melhorar de vida”.
Ao apresentar cada município, esses textos procuram destacar particularmente as
qualidades “naturais” da área de terras dos respectivos municípios, ou seja, a grande
fertilidade do solo. Assim esse discurso quer mostrar o que o Estado tem em maior
quantidade, que é a terra e, instituir a idéia de que é pelo trabalho com a terra que se
consegue progresso, desenvolvimento, a riqueza, como no trecho que segue: “(...)
apesar do município-mãe, (...), ser de origem garimpeira, sua vocação é agrícola, o que
fatalmente permitiu o crescimento vertiginoso da economia”
224
.
Esse histórico dos municípios vem sempre acompanhado de uma receita: ao
difundir que as inigualáveis potencialidades das terras em conjunto com a ação bravia
dos pioneiros, geram o progresso, tanto para a localidade como para os pioneiros, que
em geral são do sul/sudeste do país. Através de frases como: “(...) Os paulistas tiveram
decisiva participação na formação da Capitania de Mato Grosso”
225
, ou, “(...) A ação
determinante de migrantes sulinos, gente afeita à terra, (...)”
226
. Procura-se fazer crer
que o local teve bom desenvolvimento porque seus pioneiros são pessoas procedentes
de locais “desenvolvidos” economicamente e de tradição agrícola. Esse discurso
dissemina-se em todo território estadual, especialmente, nos municípios de ocupação
recente como o de Mirassol D’Oeste.
3 Mirassol D’Oeste: A “cidade natureza” à “cidade urbana”
224
Cf: Fascículo número 87. Projeto Memória Viva. Primavera do Leste. 1994.
225
Ibidem, p.03.
226
Ibidem, p.03.
144
Em Mirassol D’Oeste quando emerge a produção escrita sobre o local, em finais
da década de 1980 e início da década de 1990, a idéia que se tenta passar sobre o Estado
de Mato Grosso e sua população é uma idéia depreciativa, que pretende apresentar
“provas históricas” de que somente paulistas poderiam trazer o desenvolvimento para o
Estado e para a localidade.
Percebe-se mais uma vez os reflexos e a reafirmação da idéia de exclusão, que o
próprio discurso das autoridades políticas ao longo das décadas de 1950 e 1960 já
apresentava, quando, constantemente procurava atrair para as terras devolutas do Estado
preferencialmente pessoas do Sul/Sudeste do país.
A produção escrita do local apresenta uma “história” da cidade, de forma a
destacar sua origem e promover o enaltecimento de determinados atores, sempre
paulistas. Pessoas que alcançaram ascensão sócio-econômica, destacando seus feitos
para conseguirem seu enriquecimento e conseqüentemente o do município. Esta história
apresenta-se de forma linear e tenta construir, desde princípios do século XIX, o motivo
do desenvolvimento com que Mato Grosso foi contemplado e posteriormente Mirassol
D’Oeste.
(...) A Capital mato-grossense com moldes de vida nativos do lugar, com
costumes adaptados de seu povo, ainda não se desenvolvia. Surge então, a
procura de migrantes do Brasil e de outros países. Pessoas que migravam com
culturas diferentes, com vida voltada para o ritmo europeu chega na cidade
desestruturada e começa e começa a questionar e a procurar meios para a
mudança (...). As pessoas, neste momento, começam a viver em regime semi-
capitalista e passa depois para o próprio capitalismo, onde todos são destinados
a trabalhar, conseguir desenvolver bens e aplicar seu capital(...)
227
.
227
PEREIRA, Tereza Dias. op.cit ., p.10.
145
É notadamente um discurso que desqualifica as pessoas nascidas em Mato
Grosso e que enaltece o elemento que vem de fora, de outro Estado. O “texto” tem a
intenção de afirmar as qualidades das pessoas que se deslocaram para Mato Grosso,
mais precisamente os paulistas. A idéia esboçada é a de apresentar os predicados dos
paulistas através de evidências históricas e também a de demonstrar os benefícios que
estes proporcionaram a Mato Grosso e a sua população, mudando e desenvolvendo
hábitos e costumes “atrasados” dessa “gente”, o elemento regional descendente dos
antigos moradores do país.
Se as modificações tão esperadas não aconteceram por completo em um tempo
anterior, foi por responsabilidade dos que se deslocaram para Mato Grosso antes dos
paulistas:
Quando Mato Grosso começou o seu florescimento os outros Estados do Brasil já
estavam sendo explorados. Pois Mato Grosso foi vítima de uma mineração
desordenada que fez com que os garimpeiros dessem prioridade ao processo de
mineração, deixando de lado a exploração e ocupação das terras vistas como
meio de melhores condições de subsistência. Este foi um dos motivos que fez com
que Mato Grosso fosse no passado explorado por imigrantes e especuladores que
lutavam em prol de seu próprio bem estar”
228
.
O trecho acima desqualifica outra forma de vivência que não seja o trabalho com
a terra, tendo em vista a produção de uma identidade agrícola. A intenção é a de
demonstrar que a terra do local é fértil e produtiva, e o cultivo desta proporciona o
progresso e a riqueza. É importante destacar que o texto está dirigindo-se para a
população da cidade de Mirassol D’Oeste onde alguns dos que são eleitos por esse
discurso residem e ainda possuem suas propriedades. Essa “história” não deixará de
228
Idem. p.16.
146
lembrar constantemente quem foi para Mirassol D’Oeste, sua importância e influência
na formação da cidade. Características assinaladas como “naturais” dos pioneiros: “(...)
O povo que viveu este período sente falta das modestas festas e moldes de povo
pioneiro povo simples mas com espírito de luta, amor e solidariedade (...)”
229
Esse discurso reproduz e institui para a cidade a idéia de que, se não fossem os
paulistas, o Estado e conseqüentemente o município estariam desprovidos de
desenvolvimento e ainda, a saída do atraso em que se encontrava Mato Grosso
perpassou pela colonização efetuada pelo paulista. Seguindo as artimanhas do texto, os
paulistas transformaram o Estado de “matéria -prima em pedra preciosa”, integrando-o
ao restante do país, civilizando-o, modernizando-o.
Nesse sentido, através dos textos sobre Mirassol D’Oeste cria-se uma memória
para a cidade calcada na idéia do pioneiro/paulista indissoluvelmente ligada ao
progresso. Apresenta-se os chamados pioneiros como as pessoas que chegaram
primeiramente ao local e com sua força e coragem conseguiram “desbravar
heroicamente” o “sertão” que lá existia.
Estes “heróis” são descritos nos textos que circulam pela cidade como os que
levaram desenvolvimento para aquela área e com seu esforço e dedicação ao trabalho,
efetuaram verdadeiras mudanças no cenário encontrado na chegada. Esta façanha é tida
como algo natural, inerente a esse povo “predestinado” a modificar tudo que tocar,
pois: “(...) Devido o esforço e a dedicação destes fundadores, conseguiram transformar
a cidade natureza em cidade urbana.(...)
230
. Essa oposição que se cria no nível do
discurso, “cidade natureza” e “cidade urbana”, institui uma certa noção de tempo
contínuo. Para esse discurso que naturaliza e reproduz uma diferença entre “natureza”
floresta, animais selvagens, fauna e flora abundante/atraso, e, “urbana” construções
229
PEREIRA, Tereza Dias. op.cit., p.13.
230
Ibidem, p.11.
147
em concreto, comércio, circulação de informações/desenvolvimento, os selecionados e
denominados como pioneiros são apresentados por esse mesmo discurso, como agentes
transformadores e promotores do progresso.
Para a produção escrita local é importante demarcar de onde vieram os que
formaram a cidade, portanto, é significativo destacar especialmente que vieram de São
Paulo:
(...) No ano de 1962 inicia a colonização mirassolense com a percussão dos
pioneiros paulistas e migrantes de Mirassol, São José do Rio Preto, Jales, Tanabi,
Fernandópolis, Votuporanga, Santa Fé do Sul e outras cidades da mesma região
do Estado de São Paulo”
231
.
Ao se referir aos paulistas, a autora tenta assinalar com supostas evidências
históricas as características e as conquistas dessa gente da qual se pretende descender:
Evidentemente que a tradição dos paulistas, como bandeirantes, caracterizou
sobremaneira a colonização de várias regiões do Estado de Mato Grosso, dentre elas, a
Grande Cáceres”
232
.
Essas pessoas eleitas para fazer parte da memória da cidade, em geral, são
pessoas bem estruturadas econômica e socialmente. Entretanto, repetir incansavelmente
uma mesma afirmação, silenciando outros personagens é uma forma de dizer o que se
pensa a respeito dos que não aparecem no discurso e afirmar uma postura sobre o que se
deseja tornar visível, perpetuando algo. Essa é certamente uma maneira de expulsar da
memória qualquer um que se diferencie do modelo esperado, que é o do pioneiro
231
Ibidem, p. 10.
232
LEITE, Ataíde Pereira. História e Poesia. Gráfica e Editora Pe. Berthier dos Missionários da Sagrada
Família, 1995.
1995. p.09.
148
trabalhador pobre que chega e com muito esforço, dedicação e disciplina consegue
trazer progresso à localidade e tornar-se próspero proprietário.
O silêncio, neste caso fala. Fala sobre o que se pensa e como se age perante o
outro, o diferente, o pobre, aquele que não é paulista, que não ficou rico e não
representa uma boa imagem da cidade.
A esse respeito pode-se refletir a partir da entrevista concedida pelo senhor
João
233
, em seu relato de memória, em que menciona um grande contingente de
trabalhadores “soltos” que se deslocaram para a área de terras de Mirassol D’Oeste para
trabalharem na abertura das fazendas. Segundo seu relato, “trabalhadores soltos” eram,
em geral, homens que iam para aquelas paragens sem família, apenas para atuarem na
abertura das fazendas. Entre esses trabalhadores havia muitos nordestinos:
(...) Pra cá, naquela época veio muito volante. (...) Esse povo vinha
trabalhar nas fazendas. Tinha muito nordestino, gente que vinha sozinho,
né? (...) Ah, nessa época tinha muita peonagem, aí, vinha ficava nas
fazendas no meio de semana, no sábado vinha tudo para a cidade quando
pensa que não, saía briga (...)
234
.
Ao dizer que dentre as pessoas que foram contratadas para trabalhar nas
fazendas muitas eram provenientes da região Nordeste, o relato do senhor João rompe
com a idéia de que para a área de Mirassol D’Oeste, deslocaram-se apenas paulistas.
Nos textos que pretendem retratar a história de Mirassol D’Oeste os personagens
que aparecem, atualmente, são os que se caracterizam como grandes proprietários.
233
O senhor João residia em Populina, São Paulo. Ele e sua família trabalhavam como arrendatários.
Mudaram-se para a área de terras de Mirassol D’Oeste no ano de 1966. A entrevista com o senhor João
ocorreu em sua residência, em Mirassol D’Oeste, no ano de 2000.
234
Cf: Entrevista com o senhor João.
149
Trabalhadores pobres, identificados como “nordestinos” foram excluídos dessa
memória.
Folheando a produção de textos sobre a cidade, o que se encontra são
informações sobre as pessoas que conseguiram certa posição econômica e social.
Pessoas que enfrentaram toda sorte de perigos e desalentos não existem para essa
memória construída sobre as muralhas da intencionalidade em firmar uma idéia de
cidade pródiga e bem aventurada.
Assim, estes textos se ocupam de uma história linear, ou seja, desde os tempos
iniciais da cidade, descrevendo em tom heróico a saga dos que são reconhecidos por
estas leituras sobre a formação da cidade como os pioneiros, apresentando-os como
aqueles que, com muito trabalho, ao mesmo tempo em que angariavam bens materiais,
construíam e transformavam o local em próspero e vencedor. Nota-se que os discursos,
estão sempre representando interesses de um determinado grupo, nunca são discursos
neutros, sem intenção alguma, pois: “(...) produzem estratégias e práticas (sociais,
escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados (...)”
235
.
Dessa maneira, os textos sobre a história de Mirassol D’Oeste, que instituem
uma memória vencedora, ao selecionar, eleger e apresentar as pessoas de determinados
segmentos sociais, simultaneamente elegem e selecionam também os que não serão
incluídos, os que na visão desses grupos têm uma história de derrotas, são perdedores,
pois, não conseguiram construir no “novo lugar” uma imagem de sucesso financeiro.
Portanto, não podem ser apontados como os formadores de uma cidade que precisa
passar para si (seus moradores) e para os outros uma história de progresso.
235
CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. RJ: Editora Bertrand Brasil,
S.A.p. 17.
150
Esses textos instituem uma memória vencedora, excluem uns e enaltecem alguns
outros personagens, porque entendem que alguns representam a me lhor imagem de uma
cidade que precisa afirmar-se como aquela que oferece muitas oportunidades.
Necessitam apresentar uma história sempre direcionada para o futuro.
Entretanto, essa história não fica circunscrita apenas aos redutos da cidade, ela
vai além. É repetida nas várias produções que tratam do histórico do Estado e seus
municípios, portanto é uma história que se quer dar a conhecer e fazer-se fixar, não só
para si como também para os outros enquanto verdade única.
A experiência vivenciada nos primeiros momentos da abertura das terras dessa
área da cidade focalizada, ainda que re-significada pelas experiências do presente,
emerge nos relatos de memória como uma ruptura. Ao rememorarem e contarem suas
experiências vividas juntamente com o acontecer da cidade, os relatos de memória
apontam para a descontinuidade e multiplicidade de uma história que se quer
ininterrupta e homogênea.
A produção escrita que retrata uma história oficial sobre a cidade constitui um
modelo de explicação que estabelece uma image m homogênea da cidade de Mirassol
D’Oeste, negando, excluindo, omitindo tudo que escapa a esta linearidade progressista.
Dessa maneira, criam verdades sobre determinado fato, a construção da cidade
e a instituição de uma certa memória, onde tentam explicar, por exemplo, como e por
que surgiu Mirassol D’Oeste, como o trecho a seguir:
(...) Neste mesmo ano chega em Mirassol D’Oeste o senhor Antonio Lopes Molon,
(...) Com espírito de florescimento, emprega todo seu capital nesta região,
requerendo através do Departamento de Terras do Estado, a documentação das
151
terras que eram devolutas e montou um escritório de vendas na localidade onde
hoje reside a cidade de Mirassol D’ Oeste (...)
236
.
Entretanto, existe uma outra versão sobre a questão das terras devolutas, que é a
do Senhor Paulo Mendonça proprietário das terras que foram loteadas para formar a
cidade. Ele afirma que comprou as terras de outras pessoas, não do Estado. Essa leitura
difere da apresentada pelos livros encomendados, pois, segundo ele: “(...) a terra aqui
não era devoluta, essa família Saraiva fez os requerimentos,(...) Primeiro foi o estado,
segundo essa família,(...) então quer dizer eu sou o terceiro proprietário (...) Quando
eu cheguei aqui não tinha mais terra devoluta...”
237
.
O referido escritório de vendas de terras ou qualquer uma das versões citadas
não aparecem nos relatos de memória das pessoas que se deslocaram para referida área
nos tempos iniciais de abertura. As versões apresentadas apontam na direção indicada
por Montenegro: “As histórias que se digladiam estabelecem um campo de guerra
(...)”
238
. E afirma ainda: “Fortalece-se dessa maneira, o campo da história como
campo de luta”
239
.
Nos relatos de memórias apresentados no segundo capítulo deste trabalho, não é
mencionada nenhuma referência à existência de um escritório de vendas de terras na
localidade, nem sobre a participação do proprietário. Ao expressarem sobre como
ocorreu a compra dos lotes e os primeiros tempos no local, ninguém viu ou ouviu falar
do proprietário, todos afirmam que negociaram suas terras com o “corretor”: “(...) nós
236
PEREIRA, Tereza dias.op.cit.,p.10.
237
Entrevista com o senhor Paulo Mendonça realizada em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2002.
238
MONTENEGRO,Antonio Torres. op.cit.,1994. p.67.
239
Ibidem, p.27
152
compramos do corretor mesmo (...) era o senhor Nelso (...)”
240
. E ainda: “(...) quem era
dono daqui era o corretor, o senhor Silva (...)”
241
.
Todos foram categóricos em afirmar que em nenhum momento houve qualquer
escritório de vendas de terras no local onde hoje é a cidade. Diante das diversas versões
sobre a história da cidade, Montenegro diz: “(...) Fica estabelecido o confronto, ao se
demarcar o campo de quem diz, de quem conta; a maneira de contar é a própria
afirmação de uma representação que é particular de um grupo (...)”.
242
Notamos que uma batalha é travada entre os vários grupos, na intenção de tornar
verdadeiras as suas versões sobre a história de Mirassol D’Oeste e fazer-se visível para
si e para os outros como aquele que tem a “verdade”. Segundo Bourdieu, essas lutas
são: “(...) pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer
reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este
meio, de fazer e desfazer os grupos (...)”
243
.
Assim, os que não aparecem nos livros e apostilas municipais escritas sobre a
cidade afirmam-se pioneiros, relembram e narram determinados fatos que lhes
ocorreram no desejo de valorizar suas pessoas. Estabelecem aí uma forma de luta para
tentar ser visto e reconhecido como importante na história da cidade.
Para isto, nos relatos de memória, sobre o período inicial de ocupação da área de
terras em Mirassol D’Oeste, essas mulheres e homens vão estar o tempo todo fazendo
apropriações do discurso vencedor, enaltecendo suas pessoas, apresentando-se e
representando-se como o que primeiro chegou no lugar e o que mais trabalhou,
merecendo desta forma o reconhecimento devido, como expressa o relato de memória
de dona Preta:
240
Entrevista com dona Preta realizada em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2000.
241
Entrevista realizada com o senhor Ivo em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2000.
242
MONTENEGRO, Antonio Torres. op.cit.,1994, p.58.
243
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel,1989. p.114.
153
(...) Olha eu trabalhei ali naquele lugar, foi onde criei meus filho, ali no sítio.
Trabalhei que nem uma condenada (...) Sozinha, eu e meu filho mais velho que
tava com oito anos. Agora, que força tem uma criança com oito anos? (...) a
primeira mulher que entrou aqui fui eu e a finada mãe, só que, faz vinte anos que
minha mãe faleceu (...)
244
.
Dona Preta é uma pequena proprietária de terras, contudo, em seu relato ela se
apresenta como alguém que, naquele lugar, adquiriu o lote de terra e trabalhou como
ninguém. Nesse ponto, ela reforça em sua fala o fato de ter sido ela quem efetuou a
abertura das terras de seu lote, talvez por entender que essa tarefa é tida como uma
tarefa masculina. Assim, isto a habilita a se afirmar como sendo a primeira mulher sem
marido a chegar nessa área de terras. Ou seja, ela se impõe como pioneira, pois,
segundo seu relato, possui as qualidades de um pioneiro reconhecido como o que
primeiro se estabelece em um determinado local e sobrevive com a força de seu
trabalho. Portanto, ela se coloca como no direito de fazer parte da memória de Mirassol
D’Oeste. Isso aponta para o poder e a sedução da memória, em que, “o narrador poderá
manejar histórias, inventar e desinventar, fazendo a trama da vida existir como drama
ou comédia”
245
.
Em Mirassol D’Oeste, de um lado os eleitos como pioneiros pelos textos escritos
sobre a história da cidade representam-se e apresentam-se como sendo os únicos
formadores da cidade. Já os que se dizem excluídos dessa memória coletiva, em
contrapartida expõem-se como “reais” pioneiros, e os que mais trabalharam na
construção da cidade, como aponta o relato de dona Preta:
(...) O doutor Helio, quando ele chegou aí, ele era aprendista,(...). Depois. ele fez
aquele hospital. Até a madeira para levantar as paredes era do meu sítio. Ele
244
Entrevista com Dona Preta em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2000.
245
GROSSI, Yone de S. & FERREIRA, Amauri C. op.cit., p. 31.
154
construiu aquele hospital com a madeira do meu sitio e, a igreja de Mirassol
também. Quando era antiga, tudo madeira do meu sitio, eu dei a madeira (...)
246
.
Ao falar que ela deu a madeira para construir a primeira igreja e o primeiro
hospital, dona Preta está afirmando seu posicionamento de combate frente ao discurso
vencedor. Para isso, ela representa-se para si e para os outros, através de seu discurso,
como a “primeira mulher” que chegou ao local e que ajudou na construção da cidade.
Neste ponto, Chartier esclarece que as representações, assim como os discursos e
as práticas estão sempre num campo concorrencial de disputa, uma vez que se
encontram inevitavelmente interligados, e, fatalmente defendem os interesses de
determinado grupo ou pessoa, assim: “(...) As modalidades do agir e do pensar, (...)
devem ser sempre remetidas para os laços de interdependência que regulam as relações
entre os indivíduos (...)”
247
.
Em Mirassol D’Oeste, os grupos sociais que lutam para fazer parte da memória
da cidade criam maneiras de legitimar uma certa verdade. Através dos textos que fazem
uma leitura sobre a história da cidade, impôs-se uma fronteira, delimitou-se um espaço
onde aquele que não possui uma relação estreita com o grupo produtor dessa verdade,
automaticamente não pode fazer parte desse grupo.
Desta forma, apresentam a versão de que a cidade tem uma história de
prosperidade, que pode ser “provada” ao verificarem a similar história de “progresso”
dos que são “eleitos” como os pioneiros/formadores. Nesse gesto, estão silenciando
sobre algo, e, estão criando e impondo formas de exclusão, pois: “(...) as classificações
as mais “naturais” apóiam-se em características que nada tem de natural e que são,
246
Cf: Entrevista com Dona Preta.
247
CHARTIER, Roger. op.cit.,p.25.
155
em grande parte, produto de uma imposição arbitraria, quer dizer, de um estado
anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima”
248
.
Para a produção escrita sobre Mirassol D’Oeste, todos os chamados pioneiros da
cidade são paulistas. Dona Preta também veio de uma cidade do estado de São Paulo,
Populina, entretanto, ela não está inclusa na lista dos que são denominados “pioneiros”.
Por essa razão, ela se arma de “provas”, e reclama para si um posto de pioneira:
(...) Eu cheguei aqui em abril de 60/61, (...) é, no tempo que eu falo (...). A ponte
de Cáceres estavam fazendo, não tinha terminado quando nós passamos de
mudança. (...). A mudança nossa passou de balsa. Olha, a gente tem que enfrentar
dureza, viu (...). Pois é, no documento ta 63, né? Mas eu cheguei antes, cheguei
antes (...). Aqui era puro campo, ninguém, ninguém. Depois que eu vim, daí uns
tempo chegou a dona Lázara, depois chegou o povo do finado Cezário. Mas o
povo do finado Cezário chegou um ano depois do começo (...). Olha, nós
sofremos (...). Ah, não, basta dizer, desminto qualquer um se falar que chegou
primeiro que eu, porque a primeira estiva das duas pontes foi eu que tirei com
esses braços magro, foi eu que tirei para o primeiro jipe passar(...), é foi difícil,
foi difícil. E aqui chovia muito criatura, chovia (...). Você conhece o Elias Preto?
Pois é, ele e o finado Agenor, meu irmão, é que fizeram essas ruas tudo no braço,
eles colocaram o finado Cezário como fundador, o Cezário chegou por último de
nós. Era para ser ele meu irmão (...). Mas, nós morava no sítio e o Benedito
Cezário chegou e acampou aqui na rua que já tava aberta. Fizeram lá uma tapera
e entraram dentro, aí foi aumentando até fazer uma casa (...)
249
.
Dona Preta recebeu um certificado de pioneira emitido pela Prefeitura
Municipal de Mirassol D’Oeste, constando que chegou nessa área de terras em 1963.
Ela guarda esse papel com muito cuidado e mostra quando lhe perguntam se foi uma
das primeiras a chegar no local. Ela guarda o papel mas não se rende totalmente a ele.
Guarda-o como o único “reconhecimento” que as autoridades lhe conferiram, porém,
248
BOURDIEU, Pierre. op.cit., p.115.
249
Ibidem, entrevista com dona Preta.
156
sabe que a construção da ponte sobre o Rio Paraguai dando acesso direto ao que viria a
ser o município de Mirassol D’Oeste, é anunciada como um acontecimento
importantíssimo na produção da memória da cidade e para a história política do estado.
Ela tem conhecimento que a construção da ponte é apresentada como um
divisor de águas que possibilitou a vinda dos colonos para a localidade, promovendo “o
rápido progresso”
250
da cidade. A ponte sobre o Rio Paraguai é anunciada pelos
representantes da cultura dominante como um “marco” na história da formação da
formação da cidade:
(...) Em 1961, o governador de Mato Grosso, Dr. JOÃO PONCE DE ARRUDA,
inaugurava a ponte Mal. Rondon, sobre o Rio Paraguai, o que veio facilitar aos
bandeirantes paulistas a ultrapassarem suas margens, dando inicio à grande
arrancada colonizadora desta vasta Região (...)
251
.
Homens e mulheres que não são citados como pioneiros nesses textos escritos
também se apropriam da imagem que a ponte tem para a memória da cidade e fazem
dela, lembrando especialmente desse detalhe, a ponte. Dona Preta, por sua vez, afirma
que a construção da ponte, quando ela foi para o local, ainda não tinha sido concluída,
estavam fazendo, não tinha terminado. Nesse ponto, seu relato desmitifica o certificado
de pioneira que lhe foi outorgado, demonstrando o que Montenegro analisa sobre a
relação nem sempre similar entre as “versões” dominante e popular de um determinado
fato, atestando assim: “(...) a complexa formação da historicidade popular, onde o
imaginário se constrói a partir de um conjunto de determinações que nem sempre se
atrelam as versões dominantes da história oficial (...)”
252
.
250
Cf: FERREIRA, João Carlos Vicente. op.cit.
251
LEITE, Ataíde Pereira. op.cit., p.10
252
MONTENEGRO, Antonio Torres. op.cit.,1994, p.85.
157
Nesse sentido, a fala de dona Preta é de combate, pois o que profere é que tanto
o certificado que recebeu como os textos sobre a história da cidade não levam em
consideração as experiências de pessoas como ela, afirmando: “Ah, não basta dizer!”.
O dizer, significa o que a produção escrita diz no papel, elegendo algumas pessoas
como pioneiras e nem sequer fazendo menção a pessoas como ela. Assim, ao reforçar
em sua fala que, quando chegou em Mirassol D’Oeste, a ponte não havia sido
concluída ela quer dar a crer e fazer reconhecer que foi a primeira mulher a aportar
nessa área de terras e, alerta: desminto qualquer um se falar que chegou primeiro que
eu.
Quais são essas pessoas que ela desmente? Certamente as que foram escolhidas
para fazerem parte da memória de Mirassol D’Oeste e que têm seus nomes inscritos
nos textos que circulam pela cidade. Ao relembrar os nomes das pessoas que chegaram
depois dela: (...) Lembro desses que falei, o finado Cezário com a família dele, o
Durvalino também demorou um pouco pra chegar (...). Ao falar do trabalho de seu
irmão na abertura das ruas, dona Preta se apropria do discurso vencedor e faz uso das
mesmas estratégias utilizadas por este, apresentando, o que para ela são as provas de
que foi ela, juntamente com sua família, a primeira a chegar àquela área de terras.
Dona Preta sabe também que quando aparece, nos textos escritos sobre a
cidade, alguma mulher como pioneira, geralmente é a esposa de um dos escolhidos por
essa memória, por isso ela diz que era para ser o irmão dela. Neste ponto, dona Preta
veste-se da sagacidade que a experiência da vida em toda sua dimensão político-social
lhe proporcionou e mostra a preferência, em relação às figuras masculinas na escolha
dos “heróis”, neste caso, dos pioneiros. Mesmo assim, ela reclama para si um lugar
dentre os que são eleitos.
158
Entretanto, como dona Preta ficou sabendo dos livros e apostilas em que alguns
foram destacados como os pioneiros/heróis do local, se ela não tem acesso a
informações escritas? Provavelmente, tenha acesso a tais informações por outros
meios, pois ela circula pela cidade, conversa com as pessoas, vai à igreja, vai ao
supermercado, a farmácia e troca informações, fica sabendo do que está acontecendo e
de como está acontecendo. Apropria -se do discurso proferido pelos que elaboraram
essa invenção de uma memória coletiva, faz uso dela e representa-se para si e para os
outros como a pessoa que mais trabalhou, que mais sofreu no lugar, como afirma em
seu relato:
(...) Olha que nós sofremos, chuva que Deus dava! Passava a enxurrada e
carregava o arroz. Eu colhi arroz, sabe aqueles arroz cortado? Trabalhava o dia
inteiro dentro daquela água. Eu não sei como é que eu sobrevivi cortando aqueles
arroz que a enxurrada catou (...)
253
.
Portanto, ela reclama o reconhecimento como pioneira. Gostaria que o
certificado emitisse a data correta em que chegou, deseja a comprovação por escrito,
porque entende que a data é algo muito importante que vai dizer quem chegou
primeiro, “desbravou, limpou” o local pra que outros pudessem se instalar. Reconhece
o poder da escrita. Dona Preta sabe que essa é a importância do pioneiro, ou seja,
aquele que é visto e respeitado na sociedade local como um herói, conferindo-lhe
distinção social.
Sendo assim, dona Preta que se apresenta como a primeira mulher que chegou
ao local, demonstra o que para ela seria um reconhecimento político de seu papel
enquanto figura fundamental na construção da cidade:
253
Entrevista com cona Preta em sua residência na cidade de Mirassol D’Oeste em 2000.
159
(...) Chegou minha sobrinha de Glória D’ Oeste, filha da minha irmã, que nós
somos em oito irmãos, seis homens e duas mulheres. Chegou em junho aqui a
coitada, sem dinheiro. Ela falou: Tia, vamos comigo lá no Ataíde? (...) Fui lá.
Precisei sair corrida de lá. A secretária dele falou: Se nós dá uma consulta pra
senhora tem que dá para todo mundo. E aqui a senhora não ganha nada. Eu
fiquei com tanta vergonha, ela deu uma chateada em mim, que eu não sei aonde
eu ponho a minha cara de tanta vergonha. Eu se mandei, (...). Depois o Ataíde
passou aí quando ele tava fazendo a campanha dele, falei: Pois é, o que eu recebi
quando fui no comitê de vocês, lá eu saí foi corrida, num voto para vocês, falei
mesmo para eles. (...) Trabalhei feito uma condenada neste lugar, você não acha
que eu precisava ganhar desses prefeitos tudo ao menos uma “data”
254
mais
melhor?
255
.
Toda a posição de embate do discurso está no nome da pessoa dona do comitê
eleitoral. O comitê eleitoral era do senhor Ataíde Pereira Leite. O senhor Ataíde
Pereira Leite escreveu um dos livros sobre a cidade de Mirassol D’Oeste, no qual o
nome de dona Preta não consta. Há um combate pela memória ao exigir constar o seu
nome no livro:
(...) Uma das famílias pioneiras a se instalar nestas terras, e que na realidade deu
início a formação do “Patrimônio”, foi a CEZÁRIO DA CRUZ, capitaneada pelo
seu grande líder, saudoso BENEDITO CEZÁRIO DA CRUZ, ao qual coube o
laborioso trabalho de orientador e organizador das ações que culminaram com a
formação do POVOADO, graças a sua grande capacidade de liderança
256
.
Dona Preta sabe que as pessoas reconhecidas como pioneiras nos textos escritos
sobre a história da cidade são pessoas bem estruturadas econômica e socialmente, por
254
Data para dona Preta significa um lote urbano.
255
Cf: entrevista com dona Preta.
256
LEITE, Ataíde Pereira. op.cit., p.11.
160
isso reclama uma atenção das autoridades políticas, que para ela seria dar -lhe “uma
data, [lote urbano], melhor” para construir sua casa.
Portanto, dar-lhe pelo menos um lote urbano com uma boa localização na
cidade significa o reconhecimento político para com sua pessoa, porque ela se
reconhece como uma pioneira. Neste ponto, está concentrado toda tensão da luta por
fazer parte de uma memória elitizada, homogênea, triunfante.
Nesse sentido, o relato de dona Preta escapa às generalizações feitas pela
memória institucionalizada e deixa transparecer a diferença, opondo-se à produção
escrita sobre a história da cidade, que aponta para uma linearidade na qual a origem da
cidade está inseparavelmente relacionada a idéia de progresso como uma, “(...) marcha
no interior de um tempo vazio e homogêneo”
257
.
Desse modo, os relatos de memória das mulheres como dona Preta, dona Isabel
e dona Leonilda, como foi assinalado no segundo capítulo desse trabalho, representam
um ponto de “erosão” nesse discurso vencedor que ser quer absoluto, demonstrando
assim que o tempo da história, que é o tempo do vivido, “(...) não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”
258
.
Entretanto, os relatos de memória dessas mulheres que narram suas
experiências sobre a abertura dessa área de terras, trazem leituras dessa ocupação.
Assim como a produção escrita sobre a história da cidade apresenta uma certa
interpretação de verdade, esses relatos de memória não encerram, por expressarem as
experiências vivenciadas no período inicial da abertura, a real história da ocupação
pois experiência é “uma história do sujeito”
259
que narra e “não evidência
autorizada”
260
.
257
BENJAMIN, Walter. op.cit., p.229.
258
Ibidem, p.229.
259
SCOTT, Joan W. op.cit., p.42.
260
Ibidem, p.27.
161
ANEXOS
162
Figura 2 Mapa do Projeto de Chácaras de Mirassol D’Oeste.
LEGENDA
Hidrografia
Estrada
Limite
Mata
Campo
Ponte
FONTE: Projeto de Chácaras MIRASSOL D’OESTE.
163
164
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os textos escritos sobre a história de Mirassol D’Oeste, apresentam um modelo
de história linear, que busca reproduzir uma certa leitura sobre a formação da cidade em
que, os ele itos por estes textos como os pioneiros são pessoas bem estruturadas
financeiramente. Dessa forma estabelece-se uma história para a cidade que exclui as
populações pobres que se deslocaram para essa área, e fixa-se uma memória de
vencedores. Esse modelo de história estabelece como marco o progresso, reproduz uma
idéia de pioneirismo, apaga as múltiplas experiências vivenciadas durante a abertura
dessas terras, e oferece como única possibilidade de leitura sobre a ocupação, uma
história homogeneizante.
A maior preocupação desse trabalho ao historicizar a ocupação dessa área foi a
de apontar, a partir da análise das fontes, uma outra leitura, sobre a abertura dessas
terras, que considerasse as diferenças e rupturas das experiências vivenciadas no
período inicial do povoamento e possibilitasse aflorar as especificidades dessa
ocupação.
Verificamos que a década de 1950 apresenta práticas políticas, a respeito das
terras do Estado designadas pelos discursos oficiais como terras devolutas, que são
também verificadas durante a década de 1960, período em que ocorre a ocupação dessa
área. Durante as décadas de 1950 e 1960, observamos que houve um grande interesse de
compra e venda das terras de Mato Grosso, ocasionando uma política de favores em que
a especulação com a terra é uma constante, por outro lado, muitas denúncias, sobre essa
prática de corrupção, são proferidas na imprensa escrita. Denúncias que apontam a falta
de qualquer critério por parte das autoridades estaduais nas concessões das terras tidas
165
como devolutas. Concessões que na maioria das vezes serviam como pagamento de
favores políticos partidários.
A política de concessões de terras durante o período mencionado foi mediada
por um discurso das autoridades do Estado, que procurava legitimar a venda
indiscriminada dessas terras pela representação de uma “política de colonização”.
Portanto, a palavra colonização era utilizada para maquiar a “venda” indiscriminada e
sem nenhum critério das terras do Estado.
Por outro lado, essa política teve como suporte um aparato propagandístico que
apresentava as facilidades em adquirir terras no Estado e as qualidades agrícolas dessas
terras que, eram representadas como terras que em se plantando tudo produziria. Essas
propagandas procuravam estimular o maior número possível de compradores,
especialmente, pequenos agricultores, a adquirirem terras em Mato Grosso. Entretanto,
o que acontecia era que certos grupos ou indivíduos acabavam adquirindo uma grande
extensão de terras por um baixo preço para aguardar sua valorização e vender a somas
lucrativas a mesma área, sob a argumentação de promover a ocupação a partir da venda
de pequenos lotes.
Através da análise do relato do proprietário da área de terras onde está localizada
a cidade de Mirassol D’Oeste, constatou-se que a partir da venda indiscriminada de
terras, abriu-se espaço para o aleatório. Nesse sentido, o loteamento e a venda para a
ocupação eram, de acordo com as conveniências dos proprietários, sem
responsabilidade alguma sobre a vida dos pequenos agricultores que, no caso dessa área
de terras Mirassol D’Oeste-, tiveram que lidar com essa falta de qualquer assistência,
desde vias de acesso ao centro urbano mais próximo a falta de água para abastecimento
das famílias.
166
Os grupos sociais que se deslocaram para essa área de terras expressam em seus
relatos de memória um modo de ocupação em que o poder dos donos de terras é o
critério para a venda dos lotes. Desse modo, essas mulheres e homens que se
deslocaram para Mirassol D’Oeste tiveram que inventar, produzir maneiras de driblar as
adversidades do início da ocupação, criando suas próprias condições para
estabelecerem-se nessa área de terras.
As mulheres que se deslocaram para essa área, tiveram participação fundamental
para a manutenção das famílias num local onde não havia médico, nem remédios, nem
estradas para abastecerem-se no centro urbano mais próximos do loteamento, a cidade
de Cáceres. Essas mulheres trazem em seus relatos de memória sobre a abertura dessas
terras o múltiplo, porque expressam o cotidiano de lutas, o vivido e rompem dessa
maneira com o homogêneo.
Nesse sentido, a ocupação da área de Mirassol D’Oeste foi possível pela ação
desses grupos sociais que se negaram a petrificarem-se diante das adversidades
encontradas no processo de abertura das terras, e se dispuseram a produzir naquele
local, estratégias de sobrevivência.
167
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h) Arquivos
Arquivo Público do Estado de Mato Grosso
Arquivo da Câmara Municipal de Vereadores do Município de Mirassol D’Oeste
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