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ANTONIO FILIPE PEREIRA CAETANO
ENTRE A SOMBRA E O SOL -
A REVOLTA DA CACHAÇA, A FREGUESIA DE SÃO GONÇALO DE
AMARANTE E A CRISE POLÍTICA FLUMINENSE
(RIO DE JANEIRO, 1640-1667)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito para obtenção do grau de
Mestre. Área de concentração: História
Social.
Orientador: Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo
Niterói
2003
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ANTONIO FILIPE PEREIRA CAETANO
ENTRE A SOMBRA E O SOL -
A REVOLTA DA CACHAÇA, A FREGUESIA DE SÃO GONÇALO DE
AMARANTE E A CRISE POLÍTICA FLUMINENSE
(RIO DE JANEIRO, 1640-1667)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito para obtenção do grau de
Mestre. Área de concentração: História
Social.
Aprovada em Março de 2003
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________
Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo
Universidade Federal Fluminense - Departamento de História
_____________________________________________
Prof. Dr. João Luis Ribeiro Fragoso
Universidade Federal do Rio de Janeiro - Departamento de Filosofia e Ciências
Humanas
__________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro
Universidade Federal Fluminense - Departamento de História
__________________________________________
Prof. José Maurício Saldanha Alvarez (suplente)
Universidade Federal Fluminense - Departamento de Ciências Sociais
Niterói
2003
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Dedico este trabalho a quatro grandes estrelas:
Avany de Oliveira, minha referência de
sabedoria; Charles R. Boxer, Vivaldo Coaracy e
Miguel Arcanjo de Souza, os primeiros que me
contaminaram com o vírus da revolta.
AGRADECIMENTOS
Normalmente quando lemos aquelas gigantescas listas de agradecimentos
sempre temos a impressão de que aquele que a escreveu poderia ter podado alguns
nomes. Todavia, somente passamos a ter noção de como é difícil realizar um trabalho
deste porte solitariamente, que passamos a abstrair a grande quantidade de menções que
geralmente são feitas. Aqui, citaremos o máximo de pessoas possíveis, mas,
obviamente, sabemos que não seria o suficiente para dar conta da grandiosidade do
presente trabalho.
Dessa forma, inicio os agradecimentos por aqueles que sempre sustentaram
emocionalmente esta dissertação: minha família. Vânia, Gelso, Marcos e Érika, que a
partir do mestrado passaram a dar mais importância ao meu trabalho, mesmo
desconhecendo os trâmites burocráticos que subsidiavam a realização da dissertação.
No âmbito institucional, agradeço ao parceiro Luciano Raposo de Almeida
Figueiredo, pela coragem de bancar os desafios atravessados por esta pesquisa, tendo a
certeza que as páginas seguintes foram apenas o início de outras parcerias que
porventura virão; ao professor João Fragoso, pela enorme paciência com meus e-mails
cheios de dúvidas sobre fontes e questionamentos sobre a economia fluminense; ao
professor Rodrigo Bentes Monteiro, pelo apoio na metáfora do Antônio Vieira e pelas
valorosas dicas sobre a restauração lusitana; a professora Maria Fernanda Baptista
Bicalho, pelos incansáveis debates, críticas e sugestões feito ao longo de seu curso; e ao
professor Guilherme Pereira das Neves, que mesmo distante eu tinha a certeza que
estava acompanhando o desenvolvimento deste trabalho e pelas "surpresas" que me
reservou ao longo da minha estadia na Universidade Federal Fluminense.
Aos loucos, como eu, que se enveredaram pelo mestrado: Elisa Garcia, pelo
companheirismo e intensidade dos contatos entre o Sul e o Rio de Janeiro; Adriana
Goulart, pela divisão das angústias e durezas do mestrado; Monique Brust, pela
permanência dos diálogos iniciados no Laboratório de Pesquisa Histórica, em São
Gonçalo; Rui Aniceto Fernandes, pelo apoio e pelas valorosas informações sobre o
"bem aventurado gonçalense", o santo São Gonçalo; e Lívia Scheiner, pelos duríssimos
debates teóricos, conceituais e metodológicos.
Não poderia esquecer também de dois mestres da época da graduação que se
fizeram presente nesta nova etapa da minha vida: Célia Tavares, a primeira que
percebeu a possibilidade da transformação deste tema em dissertação, mesmo estando
eu, naquele momento, preocupado em me tornar um professor de História Antiga; e ao
grande companheiro Marcelo Magalhães, responsável pela minha entrada no Programa
de Pós-graduação "uffiano", pelo auxílio nos passos que eu deveria dar neste novo
território e pelo impulso profissional e intelectual que tem me dado.
Aos amigos de longa data, por justamente existirem e me apoiarem, relaxando-
me nos momentos mais tensos: Marta Bento, insuportavelmente crítica; Eva Dionízio,
companheríssima de trabalho; Fabiana Botelho, pela revisão ortográfica; Liliane Gomes
e Ana Paula, pela ajuda no início da caminhada na UFF; Fabrício Figueiredo e sua
esposa, Fernanda, pela ajuda nos assuntos relacionados à informática. Ainda entre os
amigos, faço uma menção especial a Roberto Farias, o primeiro a me auxiliar nesta
dissertação quando ainda era uma monografia, ao garimpar as fontes iniciais sobre o
movimento de 1660 no IGHB, quando o mesmo ainda era estagiário daquela instituição.
Faço questão de lembrar também: os funcionários do Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro, pela permissão de consulta de documentos já encaminhados à
microfilmagem; aos estagiários da biblioteca de Pós Graduação da UFF - "Jaquelines",
Mirella, Tatiana e Ana Paula - pelos galhos quebrados no empréstimo de livros e
documentos do Conselho Ultramarino; e pelos funcionários da secretária da pós - Estela
e Joceli - que mesmo quando tinham que dar notícias desagradáveis utilizavam um
inigualável bom humor.
Voltando ao campo institucional, agradeço a FAPERJ pela concessão da bolsa
"FAPERJ Nota 10", que mesmo ocorrendo no último ano da realização da dissertação,
foi fulcral para concretização do trabalho nos prazos estabelecidos pelo Programa de
Pós-graduação da UFF.
Por fim, como aqui vigora aquele famoso ditado no qual "os últimos sempre
serão os primeiros", sou muitíssimo grato a Paula Deccache, companheira das mais
íntimas cruzadas e que suportou, extremamente dedicada e interessada, a divisão dos
meus sentimentos entre ela e os personagens envolvidos na revolta, e mesmo assim,
afagava-me com seus carinhos e me acalmava com seu afeto.
O senhor de tudo, das atribuições e das
incumbências, é o rei. O funcionário será apenas a
sombra real. Mas a sombra se o sol está longe,
excede a figura. A sombra quando o sol está no
zênite é muito pequenina e toda se vos mete debaixo
dos pés. Mas quando o sol está no Oriente ou no
ocaso, essa sombra se estende tão imensamente, que
mal cabe dentro do horizonte.
(Padre Antônio Vieira - Sermões Pregados no
Brasil)
RESUMO
Na madrugada do dia 08 de novembro de 1660, vários homens aproveitaram,
enquanto a cidade adormecia para cruzar a Baía de Guanabara, invadir a Câmara de
Vereadores, pressionar o Governador interino, Thomé Correia de Alvarenga, e expulsar
Salvador Correia de Sá e Benavides, Governador titular que visitava a vila de São
Paulo, de suas funções. Iniciava-se, assim, um dos mais importantes e mais longos
movimentos seiscentistas ocorridos no Rio de Janeiro, a Revolta da Cachaça. Será sobre
este “tumulto” que o presente trabalho se propõe a deter nas páginas seguintes. Para
isso, privilegiamos enfocar o papel desempenhado pela freguesia de São Gonçalo de
Amarante na arquitetura, elaboração e desenvolvimento da revolta. Partindo deste
pressuposto, buscamos descortinar as trajetórias de vida dos principais líderes e das
famílias tradicionais envolvidas no conflito, visando construir um painel das redes
clientelares, da arquitetura de poder e do ethos da elite social que sedimentavam,
alicerçavam e mantinham o poder régio. Por fim, objetivamos fazer tais discussões
inserindo a Revolta da Cachaça, no contexto após a retomada da Coroa Portuguesa
pelos lusitanos com o fim da união Ibérica, momento de difícil construção da soberania
política, do novo monarca e da difusão de novas ideologias políticas que se espalhavam
por todas as conquistas ultramarinas lusitanas.
ABSTRACT
In the early morning, of the day November 8
th
of 1660, many men enjoyed,
while the city fell asleep to cross the Guanabara’s Bay, to invade the Town Council, to
press the temporary government, Thomé Correia de Alvarenga, and to throw out
Salvador de Sá and Benavides, titular government who visited the São Paulo’s Villa, of
yours functions. So began, like this, one of the most importants and longest sixcentury
movements happened in Rio de Janeiro, the “Firewater’s Revolt”. This “trouble” will be
present in this resume, it propose to keep in the follows pages. For this, we privilege to
hang the role developed by the São Gonçalo do Amarante’s parish in the architecture,
revolt’s elaboration and the developed. About this presuppose, we lock for to discover
the life’s way of the principals leaders and traditionals families involved in the conflict,
aiming at to construct a net panel of the customers, of the power architecture and of the
social elite’s ethos that sedimented, based and keeped the royal power. At least, we aim
to do such discussions inserting the Firewater’s Revolt”, in the context after the
reconquest of the Portuguese Crown by the Lusitanian with the end Iberian Union,
difficult moment of construction of the politic sovereignty, of the new monarch and of
the diffusion of new politics ideologies, that went by all conquests Lusitanian overseas.
SUMÁRIO
Introdução 11
Capítulo 1: a Capitania do Rio de Janeiro e a Política Colonial Portuguesa 25
* A Conquista da Capitania do Rio de Janeiro 27
* A Colonização da Capitania do Rio de Janeiro 36
* O Reajuste do Pacto Colonial 45
* As Administrações de Salvador Correia de Sá e Benavides na Capitania do Rio de
Janeiro 61
Capítulo 2: Dos Frutos da Terra à Cachaça: a Freguesia de São Gonçalo de Amarante,
1500-1660 80
* A Conquista do Fundo da Baía da Guanabara 82
* A Colonização da Freguesia de São Gonçalo de Amarante 92
* Entre a Geribita e o Vinho Português 101
Capítulo 3: A Crise Política Fluminense e a Revolta da Cachaça 115
* O Ultramar e a Opção pela Revolta 120
* A Ideologia Restauracionista e seus Reflexos no Ultramar 135
* Entre a Periferia Política e o Centro Econômico Fluminense 146
* Salus Populi Suprema Lex: a Capitania do Rio de Janeiro em Mãos Gonçalenses 159
Capítulo 4: Entre os Sá e os Barbalho os Personagens Gonçalenses e a Revolta da
Cachaça 176
* Nobreza, Status e Fidalguia em Portugal e nas Conquistas Ultramarinas 177
* Os Honoratiores Gonçalenses: a família Barbalho 187
* Os “Descontentes” de São Gonçalo 194
* A Capitania do Rio de Janeiro Após a Revolta 205
Conclusão 213
Anexo 223
Fontes e Bibliografia 228
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Mapa 1 A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro quase ao iniciar-se o século
XVII, Luís Teixeira (1578-1578).
Mapa 2 Divisão Municipal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Informações e
Dados do Estado do Rio de Janeiro (2001).
Mapa 3 A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no século XVII, João Teixeira
Albernaz (1640).
11
Introdução
Em tempos idos, que já não consigo precisar, um dos signatários
adquiriu fascículos de uma coleção, vendidos semanalmente nas bancas
de revistas (...) Nos números iniciais, como brinde, vieram as peças de
um microscópio para ser construído passo a passo pelo colecionador
explorador em potencial.
Montado, penosamente, o que passou a ser o mais novo e
espetacular brinquedo da casa, agradável e aterrorizante surpresa foi
perceber moscas e formigas transformando-se em seres grandiosos,
patas com pelos, asas multicoloridas, olhos desproporcionais, monstros
dignos de qualquer um daqueles seriados japoneses povoados de
criaturas gigantescas e hediondas.
(Haydée Figueiredo, Luiz Reznik e Márcia de Almeida Gonçalves - Anais
do IV Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História)
Imagine-se você em um bela tarde ensolarada, propícia para passeios no parque ao
lado da família; ou se preferir, juntar os amigos para uma ardente manhã de praia. Do nada,
aquele sol que estava a pino no céu, aos poucos vai cedendo espaços à gigantescas nuvens
que cobrem aquele imenso azul, anteriormente repletos de luminosidade, de sombra.
Muitos devem pensar: "Vem chuva por aí!". Outros suplicariam: "Graças a Deus, que o sol
deu um descanso". Mas se utilizarmos a metáfora do eclesiástico Antonio Vieira, com
certeza diríamos: "Revolta à vista!" Assim, será sobre esta relação entre a sombra e o sol
que redundará uma das temáticas deste presente trabalho.
Segundo o jesuíta, o rei era equiparado a um sol, onde o exercício e a grandiosidade
de seu poder eram percebidos pela intensidade da luminosidade de seus raios. Obviamente,
a proximidade física do rei fazia com que a manutenção da autoridade ficasse mais
palpável para os súditos que estavam localizados em sua volta, restando aos súditos mais
distantes apenas contemplar seu poder através de seus atos.
Com a obra de Ernst Kantorowicz, Os Dois Corpos do Rei, o sol passou atingir
tantos os súditos mais próximos como aqueles mais distantes, já que o autor atribuía ao
mesmo uma certa dualidade na visualização e manutenção do seu poder. Dessa forma, o
sol tinha ao mesmo tempo um corpo físico, também denominado de corpus verum, e um
corpo místico. O primeiro concebia o rei de forma natural para o súdito, ou seja, era a
própria percepção de que o rei existia, estava pronto para atender às necessidades dos
súditos, protegendo-os dos tumultos e fazendo-se visível nas cerimônias religiosas, nos
12
casamentos e nas festividades; enquanto isso, o segundo caracterizava-se por questões que
mesmo longe qualquer súdito poderia reconhecer o rei enquanto seu chefe superior. Casos
exemplares são a manutenção da religiosidade, a percepção da hereditariedade do trono do
monarca e a sensação de fazer parte do reino através dos atos e ações que o rei promovia.
1
A teoria criada por Kantorowicz durante muito tempo serviu para respaldar o
caráter absolutista das monarquias européias, principalmente a monarquia francesa de cuja
magnitude e concentração do poder de Luis XIV, o rei sol, seria o maior exemplo.
Todavia, a investidura sacra que revestia a monarquia francesa para este autor,
desenvolveu duras críticas feita por Alain Boureau. Em seu trabalho, Le Simple Corps du
Roi - L'impossible Sacralité des Souverains Français XV
e
- XVIII
e
Siécle, Boureau
desmistificava a idéia de duplo corpo de rei, tratando-o de forma ficcional, situação
amplamente visualizada nos momentos das cerimônias fúnebres dos monarcas franceses.
2
No entanto, o presente trabalho não pretende estudar nem o caso francês, nem
muito menos dos monarcas ingleses - outro foco de estudo tanto de Kantorowicz, como de
Boureau - e sim os sóis portugueses. Neste caso o debate da sacralidade do rei é mais do
que visível, principalmente se levarmos em consideração o mito de origem da monarquia
portuguesa, o milagre de Ourique - no qual D. Afonso Henriques viu Jesus Cristo antes da
batalha contra os mouros, no qual os portugueses acabaram vencendo, reconquistando as
regiões lusitanas.
3
Logo, se de um lado a especificidade da monarquia portuguesa respaldava a idéia
de dois corpos dos reis portugueses, a idéia de concentração total dos poderes esbarra na
nova historiografia portuguesa, onde o poder dos monarcas no antigo regime encontrava-se
dividido entre diversos corpos sociais e administrativos, fundando o que tais autores
chamaram de Estado Corporativo.
4
A lógica corporativa, então, obrigava uma
reconfiguração na disposição dos poderes solares não só no reino português como também
1
Ernst Kantorowicz. Os Dois Corpos do Rei - Um Estudo sobre a Teologia Política Medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, pp. 128 e 205.
2
Alain Boureau. Le Simple Corps du Roi - L'impossible Sacralité des Souverains Français XV
e
- XVIII
e
Siécle. Paris: Éditions de Paris, 1988.
3
Sobre o milagre de Ourique, Cf. Ana Isabel Buescu. Memória e Poder: Ensaios de História Cultura (Século
XV-XVIII). Lisboa: Cosmos, 2000.
4
Cf. Antonio Manuel Hespanha. As Vésperas do Leviatã: Instituições e Poder Político, Portugal - Século
XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994; Nuno Gonçalo Monteiro. O Crepúsculo dos Grandes: a Casa e o
Patrimônio da Aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1998;
Pedro Cardim. Corte e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; e Joaquim
Romero Magalhães. ‘As Estruturas Políticas da Unificação’ IN: José Mattoso (Dir.) História de Portugal.
Lisboa: Estampa, Quatro Volumes, Volume 3, 1993, p. 73.
13
nas regiões ultramarinas. Assim, aquele sol, que até anteriormente reinava solitário no céu
viu a necessidade de dividir seus domínios com administradores, que os auxiliavam na
manutenção da paz e na garantia da soberania do monarca.
Governadores, vice-reis, ouvidores, provedores e outros funcionários passavam a
ser os olhos e ouvidos do rei. Esses eram responsáveis pela fiscalização da lei, pela
organização da administração, pelo bom andamento das finanças, pelo exercício da fé
católica, pela aplicabilidade da justiça e pela garantia da defesa.
5
Mas, essas não eram
ocupações que qualquer um poderia conquistar. Havia requisitos mínimos exigidos para
aqueles que se encontravam dispostos a desempenhar alguma função a serviço do rei.
Segundo A. J. R. Russell-Wood, as exigências passavam desde a coragem, uma boa
capacidade de julgamento, a integridade moral, experiência, lealdade à coroa e defesa do
cristianismo, até a obrigatoriedade da pureza de sangue, a experiência em carreira militar, a
idade madura e a experiência administrativa anteriormente comprovada.
6
A complexidade
das exigências fazia com que, evidentemente, a nobreza fosse tomada pela coroa
portuguesa como o principal locus de escolha de seus funcionários.
A opção por nobres para ocupação de cargos administrativos se de um lado
configurava-se como o único grupo social que se enquadrava nas pré-condições
anteriormente exigidas, por outro lado o próprio patrimônio dos nobres afastaria qualquer
possibilidade de utilização desses cargos para benefício pessoal. O que evidentemente não
aconteceu, já que muitas sombras se voltarmos a terminologia adotada por Antonio
Vieira usaram sua passagem enquanto membros da administração solar para alargarem
seu patrimônio.
No entanto, os problemas que envolviam a ocupação desses cargos não paravam
por aí. De imediato a própria confusão nas atribuições que cabiam a cada administrador
fazia com que, inúmeras vezes, os ocupantes de determinados cargos não soubessem
exatamente até aonde iam suas responsabilidades e jurisdições, propiciando o
aparecimento de sucessivas crises de autoridade. Como se não bastasse, a formação de
redes clientelares e o apadrinhamento familiar incentivavam o verdadeiro surgimento de
oligarquias que passavam a ter o poder sob suas mãos. Mas diga-se de passagem, de uma
5
Charles R. Boxer. O Império Colonial Português, 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1981; A. J. R. Russell-
Wood. "Governantes e Agentes" IN: Francisco Bethencourt & Kirti Chandhuri (Orgs.) História da Expansão
Portuguesa. Lisboa: Círculo do Livro, Volume III, 1998; Rodrigo Bentes Monteiro. O Rei no Espelho: a
Monarquia Portuguesa e a Colonização da América, 1640-1720. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002.
6
A. J. R. Russell-Wood. "Governantes e Agentes" IN: Francisco Bethencourt & Kirti Chandhuri (Orgs.),
Op. Cit. , p. 173.
14
certa forma, sobre este último ponto, a coroa portuguesa até incentivava a formação dessas
oligarquias.
7
Transportando a conjuntura descrita acima para o outro lado do Atlântico o que
pretendemos fazer de forma demasiada neste trabalho pode-se facilmente perceber que
os cargos administrativos régios ganhariam contornos inimagináveis... Pois se em Portugal,
as sombras tinham basicamente a função de auxiliar o monarca, no ultramar a ausência
física do sol e a parcimônia da luminosidade que chegava até os súditos luso-americanos
faziam desses administradores verdadeiros corporificadores da imagem e das ações do sol.
Esse embate entre o poder real e a utilização excessiva dos raios solares pelas sombras
geravam, quase que inevitavelmente, o descontentamento daqueles desprovidos de tal
luminosidade. O resultado imediato dessa situação configura-se como a segundo e a mais
importante temática desta dissertação, as revoltas.
Mas, não queiram pensar que estamos visando, aqui, fazer um simples tratado dos
queixosos súditos carentes da presença efetiva do poder régio. Absolutamente! Estamos
nos propondo a estudar uma revolta extremamente ilustrativa desta conflituosa e delicada
situação em que se encontravam os vassalos lusitanos, que ao mesmo tempo em que
deviam lealdade e fidelidade ao distante monarca, viam as funções do sol serem
constantemente exorbitadas por aqueles que deveriam suprir a inexistência física do rei,
pois como dizia Vieira em um outro famoso sermão: o sol faz o dia mais claro, mas a luz é
a que faz o dia.
8
Dessa maneira, a Revolta da Cachaça tornou-se mais do que um exemplo
emblemático para visualização desta relação entre a sombra e sol. Ocorrido em fins de
1660 e início de 1661, este movimento, iniciado na capitania do Rio de Janeiro, promoveu
uma verdadeira "revolução" na região fluminense ao longo dos cinco duradouros meses. A
revolta pôs de um lado o governador Salvador Correia de Sá e Benavides, a sombra, com
seus apaniguados e as principais famílias do Rio de Janeiro, que se consideravam afetados
pelas arbitrariedades promovidas durante anos por aquele governador. Isso significa dizer
que a Revolta da Cachaça, além de descortinar o relacionamento seja entre o sol e os
súditos, a sombra e os súditos ou entre o sol e a sombra, a mesma também nos auxiliará na
7
Ibidem, p. 171.
8
Antonio Vieira. Sermão do Nascimento de Maria, 1657 Apud Alcir Pécora. O Teatro do Sacramento: a
Unidade Teológica-Retórica-Política dos Sermões de Antonio Vieira. São Paulo: Editora Universidade de
São Paulo, 1994, p. 37. Agradeço ao Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro pela sugestão deste trabalho do
Álcir Pécora, como também da utilização dos sermões do Vieira para a introduzir esta dissertação.
15
percepção da formação das redes de interesses nos domínios ultramarinos lusitanos e o
próprio embate entre os grupos locais anteriormente sedimentados.
É lógico que na conjuntura no qual se insere o movimento de 1660 é absolutamente
crucial na determinação dos rumos dos acontecimentos. A restauração portuguesa, em
1640, que devolveu o poder régio aos portugueses depois de longos anos de domínio
castelhano, promoveu alterações na mentalidade dos homens metropolitanos e
ultramarinos. Seria sob a influência das idéias neotomistas, difundidas nos discursos para
a aclamação de D. João IV em Portugal, que os revoltosos legitimavam a eclosão dos
movimentos sociais que assolaram o império ultramarino português a partir de 1640, de
Macau a Pernambuco. Devido ao grande impacto dessas idéias nas conquistas ultramarinas
e pela conseqüente busca desenfreada pelo reconhecimento de autoridade de D. João IV,
tomamos esse momento como marco cronológico inicial do nosso trabalho. Caminhando
para o outro lado desta mesma moeda, optamos por encerrar este estudo em 1667, quando
a subida de D. Pedro II, mesmo de maneira tumultuada, alterou a forma de relacionamento
entre sua imagem e seus súditos, até porque sua autoridade também deveria ser legitimada
pelo seu reino.
No entanto, se enveredar pela Revolta da Cachaça oferecia inúmeras questões que
poderiam ser estudadas ao longo da pesquisa, optamos, então, por uma: São Gonçalo. Foi
uma opção difícil, mas como a presente escolha havia sido feito pelo menos quatro anos
os caminhos estavam mais fáceis para serem desbravados. Digo isso porque a idéia de
relacionar o movimento de 1660 e a região gonçalense surgiu inicialmente por volta de
1999 quando escrevi minha monografia de fim de curso na Faculdade de Formação de
Professores, campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Intitulada Colonos e Colonizadores A Revolta dos Homens Bons no Contexto da
Restauração Lusitana, a monografia foi resultado de, pelo menos, dois anos de pesquisa no
Laboratório de Pesquisa Histórica Histórica Regional de São Gonçalo, local em que
exerci a função de estagiário por três anos e onde pela primeira vez tomei contato com a
história da Revolta da Cachaça, até então conhecida como Bernarda. Justificava-se assim
a opção, naquele momento, pelo estudo da revolta. Tudo era mais fácil: já tinha um contato
com a historiografia sobre São Gonçalo e existiam fontes impressas sobre o assunto. Por
isso, como objetivo central da monografia busquei única e exclusivamente apresentar a
revolta àqueles que não a conheciam o que obviamente me fazia incluir neste grupo de
desprovidos de conhecimento sobre o movimento, já que a datada historiografia sobre a
16
revolta que utilizei na monografia serviu muito mais para arrumar todas as etapas deste
complexo movimento seiscentista na minha cabeça do que fazer um trabalho propriamente
original.
Mas, a leitura de dois importantes trabalhos me influenciaram consideravelmente
na elaboração das idéias principais sobre a revolta. Portugal na Época da Restauração,
obra magistral de Eduardo de Oliveira França, ao mesmo tempo que me deu subsídios para
o entendimento da conjuntura restauracionista, foi fundamental para o contato com as
idéias neotomistas difundidas após 1640. Todavia, há de se destacar que anos depois, já
como aluno do mestrado da Universidade Federal Fluminense, a mesma obra, com sua
forte idealização romântica da restauração portuguesa, me trouxe dificuldades para a
compreensão da lógica extremamente heterogênea do processo de separação das duas
coroas ibéricas. Enquanto isso, O Rei no Espelho Monarquia e a Colonização da
América, trabalho que acabava de ser defendido como tese de doutorado por Rodrigo
Bentes Monteiro, me chamou a atenção para a conexão entre o movimento restauracionista
e a adoção do mesmo discurso pelos revoltosos fluminenses em 1660, mesmo não sendo
essa obra um estudo sobre revoltas coloniais.
Sendo assim, a monografia estava pronta, discutindo o bê-a-bá sobre a Revolta da
Cachaça, o contexto da restauração e o discurso neotomista em 1660. E São Gonçalo, onde
estava? Depois de dois anos de mestrado deu para perceber com certeza que em lugar
nenhum! Reservei-me a dizer somente que São Gonçalo era o local onde tinha se iniciado
o conflito, como também tinha o principal líder do movimento. Além disso, fiz um estudo
sobre os primórdios da região e só! Naquele momento, achava que o grande vácuo do
trabalho era a inexistência de uma discussão aprofundada sobre o papel do conselho
ultramarino ao longo da revolta, pois era um órgão que teceu inúmeras defesas da
legalidade da eclosão do movimento e demonstrou preocupação no grande ricochete que se
espalhava pelo império ultramarino português.
Foi essa idéia então que me levou ao ingresso no programa de pós-graduação da
Universidade Federal Fluminense. E que por incrível que possa parecer, a mesma somente
durou três meses! Um estudo sobre o conselho ultramarino trazia a obrigação de um
detalhado levantamento sobre a História desta instituição, como da mesma forma que os
personagens que fizeram parte deste instrumento de atuação do sol nas regiões coloniais.
Com exceção do trabalho de Marcelo Caetano, O Conselho Ultramarino Um Esboço de
sua História, não creio existir mais nenhum trabalho de destaque que descortine os
17
meandros deste órgão político português. Sendo assim, abandonei a idéia e resolvi
definitivamente me entregar a São Gonçalo.
Dessa forma, meu principal objetivo nesta presente dissertação passou a ser a
analisar o papel da freguesia de São Gonçalo na elaboração, arquitetura e desenvolvimento
da Revolta da Cachaça, resposta imediata dos súditos portugueses diante da conjuntura de
crise política que se instaurou na capitania do Rio de Janeiro. E mais do que isso,
enveredar pela trajetória de vida dos principais líderes do movimento, buscando as pistas,
ou como nos ensina Carlo Ginzburg, sinais
9
que nos levassem a tecer relações destes
homens com a recém-criada freguesia de São Gonçalo de Amarante. Tais afirmações
seguramente atestam que este trabalho insere-se na discussão sobre História Local, o que
necessariamente traz a obrigatoriedade de enquadrá-los nos debates sobre a micro-história.
Surgida no final da década de 70 e início da década de 80, a micro-história resultou-
de uma profunda crise que abalou as linhas teóricas revolucionárias, sobretudo os sistemas
marxistas e funcionalistas. Buscando uma considerável alteração nos instrumentos de
pesquisa e uma total redefinição de conceitos, autores como Carlo Ginzburg e Giovanne
Levi fundaram a revista Quaderne Storici, inaugurando a análise micro-histórica.
10
De uma
forma geral, os micro-historiadores criticavam o relativismo e o irracionalismo, visando
uma análise microscópica da realidade social, destacando o papel do particular em
detrimento do geral. Por conta do reducionismo histórico, tais obras acabaram por
despertar ferozes críticas entre historiadores por conta dos riscos que desenvolviam na
generalização das realidades micro-analisadas.
11
No rastro das críticas sobre a micro-história, a obra organizada por Jacques Revel,
Jogos de Escalas, deu um gigantesco passo na flexibilização das idéias propostas pelos
micro-historiadores, no momento em que valorizou a adoção de inúmeras escalas para a
visualização de diferentes tipos de conhecimento.
12
Nessa lógica, o local passou a ser
entendido como uma das diversas escalas que o historiador poderia utilizar de acordo com
seu interesse particular ou, se preferirmos parafrasear a epígrafe acima, é como se o
9
Refiro-me aos sinais como indicadores de pistas ou rastros que nos levem a constatação de uma informação.
Cf. Carlo Ginzburg. "Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário" IN: Mitos, Emblemas e Sinais - Morfologia
e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
10
Giovanne Levi. "Sobre a Micro-História" IN: Peter Burke (Org.) A Escrita da História: Novas
Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
11
Ibidem, p. 155. Cf. Roger Chatier. A História Cultural: entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel,
1988.
12
Jacques Revel (Org.) Jogos de Escalas: a Experiência da Microanálise. Rio de Janeiro: Editora da
Fundação Getúlio Vargas, 1998.
18
historiador tivesse constantemente em suas mãos um microscópio, no qual suas lentes
poderiam transformar moscas em monstros ou vice-versa em questões de segundo, sempre
privilegiando as intenções prescritas por aquele que estará fazendo a análise.
13
É com este intuito que se enquadra este trabalho. A relação entre São Gonçalo e a
Revolta da Cachaça será vista de diversas formas, utilizando-se de inúmeras escalas e
parâmetros de análise. Não buscamos, de maneira alguma, reduzir a região gonçalense a
uma mera localidade das conquistas américo-lusitanas, como também não estamos
interessados em caracterizá-la como a grande região do império ultramarino português.
Muito pelo contrário! Estamos muito mais voltados em inserir São Gonçalo nas
incontáveis redes e conexões da capitania do Rio de Janeiro, das demais regiões da
América Portuguesa, da Ibéria e das outras conquistas ultramarinas portuguesas.
Talvez a opção pelos jogos de escalas e mais propriamente pela história local,
também redunde da própria facilidade de visualização da pluralidade das relações de poder
que nestas circunscrições de análise são possíveis. A formação dos grupos oligárquicos, a
relação entre as instituições e a própria formação de uma identidade especificamente local
são algumas das conseqüências quando optamos por uma análise vista por todos os
ângulos.
14
E são indiscutivelmente, estas temáticas que são fundamentais para o
entendimento do papel desempenhado pela freguesia de São Gonçalo de Amarante ao
longo da Revolta da Cachaça.
Sendo um trabalho de história local, esta dissertação pode ser enquadrada na nova
historiografia sobre a região gonçalense que surgiu na década de 90 do século passado. A
obra fundadora da historiografia gonçalense foi São Gonçalo O Cinqüentenário:
História, Geografia e Estatística escrita pelo médico e político Luiz Palmier. Com o
intuito de comemorar os cinqüenta anos de municipalização da região, a obra traz uma
leitura minuciosa dos aspectos físicos, políticos, sociais e econômicos de São Gonçalo de
sua fundação ao início do século XX.
15
Desprovida de uma rigorosa crítica documental, o
13
Haydée Figueiredo, Luiz Reznik e Márcia de Almeida Gonçalves. "Entre Moscas e Monstros: Construindo
Escalas, Refletindo sobre História Local" IN: Anais do IV Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de
História. Ijuí: Editora UNIJUÌ, Coleção Trabalhos Acadêmicos-Científicos, Série Eventos Acadêmicos,
2000, p. 544.
14
Ibidem, p. 546. Sobre a importância das questões tangentes sobre a formação de grupos oligárquicos e sua
relação com as instituições locais, Cf. César de Oliveira (Dir.) História dos Municípios e do Poder Local.
Lisboa: Círculo do Livro, 2000.
15
Luiz Palmier. São Gonçalo O Cinqüentenário: Historia, Geografia e Estatística. Rio de Janeiro:
Serviços Gráficos do IBGE, 1940.
19
Cinqüentenário como seu próprio título diz é um trabalho que circula entre a história, a
geografia e a estatística.
Seguindo os passos deixados por Palmier, entre as décadas de 50 a 70 outros
trabalhos que discutiam São Gonçalo traziam uma novidade: a conexão da história desta
região a Niterói.
16
Lysia Maria Bernardes, em Planície Litorânea e Zona Canavieira do
Estado do Rio de Janeiro, discutia a formação dos núcleos urbanos e o estabelecimento das
áreas açucareiras na região fluminense
17
; já José Antonio Soares de Souza, com Da Vila
Real da Praia Grande à Imperial Cidade de Niterói, restringiu-se ao período específico no
qual São Gonçalo pertencia a Niterói.
18
Todavia, ambas traziam uma análise documental
mais rigorosamente crítica.
Foi somente com a criação do Núcleo de Memória Gonçalense, o MEMOR, na
década de 80 que os primeiros trabalhos exclusivamente sobre a história de São Gonçalo
começaram a aparecer. Este núcleo formado por professores tentava construir uma
identidade gonçalense através de suas publicações, que valorizavam os ilustres
personagens daquela localidade em sua biografias, anedotários e cronologias. Além disso,
o MEMOR utilizou-se de uma manancial de fontes primárias pesquisadas em diversos
acervos do Rio de Janeiro, o que possibilitou na década de 90 a publicação de três obras
escritas por Salvador Mata & Silva e Evadir Molina, São Gonçalo no Século XVI, XVII e
XVIII. O trabalho de Homero Guião Filho, História de São Gonçalo, publicado em 1979,
mesmo não se enquadrando naqueles publicados pelo núcleo de memória possuía as
mesmas características e temáticas dos trabalhos daquela instituição.
19
Em seguida vieram os trabalhos acadêmicos sobre São Gonçalo, no qual
destacamos Pelas Bandas D’Além Fronteira Fechada e Arrendatários Escravista em
uma Região Policultora (1808-1888), escrito por Márcia Maria Menendes Motta, e
Escravidão e Relações Familiares no Rio de Janeiro (Período Colonial), publicado por
Sheila de Castro Faria. Tanto um quanto o outro se preocupavam com a reconstrução do
passado histórico com um respaldo documental muito bem analisado teórica e
16
Sandra Mara da Silva Lima. “Nos Caminhos de Homero: Entre Memórias e Histórias. Um Ensaio sobre a
Historiografia Gonçalense” IN: Márcia de Almeida Gonçalves e Luís Reznik (Orgs.) Guia de Fontes para a
História de São Gonçalo. São Gonçalo: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação
de Professores e Laboratório de Pesquisa Histórica, 1999, pp. 29-31.
17
Lysia Maria Bernardes. Planície Litorânea e Zona Canavieira, XVIII. Congresso do Instituto de Geografia
do Rio de Janeiro, 1957.
18
José Antonio Soares de Souza. Da Vila Real da Praia Grande à Imperial Cidade de Niterói. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1975.
19
Homero Thomaz Guião Filho. História de São Gonçalo.Rio de Janeiro. Editora Equipe Quatro, 1979.
20
metologicamente. Afastando-se do discurso ufanista, tais obras utilizavam-se de
quantificação de dados e de um estudo comparativo.
20
Visando atingir esses mesmos objetivos, a criação do Laboratório de Pesquisa
Histórica História Regional de São Gonçalo, em 1996, na Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro trouxe um novo fôlego para a
produção sobre a História de São Gonçalo. Dentre suas primeiras publicações, o Guia de
Fontes para História de São Gonçalo, constitui-se, hoje, como um belo referencial para
consulta nos acervos sobre documentos relativos a região gonçalense. Formada por
professores e estudantes de História e Educação, o laboratório produz artigos especializado
sobre diversas temáticas sobre a História gonçalense, dentre eles: os cristãos-novos, a
educação, os loteamentos, a polícia política do século XIX e outros. Como disse
anteriormente, estagiei por durante três anos neste laboratório, o que, obviamente, me serve
de influência atual para pensar sobre história local e história regional.
Outros dois momentos importantes para a sedimentação do arcabouço teórico que
sustentam este trabalho encontram-se nos créditos realizados no programa de pós-
graduação da Universidade Federal Fluminense e no exame de qualificação. Tanto a
disciplina As Fundações do Pensamento Político Moderno ministrada pelo meu
orientador, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo quanto O Antigo Regime nos Dois
Lados do Atlântico conferido pela Profa. Dra. Maria Fernanda Baptista Bicalho foram
fundamentais para a discussão sobre cultura política, as condições específicas coloniais, o
discurso político moderno, as resistências do antigo regime e a diversidade do império
colonial português. Foram nelas que tomei contato com teorias e autores que até então não
conhecia como Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo Monteiro, A. J. R. Russell-
Wood, Jack P. Greene, Rubem Barbosa Filho, Pedro Cardim, Quentim Skinner e Ernst
Kantorowicz.
Por outro lado, no exame de qualificação foi o momento de colocar tudo isso à
prova. Os objetivos e hipóteses desta dissertação já que estavam, de uma certa forma,
costurados, à espera de leitores críticos. Enquanto as sugestões do prof. Dr. João Fragoso
voltavam-se para um olhar mais atento para as engrenagens da economia colonial
20
Márcia Maria Menendes Motta. Pelas Bandas D’Além Fronteira Fechada em uma Região Policultora
(1808-1888). Dissertação (Mestrado em História). Departamento de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, 1988. Sheila de Castro Faria. Escravidão e Relações Familiares no Rio de
Janeiro (Período Colonial). Cadernos do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói: Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Número 23, 1990.
21
fluminense e para as ligações familiares, àquelas feitas pelo Prof. Dr. Rodrigo Bentes
Monteiro relacionavam-se a ajustes no contexto da restauração portuguesa. Em seu
cômputo geral, a qualificação ao mesmo tempo que me auxiliou na constatação na
possibilidade do estabelecimento da ligação entre a Revolta da Cachaça, a freguesia de
São Gonçalo de Amarante e a restauração portuguesa, por outro lado contribui para a
comprovação da complexidade do movimento de 1660 e da crise política fluminense.
Em relação às fontes e às bibliografias que serão utilizadas nesta dissertação
acreditamos que responderam de forma coesa às necessidades e objetivos aqui
vislumbrados. Ao conhecimento das fontes primárias impressas sobre a Revolta da
Cachaça - dentre elas, Balthazar da Silva Lisboa e seus Annaes do Rio de Janeiro; as
Memórias Manuscritas sobre a História da Cidade do Rio de Janeiro, publicada na Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; os Anais da Biblioteca Nacional; e as
fontes publicadas por Luis Norton em sua obra A Dinastia dos Sás no Brasil (1558-1662) e
Alberto R. Lamego Filho no trabalho Terra Goytacá à Luz de Documentos Inéditos
durante a realização da monografia somaram o contato com às fontes impressas e
manuscritas localizadas nos arquivos portugueses Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Biblioteca Nacional de Lisboa e Arquivo Histórico Ultramarino que foram gentilmente
cedidos pelo professor orientador deste trabalho, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo.
Além disso, ainda sobre a documentação sobre a revolta, o Catálogo Castro Almeida coube
como uma luva para preencher lacunas de contextualização daquele movimento.
21
Mas para desbravar a trajetória dos personagens gonçalenses foi necessário
muitíssimo trabalho. Sentimos-nos procurando agulha no palheiro, com uma lupa na mão
não deixando escapar o mínimo detalhe. Para nos ajudar a alcançar esse propósito
utilizamos as obras genealógicas de Carlos G. Rheingantz e Elysio Belchior, como também
a listagem de sesmarias elaborada por José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, as
informações de transações comerciais do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e os dados
21
“Conselho Ultramarino/Brasil Catálogo Castro Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1757).
Arquivo Histórico Ultramarino Instituto de Investigação Científica Tropical/Lisboa, Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro; Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Volume
XXXIX, s/a; Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Volume IV, V, VII e XXXIII,
1928; Alberto R. Lamego Filho. Terra Goytacá à Luz de Documentos Inéditos. Paris: L’edition d’arte.
Volume I, 1945; Baltazar da Silva Lisboa. Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Leitura S/A,
Volume III e IV, 1967; "Memória Manuscrita sobre a História do Rio de Janeiro durante o Governo de
Salvador Correia de Sá e Benavides" IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro : Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Volume III, 1980; Luis Norton. A Dinastia dos Sás no
Brasil (1558-1662). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1943.
22
da câmara transladados nos Acordos e Vereanças do Rio de Janeiro.
22
Em termos
metodológicos trabalhamos com a análise de textos para os documentos relativos à revolta,
e com a análise prosopográfica para a composição das famílias envolvidas no movimento.
Sobre este último ponto, privilegiamos o cruzamento de dados relativos a casamento,
propriedade de terras e ocupação de cargos na capitania. Obviamente qualquer informação
a mais era bem vinda, mas, em se tratando do século XVII e sua escassez documental,
quando conseguíamos atingir essas três características dos revoltosos tínhamos a sensação
de trabalho cumprido.
No âmbito bibliográfico, creio que as mudanças foram bem maiores se
compararmos com o trabalho produzido ao longo da graduação. A começar pela
historiografia portuguesa sobre o pensamento do Antigo Regime onde destaco as
importantes contribuições de Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo Monteiro, Diogo
Ramada Curto, Joaquim Veríssimo Serrão e outros. Quanto à história do Rio de Janeiro e
da região fluminense, procuramos mesclar obras clássicas como as de Charles R. Boxer,
Vivaldo Coaracy e Eulália Lahemeyer Lobo, como teses e trabalhos mais recentes de João
Fragoso, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Luis Felipe
de Alencastro, Antônio Carlos Jucá Sampaio e Paulo Knauss de Mendonça. No que
concerne a São Gonçalo, optamos pelo pouco que existe: a cinqüentenária obra de Luiz
Palmier, a trilogia dos primeiros séculos gonçalense elaborada por Salvador Mata e Silva
& Evadyr Molina e alguns artigos do Laboratório de Pesquisa História sobre História de
São Gonçalo, o qual mencionei acima. Por fim, quanto aos trabalhos propriamente ditos
sobre a revolta seguimos os passos deixados por Charles Boxer, Vivaldo Coaracy, Luciano
Raposo de Almeida Figueiredo, Luis Norton, Miguel Arcanjo de Souza, José Vieira
Fazenda, para citarmos somente alguns.
23
22
Carlos G. Rheingantz. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro (Século XVI e XVII). Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana Editora, Coleção Vieira Fazenda, 1965. Elysio de Oliveira Belchior. Conquistadores e Povoadores
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, Coleção Vieira Fazenda, 1965; Cartório do 1º
Ofício de Notas. Arquivo Público da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1621-1672, Códigos 42-3-55,
42-3-56 e 42-3-57; Acordos e Vereanças do Legislativo Municipal, 1635-1650. Arquivo Geral da Cidade do
Rio de Janeiro, Códice 16-3-20; José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. "Relação das Sesmarias da
Capitania do Rio de Janeiro Extraída dos Livros de Sesmarias e Registros do Cartório de Tabelião Antonio
Teixeira de Carvalho, 1565-1796" IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 63, Volume I, 1900.
23
Cabe assinalar que muitas vezes neste trabalho aproximaremos obras de características distintas, como por
exemplo, o trabalho acadêmico de Antonio Carlos Jucá Sampaio Na Curva do Tempo, na Encruzilhada do
Império: Hierarquização Social e Estratégias de Classe na Produção de Exclusão e a obra quase
memorialista de Vivaldo Coaracy O Rio de Janeiro do Século XVII. Todavia não objetivamos aqui
equipará-las em termos históricos, e sim, resguardando as devidas diferenças, relacioná-las em sua
argumentação.
23
Seja como for, a presente dissertação encontra-se dividida em cinco capítulos. Mas,
antes de descrevê-los, creio que seja pertinente fazer um breve alerta ao leitor. Apesar da
Revolta da Cachaça ser, sem dúvida alguma, o tema central deste trabalho, em alguns
momentos é perceptível como o movimento é tratado de forma secundária. Pode parecer
uma mera pretensão de tentar dar conta das inúmeras questões que circulavam em torno da
revolta, mas acreditamos que esse panorama que contextualizava a revolta de 1660 é
fulcral para a motivação das engrenagens e, por que não dizer, da própria sustentação da
revolta, sem a qual seria muito difícil compreender a complexidade do movimento. Vamos,
então, aos capítulos...
O primeiro capítulo, a Capitania do Rio de Janeiro e a Política Colonial
Portuguesa, 1500-1660, tem por objetivo analisar o processo de conquista e colonização da
região fluminense, privilegiando entender de que forma a capitania do Rio de Janeiro
passou a se enquadrar nas políticas mercantilistas da coroa portuguesa, utilizando, para
isso, uma nova cronologia para a História quinhentista e seiscentista fluminense. Além
disso, buscaremos compor um painel da administração de Salvador Correia de Sá e
Benavides na capitania do Rio de Janeiro, no intuito de averiguar a relação entre o
representante régio e o desenvolvimento do movimento de 1660.
Adotando essa mesmíssima lógica, o segundo capítulo, Das Frutos da Terra à
Cachaça A Freguesia de São Gonçalo de Amarante, 1500-1660 - busca fazer um recorte
específico das estruturas políticas, econômicas, produtivas e de enraizamento populacional
da região gonçalense. Isto significa dizer que este capítulo se propõe a inserir São Gonçalo
na capitania do Rio de Janeiro, intencionando compor um painel das motivações que
fizeram da região o palco principal da Revolta da Cachaça. No entanto, centraremos nosso
foco nas questões econômicas, principalmente as referentes às restrições impostas à
produção e comercialização da aguardente, analisando também os efeitos dessa conjuntura
para a freguesia gonçalense.
O capítulo 3, A Crise Política Fluminense e a Revolta da Cachaça, pretende
analisar as razões políticas que levaram a efetivação do conflito, avaliando até que ponto
tais motivações relacionavam-se com os interesses particulares e específicos da região
gonçalense no Seiscentos. Para isso, nos debruçaremos nas condições indiretas para a
eclosão de movimentos sociais, na revalorização da utilização da revolta como forma de
resistência e pelo respaldo ideológico oferecido pela restauração portuguesa para
efetivação destes conflitos. Em seguida, objetivamos entender as matrizes da crise política
24
instaurada na capitania do Rio de Janeiro e sua intrínseca conexão com a Revolta da
Cachaça.
O último capítulo, Entre os Sá e os Barbalho Os Personagens Gonçalenses e a
Revolta da Cachaça, dará atenção especial aos ilustres envolvidos no movimento, sendo
justamente por isso que a análise prosopográfica foi a metodologia adotada para compor
esse capítulo. Neste caso, estamos absolutamente interessados em responder inquietações
como: quem eram os homens que se envolveram na revolta? Como estes homens viviam?
Qual eram os seus papéis na freguesia de São Gonçalo? Como se estruturavam
socialmente? Enfim, é um capítulo que analisa a formação dos grupos sociais nas regiões
gonçalenses, calcados no estatuto de nobreza e fidelidade régia. Logo, estaremos
preocupados em entender o lugar da família na formação das regiões coloniais e a
constituição de alianças entre os grupos de interesses equivalentes, o que obrigatoriamente
nos levará ao entendimento das formas de estruturação das elites sociais nas regiões
coloniais lusitanas, como concebiam o poder político e qual era o seu papel na manutenção
e sustentação da monarquia lusitana no mundo ultramarino.
É lógico que este trabalho não tem a mínima pretensões de dar conta de todas as
questões que perpassavam a Revolta da Cachaça. Para isso seria necessário a elaboração
de vários volumes devido à grandiosidade do movimento e, me arrisco a dizer, do grande
movimento fluminense até pelo menos o século XVIII. Sendo assim, a Revolta da Cachaça
foi o recurso que escolhemos para tentar entender o local da importantíssima freguesia de
São Gonçalo de Amarante no século XVII, como também para descortinar as relações
sociais travadas entre o rei e os seus súditos ultramarinos, a sombra e os revoltosos e, claro,
a sombra e o sol. Entendido isso, deixemos, então, a tempestade cair...
25
Capítulo 1: A Capitania do Rio de Janeiro e a Política Colonial Portuguesa,
1500-1660
“Levantemos a Cidade, que ficará por memória do
nosso heroísmo e exemplo de valor às vindouras gerações,
para ser a rainha das províncias e o empório das riquezas
do mundo” (Estácio de Sá, 1565)
“O Rio de Janeiro foi palco da aludida circunstância.
Fundada a Cidade, em 1565, firmado o ‘elo’ entre o Norte e
Sul da América Portuguesa, acontecimento que (...) muito
deve ter contribuído para o grande mistério da preservação
da unidade territorial brasileira, quinze anos após, já estava
a urbe de Estácio de Sá submetida à Coroa de Filipe II, da
Espanha, Filipe I de Portugal (Nilo Garcia, 1988)"
No início, bem no princípio de tudo, a felicidade de ser agraciado com um
pedacinho de terra era um sinal mais do que visível do prestígio frente à coroa portuguesa,
como acontecera, por exemplo, com Gonçalves Jorge, 600 braças ao longo do mar e 800
pela terra dentro de Piraguanapam para o norte, em 7 de Setembro do dito ano e Diogo
da Rocha, 800 braças ao longo do mar e 1.200 pela terra adentro ao longo deste rio para
a parte de Imbú, em 7 de Setembro de 1565.
1
Logo depois, a alegria e o prestígio cedem
lugar às dificuldades inerentes de se viver distante de tudo, do monarca, da família, da terra
natal. Quase que totalmente isolados, suspiros de necessidades incontáveis exalavam pelo
ar:
(...) a necessidade que padece esta capitania, assim pela falta de
embarcações de fora, pelo valor dos efeitos dela, além da mortandade de
negros e bois com doenças extraordinárias que tem acrescido, e também
experimentamos a falta de comércio de Angola, que tem sido causa de se
1
José de Souza Azevedo Pizarro & Araújo. “Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro, Extraída
dos Livros e Registros do Cartório do Tabelião Antonio de Carvalho de 1565 e 1796” IN: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 63,
Parte I, 1900, p. 94
26
dever à infantaria desta praça a mais de nove meses de soldos e anos de
seus fardamentos (...)
2
Percebeu-se, então, que a maior dificuldade não era cruzar o Atlântico, e sim
estabelecer raízes em um lugar desconhecido, buscar sentido para atitudes desprovidas de
explicações e criar vida na imensidão do vazio. Devia-se efetivar uma colonização, saber
conviver com as constantes ameaças dos inimigos, com as intempéries da região, com a
diversidade étnica dos nativos e evidentemente com os interesses particulares que cada um
daqueles que recebia suas terras tinha e que aos poucos afloravam em solo ultramarino.
Mas não adiantava somente os súditos ultramarinos estarem dispostos à prática
colonizadora, a ajuda da coroa deveria vir mais cedo ou mais tarde. Após cem anos da
chegada da frota cabralina, o mundo colonial fora moldado conforme a organização
administrativa portuguesa. Era o momento de semear para depois colher.
3
Inseridas
definitivamente na prática mercantilista, as regiões americanas cresceram, prosperaram e
passaram a sustentar o mundo metropolitano, mesmo sob a égide de uma coroa que não a
portuguesa, ou seja, quando os espanhóis assumiram o trono lusitano durante sessenta anos
(1580-1640).
Todavia, no momento em que as coroas separaram-se, uma nova realidade
apresentava-se diante dos olhos tanto daqueles que se situavam na América como para
aqueles que eram agraciados pela proximidade do rei. Sedimentar os parâmetros da
colonização, reorganizar o controle sobre o ultramar e fomentar condições que ampliem o
domínio e a autoridade portuguesa estavam na pauta joanina após 1640.
Assim, este primeiro capítulo tem por objetivo fazer uma análise geral da conquista
e colonização da capitania do Rio de Janeiro, de fundamental importância para estabelecer,
posteriormente, os contrastes e as especificidades da freguesia de São Gonçalo de
Amarante, que serão estudados no Capítulo 2 deste mesmo trabalho. Logo, acreditamos
que para entender a capitania do Rio de Janeiro durante os Séculos XVI e XVII é
necessário demarcar determinadas etapas da construção da colonização no mundo
ultramarino americano. O primeiro momento, que compreende de 1500 até a efetivação da
união das duas coroas ibéricas, em 1580, denominaremos de conquista da capitania do Rio
2
Resposta da Câmara do Rio de Janeiro a Proposta do Prelado Administrador da Jurisdição Eclesiástica, 31
de Janeiro de 1660 IN : Balthazar da Silva Lisboa. Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Leitura
S.A., Volume III, 1963, p. 364.
3
Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
27
de Janeiro; o segundo momento, que atravessa todo o período do domínio castelhano em
Portugal, ou seja, 1580 até 1640, que se concretizou a colonização da capitania do Rio de
Janeiro; e, por último, o terceiro momento, que apenas vislumbraremos até 1660 quando
eclode a Revolta da Cachaça na mesma capitania fora marcada por um reajuste do pacto
colonial e pelo esforço português em reafirmar seu domínio sobre o ultramar. Além disso,
nesse capítulo acompanharemos um pouco da trajetória de vida de Salvador Correia de Sá
e Benavides, sobretudo suas administrações na capitania do Rio de Janeiro, já que a partir
delas podemos enxergar algumas raízes do movimento de 1660. Tais etapas passam a ser
analisadas a partir deste momento.
A Conquista da Capitania do Rio de Janeiro
Era necessário muita coragem. Atravessar o “mar tenebroso” não era para qualquer
um. Um belo ditado português da época das navegações dizia que “se você quer aprender a
rezar, vá para o mar”. Tal ditado traduz perfeitamente as incertezas, a imprevisibilidade e
os perigos que os navegadores europeus enfrentavam rumo ao desconhecido. Mas não era,
evidentemente, somente a coragem o combustível para as grandes navegações. A cobiça e
os diversos interesses permeavam a mentalidade e os sonhos mais ocultos daqueles
europeus. Objetivos estes que iam desde a procura de metais preciosos, de novas terras, a
expansão da fé católica até a busca de um caminho alternativo que podia levar às Índias (já
que os percursos que passavam pelo mar Mediterrâneo estavam bloqueados pelos turcos) e
a procura de um “Paraíso Terrestre”.
4
A tomada de Ceuta, em 1415, foi o primeiro passo na constituição de um Império
vastíssimo no ultramar, o que levou os portugueses em todo o século XV a voltar-se para a
feitorização da costa africana. A passos largos, a intenção maior de cruzada da fé, que
permeou a mentalidade lusitana até meados do mesmo século, foi dando lugar às
conquistas das regiões africanas. O estabelecimento de feitorias era uma solução cabível,
4
Sobre este último ponto conferir os célebres trabalhos de Laura de Mello e Souza. O Diabo e a Terra de
Santa Cruz : Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986
e Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do
Brasil. São Paulo: Brasiliense, Publifolha, 2000.
28
pois havia a necessidade de existência de entrepostos mercantis para a comercialização de
produtos que porventura viriam do Oriente.
5
A posterior chegada da coroa espanhola à América na figura do navegador
português Cristóvão Colombo, em 1492 tornou-se a solução dos problemas lusitanos.
Encontrando obstáculos para atravessar as fortes correntes marítimas que circulavam pela
costa africana, a aproximação com a costa americana não só permitiu a navegação aos
portugueses como a agilizava, já que as caravelas seguiriam os rumos das correntes
marítimas. Logo, encontra-se aqui uma nova motivação para que os lusitanos
reivindicassem direitos nas terras americanas, que não só o interesse pelas terras e pelos
metais preciosos. Levando até os últimos limites para alcançar seus objetivos, a coroa
portuguesa forçou uma redefinição na divisão territorial americana proposta pelo Papa
Alexandre VI, conseguindo, com isso, um faixa de terra no novo mundo através do tratado
de Tordesilhas, em 1494.
6
Com essa nova conquista, explicam-se facilmente as posteriores façanhas lusitanas:
a chegada de Vasco da Gama às Índias, em 1498, e a segunda expedição rumo às Índias
orientais comandada por Pedro Álvares Cabral, em 1500. Diante destas questões, fica claro
que a chegada de Pedro Álvares Cabral ao solo americano marcava um domínio lusitano
fundamental para a continuidade do envio das frotas até o oriente. Da mesma forma, que
fica evidente a condição do território americano em quase todo o século XVI: ponto de
parada portuguesa para levar os navios rumo às Índias em detrimento das correntes
americanas que circulavam pela região sul.
7
Foi, então, dessa maneira que se constitui o
grande e vastíssimo Império Ultramarino Português, o Império onde o Sol nunca morria.
Depois da coragem e da cobiça, a nova palavra de ordem no que tange pensar as
regiões americanas nessa primeira metade do século XVI, traduz-se pelo desprezo.
Esmagado pelo sonho dourado do comércio de especiarias e produtos luxuosos realizados
com as Índias, o mundo brasílico ficou a mercê dos caprichos e pequenas necessidades da
coroa portuguesa. É a partir deste total desprendimento do mundo americano pelo mundo
metropolitano que começa a nossa História fluminense.
5
Cf. Luís Felipe F. R. Thomaz. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1985.
6
Ibidem, passim.
7
Ibidem, passim. Cf. A. J. R. Russell Wood. O Mundo em Movimento: os Portugueses na Ásia, na África e
América. Lisboa: Difel, 1998; Sanjay Subrahmanyam. O Império Asiático Português (1500-1700) Uma
História Política e Econômica. Lisboa: Difel, 1995. Fréderic Mauro. O Império Luso-Brasileiro, 1620-1750.
Lisboa: Estampa, 1991; Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (Dir.) História da Expansão Portuguesa.
Lisboa: Círculo de Leitores, 4 Volumes, 1998.
29
Todavia, antes de desbravar a História fluminense, cabe uma ressalva mencionada
anteriormente por outros dois autores separados pelo tempo, mas coevos no pensamento.
Tanto Vivaldo Coaracy, em sua célebre obra O Rio de Janeiro no Século XVII, quanto
Antônio Carlos Jucá Sampaio em seu recente trabalho Na Curva do Tempo, na
Encruzilhada do Império: Hierarquização Social e Estratégias de Classe na Produção de
Exclusão (Rio de Janeiro, c. 1650-1750) destacaram a dificuldade documental no que se
refere ao Rio de Janeiro quinhentista e seiscentista. Vivaldo Coaracy chegou a mencionar
que a História seiscentista era obscura e normalmente relacionada com as glórias das
conquistas do período quinhentista.
8
Antônio Sampaio, em sua tese em que se preocupa
analisar a relação entre a concessão de terras e a reprodução de uma hierarquia social
estabelecida a partir de estratégias de exclusão, nada mais do que reafirma a hipótese de
seu antecessor, demonstrando a escassez de fontes tanto no Brasil como em Portugal.
9
Sendo assim, o trabalho aqui proposto não fugirá também desses empecilhos e
impedimentos.
Voltando ao desprezo português pela América, podemos apontar inclusive que o
mesmo advinha muito da não descoberta imediata de metais preciosos em solo luso-
americano, diferente do que tinha ocorrido com seus vizinhos hispânicos, que por acaso,
haviam deparado com metais em abundância. Por isso, o comércio com as Índias era a
única forma de nutrir a sede mercantilista lusitana no Quinhentos.
Entretanto, quando mencionamos o desprezo,o estamos querendo nos remeter à
presença administrativa ou presença comercial, e sim a mais simples de todas elas: a
ausência de presença física. Em 1502, André Gonçalves realizou uma expedição de
reconhecimento da costa brasileira, mas não tentou fincar raízes na região recém
conquistada.
10
Carlos Delgado de Carvalho menciona que a primeira estada lusitana nas
regiões fluminenses com o intuito de povoar a América, posterior a frota cabralina, deu-se
somente em 1504, com Gonçalo Coelho.
11
Ele construiu uma casa de pedras na foz do rio
8
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 5.
9
Antônio Carlos Jucá Sampaio. Na Curva do Tempo, na Encruzilhada do Império: Hierarquização Social e
Estratégias de Classe na Produção de Exclusão (Rio de Janeiro, c. 1650-1750). Tese (Doutorado em
História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, 2000, p. 43.
10
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Especial de Comunicação Social. Cadernos de
Comunicação. Rio de Janeiro: Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, Volume 2, 2002, p. 15.
11
Carlos Delgado de Carvalho. História da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de Cultural/Departamento Geral de Documentação e Informação Cultura, Divisão de Editoração, 1994, p. 23.
30
Carioca,
12
mas logo depois a abandonou em 1519, abrindo definitivamente brechas para as
incursões de outras monarquias européias em solo brasílico.
13
No final do século XVI, o encanto com o Oriente começava a desfazer-se. O
aumento da concorrência derrubara os preços dos produtos trazidos até à Europa. A crise
oriental e as invasões de outras monarquias na América deram o tom e as cores ao
processo de conquista da América Portuguesa e da capitania do Rio de Janeiro,
efetivamente iniciadas com a expedição guarda-costas comandada por Martim Afonso de
Souza, em 1530. O mesmo comandante tornou-se o donatário da capitania de São Vicente,
que correspondia às terras entre Cabo Frio e a Cananéia. Todavia, a opção pela região de
São Vicente novamente transformaria a região fluminense em área quase que abandonada.
14
Além da capitania de São Vicente, o que posteriormente caracterizou-se como
capitania do Rio de Janeiro, também compreendia a capitania de São Tomé, destinada a
Pero de Góis, que logo depois a abandonou por gravíssimos prejuízos financeiros.
15
Assim,
a mudança definitiva no cenário fluminense somente aconteceu depois das incursões
francesas na baía da Guanabara, em 1555, pois alteraram a paisagem do Rio de Janeiro e
obrigaram a coroa lusitana a controlar efetivamente parte do território brasílico.
A inexistência de uma presença portuguesa contínua no território americano pode
ser vislumbrada pelo relato de Nicolas Durand de Villegagnon, comandante francês na
invasão do Rio de Janeiro, em 1555 :
(...) toda a região era totalmente inculta. Não havia nem casas, nem
abastecimento de trigo. Havia apenas homens selvagens, ignorantes de
qualquer cultura e humanidade, totalmente diferente de nós, por seus
12
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Especial de Comunicação Social Caderno de
Comunicação. Op. Cit. , p. 15.
13
Para o aprofundamento na História do Rio de Janeiro Cf. Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século
XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965; Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento Fortuna e
Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; Gastão Cruls. A Aparência do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965; Luis Felipe de Alencastro. O Trato do Viventes Formação do
Brasil no Atlântico-Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Alice Canabrava. O Comércio Português
no Rio da Prata (1580-1640). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984. Eulália Maria
Lahemeyer Lobo. História do Rio de Janeiro Da Capital Comercial ao Capital Industrial e Financeiro.
Rio de Janeiro: IBMEC, 4 Volumes, 1978; João Luiz Ribeiro Fragoso. À Espera das Frotas: Hierarquia
Social e Formas de Acumulação no Rio de Janeiro, Século XVII IN: Cadernos do Laboratório
interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Departamento de História. Rio de Janeiro, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 1995.
14
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Especial de Comunicação Social. Cadernos de
Comunicação, Op. Cit. , p. 24.
15
Dídima de Castro Peixoto. História Fluminense. Rio de Janeiro: Subsídio à Cadeira de Estudos Sociais,
1969, pp. 25-26.
31
hábitos e sua disciplina, sem religião, sem qualquer noção de honra, de
virtude, do bem ou do mal, e eu me perguntava se havíamo-nos deparados
com bestas, que tivessem tomado a aparência humana.
16
Segundo Paulo Knauss de Mendonça, o estabelecimento da França Antártica
relacionava-se ao interesse da coroa francesa em burlar a política de exclusividade ibérica
nos mares do Atlântico. Com isso, os franceses objetivavam transformar o Mar Clausum
em Mar Liberum.
17
O interesse francês em desrespeitar as medidas do tratado de
Tordesilhas, assinado em 1494 entre a coroa portuguesa e a coroa castelhana, se
confirmava pela curiosa frase atribuída ao monarca francês, Francisco I, que dizia: (...)
gostaria muito que me mostrassem o artigo do testamento de Adão que divide o Novo
Mundo entre meus irmãos, o Imperador Carlos V e o rei de Portugal, excluindo-me da
sucessão (...)
18
A importância do discurso de Francisco I atestava que, pelo menos inicialmente, a
coroa francesa apoiava e auxiliava a invasão ao Rio de Janeiro. A dependência do escambo
com o indígena, a presença de apenas alguns europeus no território conquistado e a prática
do corso caracterizavam a prática francesa nos trópicos como uma feitoria, ponto inicial
para a concretização de rotas clandestinas em solo américo-lusitano. Para Mendonça, o
objetivo francês seria possível de ser concretizado porque a
(...) empresa européia ainda não se havia definido nos moldes
clássicos, não estando atrelada a um tipo de ocupação territorial extensivo,
nem tampouco as atividades produtivas diretas de características
sedentárias, mas, sim, permanecendo antes associada a um tipo de domínio
territorial efêmero e restrito, e muito mais identificada às atividades
extrativas, inserido-se em contornos fornecidos pela circulação de
mercadorias.
19
16
Carta de Villegagnon a Calvino. 31 de Março de 1557 IN: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e
Secretaria Especial de Comunicação Social . Cadernos de Comunicação. Op. Cit. , pp. 61-62.
17
Paulo Knauss de Mendonça. O Combate pelo Fato A França Antártica e a Afirmação do Domínio
Colonial Lusitano na América. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal Fluminense, 1990, p. 20.
18
Artur Heulhard. Villegagnon, Roi d’Amerique, un Homme de Mer au XVIème Siécle (1510-1572), p. 85
Apud Paulo Knauss Mendonça, Op. Cit. , p. 70.
19
Paulo Knauss de Mendonça, Op. Cit. , p. 83.
32
A afirmativa de Paulo Knauss de Mendonça pode ser realmente respaldada pela
visualização da distribuição de terras em toda a capitania do Rio de Janeiro. Até 1555,
quando os franceses conseguiram invadir definitivamente o Rio de Janeiro, toda a região
fluminense estava sob a égide de apenas dois capitães donatários: Martim Afonso de Souza
(capitania de São Vicente) e Pêro de Góis (capitania de São Tomé). O fracasso da
experiência das capitanias hereditárias fez com que estas terras americanas retornassem
para o controle da coroa portuguesa, que, posteriormente, redistribuiu de forma intensa, em
menores lotes e tentando abraçar toda a região fluminense. Mas, tal iniciativa somente
pode ser observada após a expulsão dos súditos da dinastia dos Valois, em 1565.
Era indiscutivelmente importante a necessidade da expulsão dos franceses para a
manutenção da autoridade lusitana nas áreas brasílicas, mas, ao mesmo tempo, sem a
experiência dos descendentes da dinastia dos Valois naquele momento, seria impossível a
organização da capitania fluminense. Para Ondemar Dias,
(...) esta presença punha em risco as comunicações entre as partes que
começavam a configurar o Estado do Brasil, de forma que foi necessário
organizar uma campanha para o domínio da terra, conhecida como fundação
da cidade do Rio de Janeiro, adentrando o século XVI. Na verdade, fundou-se
uma cidade e organizou-se uma capitania, ainda que não existia o documento
formal de seus estabelecimentos.
20
Se antes da ocupação francesa, em toda a América Portuguesa, foram distribuídas
15 grandes lotes de terra entre o Maranhão e Santa Catarina, concedendo aos seus
proprietários, os capitães donatários, plenos poderes sob suas terras.
21
Dez anos após a
expulsão dos franceses do território fluminense, ou seja, entre 1565 e 1575, a coroa
portuguesa outorgou mais de 111 sesmarias distribuídas em toda a orla da baía de
Guanabara, conforme é demonstrado no Quadro I abaixo :
20
Ondemar Dias. “Das Aldeias aos Engenhos A Ocupação Humana no Recôncavo da Guanabara da Pré-
História ao Século XVII” IN: Laboratório de Análise do Processo Civilizatório. II Jornada de Trabalho
Tempo e Espaço: A Construção da História Regional (Anais). Campos dos Goytacazes: Universidade
Estadual Norte Fluminense, 1997, p. 33.
21
Dídima de Castro Peixoto, Op. Cit. , p. 24.
33
Quadro I Distribuição de Sesmaria por década na Capitania do Rio de Janeiro
(1565-1665)
22
Ano Número de Concessões de Sesmarias
1565-1575 111
1575-1585 59
1585-1595 53
1595-1605 64
1605-1615 82
1615-1625 52
1625-1635* 50
1635-1645* 14
1645-1655 35
1655-1665 27
1565-1665 (total) 557
Fonte : Tabela construída a partir dos dados fornecidos por José de Souza Pizarro & Araújo. “Relação das Sesmarias
da Capitania do Rio de Janeiro. Extraída dos Livros e Registros do Cartório do Tabelião Antônio de Carvalho de 1565 a
1796” IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Tomo 63, Parte 1, 1900, pp. 93-153. (*) Há uma lacuna nas informações do cartório pesquisado por José de
Souza Azevedo Pizarro & Araújo entre 1632 a 1641, onde os dados só reaparecem em 1642.
O aumento visível no número de sesmarias marcava uma política clara da coroa
portuguesa de controlar o território, fixar a população e colocar em prática a conquista dos
trópicos fluminenses. Por isso, a distribuição das sesmarias obedeceu ao critério de
povoamento de toda a orla da baía da Guanabara, logo
(...) a ocupação de terras concentrou-se em quatro eixos principais,
constituídos pelos rios que deságuam na Baía da Guanabara : a área do rio
Inhaúma, que deságua, frente à Ponta do Caju, compreendendo o Irajá até a
foz do rio do mesmo nome em frente à Ilha do Governador, e rio Meriti; a
área do rio Sarapuí, com os rios Cachoeira e Bangu (hoje no município de
Duque de Caxias); a área do rio Iguaçu, com o rio Inhomerim, entre (hoje)
Nova Iguaçu e Magé; o rio Suruí, em Magé; o Guapy e o Macacu, acesso ao
amplo Sertão da Cachoeira de Macacu (hoje municípios de Macacu e
22
A título de comparação, cabe mencionar a existência de uma outra tabela de distribuição de sesmarias
construída por Francisco Carlos Teixeira da Silva a partir dos dados do Arquivo Nacional. Nesta divisão,
encontram-se os seguintes dados: para 1551-1560, nenhuma sesmaria; 1561-1570, 115; 1571-1580, 54; 1581-
1590, 22; 1591-1600, 50; 1601-1610, 63; 1611-1620, 57; 1621-1630, 51; 1631-1640, 4; 1641-1650, 21;
1651-1660, 28. Tudo isso somaria entre 1561-1660, 465 sesmarias na Capitania do Rio de Janeiro, número,
em nosso entendimento, muito dispare ao oferecido por José de Souza Pizarro & Araújo, que importam 529
concessões. Para maiores informações, Cf. Francisco Carlos Teixeira da Silva, A Morfologia da Escassez : Crises de
Subsistência e Política Econômica no Brasil Colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese
(Doutorado em História) Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, 1990, p. 324. Por
outro lado, compactuamos com Silva quando afirma que o povoamento da capitania do Rio de Janeiro dera-se de uma
maneira rápida.
34
Itaboraí) e, por fim, a área do rio Guaxindiba, via de penetração na região
dos tabuleiros de São Gonçalo.
23
No entanto, nem todos que quisessem poderiam ser agraciados com pedaços de
terras no novo mundo. A distribuição de sesmaria obedeceu a rigorosíssimo critério de
seleção de proprietários, todavia iss não queria dizer que os primeiros grandes sesmeiros
fluminenses deveriam pertencer obrigatoriamente à primeira nobreza. João Fragoso
assinalara que eles eram oriundos, principalmente do sul de Portugal e das ilhas do
Atlântico, não eram originalmente da alta nobreza, vinham fugidos da pobreza, mas tinham
em seu currículo alguma experiência em outra capitania da América Portuguesa.
24
Sendo
assim, o pré-requisito para a contemplação de uma sesmaria naquele momento seria a
ocupação de cargos administrativos nas áreas ultramarinas. A terra seria a forma de
pagamento régio para os serviços prestados e a coroa (...) sem onerar os recursos público,
(...) cumpria o objetivo de manter uma burocracia e enraizar na nova colônia os interesses
de gentes tão diferentes.
25
Se para Francisco Carlos Teixeira da Silva tal argumento não passava de uma
suposição teórica, para João Fragoso transformou-se em comprovação empírica. Dessa
forma, Fragoso nos demonstra que das 197 famílias que se constituíram como as primeiras
famílias da capitania do Rio de Janeiro, entre 1566-1770, 89 delas, ou seja, 45% advinham
de pessoas com larga passagem pelo funcionalismo régio colonial,
26
o que significa dizer
que além de conhecerem as especificidades de se viver nos trópicos, longe da égide real,
essas mesmas famílias romperam com o isolamento que vivera a capitania do Rio de
Janeiro em seus primeiros momentos. Para Fragoso
(...) as famílias senhoriais derivadas de ministros e oficiais do rei são
as que possuem, no correr dos seiscentos, o maior número de senhores de
engenho, a maior estabilidade no tempo, a maior capacidade de gerar
outras famílias senhoriais, e portanto, são as que têm maior capacidade de
absorção de estrangeiros.
27
23
Francisco Carlos Teixeira da Silva, Op. Cit. , p. 326.
24
João Fragoso. “A Nobreza da República: Notas sobre a Formação da Primeira Elite Senhorial do Rio de
Janeiro (Séculos XVI-XVII)” IN: Topoi. Rio de Janeiro: 7 Letras, Volume 1, 2000, pp. 51-52.
25
Francisco Carlos Teixeira da Silva, Op. Cit. , p. 321.
26
João Fragoso, Op. Cit. , p. 56.
27
Ibidem, p. 59.
35
Ainda seguindo os passos da política de montagem da conquista fluminense, a
fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1567, configurar-se-ia como a efetivação de um
ciclo. Eulália Maria Lahmeyer Lobo concluirá que a fundação da cidade do Rio de Janeiro
marcará a condição da própria capitania do Rio de Janeiro, caracterizando-se como um
centro costeiro de irradiação
28
, fulcral para o posicionamento do Rio de Janeiro no cenário
econômico no império ultramarino português e na defesa das rotas atlânticas que
perpassavam a costa fluminense.
29
Relacionada à distribuição de terras e à expulsão dos franceses, Paulo Knauss de
Mendonça ainda destaca no cenário fluminense, após 1565, a submissão dos índios aliados
dos súditos da dinastia de Valois aos portugueses, os tamoios. O domínio do gentio, nesta
perspectiva, somente foi possível pela aliança entre os portugueses e os tupinambás
inimigos de tempos imemoriais dos tamoios e pela atuação dos padres jesuítas que
acirravam as divisões de forças entre os indígenas.
30
Para Antonio Carlos Jucá Sampaio a conquista da terra américo-lusitana, através da
concessão de sesmarias, incentiva a formação de uma hierarquia social, pois as terras eram
geralmente concedidas àqueles homens que prestavam serviço à coroa portuguesa e
colaboravam para a formação de um grupo específico que dominará o cenário político
ultramarino: a elite colonial.
31
O outro lado da construção da hierarquia seria oriundo da
conquista do gentio, que fora auxiliado pela formação dos diversos aldeamentos indígenas.
O gentio formaria a mão de obra necessária para ser utilizada de forma abundante na
economia açucareira fluminense e corroborava para a formação de estruturas sociais
demarcadas por distinções de status.
32
Assim, terra e mão de obra seriam o capital social
básico para alicerçar a consolidação da sociedade colonial fluminense, garantindo que o
Rio de Janeiro entrasse no século XVII com uma paisagem rural dominada pelas grandes
propriedades.
33
28
Eulália Maria Lahmeyer Lobo. História do Rio de Janeiro Da Capital Comercial ao Capital Industrial e
Financeiro. Rio de Janeiro: IBMEC, Volume 1, 1978, p. 19.
29
Maria Fernanda Baptista Bicalho. A Cidade e o Império o Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial
Portuguesa, Século XVII e XVIII. Tese (Doutorado em História). Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1997; Luis Felipe de Alencastro. O
Trato dos Viventes, Op. Cit. ; Charles R. Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola, Op. Cit.
30
Paulo Knauss de Mendonça, Op. Cit. , p. 98.
31
Antônio Carlos Jucá Sampaio, Op. Cit. , p. 51.
32
Sobre a relação entre a escravidão indígena e o estabelecimento de status conferir o brilhante trabalho de
Maria Regina Celestino de Almeida. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial Novos Súditos
Cristãos do Império Português. Tese (Doutorado em Antropologia). Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2000.
33
Ibidem, p. 52.
36
Colonização da Capitania do Rio de Janeiro
Superado o medo, controlado o furor da cobiça e diminuído o desprezo, os
homens ultramarinos sofreram um novo impacto em solo américo-lusitano, que
parafraseando Sérgio Buarque de Holanda e fazendo um neologismo, podemos caracterizar
de ladrilhamento. Preocupado com a diferenciação entre a colonização castelhana e a
colonização portuguesa no ultramar Holanda estabeleceu algumas divergências entre o
modo de colonizar dessas monarquias européias. Enquanto denomina os portugueses como
semeadores, pois voltavam-se para a exploração das riquezas e das áreas coloniais, aos
espanhóis nomeia de ladrilhadores, já que estavam preocupados com a construção física do
espaço ultramarino antes de depredá-lo economicamente. Exemplo dessa diferenciação,
demonstrada pelo próprio autor, remete-se à inexistência de universidade e imprensa na
América Portuguesa, enquanto ambas já haviam sido colocadas em prática pelos espanhóis
no século XVI.
34
A confrontação entre o semeador e o ladrilhador fora desprezada por
muitos historiadores no que tange a visualização das regiões luso-americanas no período da
união ibérica por Holanda.
No entanto, novos fatos trazidos por aquele mar que tanto atemorizou os
lusitanos cooperou para a formação da capitania do Rio de Janeiro em fins do século XVI.
E dessa vez, o impacto direto não seria na América como ocorrera com a invasão
francesa mas sim na Ibéria. A morte do rei lusitano, cardeal D. Henrique, em 1580,
somente descortinava o problema da sucessão da coroa portuguesa que se arrastava desde
1578, quando D. Sebastião, o desejado, morreu em campanha ibérica contra os mouros
em Alcácer Quibir. Não esperando a decisão das cortes, Filipe II, monarca castelhano e um
dos indicados para a sucessão do trono lusitano, invadiu Portugal quase que ao mesmo
tempo em que D. Antonio, Prior de Crato, era aclamado como o novo soberano pelas
cortes portuguesas. A derrota lusitana frente aos exércitos hispânicos marcou o início do
34
Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, capítulo 4 O
Semeador e o Ladrilhador.
37
que se convencionou denominar de união ibérica, onde a coroa portuguesa passou a estar
sob a égide da dinastia dos Habsburgos.
35
Dessa maneira, a América portuguesa tornou-se parte integrante da conjuntura
atlântica mais ampliada e não mais regionalizada, e a capitania do Rio de Janeiro veria sua
importância nas estratégias coloniais metropolitanas crescerem de uma forma bastante
significativa não só para a coroa, como para os próprios interesses da capitania. Por isso,
Joaquim Veríssimo Serrão nos ensina justamente que nesse período da união ibérica
fundam-se povoados, abrem-se linhas de comércio, criam-se cargos
públicos e aumentam os interesses privados, cristianiza-se o gentio,
descobrem-se novas riquezas e defende-se a terra com heroísmo para que
ela permaneça fiel à coroa dos Filipes.
36
O domínio hispânico das regiões ultramarinas de imediato derrubou, pelos menos
até 1640, a linha imaginária traçada pelo tratado de Tordesilhas, assinado durante o
confronto expansionista das nações ibéricas em 1494, o qual delimitou as regiões
espanholas e lusitanas na América. Mas, deve ser mencionado que mesmo antes da união
das duas coroas ibéricas não havia um respeito à demarcação da bula do Papa Alexandre
VI, pois os homens ultramarinos não sabiam ao certo por onde cortava o traço estabelecido
pelo tratado, além do mais, a própria autonomia das atividades mercantis promoviam uma
alta circularidade nas áreas limites entre as duas Américas. Assim, a ampliação do
território possibilitou a região fluminense o acesso mais intenso à região do Prata.
Segundo Charles R. Boxer, o contato com a região do Prata estimulava o comércio
triangular entre Luanda, Rio de Janeiro e Buenos Aires.
37
Apesar do Rio de Janeiro não ter
tido a exclusividade deste comércio triangular, ele possibilitou o acesso aos metais
35
Para maiores detalhes sobre o período da União Ibérica Cf. Joaquim Veríssimo Serrão. O Tempo dos
Filipes no Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Edições Colibri, 1994, Parte III, Capítulo 1 Portugal e
a Monarquia Hispânica; Jacqueline Herman. No Reino do Desejado A Construção do Sebastianismo em
Portugal nos Séculos XVI-XVII. São Paulo: Companhia das Letras; Francisco B. Alvarez. Portugal nos
Tempos dos Filipes: Política, Cultura, Representações (1580-1668). Lisboa: Cosmos, 2000; Joaquim
Veríssimo Serrão. Do Brasil Filipino ao Brasil de 1640. São Paulo: Companhia da Editora Nacional, 1968.
36
Joaquim Veríssimo Serrão. Do Brasil Filipino ao Brasil de 1640. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1968, pp. 1-2.
37
Cf. Charles Ralph Boxer. Salvador de Sá e a Luta Pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Editora
Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1973. Também chegaram as mesmas conclusões Luis Felipe
de Alencastro. O Trato dos Viventes Formação do Brasil no Atlântico Sul, Séculos XVI e XVII. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000; e Antonio Carlos Jucá Sampaio, Na Curva do Tempo. Na Encruzilhada da
História, Op. Cit. , passim.
38
hispânicos e o maior contato com a mão de obra africana, mesmo que não inibindo a
utilização do gentio, preponderante na região fluminense até pelo menos o final do século
XVII. Os casamentos entre Salvador Correia de Sá e Benavides e D. Catarina de Velasco e
Vitória de Sá e Luis de Céspedes Xerra, Governador do Paraguai, apenas oficializaram a
atuação mais intensificada do Rio de Janeiro na região espanhola.
38
A conseqüência direta dessa realidade associa-se ao aumento da concessão de terras
durante o período ibérico. Retornando ao Quadro I, podemos perceber que se nos primeiros
dez anos após a expulsão dos franceses foram concedidas por volta de 111 sesmarias,
durante o período filipino houve uma queda no número de concessões, mas que se manteve
uma média de 51 sesmarias foram distribuídas a cada dez anos. Ou seja, de uma forma
geral, durante a união ibérica, foram concedidas 308 sesmarias, suficientes para a
manutenção da estabilidade da ocupação de terras. No entanto, apenas aqueles que tinham
realmente recursos para cultivar as terras recebiam as sesmarias. Tais ordens eram seguidas
à risca pela coroa portuguesa no momento da concessão de terras.
Em um segundo momento, a intensa distribuição de terras possibilitou o
crescimento do número de engenhos na capitania do Rio de Janeiro. Talvez um dos
primeiros engenhos tenha sido o de Nossa Senhora de Maria da Cunha filha de Crispim
da Cunha. Este engenho localizava-se em Taitimana da Pavuna, que mais tarde chamou-se
Engenho do Calundu, em Jacutinga.
39
Em seguida vieram outros engenhos, que se
espalharam por toda a orla da baía da Guanabara, como pode ser observado no Quadro II :
38
Antonio Carlos Jucá Sampaio, Op. Cit. , pp. 55-56; Charles R. Boxer, Op. Cit. , Capítulo 1 O Casamento
com a Espanhola.
39
Ondemar Dias, “Das Aldeias aos Engenhos A Ocupação Humana no Recôncavo da Guanabara da Pré-
História ao Século XVII” , Op. Cit. , p. 35.
39
Quadro II Comparação do Número de Engenhos da América Portuguesa e da
Capitania do Rio de Janeiro
40
Ano Número de Engenhos
(América Portuguesa)
Número de Engenhos
(Capitania do Rio de Janeiro)
1570
60
1
***
1583-85 115
2
3
6
1612 192
3
14
7
1629 346
4
60
8
1639 346
5
110
9
Fonte : (1) Pero Magalhães Gandavo. Tratado da Terra do Brasil. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, s. d.; (2) Fernão
Cardim. Tratado da Terra e da Gente do Brasil. São Paulo: Editora Nacional,1978; (3) Diogo de Campos Moreno.
Livro Que Dá Razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fac-Similar, 1968; (4) Pedro Cadena de Vilhasanti.
Descripción de la Provincia del Brasil IN: Fréderic Mauro. Portugal, Brasil e o Atlântico. Lisboa: Estampa, 1989; (5)
Dados estimados a partir dos relatos de Pedro Cadena; (6) Fernão Cardim. Tratado da Terra e da Gente do Brasil, Op.
Cit.; (7) Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 10
Volumes, Volume 8, 1949; (8) Pedro Cadena de Vilhasanti. Descripción de la Provincia del Brasil, Op.Cit.t; (9) Frédéric
Mauro. Portugal, O Brasil e o Atlântico (1570-1660). Lisboa: Estampa, 1989, Volume 1, p. 255-257. Chegou aos
mesmos números, Stuart Schwartz. Segredos Internos, Op. Cit.
Se antes no início da união ibérica em toda a capitania do Rio de Janeiro existiam
por volta de 3 engenhos, em seus momentos derradeiros, em 1639, o número de engenhos
aumentara em 36 vezes, chegando a 110 fábricas de fazer açúcar em toda a Guanabara.
Segundo Frédéric Mauro, de todas as regiões américo-lusitanas a capitania do Rio de
Janeiro foi quem melhor aproveitou o surto do aumento do número de engenhos no
Seiscentos.
41
O crescimento da economia açucareira no século XVII elevou a capitania do
Rio de Janeiro à terceira colocação na produção açucareira no ultramar lusitano. Esta
mesma hipótese foi apontada por Ciro Flamarion Cardoso e Paulo Henrique quando
afirmavam sobre as fases da produção açucareira na capitania :
una etapa de estabilización de la producción del producto, entre 1600
y 1625; anos de expansión de 1625 a 1660 ó 1670; y una grande depresión
40
Frédéric Mauro em sua monumental obra Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670) estabeleceu uma
estimativa própria do número de engenhos estabelecidos em toda América portuguesa entre 1570 e 1710 a
partir das fontes por ele consultadas. Tal estimativa compreende 60 engenhos em 1570, 130 em 1585, 230 em
1610, 346 em 1629, 300 em 1645 e 528 em 1710. Em termos regionais, o que o autor define como região sul
que compreende as capitanias de São Vicente, Rio de Janeiro e Espírito Santo - dentro desta estimativa
teríamos a seguinte conjuntura: 5 engenhos em 1570, 13 em 1583, 40 em 1610, 70 em 1629 e 136 em 1710.
Apesar de sabermos que a estimativa tem como base uma média ponderada das informações relatadas nas
fontes primárias, optamos por voltarmos às referências e tentar um traçado diferente, até por que, as hipóteses
que podem ser aviltadas diante dos dados não se altera seja que tabela for. Frédéric Mauro. Portugal, o Brasil
e o Atlântico (1570-1670). Lisboa: Estampa, 2 Volumes, Volume I, 1997, p. 257.
41
Ibidem, p. 258.
40
después de 1670, cuando en realidad no sólo los precios del azúcar, sino en
general los precios de los productos coloniales do Brasil, cayeron en forma
acentuada.
42
O aumento da presença humana, aliada a conquista da terra e ao crescimento da
produção foi a grande responsável pela viragem econômica e dinamização da capitania.
Normalmente constituídos em torno de uma capela prova mais do que importante de que
junto com a espada vinha a cruz os núcleos populacionais expandiram-se pela região,
seja em campos de cultivo ou áreas de criação. Alargando-se pelo território fluminense,
esses novos grupos populacionais veriam seus esforços para o domínio da região serem
recompensados no momento em que a coroa lusitana amplia o número de freguesias da
capitania, tudo porque a freguesia de São Sebastião e a freguesia da Candelária passavam
a estar muito distantes daqueles que viviam nas região mais afastadas. A necessidade de
ampliar o amparo e consolar as almas de todo o território fluminense, obrigaram a coroa
portuguesa a criar mais quatro freguesias em 1644, sendo confirmadas em 1647, eram elas:
a freguesia de Campo de Irajá, a freguesia de São Gonçalo, a freguesia de Santo Antonio
de Casarabu e a freguesia de Trairapenga.
43
Todos esses fatores conjuntamente, além do contato com a região do Prata e o
aumento da produção açucareira, transformaria radicalmente a paisagem natural da
capitania do Rio de Janeiro. O porto adquiria importância e o crescimento urbano pautava
a nova fisionomia da região,
44
confirmando a caracterização da mesma como um centro
costeiro de irradiação, como nos ensinou Eulália Maria Lahmeyer Lobo: os portos eram o
principal ponto de referência do comerciante metropolitano, na medida em que permitiam
a centralização da produção e garantiam o direito de exclusividade comercial.
45
Os portos foram os grandes responsáveis pela intensa vigilância e fiscalização
do comércio que tomou conta das áreas coloniais com a união ibérica. Um outro
termômetro para medir o aumento da importância da capitania do Rio de Janeiro tanto na
região sul como nos trópicos foi a criação da repartição sul. Uma primeira tentativa fora
42
Ciro Flamarion Santana Cardoso & Paulo Henrique. Río de Janeiro. Madrid: Mapfre, 1992, p. 80.
43
“Alvará e mercê que Sua Majestade faz como governador e perpétuo administrador que é do mestrado
Cavalaria e Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo para que nesta capitania do Rio de Janeiro se erijo quatro
vigairarias do novo”. Arquivo Nacional. Códice 61, Volume I, fls. 216v-219v.
44
Ciro Flamarion S. Cardoso & Paulo Henrique. Rio de Janeiro, Op. Cit. , Capítulo III Rio de Janeiro en el
Siglo XVII: Puerto de Guerra, Puerto del Azúcar.
45
Eulália Maria Lahmeyer Lobo, Op. Cit. , Volume 1, p. 19.
41
feita em 1572, na qual a coroa portuguesa havia dividido o Estado do Brasil em dois, o
primeiro centralizado ao norte, tendo a Bahia como sede, e o segundo ao sul, sediado no
Rio de Janeiro. Fracassada, essa divisão somente perdurou até 1557. A segunda tentativa
deu-se no período luso-castelhano, em 1608, onde as ordenações Filipinas criara um
governo independente do Estado do Brasil, a repartição sul. A repartição sul compreendia a
capitania do Espírito Santo, a vila de São Paulo e a capitania do Rio de Janeiro, esta última,
sede da repartição, que ganhara também os cargos de capitão-geral das capitanias do sul e
administrador superintendente das minas, comumente feitas mercês ao governador da
capitania do Rio de Janeiro.
46
Apesar dessa divisão somente ter perdurado até 1612, ela demonstra o crescimento
do papel da região fluminense aos olhos da coroa lusitana, à ponto de conquistar
autonomia administrativa frente ao governo do Estado do Brasil, na Bahia. Diga-se de
passagem, poder este anteriormente diminuído, pelo menos no que tange à questão
judiciária, principalmente depois da criação do Tribunal da Relação, em 1609. Mas deve
ser mencionado que, mesmo retornando a supremacia do Estado do Brasil, a Capitania do
Rio de Janeiro durante todo o século XVII será contemplada por uma autonomia
inquestionável, vislumbrada seja pela contato mais intenso da capitania com a coroa do que
com o Governo-geral, ou pelas constantes disputas entre os governadores e a câmara de
vereadores da capitania.
Ainda em termos administrativos, a administração portuguesa sob a égide
espanhola tentou solucionar um dos maiores problemas de ser viver nos trópicos: a
distância dos raios de irradiação solar. A resolução do problema da ausência da
luminosidade do monarca fora tentada através da criação do Conselho da Índia. Fundado
em Portugal por Filipe III, em 1604, este conselho fora moldado a partir do Consejo de
Indias espanhol e tinha por função a fiscalização e o controle dos negócios na África e nas
terras genericamente denominadas de Brasil. Durando dez anos, o Conselho da Índia
consolidou o enraizamento das instituições política-administrativas nas regiões americanas.
Maria de Fátima Gouvêa ao olhar mais atentamente o término do domínio dos
Habsburgo em Portugal tem a sensação nítida de um crescimento visível das instituições
administrativas, seja de forma mais enraizada em todas as partes do Império ultramarino
português, seja por sua maior complexificação. Dessa maneira, a criação da Companhia
46
Graça Salgado, Op. Cit. , pp. 54-55.
42
das Ìndias Ocidentais, em 1587, configurou-se o primeiro passo rumo à construção de uma
governabilidade, seguida, posteriormente, pela criação do Tribunal da Relação da Bahia
(1587, 1609 e 1626); das visitações do Tribunal do Santo Ofício (1591 e 1618); da criação
das dioseses do Japão (1588), de Angola e Congo (1596), e de Moçambique; da
promulgação das Ordenações Filipinas (1603); da criação do Conselho das Índias e das
conquistas ultramarinas (1604); das tentativas e criação da repartição; da permissividade
das críticas ao governador através de encaminhamento de queixas aos ouvidores (1622); da
criação da Companhia do Comércio das Índias Orientais e da Casa de Contratação da
Bahia (1628); e da divisão do Conselho de Portugal em três secretarias (1631).
47
Era
evidentemente um novo cenário administrativo que forçou Portugal a se reajustar, no que
tange ao âmbito político, quando tomou novamente para si as rédeas do poder político de
sua coroa.
A questão da economia de alimentos para abastecimento e consumo interno
também pode ser considerada como um parâmetro sinalizador do destaque fluminense.
Para Francisco Carlos Teixeira da Silva, a cultura de abastecimento era pautada
obrigatoriamente pela necessidade e oportunidade, com que leva-se a concluir que não
houve um planejamento específico para o desenvolvimento da produção de alimentos para
consumo, caso absolutamente distinto do que ocorrera com a cultura açucareira,
minuciosamente planejada e constituída em detrimento da lucratividade das rendas régias.
Sendo assim, foram esses condicionantes que fizeram com que a produção de
abastecimento, no Quinhentos e ainda no Seiscentos, estivesse intimamente relacionada às
condições produtivas que se constituíam antes da chegada dos europeus à América, ou
seja, de acordo com os padrões culturais indígenas.
48
De maneira que a intervenção da
coroa na política da produção interna para abastecimento somente ocorrerá no século
XVIII.
No entanto há de se destacar que a região encontrou diversas dificuldades para o
estabelecimento da produção destes gêneros, a começar pelas condições do solo
fluminense. Alberto Ribeiro Lamego em sua monumental obra sobre a Guanabara afirmou
que tanto do lado ocidental quanto do oriental as terras da baía não auxiliavam em nada no
47
Maria de Fátima Gouvêa. “Poder Político e Administração na Formação do Complexo Atlântico Português
(1645-1808)" IN: João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho & Maria de Fátima Gouvêa (Orgs.) . O
Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa (Século XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, pp. 289-290.
48
Francisco Carlos Teixeira da Silva, Op. Cit. , pp. 122-123.
43
desenvolvimento produtivo de qualquer gênero nos primeiros momentos da conquista do
Rio de Janeiro, seja pela baixa fertilidade, seja pela quantidade de regiões permeadas por
mangues, pântanos e morros.
49
Dominado o meio, os impecilhos não cessavam. Um
viajante holandês que foi feito prisioneiro na capitania no início do século XVII, Dierick
Ruiters, narrou um pitoresco problema enfrentado pelos plantadores de qualquer gênero.
Dizia ele:
(...) a terra é fértil, quer nos vales quer nas montanhas, e valorizada
por lindas planícies, em que tudo o que se semeia e planta dá em
abundância, mas como também há formigas (embora não tantas quanto em
Pernambuco e na Bahia) as plantas são continuamente por elas atacadas,
principalmente as de raízes doces.
50
Mas o que nos interessa por agora é constatar que ao contrário da Bahia, que além
de possuir uma baixíssima produção de alimentos foi assolada por inumeráveis crises de
subsistência, a capitania do Rio de Janeiro obtinha esses alimentos em uma significativa
quantidade. Dentre estes produtos, de longe a mandioca constitui-se como o mais
produzido em toda a capitania, sendo seguido pelo milho, arroz e feijão.
51
No Seiscentos,
entretanto, a capitania do Rio de Janeiro também se especializara em outros alimentos,
como o milho, o algodão e variadas árvores frutíferas. Parece que este último gênero
rendeu um certo prestígio fluminense frente aos visitantes estrangeiros, pois Antonio
Carlos Jucá Sampaio nos conta que quando da passagem dos irmãos Bartolomé Garcia e
Gonçalo de Nodal, no início do século XVII, pela região fluminense chamaram os gêneros
frutíferos como frutos da terra, denotando uma certa especificidade da produção frutífera
nas regiões tropicais lusitanas.
52
Vendo por esse prisma, toda essa abundância de alimentos desenvolveu na capitania
a função de abastecer não só a região fluminense como também as áreas mais escassas,
como, por exemplo, a Bahia, mesmo tendo uma produção de abastecimento menor do que
49
Alberto Ribeiro Lamego. O Homem e a Guanabara. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1964, Parte I - A Terra.
50
Dierick Ruiters. A Tocha da Navegação, 1623 publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Volume 269, 1975, p. 63.Agradeço ao
Prof. Dr. João Fragoso pela valorosa indicação deste viajante holandês.
51
Francisco Carlos Teixeira da Silva, Op. Cit., p. 124. Dierick Ruiters também descreve a relação do Rio de
Janeiro e a produção da mandioca e afirmava que no Rio de Janeiro e até São Paulo, ao sul, dá muita
mandioca, pelo que muitos navios vêm ao Rio buscá-la, para comprar negros em Angola. Ibidem, p. 64.
52
Antonio Carlos Jucá Sampaio, Op. Cit. , p. 57.
44
a existente na vila de São Paulo.
53
Até porque não se pode deixar escamotear a
possibilidade de que muitos desses gêneros transferidos do Rio de Janeiro para a Bahia ou
mesmo Pernambuco podiam vir das regiões paulistas, como afirmou John Manuel
Monteiro.
54
Além disso, a farinha de mandioca e o tabaco eram utilizados como moeda de
troca no tráfico de escravos, pois a cachaça só ganhou este atributo na segunda metade do
século XVII.
55
Enfim, o conjunto de mudanças trazidas pela união ibérica fizeram com que
ao final da primeira metade dos seiscentos, portanto, a capitania
fluminense, já despertava um papel de considerável importância na América
Portuguesa. Regionalmente adquiria a primazia política e, sobretudo,
econômica. Em termos mais amplos, acresceu sua importância estratégica
para a coroa lusitana. Por um lado, desempenhava um papel importante
para o Brasil e as colônias espanholas, através do rio da Prata. Por outro
lado, a sua atuação na reconquista de Angola foi grande significado para a
consolidação do controle de Bragança sobre as colônias em parte ainda
ocupadas pelos holandeses, além de permitirem a retomada das relações
com Buenos Aires, interrompidas pelas restauração. Por fim, o Rio de
Janeiro já se destacava como terceiro pólo açucareiro do Brasil.
56
Em primeiro lugar, a união ibérica não ocorreu somente nas áreas metropolitanas,
mas também se processou nas regiões americanas; e em segundo lugar, isso significa dizer
que, ao contrário do que apontava durante muito tempo a historiografia sobre o período da
união ibérica, a presença hispânica em solo lusitano fora extremamente benéfica para os
américo-lusitanos. Fôra somente com os espanhóis que a coroa lusitana abandonou
praticamente uma feitorização da América portuguesa por um efetiva colonização. A
exploração para o interior da região, uma divisão administrativa melhor organizada, um
maior enraizamento no território ibero-americano e uma fiscalização mais presente da
economia deram o tom da região fluminense após a domínio da coroa espanhola em
53
Sobre a questão do abastecimento e produção de alimentos deve ser destacado que Ciro Flamarion Cardoso
e Paulo Henrique possuem uma argumento oposto. Para esses autores, a produção de alimentos era precária,
ocasionando consequentemente um déficit na alimentação fluminense. A farinha de mandioca e o peixe eram
os produtos mais consumidos, havendo uma carência enorme de carnes. Cf. Ciro Flamarion Santana Cardoso
& Paulo Henrique, Op. Cit. , Capítulo III Río de Janeiro en el Siglo XVII: Puerto de Guerra, Puerto del
Azúcar, sobretudo o tópico “El Ciudad en el Siglo XVII”.
54
Cf. John Manuel Monteiro. Os Negros da Terra. São Paulo: Companhia das Letras,1994, especialmente o
capítulo 3 - O Celeiro do Brasil.
55
Cf. Luis Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes, Op. Cit. ; Selma Pantoja e José Flávio Sombra
Saraiva (Orgs.) Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999; Stuart
Schwartz. Segredos Internos Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
56
Antonio Carlos Jucá Sampaio, Op. Cit. , pp. 59-60.
45
Lisboa. Sem dúvida, essa presença hispânica e o conseqüente ladrinhamento da América
foram os grandes responsáveis pelo sucesso da capitania do Rio de Janeiro no império
ultramarino português, já que foi ela quem mais se beneficiou e mais obteve contato com
as áreas predominantemente hispânicas antes e depois de 1640.
O Reajuste do Pacto Colonial
O término do domínio dos Habsburgo nas áreas ultramarinas portuguesas, em
1640, substituiu o ladrilhamento pelo clima de expectativa na capitania do Rio de Janeiro,
talvez devido à titulação de cidade muy leal concedida a cidade do Rio de Janeiro pelos
espanhóis decorrente dos valorosos serviços prestados à coroa castelhana, como também
pelas relações mais do que estreitas entre o governador da capitania do Rio de Janeiro,
Salvador Correia de Sá e Benavides, e a Espanha, já que sua esposa era castelhana. Por
ironia do destino, o que antes serviu para aumentar o prestígio da região fluminense ahora
transformava-se em um transtorno para a manutenção desse privilégio.
O resultado dessa situação instaurada na capitania do Rio de Janeiro foi a
aclamação ao mais recente monarca lusitano, D. João IV. Conforme descrito na Relação da
aclamação que se fez na capitania do Rio de Janeiro do Estado do Brasil, & nas mais do
sul, ao senhor rei Dom João o IV por verdadeiro rei, & senhor de seu reino de Portugal,
com a felicíssima restituição que dele se fez a Sua Majestade que Deus Guarde, com gritos
de salve D. João IV, rei de Portugal! , Salvador Correia de Sá e Benavides ordenava dois
dias de festa e cerimônias para a demonstração de fidelidade à restaurada dinastia
bragantina e obrigava, ao mesmo tempo, os homens bons da capitania a exercerem a
mesma atitude ao disponibilizarem recursos para custear as festas em homenagem ao novo
monarca português.
57
A cerimônia ultramarina de um lado demarcaria a fidelidade da
região fluminense à nova dinastia elevada com a restauração e de como por outro, afastava
qualquer desconfiança de resquícios hispânicos na administração fluminense de Salvador
Correia de Sá e Benavides.
57
Relação da aclamação que se fez na capitania do Rio de Janeiro do Estado do Brasil, & nas mais do sul,
ao senhor rei Dom João o IV por verdadeiro rei, & senhor de seu reino de Portugal, com a felicíssima
restituição que dele se fez a Sua Majestade que Deus Guarde. Lisboa: Oficina de Jorge Rodrigues, 1641,
Biblioteca Nacional, Códice 26-3-25-2, p. 160.
46
Mas não era só um novo monarca que irradiaria luminosidade para os seus súditos
que marcaria o término do segundo quartel do século XVII, uma nova etapa seria fundada
no que tange ao modo de governo das possessões ultramarinas. Essa mudança de estilo
denominaremos de reajuste do pacto colonial, já que D. João IV passou a ter como
principal objetivo “reorganizar a casa” depois de longos sessenta anos de controle dos
Habsburgo. Centralizar o poder novamente em suas mãos, impor sua autoridade perante os
súditos, através de novas leis, festas e aclamações.
58
Por isso, a ordem do dia era mostrar
que novamente quem governava era a coroa portuguesa e não mais a Espanha.
Dessa maneira, o controle efetivo do trono se concretizaria com a consolidação da
independência frente aos castelhanos. Isso pressupunha uma reestruturação econômica,
principalmente porque grande parte da riqueza américo-lusitana enriquecera os cofres dos
Habsburgo, uma defesa mais eficaz do território ultramarino, impedindo que novas
presenças estrangeiras aportassem em solo tropical, sobretudo após a expulsão dos
flamengos, em 1654, e evidentemente uma diminuição das diferenças regionais que foram
exacerbadas durante a união ibérica, onde o capitania do Rio de Janeiro e a capital da
América lusitana, a Bahia, estavam em indiscutível vantagem, principalmente se levarmos
em consideração que ambas possuíam contatos mais constantes com a Ibéria, propiciado-
lhes, consequentemente, privilégios econômicos, políticos e mercês.
59
O primeiro resultado direto dessa política geral da coroa bragantina fora inspirado
no extinto Conselho das Índias, órgão de extrema importância para a fiscalização do
mundo ultramarino durante a presença hispânica na gerência do governo lusitano. Criado
em 1642, o Conselho Ultramarino somente teve suas atividades inauguradas em 14 de
Julho de 1643. Segundo Marcelo Caetano, o Conselho Ultramarino tinha por função
fiscalizar, examinar e vigiar
todas as matérias e negócios, de qualquer qualidade que forem
tocantes aos ditos Estados da Índia, Brasil e Guiné, Ilhas de São Tomé e
Cabo Verde, e de todas as partes ultramarinas e lugares da África; e por ele
há de correr a administração da Fazenda dos ditos Estados, e a que deles
vier ao reino se administrará pelo Conselho da Fazenda, que correrá
também com os empregos e retorno das carregações.
60
58
Sobre a reafirmação da autoridade régia no ultramar após a restauração através da festas e aclamações
conferir o belíssimo trabalho de Rodrigo Bentes Monteiro, Op. Cit. , Capítulo 7 Entre Festas e Motins.
59
Cf. Sérgio Buarque de Holanda (Dir.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Bertrand
Brasil, Tomo I, Volume II, 1993, Capítulo I Política e Administração de 1640-1763.
60
Marcelo Caetano. O Conselho Ultramarino Esboço de Sua História. Lisboa: Agência Geral do Ultramar,
1967, p.43.
47
Estruturalmente, era composto por um presidente, dois conselheiros, dois
conselheiros de capa e espada e um conselheiro letrado
61
que usavam todas as suas quintas
e sextas feiras para discutirem os problemas relativos às regiões brasílicas.
62
Sendo assim,
não causa espanto que praticamente todos os assuntos coloniais passassem quase que
obrigatoriamente pela supervisão do Conselho Ultramarino, configurando-se como os
olhos e ouvidos do rei acima dos Capitães-Gerais e dos Vice-Reis em todo império
ultramarino português. Também é Marcelo Caetano que nos demonstrou os tipos de
consultas encaminhadas ao conselho e os integrantes do mesmo:
o Conselho era ouvido sobre os negócios que tinham de ser objeto de
resolução régia. Umas vezes era El-rei que consultava, ou interpunha-se
parecer oficiosamente nos negócios vindo do ultramar : havia uma consulta
do serviço real. Outra vezes o processo formava-se no Conselho, por
iniciativa dos interessados, para subir à apreciação do monarca, originando
uma consulta das partes. Numerosíssimas foram as habilitações dos
soldados e capitães do Ultramar, regressados ao reino e que aqui
pretendiam fazer valer os seus serviços para obterem algum benefício: as
consultas de mercês tinham um processo especial (...)
63
Um caso exemplar de súdito português que fora habilitado para fazer parte do
Conselho Ultramarino é mais uma vez um dos personagens centrais deste trabalho,
Salvador Correia de Sá e Benavides, sendo nomeado como conselheiro em 1644, pouco
antes de encabeçar a reconquista de Angola.
Mas ao mesmo tempo em que veio para arrumar a casa, o Conselho Ultramarino
também trouxe alguns problemas, como a interposição de funções dos órgãos
administrativos coloniais. Apesar de no ato de sua criação ter ficado claro que estavam
excluídos a intromissão nos assuntos religiosos e as rendas régias, sob a égide da Mesa de
Consciência e Ordem e do Conselho da Fazenda respectivamente, sobretudo no que tange à
Fazenda da coroa a presença do Conselho só aumentava com o decorrer dos anos. O passo
inicial para o abarcamento de amplas funções coloniais iniciara-se com a subordinação do
Desembargo do Paço, do Conselho da Fazenda, dos Governadores Gerais, dos
61
Ibidem, p. 42 ; Graça Salgado (Coord.) Fiscais e Meirinhos A Administração no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira,1996, pp. 42-43.
62
Ibidem, p. 48.
63
Ibidem, pp. 48-49.
48
Governadores das capitanias e das câmaras municipais ao domínio do Conselho
Ultramarino, seguido da autorização para fixação de rendimentos aos ministros, a
permissão para o recolhimento de propina, a equiparação dos salários de outros cargos
régios, a autorização de membros do Conselho ocuparem cargos ultramarinos, a redução
das jurisdições dos funcionários régios (governadores, por exemplo), a proibição da
promulgação de leis e o controle das fazendas e contratos ultramarinos, ou seja, o domínio
pleno e absoluto das rendas e receitas régias.
64
Tudo isso fez com que o Conselho Ultramarino se tornasse, como nos ensina Maria
de Fátima Gouvêa, o grande responsável por uniformizar a administração do ultramar,
como também dar maior racionalização e padronização do governo de seus territórios
ultramarinos.
65
Será ele que articulará a reconquista de Angola, apaziguará e dará o tom de
importância aos conflitos coloniais eclodidos durante o século XVII, como também será o
grande termômetro do crescimento do papel político e sobretudo econômico da América
para a coroa portuguesa, não sendo à toa que seu primeiro presidente, Jorge de
Mascarenhas, o Marquês de Montalvão, quando fora nomeado em 1642, estava retornando
após a experiência do Vice-Reinado do Estado do Brasil, de onde havia sido deposto e
acusado de traição por grupos locais.
Talvez seja pela conjuntura apreensiva após a restauração bragantina e da extrema
dificuldade de imposição do poder régio lusitano no ultramar observadas pela eclosão de
revoltas nas duas principais capitanias luso-americanas na Bahia contra o Marquês de
Montalvão e no Rio de Janeiro contra Luis Barbalho Bezerra e a continuidade da
presença flamenga na região pernambucana, mesmo com as constantes guerras que
mobilizavam toda a região brasílica, que a Coroa portuguesa resolvera elevar o Brasil à
condição de Principado. Questão pouco cotejada em nossa historiografia, foi repensada no
recente trabalho de Maria de Fátima Gouvêa, no qual considera o acontecimento uma
notável inovação na forma de ser da gestão administrativa
ultramarina. A elevação do Brasil à condição de Principado, representou,
àquela altura, algo de imensa significação política, especialmente quando se
considera o contexto da Restauração portuguesa. A condição de Principado
evocava valores e noções de governabilidade e vassalagem que alcançavam
64
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. O Equilíbrio Distante: O Leviatã dos 7 Mares e as Agruras da
Fazenda Real na Província Fluminense, Séculos XVII e XVIII. Mimeo, 2002, no prelo.
65
Maria de Fátima Gouvêa, “Poder Político e Administração na Formação do Complexo Atlântico Português
(1645-1808)". João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. O Antigo Regime
nos Trópicos, Op. Cit., p. 292.
49
o Brasil a uma posição deveras diferenciada no contexto imperial de então.
Em grande medida, buscava-se aproximar o Brasil, de forma mais íntima de
seu soberano. Um rei ausente fisicamente, mas que procurava, por esse
expediente, reafirmar a sua presença e os elos que os unia a seus vassalos
ultramarinos, e mais especificamente aqueles do complexo Atlântico Sul.
66
O que se pode concluir de toda essa nova situação implementada pela coroa
lusitana parte do seguinte pressuposto: para o homem que vivia o dia a dia no outro lado do
Atlântico pouco importava que monarquia possuísse a condição de metrópole, já que o
papel das regiões ultramarinas não seria alterado. Tal situação fora comprovada ao longo
da união ibérica, onde a condição colonial brasílica não havia modificado mesmo com a
subida dos castelhanos ao trono português. O receio do questionamento da autoridade lusa
advindo, evidentemente, das revoltas que começam a eclodir em solo ultramarino mesmo
que estas não questionassem a supremacia régia, a nacionalidade desta monarquia poderia
ser aviltada a qualquer momento e, no que tange a capitania do Rio de Janeiro, as
intensas ligações do governador Salvador Correia de Sá e Benavides, administrador de
uma das regiões mais importantes para as pretensões lusitanas, fizeram com que a elevação
do Brasil a condição de Principado se tornasse uma saída estratégica para a amenização
dos ânimos ultramarinos. Que o diga o Marquês de Montalvão, D. Jorge de Mascarenhas,
convocado para as cortes de 1645, segundo Gouvêa, ele chegava a Portugal
alertando sobre os perigos que poderiam resultar do
descontentamento gerado pelo “rumor” do “povo”, afirmando que as
populações estavam tão insatisfeitas com a nova ordem portuguesa que já
mesmo questionavam se não seria melhor voltar à antiga ordem
castelhana.
67
Motivos não faltavam para a insatisfação dos súditos brasílicos ultramarinos
que, afastados do rei, estavam à mercê das condições, intempéries e obrigações de viver
em uma área colonial. Mas, mal sabiam eles que a realidade na qual viviam seria mais uma
vez solapada após a criação de um outro órgão de caráter restritivo e fiscalizador pela tão
amada coroa portuguesa. Foi quando em 8 de Março de 1649, colocou-se em prática aquele
que será um dos instrumentos administrativos lusitanos mais questionados pelos homens
bons e pela nobreza da terra ultramarina: a Companhia Geral do Comércio do Brasil.
66
Ibidem, p. 294.
67
Ibidem, p. 295.
50
Financiado inicialmente por recursos privados sendo somente transferido para a
égide estatal durante o reinado de D. Afonso VI, em 1662, a Companhia Geral do
Comércio do Brasil determinava que
para esta Companhia se poder sustentar, e ter algum lucro, em razão
do grande dispêndio que há de fazer com as armadas e gente do mar e
guerra e as ditas não haverem de ir e vir, com pouca carga, em razão de
poderem melhor pelejar nas ocasiões que se oferecerem lhe concede a Vossa
Majestade o estanque para o Brasil de quatro gêneros de mantimentos, a
saber, vinhos, farinhas, azeites e bacalhau (...)
68
Assim, como se pode perceber o principal objetivo era evitar saques, piratarias,
e contrabando, como da mesma maneira concedia privilégios comerciais de produtos como
a farinha, o óleo, o bacalhau e o vinho. Como se não bastasse, a Companhia também
determinava o preço de cada um destes gêneros, monopolizando, com isso, não só o
comércio como a lucratividade da atividade mercantil :
(...) pagando no dito Estado do Brasil, a fazenda V. M. as imposições
dos vinhos que até agora se pagaram, e que nenhuma pessoa poderá
mandar ou levar ao dito Estado do Brasil, nem a seus portos, mas que a dita
companhia, vendendo-se por estanque a 40$000 réis. cada pipa de vinho
atestada, cada arroba de farinha de 1.600 réis. Cada barril de azeite de 6
almudes por 16$000 réis e cada arroba de bacalhau por 1$600 réis, preços
todos mais acomodados, do que hoje estão valendo; (...)
69
Além disso, o mesmo órgão restringia a atividade extrativista do pau-brasil, em
todos os seus níveis, do corte à comercialização, à Coroa portuguesa.
70
Quanto ao
transporte dos gêneros exclusivos o capítulo 20 dizia que
(...) pelo mesmo modo, não poderá sair navio, caravela, ou barco
deste conselho para o Estado do Brasil, senão em companhia da dita
armada, e sendo necessário irem alguns navios fora do corpo dela para
aviso ou socorro daquele Estado, querendo o fazer a Companhia; pedirá
licença a Vossa Majestade; e para que venha a notícia de todos, se porão
nesta cidade e portos marítimos do reino editais do tempo em que a armada
68
Capítulo 22 da Instituição da Companhia Geral do Comércio IN: Arquivo Histórico Ultramarino-Instituto
de Investigação Científica Tropical/Lisboa, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Conselho
Ultramarino/Brasil Catálogo Castro Almeida,. Capitania do Rio de Janeiro (1616-1757). Cd-Rom Número
01, Documento Número 713.
69
Ibidem, Documento Número 713.
70
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII, Op. Cit. , p, 57.
51
há de sair, dois meses para estarem todos aparelhados e prestes neste porto,
para a irem com ela e o que o contrário fizer terá o navio perdido para
Vossa Majestade; (...)
71
Mas nem todos tinham o direito de se enveredar pelas atividades comerciais
controladas pela Companhia Geral do Comércio. Dessa maneira, o capítulo 18 da
instituição apontava aqueles que seriam e aqueles que não seriam responsáveis pela
exclusividade da mercância:
que o governo do Estado do Brasil nem os mais capitães mores e
ministros dos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro, e mais portos do dito
Estado não terão jurisdição alguma sobre a gente do mar e guerras das
ditas o mandar assim no mar como na terra, porque esta somente servidos
generais, e cabos da esquadras, nem se intrometerão no tempo em que as
armadas houver de saber, porque a disposição disso, tocará aos ditos
generais.
72
A atuação da Companhia do Comércio auxiliou na neutralização do comércio
flamengo em Pernambuco, como também possibilitou angariar investimentos para a luta
contra os holandeses no nordeste açucareiro.
73
Mas de maneira alguma resolveu o
problema de abastecimento desses gêneros alimentícios na capitania do Rio de Janeiro,
porque sua comercialização estava atrelada intimamente a distribuição de recompensas
para os responsáveis pela companhia, na qual muitas vezes os moradores da cidade não
estavam dispostos a pagar, como podemos perceber pela resposta dos oficiais da câmara
fluminense ao Conselho Ultramarino, em 1657, às vésperas da Revolta da Cachaça :
(...) sobre a recompensa que pediam os ministros da Companhia
Geral pelos quatro gêneros que haviam de largar, o qual nos não chegou
até agora, mas que duas notícias que tivemos da resposta que a camarada
da Bahia fizera a proposta que por parte das listas se oferecera com razões
equivalentes por onde se mostraria que a lixação [sic] que fazia a
71
Cópia do Capítulo 20 da Companhia Geral do Comércio IN: Arquivo Histórico Ultramarino-Instituto de
Investigação Científica Tropical/Lisboa, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Op. Cit., Cd-Rom
Número 01, Documento Número 719.
72
Cópia do Capítulo 18 da Companhia Geral do Comércio IN: Arquivo Histórico Ultramarino-Instituto de
Investigação Científica Tropical/Lisboa, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Op. Cit., Cd-Rom
Número 01, Documento Número 719.
73
Joaquim Veríssimo Serrão. O Tempo dos Filipes no Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa : Edições
Colibri, 1994, pp. 50-51.
52
companhia dos litorgenezes [sic] não redundaria em conveniência nem uma
dos muitos destes Estado que merecesse a dita recompensa (...)
74
Além disso, outra questão que tornava oneroso o abastecimento da cidade do Rio de
Janeiro era o próprio sistema de frotas imposto pela companhia. A obrigatoriedade dos
comboios saírem dos portos portugueses desencadeou não só o aumento do custo de vida
dos homens ultramarinos como também tornava esses produtos escassos nas praças
comerciais.
75
Resultado direto dessas restrições foi o aparecimento de constantes críticas
aos trabalhos da companhia, como da mesma forma a busca de formas alternativas de
burlar a exclusividade revestidas ao aparelho comercial lusitano.
Diante da necessidade de abastecimento desses gêneros e do alto custo exigido
pelos responsáveis pelo órgão metropolitano, muitos eram aqueles que tentavam se
enveredar por uma empreitada própria para comercializá-los em solo brasílico. Todavia, a
tentativa muitas vezes gerava em prejuízo, como ocorrera com Manuel Pires Carnoto e seu
navio, da invocação de Santo Antonio, em 1651. Na tentativa de trazer tais gêneros para a
capitania do Rio de Janeiro, fôra denunciado por João da Silva. Como estava sendo
notificado pela segunda vez, o que demonstrava que esta prática era mais do que recorrente
em mares atlânticos, perdeu o navio e todo o carregamento para a Fazenda real e seu
denunciante, João da Silva, que com sua atitude ganhara a terça parte do carregamento que
se encontrava no navio.
76
Manuel Pires Carnoto é um exemplo emblemático não só do controle imposto pela
companhia comercial como pelo descontentamento dos vassalos ultramarinos das
restrições mercantis decretadas a partir de 1649. Os problemas trazidos pelas restrições
impostas por este novo instrumento fiscalizador metropolitano agravou-se ainda mais com
os reveses de abastecimento de alimentos que a cidade do Rio de Janeiro passava a sofrer
após a restauração bragantina. Como foi mencionado anteriormente, a relativa
prosperidade da produção de gêneros alimentícios durante o período filipino fazia com que
74
Resposta dos Oficiais da Câmara do Rio de Janeiro sobre a Reclamação dos Ministros da Companhia Geral
(do comércio), em que Pediam uma Recompensa pela Desistência dos Quatro Gêneros que Tinham que
Largar IN: Arquivo Histórico Ultramarino- Instituto de Investigação Científica Tropical/Lisboa, Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro, Op. Cit., Cd-Rom Número 01, Documento Número 760.
75
Charles R. Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola, Op. Cit. , pp. 302-303.
76
Consulta do Conselho Ultramarino, relativa à apreensão de um navio pertencente a Manuel Pires Carnoto,
que sem licença da Companhia Geral do Comércio transportara carga para o Rio de Janeiro IN: Arquivo
Histórico Ultramarino- Instituto de Investigação Científica Tropical/Lisboa, Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro, Op. Cit., Cd-Rom Número 01, Documento Número 717.
53
muitas vezes a capitania fluminense abastecesse outras regiões américo-lusitanas, cenário
que começa a se inverter a partir dos constantes guerras para expulsão dos flamengos da
região pernambucana. Nesse caso específico, torna-se ilustrativo o assento elaborado pela
câmara do Rio de Janeiro, em 22 de Janeiro de 1646, no qual confirmava a situação caótica
em que se encontrava o abastecimento da capitania:
(...) no convento do Carmo dela estando o governador desta praça
Duarte Corrêa Vasqueanes em junta que fez sobre matéria do serviço de
Sua Majestade, e bem desta república com o sindicante o Doutor Francisco
Pinto da Veiga, o ouvidor geral o Doutor Damião de Aguiar, os oficiais
desta câmara, juizes e vereadores, o provedor da fazenda, capitães de
infantaria, fortalezas, e ordenanças, muitos senhores de engenho e
lavradores, entre outras cousas do dito real serviço que se propuseram foi
uma que esta cidade estava necessitando muito de mantimentos, por cuja
falta não estavam providas as fortalezas o que era de muito prejuízo ao
serviço de Sua Majestade e conservação dos soldados dela porque respeito
de lhe faltar o sustento fugiam e se ocultavam de maneira que podiam ficar
as ditas fortalezas incapazes de defesa (...) sendo a maior falta a de farinha
de guerra que é o principal mantimento (...)
77
A dificuldade da produção de alimentos punha em risco a segurança da capitania, já
que sem seu sustento que diga-se de passagem era praticamente o único rendimento
destinado à infantaria, pois a tropa constantemente tinha seus salários atrasados, isso
quando era feito muitos soldados desertavam, abandonando seus postos e deixando a
cidade do Rio de Janeiro à mercê dos possíveis ataques dos holandeses. Sendo assim, a
câmara instaurou uma comissão responsável para resolução da adversa situação.
Compostas por capitães e oficiais da câmara, como Aleixo Manoel, João Pimenta de
Carvalho, Cristóvão Vaz, João Gomes Sardinha, Francisco da Costa Barros e outros
homens ultramarinos que também estarão envolvidos na Revolta da Cachaça, em 1660 a
comissão resolveu que
(...) para remediar a necessidade presente se juntassem da vintena
quinhentos ou seiscentos mil réis. E estes se remetessem logo ao comando e
(...) a comprar farinha de guerra por haver notícia de que nos ditos portos
há muita, e que vindo se provejam a fortaleza que é o mais essencial, e havia
sustento para a infantaria e índios e negros e trabalhadores que servem nas
77
Assento sobre a necessidade de alimentos para o abastecimento da capitania e das frotas. Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. Legislativo Municipal/Senado da Câmara Vereança, 1635 1650. Códice 16-3-
20, fl. 198-199.
54
fortificações desta praça, e que para o futuro fossem obrigados todas as
pessoas que tivessem plantas de cana e não tivessem seis peças para cima,
não lavrassem cana e plantassem mandioca, e os senhores de engenho
plantassem também mandioca para sustento do seu engenho e gente dele, e
os lavradores de cana de seis peças para cima que também plantassem
mandioca para seus sustento, e que este assento se notificasse a todos com
pena de cinqüenta cruzados para a fortificação desta praça e trinta dias de
cadeia (...)
78
A intervenção da câmara na produção econômica dos lavradores e dos senhores de
engenho foi a única saída pensada naquele momento para solucionar o grave problema que
assolava a capitania. Impor a produção de mandioca sob pena de multa e prisão não só
abastecia a região, como, da mesma forma, evitava o abandono da tropa de seus postos.
Mas por outro lado, a situação acima demonstrada comprova que na segunda metade do
século XVII os produtores fluminenses, seja senhores de engenho ou lavradores, já haviam
optado pela produção da cana-de-açúcar e de seus derivados, entre eles, a aguardente. Isso
é importante para constatar que a posição privilegiada da capitania do Rio de Janeiro na
exportação açucareira, mesmo sendo este gênero tropical de segunda qualidade se
levarmos em consideração aqueles que eram produzidos na Bahia ou em Pernambuco. Mas
parece que os esforços implementados pela câmara não redundaram em sucesso. Isto
porque no relatório elaborado pelo ouvidor, João Velho de Azevedo, em 1655, era cobrado
que os oficiais da câmara pagassem o pedido de empréstimo a várias pessoas no intuito de
angariar fundos para fortificação e para a compra de farinha.
79
O projeto de centralização do domínio lusitano no ultramar, após a restauração,
ainda seria concretizado pela criação de novos cargos coloniais, como por exemplo o juiz
de fora. Maria Fernanda Baptista Bicalho assinala que a criação do cargo de juiz de fora
representava a necessidade sentida pela coroa de intervir nas funções administrativas e
financeiras (especificamente tributárias) das câmaras, a fim de controlar os descaminhos
e os possíveis prejuízos da Fazenda Real.
80
Apesar da capitania do Rio de Janeiro somente ter seu primeiro Juiz de Fora
em 1709, bastante distante da proposta do corte cronológico deste trabalho, a demonstração
da criação deste novo elemento fiscalizador colonial serve como instrumento comparativo
78
Ibidem, p. 199.
79
Eduardo Tourinho. Autos e Correições de Ouvidores do Rio de Janeiro, 1624-1699. Rio de Janeiro:
Oficina Gráfica do Jornal do Brasil, 1629, p. 44. Mais uma vez, agradeço ao Prof. Dr. João Fragoso por essa
indicação documental.
80
Maria Fernanda Baptista Bicalho. “As Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império”, Op. Cit. , p. 200.
55
das condições da vereança no Seiscentos. O juiz de fora foi um recurso acionado pela
coroa lusitana para tosar a grande autonomia que as câmaras de vereadores haviam
conquistado durante os séculos XVI e XVII. As diversas revoltas eclodidas durante o
século XVII, em todo solo brasílico, tornam-se uma lupa mais do que confiante para a
visualização dessa realidade, sobretudo se levarmos em consideração que eram muitas
vezes as câmaras que concretizavam, sustentavam e legitimavam o sucesso destes
movimentos.
81
Outra maneira para percebemos o enfraquecimento contínuo do papel das
câmaras ultramarinas na administração colonial, foi o anteriormente mencionado
alargamento dos tentáculos que abraçava o Conselho Ultramarino. Não foi somente o
Conselho da Fazenda, os Vice-Reis e os governadores de capitania que sofreram a
interferência desse órgão para a centralização da autoridade lusitana, as câmaras
municipais viram seu controle sobre impostos navegarem aos poucos para a égide do
Conselho Ultramarino, que fortaleceram de imediato a importância do Provedor/Juiz da
Alfândega na administração dos negócios e rendas do além mar. Cargo, originalmente
criado em 1548, tinha a função muito mais de fiscalizar do que aplicar os impostos, com
exceção dos dízimos tangentes à alfândega.
82
No entanto, a partir de 1640, o conselho
passou a ter as incumbências de: taxar, com a câmara, a lenha vendida nos engenhos;
cuidar, com o provedor-mor, da arrecadação e aplicação das rendas pertencentes à
Fazenda Real; administrar os donativos e impostos das folhas eclesiásticas e secular,
gente de guerra e outros, em sua jurisdição.
83
Isso significa dizer que tais atribuições
muitas vezes podiam fazer com que os interesses dos súditos ultramarinos prevalecessem
na figura do juiz da alfândega, mesmo que a câmara tivesse perdido as funções dessas
taxações.
81
Entre essas revoltas eclodidas após Restauração Bragantina podemos apontar : Em 1641, deposição do
Marques de Moltavão (Bahia); em 1644, a revolta anti-fiscal contra o Governador Luis Barbalho Bezerra
(Rio de Janeiro); em 1660, novamente no Rio de Janeiro, revolta contra o Governador Salvador Correia de Sá
e Benavides; em 1666, deposição do Governador Jerônimo Mendonça Furtado (Pernambuco); em 1684,
ataque do povo aos Jesuítas e ao Governador Francisco de Sá e Menezes (Maranhão); e em 1688, Revolta do
Terço Velho (Bahia). Todavia estas revoltas não se restringiram à América Portuguesa, espalhando-se por
todos os domínios ultramarinos portugueses : em 1646, deposição de Diogo Coutinho Mascarenhas (Macau);
em 1652, o afastamento do Vice-Rei da Índia o Conde de Óbidos; em 1652, deposição de Manuel
Mascarenhas Homem (Ceilão); e enfim, em 1667, Expulsão do Governador Tristão da Cunha (Angola). Cf.
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. “O Império em Apuros : Notas para Estudo das Alterações
Ultramarinas e das Práticas no Império Colonial Português, Séculos XVI-XVII” IN: Júnia Furtado. Diálogos
Oceânicos, Op. Cit. , passim.
82
Graça Salgado (Coord.) Fiscais e Meirinhos: a Administração do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteiro, 1986, pp. 158-160.
83
Ibidem, p. 287.
56
Enfim, como podemos observar, o mundo ultramarino sofrerá radicais
transformações depois da subida de D. João IV ao poder, mudanças mais imediatistas
como a criação do Conselho Ultramarino, ou implantadas mais a longo prazo, como o
estabelecimento do cargo de juiz de fora, mas que de uma maneira ou de outra, inauguram
uma nova forma de governar, uma nova forma de administrar, tratar e lidar com as áreas
ultramarinas. O original modo de governar será pautado, evidente e exclusivamente, em
uma reajuste do pacto colonial que fora estabelecido no início da colonização.
A empreitada da Expansão Marítima e Comercial, como apontou Fernando Novais,
teve como desdobramento imediato a colonização, pois
foi no curso da abertura dos novos mercados para o capitalismo
mercantil europeu que se descobriram as terras americanas, e a primeira
atividade aqui desenvolvida, importou no escambo, com os aborígenes, dos
produtos naturais; o povoamento decorreu inicialmente da necessidade de
garantir a posse em face da disputa pela partilha do novo continente;
complementar a produção do mercado europeu foi a forma de tornar
rentáveis esses novos domínios. Transitava-se assim como que
imperceptivelmente do comércio para a colonização, mas esse
desdobramento envolvia uma nova forma de atividade.
84
De imediato, mesmo que involuntário e inconscientemente, um pacto havia sido
estabelecido entre os envolvidos na exploração do novo mundo, ou seja, entre aqueles que
financiavam a concretização da conquista do ultramar e àqueles que se colocaram no bojo
da prática diária américo-lusitana. Esse pacto, quando exclusivamente de caráter
econômico, fazia com que os homens que foram contemplados por porções de terras nas
novas áreas de domínio lusitano voltassem quase obrigatoriamente a satisfazer as
necessidades do mundo metropolitano. E não deveria ser diferente em se tratando de um
sociedade pautada na política de mercês, privilégios e troca de favores, onde a retribuição
do favor prestado é condição sine qua non para a manutenção dos laços familiares,
afetivos e sociais.
85
84
Fernando A. Novais. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo :
Hucitec, 1995, p. 67.
85
Sobre a política do dom e contra-dom no mundo Ibérico, Cf. Nuno Gonçalo Monteiro. A Corte, As
Províncias e as Conquistas: Centros de Poder e Trajectórias Sociais no Portugal Restaurado (1668-1750) IN:
O Barroco e o Mundo Ibero-Atlântico. Lisboa: Edições Colibri; 1998, pp. 23-41; Pedro Cardim. Cortes e
Cultura Política do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; Joaquim Romero Magalhães. “As Estruturas
Políticas de Unificação” IN: José Mattoso (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, Volume III, 1993;
Diogo Ramada Curto. “A Cultura Política” IN: José Mattoso, Op. Cit. ; Para o mundo ultramarino conferir
João Fragoso. “A Nobreza da República: Notas Sobre a Formação da Primeira Elite Senhorial do Rio de
Janeiro (Séculos XVI e XVII)” IN: Topoi. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
57
Todavia, a constituição do pacto mercantil colonial tinha como pano de fundo a
concretização de uma disputa desenfreada, descontrolada e extremamente feroz entre as
monarquias européias no novo mundo. Mesmo saindo na frente, Espanha e Portugal não
impediram as incursões flamengas, francesas e inglesas em seus domínios tropicais. A
presença dos franceses na capitania do Rio de Janeiro, como foi anteriormente
mencionado, tornou-se um golpe duro para os interesses, ou melhor, para os
“desinteresses” lusitanos no ultramar. Mesmo com um domínio tipicamente caracterizado
como feitoria, a presença dos descendentes da dinastia dos Valois irritou a coroa, que
partiu para um efetivo domínio, controle e principalmente conquista do território
fluminense.
Se o descaso fora abandonado em prol da conquista aqueles que enveredariam pelo
desbravamento do novo mundo e evidentemente àqueles que originalmente haviam
estabelecido o pacto voluntário inicial deveriam ser agraciados com mais benefícios. Isto
significa dizer que terras foram mais do que distribuídas, cargos foram outorgados, mercês
e privilégios jorravam pelo tinteiro régio e uma organização administrativa tomava conta
do cenário tropical. Se o pacto era econômico em seu princípio, ganhava a partir daquele
momento mais uma faceta, o político. Era o imaginário da construção de um espaço, de
evitar novas incursões estrangeiras e do compromisso com o monarca em fazer das novas
áreas domínios especificamente lusitanos.
Mas as precauções tomadas no mundo Atlântico não tiveram as mesmas soluções
em Portugal. Se aqui, a presença de outras monarquias fora amenizada, um grande
terremoto dinástico assolaria o território português. A união da coroa luso-espanhola, em
1580, interrompeu os lentos passos da coroa portuguesa rumo a concretização da
colonização das áreas tropicais. Benéfico para os espanhóis, que usufruíram as gordas
rendas comerciais lusitanas, e evidentemente para a América. Com isso, um das partes que
havia estabelecido o pacto inaugural do mundo colonial havia se fragmentado.
Reconstituído na figura dos espanhóis, ele tomou a fisionomia de exclusividade, autoridade
e supremacia.
O término do domínio dos Habsburgo na coroa lusitana trouxe, mais do que nunca,
a necessidade de uma redefinição do pacto, ou seja, a neutralização dos laços que foram
desenvolvidos durante sessenta anos com os hispânicos, sobretudo se levarmos em
consideração que esse contato fora extremamente vantajoso para àqueles que viviam em
solo americano. Desta maneira, uma grande questão deveria ter tomado conta dos
58
travesseiros do monarca português: como impor uma autoridade e supremacia sem perder
os proveitos coloniais? Em se tratando de uma monarquia mercantilista como a
portuguesa,
86
o dilema estava inaugurado. Somente havia uma saída para a conjunção de
todos os interesses do monarca lusitano: fundar um pacto baseado no próprio discurso que
possibilitasse o rompimento com a coroa castelhana. Um pacto calcado no corporativismo,
no jusnaturalismo e no direito natural que, sabiamente, reconstituía a importância de ambas
as extremidades que constituíam o acordo.
87
Dessa forma, a redefinição do pacto colonial
possibilitaria a remodelagem das áreas ultramarinas em duas faces de uma mesma moeda:
o império e a colônia.
Com um extremo receio de ver novamente as suas áreas tropicais aproximarem-se
dos espanhóis o que venhamos e convenhamos não seria muito difícil já que o
Governador da capitania do Rio de Janeiro no momento da restauração (Salvador Correia
de Sá e Benavides) possuía assuntos comerciais e de cunho privado com o lado hispânico e
a própria menção do Marquês de Moltavão, D. Jorge de Mascarenhas, em plena reunião
nas cortes de 1645, demonstravam como essa possibilidade era passível de se tornar
realidade a coroa portuguesa esforçou-se em possibilitar para os homens ultramarinos
uma sensação de que faziam parte de um império, o vastíssimo império ultramarino
português. Sendo assim, qualquer súdito de El-Rei, independente da parte do império em
86
Quase que todas as principais monarquias européias modernas serão influenciadas pelas idéias
mercantilistas. O mundo colonial sendo uma das facetas desta política econômica não escaparia das
amarguras de sua influência. Novamente recorremos a Fernando Novais para o balizamento deste conceito : a
concepção de riqueza identificada com os metais amoedáveis, posto que no desenvolvimento da teoria teria
sido matizada pelos pensadores que aperfeiçoaram o mercantilismo, nada obstante permaneceu a idéia
básica metalista como orientadora da política econômica. Ela envolvia uma conceituação primária da
natureza dos bens econômicos, e a suposição de que os lucros se geram no processo de circulação das
mercadorias, isto é, confiram vantagens em detrimento do parceiro. Assim, o receituário mercantilista da
balança comercial favorável; balança dos contratos na formulação mais tosca, no nível dos mercadores
particulares, balança do comércio no plano do intercâmbio internacional. Era a maneira de promover da
entrada líquida de bullión, termômetro da riqueza nacional. Daí, a política protecionista : tarifária em
primeiro lugar; ligada a esta, fomentista da produção nacional daqueles produtos que concorram
vantajosamente no mercado entre as nações. Defesa da saída das matérias primas, estímulo às exportações
de manufaturas; inversamente, estímulo à entrada de produtos primários, dificuldade ou mesmo proibição
de importação de manufatura. Para tanto, a produção interna deve ter custo baixo, ainda que para isto
restrinja o consumo interno a fim de concorrer no exterior. O mercantilismo não é, efetivamente, uma
política econômica que vise ao bem-estar social, como diria hoje; visa ao desenvolvimento nacional a todo
custo. Fernando Novais, Op. Cit. , p. 61.
87
Esta discussão sobre a teoria de justificação da restauração lusitana será discutida em uma outra parte deste
mesmo trabalho. Por ora, vale a pena mencionar trabalhos que discutem tal ideologia : Diogo Ramada Curto.
O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projeto Universidade Aberta, 1998; Eduardo de
Oliveira França. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1951; Luis Reis
Torgal. Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, Volume II, 1982.
59
que se localizava, possuía os mesmos direitos e deveres, e deveriam ser tratados da forma
igualitária.
Pensando dessa maneira, explica-se facilmente a criação do Conselho Ultramarino,
que aproximava as regiões mais longínquas das áreas metropolitanas, o que também
possibilitava a aplicação de uma justiça nos mesmos moldes implementados no reino
português. A condição de principado, concedida à América portuguesa, em 1645, somente
reforçava a idéia do Império. Afastando-se da caracterização das regiões tropicais como
colônia e aproximando-a, pelos menos fisicamente, de Portugal, a elevação ao principado
perde seu caráter de reconhecimento de importância do papel da América para a coroa
portuguesa que se diga de passagem, tal relevância dos domínios américo-lusitanos
haviam sido aviltados em fins do século XVI e passa a configurar-se como uma
importante estratégia lusitana na transformação do colono, antes de tudo em um súdito, um
vassalo do monarca português.
Os interesses da coroa seriam realmente concretizados, possibilitando ao homem
ultramarino uma das maiores reivindicações dos mesmos depois, é claro, da presença
física do rei em solo americano , a de serem realmente ouvidos. A convocação de um
representante brasílico para a reunião da cortes portuguesas
88
, em 1645, era o
reconhecimento de que o além-mar possui determinadas especificidades que somente
aqueles que possuíam essa experiência teriam condições de discutir os próximos passos
metropolitanos naquelas regiões. Para Maria de Fátima Gouvêa, a presença de D. Jorge de
Mascarenhas nas cortes de 1645 foi vital para interligar a América às demais partes que
constituíam o império português, da mesma forma que auxiliou na tomada de decisões na
reconquista de Pernambuco e a conseqüente expulsão definitiva dos holandeses do
Nordeste, em 1654.
89
Conceder direito à voz, direito à justiça, direito à condição de súditos marcaria uma
das faces desse novo pacto que se configurava. E se levarmos em conta a trajetória
seiscentista, vislumbraremos neste trabalho que nesse quesito a estratégia lusitana parece
que deu certo. Novamente voltando as revoltas anteriormente mencionadas, nenhuma delas
questionou a autoridade do monarca português, muito pelo contrário, os revoltosos
normalmente costumavam iniciar sua longuíssimas reivindicações ao sol, dizendo que
88
Sobre as cortes portuguesas, cf. Pedro Cardim. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime.
Lisboa: Cosmos, 1998.
89
Maria de Fátima Gouvêa, “Poder Político e Administração na Formação do Complexo Atlântico Português
(1645-1808)", Op. Cit., p. 297.
60
(...) o povo desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em casa
da câmara dela, onde se juntou o povo desta cidade e seu distrito às cinco
horas da manhã e todo assim junto na dita casa, como fora e circuito dela,
fez vir os oficiais da Câmara, que de presente servem, depois de juntos, lhe
representou o dito povo, dizendo em primeiro lugar, que vivesse El-Rei
nosso Senhor D. Afonso, de quem eram leais vassalos, e que como tais lhe
representavam (...)
90
O recurso de acionar o discurso de fiéis vassalos e súditos leais representavam a
garantia dos movimentos não terem o objetivo de questionar o poder régio do sol, mas
como da mesma maneira servia como instrumento para amenizar os castigos que
porventura acompanhariam o desfecho desses movimentos. Pior para os representantes
régios, ou nas palavras de Antônio Vieira, as sombras, que sofreram os incontestáveis
reveses dos homens ultramarinos, sagazes pelo cumprimento da justiça, do direito natural
e da administração para o bem comum.
No entanto, não era de uma hora para outra que as necessidades mercantilistas
seriam abandonadas das estratégias ultramarinas lusitanas quando se tratasse do mundo
além-mar. Sufocado pelo esvaziamento dos cofres régios, pela presença dos flamengos em
Pernambuco e pela incansável, e até então não rentável, busca por metais preciosos, a
coroa devia buscar meios de lançar mão de seu papel de metrópole, de exploradora da
regiões tropicais, ou se pensarmos como Fernando Novais, de exercitadora das práticas
mercantilistas. Sendo assim, entrava em cena a Companhia Geral do Comércio do Brasil.
E nesse ponto, indo fundo nas questões econômicas tocantes às regiões coloniais, a
Companhia Geral do Comércio, cumpriria indiscutivelmente o papel que lhe coubera.
Em suma, entender o Seiscentos américo-lusitano e por conseguinte fluminense,
não é possível sem a compreensão da existência de uma reajuste do pacto colonial. Após a
restauração lusitana, a coroa portuguesa aposta todas as suas fichas na configuração das
regiões ultramarinas como cada vez mais integrantes de um Império, caracterizado por
uma grande diversidade cultural e econômica, mas que tenta ser padronizado em termos
administrativos. Mais do que nunca, esse pacto torna-se político, já que conforme fora
justificado em 1640 o não cumprimento de uma administração em prol do bem comum, da
90
“Auto de Aclamação do Governador Agostinho Barbalho Bezerra, 8 de Novembro de 1660”. Excepto de
uma Memória Manuscrita sobre a História do Rio de Janeiro durante o Governo de Salvador Correia de Sá e
Benavides. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Volume III, s/a , p. 04. (grifo nosso)
61
paz e do coletivo abria brechas para a destituição do monarca, o que de imediato a coroa
tentava evitar aproximando as áreas coloniais dos ares metropolitanos.
Mas, esse mesmo pacto, impõe obrigações para o súdito protegido, que para a coroa
portuguesa voltavam-se principalmente para as questões econômicas. Suportar os impostos
régios, a extensão das atribuições dos Conselho Ultramarino e as fiscalizações da
Companhia Geral do Comércio eram a prova de fidelidade que o sol esperava, o que
evidentemente possibilitava o exercício das práticas mercantilistas e mantinham essas
mesmas regiões em condição de colônia. Logo, a idéia de império ultramarino português
não excluía as condições de colônia da América Portuguesa, muito pelo contrário, elas se
completam e passam pelo menos até a autoridade régia não ser questionada pelos
súditos/colonos ultramarinos, como ocorrerá a partir do século XVIII a se tornar cartas
de identidade acionadas pela coroa portuguesa no jogo de interesses, dos acordos e nas
negociações do período moderno.
As Administrações de Salvador Correia de Sá e Benavides na Capitania do Rio de
Janeiro, 1637-1660
O limite entre as funções do governador ou administrador régio e o rei era bastante
tênue quando se cruzava os mares do Atlântico. A própria distância, muitas vezes, fazia
com que o monarca revestisse de completa confiabilidade àqueles que o iriam representar
nas áreas mais longínquas do império ultramarino português, o que não afastava como
obrigatoriedade a pré-existência de uma experiência nestas regiões ultramarinas. Mas em
solos desprovidos de intensa luz solar, a confiabilidade que o monarca concedia aos
administradores era confundida pelos mesmos com a autoridade do rei. Com isso,
desprezando as determinações dos reis e assolados por baixos rendimentos, eram seduzidos
pelas mercês, propinas e pelos privilégios angariados na ocupação destas funções. O caso
de Salvador Correia de Sá e Benavides talvez seja o mais emblemático destas questões,
construindo um verdadeiro império nos trópicos, a família Sá, durante várias gerações
usufruiu de plenos poderes na capitania do Rio de Janeiro, sendo duramente abalada pela
eclosão da Revolta da Cachaça, em 1660.
62
No que diz respeito aos movimentos seiscentistas fluminenses, alguns autores
insistiram em relacionar a principal motivação para a eclosão da revolta ao ódio, a inveja e
as insatisfações da administração de Salvador Correia de Sá e Benavides. Personalizando a
resistência fluminense, os mesmos autores enxergavam o movimento como um canal para
ao sufocar o poderio da família Sá na Capitania do Rio de Janeiro.
91
No entanto, um olhar mais atento para a administração, ou melhor, as
administrações de Salvador Correia de Sá e Benavides podemos perceber que as razões
para a existência de insatisfações contra a sombra régia não faltavam, o que não justifica
considerarmos ser este o principal motivo para a usurpação do cargo, principalmente
levando em consideração o conceito de campo de tensões que constituíam o pano de fundo
de um motim, insurreição ou revolta.
92
Vendo por outra perspectiva, a análise das
representações feitas por Salvador de Sá nos permitem constatar tanto as insatisfações dos
homens ultramarinos de sua administração, como também comprovar que a Revolta da
Cachaça foi resultado de um longuíssimo processo que se instaurou na capitania do Rio de
Janeiro.
Filho de Martim Correia de Sá e Maria Mendonça e Benavides, neto de Salvador
Correia de Sá e Vitória da Costa , e sobrinho bisneto de Mem de Sá,
93
Salvador Correia de
Sá e Benavides traz no sangue uma tradição familiar que rompeu barreiras em solo
ultramarino. Alexandre Passos, acredito que seja quem melhor define a figura deste notável
personagem fluminense:
o general Salvador Correia de Sá e Benavides era apenas um produto
da época em que viveu. Neto de um sobrinho de Mem de Sá, primo de
Estácio, era natural herdasse, ao lado dos seus bens materiais e honrarias a
prosápia, enquanto encontrava as melhores oportunidades para
desempenhar altos cargos. Tinha o fraco de querer açambarcar muitas
terras como na questão de São Salvador de Campos dos Goitacases,
garantindo o futuro dos descendentes, da mesma forma, que duas gerações
garantiam o seu.
94
91
Sobre os autores que apontam a Revolta da Cachaça como recurso para neutralizar o poder da família Sá
no Rio de Janeiro podemos apontar: Othon Costa. A Cidade dos Sás. Rio de Janeiro: Departamento Editorial
do Centro Carioca, 1960; Alexandre Passos. O Rio de Janeiro no Tempo do Onça. Rio de Janeiro: Livraria
São José, 1962; Luis Norton. A Dinastia dos Sás no Brasil (1559-1662). Lisboa: Agência Geral das Colônias,
1943.
92
Antonio Manuel Hespanha. Revolta e Revoluções: Resistência das Elites Provinciais IN: Revista Análise
Social. Volume XXXVIII (120), p. 87-88.
93
Luis Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes, Op. Cit. , Apêndice 3 - A Família de Salvador Correia de
Sá e Benavides.
94
Alexandre Passos, Op. Cit. , p. 181.
63
Por tudo isso, a condição natural para a administração remete-se à tradição familiar.
Dentre os vários cargos que ocupara, de conselheiro ultramarino à membro da Companhia
Geral do Comércio do Brasil, sem dúvida alguma foi à frente da capitania do Rio de
Janeiro que se notabilizou como o mais importante membro da família Sá. Também
pudera, foi aquele que mais governou a capitania em sua História, ao todo três gestões:
entre 1637 e 1642; pela segunda vez em 1648; e por fim entre 1659 e 1660.
95
Sua primeira experiência no cargo de governador foi em substituição a Rodrigo de
Miranda Henriques, em 1637, sendo permeado pelos últimos momentos da dinastia filipina
no controle da coroa portuguesa e pelas dificuldades e desconfianças do período após a
restauração lusitana. Até 1640, sua relação com a coroa espanhola eram as melhores
possíveis. Casado com a espanhola Dona Catherina de Ugarte y Velasco, possuía uma
quantidade inigualável de negócios na parte hispânica da América, como era, da mesma
forma, detentor de uma vasta fortuna oriunda deste casamento. Apoiado pela coroa
espanhola, Salvador Correia de Sá e Benavides ampliava seus tentáculos oligárquicos na
capitania fluminense de todas as maneiras possíveis.
Quando assumiu o principal cargo da capitania, em 1637, já se configurava como
grande proprietário de terras, principalmente depois de receber a herança do pai, Martim
Correia de Sá, o primeiro governador do Rio de Janeiro nascido na América Portuguesa.
96
Mesmo antes de receber o cargo de governador, de antemão controlava e determinava a
economia açucareira fluminense desde 1635. Isto porque, o senado da câmara tinha por
muito tempo a necessidade de construir um armazém voltado para passagem de vários
gêneros coloniais, entre eles a farinha de mandioca e o açúcar, após as constantes críticas
que os produtos fluminenses sofriam no que se refere aos pesos alterados das caixas de
açúcar. Sem recurso para construir o trapiche, a câmara aceitou a proposta de Salvador
Correia de Sá e Benavides de utilizar recursos próprios para edificar o estabelecimento.
Assim, no auto de arrendamento autorizava-se
(...) que eles ditos oficiais (...) e com todas as condições (...) oficiais
da câmara todos de conformidade e unanimemente vastas as razões atrás do
dito senhor Salvador Correia de Sá e ser lhes tudo notório e patente
aforarão ao dito senhor Salvador Correia de Sá a casa de açougue que se
95
Charles R. Boxer, Op. Cit. , passim.
96
Ibidem, p. 127.
64
fez em frente das casas de morada de Domingos Carvalho por tempo de
dezenove anos (...)
97
Causa uma certa estranheza, aceitar que os homens ultramarinos permitiram, de
forma unânime, a exploração de uma das principais fases da comercialização açucareira
por dezenove anos, leia-se até pelo menos 1653. Mas, se levarmos em consideração que
ainda nos encontramos em uma fase de expansão da economia açucareira fluminense e,
evidentemente, das pressões exercidas pelos comerciantes lusitanos a concessão do
trapiche pelos homens bons fluminenses é aceitável. No entanto, não diremos a mesma
coisa quando avaliamos as condições de seu estabelecimento:
(...) nas varandas do dito açougue poderá fazer as oficinas
necessárias para nelas estar uma balança e peso geral para nela se pesar as
caixas de açúcar que as partes quiserem pesar de sua livre vontade e por
cada caixa levara do preso dou vinténs e outros dois de as recolher no dito
paço e outro dois de as levar do peso aos barcos ou bateis e sendo que se
levem pela cidade da rua direita levara assim mais dois vinténs de cada
caixa e que pela dita casa de açougue e pelo ferro da dita balança pagara
em cada um ditos anos vinte mil réis em dinheiro pagos aos quartéis (...)
98
Percebe-se, claramente, que mesmo tendo por obrigação o pagamento anual da
quantia de vinte mil réis à câmara, a lucratividade conquistada pela pesagem do açúcar era
incalculável, principalmente por dezenove anos. Todavia os lucros, não advinha somente
da pesagem do trapiche, como também dos castigos aplicados àqueles que tentavam furtar
os cofres municipais: (...) nas caixas de açúcar que se pesarem em que se achar falta no
preço pagara o dito preso e falta o dono delas e não se achando falta nelas as pagara o
seu caixeiro ou pessoa a cujo impedimento se pesarem (...).
99
Ou ainda, (...) todas as
coisas (...) não poderão pesar senão, quer pessoa que não fizer pagara a esta câmara de
pena seis mil reis o terço para acusador outro para ele dito alcaide e o outro para esta
câmara (...)
100
Desta maneira, Salvador Correia de Sá e Benavides controlava exclusivamente a
exportação de todo açúcar fluminense rumo à Europa. Pagava-se pela pesagem, pelo
97
Auto de Arrendamento que Fazem os Oficiais da Câmara ao Senhor Salvador Correia de Sá. Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro. Legislativo Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650. Códice 16-3-21, p. 12.
98
Ibidem, p. 12.
99
Ibidem, p. 13.
100
Ibidem, pp. 12-13.
65
armazenamento e pela tentativa de furto. Dois anos depois, em 1637, a conquista do cargo
de governador escancarou as possibilidades de Salvador de Sá manter a supremacia na
economia açucareira. Os dezenove anos concedidos pelo senado da câmara transformaram-
se em concessão perpétua à família Sá, sendo somente revertido ao governo municipal
novamente, em 1851, quando D. Pedro II pagou uma altíssima indenização aos Sá.
101
As questões que envolvem a exclusividade e regalias no comércio açucareiro no
Seiscentos atingiram certamente os produtores fluminenses, não agora, e sim na segunda
metade deste mesmo século, quando o preço do açúcar despenca no mercado devido a
concorrência holandesa. Inevitavelmente, o trapiche de Salvador Correia de Sá
desencadeará na nobreza da terra um descontentamento quando a crise bater a porta da
economia da capitania, pois estes homens não aceitariam o controle do fluxo do açúcar
pelo administrador régio, passando, então, a atacar ferozmente as atividades da sombra do
sol.
Uma outra questão bastante recorrente na historiografia sobre os problemas
enfrentados pela sombra do sol nos momentos que antecederam a restauração foi a questão
da proibição da escravização do gentio. Quando a bula do Papa Urbano VIII se tornou
tragicamente pública, em 1640, causou uma imensa confusão na região sul dos trópicos
lusitanos. A bula declarava que qualquer homem ultramarino que, a partir daquele
momento, utilizasse da mão de obra indígena em qualquer atividade colonial seria
excomungado pela Igreja católica. Revoltados, os súditos ultramarinos optaram pela
expulsão dos jesuítas da região e pelo confisco das missões jesuíticas clericais. Nesse
momento, entra em cena a figura do Governador da capitania do Rio de Janeiro, Salvador
Correia de Sá e Benavides, que conseguiu a conciliação rapidamente entre os súditos
fluminenses e os jesuítas. Em relação aos paulistas a situação agravou-se ainda mais,
culminando na expulsão dos jesuítas da vila e a invasão aos colégios inacianos.
102
O conflito somente foi solucionado através do estabelecimento de um acordo
entre os paulistas e o governador, onde o último permitiria a utilização do gentio em
detrimento da supervisão dos trabalhos nas minas e na arrecadação real da vila de São
Paulo. Solucionado o problema a imagem do Governador Salvador Correia de Sá e
Benavides ganharia mais uma faceta: o protetor dos jesuítas. Imagem esta que o
101
Charles R. Boxer, Op. Cit., p. 128.
102
Rodrigo N. Bentes Monteiro. O Rei no Espelho - a Monarquia Portuguesa e a Colonização da América,
1640-1720. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2002, p. 22; Charles R. Boxer, Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil
e Angola, Op. Cit. ; Vivaldo Coaracy, O Rio de Janeiro no Século XVII, Op. Cit.
66
perseguirá nos momentos em que eclodirá a Revolta da Cachaça, em 1660. Mas, no
entanto, parece que esta imagem marcou muito mais os fluminenses do que os paulistas,
pois em 1660 eles saberão retribuir muito bem os serviços prestados pelo administrador
régio em prol da vila de São Paulo, colocando-se ao lado do governador quando os
fluminenses buscaram seu apoio, objetivando o fortalecimento da reivindicação dos
revoltosos.
103
Concomitantemente aos problemas entre os jesuítas e os ultramarinos, Salvador
Correia de Sá e Benavides será acusado por diversos homens bons em uma carta enviada
ao Conselho Ultramarino. Liderado por Domingos Correia, ex-Provedor da Fazenda que
fora retirado do cargo em prol de um aparentado do administrador régio,
104
o pequeno
movimento ganhou o apoio dos paulistas por conta da proteção aos jesuítas. Em 15 de
Janeiro de 1642 os súditos portugueses assim demonstravam a administração de Salvador
de Sá:
(...) se nestas companhias por culpa dos Governadores ou dos oficiais
de milícia faltava o número dos soldados que cada uma devia ter e quando
se faziam e os soldos para os pagamentos se a gente de hão compor uma se
acumulasse, a outra parte que assim levassem as pagas inteiras de maior
numero de soldados de que cada há campanha tinha e porque ordem e com
que consentimento se fazia isto (...)
(...) se o tributo dos vinhos que iriam a este reino e ilhas e canárias
para o Rio de Janeiro que a câmara pôs se arrecada no modo devido e se
algum general ou de Vossa Majestade o gasta em (...) muito e para meios
(...)
(...) que montou seqüestro que se fez pela dita ordem no navio de
Domingos Jorge que estava carregado para o rio da Prata e em que modo
se mandava se fez este seqüestro.
105
103
Cabe mencionar que os interesses da escravização do gentio na capitania do Rio de Janeiro e na Vila de
São Paulo eram bastantes distintos. Enquanto a capitania do Rio de Janeiro sofrerá uma gradual mais
solidificada transição da utilização do negro africano em detrimento dos nativos, a Vila de São Paulo
prolongará ao máximo a utilização da mão de obra indígena. Gentio este que será utilizado nas lavouras de
trigo das regiões paulistas, produto importantíssimo na dinâmica comercial paulista, pois o trigo é utilizado
como moeda de trocas mercantis para abastecimento da região. Para maiores informações Cf. John Manuel
Monteiro, Op. Cit. , Capítulo 3 - O Celeiro Colonial.
104
Charles R. Boxer, Op. Cit. , p. 152.
105
Capítulos da Devassa Promovida pelo Provedor da Fazenda Domingos Correia Contra o Capitão-mor e
Governador Salvador Correia de Sá e Benavides. Arquivo Histórico Ultramarino, Instituto de Investigação
Científica Tropical e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Conselho Ultramarino/Catálogo Castro
Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1657). Cd-Rom Número 1, Documento Número 312.
67
Em suma, Salvador de Sá era acusado de seqüestro de navio, desvio de bens e
impostos régios, uso inadequado dos recursos da coroa, nepotismo, criação de impostos
sem a autorização régia e utilização de material de péssima qualidade nas construções da
capitania. Afastando-se do governo para defender-se das acusações, Salvador Correia de
Sá, através de uma petição também enviada ao Conselho Ultramarino, tentava sensibilizar
a coroa portuguesa resgatando a trajetória familiar dos Sás no Rio de Janeiro:
(...) diz que é filho de Martim de Sá e neto de Salvador Corrêa de Sá e
que os ditos seu pai e avô serviam a esta coroa, governando o Rio de
Janeiro e o Estado do Brasil por espaço de 60 anos fazendo um e outro no
decurso do dito tempo muitos e assinalados serviços com tanto dispêndio de
sua fazenda, como é notório, e ele suplicante da mesma maneira os vai
continuando de mais de trinta anos a esta parte, do que foram cinco
governador da dita praça, em que serviu a esta coroa com grande zelo e
satisfação (...)
106
Listar os feitos em prol da coroa portuguesa era demarcar a existência da fidelidade
frente a autoridade régia. Com estas atitudes, as intenções eram claramente demonstrar que
a ocupação de cargos no ultramar custou aplicação de recursos do próprio Salvador de Sá e
sua família 'dispêndios de sua fazenda' igualmente colocada como prova de fidelidade.
Em relação as acusações de Domingos Correia alegava que,
(...) lhe cobrou manifesto e declarado ódio Domingos Correia que
servia de Provedor da Fazenda, por ele suplicante dar a execução de
algumas ordens de V.M. e por ele suplicante meter de posse do dito cargo de
Provedor da Fazenda ao Capitão Pedro de Souza Pereira, provida por
Vossa Majestade antes do dito Domingos Correia acabar o seu triênio, pela
qual rezam veio a este reino acumulado com João de Castilho Pinto e João
Fernandes, inimigos capitais dele suplicante, o capitularam, intentando com
calúnias sem fundamento mais que o de seu ódio, aniquilar a reputação dele
suplicante, e alcançaram provisão e Vossa Majestade para se devassar neste
reino contra ele suplicante, como se fez, e pedindo a Vossa Majestade em
Évora o ano passado se servisse mandar ver as ditas devassas e castigar os
ditos capitulantes(...)
107
Salvador Correia de Sá e Benavides tentou revidar as críticas a sua administração
assinalando a existência de um pequeno complô de insatisfeitos que imbuídos de ódio, que
106
Consulta do Conselho Ultramarino Acerca da Petição de Salvador Correia de Sá em que Solicitara a
Suspensão da Devassa que os seus Inimigos lhe Haviam Injustamente Movido. Arquivo Histórico
Ultramarino, Instituto de Investigação Científica Tropical e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Conselho Ultramarino/Catálogo Castro Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1657). CD-ROM
Número 1, Documento Número 331.
107
Ibidem, passim.
68
a todo custo queriam manchar a imagem do dito administrador. Curioso é notar que
aqueles a que Salvador Correia de Sá aponta como mancomunados com Domingos
Correia, caracterizando-os como 'inimigos capitais', João de Castilho Pinto e João
Fernandes encontram-se ambos na lista de assinatura do auto de aclamação de Agostinho
Barbalho Bezerra, em 8 de Novembro de 1660. Isso nos possibilita dizer que por mais que
não queira parecer, o movimento de 1660, possui uma íntima ligação com os
acontecimentos de 1643. Alguns daqueles que participaram da deposição de Salvador de
Sá nos auspícios de 1660, foram os grandes responsáveis pelas primeiras críticas que a
sombra do sol sofreria no Seiscentos.
Mas as semelhanças não param por aqui. A sombra luso-espanhola por sua
'notória, satisfação, crédito e confiança' foi absolvida das acusações de seus inimigos, que
em contrapartida tiveram que depositar caução em favor da coroa portuguesa.
108
Enquanto
isso na capitania do Rio de Janeiro, assumia Luís Barbalho Bezerra o cargo de governador,
considerado um homem íntegro, ponderado, honesto e já conhecido pela coroa portuguesa
por sua luta contra os holandeses no nordeste açucareiro
109
e porque não mencionar, pai de
Jerônimo Barbalho Bezerra e Agostinho Barbalho Bezerra, respectivamente líder e
governador aclamado pelos ultramarinos na Revolta da Cachaça, em 1660. Luís Barbalho
encontrou a capitania do Rio de Janeiro em um momento muito difícil, principalmente em
relação a guarnição local.
Com o salário atrasado há nove meses e reduzida ao número de duzentos e sessenta
homens, a milícia fluminense era um incômodo para qualquer administrador régio. Se
levarmos em consideração as acusações de Domingos Correia que transcorriam nos
bastidores do Conselho Ultramarino, o desvio de verbas e rendas régias por Salvador
Correia de Sá e Benavides pode ser apontado como um dos grandes responsáveis por esta
complicada situação. A alternativa encontrada pelo novo governador foi recorrer um
auxílio da Câmara, buscando autorização para a aplicação de algum imposto para o
aumento da frota e pagamento dos soldos atrasados em 5 de Julho de 1643:
Sua Majestade que Deus Guarde, foi servido mandar-me governar
esta praça e que a primeira coisa que pusesse fosse a fortificá-la e tratar de
perfazer a infantaria necessária para sua defesa em cujo cumprimento
proponho o seguinte: (...) para os quais dispêndios o servem os vassalos
com aqueles anos e antiga lealdade de portugueses, pelo o só com as
108
Ibidem, passim.
109
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 117.
69
pessoas continuamente assistentes em invasões daquelas fronteiras, com
suas fazendas sem reservar estado, eclesiástico, nobre e mecânico, andam
todos espontaneamente para defesa e conservação de seu Rei e de sua
Pátria grandes donativos, exceto as contribuições, que licitamente nas
Cortes daquele Reino, se tem proposto.
110
Remetendo-se ao que é feito em solos portugueses, Luís Barbalho Bezerra,
suplicava por contribuições voluntárias dos homens bons para que não fosse necessário
recorrer à tributação. Caso semelhante acontecia no Estado da Bahia, sede do Governo-
geral, onde os próprios moradores continuamente auxiliavam na arrecadação naquelas
regiões.
111
Em resposta a câmara de vereadores optou pela aplicação de um subsídio sobre
os vinhos:
(...) que convinha ao serviço de Sua Majestade que se fortifique esta
cidade e se sustente 'o presídio de 600 soldados que Sua Majestade ordena
haja nesta praça e que visto que da Fazenda Real não há efeitos bastantes
que se bote o que importar que for de mais a mais pelos vinhos
acrescentando-se a medida de modo, que o que acrescer na dita medida se
tire para esta contribuição, e que o que faltar se bote na vintena geral, em
todos os moradores, mercadores, oficiais e de todas as mais pessoas, e que
somente para estes efeitos se aplicarão, e não para outros alguns, e se porão
por tempo de um ano contínuo somente.
112
Sendo uma determinação régia, a população aceitou as ordens do sol, sobretudo
porque o perigo flamengo que rondava o império ultramarino português, leia-se Angola,
Bahia e Pernambuco, trazia urgência na multiplicação dos homens da guarnição
fluminense. Segundo Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, as taxações, mesmo com
orientações do monarca, nunca configuram em uma tarefa fácil para os administradores,
110
Proposta do Governador Luis Barbalho Bezerra para os Moradores da Capitania do Rio de Janeiro
Contribuírem para as Despesas das Fortificações e Guarnição daquela Época. Arquivo Histórico Ultramarino,
Instituto de Investigação Científica Tropical e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Conselho
Ultramarino/Catálogo Castro Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1657). Cd-Rom Número 2,
Documento Número 6.088.
111
Ibidem, passim.
112
Assento da Câmara do Rio de Janeiro, em Harmonia com a Proposta Anterior. Arquivo Histórico
Ultramarino, Instituto de Investigação Científica Tropical e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Conselho Ultramarino/Catálogo Castro Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1657). CD-ROM
Número 2, Documento Número 6.089. Especificamente, o imposto determinava as seguintes arrecadações:
'que por este se levante, e não corra mais que o que até agora tem corrido de 4.000 réis em cada pipa, com
declaração que pela medida que assim se fizer para daqui a diante se medir o dito vinho, virão a ficar em
cada pipa 8.000 réis para esta contribuição, as quais medidas desde logo se farão, e que esta quantia a
pagarão os taverneiros, e pessoas que venderem os ditos vinhos, e que as pipas de vinho que saírem para
fora sem ser, pagarão a mesma quantia de 8.000 réis e que esta maneira acrescenta- se fará nos azeites
doces e de peixe; e para clareza se acrescentarão em cada pipa 13 canadas e por esta maneira outorgarão e
determinação.'
70
inclusive em momentos de queda dos preços do açúcar.
113
A população até que aceitou
tranqüilamente o novo tributo, mas não aconteceu a mesma coisa quando tais receitas
tiveram que ser encaminhadas para o Governo-geral para aliviar as receitas da capitania
que estavam sobrecarregadas com a proteção contra o ataque dos holandeses.
Enfurecidos, os moradores da capitania fluminense invadiram a casa do governador
Luis Barbalho para retirar o cofre onde estava armazenado o total da arrecadação da finta.
Não suportando o golpe que sofrera, Luís Barbalho adoecera e falecera a 15 de Abril de
1644, acreditando fielmente que estava fazendo jus exclusivamente as determinações da
autoridade solar. O episódio que sucedeu a saída de Salvador Correia de Sá e Benavides
da administração da capitania do Rio de Janeiro, em 1643, que aqui acabou de ser narrado,
a primeira vista podem não ter muito haver com os acontecimentos de 1660. No entanto, se
constatamos que a substituição do luso-espanhol trouxe problemas econômicos e militares
para a região fluminense que não conseguiram ser resolvidos por Luís Barbalho Bezerra,
podemos dizer, porque não, que a revolta que sofrera Luís Barbalho, em 1644, estava
arquitetada para Salvador Correia de Sá e Benavides. As acusações feitas por alguns
homens ilustres da capitania é sintomática para perceber que havia algo de errado na
administração do luso-espanhol, não sendo à toa, como mencionei anteriormente, que dois
dos três acusadores dos malefícios que Salvador de Sá causava a capitania, estavam, da
mesma forma, entre os revoltosos do motim da cachaça, dezesseis anos depois. Coitado de
Luís Barbalho, que pagou com a vida, acusações de infidelidade régia que não lhes cabia.
Pensando desta forma, a Revolta da Cachaça pode ser considerada a resposta dos herdeiros
de Luís Barbalho Bezerra ao que aconteceu com seu pai em 1644.
Seja como for, Salvador Correia de Sá e Benavides saiu-se muito bem desta
situação. Não sofreu um motim, foi absolvido das acusações de seus inimigos e seu
prestígio diante da coroa tendia a aumentar. Foi quando em 16 de Janeiro de 1648 voltava
ao Rio de Janeiro para administrar novamente a capitania, desta vez com jurisdição de toda
a repartição sul, que compreendia a vila de São Paulo, a capitania do Espírito Santo e a
capitania do Rio de Janeiro. A administração da região fluminense foi concedida ao luso-
espanhol com o objetivo único e exclusivo de reconquistar Angola,
114
chance na qual
113
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. O Império em Apuros: notas para o Estudo das Alterações
Ultramarinas e das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos XVII e XVIII, Op. Cit. , 2001,
p. 201.
114
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 132.
71
Salvador Correia de Sá teve para dar a maior prova de fidelidade e dedicação ao monarca
português.
A primeira tentativa de reconquista de Angola fora entregue a Francisco Souto
Maior, em 1645, fracassada com a morte do capitão frente aos africanos aliados dos
holandeses, em 1646. Os preparativos para a formação da frota rumo à Angola trouxe
dificuldades na reunião de soldados, principalmente porque não se poderia desfalcar a
guarnição fluminense, deveras prejudicada ao longo destes anos. Tentando demonstrar a
importância da recuperação da região africana para a coroa, Salvador Correia de Sá e
Benavides apelou para o apoio da população fluminense, que de imediato
(...) dispuseram-se a emprestar 60.000 cruzados para financiar a
expedição esforço dos mais notáveis, sem o qual, como Salvador disse
francamente ao rei, sua armada nunca se faria ao mar. Participaram
generosamente deste empréstimo ele e sua família, como era natural que
assim fizessem, dados os recursos de que dispunham e a necessidade que
tinham de escravos para os seus engenhos.
115
Este último ponto é fundamental para o entendimento da dedicação da reconquista
de Angola empenhada por Salvador de Sá, como pelos moradores da capitania fluminense.
Recuperar o controle de Angola não significava somente uma simples demonstração de
fidelidade a coroa portuguesa, era também atender aos seus interesses, já que a economia
fluminense dependia das 'peças africanas' não só para o trabalho na lavoura como para o
escoamento dos produtos fluminenses (o açúcar e a geribita). Tal comércio configurava-se
como boa vitrine do círculo vicioso que se transformou a economia colonial, na qual a
venda dos gêneros tropicais impunham a compra em grande quantidade de africanos para a
alimentação lucrativa do tráfico negreiro. Por isso, explica-se o esforço e a generosidade, a
dedicação e a fidelidade dos ultramarinos que desfalcaram seus cofres sem ter a
preocupação de ter que suportar mais uma crise econômica.
A saída da armada em 12 de Maio de 1648, contava com 12 embarcações de
novecentos a dois mil homens, e a certeza de que a batalha seria vitoriosa. Dois meses
depois, já estavam desembarcando em São Paulo de Luanda, onde iniciaria a retomada
pelo forte de Santo Antonio e depois de forte de São Miguel. A vitória que veio em
115
Charles R. Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola, Op. Cit. , p. 267.
72
seguida, deu o direito de Salvador de Sá e Benavides assumir o governo de Angola,
116
obrigando a Duarte Correia Vasqueanes, aparentado do luso-espanhol, a permanecer na
administração da capitania do Rio de Janeiro. Também pudera, apesar de mais prestigiosa,
a região fluminense não chegava perto dos lucros e propinas que as regiões africanas
podiam oferecer a qualquer administrador régio.
O restabelecimento do tráfico de escravos foi uma das principais decisões tomadas
de imediato, atendendo as necessidades tanto da América lusitana quanto da região da
Prata. Autorizada por D. João IV, o tráfico negreiro com a região hispânica aumentou o
número de prata que circulava do lado lusitano e aliviou os desesperos de Filipe IV.
117
Além disso, Salvador de Sá e Benavides recuperou os donos da cidade, diluiu as dívidas
contraídas durante o domínio flamengo, auxiliou na autorização para a cunhagem de
moedas, não puniu violentamente os apaniguados dos holandeses, construiu barcos para
defesa costeira e consertou galeões.
118
Curvando-se diante das condições climáticas de
Angola e da distância da família, Salvador Correia de Sá e Benavides solicitou a coroa
portuguesa o afastamento do controle da região pela não mais existência de perigo
flamengo, sendo prontamente atendido em Março de 1652. De volta a Portugal, passou a
fazer parte do Conselho de Guerra e do Conselho Ultramarino, amargurando alguns anos
até o retorno à administração da capitania do Rio de Janeiro.
119
Aproveitando-se do prestígio que arrecadara com a reconquista de Angola,
Salvador Correia de Sá e Benavides buscou mais meios para o seu enriquecimento
particular. Em 1653, o luso espanhol visando burlar os privilégios impostos pela
Companhia Geral do Comércio do Brasil, conseguiu a autorização do Conselho
Ultramarino uma provisão que obrigava a todos os mestres de embarcação a reservarem
10% de seus navios que saíam do porto fluminense ao açúcar produzido por ele, sob pena
de perdas e danos.
120
Sem dúvida alguma, Salvador de Sá era um grande proprietário,
como apontou Charles R. Boxer:
(...) declarava possuir cinco plantações de cana-de-açúcar e quarenta
fazendas de criação, sem falar na grande propriedade que lhe pertencia na
própria Cidade do Rio de Janeiro (...) Afora essas glebas no recôncavo,
Salvador possuía ainda extensas propriedades territoriais na região
116
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro do Século XVII, Op. Cit. , p. 132.
117
Charles R. Boxer, Op. Cit. , p. 291.
118
Ibidem, pp. 295-298.
119
Ibidem, p. 304.
120
Vivaldo Coaracy, Op. Cit., p. 149.
73
nordestina do Rio de Janeiro conhecida pelo nome de Campos dos Goitacá,
onde abundava o gado bravio.
121
Interventor no Conselho decidindo a questão das frotas , membro do Conselho
Ultramarino onde burlava leis para atender seus interesses , grande proprietário
fluminense e detentor do trapiche de pesagem de açúcar e outros gêneros tropicais do Rio
de Janeiro, tudo isso fazia com que a figura de Salvador de Sá, aos poucos, configurasse
como um peso não muito bem quisto pela nobreza da terra fluminense, que também
possuía seus interesses específicos no solo américo-lusitano. O que faltava ao mais ilustre
descendente da família Sá era novamente a administração fluminense, que somente terá em
suas mãos após a morte de D. João IV, em Portugal.
A subida ao poder de D. Luisa de Gusmão abriu a oportunidade do retorno da
família Sá na administração fluminense, onde o primeiro contemplado foi Thomé Correia
de Alvarenga, primo do luso-espanhol, que assumiu o governo em 1657. Dois anos depois,
em 1659, chegando ao Rio de Janeiro na própria frota da Companhia de Comércio,
Salvador de Sá e Benavides voltava a tomar posse do principal cargo fluminense. Mas
agora tudo era diferente, o administrador régio intitulava-se governador da repartição sul,
possuindo autonomia política, econômica e administrativa frente ao Governo-geral,
empossado a Francisco Barreto de Menezes.
De imediato tentou uma exploração pelo Espírito Santo, buscando o sonho dourado
dos lusitanos de encontrar metais em solo brasílico, o que não teve os resultados esperados.
Passando em seguida a construir galeões para a defesa da região fluminense, contando com
o apoio português e inglês. No entanto, o maior problema que a sombra do sol enfrentaria,
por ironia do destino, será aquele que alguns anos atrás o mesmo deixaria explodir na
administração de Luís Barbalho Bezerra: a guarnição fluminense. Os anos se passaram mas
as milícias locais continuavam com o mesmo problema do atraso de salários e um reduzido
número de trezentos e cinqüenta homens para a defesa da cidade. Desta maneira, Salvador
de Sá e Benavides elaborou a seguinte proposta à câmara de vereadores:
(...) que para melhor segurança desta praça lhe são necessárias
quinhentos infantes efetivos, e que e sustento destes com os de seus capitães
e mais oficiais das primeiras planas se tire pelas fazendas dos moradores
desta capitania, por não haver dos de Sua Majestade por modo de
lançamento de finta, ou qualquer outra via. E porque conforme é que
121
Charles R. Boxer, Op. Cit. , p. 299.
74
tínhamos praticado, e constava dos livros deste senado, em razão de
subsídios, vintenas, e outras contribuições com que este povo tem acudido
para as fortificações e sustento desta infantaria, se fundarão fortes cassas
para se lançarem, aqueles em necessidades urgentes, como foram a tomada
da Bahia, Pernambuco e Angola pelo inimigo holandês (...)
122
Interessante notar que a tentativa de aprovação da aplicação de uma nova taxação
retoma a ameaça holandesa afastada dos solos baianos, angolano e pernambucano, e que
nem quiçá assolava as regiões fluminenses. O apelo da insegurança tornava inevitável o
imposto sem o auxílio da população local:
(...) para efeito de se acrescentar esta tal infantaria, suposto que não
duvidamos sustentar a que de presente há, que segundo a informação que
temos monta a trezentos e cinqüenta, ainda que para esta mesma se não
fazer sem grande vexação deste povo, para alternação de seus cabedais.
123
Sendo assim, Salvador Correia de Sá elaborou uma espécie de imposto predial, que
seria pago por aqueles que tinham casas na cidade do Rio de Janeiro. Quem morava na rua
Direita, passava a ter como obrigação pagar mensalmente dois tostões, caso a casa tivesse
dois andares seriam quatro tostões. Aqueles que moravam nas outras ruas da cidade o custo
era um pouco menor, meia pataca para casas com um andar, e um tostão para dois
andares.
124
Em reunião na câmara de vereadores, em 24 de Janeiro de 1660, os camareiros
não aceitaram a proposta de Salvador Correia de Sá pois não era uma determinação da
autoridade régia:
(...) isto de lançar fintas é matéria tão escrupulosa, que ou não haja
ou haja para elas causa, nunca vossas mercês podem lançar esta de que se
trata, sendo de tanta consideração, se sobre o povo tão debilitado, sem
grande nota d temeridade, tendo nesta matéria contra si uma ordenação de
sua majestade, e diferentes leis (...)
125
Segundo a lei apontada pela câmara, o governador somente poderia lançar fintas
depois de escrever ao corregedor da comarca especificando as razões para aplicação do
tributo, que em seguida, pronunciar-se-á sobre as reais necessidades que sustentavam a
122
Relatório dos Procuradores Nomeados pela Câmara no Rio de Janeiro sobre o Imposto Proposto pelo
Governador Salvador de Sá . Balthazar da Silva Lisboa. Annaes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
Leitura s/a, 1967, Volume III, p. 250
123
Ibidem, p. 351.
124
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 161.
125
Intervenção do Abade de São Bento na Câmara Sobre o Mesmo Assunto. Balthazar da Silva Lisboa, Op.
Cit., Volume III, p. 351.
75
aplicabilidade da taxação e inclusive a possibilidade da utilização das rendas do conselho
para a solução do problema. Além disso, o mesmo corregedor estudaria tais pedidos,
levando em consideração a existência de tributos anteriormente colocados em prática, o
que obrigava, algumas vezes, o adiamento da aplicação da finta proposta. Por fim,
averiguado a real necessidade, o corregedor escreveu à câmara, que da mesma forma,
estudou a aplicação do imposto de maneira que menos prejudicasse a população.
126
Assim,
os camaristas alegavam que cabia primeiro ao rei e depois à câmara as decisões de
aplicação ou não de taxações da Capitania, caso essa seja feita pelo governador deveria
utilizar-se de outras formas
127
:
(...) para se disporem a lançar fintas sem expressa licença sua [rei e
câmara], pois que ele assim dispõe, e quando a necessidade seja meio
urgente para assim a representa, e tal que não possa esperar o recurso de
Sua Majestade, em tal caso o remédio é um pedido, ou por modo de
donativo, ou por via de empréstimo, para o qual devem concorrer à vista da
necessidade os moradores desta praça, como fieis vassalos que são e sempre
foram (...)
128
A contribuição voluntária ou a concessão de um empréstimo foi apontado como um
caminho viável para resolução do problema da falta de verbas do conselho real,
descartando qualquer possibilidade de aplicação de tributo sem ordens régias e por isso
tornando-se fintas injustas. Seguindo esta mesma proposta, o prelado e administrador da
jurisdição eclesiástica, Manoel de Souza Almeida, em 26 de Janeiro de 1660, sugeriu à
câmara uma maneira mais suave para retirar o dinheiro necessário da população
fluminense para solucionar as despesas da infantaria:
(...) em primeiro lugar, as praças devem ter o presídio moralmente
pronto para a sua defesa e o governador prudente deve tê-lo sempre assim,
sem atender a que hajam muitos anos que se conservam em paz. Para esta
praça do Rio de Janeiro me pareceu que são necessária quinhentos homens,
entretanto nestes os que devem assistir nas fortalezas; mas também me
parece impossível que de algum modo se tire dos moradores tudo o que é
necessário para seu sustento, pelo Estado em que todos conhecemos a terra:
assim fica sendo necessário buscar modo com que hajam quinhentos
126
Ibidem, pp. 352-353
127
A câmara até possuía a flexibilidade na redução dos impostos anteriormente implantados, onde a juiz da
alfândega possuía um papel importante. Como não dispomos da listagem dos ultramarinos que ocupavam tal
cargo na conjuntura de revolta, não conseguimos cotejar as possibilidades da amenização dos impostos
naquele momento.
128
Ibidem, p. 353.
76
homens, por isso me pareceu mais conveniente que os trezentos e cinqüenta
homens que da câmara se dizem que hoje há, aos que fossem vendeiros,
oficiais de ofício, e gentes semelhantes, como os tais se reforme, pondo em
seu lugar homens desobrigados de todo este recôncavo, que será grande
serviço de Deus tirá-los de sua casa, e dar-lhes ocupação com trezentos e
cinqüenta desta cidade (...)
129
Percebe-se que era uma proposta no mínimo ousada, cujo aqueles que não tinham
ocupações seriam reaproveitados para a defesa da cidade. Na verdade, o que Manuel de
Sousa Almeida visava ao apresentar sua proposta era tentar de eliminar o caráter de
imposto de Salvador Correia de Sá e Benavides, transformando-o em uma doação
voluntária e na utilização de desocupados, que seriam treinados todos os Domingos. Seja
como for, em 28 de Janeiro de 1660, depois de tantas propostas e discussões, oficialmente
a câmara se pronunciou sobre a taxação da sombra do sol. A priori, os camaristas fizeram
questão de mencionar as inúmeras dificuldades que passava a capitania fluminense naquele
momento, tais como a inexistência de embarcações, provavelmente conseqüente dos
privilégios da Companhia Geral do Comércio; a grande mortalidade dos negros e gados; o
aumento de doenças; e a falta de comércio com a região angolana.
130
Reafirmando as posições anteriormente destacadas, alegavam que não cabia ao
representante régio ultramarino a aplicação de impostos sem determinações solares.
Evidentemente, também acreditavam que a contribuição voluntária seria a forma mais justa
e sem dano para a capitania, mas reconheciam que este modo de arrecadação não supriria
as necessidades financeiras naquele momento, por isso propuseram outros mecanismos
para solucionar o problema da guarnição:
1º) (...) devíamos desimpedir a barra, porque de comércio livre pende
a conservação da república. E por que estas imposições dos vinhos, foram
postas por este povo para aquele fim do sustento da infantaria, assinalando
um outro ano, e declarando-se nos assentos que a câmara teria jurisdição
para levantá-lo cada vez mais que parecesse que convinha, sem embargo de
sua majestade (...)
131
2º) (...) que este lançamento ou contribuições se faça nos gêneros de
nossas lavouras, e sustento que dependem nossas lavouras, e sustento que
dependem nossa fazendas, sem dependência do que vem de fora, assim por
129
Proposta do prelado administrador da jurisdição eclesiástica que tinham o objetivo de ser mais popular.
Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit. , pp. 359-360.
130
Representação dos Oficiais da Câmara da Cidade do Rio de Janeiro ao Governador Salvador Correia de Sá
e Benavides sobre Proposta de finta para Sustentação da Infantaria. Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit. ,
Volume III, p. 364.
131
Ibidem, pp. 365-366.
77
servirmos a Sua Majestade, como pela segurança que haverá nos efeitos do
sustento do presídio (...)
132
3º) (...) e porque este imposto é ilimitado para o que necessidade,
ajustamos em que sem embargo de se conhecer a utilidade que se seguia de
se ter tirado o fazer-se aguardente de cana nesta cidade, pelas inquietações
com que andavam os negros, utilidade que se esperavam de que não
havendo a dita aguardente viriam mais vinhos e achariam utilidade, mas
considerando esta necessidade precisa e forçosa de acudir e ao sustento
desta infantaria, e ao comércio de Angola, nos pareceu conveniente o
ajustarmos, que em comum se faça a dita aguardente, e que sobejando
alguma cousa destes efeitos se aplicasse para se trazer a água da Carioca,
que é cousa tão sutil e necessária. Assentamos que a dita aguardente se faça
de hoje em diante, e que seja por via de estanco e contrato, em recompensa
do subsidio dos vinhos, e da licença (...)
133
De uma forma geral, estas eram as três grandes sugestões que a câmara visualizava
como maneira de aumentar a arrecadação. A restrição ao estabelecimento de frota e os
privilégios da Companhia do Comércio sufocavam o desenvolvimento financeiro da
capitania, e os camaristas acreditavam que se as taxações fossem aplicadas sobre os
gêneros ultramarinos como o gado que era proposto na representação
134
e não
metropolitanos, como o vinho, seria menos dispendioso para os produtores fluminenses.
Complementando a lista, as restrições impostas ao aguardente deveriam ser retiradas, já
que era um produto importante para a manutenção da economia local e uma outra
possibilidade de verbas utilizadas para a guarnição. Na verdade, sobre este último ponto, os
camareiros apenas reivindicavam que Salvador Correia de Sá e Benavides tivesse a mesma
atitude que D. Luís de Almeida Portugal, e fizesse vista grossa a proibição de
comercialização da geribita em detrimento do vinho português.
Através desta representação feita ao governador fica visível e como a sociedade
ultramarina era calcada na barganha e na negociação, chegando ao ponto da existência de
uma íntima interdependência entre os vassalos ultramarinos e os administradores régios.
Marcados pelas dificuldades e reveses das condições coloniais, os colonos salientavam,
132
Ibidem, pp. 365-367.
133
Ibidem, pp. 367-368.
134
Sobre esta questão do imposto sobre gêneros tropicais e a utilização do comércio do gado para atender as
expectativas da Câmara de Vereadores assim mencionaram: (...) o gado desta cidade se vende o arretel por
10 réis, sendo que em todo o Brasil se vende por mais, que daqui em diante se vendesse por 15 réis,
aplicando-se estes 5 réis para ajudar do sustento do presídio, nomeando-se as pessoas que hão de cobrar
este dinheiro com toda a boa arrecadação pelos ditos oficiais da Câmara se porão considerando que este
acrescentamento não dá, nem tira aos criadores e senhores de engenho mais nem menos valor as suas
boiadas, porque os donos delas os hão de vender a razão de 10 réis de libra, que é o que lucra (...) Ibidem,
p. 367.
78
constantemente, a superação destes problemas para o enraizamento no solo américo-
lusitano, o que incondicionalmente davam-lhes recursos e direitos para exigirem o
cumprimento de suas necessidades. Desta forma, a barganha ultramarina, transformou-se
numa forma de equilibrar as tensões e relações do outro lado do Atlântico, ocasionando o
aparecimento desta mútua dependência.
Com o objetivo de atender as solicitações da câmara, Salvador Correia de Sá,
elaborou um recebimento que tange única e exclusivamente a comercialização do
aguardente, que para isso criava o cargo de administrador e recebedor dos subsídios da
aguardente, investindo-o a Francisco Monteiro Mendes,
135
responsável pela fiscalização do
cumprimento das ordens do governador. Sobre a aguardente o recebimento determinava
que:
porquanto está assentado que se faça a aguardente livremente por
todos os engenhos, podem recrescer algumas duvidas com que se não
consiga o fim deste meio, se assenta que cada engenho seja obrigado a
declarar se quer fazer o aguardente ou não, o que farão dentro de todo o
mês de Fevereiro, e o que quiser fazer será obrigado a entregar cinco pipas
a ordem do Administrador, que lhes mandará pagar a razão de 8$000 réis
postas nesta cidade.
136
Apesar do caráter livre da produção exposta pela sombra do sol, na verdade a
produção e comercialização da geribita ainda mantinha algumas restrições. Será, por
exemplo, o administrador o grande responsável por parte da comercialização, pois
Francisco Monteiro Mendes era o único que poderia comprar o gênero tropical ou aquelas
pessoas que o mesmo nomear. Os senhores de engenho que estavam autorizados a produzir
a bebida podiam vender apenas uma ou duas pipas às tabernas do próprio engenho, em
valor estabelecido em quatro patacas e meia por cada canada, pagando 8$000 réis pela pipa
e 4$000 réis das vantagens que lhe foram concedidas ao administrador.
137
A quantidade
inumerável de obrigações não paravam por aí. Caso os homens ultramarinos quisessem
exportar, também imputavam-lhes vários encargos:
todos os senhores de engenho cumprindo sua obrigação das demais
que fizerem querendo-a embarcar para Angola o poderão fazer livremente,
dando os 9$000 reis para o presídio e água da Carioca, e para outra parte,
135
Recebimento do Governador Salvador de Sá e Benavides sobre a cobrança da finta para sustentação da
infantaria. Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit. , Volume III, p.p. 370-371.
136
Ibidem, pp. 371-372 , Grifo nosso.
137
Ibidem, p. 372.
79
mas este privilégio o terão os senhores de engenho que a fizerem, e havendo
algum comboio ou embarcando-se sem licença do administrador, pagará
80$000 réis o vendedor, e o comprador outros 80$000 réis, e o senhor do
navio que a levar outros 80$000 réis.
138
Acredito que não eram essas liberdades que os produtores de aguardente tanto
sonhavam, principalmente porque tinham que pagar constantemente 14$000 réis para
suprir as necessidades do presídio e 2$000 réis para as obras da Carioca. Além disso,
segundo Vivaldo Coaracy, Francisco Monteiro Mendes não era visto com bons olhos pelos
fluminenses, seja por sua caracterização como cristão-novo, seja pela intermediação dos
negócios escusos que envolviam Salvador Correia de Sá e Benavides.
139
Mas, quando
menos se esperava, tudo que se tinha proposto voltava a estaca zero:
não tardou Salvador Benavides a perceber o que talvez lhe tivesse
escapado, que a resolução da câmara por ele aprovada representava
flagrante violação dos privilégios da Companhia de Comércio e viria
prejudicar os interesses daqueles a quem ele desejava servir. Alegando
então que não seriam suficientes os recursos votados pela câmara, o
governador anulou a aprovação que havia dado à proposta.
140
A suspensão das medidas implementadas pelo próprio governador meses antes,
vieram acompanhadas da imposição de um novo tributo desta vez de forma autoritária: (...)
tal lançamento seria feito tão severamente que ainda os mais ricos pagariam somente
8$000 réis, regulando os fintadores as possibilidades de cada um e os coletados pagariam
mensalmente por ser assim mais suave a todos.
141
Se as revogações a comercialização não agradavam totalmente os produtores
fluminenses o seu cancelamento aliado a um outro tributo não deixava nada contentes os
ultramarinos depois de tanto desgaste para a negociação. Eximindo-se da discussão da
nova tributação, a sombra do sol, ordenado pelo monarca, rumou para a vila de São Paulo,
deixando em seu lugar Thomé Correia de Alvarenga, seu primo e já um antigo conhecido
dos moradores fluminenses. A sombra interina acompanhou de perto o início da revolta,
quando
138
Ibidem, p. 374.
139
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 162.
140
Ibidem, p. 162. Ver também Charles R. Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola, pp. 324-325.
141
José Vieira Fazenda. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 4
Volumes, Volume 2, 1921, p. 548. Cf. também Charles R. Boxer, Op. Cit. , p. 325; Vivaldo Coaracy, Op. Cit.
, p. 162; Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América
Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1649-1769. Tese (Doutorado) Instituto de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1996, p. 23.
80
Sendo necessário pagar a infantaria e andando cobrando o dinheiro
dos procuradores da câmara pela freguesia de São Gonçalo depois de
haverem cobrado tudo o que tocava a cidade indo a casa de Jerônimo
Barbalho Bezerra, Agostinho Barbalho, João de Castilho Pinto, Domingos
Pedroso lhe não quiseram pagar (...)
142
Dessa maneira, na freguesia de São Gonçalo de Amarante a Revolta da Cachaça
tinha se iniciado. Mas por que naquela localidade? Passemos a essas questões nas alíneas
seguintes...
142
Carta de Thomé Correia de Alvarenga ao rei D. Afonso VI, Lisboa, 8 de Abril de 1661. Biblioteca
Nacional de Lisboa RES. Fundo Geral, Caixa 199, Número 47, fl. 2.
80
Capítulo 2 Dos Frutos da Terra à Cachaça: a Freguesia de São Gonçalo de
Amarante, 1500-1660
"São Gonçalo já foi homem
Ele já foi marinheiro
Ele andou embarcado
Até o Rio de Janeiro"
(Dança da Cananéia, Alceu Maynard Araújo)
Foi na região no Minho, no final do século XII, que nasceu Gonçalo. Oriundo de
uma família nobre lusitana, morava no "Paço de Gonçalo Pereira", local que tem o nome de
seu pai. Já com sete anos foi educado no mosteiro para seguir a vida religiosa. Discípulo de
São Domingos de Gusmão, terminou a primeira etapa de seus estudos e logo em seguida
mudou-se para o Paço do Arcebispado de Braga, onde se tornou sacerdote.
1
Sua primeira experiência no exercício do cargo sacerdotal deu-se na abadia de São
Paio de Riba-Vizela. Seus textos hagiográficos destacam o desempenho do eclesiástico,
seja por sua doação aos pobres, ou pela quantidade interminável de horas que eram
reservadas à pregação e à conquista das almas.
2
O sacerdócio não fora exercido por muito
tempo por Gonçalo. Logo depois, abandonou o trabalho na paróquia e entregou-se à
peregrinação, o que rendeu a alcunha de "bem aventurado". Passou por Santiago de
Compostela, pelos túmulos dos Apóstolos Pedro, e Paulo e pela Terra Santa.
3
1
Rui Aniceto Nascimento Fernandes. Um Santo Nome: Histórias de São Gonçalo de Amarante. Monografia
(Graduação em História). Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Formação de Professores, 2000, pp. 29-30. Cf também para maiores informações Cônego
Eugênio Moreira. São Gonçalo de Amarante. Niterói: Editora La Cava Ltda., 1987; e Alceu Maynard Araújo.
Folclore Nacional. São Paulo: Melhoramentos, Volume 2, 1967.
2
Cônego Eugênio Moreira, Op. Cit. , p. 11.
3
Rui Aniceto Nascimento Fernandes, Op. Cit. , p. 31.
81
A volta à paróquia trouxe-lhe surpresas. Seu sobrinho, que havia ficado na
administração da paróquia durante sua ausência, havia abandonado os hábitos religiosos e
dedicado-se à vida mundana. Ao chegar em sua antiga residência, desfigurado pelas marcas
da prática andarilha, não foi reconhecido pelo sobrinho que o expulsou do local. Assim, de
volta à peregrinação, chegou à região de Amarante, onde ergueu novamente uma capela em
homenagem a Nossa Senhora da Assunção, onde atendia a população em sua prática
evangelizadora.
4
A última etapa de sua vida relaciona-se à sua consagração na ordem dos
dominicanos, quando recebeu o hábito no hospital de Guimarães, tornando-se frei Gonçalo.
Logo depois, por volta de 1260 falecera deixando uma legião de devotos e seguidores, que
atribuíram-lhe santidade, contribuindo o crescimento do culto a São Gonçalo, mesmo não
sendo hoje reconhecido pela Igreja Católica com tal beatificação.
No entanto, o que nos interessa aqui não é saber se a qualidade de santo deve ou não
ser atribuída ao frei Gonçalo pela Igreja Católica, e sim a capacidade de desenvolvimento
do culto em torno de sua imagem não só no reino português, mas principalmente do outro
lado do Atlântico, no caso a América portuguesa. Logo, o "bem aventurado" será um dos
"santos" mais devotados pelos primeiros conquistadores e povoadores dos trópicos,
emprestando seu nome a vários locais espalhados pela terra dos papagaios, desde o nordeste
até a região sul. Dentre elas, encontram-se a freguesia de São Gonçalo de Amarante no Rio
de Janeiro, originada das terras doadas ao sesmeiro Gonçalo Gonçalves, em 06 de Abril de
1579, às margens do rio Imboaçu, na região gonçalense. Segundo Elaine F. Pires de
Almeida e Jucimar Silva Marques, pesquisadores da História de São Gonçalo,
quando Gonçalo Gonçalves consagrava sua capela e esse santo de
origem portuguesa, ele está transmitindo suas recordações e costumes para
esse lugar, talvez até em uma tentativa de fazer aqui uma nova Amarante, ou
ainda, uma extensão de sua infância de seus pais e de Portugal.
5
4
Ibidem, p. 32.
5
Elaine F. Pires de Almeida e Jucimar S. Marques. Imagens de São Gonçalo - Representações e Devoções.
Laboratório de Pesquisa Histórica História de São Gonçalo, Faculdade de Formação de
Professores/Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1998, Mimeo.
82
Logo, nomear um lugar com o nome de um santo também significava uma tentativa
de atribuir os mesmos aspectos e características da vida do eclesiástico. Como acontecia em
Portugal, veremos no caso específico do São Gonçalo do Rio de Janeiro que para escapar
de um naufrágio, Gonçalo Gonçalves fez uma promessa em nome do beato dominicano,
tradicionalmente cultuado em regiões próximas ao mar. E, dessa forma, o nome acabou
vingando e São Gonçalo tornou-se uma das regiões mais prósperas economicamente do Rio
de Janeiro seiscentista. Sendo assim, esta é a proposta deste capítulo: descortinar as
matrizes do enraizamento da população, da criação da freguesia e do crescimento
econômico da região gonçalense. E mais do que isso, perceber de que forma tais
características se constituirão como elementos de sustentação para a eclosão e
desenvolvimento da Revolta da Cachaça, em fins de 1660.
A Conquista do Fundo da Baía da Guanabara
Se no capítulo anterior já havíamos demonstrado as dificuldades que envolviam a
reconstrução da História fluminense, principalmente devido à escassez de fontes primárias
do século XVII, essas mesmas dificuldades agravam-se ainda mais quando qualquer
historiador envereda pela História gonçalense, sobretudo porque não há ainda uma
significativa historiografia sobre a região que nos permita o aprofundamento de vários
questionamentos, sem contar com a inexistência, praticamente, de fontes.
6
Seja como for, o
presente capítulo está imiscuído desses empecilhos e, talvez por isso, optamos por trabalhar
com o mesmo recorte estabelecido para analisar a História fluminense, mas mesmo assim
6
A documentação gonçalense do século XVII resume-se ao livro de batismo, de casamentos do Arquivo da
Mitra Arquidiocesana de Niterói; o alvará da criação da freguesia, localizada no Arquivo Nacional; os dados
esparsos do primeiro cartório de ofício de notas, sob posse do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro; e
as informações sobre concessões de terras de José de Sousa Pizarro e Araújo, publicado pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
83
não é demais lembrar que historicamente a região gonçalense também possui suas
especificidades.
Se durante quase trinta anos a entrada da baía da Guanabara foi profundamente
marcada pelo desprezo dos portugueses para com essas terras, o que se dirá das regiões
mais distantes da mesma baía, por exemplo, a sua margem oriental. Os lucros auferidos
com o comércio na Ásia, fizeram das terras américo-lusitanas meros postos de
abastecimento, ou como nos chama atenção Laura de Mello de Souza, prisões abertas para
que os degredados fossem despejados.
7
A pseudo expedição "colonizadora" de Martim
Afonso de Souza, em 1532, não conseguiu cumprir seu principal objetivo nessas terras: o
enraizamento da população. A própria capitania hereditária destinada ao "colonizador", que
compreendia as terras entre Cabo Frio e a Cananéia, contemplou muito mais a região de
São Vicente do que as margens da baía da Guanabara.
8
Desta forma, somente após a efetiva ocupação dos franceses nas regiões
fluminenses que podemos observar uma mudança significativa na paisagem não só da
margem ocidental, mas como também da banda oriental da baía.
9
Como vimos, entre 1565-
1575 foram concedidas por volta de 111 sesmarias somente às margens da Guanabara.
Nessa reconfiguração territorial implementada pela coroa portuguesa, é visível a
superioridade da margem oriental da baía:
7
Sobre o papel do Oriente no estabelecimento do desprezo dos portugueses em relação à América Cf. Luis
Felipe Thomaz. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1985; Sanjay Subrahmanayam. O Império Asiático
Português (1500-1700) - Uma História Política e Econômica. Lisboa: Difel, 1995; Fréderic Mauro. Portugal,
Brasil e o Atlântico, 1570-1670.Lisboa: Estampa,1997; e Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (Dir.).
História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 4 Volumes, 1998. No que tange a concepção
da América portuguesa como prisão aberta, Cf. Laura de Mello e Souza. O Diabo e a Terra de Santa Cruz.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986; ou da mesma autora, O Inferno Atlântico. São Paulo: Companhia das
Letras, 1983.
8
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Especial de Comunicação Social. Cadernos de
Comunicação. Rio de Janeiro: Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, Volume 2, 2002, p.24.
9
Para o aprofundamento sobre as questões que envolvem a constituição da França Antártica, conferir o
Capítulo 1 - A Capitania do Rio de Janeiro e a Política Colonial Portuguesa, 1500-1662 desta mesma
dissertação.
84
Quadro III - Comparação entre São Gonçalo e as Outras Regiões da Baía da
Guanabara por Década (1565-1665)
Número de sesmarias
concedidas à banda oriental
Ano
Número de Sesmarias
São Gonçalo
Outras regiões**
1565-1575 111 13 62
1575-1585 59 4 20
1585-1595 53 0 18
1595-1605 64 8 28
1605-1615 82 0 26
1615-1625 52 4 32
1625-1635* 50 4 27
1635-1645* 14 0 9
1645-1655 35 1 18
1655-1665 27 0 9
1565-1665 (total) 557 249
Fonte : Tabela construída a partir dos dados fornecidos por José de Souza Pizarro & Araújo. “Relação das Sesmarias da
Capitania do Rio de Janeiro. Extraída dos Livros e Registros do Cartório do Tabelião Antônio de Carvalho de 1565 a
1796” IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Tomo 63, Parte 1, 1900, pp. 93-153.(*) Há uma lacuna nas informações do Cartório pesquisado por José de
Souza Azevedo Pizarro & Araújo entre 1632 a 1641, onde os dados só reaparecem em 1642.(**) As outras regiões
compreendiam Saquarema, Inoã, Inhomerim, Maricá, Macacu e Guapimirim.
O que estamos denominando de margem ou banda oriental da baía da Guanabara
neste trabalho compreendia, no século XVI-XVII, as regiões cortadas pelos rios
Guaxindiba, Magepe, Inhomirim, Suruí, Macacu, Iboaçu ou Ibirapitanga, como também as
localidades de Saquarema, Cabo Frio, Maricá, Guapimirim e Itambi conforme demonstrado
no mapa de Luís Teixeira da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e da baía da
Guanabara feito entre 1573-1578 (Ver o primeiro mapa em anexo). Esse registro
cartográfico feito por um funcionário régio, demonstra brilhantemente que, em primeiro
lugar, o foco de atenção da coroa portuguesa ainda era a margem ocidental, já que a cidade
do Rio de Janeiro é mostrada enraizada, intuito evidente de afastar qualquer possibilidade
de ataque externo. Além disso o mesmo registro cartográfico nos possibilita constatar que o
processo de distribuição de sesmarias que se deu ao longo do século XVI terá como
85
parâmetro norteador os rios afluentes da baía, fundamentais para o desenvolvimento da
região.
Foram esses rios que possibilitaram a circulação dos primeiros conquistadores e
povoadores no fundo da baía da Guanabara. Eles além de interligarem as regiões
interioranas com o litoral, justamente por serem rios caudalosos, também possibilitaram a
alimentação básica para essa população nos seus primeiros tempos, peixes.
10
Já que não
podemos esquecer, como vimos no capítulo anterior, que por serem regiões formadas por
pântanos, a dificuldade imediata para implementação da cultura agrícola foi uma
realidade.
11
Voltando às conclusões que o quadro pode nos oferecer, salta aos olhos a enorme
quantidade de sesmarias que a margem oriental da baía recebeu. É obviamente uma
intenção bastante visível de povoar, enraizar e fixar os conquistadores da região para afastar
o perigo de um novo ataque francês ou de qualquer outra monarquia européia. A política
portuguesa era estrategicamente perfeita. Dividida por eixos de ação, quatro regiões foram
beneficiadas: a região entre Inhaúma e Irajá; a região entre Nova Iguaçu e Irajá; a região
entre Magé e Macacu; e, por fim, a região gonçalense.
12
As duas primeiras, compreendem a
margem ocidental enquanto a duas últimas a margem oriental da baía da Guanabara,
assegurando a ampla defesa da capitania.
13
Há de se mencionar, também, que por serem regiões onde prevalecia a presença
indígena, a política de distribuição de sesmarias coube como uma luva para a formação de
um cordão de isolamento para os índios mais bravos. As sesmarias serviam como um
escudo que protegia a cidade do Rio de Janeiro seja do ataque estrangeiro, seja do ataques
dos nativos. No que se refere aos nativos essa conjuntura contribuiu para a formação de
10
Luiz Palmier. São Gonçalo - O Cinqüentenário. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1940, Capítulo 2 - Geografia.
11
Alberto Ribeiro Lamego. O Homem e a Guanabara. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1964.
12
Francisco Carlos Teixeira da Silva. A Morfologia da Escassez: Crises de Subsistência e Política Econômica
no Brasil Colonial (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese (Doutorado em História). Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal Fluminense, 1990, p. 326.
13
A título de comparação e melhor visualização, encontra-se em anexo o segundo mapa referente ao Estado
do Rio de Janeiro do ano de 2001 com a divisão dos municípios do Estado.
86
aldeamentos indígenas que facilitava a catequização pelos jesuítas e a exploração escrava
pelos senhores de engenho.
14
Todavia, apesar de bem intencionada, a coroa portuguesa não aliava outras medidas
conjuntamente com a distribuição de terras, para enraizar os primeiros sesmeiros. A mesma
resumia-se a exigir deveres que o beneficiado com a terra deveria cumprir, como por
exemplo, fazer da terra produtiva em três anos, não possuir pessoa eclesiástica ligada à
sesmaria e pagar impostos à coroa. Tudo isso fez com que um número reduzidíssimo de
"sortudos" ou "infelizes", deixo para o leitor julgar, recebessem os primeiros lotes de terra.
Para se ter uma idéia do elitismo que envolvia a distribuição de terras, Arno Wehling e
Maria Wehling nos informam que para transformar aquelas enormes sesmarias em um
engenho de médio porte era necessário ter no mínimo em seus cofres particulares vinte
conto de réis, considerada, diga-se de passagem, uma razoável fortuna para a época.
15
Voltamos, então, às conclusões de João Fragoso, no qual muitos daqueles que foram
contemplados por um quinhão do seletíssimo grupo dos sesmeiros lusitanos, já haviam
ocupado algum cargo administrativo na América portuguesa, ou seja, faziam parte da
burocracia monárquica lusitana nas regiões americanas.
16
Cabe agora, então, averiguarmos
até que ponto tais conclusões podem ou não ser aplicada no caso específico da região
gonçalense, acompanhando de perto as trajetórias dos primeiros contemplados com
sesmarias na banda oriental da baía da Guanabara.
Logo após a expulsão dos descendentes da dinastia dos Valois do Rio de Janeiro,
em 1565, três homens receberam terras na região da aldeia de Itaoca, Ibirapitanga e
Quarity: José Adorno, Pedro Martins Namorado e Antônio Rodrigues de Almeida.
José Adorno, oriundo de Gênova, descendia de uma família plebéia italiana.
Casando-se com Catarina Monteiro, teve vários filhos, mas mesmo assim pensava em
ingressar na Companhia de Jesus caso enviuvasse, isso por conta de sua intensa relação
14
Cf. Maria Regina Celestino de Almeida. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial Novos Súditos
Cristãos no Império Português. Tese (Doutorado em Antropologia). Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2000.
15
Arno Wehling e Maria J. C. Wehling. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994,
pp. 202-203.
16
João Fragoso. "A Nobreza da República: Notas Sobre a Formação da Primeira Elite Senhorial do Rio de
Janeiro (Séculos XVI-XVII) IN: Topoi. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, pp. 53-54.
87
com os jesuítas.
17
Ao longo de seus 101 anos, foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia
de Santos, na capitania de São Vicente, em 1560; participou ativamente da conquista do
Rio de Janeiro, em 1564, e do armistício de Iperoig na pacificação dos tamoios em São
Vicente.
18
Foi considerado um dos introdutores da economia açucareira na região vicentina,
isso porque seu engenho, São João, que tinha como gerente Heliodoro Ebanos, produzia por
volta de 1.000 arrobas de açúcar e possuía 70 escravos.
19
No Rio de Janeiro recebeu em 4
de Setembro de 1565 400 braças ao longo do mar e 600 pela terra a dentro, da banda
dalém defronte desta cidade, em Piratininga
20
, depois adquiriu 3000 braças e 4500 para o
sertão àquele 1500 em quadra da banda de Cabo Frio uma água que se chama Quarity até
Birapitanga
21
um dia depois da sesmaria anterior.
Pedro Martins Namorado morava em São Vicente, onde ocupava o cargo de juiz
pedâneo da Vila de Santos desde 1544
22
, quando aliou-se a Estácio de Sá na fundação da
cidade do Rio de Janeiro. Como retribuição, recebeu junto com José Adorno as 3000
braças e 4500 para o sertão àquele 1500 em quadra da banda de Cabo Frio uma água se
chama Quarity, em Setembro de 1565.
23
Mas, mesmo antes, já possuía terras na aldeia de
Itaoca, pois quando Antonio Rodrigues de Almeida recebeu suas terras, em 6 de Janeiro de
1565, mencionava a proximidade com os quinhões de Pedro Martins.
24
Além de receber
terras no fundo da baía, também conseguiu terras na ribeira da Carioca, em 5 de Novembro
de 1565.
25
Um ano depois, ocupava o cargo de juiz ordinário no Rio de Janeiro, onde
também foi oficial da câmara, em 1569.
Como foi mencionado, Antonio Rodrigues de Almeida foi legalmente contemplado
com terras na aldeia de Itaoca, chãos que, segundo ele, já eram de seu domínio desde 1549,
o que porventura o caracterizaria como um dos primeiros povoadores da orla oriental da
17
Elysio Belchior. Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:Livraria Brasiliana
Editora, 1967, pp. 16-20.
18
Ibidem, p. 18.
19
Ibidem, p. 19.
20
Ibidem, p. 18.
21
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 93.
22
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 339-340.
23
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 93.
24
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 339-340
25
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 95.
88
baía da Guanabara.
26
Foi cavaleiro fidalgo da casa del-rei, tabelião público, tabelião
judicial, tabelião de notas e escrivão da câmara
27
denotando ser pessoa da mais segura
honra e status na sociedade fluminense quinhentista.
Outro sesmeiro que teve as terras de Pedro Martins Namorado como referência para
a demarcação de seus domínios foi Antonio da Silveira. Morador no Rio de Janeiro em
1570, este mestiço da Índia recebeu 600 braças de largura e 800 para o sertão na cabeceira
de Pedro Martins Namorado, em 8 de Novembro de 1567.
28
Apesar de ter recebido, em 1565, 800 braças ao longo do mar e 1200 pela terra a
dentro ao longo deste rio para a parte de Imbu
29
Diogo da Rocha Sá somente terá suas
terras na região gonçalense dois anos depois, em 1567, localizada em Ibirapitanga, próximo
a Antonio Marins.
30
Natural de Vila Viana, casou-se nos trópicos com Isabel Barreto, com
quem morava na Bahia. Lá tinha um engenho às margens da ribeira que desembocava em
Pirajá, o que evidentemente fez com que Diogo da Rocha Sá não tomasse propriedade de
nenhuma terra no Rio de Janeiro. De forma bastante semelhante ocorreu com Sebastião
Lourenço, agraciado com 600 braças ao longo do rio e 800 para o sertão da banda
Suasunhã
31
, em 20 de Outubro de 1567, que desistiu de ocupar as terras. Infelizmente não
sabemos nada além destas informações sobre ele, o que nos possibilita recorrer à mesma
hipótese constatada no caso do parente de Salvador Correia de Sá e Benavides.
Caso completamente diferente ocorreu com Antonio de Marins. Nascido em Barros,
no ano de 1523, Antonio de Marins Coutinho, um dos principais conquistadores da região
gonçalense, faleceu vítima de uma cilada armada por índios, em 1584.
32
Vivendo entre as
capitanias de São Vicente e Rio de Janeiro, casou-se com Isabel Velho com quem teve
Diogo de Marins Loureiro; Isabel de Marins, casada com Crispim da Cunha Tenreiro;
Maria de Marins, esposa de Thomé de Alvarenga; Francisco Marins Loureiro; Teodoro
26
Salvador de Mata e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVI. Rio de Janeiro: Companhia
Brasileira de Artes Gráficas, 1995, p. 48.
27
Ibidem, p. 48.
28
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 98; Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 447-448.
29
Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 394.
30
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 98.
31
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 98.
32
Carlos G. Rheingantz. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora,
1967, Volume 2, p. 519.
89
Ebanos e o bispo Antonio de Marins Loureiro.
33
Enfim, era uma família muito bem
constituída e alicerçada por laços matrimoniais que solidificavam a importância dos Marins
na capitania do Rio de Janeiro.
A família Marins atesta uma situação recorrente encontrada no mundo ultramarino:
a relação entre a formação de famílias e a colonização. É lícito afirmar que o
desenvolvimento do processo colonizador deu-se posteriormente ao enraizamento das
primeiras famílias através do matrimônio, configurando a formação de redes clientelares e
de interesses.
34
Voltando ao patriarca desta família, podemos dizer que ocupou diversos cargos. Em
São Paulo, foi juiz ordinário (1562 e 1564) e almotacé (1563); no Rio de Janeiro, foi
provedor da fazenda real (1568), oficial da câmara (1570 e 1571), juiz ordinário (1571) e
escrivão do navio Santo Antônio (1558).
35
Da mesma forma, também obteve várias
concessões de terra. Em São Vicente terras no campo Ipiranga, em 1561
36
; no Rio de
Janeiro, iniciou seu domínio com 3000 braças de largo e 6000 para o sertão no rio
correndo para ele acima, em Fevereiro de 1568.
37
No mês seguinte, desistiu da sesmaria
que fora transferida para Araribóia.
38
Logo depois, recebeu 4500 braças e 900 braças para o
sertão por está baía dentro donde acaba Martim Afonso em Eubirapitanga, em 23 de
Março de 1568.
39
Essas terras foram dadas anteriormente a Diogo da Rocha Sá, que como
morava na Bahia, não assumiu as terras. Em seguida, foi agraciado com 3000 braças ao
longo do mar e 6000 braças para o sertão principiando a medir de Eubirapitanga, no final
de Diogo da Rocha, em 23 de Março de 1568.
40
Em 12 de junho de 1570 recebeu mais 600
braças de terras e, por fim, mais 500 braças em quadra na praia que esta de frente da ilha
de Maricá, em 1574.
41
33
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 314-315.
34
Cf. Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998; Maria Beatriz Nizza da Silva. O Sistema de Casamento no Brasil Colonial.
São Paulo: Edusp, 1984.
35
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 312-315.
36
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 314-315.
37
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 93.
38
Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 314.
39
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 100.
40
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 100.
41
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , pp. 102-103.
90
Percebe-se claramente que a grande quantidade de terras fará dos Marins,
inevitavelmente, uma das grandes proprietárias da região gonçalense. Não sendo à toa, que
foi sob suas terras que se desenvolveu o primeiro engenho de São Gonçalo, Engenho Nossa
Senhora das Neves, gerenciado por um de seus filhos, Diogo de Marins.
42
Em 1568 mais dois sesmeiros tiveram suas vidas e trajetórias costuradas ao destino
gonçalense. O alfaiate Manoel Machado, que possuiu chãos para as casas da praia da
Piassaba
43
, conseguiu da coroa portuguesa 500 braças de largo ao longo do mar e 700 para
o sertão da banda de Cabo Frio além do caminho de Pirapitanga e da data de Gaspar de
Figueiredo
44
, em 23 de Março. Enquanto isso, Gaspar de Figueiredo que já havia recebido
várias terras na banda ocidental da baía da Guanabara, em 18 de Fevereiro de 1568
conquistou algumas braças na também região de Pirapitanga.
45
Dois anos depois, os irmãos Carrasco seriam os próximos sesmeiros gonçalenses.
Francisco e João receberam terras entre Mutuá e Guaxindiba que posteriormente foram
divididas entre os cunhados.
46
João Carrasco foi companheiro de Estácio de Sá na
recuperação da cidade do Rio de Janeiro, em 1565, e quando mudou-se para a região
fluminense solicitou a sesmaria acima mencionada.
47
Sobre seu irmão pouco sabemos,
casou-se com Neculosa de Braga, que doou as terras em 1619 ao convento da Nossa
Senhora do Carmo após a morte do marido e do filho, Domingos Braga.
48
Também morador no Rio de Janeiro, Brás Azevedo foi contemplado com 600
braças de comprido e 500 de largo em Iboassu, em 11 de Novembro de 1573.
49
Sobre ele,
apenas conseguimos descobrir que foi fiador de Lourenço Fernandes quando foi promovido
ao cargo de porteiro da Câmara.
50
A título de conclusão sobre essa primeira leva de
conquistadores da região gonçalense, restam-nos, ainda, quatro sesmeiros que receberam
suas terras em 1579, no limite daquele período que estamos denominando de conquista da
capitania ou da orla oriental da baía da Guanabara (1500-1580).
42
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina, Op. Cit. , p. 55.
43
Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 298.
44
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 100.
45
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 99.
46
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina, Op. Cit. , p. 58.
47
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 112-113.
48
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina, Op. Cit. , p. 58.
49
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 103.
50
Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 67.
91
Gonçalo de Aguiar exerceu vários cargos: escrivão da câmara (1570, 1571, 1584,
1610 e 1618), tabelião da cidade do Rio de Janeiro (1588, 1595, 1589 e 1600) e escrivão
dos órfãos (1568).
51
Casado com Inês Gomes, possuía várias residências na cidade nas
imediações da Santa Casa da Misericórdia e outros prédios.
52
Sua primeira sesmaria foi em
23 de Março de 1579, que constituía 1500 braças de largo e 3000 da banda direita do Rio
de Macacu entre Marins Paris
53
, depois dela mais outras duas sesmarias por ele recebido
localizavam-se na futura freguesia de São Gonçalo do Amarante (Guaxindiba, em 1596 e
1598).
54
O tabelião da cidade do Rio de Janeiro em 1583, Francisco Lopes já havia ocupado
este mesmo cargo em São Vicente e Santos, em 1558 e 1571 respectivamente. Entre esses
anos, em 1564, foi juiz ordinário em São Paulo, substituindo Antonio de Marins que se
mudava para o Rio de Janeiro,
55
até sua vida tomar o mesmo rumo que seu antecessor no
cargo paulista ao receber uma légua de terra em Maryohy ao longo de Marim Parins, em
1579.
56
Voltando à família Marins, se é que saímos dela até agora, se levarmos em
consideração os laços de interesses que envolviam as famílias fluminenses, chegamos ao
genro do patriarca daquela família, Crispim da Cunha Tenreiro. Nascido em Portugal no
ano de 1547, foi camareiro (1587), almoxarife real (1588), provedor dos ausentes (1593),
provedor da fazenda real (1591) e novamente camareiro em 1612.
57
Quanto às terras por ele
abraçadas consta um pedaço de terra da banda dalém da Cidade Velha, essa a 8 de
Fevereiro de 1574
58
e mais terras ao longo do rio de Guaxindiba com 3000 para o sertão,
em 23 de Julho de 1579.
59
Enfim, mesmo que ele não tivesse ligações com a região
gonçalense no que tange à propriedade de terras, em termos matrimonias seus interesses já
estavam sedimentados do outro lado da baía.
51
Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 26.
52
Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 26.
53
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 105.
54
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 110.
55
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 285-286.
56
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 105.
57
Elysio Belchior, Op. Cit. , pp. 114-115.
58
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 103.
59
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 105.
92
De tudo que foi exposto até agora, antes de continuarmos cabem algumas
observações. Levando em consideração que acreditamos que o período responsável pela
ocupação da capitania do Rio de Janeiro compreende o momento da chegada dos
portugueses à América, em 1500, até a efetivação da união ibérica, em 1580, podemos dizer
que, no que se refere a São Gonçalo, todos aqueles que receberam terras ao longo dos vinte
e cinco anos após a expulsão dos franceses tinham de alguma forma passado por cargos
administrativos no mundo américo-lusitano. Por outro lado, um problema de imediato se
instaurou nessas mesmas regiões: a distribuição de terras não acompanhou necessariamente
o enraizamento dos sesmeiros.
Dentre todos aque les agraciados com quinhões em solos gonçalenses, apenas
Antonio de Marins temos a certeza de que se enraizou na região, o que fez com que ela se
tornasse um prato cheio para prática do arrendamento. Como as dificuldades eram muitas,
seja impostas pela coroa, ou por questões naturais como o problema do solo, o bravo
gentio e a inconstâncias da região e muitas vezes estes sesmeiros tinham terras em outras
regiões mais bem localizadas, como na Bahia, a opção pela orla oriental da baía da
Guanabara ficava em segundo plano. O arrendamento tornou-se, então, uma opção fácil
para o acúmulo de terras e a conquista de rendimentos anuais sem a utilização de qualquer
investimento sobre aquelas propriedades. Tudo isso fez com que muitas vezes, as terras
doadas em meados no século XVI somente se tornasse produtivas no século seguinte, sendo
justamente o que ocorreu com as terras de Antonio de Marins e o Engenho Nossa Senhora
das Neves.
Remando contra a maré, encontra-se nosso último sesmeiro deste período, Gonçalo
Gonçalves. Em 6 de Abril de 1579, foi contemplado com 1000 braças e 1500 de
cumprimento em Suasunham no Porto de Birapitanga
60
dando início assim ao que depois
se convencionou chamar de freguesia ou vigairaria de São Gonçalo. Em sua vinda para
América atravessou várias agruras, sendo assim, resolveu homenagear seu santo de
devoção, São Gonçalo de Amarante, erguendo uma capela em seu nome às margens do rio
Imboaçu, naquela época chamado de Suasunham. A prática de nomeação de lugares com o
nome de São Gonçalo tornou-se recorrente em regiões marítimas ou em cidades portuárias.
Foi, então, ao redor da sesmaria concedida a Gonçalo Gonçalves, e mais do que isso, da
60
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 105.
93
capela de São Gonçalo que começou a efetiva colonização da orla oriental da baía da
Guanabara.
A Colonização da Freguesia de São Gonçalo de Amarante
Existe uma intrínseca relação entre a doação de terras desenfreada após 1565 e a
consolidação do enraizamento da população no Rio de Janeiro no final do século XVII. Em
relação as regiões gonçalenses vimos que isso deve ser relativizado, apesar da construção
das bases do que seria em 1644 a freguesia tenham sido alicerçadas naquele momento. Tal
flexibilização fora feita na aposta do que seria o período da real implementação da política
colonizadora na localidade durante o domínio dos Filipes. No entanto, um olhar mais atento
no Quadro III nos revela uma outra conjuntura. Se entre 1565 e 1580, período que estamos
chamando de conquista do fundo da baía da Guanabara, foram doadas 17 sesmarias para a
região gonçalense, representando quase uma sesmaria concedida pela coroa a cada ano;
durante a união ibérica, ou seja, ao longo de sessenta anos, foi distribuída uma quantidade
ínfima de 16 sesmarias, o que corresponde a 0,26 sesmarias por ano.
Ainda no final do século XVI, temos os seguintes sesmeiros: Francisco Martins,
Pedro da Silva e Gonçalo de Aguiar. Já mencionado anteriormente, Gonçalo de Aguiar vai
receber mais duas sesmarias na região de Guaxindiba, uma em 1596 e a outra em 1598.
61
Nascido por volta de 1560, Francisco Martins faleceu antes de 1621; era casado com Ana
Rodrigues com quem dividia as 300 braças de terra ao longo do rio Guaxindiba que recebeu
da coroa portuguesa em 22 de Dezembro de 1597.
62
Pedro da Silva, no mesmo dia e
ano, foi contemplado com 300 braças também ao longo do rio Guaxindiba.
63
No início do
século seguinte, percebe-se uma clara política de povoar a região em torno do rio
Guaxindiba, isso porque das restantes sesmarias apenas as concedidas ao padre vigário
61
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , pp. 109-110.
62
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 110; Elysio Belchior, Op. Cit. , p. 318; Carlos G.
Rheingantz, Op. Cit. , Volume II, p. 535.
63
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 110.
94
Martins Fernandes (1603, Mutuá), a Manuel dos Rios (1620, sertão da banda dalém) e a
André Dossen (1620, datas na banda dalém) não se situavam ao longo daquele rio, diferente
do que ocorreu com os outros sesmeiros (Antonio Nabo, Diogo Teixeira de Carvalho,
Miguel Ayres Maldonado, João Castilho Pinto, Francisco Cabral da Távora, Pedro
Fernandes, Baltazar da Costa, Bento da Costa e André Dupin).
Sendo assim, cabe o esclarecimento de uma grande dúvida: o enraizamento da
população gonçalense será possível ao longo do período filipino com essa reduzidíssima
distribuição de terras? O terceiro mapa que se encontra em anexo, feito por João Teixeira
Albernaz, em 1640, atesta que realmente o enraizamento se concretizou, já que mesmo
antes de se tornar uma freguesia possuía o reconhecimento dos moradores ou daqueles que
passavam pelo Rio de Janeiro, caso contrário a referência a existência àquela região não
estaria no mapa. Apesar de termos certeza do desenvolvimento populacional da região
gonçalense ao longo do Seiscentos, por outro lado não temos a menor idéia de como isso
foi possível, lacuna obviamente aberta devido á escassez das fontes primárias sobre a
região. Mesmo com apenas 16 sesmarias ao longo deste sessenta anos e com o precário
enraizamento estabelecido na centúria anterior, será nesse período que se constituirá a
chamada freguesia de São Gonçalo. Uma das hipóteses que não pode ser desprezada para
responder essa pergunta encontra-se no sucesso concreto da distribuição dessas sesmarias
após 1580, diferentemente do que aconteceu nos anos anteriores, quando seus sesmeiros
preferiram regiões mais prósperas, ou não conseguiram enfrentar os nativos e se
desencantaram com as péssimas condições da terra que encontraram. Desta forma, um olhar
mais atento para economia gonçalense nos ajudará a testar as argumentações até então
levantadas.
Dois importantes pesquisadores sobre a História de São Gonçalo, Salvador Mata e
Silva e Evadyr Molina, em seu estudo sobre a região no Quinhentos propõem duas etapas
da vida econômica gonçalense. Em um primeiro momento, que compreendeu até pelo
menos 1567, a economia seria pautada nos chamados bens de consumo indígena, entre eles
a laranja, o aipim, o caju, o abacaxi e o pau-brasil.
64
Evidentemente essa etapa remete-se às
primeiras tentativas de reconhecimento da região até a efetiva expulsão dos franceses do
território fluminense. Apesar do desprezo, será através da comercialização do pau-brasil,
64
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVI, Op. Cit. , pp. 72-74.
95
sem dúvida alguma o principal gênero gonçalense no século XVI, que o relacionamento
entre os portugueses e os índios tupinambás será travado.
65
Logo, a banda oriental da baía da Guanabara contribui para fazer da América, como
disse Frédéric Mauro, "um país de tronco vermelhos ou violáceos"
66
, cuja importância
ultrapassará o Quinhentos e chegará até o final do Seiscentos na freguesia de São Gonçalo
de Amarante.
67
A mandioca, além de ser um produto utilizado para abastecimento da
própria região, se configurou, ao longo do tempo, como um destacado produto de troca com
as capitanias brasílicas e, posteriormente, com a região africana. Por fim, a laranja,
atualmente bastante produzida no município, consagrou a afirmativa de alguns viajantes
que denominavam a região fluminense como locus dos frutos da terra.
Em um segundo momento, especificamente após 1570, Mata e Silva & Molina
apostam numa metamorfose econômica. Vista por este prisma, a produção açucareira, a
expansão da produção da laranja e o estabelecimento da criação de gado dariam o tom da
economia gonçalense após o definitivo afastamento dos franceses das regiões fluminenses,
pelo menos no século XVII.
68
Buscando uma relativização destas informações, pensamos
um pouco sobre o Quadro IV,que nos demonstra uma comparação do número de engenhos
na América, na capitania do Rio de Janeiro e na região de São Gonçalo:
65
Como a discussão sobre a utilização da mão de obra indígena e os contatos estabelecidos entre os nativos e
os portugueses fogem da proposta deste trabalho, para maiores informações Cf. Adauto Novaes (Org.) A
Descoberta do Homem e do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Gonçalves de Magalhães. A
Confederação dos Tamoios. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Cultura, 1994; Maria C. Tenório (Org.)
Pré-História da Terra Brasilis. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999; Manuela Carneiro da Cunha. "Introdução
a uma História Indígena" IN: História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; Ronaldo
Vainfas. A Heresia dos Índios. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995. Para o estudo específico sobre
São Gonçalo Cf. Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVI, Op. Cit. ; Stuart
Schwartz. Segredos Internos, Op. Cit. , especialmente o capítulo 2; e Alexander Marchant. Do Escambo à
Escravidão: as Relações Econômicas de Portugueses e Índios na Colonização do Brasil, 1500-1580. São
Paulo/Brasília: Editora Nacional/INL, 1980.
66
Frédéric Mauro. Portugal, Brasil e o Atlântico, 1570-1670, Op. Cit., Volume I, p. 163.
67
Cf. Bernardino José de Sousa. O Pau-brasil na História Nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1978.
68
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVI, Op. Cit. , pp. 74-75.
96
Quadro IVNúmero de Engenhos da Freguesia de São Gonçalo do Amarante em
Comparação com a Capitania do Rio de Janeiro e a América Portuguesa
Capitania do Rio de
Janeiro
Freguesia de São Gonçalo
Ano
América
Portuguesa
N.º
(%)
N.º
(%)/Rio de
Janeiro
(%)/América
Portuguesa
1570 60
1
*** *** *** *** ***
1583-85 115
2
3
6
2,6 1
10
33
0,8
1612 192
3
14
7
7,2 ***
***
***
1629 346
4
60
8
17 13
11
21 3,8
1639 346
5
110
9
31 13 11 3,8
1647 346 110 31 18
12
16
5,2
Fonte : (1) Pero Magalhães Gandavo. Tratado da Terra do Brasil. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, s. d.; (2) Fernão
Cardim. Tratado da Terra e da Gente do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1978; (3) Diogo de Campos Moreno. Livro
Que Dá Razão do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fac-Similar, 1968; (4) Pedro Cadena de Vilhasanti.
Descripción de la Provincia del Brasil IN: Fréderic Mauro. Portugal, Brasil e o Atlântico. Lisboa: Estampa, 1989; (5)
Dados estimados a partir dos relatos de Pedro Cadena; (6) Fernão Cardim. Tratado da Terra e da Gente do Brasil, Op.
Cit.; (7) Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 10
Volumes, Volume 8, 1949; (8) Pedro Cadena de Vilhasanti. Descripción de la Provincia del Brasil, Op. Cit.; (9) Frédéric
Mauro. Portugal, O Brasil e o Atlântico (1570-1660). Lisboa : Estampa, 1989, Volume 1, p. 255-257; (l0) Salvador Mata
e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVI. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1995;
(11) Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVII. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de
Artes Gráficas, 1997; (13) Alvará e Mercê Que Sua Majestade Faz com o Governador e Perpétuo Administrador que é do
Mestrado do Rio de Janeiro se Erigiu Quatro Vigairarias de Novo. Arquivo Nacional. Códice 61, Volume 1,pp. 216v-
219v.
Diante dessas informações, podemos tecer algumas conclusões no que diz respeito a
economia gonçalense. É visível no quadro acima que durante muito tempo a região
gonçalense dependerá do que Mata e Silva & Molina denominaram bens de consumo
indígena já que o primeiro engenho daquelas bandas somente será arrolado no último
quartel do século XVI. Cabe mencionar que este terá origem nas terras concedidas a
Antonio Marins, em 1568, que de imediato não desenvolverá o engenho Nossa Senhora das
Neves. Seu filho, Diogo de Marins foi quem tornou o engenho produtivo, neste caso já em
1610, com sua mulher, Paula Rangel.
69
Isso significa dizer que a dependência com a
agricultura indígena deu-se pelo menos até fins do século XVI, quando no início da
centúria seguinte efetivamente a cultura açucareira se fez presente de forma significativa
naquelas regiões. E aí os números não mentem a região gonçalense possuía, em 1612, por
69
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina. São Gonçalo no Século XVII. Rio de Janeiro: Companhia
Brasileira de Artes Gráficas, 1996, pp. 98-99.
97
volta de 21,6% dos engenhos existentes em toda a capitania do Rio de Janeiro, resultado
bastante expressivo para um agrupamento populacional que não era nem reconhecido
perante a coroa portuguesa. O que mais uma vez comprova que não era o processo de
distribuição de sesmaria que redundava na constituição de engenhos, e sim a concessão de
terras aliado ao efetivo enraizamento populacional, com direito a formação de grupos
familiares ligados pelo matrimônio e pela rede de interesses.
Tomado como parâmetro o ano de 1647, essa estatística cai de 21,6% para 16,3%
dos engenhos fluminenses localizados na região gonçalense. Todavia, não podemos
absorver tais dados como um reflexo da queda do crescimento da importância da São
Gonçalo na economia açucareira fluminense, até porque o número de engenhos não
demonstra necessariamente a quantidade de produção realizada pelas localidades. Como os
dados quantitativos para o Seiscentos até agora não foram descortinados, adiantemos-nos
um pouco no tempo para a comprovação dessas argumentações, mesmo sabendo os
percalços e perigos que comparações com a realidade Setecentista podem nos causar.
Em seu relatório de 1778, destinado à coroa portuguesa, o administrador régio
Marquês de Lavradio conseguiu arrolar o número de engenhos e a quantidade de produção
feita em toda a capitania fluminense:
Quadro V Distribuição Geográfica da Produção Açucareira da Capitania do Rio de
Janeiro em 1778.
Distrito
Número de
Engenhos de
Açúcar
Número de
Engenhos de
Aguardente
Produção de
Açúcar
(Caixa)
Aguardente
(pipas)
Santo Antonio de Sá 17 2 255 197
São Gonçalo 24 3 623 451
Maricá 30 2 551 320
Cabo Frio 8 10 117 14
Inhomerim 6 ? 55 48
Irajá 27 2 537 329
Guaratiba 34 ? ? ?
Campos dos Goitacases 168 9 2.161 141
Total 315 28 4.299 1.500
Fonte: Relatório do Marquês de Lavradio, 1778 IN: Márcia Maria Menendes Motta. Pelas Bandas D´Além Fronteira
Fechada em um Região Policultura (1808-1888). Dissertação (Mestrado em História). Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, 1989, p. 43.
98
Percebe-se que, no que tange ao número de engenhos, a freguesia de São Gonçalo
ocupava, no século XVIII, a quinta colocação (24 engenhos) em toda a capitania, ficando
atrás de Campos de Goitacases (168), Guaratiba (34), Maricá (30) e Irajá (27)
respectivamente. No entanto, o número de engenhos não refletia em nada a produção do
mesmo gênero, pois a freguesia posicionava-se em segundo lugar (263 caixas), ficando
muito distante das absurdas 2.161 caixas produzidas pelos Campos de Goitacases. Duas
conclusões podemos tirar desses dados setecentistas: em primeiro lugar, que o provável
número reduzido de 13 engenhos, caso se considere até 1639, não significava uma baixa
produção deste gênero na região, muito pelo contrário, e aí já falando da segunda questão,
será justamente neste momento que a produção açucareira gonçalense dará uma guinada
dentro da região fluminense, pois os dados do Marquês de Lavradio posicionavam a
freguesia gonçalense na mesma segunda colocação na transição do século XVII para o
XVIII na produção açucareira.
70
Caso exemplar dessa prestigiosa posição que São Gonçalo ocupava na transição do
século XVII para o século seguinte, é o engenho Colubandê, pertencente à importante
família cristã-nova dos Vale. Sua primeira proprietária foi Cataria de Siqueira, que o
vendeu, em 1617, a Duarte Ramires de Leão, casado com Beatriz da Costa. Originados da
Holanda, da onde fugiram perseguidos pela Inquisição, ficaram conhecidos pela alcunha de
cristãos gordos.
71
A filha do casal, Isabel Gomes da Costa, passou a assumir o engenho
quando os pais retornaram à Holanda. De seu casamento com João do Vale da Silveira,
nasceu Ana do Vale, quem tomou as rédeas do engenho no final do Seiscentos, ao lado de
seus três filhos Manuel do Vale, Joseph Ramires do Vale e Simão Rodrigues de Andrade,
por não ter havido partilha dos bens quando da morte do pai.
72
70
Márcia Maria Menendes Motta. Pelas Bandas D´Além Fronteira Fechada em um Região Policultura
(1808-1888). Dissertação (Mestrado em História). Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal Fluminense, 1989, p. 42.
71
Cf. Rui Aniceto Nascimento Fernandes. A Fogueira em São Gonçalo A Ação Inquisitorial sobre os
Cristãos Novos Gonçalenses. São Gonçalo: Prêmio Evadyr Molina de Monografias, 1999 (no prelo), p. 154;
Antonio Filipe Pereira Caetano e Rui Aniceto Nascimento Fernandes. Ação Inquisitorial e a Sociedade
Açucareira em São Gonçalo. São Gonçalo: Laboratório de Pesquisa sobre a História de São Gonçalo,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, Mimeo, 1998; Lina
Gorenstein Ferreira da Silva. Heréticos e Impuros A Inquisição e os Cristãos Novos no Rio de Janeiro no
Século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultural, Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
72
Anita Novinsky. Inquisição Inventários de Bens Confiscados a Cristãos Novos. São Paulo: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1996, p. 212.
99
O engenho Colubandê da Invocação de Nossa Senhora de Monserrate, nas próprias
palavras de Manuel do Vale da Silveira quando foi preso pelo Tribunal do Santo Ofício, em
1710, era uma das ‘melhores fazendas que havia no Rio’.
73
Valendo ao todo setenta mil
cruzados, tinha em suas cercas 35 escravos, 120 bois e 7 ou 8 cabeças de gado.
74
O engenho
especializou-se na fabricação do açúcar e no corte do gado,
75
colocando-se em posição de
destaque na freguesia já no século XVII entre os demais engenhos existentes naquela
região.
O risco que se corre ao tentar projetar tais dados setecentistas no Seiscentos é cair
em uma transportação de uma referência equivocada que não responde fidedignamente a
realidade daquele momento. No entanto, a intenção ao optar por esse tipo de metodologia
ajusta-se no objetivo de tentar demonstrar que a freguesia de Campos dos Goitacases
detinha uma superioridade na produção de açúcar no século XVIII e que São Gonçalo
encontrava-se em uma posição secundária neste mesmo período. Situação diferente do que
ocorreu no século XVII. Auxiliando em nossa argumentação, Sheila de Castro Faria, ao
estudar a formação da região dos Campos dos Goitacases, nos aponta que o processo de
povoamento daquela região deu-se somente no final do século XVII e início do século
XVIII, sendo inclusive em meados do Setecentos ‘a proliferação acelerada’ dos engenhos
açucareiros. O crescimento desenfreado de Campos seria o resultado da decadência da
produção açucareira dos diversos engenhos espalhados pela baía da Guanabara e a
conseqüente dinamização do recôncavo em torno da região mineradora.
76
Para sedimentar ainda mais nossa argumentação, Sheila de Castro Faria associa,
incondicionalmente, a sedentarização das famílias no mundo luso-americano fluminense ao
sucesso da organização e do funcionamento das unidades do recôncavo.
77
Ora, se Campos
só despontou no XVIII, se nesse mesmo período o recôncavo tem uma deflação produtiva e
se o bom êxito da economia açucareira redundava no estabelecimento de grupos
populacionais enraizados, podemos dizer que a freguesia de São Gonçalo de Amarante
possuía grandes chances de ter sido a principal região produtiva deste gênero colonial e
73
Ibidem, pp. 213-214.
74
Rui Aniceto Nascimento Fernandes, Op. Cit. , p. 55.
75
Salvador Mata e Silva & Evadyr Molina, Op. Cit. , 1996, pp. 95-106.
76
Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 32.
77
Ibidem, p. 51.
100
seus derivados no Seiscentos. Isso porque, se somente nos debruçarmos neste último ponto
levantado, é visível que o povoamento da região gonçalense deu-se ao longo do
Quinhentos, mas sobretudo no Seiscentos é que houve o enraizamento populacional, a
ponto de tal fixação dos sesmeiros naquele território ter auxiliado na conquista pela região
de uma credibilidade comprovada frente à coroa portuguesa. Além disso, apostamos na
existência de uma grande dispersão territorial ao longo da baía na produção açucareira no
século XVII, no qual São Gonçalo saía ganhando por concentrar ¼ dos engenhos de toda a
capitania do Rio de Janeiro em meados do Seiscentos.
Em virtude disso, o sol, em 30 de Dezembro de 1644, emitiu um alvará relatando as
imensas dificuldades e necessidades que muitas almas sofriam por conta da não concessão
de sacramentos de unção para os moradores das regiões mais afastadas da freguesia da Sé e
da freguesia da Candelária que morriam.
78
Sendo assim, mandou erigir mais quatro
vigairarias e freguesias: uma no campo de Ira; outra em São João Batista, que depois se
chamou Meriti; a terceira nas proximidades do rio Macacu, denominada Santo Antonio de
Sá; e por fim a freguesia de São Gonçalo de Amarante.
79
Da mesma forma que a política de distribuição de sesmarias, após a exp ulsão dos
franceses do Rio de Janeiro, demonstrava uma intenção clara da coroa portuguesa em
povoar e enraizar a população em torno da baía da Guanabara, evitando, assim, novas
incursões de outras monarquias, a criação de freguesias fora outro recurso acionado pelo
mundo metropolitano para o cumprimento de tais objetivos, além de amparar almas
desprovidas de proteção espiritual. Com o término do domínio dos Habsburgo na coroa
portuguesa, em 1640, foi necessário, mais uma vez, demarcar domínio e amparar as regiões
que até então não estavam açambarcadas pela luminosidade solar. Logo, a criação de uma
freguesia era, de um lado, o resultado imediato de que o enraizamento populacional tinha
vingado, se efetivado, como também auxiliava na política de controle sobre as regiões
américo-lusitanas fluminenses pela coroa portuguesa.
Reafirmando a decisão que tinha tomado em 1644, três anos depois, o sol emitiu um
novo alvará, destinado a cada nova freguesia, confirmando a criação das vigairarias. Nele
78
Alvará e Mercê que Sua Majestade Faz como Governador e Perpétuo Administrador que é do Mestrado
Cavalaria e Ordem do Nosso Senhor Jesus Cristo para que nesta Capitania do Rio de Janeiro se Erijam Quatro
Vigairarias de novo. Arquivo Nacional. Códice 61, Volume 1, pp. 216v - 219v.
79
Ibidem, pp. 216v - 219v.
101
ainda, o monarca lusitano estabelecia uma nova organização de sesmeiros da capitania do
Rio de Janeiro, isso porque
“(...) se desmembrarão da matriz os fregueses e engenhos de Domingos
de Faria, Fernão Rodrigues Ribeiro, outro engenho seu, Miguel Ayres
Maldonado, Antonio Lobo Pereira, Isabel dos Rios, Mathias de Mendonça,
Bento Pinheiro, Francisco de Seixas, Álvaro de Mattos, Antonio Lopes
Siqueira, Sebastião Pinto, Cristóvão Vaz, Jerônimo Barbalho, Gregório
Lopes, Francisco Barreto, Thomé Soares, Sebastião Lusena, os quais acima
referidos reconheceram a dita Igreja por sua paróquia e ao vigário nela
nomeado por seu pároco ao qual obedecerão e aos mais que por seus
oferecimentos nela se nomear assim e da maneira que os mais fregueses
reconhecerão aos párocos de suas Igrejas por assim convir ao serviço de
Deus meu bem das almas dos moradores daquela Capitania e boa
administração da justiça.”
80
É interessante notar que o documento régio não trazia somente os fregueses da nova
vigairaria, mas inclusive o nome dos proprietários e o número de engenhos de destaques
localizados naquela freguesia. Ao todo eram 18 engenhos espalhados pela região
gonçalense que engrossavam o número de 110 em toda capitania do Rio de Janeiro. Apesar
do diminuto número de engenhos até então arrolados para a recém-criada freguesia de São
Gonçalo de Amarante em meados do século XVII (se bem que demonstramos que o
número de engenhos não representam o número da produção desta mesma região para
mesma centúria), a importância que essa região desempenhava na capitania do Rio de
Janeiro extrapolava as questões econômicas, pois a efetivação do enraizamento
populacional através da criação da vigairaria era um sintoma mais do que visível que São
Gonçalo tinha uma função estratégica importante na configuração política e econômica da
capitania.
80
“Alvará Porque Sua Majestade Há por Bem e Manda se erija de novo e Crie uma Vigairaria da Invocação
de São Gonçalo sita nos Limites e lugar de Guaxindiba Capitania do Rio de Janeiro” IN: Arquivo Nacional.
Códice 61, Volume 1, pp. 219v-221v.
102
Entre a Geribita e o Vinho Lusitano
Dentre os produtos concedidos à Companhia Geral do Comércio do Brasil como
monopólio, de longe, o vinho era aquele que mais possuía a possibilidade de alta
lucratividade, isso quando não ocorria saques como o que foi narrado, em 1641, pelo
senado da câmara fluminense:
em a dita câmara acordaram os ditos oficiais que porquanto tinham
por notícia que os mestres dos navios que trazem vinhos a este porto
ocultavam pipas de vinho da quantidade que trazem que para isso se
remediar era necessário e conveniente que tanto que os navios chegaram a
este porto em que vierem vinhos logo se faça diligência por parte desta
câmara com os mestres e os obrigaram a trazerem a ela os despachos que
trazem (...)
81
A própria câmara da cidade do Rio de Janeiro já havia percebido o problema após a
restauração bragantina, e nem mesmo a prisão até a apresentação dos despachos reais
amenizavam a ocorrência dessas práticas. Se não era lucrativo para o senado municipal,
também não era para a coroa portuguesa, sobretudo no que tange à comercialização do
vinho, produto importantíssimo para a manutenção das rendas da capitania do Rio de
Janeiro.
A comercialização do vinho servia para a câmara fluminense, de forma autorizada e
legitimada por Portugal, para a arrecadação de subsídios e impostos que eram normalmente
revertidos para a manutenção da defesa da cidade, principalmente após o término da união
ibérica:
(...) há muito poucos dias que esta cidade vieram novas em como a
cidade de Luanda cabeça do reino de Angola a tinha tomado o inimigo
holandês e que o mesmo inimigo temos vizinho neste Estado do Brasil, o qual
esperamos segundo os efeitos e hoje com mais fundamento que nunca
procurarão argumentar-se neste Estado do Brasil e que pelo conseguinte
esta cidade é uma das de mais consideração deste Estado a qual depositam
de seu sitio esta mui arriscada de (...) muita facilidade a levar o inimigo por
81
Notícia Sobre o Desvio do Carregamento de Vinhos pelos Mestres dos Navios. Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro. Legislativo Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650. Códice 16-3-21, pp. 86-87.
103
nesta (...) e franco e convém que se fortifique de maneira que fique capaz de
se defender ao inimigo aqui (...)
82
A necessidade de se defender era vital nesse momento de instabilidade política, por
isso o que era arrecadado pelo imposto dos vinhos era revertido para fortificação, proteção
e pagamento do soldo da guarnição da capitania do Rio de Janeiro. Se levarmos em
consideração que parte desses recursos eram utilizados em outros propósitos que não a
defesa ou eram desviados para o atendimento de outras capitanias mais ainda se
descaminhou em tanta quantidade que só para a Bahia foram daqui melhor por vezes de
oitenta mil cruzados da Fazenda por mandado de Sua Majestade além de muitos
pagamentos que cá se fizeram por mandado e ordem dos governadores (...)
83
e que, além
disso, a pirataria e os desvios dificultavam a acumulação dos recursos, fica muito fácil
entender por que a guarnição fluminense constantemente era prejudicada com o atraso dos
pagamentos, a inexistência de salários e nenhuma contribuição de auxílio.
A formação de frotas pela Companhia do Comércio transformar-se-ia numa opção
interessante para os oficiais militares. Montando sua própria guarnição e oferecendo a
possibilidade de rendas estáveis, a Companhia era uma maneira dos oficiais escaparem dos
percalços oferecidos nas guarnições fluminenses.
84
O que não podemos falar da mesma
forma para os produtores de cana-de-açúcar e comerciantes da capitania do Rio de Janeiro,
que foram atingidos por um duro golpe:
(...) por razão da grande quantidade de aguardente de terra que se faz
e (...) juntamente a cachaça e vinhos de mel de que usam estava impedido o
gasto total dos vinhos que a este porto vem sobre as quais esta posto o
subsidio para pagar o presídio e juntamente para as fortificações da mesma
cidade junto com a vintena que esta assentada se pague e que de tal maneira
82
Treslado do Assento que se fez para as fortificações desta cidade, 2 de Novembro de 1641. Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro. Legislativo Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650. Códice 16-3-21, pp. 86-
87.
83
Traslado de um requerimento do governador em reposta dos oficiais da câmara. Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro. Legislativo Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650. Códice 16-3-21, p. 95.
84
Ibidem, pp. 137-138.
104
no impedimento da renda dos ditos vinhos e aguardente e cachaça que sendo
nesta cidade se carecia vinhos (...)
85
O enorme prejuízo causado pela cachaça para a coroa portuguesa fez com que, em
17 de Setembro de 1643, o governador Luís Barbalho Bezerra propusesse à coroa que 'se
tome a aguardente e se não venda para que cesse o dano que esta visto'.
86
Resultado de
uma intensa negociação na câmara, a proposta do governador envolveu diversas facções da
nobreza da terra fluminense e os produtores desse gênero para a concretização da sua
proposta, que visava aumentar a arrecadação do vinho para o pagamento da guarnição
fluminense. Em menos de um mês depois, 10 de novembro de 1643, a câmara expunha sua
opinião:
(...) que sem embargo de se haver proibido a aguardente e que se não
vendesse contudo por acudirem as ordinárias queixas dos senhores de
engenho e mais pessoas que faziam a dita aguardente mandam que todas as
ditas pessoas se venham avisar a esta câmara naquilo que ande pagar de
subsídio em cada um ano porque livremente se lhes concede licença para
fazerem a dita aguardente pagando de subsídio o em que avisarem em cada
um ano e para virem ao dito efeito lhes dão termo de trinta dias e para que
lhes venha notícia mandam que lancem pregões públicos por esta cidade
(...)
87
Ou seja, optou-se pela continuidade do fabrico e comercialização da aguardente,
mas em contrapartida fora imposto um subsídio sobre a bebida e também sobre a carne dos
açougues. Mas é curioso notar que entre os que assinam o assento do governador Aleixo
Manoel e Clemente Nogueira estavam presentes no movimento de 1660, os demais a
princípio não possuíam nenhum envolvimento com a revolta. Se, por outro lado o foco da
atenção voltou-se para a relação com a freguesia de São Gonçalo, somente nos vem a lume
a figura de Miguel Aires Maldonado, proprietário de terra gonçalense e do próprio
85
Auto e assento feito sobre se tirar desta cidade a aguardente da terra e o vinho de mel que se não vende e
Juntamente sobre se dar a execução e provisão e lei de Sua Majestade em razão do acrescentamento da
moeda. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Legislativo Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650.
Códice 16-3-21, p. 135.
86
Ibidem, p. 136.
87
Acordo sobre o subsídio que se quer por sobre o aguardente. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Legislativo Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650. Códice 16-3-21, pp. 137-138.
105
Clemente Nogueira, casado com a filha de Estevão Gomes, grande proprietário de terra em
São Gonçalo.
88
Se privilegiarmos uma observação por outro prisma, ou seja, quantos daqueles que
assinaram o acordo eram proprietários de terra, chegaremos a seguinte conclusão: dos 24
nomes apenas rastreamos nove (ou seja, 37,5%) que foram contemplados por algum
quinhão de terras na capitania do Rio de Janeiro.
89
Óbvio que era um grupo que conseguia
fazer valer seus interesses, caso contrário os objetivos de Luis Barbalho Bezerra de
interromper a produção da aguardente em prol do vinho seriam concretizados, o que não
aconteceu.
Assim, seja como for, o que era uma simples proposta para resolver a má
arrecadação do vinho, em 13 de Setembro de 1649, transformou-se em uma concessão feita
à Companhia Geral do Comércio do Brasil. Para Vivaldo Coaracy, a ordem era claríssima:
toda produção de aguardente estava provisoriamente suspensa. Sendo apenas autorizada a
utilização da bebida pelos negros que trabalhavam nos engenhos açucareiros, isso para o
consumo e não para a comercialização.
90
Um olhar um pouco mais atento a toda essa
conjuntura não deixará escapar de vista que o problema gerado entre a cachaça da América
e o vinho português não se restringia única e exclusivamente à espoliação dos recursos da
guarnição fluminense. O problema era maior... E não se encontrava em solo américo-
lusitano mas sim na África.
Além de ser um importante produto compensador de economia fluminense,
peculiaridade que será discutida mais à frente, a cachaça ou geribita tornou-se no século
XVII o principal produto utilizado como moeda na compra de escravos na costa africana.
91
A invasão flamenga em Angola diminuiu, significativamente, a quantidade de escravos
88
Carlos G. Rheingantz. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Brasiliana Editora, Volume 3,
Fascículo 1, 1967, p. 17.
89
Eram eles, os já mencionados, Aleixo Manoel e Miguel Aires Maldonado, como também Antonio de
Andrade (rio de Guaguasu, 1614), Diogo de Montorroyo (Gerisinó, 1603), Balthazar de Abreu Cardoso (Irajá,
1613), Balthazar de Amorim Calheiros (Campo de Irajá, 1649), Miguel Cardoso (Serra do Paraíba, 1656).
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. "Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro, Extraída
dos Livros de Sesmarias e Registros do Cartório do Tabelião Antonio Teixeira de Carvalho (1565-1796) IN:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Tomo 63, Volume I, 1900.
90
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 138.
91
Roquinaldo Ferreira. "Dinâmica do Comércio Intracolonial: Geribitas, Panos Asiáticos e Guerra no Tráfico
Angolano de Escravos (Século XVIII)" IN: João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho & Maria de
Fátima Gouvêa (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos, Op. Cit. , pp. 341-342.
106
levados para a América, principalmente para o Rio de Janeiro. Segundo José C. Curto após
a reconquista de Angola por Salvador Correia de Sá e Benavides, em 1647, o tráfico de
escravos fora novamente controlado pela coroa portuguesa através de uma grande
quantidade de investimentos de material humano (militares) e financeiros para a expulsão
dos holandeses, mas também da formação de casas comerciais comandadas por homens
ultramarinos americanos em Luanda.
92
Mas, mesmo assim, a capitania do Rio de Janeiro sofre muito com a concorrência
do comércio de cativos no século XVII. Exemplo disso é uma consulta feita pelo
procurador da câmara da capitania fluminense, em 1669, exigindo a equiparação do
transporte de negros para os portos do Rio de Janeiro, reafirmando a falta de escravaria do
gentio da Guiné seja pela mortalidade, que assolava aquela região desde 1665, seja por falta
de navios que vinham de Angola, e apontava a situação diferente em que se encontra a sede
do governo-geral e a capitania de Pernambuco:
(...) e ser o mais remoto de todos os do Brasil, tendo os moradores e
senhores de navios maiores conveniências em navegar de Angola para
Pernambuco e Bahia (...) [e] pede a Vossa Alteza seja servido mandar que
dos navios dos moradores do Rio de Janeiro possam todos os anos (...) deles
navegar livremente daquele reino navios livres sem competição com outras
praças.
93
A retomada do tráfico necessitou da busca de produtos que, porventura, poderiam
ser mais lucrativos para a garantia da superioridade dos portugueses na África.
Despontando, assim, o fumo e a cachaça, que possuíam de imediato algumas vantagens: 1)
eram produzidos em larguíssima escala, por serem oriundos da produção extensiva; 2)
como toda base extensiva, utilizava-se da mão de obra escrava, o que, conseqüentemente,
92
José C. Curto. "Vinho Verso Cachaça - A Luta Luso-brasileira pelo Comércio do Álcool e de Escravos em
Luanda, C. 1648-1703" IN: Selma Pantoja & José Flávio Sombra Saraiva (Orgs.) Angola e Brasil na Rotas do
Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 71.
93
Consulta do Conselho Ultramarino sobre a Representação em que o Procurador da Câmara do Rio de
Janeiro Pedia que Todos os Anos Pudessem Sair Livremente de Angola Três Navios com Cargos de Escravos
para o Rio de Janeiro, 18 de Novembro de 1669. Arquivo Histórico Ultramarino, Instituto de Investigação
Científica Tropical e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Conselho Ultramarino/Catálogo Castro
Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-1657). Cd-Rom Número 1, Documento Número 1102.
107
dispensava a necessidade de pagamento de salários e possibilitava, pelo baixo custo
produtivo, a reversão deste gênero ao mercado com preços mais acessíveis; 3) a própria
distância entre as regiões americanas e Portugal com relação à África, porque enquanto do
Rio de Janeiro à Luanda levava-se 50 dias, o mesmo trajeto saindo de Lisboa era feito entre
90 e 120 dias; 4) eram produtos que os lusitanos não comercializavam, por isso tornavam-
se baratos; e 5) os produtos serviam como estabilizadores e equilíbrio para os navios.
94
Mas, apesar de ser utilizado no comércio de escravos, o fumo encontrava algumas
dificuldades de penetração em Luanda, principalmente porque havia uma produção local
naquela região. Tudo isso fez com que na segunda metade do século XVII, a cachaça
passasse a liderar o comércio do tráfico atlântico.
95
Outras são as motivações que tornaram
a geribita em um produto mais atrativo: o altíssimo teor alcoólico em relação ao vinho, o
baixo preço, o caráter de ser um produto novo no mercado africano, a maior quantidade de
cachaça que era trocada por escravos e a resistência aos altos índices de temperatura
encontrados nas viagens.
96
Sobre este último ponto, José C. Curto nos relata dois casos
bastante exemplificadores:
mais da metade do vinho importado em Luanda por Antônio Coelho
Guerreiro entre 1684 e 1692 chegou estragado ou azedou enquanto
armazenado (...) Da mesma forma, no final do século XVII, um missionário
que trabalhava no reino do Congo reclamou sobre a rapidez com que o
vinho, que ele e seus colegas importavam de Lisboa através da capital de
Angola, estragava.
97
A garantia de uma conservação mais prolongada e a grande quantidade conquistada
nas trocas comerciais deram à cachaça a vitória no que tange à briga com o vinho lusitano.
Comercializada por pombeiros, casas comerciais e contrabandistas a aguardente foi a
grande responsável pela queda vertiginosa do prestígio que os comerciantes portugueses
tinham adquirido durante anos de atividades naquela região. Em contrapartida, aumentou
94
Ibidem, pp. 72-73.
95
Antonio Carlos Jucá Sampaio. Na Curva do Tempo, Na Encruzilhada do Império: Hierarquização Social e
Estratégias de Classe na Produção da Exclusão (Rio de Janeiro, C. 1650 - C.1750). Tese (Doutorado em
História) Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. 2000, p.59.
96
José C. Curto, Op. Cit. , pp. 75-76.
97
Ibidem, p. 76.
108
assustadoramente o número de escravos africanos traficados para a América portuguesa,
chegando a variar de 10.000 a 12.000 escravos por ano na década de 1650.
98
É elucidativo também o papel que a cachaça exercerá na garantia da superioridade
américo-lusitana no tráfico de negros africanos. Segundo Luis Felipe de Alencastro, a
aguardente foi utilizada pelos portugueses como forma de neutralizar a comercialização de
vinhos espanhóis na África central, como da mesma forma extirpar a produção do malafo,
vinho de palma feito pelos africanos.
99
Mas, a penetração da geribita ganhou contornos não
esperados pelos lusitanos, já que não só dificultou a entrada do vinho português na mesma
região, como inclusive demarcou a conquista da África pelos 'luso-brasileiros'.
A grande derrota que a geribita proporcionou ao vinho fez com que a coroa
portuguesa tomasse urgentes medidas. Enquanto a bebida américo-lusitana não interferia
nas atividades na costa africana, afetando apenas a arrecadação do subsídio do vinho, a
coroa não se preocupava em implementar restrições à sua produção. Quando o quadro se
inverteu, a Companhia Geral do Comércio e a provisão real proibindo o fabrico e
exportação de aguardente foram cartas tiradas da manga pela autoridade régia,
principalmente porque estava em jogo uma das atividades com maiores taxas de
lucratividade da economia mercantilista moderna: o tráfico de escravos. A situação imposta
pela Companhia Geral do Comércio abalou profundamente a capitania, 'ela empobrecia e
asfixiava a economia colonial fluminense'.
100
Mas a principal praça produtora da bebida alcoólica recebeu de forma peculiar o
decreto de 13 de Setembro de 1649. Recusando-se a adotar as medidas, o governador D.
Luís de Almeida não acreditava nos prejuízos econômicos causados pela aguardente e
afirmava que
(...) na situação em que se achava a praça, com os açúcares
acumulados nos depósitos, sem encontrar quem os comprasse, a proibição
do fabrico de aguardente seria a morte dos engenhos com prejuízo da
98
Joseph C. Miller. Slave Trade from Congo and Angola, p. 101 Apud José C. Curto, Op. Cit. , p. 77.
99
Luis Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul, Séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 311-312.
100
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América
Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1769. Tese (Doutorado em História). Departamento
de História da Universidade de São Paulo, 1996, p. 22.
109
Fazenda Real e dano da população (...) Não é aguardente que a tira [venda
dos vinhos] e sim o faz a falta de dinheiro, pois quando este gênero vinha
livre, todos o bebiam... que o pagavam com açúcar, o que agora não
alcançam sem dinheiro.
101
Administrando a capitania do Rio de Janeiro durante os anos de 1652 a 1657, D.
Luís de Almeida Portugal mencionava que as perdas fluminenses com a criação da
Companhia Geral do Comércio esbarravam em cem mil cruzados e sobre as críticas que a
aguardente sofria pelos excessos que a bebida causava o mesmo acreditava que qualquer
um que roubaria por cachaça faria a mesmíssima coisa pelo vinho, porque 'qual é o homem
que morre pelo beber que não morra bebendo vinho, porque o excesso nunca tem
limites?'
102
A justificativa utilizada pelo administrador régio fluminense respondeu, da
mesma forma, à comumente associação feita entre a ocorrência de revoltas e a ingestão de
cachaça. Obviamente, tais conexões somente serviam para depreciar a eclosão desses tipos
de movimento.
Tentando apelar para a homogeneidade e a igualdade entre as diversas regiões da
América portuguesa, a Companhia alegava a aceitação da ordem régia pelos baianos, a que
prontamente o governador respondera:
(...) na Bahia se despacham para o Reino embarcações sem limite, no
que acham os homens pela venda dos seus açúcares o que não lhes faz falta
pela proibição de aguardente, e os que carregam, como os há de navegar,
sempre compram a melhor preço, o que se aqui se praticara também se
poderia fazer tudo. E se é justo que sigamos os exemplos, também
deveríamos participar dos remédios; porém vejo que quem aqui comprou
açúcares há um ano, ainda estão para se levarem.
103
A fala do administrador régio no ultramar nos demonstrava que a coroa desconhecia
ou fazia vista grossa para as especificidades das regiões ultramarinas americanas, já que as
101
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 150.
102
Ibidem, p. 151. Tais recomendações adversas ao consumo da cachaça talvez tenha sido aconselhado pela
primeira vez pelo jesuíta Antonil, que dizia: (...) ou se estila de aguardente, que eu nunca aconselharia ao
senhor de engenho, para não Ter uma contínua desinquietação na senzala dos negros, e para que os seus
escravos não sejam com a aguardente mais borrachos do que os faz a cachaça. André João Antonil. Cultura
e Opulência do Brasil . São Paulo: Melhoramentos, 1976, p. 133.
103
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 151.
110
praças fluminenses não tinham a mesma lucratividade com a venda de açúcar que a Bahia
ou Pernambuco.
104
O viajante holandês, Dierick Ruiters, em 1617 relatou por que a região
fluminense estava em desvantagem frente a outras regiões produtoras de açúcar, dizia ele: [
no Rio de Janeiro] a cana cresce em quantidade e as plantas são mais suculentas do que na
costa norte (Pernambuco, Bahia e etc.), mas não produzem tanto açúcar.
105
Isso porque,
segundo o viajante, a cana necessitava de regiões com sol escaldante e várias pancadas de
chuvas ao longo do dia, situação não encontrada nas áreas úmidas entre o Rio de Janeiro e
São Vicente, restando-lhes a alternativa de plantar pouco açúcar.
106
Sendo assim, o açúcar fluminense não tinha a mesma qualidade daqueles
produzidos em outras regiões brasílicas. Esse açúcar de segunda classe acarretava, como
narrou D. Luís de Almeida Portugal, a inexistência de compradores em grande quantidade e
a dependência dos súditos fluminenses da produção da cachaça, já que a cana era bastante
suculenta. Interessante notar é que o que acontecia no Rio de Janeiro, em relação à
produção canavieira, era um incomensurável esforço da nobreza da terra fluminense em se
adequar à economia mercantilista imposta pela coroa portuguesa, mas como possuía
condições adversas para sua concretização acabava buscando outras alternativas para se
manter viva economicamente, como por exemplo, a política monetária própria (pataca) que
muitas vezes resguardava a economia fluminense. Dessa forma, a tentativa de padronização
do alvará frustrara-se durante todo o governo da capitania do Rio de Janeiro por D. Luis de
Almeida Portugal, principalmente porque nesse período uma gr ave crise econômica assolou
a economia açucareira fluminense.
107
104
Em seu trabalho sobre a sociedade açucareira, Stuart Schwartz nos informa que, em 1624 Pernambuco
produzia ao todo 544.072 mil arrobas em uma produção anual de toda a América de 960 mil toneladas. Se
levarmos em consideração os dados da Bahia, ou seja, 313.500 toneladas em 1632 podemos estabelecer uma
hipótese de que a produção fluminense redundava em mais ou menos 100 mil arrobas neste mesmo período,
quantidade bastante inferior em relação as regiões acima descritas. Cf. Stuart Schwartz. Segredos Internos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 150.
105
Dierick Ruiters. A Tocha da Navegação IN: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro: Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Volume 260, 1975, p. 63.
106
Ibidem, p. 63.
107
Cabe ainda notar que a Companhia Geral do Comércio contribuiu para a restrição da questão dos estanques
e pela circulação da arrecadação dos dízimos, o que fez com que as rendas da capitania fluminense fossem
ainda mais solapadas. Cf. Carta do Provedor Pedro de Sousa Pereira e da Câmara à Companhia Geral do
Comércio sobre os Estanques, 1657. Arquivo Histórico Ultramarino. Coleção de Avulsos, Caixa 03,
Documento 122.
111
A criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, que tinha como um dos
propósitos de sua existência o isolamento da capitania de Pernambuco, no que tange à
comercialização dos gêneros lusitanos exportados para o solo americano, conseguiu
alcançar seus objetivos. Desprovida de mantimentos, a capitania de Pernambuco teve que
recorrer ao contrabando para o alcance de produtos lusitanos. Iniciada a invasão dos
portugueses, os holandeses resistiram por pouco tempo, até serem definitivamente
derrotados, em 1654, diga-se de passagem, ainda no Governo de D. Luís de Almeida na
capitania do Rio de Janeiro.
108
E o que parecia ser um alívio político, transformou-se, do
dia para a noite, em agonia econômica. A expulsão dos flamengos do nordeste açucareiro
fez emergir no cenário econômico moderno a grande região concorrente do mundo
américo-lusitano, as Antilhas. Os holandeses transfe riram para as ilhas da América Central
todo o aparato açucareiro que fizeram da capitania de Pernambuco a líder incontestável da
exportação do gênero tropical durante todo o Seiscentos.
Dessa vez não foi só o Rio de Janeiro o prejudicado, como mencionava em sua carta
D. Luís de Almeida, mas todo o nordeste açucareiro. A concorrência despencou o preço do
açúcar no mercado e forçou as capitanias a buscarem produtos que tinham as mesmas
características do açúcar agricultura monocultora de exportação, realizada em latifúndio
por uma mão-de-obra escrava para compensar os prejuízos que a produção econômica
que as nomeadas capitanias iriam sofrer. Nessa conjuntura que a cachaça ganhou espaço.
Por todos os benefícios e vantagens, a aguardente ao longo do século XVII, aos
poucos, foi se configurando como um importante produto compensador para a economia
fluminense. Mesmo a capitania do Rio de Janeiro em fins do século XVII se encontrando
em terceiro lugar na exportação da aguardente para a costa africana (12,5%), ficando atrás
da Bahia (61%) e de Pernambuco (26%),
109
esse gênero proporcionava um aumento de 25%
da lucratividade de qualquer engenho, suficiente para controlar intempéries do preço do
108
Sobre a expulsão dos franceses as seguintes obras de Evaldo Cabral de Mello: Rubro Veio - O Imaginário
da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997; A Fronda dos Mazombos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995; Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1989.
109
Roquinaldo Ferreira. "Dinâmica do Comércio Intracolonial: Geribitas, Panos Asiáticos e Guerra no Tráfico
Angolano de Escravos (Século XVIII) IN: João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho & Maria de Fátima
Gouvêa. O Antigo Regime nos Trópicos, Op. Cit. , 349.
112
açúcar.
110
Nos momentos de crise da comercialização do açúcar, a geribita assumia o papel
de produto de arrecadação de rendas, pois liderava a pauta de comercialização de africanos
em Angola. Trazidos ao Rio de Janeiro, muitos desses escravos eram revertidos
imediatamente para os engenhos, mas, da mesma forma, outros passavam a ser
comercializados na região do Prata, assegurando, com isso, a circulação de metais na
capitania. O comércio triangular Luanda-Rio de Janeiro- Buenos Aires, exclusivamente
mantido com a produção da aguardente, tornou-se fulcral para as intenções econômicas
fluminenses, já que era quase a única forma de conquista de metais na América portuguesa,
principalmente depois que o açúcar encontrava-se em momentos difíceis.
111
Todavia, mesmo nas fases favoráveis o açúcar possuía uma grande desvantagem em
relação à aguardente: a baixa lucratividade para os produtores fluminenses. Sobre essa
questão, Eulália Lobo nos diz que em 1653, o açúcar era usado no Rio de Janeiro como
meio circulante com um valor de $200 por arroba, porém o produto valia no mercado
local $700 e no de Lisboa 3$200.
112
Essa simples referência nos leva a concluir que para o
produtor primário desse gênero colonial os lucros angariados no comércio eram muito
pequenos. Ao contrário do que acontecia quando este mesmo produto chegava às praças
mercantis lusitanas. Além disso, os valores conquistados por Pernambuco e Bahia eram
bem maiores, pois suas condições climáticas e de solo eram mais propícias para a cultura
canavieira. Nesse sentido, a geribita rendia mais vantagens aos produtores primários, sendo
um derivado da cana-de-açúcar, este gênero era o grande responsável pela lucratividade dos
engenhos brasílicos (25%), pois não estavam atrelados ao dízimo e não eram mercadorias
divididas com os lavradores de cana. Assim, segundo Stuart Schwartz um senhor de
engenho relatou que : o açúcar permitia-lhes cobrir as despesas e a cachaça
proporcionava-lhes o lucro.
113
Os baixos valores arrecadados em solo américo-lusitano em detrimento da
supervalorização do mesmo produto no mercado europeu, podia, muitas vezes, frustrar os
110
Ibidem, p. 346.
111
Sobre o comércio triangular Cf. Luís Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes - A Formação do Brasil
no Atlântico Sul nos Séculos XVI e XVII, Op. Cit. , Capítulo 7 - Angola Brasílica.
112
Eulália Maria Lahemeyer Lobo. História do Rio de Janeiro - Do Capital Comercial ao Capital Industrial
e Financeiro. Rio de Janeiro: IBMEC, 1948, Volume 1, pp. 24-25.
113
Stuart Schwartz. Segredos Internos - Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988, p. 186. Cf. também André João Antonil. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e
Minas. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1965.
113
produtores de açúcar da capitania do Rio de Janeiro, que crescia e se expandia a partir dos
problemas que a região pernambucana e do Estado da Bahia enfrentavam com ameaças
flamengas. Por tudo isso, a cachaça era a salvação da lavoura. Baixo custeio da produção e
alta lucratividade fizeram da bebida tipicamente tropical o recurso acionado em momentos
de dificuldades. Sendo justamente por tais motivos que D. Luís de Almeida Portugal,
durante sua administração, fez vista grossa às determinações régias e autorizou, sem
relutância, a produção e comercialização da geribita. Para que isso ocorresse, cobrou
impostos sobre o consumo da bebida e formou comboios para a sua comercialização,
desprezando qualquer forma de defesa para a frota destes navios. No entanto, requisitou a
compra de açúcar dos produtores pelo câmbio oficial da época.
114
As medidas do administrador régio seguraram os ânimos dos proprietários de terras
fluminenses, mesmo diante das dificuldades que assolavam a capitania. Os efeitos da crise
foram sentidos levemente e a economia fluminense manteve-se estável. Todavia a provisão
de 27 de março de 1657 transformaria radicalmente o cenário político-econômico do Rio de
Janeiro. A provisão nomeava Thomé Correia de Alvarenga como novo governador no lugar
de D. Luís de Almeida Portugal, dando a largada para o retorno da família Sá na
administração fluminense. A nomeação de Thomé Correia de Alvarenga atendeu,
certamente os interesses daqueles que se beneficiavam com a Companhia Geral do
Comércio do Brasil, entre eles, Salvador Correia de Sá e Benavides e seus apaniguados.
115
Dentre suas primeiras medidas, fez fazer valer as ordens régias referentes à
proibição de comercialização e fabricação da aguardente, principalmente porque a
permanência do desrespeito aos privilégios da Companhia afetava diretamente os lucros
financeiros da família Sá, que controlava a administração do órgão fiscalizador. Dessa
maneira, foi quase que inevitável sentir os abalos da crise. Com o preço do açúcar em
queda e as restrições impostas ao produto compensador da capitania, todo o recôncavo
fluminense será atingido, talvez pela mais importante crise do gênero.
E nesse caso apostamos claramente na importância da freguesia de São Gonçalo na
produção e comercialização da aguardente no século XVII. Como os dados quantitativos
sobre a produção gonçalense nos fogem neste momento, voltemos, mais uma vez, ao
114
Vivaldo Coaracy, Op. Cit., p.154.
115
Vivaldo Coaracy, Op. Cit., p. 154.
114
relatório elaborado pelo Marquês de Lavradio no século XVIII, com as pertinentes
ressalvas feitas anteriormente. Em relação a cachaça, São Gonçalo ocupava no Setecentos a
terceira colocação em número de engenhos (3), perdendo a disputa para Cabo Frio (10) e
Campos de Goitacases (9). E mais uma vez o número de engenhos não serve de lupa para
vislumbrar a produção, porque quanto a este quesito a freguesia ocupava o primeiro lugar,
com 415 pipas, sendo seguido por Irajá (329) e Maricá (230), ambos com o reduzido
número de dois engenhos de aguardente. Uma das possibilidades de responder esta inversão
dos quadros, remete-se ao entendimento de que os próprios engenhos de açúcar também
produziam a bebida alcoólica. Isto significa dizer que apesar de excluídos da listagem do
Marquês de Lavradio, grande parte dos engenhos açucareiros também contribuíam para
alavancar a produção deste gênero. Sendo, mais uma vez, comprovado que estas regiões,
entre elas, a freguesia de São Gonçalo de Amarante, aliavam a produção açucareira e de
aguardente. Uma supria a necessidade da outra. Uma supria as crises financeiras da outra. E
é óbvio que tal concomitância tem suas origens no Seiscentos.
A produção da aguardente proporcionava a região gonçalense a preponderância nas
trocas comerciais do Rio de Janeiro. Se levarmos em consideração que este gênero colonial
fazia parte do circuito comercial que sustentava a economia colonial, ou seja, do comércio
triangular entre a costa africana, a América Portuguesa e a região do Prata no atlântico sul
fica fácil perceber o papel de destaque que a freguesia de São Gonçalo despenhava na
sustentação destas atividades. A cachaça vendida em Angola recebia como pagamento
peças africanas, que trazidos para a América ora tomavam o rumo das capitanias
açucareiras lusitanas, ora eram trocada por metais na região do Prata.
Logo, São Gonçalo tinha por função a dinamização da economia do Atlântico Sul,
papel que concedia a articulação econômica das regiões fluminense. Assim, quando o
recôncavo foi atingido pelas determinações restritivas à produção da aguardente, a região
gonçalense viu de um lado as possibilidades a expansão econômica serem ameaças, como
também a dificuldade de manutenção das rotas comercias no Atlântico Sul.
Entendido desta forma, a economia açucareira e a de aguardente possuíam,
indiscutivelmente, uma intrínseca dependência, no qual os acontecimentos de 1660 nos
ajudam a enxergar. Resultado quase que imediato das restrições à economia da aguardente
e das sucessivas crises que afetavam a produção açucareira, a Revolta da Cachaça
115
simbolizava uma intenção clara dos homens ultramarinos fluminenses de reverteram um
quadro negativo que assolava a capitania do Rio de Janeiro com a administração de
Salvador Correia de Sá e Benavides. Para isso não mediram esforços para impor seus
interesses, mas tomando o cuidado do movimento ser em prol do rei e não contra ele. E
aquele santo que nomeava a freguesia por conta das intempéries enfrentadas por seu devoto
Gonçalo Gonçalves, servia, agora, para proteger os revoltosos, pois mais uma tempestade
se aproximava...
115
Capítulo 3 : A Crise Política Fluminense e a Revolta da Cachaça, 1660-1661
"Dadinha - É bom pra saúde o vinho do Porto.
Ambrósio e Vito - Vinho de cana acorda até um morto.
Dadinha - Na minha mesa só sirvo o moscatel.
Ambrósio e Vito - Eu a Pinga e o vinho de mel.
Dadinha - Sobremesa elegante ? Um cálice de madeira.
Ambrósio e Vito - Pra mim aguardente sem eira nem beira.
Dadinha - Um malvasia, em taça sem jaça.
Ambrósio e Vito - Taça sem quê ? Socorro! Cachaça."
(Antonio Callado - Revolta da Cachaça: Teatro Negro)
'Isso não tem o menor cabimento. É inconstitucional. Não acredito que nenhum
vereador apresente o projeto na câmara. Se apresentar, não acredito que aprovem. Mas se
for aprovado, eu vetarei.' Quem deu o tom indignado a este discurso foi Antonio Lopes
Alves, que se colocava contra a proibição da comercialização da cachaça. Encaminhado à
câmara local do Rio de Janeiro, através de um abaixo-assinado elaborado por um morador
da localidade, o projeto foi duramente criticado por Antonio Lopes Alves, prefeito
peemedebista de Saquarema. O prefeito acreditava que a solicitação não cabia naquela
região e momento. Todavia, o debate sobre o consumo e comercialização da cachaça e
demais bebidas alcoólicas estão abertos em pleno século XXI.
1
A partir desta pequena e curiosa história que transborda pelos corredores municipais
do Rio de Janeiro, tudo nos leva a crer que, realmente, o recôncavo fluminense tornou-se o
cenário primoroso para se averiguar a importância que a economia da aguardente adquiriu
no dia a dia de seus moradores. Isso porque, em um outro momento e alhures, o mesmo
produto causaria um transtorno ainda maior na capitania do Rio de Janeiro, culminando,
inclusive, na usurpação da administração do senado da câmara fluminense, durante cinco
meses, por revoltosos descontentes pela proibição do fabrico e comercialização desse
gênero tropical, dentre outros motivos. Inflamados pelo ódio, os revoltosos diziam que
1
Eliane Maria. 'Prefeito é Contra o Veto à Cachaça'. Jornal Extra, 11 de Agosto de 2001.
116
vivesse El-rei Senhor D. Afonso, de quem eram leais vassalos, e que
como tais lhe representavam em como em trinta do mês passado (a esta
cidade) de Outubro se haviam junto da outra banda da dita cidade, onde
chamam de Ponta do Brabo, de onde pretendiam passar a esta cidade
magoados, queixosos e oprimidos pelas vexações, tiranias, tributo, fintas,
pedidos, destruições de fazendas que havia feito o General Salvador Correia
de Sá e Benavides.
2
É curioso mencionar que dessa vez o administrador local não estava ao lado da
população! Muito pelo contrário, o administrador régio contribuía ainda mais para o
agravamento da situação que levaria ao conflito, já que adquiriu alguns privilégios e
benefícios que seu cargo oferecia. A situação insustentável para os revoltosos os levou a
cruzar a baía da Guanabara, tomar a câmara e dar início a mais uma das várias revoltas
seiscentistas, a Revolta da Cachaça.
Quando fora questionado tempos depois sobre os acontecimentos ocorridos no Rio
de Janeiro, Salvador Correia de Sá e Benavides não dera nenhuma importância ao
movimento que o afastara da administração, pois afirmou: (...) sendo esta cidade só a que
mais necessitava dele [castigo imposto a Jerônimo Barbalho] pela continuação de tão
repetidos erros, que foram (com esta) quatorze que hão incorrido nesta dissolução.
3
Para o
administrador régio, a Revolta da Cachaça era desprovida de significância como os
movimentos ocorridos antes de 1660. Será? Com base em Vivaldo Coaracy
4
, tentamos
buscar os rastros deixados por estas revoltas e nos surpreendemos com os números, que
somavam até 1660, doze.
Tudo começara em 1605, quando o novo prelado administrador eclesiástico,
Bartolomeu Simões Pereira, foi obrigado a se refugiar no Espírito Santo por conta da
perseguição dos moradores insatisfeitos com a política de proteção da escravidão indígena.
Seu sucessor, João da Costa, que manteve a mesma prática, também foi obrigado a fugir
para a região paulista e o problema da prelazia continuava, somente sendo restaurada em
2
Excepto de uma Memória Manuscrita sobre a História do Rio de Janeiro durante o Governo de Salvador
Correia de Sá e Benavides. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Volume 3, s/a , p. 4.
3
Notícia de um Motim no Rio de Janeiro Enviada à Rainha Regente Luísa de Gusmão por Salvador Correia
de Sá e Benavides, 10 de Abril de 1661. Arquivo Nacional da Torre da Tombo. Códice 10563/83, fls. 195-
196.
4
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
117
1607, com Matheus da Costa Aborim.
5
Ainda nessa década, em 1606, o ouvidor Gonçalo
Homem foi deposto do cargo por acusação de erros de ofício e prática do judaísmo. Mesmo
sendo autorizado pelo Governo-geral a permanecer no cargo, a câmara municipal adotou
uma política hostil a sua pessoa até 1614.
6
Em 1611, novos problemas envolvendo jesuítas e população insuflaram na
capitania. Dessa vez a razão remete-se à proibição da escravização de índios pela coroa
espanhola em 1609. A população ameaçou o governador D. Diogo de Menezes, que
somente viu os ânimos apagarem momentaneamente quando foi publicado, ainda em 1611,
a lei da "guerra justa", que permitia a escravização do gentio bravo.
7
Dois anos depois,
eclodiu a revolta contra o governador Afonso de Albuquerque em virtude dos desmandos,
do autoritarismo, da imposição de fintas e do abuso de suas atribuições. Mesmo tendo
terminado beneficamente para o governador, foi substituído por Constantino Menelau no
derradeiro de 1613.
8
Um novo governador sofreu mais reveses em 1619, Rui Vaz Pinto. Acusado de
inúmeros conflitos com a câmara e com as autoridades locais, quando as queixas sobre sua
administração chegaram até a Bahia prendeu o juiz ordinário e condenou o presidente da
câmara ao degredo no Estado do Maranhão. Os camaristas até que tentaram tirá-lo da
administração, mas não deu certo. Sendo acusado de ter uma sanidade mental duvidosa, a
população optou por suportar o término de sua vida, em 1620.
9
Quatro anos mais tarde, a chegada do Desembargador João de Sousa Cardenas na
capitania causou um enorme desconforto. Tudo por conta da sindicância que o mesmo
realizaria nas ações dos capitães e ouvidores. Revoltados, os vereadores mancomunados
com o administrador eclesiástico foram hostis com o desembargador, atribuindo suas
funções ao ouvidor geral. Coube ao governador Martim de Sá apaziguar a situação, mas
não escapando de ver sua administração também questionada.
10
Em 1631, por ironia do
destino, será o ouvidor geral das capitanias do sul, Dr. Paulo Pereira do Lago, vítima dos
amotinados. Denunciado por ferir os interesses do clero e dos principais homens da terra, o
5
Ibidem, pp. 22-23.
6
Ibidem, p. 24.
7
Ibidem, p. 33.
8
Ibidem, pp. 36-38.
9
Ibidem, p. 49.
10
Ibidem, pp. 60-61.
118
governador não acatou as decisões impostas pelo ouvidor geral da Bahia, Jorge da Silva
Mascarenhas, agravando ainda mais a situação. O mesmo foi destituído do cargo assim que
Dr. Miguel Cirne de Faria chegou ao Rio de Janeiro.
11
Apenas um anos depois, mais uma
vez por conta das querelas da escravização do gentio, um novo prelado é atacado pela
população, Dr. Lourenço de Mendonça, sofrendo assim inúmeros atentados.
12
Os constantes questionamentos sobre a escravização indígena pelos jesuítas tiveram
seu ponto culminante em 4 de Março de 1640. A publicação da bula do papa Urbano VIII,
proibindo a escravização por excomunhão, abalou as estruturas não só do Rio de Janeiro
como da vila de São Paulo. Enfurecida, a população tentava expulsar os jesuítas das regiões
brasílicas, sendo necessário a intervenção do governador Salvador Correia de Sá e
Benavides para controlar os revoltosos.
13
Dois anos depois, em 1642, será o imposto sobre
a população o grande vilão da capitania. Para solucionar o problema da guarnição
fluminense, com os soldos constantemente atrasados, Salvador Correia de Sá e Benavides
aplica a taxação que prontamente deixa os moradores da cidade indignados. Reunidos na
Igreja da Candelária, em 23 de Abril de 1642, decidiram não contribuir com o imposto por
conta das diversas dificuldades financeiras por que passava a capitania. Insistente, Salvador
de Sá afirmou sua posição e a necessidade da aplicabilidade do imposto. Sem mais retrucar
a câmara acatou as decisões do administrador régio e o caso ficou por isso mesmo.
14
Mas não tardou muito para que a sombra do sol tivesse pela primeira vez sua
administração questionada de forma mais enfática. Como mencionado, no mesmo ano em
que aplicou o imposto, Domingos Correia encaminhou à coroa portuguesa uma lista de
acusações contra Salvador de Sá Correia de Sá e Benavides delatando suas inúmeras
irregularidades administrativas, que se juntava às acusações feitas pelos paulistas através de
Borba Gato e Costa Cabral. Acuado, Salvador de Sá não viu outra alternativa senão deixar
a administração da capitania para se defender das acusações no Conselho Ultramarino.
15
Mas o problema da guarnição permaneceria e caberia a Luis Barbalho Bezerra tentar
11
Ibidem, pp. 75-76.
12
Ibidem, pp. 78-79.
13
Sobre este tema o detalharemos um pouco mais neste mesmo capítulo, mas também fora feita o mesmo no
capítulo 1 deste mesmo trabalho. Cf. José Maurício Alvarez. "Muita Gente na Praça": Traçados Urbanos e as
Arquiteturas no rio de Janeiro Colonial, 1565-1713. Tese (Doutorado em História). Departamento de
História, Universidade Federal Fluminense, 2000.
14
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , pp. 112-113.
15
Tal movimento também será aprofundado neste capítulo. Ibidem, pp. 114-115.
119
resolvê-lo. O novo governador talvez tenha sido o primeiro administrador fluminense a
pagar com a própria vida os efeitos de uma revolta, já que para resolver a questão do salário
da frota impôs um novo tributo à população.
Tal realidade comprova a tradição nada apaziguadora dos moradores da cidade do
Rio de Janeiro. Mas, mesmo assim, de 1644 a 1660, pelo menos é o que nos demonstra
Vivaldo Coaracy, a capitania do Rio de Janeiro viveu uma certa calmaria no que se refere a
eclosão de motins ou revoltas, até à explosão da Revolta da Cachaça. Diferente do que
acontecera antes de 1660, esse movimento irá solapar a administração do governador
Salvador Correia de Sá e Benavides, implementar um governo autônomo por cinco meses
e, mais do que isso, realizar uma profunda mudança política e econômica na região
fluminense. Além disso, no que se refere aos acontecimentos de 1660 e 1661, os
historiadores têm privilegiado enfoques diferentes daqueles propostos neste trabalho, pois
muitas vezes não analisam a importância da freguesia de São Gonçalo de Amarante no
desenrolar do conflito. Os líderes da revolta reuniam-se na Ponta do Brabo, também
conhecida como Ponta dos Barbalhos, que hoje se convencionou chamar de Gradim, no
município de São Gonçalo. Assim, pode-se facilmente chegar à conclusão de que os
revoltosos estavam naquela região quando arquitetaram, planejaram e resolveram invadir o
senado da câmara de vereadores, exigindo mudanças para o governador interino, Thomé
Correia de Alvarenga.
Nesse sentido, este capítulo tem por objetivo resgatar o papel, até então
escamoteado, da freguesia de São Gonçalo de Amarante na Revolta da Cachaça e na crise
política que se instaurou na capitania. A importância da região gonçalense traz
conseqüentemente para a nossa análise um olhar mais atento para o recôncavo fluminense,
tão fundamental economicamente, mas afastado, por inúmeras razões, do centro das
decisões políticas da capitania do Rio de Janeiro. Talvez por isso que, em pleno século
XXI, o administrador local de Saquarema queira evitar a todo o custo a aprovação do
projeto em sua câmara. É o passado de volta batendo a sua porta, confirmando que o
recôncavo pertence à cachaça.
Visando a concretização deste objetivo começaremos a analisar as razões que por
ventura fizeram da revolta um recurso recorrentemente acionado pelos súditos portugueses
no momento de demonstrar suas insatisfações perante alguma administração. Em seguida,
120
nos debruçaremos no debate da crise política fluminense e o conseqüente início da Revolta
da Cachaça, tentando enxergar o lugar de São Gonçalo na sustentação do movimento.
O Ultramar e a Opção pela Revolta
Ao cruzarem o mar tenebroso e chegarem a terras habitadas por nativos das mais
diversas tribos que até então eram desconhecidos pelos europeus, as frotas lusitanas não
imaginavam que o deslumbre para com a natureza paradisíaca, pela nudez curvilínea das
índias e pelo clima tropical da novas terras dariam lugar, em pouco tempo, a sentimentos
confusos que marcariam o dia a dia do mundo colonial. Tais sentimentos alternavam-se
entre o desejo de enriquecer e a saudade da terra-mãe, a vo ntade de enraizar-se nas regiões
ultramarinas e a permanência dos costumes portugueses incompatíveis com o clima, o
ambiente e a realidade americana, a estranheza com a cultura indígena e a necessidade de
um relacionamento com os nativos, no mínimo, harmonioso para a manutenção das
requisições da economia colonial. Isto significa dizer que a transferência desses homens
para essas novas áreas não foi somente do corpo físico, mas também de suas ideologias, de
seu modo de vida, de suas visões de mundo, de suas práticas culturais e costumes.
O passar dos anos trouxe a organização política e administrativa. E aquele homem
que em si já era um caldeirão de sentimentos confusos, teve que se enquadrar em uma
lógica de controle e fiscalização da coroa portuguesa. Um olhar mais atento para as
estruturas políticas, ideológicas, sociais e econômicas portuguesas transferidas para os
domínios ultramarinos pode nos demonstrar que simplesmente o conjunto das práticas
lusitanas eram grandes incentivadoras para o desencadeamento de conflitos nas áreas
coloniais, seja na América, seja no Oriente ao longo dos séculos XVI e XVII.
16
Dessa forma, foi no mínimo com susto que o Conselho Ultramarino fechou o
balanço dos domínios lusitanos no século XVII. Também pudera, computadas dez grandes
16
Cf. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. ‘O Império em Apuros: Notas para o Estudo das Alterações
Ultramarinas e das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos XVI e XVII’ IN: Júnia Furtado.
Diálogos Oceânicos Minas Gerais e as Novas Abordagens para uma História do Império Ultramarino
Português. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2001.
121
revoltas, rebeliões e motins em todo o século obscuro, como o denomina Vivaldo
Coaracy,
17
a coroa portuguesa tinha certeza de que tais movimentos e insatisfações não
representavam casos isolados no império. Caso contrário partes tão diferentes e distantes
dos domínios lusitanos não seriam atingidos por esses acontecimentos. Havia algo de
errado? O que levaria tantas regiões a ser coevas em suas forma de manifestação? De
repente olhar um pouco mais de perto nos ajudaria a desvendar alguns mistérios, além de
nos auxiliar a contextualizar a revolta do Rio de Janeiro.
18
Tudo começara na Bahia, em 1641, em pleno Governo-geral da América
portuguesa, onde o Marquês de Montalvão, D. Jorge de Mascarenhas, suspeito por manter
aliança com os espanhóis, foi vítima dos grupos locais ultramarinos que não se adequavam
às suas medidas administrativas. Deposto do governo, assumiu em seu lugar um triunvirato
que representava os interesses da elite local, constituído por Luís Barbalho Bezerra, pelo
Bispo e pelo provedor-mor.
19
Ainda na América, alguns anos depois, em 1644, aquele que
fora um dos responsáveis pela deposição de D. Jorge de Mascarenhas, sofreria na própria
pele as dificuldades da insatisfação dos grupos locais. Luís Barbalho Bezerra, agora
governador da capitania do Rio de Janeiro, implementou um tributo para aquisição de
recursos para auxiliar na luta contra os flamengos no nordeste açucareiro. Apesar de a
taxação atender as demandas de outras regiões americanas, ter sido aceita pela população
local, não ocorreu da mesma maneira quando Luís Barbalho resolveu reverter todo o
dinheiro arrecadado para a Bahia. Insatisfeitos, os revoltosos invadiram a casa do
governador em busca do cofre onde estavam armazenadas as arrecadações. Deposto do
cargo, o governador não resistira ver ordens régias serem desacatadas e falecera logo após o
motim.
20
Do outro lado do império oceânico lusitano, Diogo Coutinho Mascarenhas seria o
terceiro administrador régio assolado por rebelião. Quando assumiu o governo de Macau,
em 1646, encontrou uma administração desgastada pela excessiva tributação para resolver
o problema da guarnição, que se diga de passagem, seja em qual parte do império português
17
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 3.
18
Tomaremos como base para exposição das revoltas no império ultramarino português, o artigo de Luciano
Raposos de Almeida Figueiredo. ‘O Império em Apuros: Notas para o Estudo das Alterações Ultramarinas e
das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos XVI e XVII’, Op. Cit.
19
Pedro Calmon. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 7 Volumes, Volume 2, 1959, p. 640.
20
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. ‘O Império em Apuros: Notas para o Estudo das Alterações
Ultramarinas e das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos XVI e XVII’, Op. Cit. , p. 202.
122
for, nunca era resolvido satisfatoriamente. Iniciado o motim, o governador fora
esquartejado, deflagrando a mais agressiva reação dos homens ultramarinos no ricochete
seiscentista.
21
Seis anos depois, em 1652, a mais prestigiosa conquista lusitana também
seria abalada com a fúria dos ultramarinos. A administração de D. Vasco de Mascarenhas,
o conde de Óbidos, na Índia, foi marcada por uma gama de insatisfações dos revoltosos,
que passavam desde a distribuição de cargos aos não fidalgos locais até a retirada das
imagens dos outros vice-reis da Índia da sala real. Resultado: prisão do vice-rei acusado de
pactuar com os espanhóis, e a tomada da administração pelos fidalgos ultramarinos. Ainda
no Oriente, enquanto a Índia depunha o conde de Óbidos, o Ceilão teria a mesma atitude
com Manuel Mascarenhas Homem, acusado de querer vender as ilhas aos espanhóis,
tornando-se, assim, um traidor da coroa portuguesa e preso durante vários meses.
22
De volta à América portuguesa, a Revolta da Cachaça, em 1660, engrossaria a lista
de motins seiscentista. Como a detalharemos posteriormente, ficaremos apenas nessa
menção. Seis anos depois, só que em Pernambuco, o governador Jerônimo de Mendonça
Furtado, conhecido como Xumbergas, foi preso, acusado de vários atentados ao bem
comum, como por exemplo:
corrupção generalizada e de práticas despóticas mediante prisões
ilegais, execução de dívidas e seqüestro das fábricas dos engenhos,
apropriação de tributos reais, infrações ao monopólio comercial,
recunhagem de moedas sem autorização real e quebra de imunidades
estamentais (em especiais eclesiásticas). Intrometera-se ainda em disputas
das grandes famílias, destituíra representantes destas nos altos postos
militares (como ocorreu com o mestre de campo D. João de Souza), entrara
em atrito com ouvidor Manuel Diniz da Silva e fizera nomeações que
atraíram o ódio geral.
23
21
Ibidem, pp. 202-203.
22
Para maiores detalhes sobre as revoltas no Oriente Cf. Sanjay Subrahmanyam. O Império Asiático
Português Uma História Política e Econômica. Lisboa: Difel, 1995; M. A. H. Fitzler. Ceilão e Portugal O
Cêrco do Colombo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928; Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri
(Dir.) História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo dos Leitores, 4 Volumes, 1999.
23
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, ‘O Império em Apuros: Notas para o Estudo das Alterações
Ultramarinas e das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos XVI e XVII’Op. Cit. , p. 209;
Cf. também Evaldo Cabral de Mello. Agosto de Xumbergas IN: A Fronda dos Mazombos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
123
A lista de acusações era tão grande quanto a elaborada pelos revoltosos fluminenses
contra Salvador Correia de Sá e Benavides em 1644 e 1660, como veremos mais adiante
neste capítulo. Dando continuidade ao ricochete, em 1667, a região africana viu seu
governador, Tristão da Cunha, ser expulso da administração angolana em prol do senado da
câmara. Não muito diferente das outras regiões, Tristão da Cunha foi afastado pelos
revoltosos por manter um governo autoritário, apoiado no nepotismo, na tirania e na
subversão das leis.
De forma definitiva, a América portuguesa assistira a mais duas rebeliões em seu
território no Seiscentos. Em 1684, no Estado do Maranhão, os jesuítas e o governador
Francisco de Sá e Menezes foram atacados pela população traída em seus interesses pelos
privilégios da Companhia Geral do Comércio do Maranhão, em 1682. Bastante semelhante
ao que ocorrera na capitania do Rio de Janeiro, em 1660, a Companhia do Comércio
prejudicou a economia maranhense, da mesma forma que os jesuítas restringiam a
utilização do gentio como mão de obra. Por fim, novamente na Bahia, em 1688, a revolta
do terço velho encerrou a onda de revoltas que assolou o império ultramarino português. O
atraso no pagamento dos soldos fez com que os soldados invadissem a cidade exigindo a
pacificação.
24
Por tudo isso, é evidente o impacto causado por todas essas revoltas no império
ultramarino português, dando o tom de instabilidade para o governo lusitano. Aliado a isso
somava-se o medo que muitas vezes fora mencionado pelos revoltosos, da aliança com
outras monarquias, sobretudo a espanhola, que acabara de romper os laços com a coroa
portuguesa. Mas, mesmo sendo as questões fiscais, tributárias e taxativas, o elemento
aglutinador desse ricochete, se observamos com mais atenção, não era necessário algo
específico para eclosão de revoltas. A própria situação de se viver nos trópicos já era um
requisito para a explosão e concretização de qualquer tipo de movimento entre os colonos.
O próprio mecanismo da estrutura política, social e cultural da Europa moderna quando
implementada nos domínios ultramarinos tornaram-se formas de incitações e
descontentamentos. A maior de todos elas era, incondicionalmente, a distância.
Luís dos Santos Vilhena em sua grandiosa obra, Notícias Soteropolitanas e
Brasílicas, quando se refere às condições de viver na América portuguesa afirmava que
24
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Op. Cit. , pp. 214-215.
124
triste é viver em colônias, longe do soberano.
25
Apesar de a frase referir-se ao Brasil
Setecentista, o significado do discurso manter-se-ia constante desde o Quinhentos até a
transferência da família real portuguesa para a América, em 1808. A distância entre as
terras américo-lusitanas e o rei proporcionava ao homem ultramarino um dúbio sentimento,
pois ao mesmo tempo que lhe trazia uma angústia incontestável, por outro lado acalentava-
o com um incomparável alívio.
Voltando à metáfora dos dois corpos do rei estabelecida por Ernst Kantorowicz
26
transportada para as áreas ultramarinas percebemos, em si, inevitavelmente, uma novidade.
Isso significa dizer que as terras além mar eram, evidentemente, contempladas pelo corpus
mysticum, seja através da permanência da religiosidade dos homens ultramarinos ou pela
fidelidade e respeito em momentos de festas, celebrações e revoltas. Entretanto, no que toca
ao corpus verum a realidade não era a mesma. A ausência física do rei relacionava-se
diretamente a lógica da pater familia, onde a existência do chefe da casa, daquele que
poderia resolver todos os problemas no momento em que eles ocorressem, seria uma
sensação que se tinha a certeza de que era inevitável, a não ser que eles abandonassem o
mundo ultramarino e voltassem para o reino português. Dessa maneira o rei era
(...) a cabeça da república, como escreve Plutarco; e nenhuma cousa
na terra há sobre ela mais que a lei, a que deve obedecer; e ela fica sendo
lei por todos os inferiores, para a imitação dos costumes e virtudes que no
príncipe estão mais certas que em outra pessoa particular de maneira que
fica sendo uma lição viva e contínua para os que assistem sua corte, na
religião, na observância das leis, nas excelências das virtudes, na
reformação dos costumes, na moderação das paixões, na justiça, na
clemência, na liberalidade , na moléstia e na constância.
27
Segundo Rubem Barboza Filho, o que justamente escapa à teoria de Antonio
Manuel Hespanha seria a aplicabilidade da metáfora dos dois corpos do rei, principalmente
25
Luis dos Santos Vilhena. Notícias Soteropolitanas e Brasílicas, Contidas em XX Cartas que da Cidade de
Salvador de Todos os Santos, Escreve um a outro Amigo em Lisboa debaixo de Nobres alusivos. Bahia:
Imprensa Oficial do Estado, 1802.
26
Ernst Kantorowicz. Os Dois Corpos do Rei Um Estudo sobre a Teologia Política Medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, pp. 128.
27
Antonio de Sousa e Silva Lobo. ‘O Rei’ Apud Joaquim Romero Magalhães. ‘As Estruturas Políticas da
Unificação’ IN: José Mattoso (Dir.) História de Portugal. Lisboa: Estampa, 4 Volumes, Volume 3, 1993, p.
73.
125
a persona ficta, na monarquia lusitana marcada pelo corporativismo. Isso porque a
imposição do rei como autoridade desencadearia uma série de conflitos entre as partes que
compunham a coroa. O que Barboza Filho faz é justamente transferir essa presença física
do rei para as conquistas ultramarinas,
28
mas o que ele também deixa escapar é que no
ultramar a inexistência física do rei também podia ser confundida com a não presença de
sua autoridade. Porque estar longe do rei era não ter o pai por perto, estar desprotegido,
mesmo que estando amparado pelas leis. Assim, pela especificidade do espaço colonial,
restava a transferência dessa visibilidade régia para outros indivíduos. A função coube aos
administradores régios, ou mais especificamente aos governadores gerais, governadores de
capitania e os vice-reis, que se tornaram a sombra do sol, aqueles responsáveis pela
permanência da paz e do bem comum onde a luminosidade solar não conseguia alcançar.
Mas, como toda prática ibérica transportada para o ultramar ganhava tons e
contornos próprios, o limite entre as atribuições que cabiam ao representante do monarca e
a ocupação da função do próprio rei por esses administradores tornou-se, indiscutivelmente,
tênue. A mistura das funções públicas com os interesses privados aliado à alta
remunerabilidade dos cargos e as fartas propinas que os administradores régios ganhavam,
os faziam figuras não muito bem vistas pelos vassalos coloniais, principalmente quando
excediam as funções que lhes cabiam. O acúmulo de atribuições dos governadores era uma
das pequenas faíscas que detonariam explosões no mundo colonial, sobretudo se levarmos
em consideração que aquela era uma sociedade pautada pelo conflito de interesses. Quando
os interesses dos homens ultramarinos não correspondiam às práticas dos representantes
régios, o motim seria o recurso acionado. Fora isso, por exemplo, que ocorrera em 1660,
quando Salvador Correia de Sá e Benavides, atropelando as determinações régias,
estabeleceu medidas que não agradavam à população. Os revoltosos alegavam que
(...) a tirania impediu a chegada aos reais pés de Vossa Majestade os
repetidos clamores deste povo a quem a violência não permitiu fossem
ouvidos, a apertada urgência das opressões que padecia, a quem o poder
tirou a liberdade de sua notícia, e finalmente a impossibilidade de meios
ordinários e recurso comum dos povos a seu rei e senhor natural (...)
29
28
Rubem Barboza Filho, Op. Cit. , p. 264.
29
Carta dos Oficiais da Câmara do Rio de Janeiro Dirigida ao Rei. Arquivo Histórico Ultramarino Português.
Documento Número 890.
126
Se a angústia abria espaço para a visualização dos governadores e vice-reis como
representantes da luminosidade solar, a dúbia funcionalidade dos cargos acarretaria
circunstâncias nos quais sombra e sol se confundiam. Visto por um outro ângulo, a mesma
ausência corporal do rei nos trópicos, de uma certa maneira, também proporcionava aos
homens ultramarinos um alívio, sobretudo no que toca a autonomia colonial frente às
decisões mais duras e mercantilistas da coroa portuguesa. Entendida desta forma, a
distância do sol em relação às regiões tropicais prolongou, por exemplo, a permanência da
escravização da mão de obra indígena na capitania do Rio de Janeiro até o final do século
XVII e início do XVIII. Nem mesmo a bula do Papa Urbano VIII conseguiu sufocar tal
prática.
30
Através de acordos estabelecid os entre o governador da repartição sul e os
colonos, conseguiu-se manter a escravização indígena na região fluminense.
31
Outra beneficiária desse alívio foram as câmaras ultramarinas, instrumento de vital
importância para a estruturação e administração política e econômica do império
ultramarino português.
32
Esses órgãos também ganharam contornos bastante peculiares nas
regiões brasílicas. No Seiscentos esse alívio fora anunciado por um conjunto de fatores que
se somavam, entre eles a autorização para a implementação de tributos, o direito de escolha
dos governadores em caso de morte dos mesmos e a responsabilidade pela defesa e
guarnição da capitania. Tudo isso, conjuntamente, proporcionava à câmara do Rio de
Janeiro uma autonomia apenas passível de ser freada pela autoridade régia.
33
Assim,
aqueles administradores régios que, de alguma forma buscavam maneiras de burlar ou
burlavam os interesses dos homens que ocupavam a câmara, tinham a grande possibilidade
de ser assolados por motins, revoltas e insurreições. Entretanto, uma análise mais
aprofundada dessa questão, permite-nos vislumbrar que o autogoverno da câmara no
30
Para as questões do impacto da Bula do Papa Urbano VIII na Capitania do Rio de Janeiro e na Vila de São
Paulo ver Capítulo 1 deste mesmo trabalho.
31
Sobre a questão do impasse entre os jesuítas e os ultramarinos Cf. Rodrigo N. Bentes Monteiro. O Rei no
Espelho A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec/Fapesp,
2002; Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII, Op. Cit. ; Charles R. Boxer. Salvador de Sá e a
Luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Editora Nacional/Universidade de São Paulo.
32
Maria Fernanda Baptista Bicalho. ‘As Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império’ IN: João Fragoso,
Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica
Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 193-194. Deve
ser ressaltado que, talvez, o primeiro autor a se empenhar em resgatar o papel político exercido pelas câmaras
ultramarinas foi Charles R. Boxer. Portuguese Society in the Tropics: the Municipal Councils of Goa, Macao,
Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison: University of Wisconsin Press, 1965.
33
127
Seiscentos, não era somente resultado da pequena luminosidade dos raios solares que
conseguiam contemplar as regiões brasílicas, mas também da própria estrutura política
lusitana transportada para o Atlântico.
Na historiografia portuguesa recente muito se discute o caráter sobre a cultura
política lusitana da época moderna. Autores como Antônio Manuel Hespanha, Nuno
Gonçalo Monteiro, Pedro Cardim, Joaquim Romero Magalhães, Diogo Ramada Curto e
José Subtil e outros tem contribuído para o entendimento da fundamentação e sedimentação
do poder político na época moderna lusitana.
34
Esses autores redimensionaram o papel e o
lugar da coroa portuguesa na política moderna, no momento em que não enxergaram mais o
poder do rei de forma tão centralizada e concentrada como convencionalmente se estudava.
Em si, estamos diante da fragmentação do conceito de absolutismo, deveras explorado pela
historiografia sobre a Europa do Quinhentos e do Seiscentos.
Pensando nesta perspectiva, Antonio Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier
caracterizam a política lusitana moderna baseada no sistema corporativo e polissonodal.
Para ambos, a estrutura corporativa determinava que
(...) o poder era por natureza repartido; e na autonomia política-
jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais, embora esta autonomia não devesse
destruir a sua articulação natural (cohaerencia, ordo, dispositio naturae)
entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os
oficiais executivos devem existir instâncias intermédias. A função da cabeça
(imput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium
corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representar externamente
a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus
membros, atribuindo a cada qual o seu estatuto (‘foro’, ‘direito’,
‘privilégios’); numa palavra, realizando a justiça.
35
O monarca seria a cabeça do reino e teria como função representar o todo, manter a
unidade e exercer a justiça. Cada corpo social seria autônomo política, jurídica e
34
Antonio Manuel Hespanha. Às Vésperas do Leviatã: Instituições e Poder Político, Portugal - Século XVII.
Coimbra: Almedina, 1984; Nuno Gonçalo Monteiro. O Crepúsculo dos Grandes: a Casa e o Patrimônio da
Aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998; Pedro Cardim.
Corte e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; e Joaquim Romero
Magalhães. ‘As Estruturas Políticas da Unificação’ IN: José Mattoso (Dir.) História de Portugal. Lisboa:
Estampa, 4 Volumes, Volume 3, 1993, p. 73; Diogo Ramada Curto. O Discurso Político em Portugal (1600-
1650). Lisboa: Universidade Aberta, 1988; José Subtil. "Governo e Administração" IN: José Mattoso (Dir.)
História de Portugal, Op. Cit. , Volume 4, 1993.
35
Ângela Barreto Xavier e Antônio Manuel Hespanha. ‘A Representação da Sociedade e do Poder’ IN: José
Mattoso (Dir.) História de Portugal. Estampa: Volume 4, 1993, pp. 123.
128
funcionalmente no conjunto total. Fundamentada por um pacto ou acordo, a atividade
política inserir-se-ia na lógica jurisdicionalista. Cabia à monarquia evitar intromissões de
competências entre os instrumentos do exercício do poder. O resultado da conjunção desses
fatores denominar-se-ia sistema polissonodal. Para Joaquim Romero Magalhães, o regime
polissonodal caracteriza-se pelo funcionamento dos poderes de forma colegiada, servindo,
exclusivamente, para o aconselhamento do monarca e para o exercício das funções
normativas, de governo e legislativa.
36
O regime polissonodal representaria, então, a base
da estrutura administrativa da coroa. O sol como cabeça preserva a autonomia dos
ministros, oficiais, tribunais e conselhos.
Pensando sob a ótica colonial, a estrutura corporativa e polissonodal ganhou uma
nova faceta. A câmara municipal nesse jogo político saiu ganhando, já que sua autonomia,
até final do Seiscentos, foi legitimada pela constante negociação do sol com os demais
instrumentos do exercício do poder. A negociação da autoridade, como afirma Jack P.
Greene, será uma condição sine qua non para que o monarca mantenha o seu poder e sua
soberania, seja no mundo metropolitano, seja no mundo ultramarino.
37
Contanto, já vimos que as atribuições dos representantes régios os maiores
responsáveis pelo bom funcionamento do quadro administrativo tropical lusitano algumas
vezes podiam se melindrar com as sobreposições de imagens (sombra/sol), o que,
porventura, poderia dotar essas regiões de um pseudo-absolutismo sob a égide das sombras.
Apesar de a América portuguesa ter o direito assegurado de enviar procuradores às cortes
portugueses, a ausência da presença efetiva e constante desses representantes ampliava
ainda mais a dependência das decisões tomadas pelo rei.
A longevidade do rei não descaracterizava a obrigatoriedade do mesmo ser
reconhecido como soberano. Todavia, a ausência de procuradores da colônia no reino
obrigava a adoção de um novo modelo de relação com os domínios atlânticos,
principalmente para afastar o sentimento de não aplicabilidade da justiça tropical lusitana.
O sol encontrou nas famílias tradicionais as respostas para suas ansiedades. Presentes na
36
Joaquim Romero Magalhães, Op. Cit. , p. 79.
37
Sobre o conceito de ‘autoridade negociada’ Cf. Jack P. Greene. Negotited Authorities Essays in Colonial
Political and Constitutional. Charlottesville: University Press of Virginia, 1999. Cabe mencionar, que um
outro autor que caminha para a mesma discussão proposta por Greene é J. H. Elliot quando analisa a própria
configuração política das monarquias européias modernas. Cf. J. H. Elliot. ‘A Europe of Composite
Monarchies’ IN: Past and Present. Número 137, 1992.
129
câmara de vereadores, essas famílias eram verdadeiramente as responsáveis pela conquista,
povoamento, construção e efetivação da prática colonial na região brasílica. A lembrança
do passado como construtores do império ultramarino português será sempre acionada por
tais famílias quando observarem que estavam perdendo espaços e privilégios econômicos e
políticos para outros grupos que não estivessem ligados à economia agrícola.
38
Isso
significa dizer que a vereança foi a grande forma da ampliação dos interesses da nobreza da
terra no mundo colonial. Do outro lado, a coroa portuguesa usará este canal como principal
via de comunicação com as famílias edificadoras do império português nos trópicos.
Assim, a visualização do mundo metropolitano e de suas condições de
sobrevivência nos leva apenas a uma conclusão: no momento em que os lusitanos, em suas
caravelas, criavam em sua mente arquétipos do que e como seria viver além das terras
européias eles não imaginavam que no mundo tropical lusitano tudo os levava a se revoltar.
No entanto, não podemos perder de vista que esse aparato encontrado no mundo colonial é
fruto da própria contradição existente entre as práticas políticas de Portugal seiscentista
transferidas para América e a política mercantilista, pois ao mesmo tempo que uma
autonomia política era estimulada ora pela distância do rei, ora pela confiança em relação
as sombras do sol ou pelo papel das câmaras a coroa constantemente oscilava entre
concessões políticas e restrições às práticas econômicas nas regiões além-mar. Mas, no
momento em que a coroa atingia a economia colonial, feria, inevitavelmente, a conquista de
status pelos homens ultramarinos. Por que a revolta, então, era um recurso acionado,
sobretudo no que tange ao mundo ultramarino?
Antonio Manuel Hespanha considera a sociedade do ‘Antigo Regime’ conflituosa,
pautada, ao mesmo tempo, pelo consenso entre os homens da naturalidade e da
desigualdade, o que conseqüentemente não proporcionaria questionamentos sobre os status
sociais, como também restringia as disputas a micro-conflitos de interesses particulares, e
38
Caso exemplar desta situação de construção do passado histórico pelos homens ultramarinos foram
resgatados por Evaldo Cabral de Mello quando discute o imaginário dos pernambucanos no momento da
expulsão dos flamengos e sua reapropriação nos acontecimentos de 1817. Cf. Evaldo Cabral de melo. Rubro
Veio O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997; sobretudo o Capítulo 3
À Custa de Nosso Sangue, Vida e Fazendas. No que tange ao debate sobre a família, Cf. Maria Beatriz
Nizza da Silva. O Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp, 1984; Scheila de Castro Faria.
A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998;
João Fragoso. ‘A Nobreza da República: Notas sobre a Formação da Primeira Elite Senhorial do Rio de
Janeiro (Século XVI e XVII) In: Topoi. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Volume 1,
2000.
130
de outro lado, pela utilização de formas de manifestação de conflitos e estratégias políticas
de forma peculiar e distinta, particular a cada grupo, não afastando a possibilidade de uma
grande dispersão.
39
Dessa forma, os grupos poderiam manifestar-se através de uma gama variada de
maneiras. A revolta informe, motim ou comoção geralmente tinha o objetivo de remediação
da má administração, afastando qualquer culpabilidade régia e sim dos conselheiros dos
monarcas. Normalmente violentas, tumultuadas, resolviam os problemas imediatistas do
cotidiano e eram chefiadas pela plebe ou pela massa orgânica.
40
Comportamento
inversamente oposto encontrava-se na resistência cortesã, marcada pela ambigüidade, pela
simulação e dissimulação, sobretudo para a conquista de apoios políticos.
41
Enquanto isso, a conjura, posicionando-se como intermediária entre as
manifestações mencionadas acima, caracterizar-se-ia por uma resistência aristocrática,
marcada pela organização e pela dissimulação. A reduzida permissão para fazer parte da
conjura relaciona-se, muitas vezes, aos laços sociais entre os conjurados, que foram
acionados pela qualidade moral e juramento.
42
O direito, ou melhor, o recurso de acionar o
direito também era uma outra maneira de resistência, mesmo de forma indireta. A partir das
determinações legislativas, o bom governo era aquele voltado, exclusivamente, para a
justiça e para o cumprimento do direito. Aqueles que de alguma forma foram vitimados
pela injustiça poderiam e deveriam pôr em ação o discurso da tirania, rebeldia, tiranicídio e
desobediência ao governo. Inserida nesta lógica do direito, a chicana burocrática,
objetivava o entravamento de processos burocráticos nos diversos órgãos da administração
governamental.
43
Ao contrário dessas formas mais diretas de manifestação, Hespanha, do mesmo
modo, apontou maneiras mais engenhosas de resistência. Entre elas, o silêncio tornou-se
uma estratégia para a recusa na participação nos mecanismos de poder, geralmente
utilizado por camponeses que não se adequavam a vida administrativa que lhe eram
imposta. Sem dúvida alguma, era uma resistência passiva, provando, mais uma vez, a
39
Antonio Manuel Hespanha. “A Resistência aos Poderes” IN: José Mattoso (Dir.), Op. Cit., Volume 4, p,
451; outro trabalho é Antonio Manuel Hespanha. "Revoltas e Revoluções: a Resistência das Elites
Provinciais" IN: Análise Social. Volume XXVIII (120), 1993.
40
Antonio Manuel Hespanha. “A Resistência aos Poderes”, Op. Cit. , pp. 451-452.
41
Ibidem, p. 452.
42
Ibidem, p. 453.
43
Ibidem, pp. 453-454.
131
utilização da dissimulação.
44
Já a fuga voltar-se-ia ora para livrar-se das amarras do
controle político, ora para a concretização de projetos de organização social. No primeiro
caso, a fuga dos judeus perseguidos pela Inquisição tornou-se um caso exemplar.
Resistindo às leis e à repressão, escamotearam sua religião em prol da sua sobrevivência.
No segundo caso, a fuga transforma-se na catalisação da resistência, visando à constituição
de uma nova sociedade, como ,por exemplo, o que ocorreu com as correntes proféticas e
utópicas portuguesas, entre elas o sebastianismo.
45
Como toda ação obviamente possui, em contrapartida, uma reação, Antonio Manuel
Hespanha também nos destaca as formas de controle destas manifestações de resistência
pelo poder régio. De um lado, tem-se o controle de maneira sutil ‘baseadas na autoridade
dos líderes comunitários chefes da casa, notáveis locais, autoridades e eclesiásticos e
nos sistemas estabelecidos de legitimação do poder piedade familiar, fidelidade pessoas,
respeitos pelas normas sociais estabelecidas, obediências aos poderes, nomeadamente ao
poder real’; do outro lado, tem-se a repressão comunitária espontânea ou penal.
Indiscutivelmente os monarcas deveriam refletir muito sobre a forma utilizada para
controlar tais manifestações, já que a sua imagem frente aos súditos emergiria de suas
atitudes. Se perdoava era visto como pai, pastor; se punia, era o justiceiro. Talvez, por isso,
que muitos deles recorriam aos mecanismos do cotidiano e mais periféricos para o
exercício de seu controle e sua autoridade, leia-se a família, as comunidades, a clientela e a
Igreja
.
Revolta, resistência cortesã, conjura, direito, silêncio ou fuga,
46
seja qual for a
manifestação, o que nos interessa dizer é que nas áreas periféricas tais manifestações teriam
algumas similitudes, mas muitas particularidades. É mais uma vez Antonio Manuel
Hespanha que nos auxilia no aprofundamento destas questões, quando aponta as
dificuldades do domínio do espaço nas diversas e variadas regiões do império ultramarino
português.
47
Dessa maneira, a unidade política e espacial advém, concomitantemente, do
44
Ibidem, pp. 454-455.
45
Ibidem, pp. 455-456. Para maiores detalhes sobre a questão sebastianista, Cf. Jacqueline Herman. No Reino
do Desejado A Construção do Sebastianismo em Portugal nos Séculos XVI-XVII. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998. Cabe ainda mencionar um outro trabalho que analisa o sebastianismo de uma forma bastante
semelhante ao proposto por Hespanha, Cf. Eduardo de Oliveira França. Portugal na Época da Restauração.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 19541.
46
Antonio Manuel Hespanha, A Resistência aos Poderes, Op. Cit. , pp. 456-457.
47
Antonio Manuel Hespanha. “Revoltas e Revoluções: Resistência das Elites Provinciais”, Op. Cit.
132
sistema político-jurídico polissonodal, obrigando, indiscutivelmente, a importância que os
órgãos administrativos mediadores entre o mundo metropolitano e o mundo ultramarino
passariam a exercer, o que Hespanha denomina nova arquitetura das redes de poder. Tais
poderes variavam dos vice-reis, naturalmente um rei constitucional e tendo o caráter mais
unificador; passando pelo grupo comissarial, compreendendo os órgãos político-
administrativos; até o grupo oligárquico, que barganhava a negociação diretamente com o
monarca.
48
Já vimos anteriormente que tais redes de poder no ultramar seriam de diferentes
maneiras acionadoras de conflitos. Os governadores, por sua superposição de imagens, os
órgãos político-administrativos pelo embate dos grupos político-econômicos que
dominava m o mundo américo-lusitano e os grupos oligárquicos, a nobreza da terra ou
nobreza tradicional, como particularmente preferimos denominar, que por seu caráter de
construtores da clivagem colonial sentiam-se no direito de ter todos os seus objetivos,
privilégios, mercês e interesses atendidos, quando não mantidos intactos.
Apropriando-se mais uma vez dos conceitos do Hespanha, podemos dizer que as
manifestações de resistência no mundo ultramarino são resultados de um campo de tensões,
oriundas de uma pluralidade de motivações.
49
Evidentemente, a questão fiscal e tributária
encabeçou a lista de motivações. Implementada de diferentes formas, muitas vezes, causava
um impacto social, político e econômico nas populações ultramarinas, gerando divergentes
reações na recepção dos impostos. Determinadas fintas atingiam mais alguns grupos do que
outros, o que sinalizava que a aversão nunca era algo generalizado.
50
Ao contrário do que
acontece com relação à distância territorial do monarca, um outro motivador de revolta, que
atingia todos os níveis sociais coloniais indiferentemente. Não há entre aqueles desprovidos
da luminosidade solar quem não sinta os desequilíbrios provocados nas decisões reais no
ultramar.
Apesar de a revolta ser um recurso recorrentemente acionado pelos ultramarinos
para extravasar suas insatisfações do dia a dia nas conquistas lusitanas, não podemos deixar
48
Ibidem, pp. 84-85.
49
A partir do levantamento destas questões, Antonio Manuel Hespanha opõe-se aos autores que vêem as
revoltas periféricas como resultado única e exclusivamente das questões tributárias e fiscais. Visando uma
relativização, Hespanha, acredita que a valorização da fiscalidade empobrece e escamoteia a rede de
interesses e conflitos que permeiam as regiões de luminosidade solar. Ibidem, p. 88.
50
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Equilíbrio Distante: o Leviatã dos 7 Mares e as Agruras da
Fazenda Real na Província Fluminense, Séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro, 2002, no prelo.
133
escapar de vista a existência das representações, das queixas e das súplicas das câmaras
também utilizadas como um outro canal possível para fazer valer os direitos dos súditos
mais distantes. Diante de outras maneiras de demonstrações de inconstâncias, a opção pela
revolta está intimamente relacionada a um acontecimento ocorrido na Europa moderna que
repercutia na América lusitana: a valorização da revolta.
As rebeliões, geralmente, tinham uma negatividade histórica incontestável. Caberá à
cultura barroca, a criação, ou porque não dizer, a recriação do valor positivo das revoltas.
Para Rosário Villari, a época barroca, foi o período no qual
a cultura de governo, visando a estabilidade política e a tranqüilidade
pública é capaz de se impor e de se tornar senso comum, marginalizando
drasticamente, mais do que acontecia em épocas anteriores, as idéias de
oposição e de protesto e as intenções subversivas mais ou menos
encobertas.
51
Assim, usando artifícios como cerimônias, festas, celebrações e castigos aos
rebeldes, os governos barrocos, como o lusitano, visavam educar e prevenir o povo dos
malefícios da rebelião. Essa estaria destinada à ruína e o castigo apresentava-se como
inevitável. O rebelde normalmente era o bandido e o individualista, mas não se descartava a
possibilidade dos grupos privilegiados envolverem-se nessas manifes tações. Diga-se de
passagem, esse era o grande temor dos monarcas barrocos: a revolta da elite. Geralmente
voltada para o cunho social, transformavam-se em disputas políticas com líderes
pertencentes à elite, sem contar que estes últimos utilizavam-se da população como uma
imensa massa de manobra para a defesa dos interesses e privilégios bastante arcaicos deste
grupo social. Muitas vezes esses grupos faziam dessas manifestações um artifício para a
preservação e manutenção de seus status nobiliárquicos e posições sociais.
52
A argumentação de Villari nos aponta para duas questões. A primeira relaciona-se à
inevitabilidade da presença do povo para que a rebelião desviasse da futura ruína. Sem a
presença do povo, a rebelião tornava-se ilegítima, sem base de sustentação e facilmente
reprimida pelo órgão central. Mas, por outro lado, deve ser condicionado a participação do
povo em rebelião somente a partir do apoio dos grupos privilegiados da sociedade, como
51
Rosario Villari. “O Rebelde” IN: Rosario Villari (Dir.) O Homem Barroco. Lisboa: Presença, 1995, p. 98.
52
Ibidem, pp. 101-102.
134
comenta Gabriel Chappys, secretário e intérprete da língua espanhola para Henrique IV, em
1602: (...) o povo não deve tomar nenhuma iniciativa, mesmo em caso de manifesta tirania,
se os grandes não estão de acordo com o rei.
53
A intensa cumplicidade entre o povo e a elite transformou-se em uma condição
fundamental para o sucesso das revoltas. Todavia, a participação popular não garantia o
atendimento dos interesses desses grupos nesses movimentos. Muito pelo contrário!
Desprovidos de argumentação, embora maior numericamente, sua presença acabava
descambando para a contemplação única e exclusivamente dos objetivos dos grupos
privilegiados. Isso não significa dizer que o povo não deveria desencadear conflitos, o
próprio Chappys afirmava:
o povo não pode ofender o soberano mas pode defender-se de
qualquer acto iníquo praticado por ele: não pode ‘subtrair-se à sujeição e a
à reverência que deve ao rei’, mas pode resistir a ofensa. É ‘contra natura’
que o inferior se vingue do superior e o mande castigar, mas defender-se é
algo natural.
54
A diferença, nesse sentido, é clara. Enquanto a elite usava o povo para o
atendimento de seus interesses, as revoltas populares serviam de denúncia da utilização
imprópria dos poderes régios, porque
defendia os direitos constitucionalistas, denunciava a violação do
laço contratual entre os súditos e a coroa, afirmava que o governo não tinha
o direito de criar impostos sem o consentimento dos súditos e a apropriação
das instituições que os representavam; defendiam a dignidade e a utilidade
geral de uma oposição inspirado no interesse coletivo
.
55
o é preciso mencionar que nas áreas ultramarinas, como é costumeiro, haverá
uma nova leitura dessas questões teóricas modernas. Mas, antes de passarmos a ela,
precisamos visualizar como todo este manancial de idéias chegará às regiões periféricas. E
por mais irônico que possa parecer, será através da eclosão de um revolta no próprio solo
53
Gabriel Chappys Apud Rosario Villari, Op. Cit., p.105.
54
Gabriel Chappys Apud Rosario Villari, Op. Cit., p. 105.
55
Rosario Villari, Op. Cit., p. 111.
135
ibérico que tais ideologias vão aflorar no mundo moderno e lançar Portugal,
definitivamente, no período barroco. Foi ela a restauração portuguesa, em 1640, contra o
domínio dos castelhanos durante sessenta anos da coroa lusitana. Vamos aos remotos
fatos...
A Ideologia Restauracionista Lusitana e Seus Reflexos no Ultramar
A morte do rei D. Sebastião, o desejado, na batalha de Alcácer Quibir, na região
marroquina, transformou a península Ibérica num local de turbulência política. A
inexistência de um sucessor direto para o trono lusitano agravou-se ainda mais com a
coroação, em 1578, do cardeal D. Henrique, tio do desejado. A debilidade física e a recusa
do Papa Gregório XIII em liberar o monarca do celibato pareciam destinar a coroa
portuguesa um fim inesperado. Dois anos depois, a morte de D. Henrique reabria a
discussão sobre a sucessão régia, trazendo a lume vários pretendentes ao trono. Na corrida
rumo ao controle da coroa portuguesa, dois descendentes de D. Manuel, avô de D.
Sebastião, saíam na frente: D. Antônio, Prior de Crato, neto de D. Manuel e Filipe II, rei da
Espanha e filho de D. Isabel de Portugal e Carlos V.
Com forte apoio popular, D. Antonio assumiu o trono lusitano, mas não conseguiu
conter o avanço castelhano em seu território. Instaurado o período filipino, em 1580,
Portugal e todo seu domínio ultramarino passaram a estar sob a égide espanhola. Após a
catástrofe de Alcácer Quibir, a subida de Filipe II ao trono lusitano tornou-se para os
portugueses, segundo Eduardo de Oliveira França, um castigo divino que deveria ser
respeitado, porque a um bom rei amá-lo; a um mau rei suportá-lo. Mas sempre o rei. O rei
era castelhano. Embora era um descendente de D. Manuel. E era o rei de Portugal.
Enquanto fosse o rei de Portugal, bom ou mau, havia de ser respeitado.
56
Na tentativa de amenizar o controle castelhano na coroa portuguesa, em 1581, foi
assinado o pacto de Tomar, cuja função era garantir a permanência das leis, tributos e
instituições lusitanas, pacto este que se tornou fundamental na estratégia de retomada da
56
Eduardo de Oliveira França. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Universidade de São Paulo,
1951, pp. 115-116.
136
coroa pela dinastia bragantina. Entretanto, o próprio processo de restauração trazia em si
um empecilho para sua concretização: como destronar um rei que, segundo as teorias
difundidas desde a antigüidade clássica, era um representante de Deus na Terra? No
período moderno, essas mesmas idéias foram difundidas por Jacques Bossuet, Jean Bodin e
Cardim Lê Bret, que fundamentavam o poder como:
(...) produto da vontade de Deus, e exercida na Terra pelas dinastias
reinantes, que assim eram revestidas de uma dignidade quase sagrada, que
as autorizava não só a exercer um poder temporal ilimitado, mas ainda a
tutelar as próprias Igrejas nacionais (galicismo).
57
A vertente providencialista do poder político moderno tinha uma influência inegável
na península Ibéria, sobretudo se levarmos em consideração a própria fundação do Estado
moderno português, permeado de religiosidade e devoção divina, principalmente no que
toca ao milagre de Ourique.
58
Segundo Hespanha e Xavier, o movimento aristocrático de
1640 optou pelo paradigma corporativo para buscara liberdade política frente aos
castelhanos. Influência pela segunda escolástica, este paradigma reapropriou as teorias
tomistas. São Tomás de Aquino (1224-1274), dominicano e napolitano, estudou em Paris,
onde tomou contato com o pensamento aristotélico. Sua obra foi totalmente influenciada
pelos escritos do pensador grego, objetivando comprovar que o cristianismo e a filosofia de
Aristóteles eram compatíveis, iniciando a escolástica.
59
No que se refere à fundamentação
política, o tomismo acreditava que Deus era fonte do Estado e do direito. Enquanto o
direito voltava-se tanto para a esfera humana (direito natural) quanto para a hierarquização
de valores (direito divino) o Estado, entendido como o monarca, já que o tomismo defende
o governo de um só, seria legítimo no momento em que respeitava o direito natural e o
direito divino.
60
57
Antonio Manuel Hespanha & Ângela Barreto Xavier, Op. Cit. , p. 127.
58
Cf. Ana Isabel Buescu. Memória e Poder Ensaios de História Cultural (Séculos XV-XVIII). Lisboa:
Cosmos, 2000.
59
Danilo Marcondes. Iniciação à História da Filosofia Dos Pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1997, p. 126.
60
Luis Reis Torgal. Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, Volume II, 1982, pp. 6-7.
137
A função do Estado voltava-se para a conservação da unidade e da paz, ‘tanto mais
útil será um regime, quanto mais eficaz for para conservar a unidade da paz’.
61
Sendo
assim, no momento em que o governante não respeitava mais tais pressupostos e visava ao
bem privado ao invés do bem público, sua caracterização como tirano seria inevitável, e
justificava-se, por conseguinte, a resistência. Instituído por um pacto, no Estado o rei tinha
função da manutenção do bem comum e do bem material e eterno; do outro lado, os
súditos, que possuíam tal poder derivado de Deus, transferiam-no para o soberano.
Os pressupostos tomistas atravessaram a idade média e tomaram uma nova
fisionomia na idade moderna, principalmente na Ibéria e na Itália, configurando a segunda
escolástica. A difusão das idéias luteranas na Europa quinhentista contribuiu para o
aparecimento das concepções políticas modernas protestantes. Os protestantes criticavam a
intervenção do Papa no poder temporal, rejeitavam a tradição católica e repudiavam a
hierarquia eclesiástica e a Igreja como instituição religiosa, considerada como um
congregatio fidelium. Dessa maneira, foi diante desta realidade, segundo Quentim Skinner,
que ressurgiram as idéias tomistas. O neotomismo apareceu como resposta às críticas
luteranas e, ao mesmo tempo, contribuindo para a elaboração de uma nova teoria do
Estado, subordinada ao direito natural
62
e alavancada pelos canonistas, filósofos, teólogos e
jesuítas.
63
A segunda escolástica foi baseada em um tomismo renovado, na análise da filosofia
grega, nas sagradas escrituras, na tradição cultural cristã e no direito romano. A reunião
destas idéias marcou o aparecimento de uma teoria política original e adequada ao contexto
lusitano de resistência filipina. Em primeiro lugar, esses homens acreditavam que a
ordenação da sociedade política fora feita pelos homens e não por Deus. Os homens em um
estado de natureza viviam em plena liberdade, igualdade e independência, sendo por isso
um estado pré-social e não solitário, porque consideravam o homem como um animal
social, da mesma mane ira que Aristóteles o concebia. Porém, a vida no estado da natureza
era permeada de incertezas e injustiças, pois os homens eram criaturas decaídas e egoístas.
61
São Tomás de Aquino. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 131.
62
Quentim Skinner. Os Fundamentos do Pensamento Político. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p.
414.
63
Entre estes teóricos podemos apontar Francisco de Vitória (1485-1546), Diogo de Covarubias (1512-1577),
Fernando Vazquez (1509-1566), Domingo Couto (1494-1560), Roberto Bellarmino (1542-1611), Francisco
de Toledo (1532-1596), Gregório de Valencia (1549-1603), Francisco Suaréz (1548-1617), Gabriel Vazquez
(1549-1604), Luis de Molina (1535-1600) e Azpicuelta Navarro.
138
Logo a própria ‘natureza das coisas’ levaria a formação de uma sociedade política,
estimulada, por conseguinte, através de interesses pessoais. Assim,
numa sociedade natural acabaríamos por reconhecer a
impossibilidade de manter a justiça, julgaríamos racional do nosso livre
consentimento à instituição de uma República, concordando mutuamente em
limitar nossas liberdades a fim de alcançar, por esse meio indireto, maior
grau de independência e segurança para nossa vida, liberdade e estado.
64
A sociedade política passou a existir diante do consentimento dos homens, sendo
somente em detrimento dessa concessão que se constitui a legitimidade do governo
instaurado. Nem mesmo a sucessão hereditária tem caráter legal se não for respaldado pelo
consentimento. Diante disso, podemos afirmar que o poder foi criado pelos homens, que
fora iluminado por Deus. Francisco Suárez, um dos mais importantes pensadores do
movimento lusitano de 1640, acreditava que o poder derivava de Deus, que,
conseqüentemente, derramava sobre a natureza humana. Através do consenso, os homens
outorgavam o poder a um rei, que a partir daquele momento representaria a unidade
complexa e orgânica, fundamentando o pactum subjectiones.
65
Entretanto, a concepção
neotomista impunha determinadas limitações ao poder régio, porque
uma vez que a doutrina corporativa do poder estabelecia como núcleo
dos deveres do rei o respeito da justiça, este ficava obrigado a conservar o
direito, quer enquanto conjunto de comandos (dever de obediência à lei),
quer enquanto instância geradora de direitos particulares (dever de respeito
dos direitos adquiridos).
66
Por tudo isso, o soberano ao receber o poder através de um pacto, passava a ter
como função administrar com justiça o bem estar social, nem que para isso estivesse sob a
64
Quentim Skinner, Op. Cit. , p. 438.
65
Luis Reis Torgal, Op. Cit. , pp. 15-16.
66
Antonio Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, Op. Cit. , pp. 129-130.
139
égide das leis. O não cumprimento do que foi determinado no pacto abria a brecha para que
a legitimidade do governo fosse ferida e o direito natural posto a serviço da população.
De uma forma geral, foi o conjunto dessas idéias da segunda escolástica que foram
apropriadas pelos autores do movimento restauracionista, sobretudo Francisco de Velasco
de Gouveia, e contribuíram para que os lusitanos tivessem certeza de que somente a
deposição seria capaz de pôr fim ao domínio dos Áustrias em Portugal. Em sua obra, Justa
Aclamação, Gouveia defendia que o poder do Estado advinha de Deus, mas não cabia ao
Papa a intervenção nos assuntos do poder temporal, como por exemplo, no caso da não
autorização do Papa Gregório XIII de liberar o celibato do cardeal D. Henrique. O poder
conservado pelos homens, através do direito natural, que no momento da transferência
consentida para um monarca, tornava-o legítimo desse direito. Sobre a transferência do
poder, afirmava que
os povos transferiam totalmente nos reis seu poder, e império, não foi
abdicando-se totalmente dele, senão ficando-lhe ao menos in habitu, para o
poderem reassumir in actu em alguns casos, e com certas circunstâncias, em
que assim o pedisse justamente a razão de sua natural conservação, e
defensão.
67
A quebra do pacto acarretaria a tirania, abrindo a possibilidade da deposição, seja no
caso do tirano intruso sem título ou no caso do tirano no governo. Definitivamente, o
caminho estava aberto. Os autores restauracionistas Manoel Fernandes Vila Real e Antonio
Henriques Gomes, alegavam que no momento da morte de D. Henrique, em 1580, cabia ao
povo o direito natural e legítimo de escolher seu novo governante. No entanto, a usurpação
do cargo por Filipe II, à primeira vista, pode nos dar a falsa idéia de que o mesmo se
enquadraria na caracterização de tirano, especificamente um tirano por usurpação. Mas, se
levarmos em consideração o inesgotável esforço do rei luso-castelhano em fazer sua
administração legítima, abandonamos de imediato tal proposição, até porque, mesmo
"usurpando" a coroa lusitana o próprio estabelecimento do pacto de Tomar demonstrava
que o mesmo estava aberto às negociações, o que da mesma forma comprova que a
67
Francisco de Velasco Gouveia Apud Luis Reis Torgal, Op. Cit. , p, 28.
140
monarquia Habsburgo era intensamente influenciada pelas idéias neotomistas, sobretudo
com relação à aplicabilidade do direito natural, senão a existência do acordo assinado em
Tomar seria inadmissível.
68
E se, equivocadamente, pensamos como um tirano, um tirano
por exercício, em 1640, o rei era outro, Filipe IV, não sendo responsável pelos
acontecimentos do século anterior.
A partir desse empecilho, os restauracionistas voltaram-se para as condições do
pacto e as dimensões desse poder. O respeito pelo bem comum e manutenção do direito
natural sustentavam tais pressupostos, sendo assim, descompor o pacto era contradizer as
bases de poder. E foi justamente o que Filipe IV fizera, no momento em que não respeitava
o pacto de Tomar, assinado nas cortes lusitanas em 1581. Ele garantia a autonomia
administrativa, legislativa e tributária da coroa portuguesa, cuja administração durante todo
o período filipino esteve sobre o controle de vice-reis. Fora justamente o inverso que
ocorreu em 1640 com Filipe IV:
afligiram-no (os portugueses) com excessivos tributos, não residiram
no reino, nem o príncipe ou Infante foi enviado, chegando a governá-lo um
castelhano o Duque de Villa França, contrariando as promessas.
Esbanjaram-lhe o patrimônio, tiraram gente do reino para guerras
estranhas, espionaram os vassalos, descuidaram-se da preservação das
colônias. Enfim, eram maus soberanos.
69
Logo, seguindo a teoria política moderna baseada no neotomismo e difundidas na
Ibéria de forma intensa, o monarca luso-espanhol era um legítimo tirano e deveria ser
destituído. À queda de Filipe IV, conduzida pelo movimento aristocrático, sucedeu a
aclamação de D. João IV, português e descendente de D. Manuel I. No entanto, a
restauração não trazia consigo a modernização do governo português. Sinalizava a volta ao
passado ou como o próprio Eduardo de Oliveira França nos ensina:
68
Mesmo com um trabalho voltado para a análise de macro-perspectivas, Perry Anderson critica a existência
de uma monarquia absoluta na Espanha. Segundo ele a distinta realidade que permeava os reinos de Castela e
Aragão não conseguiu ser resolvido nem com o casamento de Isabel e Fernando, o primeiro pela centralidade
do poder, enquanto o segundo com um governo mais descentralizado, sendo esta uma das razões para o
fracasso espanhol e também lusitano na constituição de forma absolutista de poder. Perry Anderson.
Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985, especialmente o capítulo O Estado
Absolutista no Ocidente. Cabe mencionar mais uma vez que Rubem Barboza Filho relativiza tais proposições
considerando que a autoridade monárquica Ibérica torna-se transparente nas conquistas ultramarinas. Cf.
Rubem Barboza Filho. Tradição e Artifício, Op. Cit. , especialmente o capítulo O debate Histórico sobre os
Séculos de Ouro na Ibéria.
69
Eduardo de Oliveira França, Op. Cit. , p. 261.
141
uma volta depois da fuga. Um reajustamento. Busca pelo homem
artificial e triste, de uma atmosfera, mais que de uma filosofia. Uma
atmosfera envelhecida de ressurreição saudosa, e não uma filosofia
renovadora para um futuro melhor.
70
Mesmo que a restauração não tivesse implementado alterações na política-
econômica, é visível que para uma monarquia católica, como a portuguesa, a forma
perspicaz utilizada para destronar o monarca espanhol modificou profundamente a
ideologia política moderna. Talvez essa seja a maior contribuição da historiografia recente
sobre a restauração: desvincular os acontecimentos de 1640 de seu caráter nacionalista e
aproximá-lo, cada vez mais, da existência da necessidade política construída após anos de
domínio hispânico. O que significa dizer que as visões românticas que até prevaleciam
como ponto de vista preponderante para analisar o movimento restauracionista português
71
cedem espaços ao debate de uma complexa conjuntura emancipacionista que sucumbiu em
meados do século XVII.
72
Obviamente que as regiões ultramarinas foram tocadas por esta nova teoria política
que passavam a respaldar as insatisfações dos súditos frente ao rei, flexibilizando a
autoridade régia. Se todos os fatores até então mencionados eram motivações mais do que
suficientes para a eclosão de motins e revoltas, a ideologia restauracionista portuguesa não
só alicerçava, como legitimava as revoltas em todo o império ultramarino português.
Todavia, o discurso restauracionista que poderia possibilitar reivindicações contra a
autoridade régia diante da realidade colonial fez outras vítimas que não o sol. Adaptado nas
condições ultramarinas, a ideologia da restauração vitimou os governadores e vice-reis, ou
seja, as sombras, que segundo os homens ultramarinos tornaram-se tiranos no momento em
que tentavam ocupar a posição e a luminosidade solar, aproveitando-se da distância dos
monarcas. Apesar de analisarmos, em seguida, a pluralidade de motivações que envolveram
70
Ibidem, p. 261.
71
Sobretudo a obra de Eduardo de Oliveira França. Portugal na Época da Restauração, Op. Cit.
72
Antonio Manuel Hespanha. "La 'Restauração' Portuguesa en los Capitulos de las Cortes de Lisboa de 1641"
IN: J. H. Elliot et alli. 1640: La Monarquía Hispânica en Crisis. Barcelona: Editora Crítica,1992; Rosario
Villari. "Revoluciones Periféricas y Declive de la Monarquia Española" IN: J. H. Elliot et alli. 1640: La
Monarquía Hispânica en Crisis, Op. Cit. ; Luis Reis Torgal. Ideologia Política e a Teoria do Estado na
Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, Volume 2, 1982.
142
a Revolta da Cachaça, em 1660, cabe, neste momento, tentarmos visualizar de que forma o
discurso de 1640 foi relido em solo brasílico por esses mesmos revoltosos.
A criação do imposto predial por Salvador Correia de Sá e Benavides, em 1660,
para tentar resolver os constantes problemas da guarnição da capitania do Rio de Janeiro,
apenas coroou as diversas críticas que os ultramarinos fluminenses tinham desde a sua
primeira administração. Sua intensa relação com os jesuítas, seus privilégios na Companhia
Geral do Comércio, seu grande acúmulo de propriedade e seu intenso controle na
comercialização do açúcar despontaram nos fluminenses inúmeras razões para a eclosão de
uma revolta. No auto de aclamação de Agostinho Barbalho Bezerra, de 8 de Novembro de
1660, já marcava a presença do discurso restauracionista:
(...) os oficiais da câmara, que de presente servem, depois de juntos
lhe representou o dito povo, dizendo em primeiro lugar, que vivesse El-rei
nosso senhor D. Afonso, de quem eram leais vassalos, e que como tais lhe
representavam em como em trinta do mês passado (a esta cidade) de
Outubro se haviam junto de outra da dita cidade, onde chamam a Ponta do
Brabo, de onde pretendiam passar a esta cidade, magoados, queixosos e
oprimidos pelas vexações, tiranias, tributos, fintas, pedidos, destruições de
fazendas que lhes havia feito Salvador Correia de Sá e Benavides, tratando
só de suas conveniências, sem atender ao bem comum dele dito povo.
73
Deve ser destacado a priori, como demonstra o documento produzido pelos
revoltosos, que os mesmos em nenhum momento questionavam a autoridade ou
legitimidade da administração régia, pelo contrário, faziam questão de frisar que eram fiéis
e leais vassalos ao rei D. Afonso, porque somente com essa atitude poderiam ser
respaldados pela justiça da luminosidade solar. Talvez seja por isso que os revoltosos
alegavam, inclusive, que suas ações estavam sendo tomadas e realizadas em representação
da figura do monarca, ou seja, em seu beneficio como tais lhes representavam.
O que afligia os homens ultramarinos era a sombra, que administrava contra o bem
comum do povo e por conseqüência os deixavam magoados, queixosos e oprimidos. Fora
justamente a alegação de que Filipe IV não governava visando ao bem público e comum,
parte integrante do direito natural dos homens e concedido ao soberano através do pacto
73
Excepto de uma Memória Manuscrita sobre a História do Rio de Janeiro durante o Governo de Salvador
Correia de Sá e Benavides. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. , p. 4 . Os Grifos
são meus.
143
consensual, e sim o bem privado e particular, que permitiu à aristocracia lusitana depor o
rei. Nos trópicos a função do governador, como representante direto do monarca nas terras
desprovidas de luminosidade solar, por conseguinte, seria também a manutenção da paz, do
direito natural e do bem público. Quando essa condição não era cumprida, a legitimidade
de sua administração não deveria ser obedecida. Por isso, os revoltosos exigiam da coroa
portuguesa que
(...) o haja por bem, por ser em utilidade e conservação dos
moradores dela e vassalos do dito Senhor, que os devia amparar e não
oprimir (...) e que requeria o dito povo, da parte de Sua Majestade, e que o
que obrasse fosse com toda a paz e quietação, com mais fosse servido de
Sua Majestade, e bem da república, de que eu tabelião dou fé ouvi-lo assim
ao dito Thomé Correia de Alvarenga; o que ouvido e sabido pelo dito povo
todo junto e congregado, todos a uma voz aclamaram que elegiam e
queriam, como efeito disseram e elegeram por Governador desta praça e
seu distrito ao Capitão Agostinho Barbalho Bezerra, fidalgo da casa de Sua
Majestade, comendador da Ordem de Cristo, e filho de Luís Barbalho
Bezerra, que Deus tem, Governador que foi desta praça, por ser pessoa em
que concorriam todas as qualidades e partes necessárias para ao dito
cargo, para que o governasse com justiça assim como na guerra como na
política.
74
É visível na documentação que, apesar de não questionarem o poder régio, os
homens ultramarinos exigiam o cumprimento do pacto entre os súditos e o soberano, onde
o sol deveria amparar e não reprimir. O amparo era condicionado à manutenção dos
interesses e privilégios dos grupos envolvidos na Revolta da Cachaça, principalmente
quando os mesmos benefícios são corrompidos pela administração local. Por isso, a
conservação que solicitavam ao rei era a retirada do governador Salvador Correia de Sá e
Benavides do cargo público da capitania do Rio de Janeiro.
A função do governo, como foi mencionado, seria manter o bem da República e a
paz. No entanto, no espaço colonial, a administração régia, personificada na figura dos
ouvidores, vice-reis, governadores e demais altos cargos deveria conciliar a adoção das
necessidades práticas do mercantilismo e a preservação dos interesses próprios dos grupos
locais que viviam o dia a dia colonial. Em momentos de crise, a incompatibilidade entre os
objetivos afloravam e o questionamento da autoridade tornava-se inevitável, sobretudo após
a popularização das revoltas no ultramar e na Ibéria.
74
Ibidem, p. 5. Os grifos são meus.
144
No lugar daquele que não cumpria o estabelecido no pacto assumiria a
administração quem se enquadrava nos pressupostos anteriormente condicionados. No caso
específico do movimento de 1660, governar com justiça assim como na guerra como na
política significava a proteção e o respaldo dos direitos naturais da nobreza da terra,
aqueles que ‘às custas do sangue, vidas e fazendas sustentavam o mundo metropolitano e
colonial. Torna-se importante destacar que a transferência da administração da capitania
durante a Revolta da Cachaça atrelava-se, necessariamente, à escolha de um ultramarino
que não só respeitasse a lógica do contrato, como também conhecesse a peculiaridade
colonial, ou seja, alguém que se identificasse com a nobreza da terra. Logo, Agostinho
Barbalho Bezerra além de ser proprietário de terra, era filho de Luís Barbalho Bezerra
governador vitimado por uma revolta em 1644.
A partir desta realidade, podemos apontar duas peculiaridades do mundo
ultramarino. Em primeiro lugar, não bastava ser justo, preservar o bem comum e o direito
natural para ter o controle da administração local, era necessário fazer parte de uma família
tradicional, que tivesse ocupado cargos administrativos e por isso possuísse prestígios e
status social. Pertencer a uma família tradicional tornou-se a base de negociação dos
homens ultramarinos com a coroa, pois eram muitas vezes estas mesmas famílias que
estavam presentes na câmara de vereadores.
75
Em segundo lugar, a própria questão da identidade colonial. Eram justamente nestes
momentos de conflitos que os homens ultramarinos reconheciam-se enquanto um grupo
específico, senhor de direitos naturais e, por conseguinte, autorizados a barganharem suas
necessidades frente à coroa portuguesa. Evidentemente, a identidade colonial referia-se à
condição específica de viver nos trópicos, sublinhado em circunstâncias cruciais de
negociação com o sol, sendo essas divergentes situações que faziam descortinar diferentes
identidades.
Por fim, o último ponto apropriado das bases de fundamentação do poder moderno e
difundidos pela restauração lusitana pelos revoltosos ultramarinos seria a caracterização do
75
A mesma obra de Evaldo Cabral de Melo também contribui para a formação destas idéias. Ao analisar a
sociedade pernambucana após a expulsão flamenga, o autor demonstrou, mesmo timidamente, como que a
nobreza da terra usará o discurso de família tradicional para aumentar seus benefícios frente aos mercadores
pernambucanos. Evado Cabral de Melo, Op. Cit. , passim.
145
tirano. Nas palavras dos revoltosos, ao acusarem Salvador Correia de Sá e Benavides, eles
diziam:
13º - Que era tão tirano que muitas vezes obrigara os oficiais da
Câmara a fazer pedidos clandestinos aos moradores e em particular aos
navegantes e mercadores (...)
27º - Que tinha sob o pretexto de serviços reais, lançava
constantemente fintas, contribuições, como no tempo em que era General
da esquadra e encarregado de restaurar Angola, cobrado, nessa ocasião, à
força, mas de 80 mil cruzados(...)
76
Nas colônias, as bases de tirania também assumiam uma nova fisionomia. Não que a
preservação do bem comum, da justiça e do direito natural não fossem condições que
caracterizassem um tirano, mas sim que a aplicabilidade do conceito dava-se,
principalmente, quando os homens bons fossem taxados, tributados e vexados, sem o
consentimento do rei. No caso de Salvador Correia de Sá e Benavides, a acusação de tirania
relacionava-se ao aproveitamento do cargo que ocupava para beneficiar-se dele, visando ao
bem particular e não ao bem público. Segundo Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, a
figura do rei tirano presente na restauração assumiu no Atlântico o aspecto do funcionário
tirano. E mais do que isso, um funcionário que se aproveitava do cargo que ocupava em
solo ultramarino, como não respeitava a figura da autoridade régia a partir do momento em
que tentava assumir seu lugar. Por isso, além de ser um tirano era um traidor, passível de
ser expulso do cargo.
77
O sol, pelo pactum subjectionis, havia recebido o poder dos homens para abandonar
a sociedade da natureza. A partir disso, sua função passava a ser manter a paz e o direito
natural. Seus funcionários absorveram essas obrigações, pois a legitimidade do governo
encontrava-se na manutenção do pacto. Quando um representante régio não cumpria sua
função, representar o rei, tornava-se legítimo sua destituição do cargo. Mas como veremos
adiante o desfecho do conflito comprovaria justamente essas questões.
76
Acusações Contra Salvador Correia de Sá e Benavides e Thomé Correia de Alvarenga Escrita pelos
Camareiros para a Coroa. Alberto Lamego Filho. Terra Goytacá à Luz de Documentos Inéditos. Paris:
L´edition d´arte, 1946, pp. 79-83.
77
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. ‘O Império em Apuros: Notas para o Estudo das Alterações
Ultra marinas e das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos XVII e XVIII’, Op. Cit. , pp.
222-223.
146
Por tudo isso, realmente é correto o suspiro de Vilhena : triste é viver em colônias!
Aqui tudo era reapropriado, readaptado, recriado e redimensionado conforme as
necessidades. Nada escapava da possibilidade de mudanças, das inconstâncias e das
circunstâncias imprevistas. A distância, a ideologia, a estrutura política, as revoltas, enfim o
mundo colonial nos dá a impressão de que as regiões coloniais viviam em uma sincronia
diferente da Ibéria, como se fossem relógios funcionando com ponteiros invertidos.Talvez
tal inversão possibilitou a sobrevivência do mundo colonial durante muito tempo autônomo
do mundo metropolitano, da mesma forma que o encontro destes ponteiros, pôde ter
propiciado o rompimento dos laços que uniam Portugal ao ultramar.
Entre a Periferia Política e o Centro Econômico Fluminense
Vimos até o momento que as agruras da administração de Salvador Correia de Sá e
Benavides somente aceleraram a gestação do movimento de 1660. As restrições e
privilégios impostos pela Companhia Geral do Comércio do Brasil, as dificuldades que a
exportação açucareira sofria, as constantes incertezas econômicas da guarnição fluminense
e as taxações e fintas que começaram a ser aplicadas na capitania do Rio de Janeiro eram já
motivos para a detonação das engrenagens para a eclosão da revolta. Da mesma maneira, a
freguesia de São Gonçalo de Amarante era atingida por todas essas questões.
Especificamente sobre a economia, a região fora solapada pelos reveses ultramarinos do
Seiscentos. Grande líder da Revolta da Cachaça, a recém-criada freguesia de São Gonçalo
de Amarante teve um atrativo a mais para desempenhar a posição dianteira nos assuntos
relativos à aplicação do motim: a questão política.
Depois de perderam as negociações sobre o imposto que visava reabilitar a
guarnição para Salvador Correia de Sá e Benavides, quando, o mesmo, autoritariamente
impôs uma taxação sobre cada cidadão, os ultramarinos aproveitaram-se da ausência do
administrador régio para tentar uma nova rodada de negociações com o governador
interino, Thomé Correia de Alvarenga. Utilizando-se do recurso do direito, que
sedimentava as teorias políticas modernas, os revoltosos elaboraram, em reunião na Ponta
do Bravo, no derradeiro de outubro de 1660, os capítulos que propõem o povo deste
147
recôncavo desta cidade que se ajuntou na Ponta do Brabo ao Senhor governador Thomé
Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores. Logo de princípio, os fluminenses
faziam questão de demarcar a proposta dessa negociação:
em primeiro lugar protesta o dito povo que são muito leais vassalos a
El Rei nosso senhor Dom Afonso que Deus Guarde e mui obedientes ao
Senhor Governador Salvador Correia de Alvarenga e mais Ministros Reais,
e que sua vinda e congregação não fez nem é motim, senão viesse lançar aos
pés do dito Senhor Governador requererem lhe sua justiça, e representar lhe
a razão de sua queixa que deduzem pelos capítulos (...)
78
A confirmação da fidelidade e lealdade se repete como condição para a
continuidade da barganha, sem a qual não haveria avanço nas negociações. Em um segundo
momento, os pré-revoltosos passaram a lista, que somavam quinze itens que desejavam que
fossem revistos pela sombra interina. Confirmando o que temos visto até agora, o
primeiríssimo item rela cionava-se a uma sagaz crítica à administração da sombra luso-
espanhola:
- Que em nenhum caso querem que governe esta praça e mais
distrito o governador Salvador Correia de Sá e Benavides pelas muitas
fintas, tributos e tiranias com que tiraniza este cansado povo destruindo suas
fazendas tomando lhes com violência sem atender a conservação dos
vassalos de Vossa Majestade e seus diante se verá, e irem os tais tributos e
fintas de que é senhor absoluto e não surgem eles o remédio que publica
obrigando a cansá-las descompondo os moradores de palavras impedindo
lhe o requerimento de sua justiça a ir lhe a mão tudo.
79
Resgatando o discurso restauracionista, os homens bons acusavam Salvador de Sá
de prevaricar contra o bem comum, impondo tributos que não eram bem quistos,
conseguindo somente a inexistência da manutenção da paz. Reafirmando como fiéis à coroa
portuguesa, exigiam o atendimento de suas necessidades para que fosse conservado o pacto
estabelecido. Nesse sentido, os capítulos elaborado pelos ultramarinos gonçalenses nos
revela uma questão até então pouco cotejado pela historiografia sobre a revolta: a posição
política que o recôncavo gonçalense ocupava na capitania do Rio de Janeiro. O nono item
dos capítulos descortinava uma das várias dificuldades que São Gonçalo enfrentava para se
78
Capítulos que Propõem o Povo deste Recôncavo desta Cidade que se Ajuntou na Ponta do Brabo ao Senhor
Governador Thomé Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores. Biblioteca Nacional de Lisboa.
Fundo Geral, Caixa 199, Número 47.
79
Ibidem, passim.
148
fazer presente nas principais discussões políticas fluminenses, tentando de alguma maneira
remediar a situação adversa:
que para bom governo desta Republica se faça a eleição dos oficiais
da câmara e sem suborno elegendo para ela os homens mais antigos e
prudentes que houver nesta praça e seu distrito mando-se um mês antes de se
fazer fixar três editais um na freguesia de Macacu, outro em São Gonçalo,
outro em Irajá para que assim venha a notícia de todos per a irem votar e o
procurador da câmara seja sempre o vereador mais moço do ano que
acabou para dar notícia dos negócios de câmara, e não entrarem todos os
oficiais as cegas.
80
A distância dessas regiões da cidade do Rio de Janeiro dificultava o acesso às
informações relativas às decisões políticas da capitania, as mesmas haviam sido
reconhecidas pouquíssimo tempo como povoamento enraizado e solidificado,
merecendo o título de freguesia, em 1644.
81
Assim, uma dicotomia permeava o imaginário
dos homens que viviam para além da baía da Guanabara: apesar de possuírem uma
privilegiada posição econômica na capitania, a situação era outra quando se tratava das
questões políticas. O pêndulo que oscilava entre a posição de centro e a posição de periferia
tentaria ser ajustado com a Revolta da Cachaça. Porém, antes de avançarmos na discussão
da revolta e na questão política gonçalense é necessário demarcar algumas considerações
sobre dois conceitos que permeiam este trabalho: centro e periferia.
Segundo o historiador A. J. R. Russell-Wood, as relações existentes entre centro e
periferia no momento em que são visualizadas no império ultramarino lusitano devem ser
flexibilizadas, pois elas estão caracterizadas de duas maneiras distintas: a primeira, seria a
própria relação desenvolvida entre a coroa lusitana e a América portuguesa,
respectivamente centro e periferia; a segunda, relacionada no espaço ultramarino, onde
determinadas regiões assumiriam o papel de centro, seja por sua supremacia política,
80
Ibidem, passim.
81
O Doutor Antonio de Marins Loureiro administrador da jurisdição eclesiástica do Rio de Janeiro e das
mais Capitanias do Sul acerca dos principais moradores e religiosos dela lhe representarem com muita
instância a preciosa necessidade que há no recôncavo daquela administração que dista léguas da Igreja
Matriz e da Candelária daquela cidade onde há urgente necessidade de se erigirem quatro vigairarias pelas
muitas almas que morrem sem sacramentos de unção e crianças em os santos óleos pelas duas vigairarias
referidas (...) as ditas quatro vigairarias e freguesia uma no Campo de Irajá, outra em (...), outra
Enterieguirapenga, outra em Guasetimba. Alvará e Mercê que Sua Majestade Faz como Governador e
Perpétuo administrador que é do Mestrado da Cavalaria e Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo para que nesta
Capitania do Rio de Janeiro se Erijam quatro Vigairarias de novo. Arquivo Nacional. Códice 61, Volume 1,
pp. 216v-219v.
149
econômica ou administrativa, e outras regiões encontrar-se-iam em posição periférica em
detrimento das áreas centralizadores.
82
A pluralidade de centros e periferias proposta por
Russell-Wood, balizadas por parâmetros como o povoamento, a demografia, a
administração e o comércio, serão apropriados por este trabalho para analisar a posição
gonçalense na capitania do Rio de Janeiro.
A aproximação com o litoral e o rápido estabelecimento de núcleos urbanos ou vilas
daria à capitania do Rio de Janeiro, aliado à Bahia, o indiscutível papel de centro político e
populacional da América portuguesa.
83
As duas regiões eram consideradas núcleos do
império ultramarino, condicionando, com isso, a conceituação das áreas que posicionavam-
se à sua margem como periferia. A condição periférica era geralmente relacionada as
regiões sertanejas, permeadas pela desordem, pela instabilidade, pela barbárie e uma
elevada autonomia.
84
A partir da discussão e dos conceitos difundidos por Russell-Wood é
inegável atribuir a capitania do Rio de Janeiro a condição de núcleo da América
portuguesa. No entanto, sobre as diversas regiões da mesma capitania seus papéis devem
ser relativizados. As freguesias do Rio de Janeiro assumiriam, nesta divisão de funções,
aspectos diferentes dentro da conjuntura nuclear, colocando-as, muitas vezes, em situação
periférica. Voltando nossos olhares para a freguesia de São Gonçalo do Amarante podemos
conceituá-la como uma Umland da capitania do Rio de Janeiro.
Mas diferente do aparato conceitual de Russell-Wood, quando enquadramos a
região gonçalense em posição periférica não pretendemos fazê-la univocamente, e sim
cotejando diversos raios de ação. Ora, como acompanhamos, a região gonçalense
82
A. J. R. Russell-Wood. "Centros e Periferias no Mundo Luso-brasileiro, 1500-1808" IN: Revista Brasileira
de História. Volume 18, Número 36, 1998, pp. 188-189.
83
Ibidem, p. 207.
84
Ibidem, p. 219.
No que tange as relações entre as regiões centrais e periféricas ultramarinas, o autor,
calcado em termos geográficos, definiu certos modelos de regiões periféricas: Por Umland quero designar
uma região imediatamente contígua ao núcleo. Para o Brasil colonial litorâneo, as 'umlands' eram
caracterizadas pelo clima moderado, solos de diferentes composições, apropriados para uma variedade de
cultivos, alturas pluviométricas adequadas e previsíveis, acesso à mão-de-obra, e mais importante -
proximidade com os mercados e com um porto de exportação. Elas tinham ligações culturais, políticas e
econômicas e sociais de proximidade com o núcleo/centro. Hinterland implica em uma distância maior, mas
em uma continuidade territorial entre o ponto nuclear de referência 'hinterland', assim como em um
relacionamento - cobrindo o espectro de frágil e forte - a ser definido entre os dois. Em minha proposta, isto
não inclui a 'umland', na mesma medida em que estes dois espaços não dividem fronteiras comuns. Vortland
refere-se a localidades que não têm continuidade territorial com o núcleo, mas em relação às quais o núcleo
tem uma intensa conexão, constituindo um relacionamento significante. Os portos aparecem dentro desta
categoria. Ibidem, p. 220.
150
encontrava-se no século XVII como uma das principais regiões fluminenses na produção de
açúcar e aguardente. No tocante a esse último gênero colonial, a freguesia de São Gonçalo
era o maior pólo exportador de toda a capitania do Rio de Janeiro, daí sua superioridade em
relação a várias outras freguesias da região fluminense. Um outro viés para analisarmos a
preponderância gonçalense naquele período é comparando o número de casas e habitantes
das freguesia do Rio de Janeiro.
Quadro V Número de Habitantes e Casas na Capitania do Rio de Janeiro, 1685
Comarcas Freguesias Fogos Habitantes
São João Batista de Icaraí 326 2.781
São Gonçalo 464 4.554
Nossa Senhora do Desterro de Itambi 97 950
São João Batista de Itaboraí 483 3.176
Santo Antonio de Macacu 436 2.984
Santíssima Trindade 186 1.124
Nossa Senhora da Ajuda de Guapimirim 105 1.251
Nossa Senhora da Piedade de Magé 346 2.286
São Sebastião do Taipa 93 1.064
Parte Norte
Nossa Senhora do Amparo de Maricá 208 894
Nossa Senhora de Nazaré de Saquarema 145 810
Cabo Frio
Nossa Senhora de Assunção de Cabo Frio 270 1.810
Nossa Senhora do Desterro do Capivari 81 420
São João Batista 105 644
Goitacazes
São Sebastião dos Campos dos Goitacazes 970 6.010
Nossa Senhora do Guapimirim 170 920
Nossa Senhora do Rosário 145 876
Espírito Santo
Nossa Senhora da Vitória da Dita Vila 1390 7.650
Santiago de Inhaúma 121 1.445
Nossa Senhora de Assunção de Irajá 198 2.566
N. Senhora da Ajuda da Ilha do Governador 72 688
Nossa Senhora da Guia de Bacobaiba 208 1.333
Nossa Senhora de Sicruhi 113 1.276
Nossa Senhora do Pilar da Aguaçu 119 2.318
Nossa Senhora da Piedade de Aguaçu 89 827
N. Senhora do Desterro do Campo Grande 143 1252
São Salvador do Mundo de Guaratiba 115 828
Parte Sul
Nossa Senhora da Conceição de Marapicu 66 901
Freguesia da Sé 1351 6.494
Freguesia de São José 1078 7.440
Cidade
Freguesia de Santa Rita --- 10.283
Total 10.176 83.244
Fonte: Relação da catedral do Rio de Janeiro que foi sufragada na Bahia, de quem se desmembrou em 19 de Agosto de
1682. Bristish Museum. Department of Manuscripts, Add [Aditional Papers], Número 15201, fls. 383-387. Agradeço ao
prof. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, meu orientador, por ter gentilmente cedido esta inédita e preciosa referência.
151
Diante do quadro acima percebe-se facilmente que São Gonçalo era a maior
freguesia da parte norte da capitania, que incluía Niterói a Magé. Voltando ao segundo
mapa que se encontra em anexo, feito por João Teixeira Albernaz, constata-se que essa
região representava o recôncavo da Guanabara, o que implica em dizer que a região
gonçalense concentrava o maior grupo populacional da parte norte, e como vimos que o
estabelecimento populacional solidificado era uma condição essencial para o
desenvolvimento da economia açucareira, arriscamos em dizer que São Gonçalo tinha um
número significativo de engenhos da capitania. Dando continuidade ao estudo comparativo,
com relação a outras comarcas a freguesia de São Gonçalo ocupava o sexto lugar em
número de habitantes (4.554), perdendo somente para Campos (6.010), Sé (6.494), São José
(7.440), Nossa Senhora da Vila do Espírito Santo (7.650) e Santa Rita (10. 283).
Se levarmos em consideração o período a que se remete aos dados constata-se que
foi justamente neste momento o surto populacional que assolou a freguesia dos Campos de
Goitacazes
85
, o que nos possibilita dizer que no período em que ocorria a Revolta da
Cachaça, vinte anos antes, havia grandes chances da região gonçalense constituir-se como a
maior freguesia da capitania do Rio de Janeiro na banda oriental da Guanabara, já que as
demais freguesias encontravam-se localizadas no lado ocidental da baía e estavam ligadas a
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com exceção do Espírito Santo, que logo depois
se desmembrará da capitania. Outras freguesias tradicionalmente conhecidas pela cultura
açucareira não chegavam nem aos pés da região gonçalense, entre elas Campo Grande,
Irajá, Maricá, Saquarema e Cabo Frio.
Se em termos populacionais e de produção econômica é lícito o destaque
gonçalense, não podemos dizer o mesmo no âmbito político. A situação favorável da
economia de São Gonçalo não acompanhava uma ampla participação política dos grupos
econômicos da região gonçalense no senado da câmara de vereadores do Rio de Janeiro. Ao
olharmos a composição da câmara entre 1635-1660 nos ajudará a entender este o
contraditório afastamento político da região gonçalense:
85
Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento Fortuna e Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989.
152
Quadro VI - Relação entre a Composição da Câmara e a Revolta da Cachaça,
1635-1660
Camaristas que
Participaram da Revolta
Camaristas que possuíam
algum vínculo com a
Freguesia de São Gonçalo
Cargos
Total de
Camaristas
Número
%
Número
%
1 5,2
Procuradores
19
***
***
Francisco de Andrade
8 2 8 2
Juizes
40
Aleixo Manoel, João de Castilho
Pinto, Jorge Ferreira Bulhões,
Manuel Cardoso, Braz Sardinha,
Francisco Sodré Pereira, Matheus
Corrêa Pestana e Cristóvão Lopes
Leitão.
Jorge de Castilho Pinto, Jorge
Ferreira Bulhões, Jordão
Homem da Costa, Braz
Sardinha, Marcos de Azeredo
Coutinho, Matheus Corrêa
Pestana, Francisco Sodré
Pereira e Cristóvão Lopes
Leitão.
7 10,5 10
15
Vereadores
64
João de Castilho Pinto, João
Ferreira Bulhões, Braz Sardinha,
Francisco Gomes Sardinha,
Aleixo Manoel, Mathias de
Mendonça e Clemente Nogueira.
João de Castilho Pinto, Jorge
Ferreira Bulhões, Francisco
Gomes Sardinha, Braz
Sardinha, Álvaro de Matos,
Francisco Seixas, Aleixo
Manoel, Mathias de
Mendonça,Clemente Nogueira
e Braz Sardinha.
1 20 Não
Identificados
5
Francisco de Oliveira
***
***
TOTAL 128 16 14,6 19 14,8
Fonte: Tabela construída a partir dos dados do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Legislativo
Municipal/Senado da Câmara, 1635-1650. Códice 16-3-20 e também Eduardo Tourinho. Autos e
Correições de Ouvidores do Rio de Janeiro, 1624-1699. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do
Brasil, 1629.
Ao todo foram 128 nomeações feitas para o senado da câmara entre 1635 e 1660,
dentre esses 19 procuradores, 40 juízes ordinários, 64 vereadores e 5 que não conseguimos
identificar os cargos. Em relação à participação desses indivíduos na Revolta da Cachaça,
em 1660, o número é surpreendentemente reduzido. Nenhum procurador, apenas 8 juízes, 7
vereadores e um daqueles não identificados estavam presentes na lista de assinaturas que
153
nomeou Agostinho Barbalho Bezerra como administrador régio, em novembro de 1660, ou
foram capitães nomeados no movimento de 1660, representando a irrisória quantia de
12,5% dos súditos que circulavam no senado antes do motim. Levando em consideração
que quatro nomes se repetem entre os juí zes e vereadores (João de Castilho Pinto, Aleixo
Manoel, Jorge Ferreira Bulhões e Braz Sardinha), o número reduz mais ainda, chegando a
12 camareiros, o que corresponderia a 9,3% dos homens bons.
A priori, tais constatações nos demonstram que efetivamente alguns dos revoltosos
circularam na câmara de vereadores, mas não o suficiente para impor seus objetivos sem a
necessidade de eclosão do movimento de 1660. O mesmo quadro pode ser visto no que se
refere à relação entre os camaristas e sua ligação com a freguesia de São Gonçalo de
Amarante. Um procurador, 8 juí zes, 10 vereadores e nenhum daqueles não identificados
possuíam algum ví nculo com as regiões gonçalenses, representando 14,8% dos camaristas
entre 1635-1660. E novamente esbarramos na repetição dos nomes, o que significa dizer
que três ultramarinos ocupavam cargos tanto de juízes como de vereadores nesse período
(João de Castilho Pinto, Braz Sardinha e Jorge Ferreira de Bulhões), reduzindo nossas
estatísticas para 16 camaristas ou 12,5% do senado da câmara.
Antes de analisarmos a relação que tais homens tinham com São Gonçalo, cabe
mencionar o período em que os camaristas estavam exercendo suas funções no senado
local, possibilitando a ampliação de nossa argumentação. Por exemplo, em relação aos
juízes ordinários quase todos eles somente assumiram seus cargos na câmara após a criação
da freguesia de São Gonçalo de Amarante, em 1644: João de Castilho Pinto, em 1645, e
Jorge Ferreira de Bulhão, em 1649; Marcos de Azeredo Coutinho, em 1653; Matheus
Correia Pestana, em 1654; Francisco Sodré Pereira, em 1654; e Cristóvão Lopes Leitão, em
1655. As exceções à regra foram João Homem da Costa, em 1635 e Braz Sardinha, em
1636. O que significa dizer que a grande maioria somente ocupou a câmara depois do
reconhecimento da autoridade régia do fidedigno enraizamento populacional da região
gonçalense. Situação idêntica ocorreu com o único procurador entre eles, Francisco de
Andrade, que passou a fazer parte da câmara de 1653.
Quanto aos vereadores, mesmo havendo uma pequena circulação, nossas hipóteses
não se alteram muito: Braz Sardinha teve sua primeira experiência na câmara em 1637;
João de Castilho Pinto tem seu primeiro mandato em 1635, ocupando-o novamente em
154
1648; Jorge Ferreira Bulhões manteve-se três anos seguidos no cargo, 1642 a 1644, por
conta de diversas efemeridades que assolaram a vereança; Álvaro de Matos, exerceu o
cargo em 1645; Francisco de Seixas, em 1648; Francisco Gomes Sardinha, em 1649;
Aleixo Manoel, em 1653; e, enfim, Mathias de Mendonça, Clemente Nogueira e Braz
Sardinha, em 1655.
Percebe-se claramente que mais da metade dos camaristas 'gonçalenses' somente
exerceram suas funções após a criação da freguesia, comprovando que esse período tornou-
se favorável à região de São Gonçalo. Além disso, indo mais a fundo nos últimos anos
arrolados pelas nossas fontes, coincide justamente com o período no qual foi confirmada a
demarcação administrativa da região gonçalense, e a mesma não se deixa representar no
senado da câmara: em 1648 com Francisco de Seixas e João de Castilho Pinto como
vereadores; e em 1649 com Jorge Ferreira Bulhão (juiz) e Francisco Gomes Sardinha
(vereador)
Em se tratando da relação que esses camaristas acima mencionados tinham com a
região gonçalense, é indispensável mencionar que todos eram incondicionalmente
proprietários de terra ou tinham algum vínculo com o banda oriental da baía da Guanabara.
Dois vereadores gonçalenses foram listados no alvará de confirmação da criação da
freguesia como os mais novos moradores da região que se instaurava:
(...) se desmembrarão da matriz os fregueses e engenhos de Domingos
de Faria, Fernão Rodrigues Ribeiro, outro engenho seu, Miguel Aires
Maldonado, Antonio Lobo Pereira, Isabel dos Rios, Mathias de Mendonça,
Bento Pinheiro, Francisco de Seixas, Álvaro de Mattos, Antonio Lopes
Siqueira, Sebastião Pinto, Cristóvão Vaz, Jerônimo Barbalho, Gregório
Lopes, Francisco Barreto, Thomé Soares, Sebastião Lusena, os quais acima
referidos reconheceram a dita Igreja por sua paróquia e ao vigário nela
nomeado por seu pároco ao qual obedecerão e aos mais que por seus
oferecimentos nela se nomear assim e da maneira que os mais fregueses
reconhecerão aos párocos de suas Igrejas por assim convir ao serviço de
Deus meu bem das almas dos moradores daquela Capitania e boa
administração da justiça.
86
86
Alvará Porque Sua Majestade Há por Bem e Manda se erija de novo e Crie uma Vigairaria da Invocação de
São Gonçalo sita nos Limites e lugar de Guaxindiba Capitania do Rio de Janeiro."Arquivo Nacional. Códice
61, Volume 1, pp. 219v-221v, Grifo nosso.
155
João de Castilho Pinto, indispensável peça no jogo político fluminense, era sogro
de Miguel Aires Maldonado, importante família do Rio de Janeiro. Em 1619 recebeu 1000
braças pela Costa e 2000 para o sertão de Guaxamduba,
87
às margens de um rio
gonçalense. Sobre seu irmão, Jorge Ferreira de Bulhões, não há nenhuma menção que
tivesse recebido terras em São Gonçalo, mas podemos dizer que possuía algum quinhão
naquela região, porque seu filho, Manuel de Castilho Pinto, casou-se para as bandas
d'além.
88
Além disso, o mesmo recebera em 1657 terras entre os rio de Magé sernambitida
e Guapimerim,
89
no fundo da Guanabara, região fronteiriça com São Gonçalo. Francisco
Gomes Sardinha, oriundo de uma outra destacada família fluminense, fora contemplado
com terras juntos com Sebastião Ribeiro em 13 de outubro de 1668 nos sobejos de
Guaxindiba.
90
Braz Sardinha foi agraciado com mangues na barra de Macacu correndo para
Guaxanduba e riacho nunguasuba,
91
em 1648. Mathias de Mendonça ocupou o cargo de
capitão e possuía inúmeros negócios na região.
92
Clemente Nogueira como falamos atrás,
era casado com a filha de um grande proprietário em São Gonçalo, Estevão Gomes.
93
E
Aleixo Manoel tinha posse de inúmeras terras no fundo da baía da Guanabara.
94
O procurador Francisco de Andrade tinha terras em Iguaçu, mas sua filha, Bárbara,
casou-se com Crispim da Cunha Tenreiro, descendente dos Azeredo Coutinho.
95
Entre os
juízes ainda não mencionados, Jordão Homem da Costa era ascendente da união dos
Homens da Costa com a família de Aleixo Manoel.
96
Marcos de Azeredo Coutinho
dispensa qualquer tipo de comentário, já que seu sobrenome nos leva à região gonçalense.
E, por fim, Matheus Correia Pestana, Francisco Sodré Pereira e Cristóvão Lopes Leitão,
três nomeados ao longo da revolta, possuíam distintas ligações com São Gonçalo, mas
como as detalharemos no capítulo que segue a este, fiquemos apenas na menção.
87
José de Sousa Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit., p. 117
88
Carlos G. Rheingantz. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana Editora, Coleção Vieira Fazenda, Volume I, 1965, p. 325
89
José de Sousa Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit., p. 21.
90
Ibidem, p. 125.
91
Ibidem, p. 123.
92
Cartório do 1º Ofício de Notas - Documentos e Registros Originais do Século XVII, 1622-1671. Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Códice 42-3-56.
93
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume III, Fascículo 1, p. 17.
94
José de Souza de Azevedo Pizarro e Araújo, Op. Cit. , p. 110.
95
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume I, p. 83-84.
96
Ibidem, Volume II, p. 354.
156
A importância dessa circulação no senado da câmara remete ao próprio papel que o
senado municipal ocupava na teia das relações políticas do espaço ultramarino. A câmara
de vereadores possuía uma dupla atribuição naquele momento. Ao mesmo tempo que era o
locus das relações entre a coroa lusitana e as regiões tropicais, ela também era o espaço de
negociação de interesses na própria capitania.
97
Geralmente compostas por homens bons,
oriundos das 'famílias tradicionais' fluminenses, a mesma possuía uma relativa autonomia
administrativa e era responsável pelas grandes decisões que envolviam os interesses da
nobreza da terra no dia a dia ultramarino. A mencionada discussão sobre a justa aplicação
ou não do imposto proposto por Salvador Correia de Sá e Benavides no fórum municipal
torna-se elucidativa para compreender o quanto os camaristas lutavam para defender seus
objetivos e interesses no mundo colonial.
Por tudo isso, ingressar na câmara era o mínimo que um homem bom - por ser um
proprietário de terras, demonstrar fidelidade ao monarca, possuir escravos, manter-se
católico e ter uma vida social intensa poderia almejar. Nela, as freguesias poderiam
alterar suas posições e privilégios, dependendo, evidentemente, do número de moradores
que as representavam ou exerciam alguma influência sobre o espaço representativo. Dessa
maneira, foi visando à modificação do posicionamento da freguesia de São Gonçalo de
Amarante no exercício político na câmara de vereadores da capitania do Rio de Janeiro que
os proprietários gonçalenses acrescentaram essa insatisfação às motivações que os
impulsionaram à eclosão da Revolta da Cachaça.
Segundo Vivaldo Coaracy, a reforma administrativa de 1624 tinha como
pressuposto o afastamento dos moradores dos distritos rurais das eleições municipais,
porque determinava que somente aqueles que possuíam domicílio citadino poderiam votar e
ser votado.
98
Talvez fosse por isso que muitos homens bons além de possuírem terras nos
mais longínquos espaços fluminenses também eram proprietários de residências na cidade
do Rio de Janeiro. No entanto, a medida tornava-se um empecilho, principalmente depois
da criação das freguesias de Campo de Irajá, São Gonçalo de Amarante, São João Batista e
Santo Antônio de Sá, em 1644. A atitude da coroa portuguesa ao criar essas freguesias
97
A. J. R. Russell-Wood. "Centros e Periferias no Mundo Luso-brasileiro", Op. Cit. , p. 64; Maria Fernanda
Baptista Bicalho. "As Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império" Op. Cit., passim; Charles R. Boxer.
Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola, Op. Cit. , passim.
98
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 64.
157
sinalizava que houve um enraizamento da população, gerando a irrefutável necessidade de
atender religiosamente os fregueses. Porém, ao mesmo tempo, as novas freguesias
passavam a incorporar indivíduos com uma identidade regional específica, marcada pela
sua prática econômica, reconhecida pelos órgãos administrativos, mas, que por outro lado,
estavam à margem da prática política, sendo isso que estamos denominando aqui como
crise política fluminense. A enorme contradição existente entre o papel econômico e a
concentração populacional da freguesia de São Gonçalo de Amarante em relação a sua
penetração dos espaços de decisão política da capitania gerou uma crise política
generalizada na região fluminense. A impossibilidade de concretização desta participação
fora ainda mais solapada pelas restrições econômicas impostas pelo governo dos Sá, já que
impediam a expansão econômica gonçalense e a manutenção das rotas comerciais do
Atlântico sul que lhe asseguram um recurso para barganhar a participação do na câmara
municipal.
O objetivo de ampliação da representação das regiões periféricas politicamente na
câmara de vereadores foi pauta obrigatória nas reivindicações feitas pelos revoltosos ao
representante régio interino na administração da capitania do Rio de Janeiro, Thomé
Correia de Alvarenga, no momento que invadiram a vereança, solicitando a publicação do
edital convocando a realização das eleições com uma relativa antecedência nestas regiões.
O conhecimento do edital com antecedência contribuía para estimular as candidaturas
regionais e a votação em representantes de proprietários rurais das freguesias recém-
criadas. Ao mesmo tempo, a medida auxiliaria a diminuição da presença de grupos
comerciais na câmara em detrimento da elevação da participação política de grupos ligados
à economia rural.
99
Sobre este último ponto, uma outra reivindicação dos revoltosos
solicitava que dentre os eleitos deveriam configurar "homens mais antigos e prudentes que
houver nesta praça e seu distrito", ou seja, "homens nobres e de bem".
100
Isso significa
dizer que os proprietários de terras solicitavam que a prática política administrativa no
ultramar deveria ser pautada nos mesmos moldes do Antigo Regime, quando grande parte
da nobreza da corte seiscentista portuguesa não vivia em Lisboa, o que lhe atribuiu a
99
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América
Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Geras, 1640-1679, Op. Cit. , p. 32.
100
Idem, pp. 32-33.
158
denominação de corte na aldeia.
101
E mesmo com o início da transferência dos nobres para
Lisboa após o término da união ibérica, as cortes ainda eram marcadas pela primeira
nobreza, orientadas pelo seu curialismo, pela participação em círculos fechados e pela sua
restrição à entrada de grupos não vindos de famílias tradicionais.
102
A título de comparação, o reforço pela importância das famílias tradicionais nas
conquistas ultramarinas, ligadas às atividades agrícolas também podem ser observadas no
discurso da açucarocracia pernambucana depois da expulsão dos holandeses da região, em
1654. Objetivando o aumento dos privilégios frente aos comerciantes recifenses, a nobreza
da terra resgatava o papel dos conquistadores antepassados da capitania, equivalendo a
restauração frente ao domínio flamengo a uma recriação da capitania às custas do sangue,
vida e fazendas dos descendentes da primeira nobreza.
103
Tudo isso corrobora para nós
afirmarmos que a base de articulação política na América Portuguesa encontrava-se na
família. A mais importante instituição política nos trópicos, a família era reforçada pela
tradição e manutenção da fidelidade do rei através das gerações. Por isso, a negociação
régia voltava -se para família, na qual, devido à demonstração da fidelidade ao rei, as
mesmas eram agraciadas com a reprodução de seus privilégios políticos e econômicos.
Logo, ao exigir a presença de homens antigos, homens de bem ou homens nobres, a
periferia política fluminense nada mais fazia do que reforçar as práticas do antigo regime
adotadas nas terras genericamente denominadas de Brasil, e ao mesmo tempo tirava o
direito dos comerciantes ultramarinos de barganharem um maior espaço político na câmara
de vereadores. Sendo assim, a iniciativa da freguesia de São Gonçalo de pôr em prática a
valorização das famílias tradicionais e a maior participação política da freguesias
periféricas fazia parte do objetivo de ajustar os desequilíbrios ente as circunstâncias e a
dinâmica econômica daquela região.
101
Nuno G. Monteiro. "A Corte, as Províncias e as Conquistas: Centros de Poder e Trajectórias Sociais no
Portugal Restaurado (1668-1750) IN: O Barroco e o Mundo Ibero-Atlântico. Lisboa: Edições Colibri, 1998,
p. 24. Monteiro menciona que dos 25 nobres da corte lusitana, apenas 5 viviam em Lisboa, panorama que
somente começará a mudar após a Restauração Lusitana, em 1640.
102
Ibidem, p. 28-29.
103
Evaldo Cabral de Melo. Rubro Veio, Op. Cit., Capítulo 3.
159
Salus Populi Suprema Lex: a Capitania do Rio de Janeiro em Mãos Gonçalenses
Esgotadas todas as possibilidades de negociação com Thomé Correia de Alvarenga,
a situação ficava adversa para a manutenção da supremacia da família Sá na capitania do
Rio de Janeiro. A sombra do sol interina não aceitou as propostas encaminhadas pelos
revoltos por meio dos 'capítulos', no dia 2 de novembro de 1660, levando os ultramarinos
fluminenses a tomarem as mesmas atitudes de seus irmãos lusitanos metropolitanos: a
deposição por tirania e abuso de poder. Foi assim na madrugada de 8 de novembro de 1660
os revoltosos invadiram a câmara e depuseram Salvador Correia de Sá e Benavides da
administração fluminense na figura de seu substituto. Sobre o impacto desses
acontecimentos ainda em sua prematuridade, o governador do Estado do Brasil, Francisco
Barreto, recebia dos oficiais da câmara uma carta em 17 de dezembro de 1660 afirmando
que
por conhecermos ser nossa obrigação darmos conta, a Vossa
Excelência da mais mínima ação que sucedesse nesta praça e seu recôncavo,
com muito maior razão o devemos fazer de cousas grandes, e
extraordinárias, como foi a ação de 8 do mês passado de Novembro, dia em
que houve tão grande, e universal alteração neste povo oprimido, e vexado
com efeitos de ambição, violência, e ainda tirania do governador Salvador
Correia de Sá e Benavides (...)
104
A atitude dos homens ultramarinos nada mais do que reafirmava de que lado estava
posicionado o movimento fluminense. Além de se respaldar pela obediência e lealdade do
sol metropolitano, colocavam-se à disposição do maior representante do monarca em terras
brasílicas, o Governador-geral, relatando-lhe, detalhadamente, os passos que foram dados
na capitania do Rio de Janeiro como a aclamação de Agostinho Barbalho Bezerra, a prisão
de Thomé Correia de Alvarenga, do Sargento-mor, Martim Correia e do provedor da
fazenda real, Pedro de Souza Pereira. Da mesma forma, os revoltosos rogavam pelo auxílio
de Francisco Barreto:
104
Carta dos oficiais da câmara do rio de Janeiro escrita ao Sr. Francisco Barreto, governador e capitão geral
deste Estado, acerca do levantamento que aquele povo fez do governo. Documentos Históricos. Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional, Volume 5, 1928, p. 118.
160
só pedimos a Vossa Excelência que como tão grande ministro, e
servidor de Sua Majestade queira por os olhos na presente ação deste
movimento popular, e dela conhecerá ser filha da desesperação de remédio;
pois nunca o teve este povo, para chegarem suas queixas aos piedosos
ouvidos de seu rei, e Senhor, nem por cartas, nem por procuradores, um dos
quais, assim como lá foi ouvido, cá perdeu a vida (...)
105
As ações dos revoltosos pareciam ser extremamente calculadas. Frisavam a
fidelidade ao rei, relatavam as suas atitudes ao governador do Estado do Brasil e tentavam,
de todas as maneiras, dar sinais de que o movimento era resultado de um 'beco sem saídas'
em que encontrava a região fluminense, seja por pressões econômicas, seja pela
inexistência de uma representação na metrópole para acalentar as necessidades mais
imediatas dos ultramarinos. Sufocados pela conjuntura e encurralados pelo governador, a
única solução voltava-se para o apelo à justiça e clemência do sol e ao governador-geral.
Francisco Barreto até que tentou acalmar os ânimos dos fluminenses enviando a
frota de Manoel Freire de Andrade ao Rio de Janeiro, mas a mesma aportou na Bahia
tempos depois.
106
No entanto, a tentativa do governador-geral fora apenas para cumprir as
atribuições do seu cargo, pois era público os desentendimentos que envolviam Salvador
Correia de Sá e Francisco Barreto. Por conta disso, a rápida passagem de Manoel Freire de
Andrade pelo Rio de Janeiro vinha acompanhada de recomendações do próprio Francisco
Barreto do mesmo não interferir nos acontecimentos que ocorriam naquela capitania.
107
Dessa forma, a cidade do Rio de Janeiro estava totalmente entregue aos fluminenses,
parecendo se confirmar aquilo que Antonio Callado afirmava em uma peça de teatro sobre
a Revolta da Cachaça: [os revoltosos] 'tinham provado, contra o Governador do Rio e o rei
de Portugal, que o Rio se governava muito melhor só por meio de seus vereadores.
vereadores daquele tempo, naturalmente.
108
Acreditamos que até mesmo Salvador Correia
de Sá e Benavides não tinha muito a noção da importância que o motim reservava para os
rumos da capitania do Rio de Janeiro, já que sua justificativa à D. Luísa de Gusmão, em 10
105
Ibidem, p. 119.
106
Arquivo Histórico Ultramarino, Instituto de Investigação Científica Tropical e Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro. Conselho Ultramarino/Catálogo Castro Almeida, Capitania do Rio de Janeiro (1616-
1657). Cd-Rom Número 1, Documento Número 851-852.
107
Evaldo Cabral de Mello. A Fronda dos Mazombos Nobres Contra Mascates (Pernambuco, 1666-1775).
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
108
Antonio Callado. A Revolta da Cachaça - Teatro Negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 30.
161
de abril de 1661, quando terminou o motim, desprestigiava o movimento, encarando-o
como algo menor:
não dei conta a Vossa Majestade das alterações destes moradores
incerteza das notícias que alcançava delas, e por ter por sem dúvidas que
estes motins deviam ser originados de alguns respeito particular e não
motivados do bem comum; porque como no meu procedimento lograva os
maiores seguros de meu crédito não me dava cuidado os cavilosos aleivos de
meus inimigos, sendo que nestas partes tive sempre tão poucos, como
mostrou a condição de tão dilatados anos (...)
109
Em suma, Salvador de Sá não tinha o menor discernimento da importância do
conflito para as determinações dos rumos da capitania. Seja como for, o início da revolta
marcou uma nova etapa no Rio de Janeiro, na qual aqueles que estavam até então à margem
das decisões políticas fluminenses passavam a configurar-se como peças fundamentais nas
estratégias de conquista e domínio da câmara, posição esta assinalada pelos próprios
camaristas quando escreveram a Francisco Barreto afirmando que o movimento não era
restrito à praça do Rio de Janeiro, estendendo-se a todo o recôncavo da Guanabara.
110
E
evidentemente falar em recôncavo no Seiscentos fluminense é quase que o mesmo que
dizer freguesia de São Gonçalo de Amarante. É lícito supor que os grandes responsáveis
pelo desencadeamento da Revolta da Cachaça possuíssem algum tipo de ligação com a
freguesia gonçalense, como uma análise mais profunda daquelas personagens será feita no
capítulo 4 deste mesmo trabalho, cabe agora vislumbrarmos de que forma os interesses
específicos dessa região vão se fazer presente ao longo de cinco meses de domínio dos
ultramarinos fluminenses da administração da 'muy leal cidade do Rio de Janeiro'.
Em primeiro lugar, a escolha de Agostinho Barbalho Bezerra configurava-se como a
mais importante estratégia gonçalense na Revolta da Cachaça. As razões são apresentadas
no auto de aclamação do novo governador pelos revoltosos e não oferecem dúvida:
109
Notícia de um motim no Rio de Janeiro enviado à rainha regente, D. Luísa de Gusmão, por Salvador
Correia de Sá e Benavides. Rio de Janeiro, 10 de Abril de 1661.Biblioteca Nacional de Lisboa - RES, Código
10563/83, pp. 1996-196.
110
Carta dos Oficiais da Câmara do Rio de Janeiro Escrita ao Sr. Francisco Barreto, Governador e Capitão
Geral deste Estado, Acerca do Levantamento Que Aquele Povo Fez do Governo. Documentos Históricos, Op.
Cit. , Volume 5, p. 118.
162
(...) o que ouvido e sabido pelo dito povo todo junto e congregado,
todos a uma voz aclamaram que elegiam e queriam, como com efeito
aclamaram e elegeram por governador desta praça e seus distrito ao capitão
Agostinho Barbalho Bezerra, fidalgo da casa de Sua Majestade, comendador
da ordem de Cristo, e filho de Luiz de Barbalho Bezerra, que Deus tem,
governador desta praça, por ser pessoa em que concorriam todas as
qualidades e partes necessárias para o dito cargo, para que o governasse
com justiça assim como na guerra como no político, até sua majestade
prever o que mais fosse seu real serviço (...)
111
Tentando demonstrar que fora uma decisão coletiva, os camaristas resgatavam o
passado histórico dos antepassados de Agostinho Barbalho Bezerra na capitania,
mencionando o mesmo ser filho de um anterior governador da praça, Luis Barbalho
Bezerra, que defendeu a capitania com lealdade, honestidade e fidelidade. Ainda em
relação às questões familiares, não podemos esquecer que o mesmo é irmão de Jerônimo
Barbalho Bezerra, grande líder do movimento e um dos proprietários de terras em solos
gonçalenses. A presença de seu irmão na administração da capitania garantiria, no mínimo,
um certo privilégio para o recôncavo gonçalense nas decisões tangentes à economia e
política fluminense. Dessa forma, no momento em que os camaristas faziam menção a
Agostinho Barbalho como aquele que 'concorriam todas as qualidades' para ocupar o cargo
e tinham a certeza de que faria com justiça, os ultramarinos fluminenses estavam apostando
todas as suas fichas em um homem como eles: proprietário de terra, nascido no ultramar e
que tinha ligações com o recôncavo. Dizendo de uma outra forma, Agostinho atendia
diretamente os interesses dos grandes proprietários fluminenses, porque possui as
características de um homem bom e de um construtor do mundo ultramarino.
Porém, os mesmos camaristas não esperavam a relutância do irmão de Jerônimo
Barbalho Bezerra em ocupar o cargo. Desconhece m-se as razões que fizeram com que
Agostinho Barbalho Bezerra rejeitasse a administração da capitania, mas mesmo assim,
quando os revoltosos não o encontraram em sua casa foram até ao convento de São
Francisco, onde estava devidamente recolhido, e o aclamaram governador do Rio de
Janeiro.
112
Tentando repelir a função que lhe coubera, Agostinho acreditava na não
111
Excepto de uma Memória Manuscrita Sobre a História do Rio de Janeiro Durante o Governo de Salvador
Correia de Sá e Benavides. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. , Volume 3, p. 5.
112
Excepto de uma memória manuscrita sobre a história do Rio de Janeiro durante o governo de Salvador
Correia de Sá e Benavides. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. , Volume 3, p. 5.
163
necessidade de um novo governador, pois já o tinha a capitania (Thomé Correia de
Alvarenga). No entanto, sob ameaça de morte, acabou, enfim, aceitando o cargo.
113
Em seguida, três grandes decisões foram tomadas pela nova administração
fluminense: primeiro, a publicação de um bando que expulsava da cidade os apaniguados
de Salvador Correia de Sá e Benavides; em segundo lugar, foram suspensos todos os postos
de capitães e vereadores da capitania; e por fim, foi preso Thomé Correia de Alvarenga e
deportado para Portugal, junto com uma carta enviada à coroa, descrevendo
minuciosamente os desmandos da sombra do sol. Vamos, então, por partes.
Publicado no primeiro dia do mês de fevereiro de 1661, o bando contra Salvador
Correia de Sá e Benavides tentava de todas as maneiras extirpar os laços que a família Sá
tinha na região fluminense, pois dizia que
(...) mando povo desta cidade e recôncavo, que todo pessoa de
qualquer qualidade, que seja parente ou não parente do general Salvador
Correia de Sá e Benavides, criado, amigo, afeiçoado, que se quiser ir para
sua companhia, ser irá manifestar o senado da câmara para se lhe der
licença, e toda boa passagem que lhe for necessária para se partir, para que
dentro de dois dias o possam fazer sem se lhes fazer ofensa alguma (...)
114
Caso àqueles ligados aos Sá não deixassem a capitania no prazo estabelecido pelos
camaristas, os mesmos seriam presos e degredados para Angola por 10 anos.
115
No dia
seguinte, foi a vez dos capitães sofrerem os reveses dos revoltosos. Segundo o auto,
(...) que visto o povo requerer, como requerido tinha, que nenhum
capitão de Ordenança que até o presente servisse, e exercitasse mais o dito
posto, por temerem estavam bandeados pelo General Salvador Correia de Sá
e Benavides, e que se podia temer, entre eles houvesse alguma conjuração
em dano, desta republica e contra o povo, que tanto procuraram (...)
116
Nota-se que a preocupação era afastar aqueles relacionados e até então protegidos
pela família Sá. Em contrapartida, os novos capitães estavam completamente afinados com
113
Ibidem, p. 6.
114
Bando contra Salvador Correia de Sá publicado pelo povo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Op. Cit. , Volume 3, p. 10.
115
Ibidem, p. 11.
116
Auto de suspensão dos postos dos capitães. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op.
Cit., Volume 3, p. 12.
164
as diretrizes do movimento fluminense e por que não dizer, também gonçalense. Desta
forma,
(...) nomearam logo coronel ao mesmo que de presente serve
Francisco Sodré Pereira, para Sargento-mor da mesma ordenança ao
Capitão Domingos de Faria, e para Capitães a Cristóvão Lopes Leite,
Francisco de Souza Vargas, Mathias de Mendonça, Matheus Correia
Pestana, Manoel da Guarda Muniz, Sebastião Lobo Pereira, Miguel de
Azedias Machado, Sebastião Coelho de Amorim, Matheus da Costa,
Ambrosio Paes Sardinha, Miguel Gonçalves, João Gomes Sardinha, o moço,
Francisco Ferreira Dormindo, Francisco de Brito Meireles, Francisco de
Macedo Freire, Francisco de Martins Soares, para Companhia dos
mercadores (...)
117
A discriminação dos novos capitães somente comprova, mais uma vez, a
importância e supremacia de São Gonçalo na Revolta da Cachaça. Dos dezoito nomes
escolhidos para ocupar cargos na nova administração, apenas sobre um não possuíamos,
até então, informação, seja da família ou de suas ocupações no Rio de Janeiro, sendo ele o
capitão Francisco de Souza Vargas. Os demais conseguimos encontrar alguma referência
sobre sua traj etória no mundo ultramarino e constatamos que dos 17 capitães restantes, 10
possuíam algum vínculo com a região gonçalense, compreendendo 58% dos novos
funcionários da câmara. Tal vínculo relacionava-se ora à propriedade de terras como João
Gomes Sardinha e Mathias de Mendonça, ora às relações familiares, caso de Matheus
Correia Pestana, Francisco de Brito de Meireles ou Sebastião Coelho de Amorim.
118
No entanto, toda a reforma dos capitães trouxe, imediatamente, a necessidade de
uma nova configuração da câmara municipal: (...) para juizes a Diogo Lobo Pereira e
Lucas da Silva e para vereadores a Fernando Faleiro Homem, Simão Botelho e Clemente
Nogueira da Silva.
119
Infelizmente pouco sabemos sobre os camaristas que assumiram o
senado da câmara durante a revolta, mas podemos afirmar que dos 5 camareiros 3 tinham
relações com São Gonçalo, sendo eles Diogo Lobo Pereira, Simão Botelho e Clemente
Nogueira da Silva, cujas ligações com São Gonçalo davam-se através de propriedade de
terras e contatos familiares.
117
Ibidem, p. 12.
118
Como foi mencionado, a análise prosopográfica destes personagens encontra-se no capítulo 4 deste mesmo
trabalho. José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. ; Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume I e II.
119
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 165.
165
Em um terceiro momento, os revoltosos resolveram tentar se livrar da presença de
Thomé Correia de Alvarenga, enviando-o a Portugal. Mas a tentativa foi frustrada, já que a
sombra interina fugiu do navio encarregado de levá-lo ao reino e refugiou-se na casa da
esposa de Salvador Correia de Sá e Benavides.
120
Para que a viagem não fosse perdida,
aproveitaram a oportunidade para enviar uma lista de acusações que recaíam sobre a
Thomé Correia de Alvarenga e Salvador Correia de Sá e Benavides. Quanto as denúncias
enviadas ao Conselho Ultramarino, contra Thomé Correia de Alvarenga, imputavam-lhe 23
delitos, entre eles:
(...) 3º Que tomando posse do governo em Julho de 57, uniu -se com o
seu cunhado Pedro de Sousa Pereira para desencaminhar os dinheiros da
Fazenda Real, recebendo de soldo 600$000 réis por ordem régia;
4º Que obrigava aos oficiais da câmara a lhe entregar 150$000 réis
para pagamento das casas em que vivia, sem para isso ter ordem régia;
(...)8º Que durante o tempo que fora governador, nunca pagar dízimos
das fazendas que possuía ou dos açucareis que fabricava.
121
Além de sonegar impostos, descaminhar dinheiro e praticar o estelionato, Thomé
Correia de Alvarenga ainda era acusado por crime de devassa, enriquecimento ilícito,
cobrança de propinas de navios impedindo a saída dos mesmos , acobertamento de
criminosos, prisão de inimigos particulares, assassinato premeditado de Francisco da Costa
Barros
122
, utilização de violência para fazer apaniguados serem eleitos, nomeação de
pessoas de baixas classes para cargos importantes na capitania e por recusa de negociação
120
Comunicação do Conselho Ultramarino sobre a Prisão do Governador do Rio de Janeiro Thomé Correia de
Alvarenga e sua Chegada ao Reino, 7 de Abril de 1661 IN: Luis Norton. A Dinastia dos Sás no Brasil (1558-
1662). Lisboa: Agência Nacional das Colônias, 1943, pp. 144-145.
121
Acusações dos Representantes do Povo Contra Thomé Correia de Alvarenga e Salvador Correia de Sá e
Benavides Enviado ao Conselho Ultramarino IN: Alberto Lamego Filho. Terra Goytacá a Luz de Documentos
Inéditos, Op. Cit. , pp. 73-74.
122
Que o dito provedor Pedro de Souza Pereira de mão comum com seu cunhado Thomé Correia de
Alvarenga que governava esta praça mandaram matar a Francisco da Costa Barros homem de setenta anos,
cidadão dos mais autorizados da principal nobreza desta cidade, varão de grandes partes, e discrição,
benemérito festa república, zeloso do bem comum dela, que como tal por eleição deste senado, e povo foi
enviado a corte a tratar e requer algumas coisas tocantes a sua conservação, e melhoramento a qual morte o
dito provedor e o dito governador seu cunhado mandaram fazer só por haverem ouvido que ao dito
Francisco da Costa Barros tinha vindo uma provisão de Sua Majestade para poder tirar ao dito provedor e
por este respeito foi morto o dito Francisco da Costa Barros a espingarda, vindo-se uma noite recolhendo-se
para sua casa (...). Ibidem, p. 78.
166
com o fórum legislativo local.
123
Recomendava-se a sua permanência em Lisboa, já que não
se descartava a possibilidade de vingança.
Entretanto, as queixas destinadas a sombra do sol interina não chegavam nem aos
pés daquelas contra Salvador Correia de Sá e Benavides, o que a princípio somavam 34
delações. As acusações eram as mais variadas possíveis. Proibições e conquista de
privilégios na economia da aguardente, chantagem e coação aos camaristas, imposição de
fintas, não ter prestado homenagem a Thomé Correia de Alvarenga quando chegou ao Rio
de Janeiro, controle abusivo da comercialização do açúcar, realização de trabalhos forçados
para construir seus galeões, utilização de sua casa como cartório, privilegiar o corte de seus
gados e regulamento da pataca do sal, aumento de seu ordenado quando assumiu a
capitania, cobrança de dinheiro dos mestres de navios, assassinato, promoção de jogatina
em sua residência, desleixo com as fortalezas, estanque aleatório do vinho e interseção de
todas as cartas que fossem enviadas ao reino para que as pudesse ler.
124
Essa última queixa é bastante elucidativa para visualização de como a administração
de Salvador de Sá e Benavides promovia o afastamento do contato entre os súditos
ultramarinos fluminenses e a coroa portuguesa. A ausência quase que por completa desse
contato tornava estéril o exercício da soberania negociada e na realidade as sábias palavras
de Antônio Vieira, que afirmava que a sombra viraria sol quando a distância saltasse aos
olhos, de antemão confirmavam a ocorrência dessa prática. O que não podemos deixar
escapar é que talvez Salvador de Sá, com tais atitudes, nada mais fazia do que se proteger,
principalmente para evitar que se repetisse o que aconteceu em 1643, quando foi acusado
por Domingos Correia, João de Castilho Pinto e João Fernandes por diversas razões,
estando os mesmos agora, em 1660, envolvidos na insurreição contra seu inimigo
governador.
Seja como for, as acusações destacadas acima ainda nos trazem outras questões
importantes. Uma leitura atenta dos trinta e quatro libelos contra o administrador régio traz
a percepção de que foram listadas cronologicamente, dando a impressão de que os
revoltosos quisessem dar um sentido de longa duração de suas inquietações frente ao
domínio da capitania do Rio de Janeiro e até mesmo de Angola por Salvador de Sá. A
123
Ibidem, pp. 74-77.
124
Ibidem, pp. 77-83.
167
questão da tirania, por exemplo, não havia sido mencionada contra seu primo, o que
demonstra o reconhecimento pelos revoltosos fluminenses de que a representação régia e
sua soberania passava pelo governador da capitania e não de seu interino, pois nos
discursos ibéricos os tiranos eram aqueles que não cumpriam o pacto.
É óbvio que as taxações, a ausência de contato com a coroa atingia inevitavelmente
as regiões gonçalenses. Todavia eram as reclamações contra a aguardente e os
constrangimentos imputados à câmara que recaíam mais especificamente sobre aquela
freguesia. Reconhecendo a existência da proibição da fabricação e comercialização do
gênero tropical, os revoltosos mencionavam uma tentativa que o governo fez para aliviar os
problemas econômicos da capitania e resolver a questão da guarnição. Mas o que era para
solucionar, mais uma vez, serviu para atender os interesses da sombra do sol.
Arbirtrariando valores, forçando a produção local e controlando o comércio da aguardente,
alegando a não arrecadação suficiente para estancar a carência da guarnição, retomou as
restrições comerciais e produtivas da geribita fluminense, desagradando aos produtores do
gênero. Quanto à câmara, as constantes ameaças e violência faziam com que seus
apaniguados fossem eleitos, afastando a participação de regiões mais distantes, como todo o
recôncavo da Guanabara.
Outras medidas foram tomadas por Agostinho Barbalho Bezerra durante sua
administração da capitania do Rio de Janeiro. Ele substituiu o capitão responsável pela
fortaleza de São João, reorganizou a defesa da fortaleza de Santa Cruz,
125
nomeou capitães
de ordenança e aumentou o número de soldados da guarnição.
126
Além disso, cumpriu à
risca o que determinava m os capítulos dos revoltosos e proibiu o lançamento de qualquer
125
(...) Disse o dito povo e procuradores dele em seu nome que se suspendiam aos dois capitães de suas
fortalezas da barra, Antonio Nogueira da Silva da de Santa Cruz, e Afonso Gonçalves Matoso da de São João
por razão de um ser casada com uma prima do General Salvador Correia de Sá, e outro ser um afilhado, e
em ambos se darem grandes desconfianças, portanto nomeavam e apresentavam para a dita fortaleza de
Santa Cruz ao Sargento-mor que foi João Rodrigues Pestana, e para a de S. João ao Capitão João Correia
de Faria (...). Auto de reforma da tropa da capitania do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Op. Cit. , p. 14.
126
(...) Que todo clamou e disse que reformavam ao capitão Salvador Correia da Companhia do capitão
Antonio Correia já defunto, e ao capitão Garcia da Gama, e ao capitão Alexandre de Castro, e que queriam
e eram contentes que ficassem servindo somente o capitão Francisco Manhas Correia, e o capitão Miguel de
Abreu Soares, e o capitão Agostinho de Figueiredo, e o capitão Luiz Machado Homem; que por estas quatro
companhias se repartissem os soldados, com que se perfaz o número de oitenta, na fórmula do Capítulo 23
do regimento de Sua Majestade, nas quais companhias se montam a trezentos e vinte soldados, e os cinqüenta
que sobejam se repartam pelas duas fortalezas da barra, por estarem diminuto deles. Cartório do 1º Ofício de
Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671. Arquivo Geral da Cidade do
Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, p. 88.
168
tipo de finta ou taxação sem as expressas autorizações da coroa portuguesa.
127
Seu irmão,
Jerônimo Barbalho Bezerra, de grande líder tornou-se coadjuvante, responsável pelas
articulações que envolviam o senado da câmara, os demais revoltosos e o governador.
Enquanto isso, na vila de Santos, a chegada de Salvador de Sá e Benavides foi
marcada por protestos sucessivos, decorrente, ainda, da lembrança da aliança que o
Governador estabelecera com os jesuítas para a coibição da escravização do gentio.
Controlado o protesto, Salvador de Sá resolveu manifestar-se diante do alvoroço no Rio de
Janeiro, escrevendo um bando a primeiro de janeiro de 1661, no qual dizia que:
(...) me resolvi por bem do serviço de Sua Majestade a mandar
declarar com caixas pelas vilas destas capitanias, começando nesta de S.
Paulo, por inconfidentes ao serviço real aos ditos oito procuradores e
sargento-mor, capitães de presídio, e ministros dele, havendo-os por
reformados e inábeis para mais estarem no Serviço real, e os condeno por
toda a vida para a conquista de Benguela e mais penas que Sua Majestade
for servido dar-lhes; e aos ditos procuradores, como cabeça do motim, em
pena de vida e perdimento dos bens, já não obedecendo ao que agora ordeno
para S. Majestade ficar servido, e que lhes poucos moradores do primeiro
motim deste sucesso ficarem livres do castigo; mando, que enquanto ando
ocupado nestas capitanias no serviço real, governe aquelas Agostinho
Barbalho Bezerra, pela satisfação que tenho da sua pessoa e qualidade, sem
embargo de haver sido eleito pelos amotinados (...)
128
De uma forma geral, Salvador Correia de Sá somente absolvia das
responsabilidades pelo movimento Agostinho Barbalho Bezerra e os poucos moradores da
capitania, o restante considerava pessoas de pouco discurso, fundamentadas em
equivocadas exigências, ou como ele mesmo menciona, moradores de São Gonçalo no Rio
de Janeiro, excedendo os limites da obediência, e que mereciam os castigos que lhe
caberiam.
129
Culpar exclusivamente os moradores de São Gonçalo pelo acontecimentos do
Rio de Janeiro foi um recurso acionado por Salvador de Sá para tentar reduzir o movimento
a uma mera queixa contra pagamento de impostos excessivos.
127
- Que logo em primeiro lugar se mande lançar e fixar editais em que se há por levantado, esta última e
geral finta que lançou o dito general Salvador Correia de Sá Benavides e fazendo vir nisso os oficiais da
câmara, sendo que o não podiam fazer sem provisão de Sua Majestade e de tornarem as pessoas o que tem já
pago de finta. Capítulos que Propõem o Povo deste Recôncavo desta Cidade que se Ajuntou na Ponta do
Brabo ao Senhor Governador Thomé Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores. Biblioteca
Nacional de Lisboa. Fundo Geral, Caixa 199, Número 47.
128
Bando publicado por Salvador Correia de Sá e Benavides ao som de tambores. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. ,Volume 3, pp. 25-26.
129
Ibidem, p. 25.
169
No mesmo bando, a sombra do sol exigia que o vereador mais velho ocupasse o
cargo de provedor da fazenda, para lhe manter informado sobre os próximos passos do
movimento, o que, evidentemente, não foi acatado pelos revoltosos. Pensando de uma outra
maneira, o perdão que Salvador de Sá manifestava aos revoltosos, pode ser considerado um
grande artifício do governador para tentar escamotear ou amenizar os boatos que
circulavam pela capitania de que o mesmo estava organizando um exército de índios,
conjuntamente com os jesuítas, para atacar o Rio de Janeiro.
130
A tensão ocasionada pelo
boato promoveu a demissão do prelado jesuíta Antonio de Marins Loureiro do cargo de
supervisor dos índios de São Barnabé,
131
demonstrando como os poderes políticos e
religiosos mostravam-se em conflitos no mundo ultramarino. Logo, o complexo conflito de
interesse que existia nos domínios locais não estavam presentes somente entre os
administradores régios e os súditos ultramarinos, a Igreja e seus funcionários para o
exercício da fé também faziam parte desse emaranhado político, cujo problema causado
pela publicação da bula papal, em 1640, elucida muito bem tal situação.
De volta à vila de São Paulo, os revoltosos fluminenses até que tentaram alertar os
paulistas sobre os males causados pela administração de Salvador de Sá, quando em 16 de
novembro de 1660 escreveram aos vizinhos:
são tantos os apertos, ou para melhor dizer, as tiranias, com que o
mau governo de Salvador Correia de Sá e Benavides e seus parentes tem
oprimido a toda a esta capitania, que não podendo já suportá -los (por mais
o intentou), se resolveu a nobreza, clero e povo, unânimes e conformes a
deitar de si carga, com que já não podia, fiados na justificação ante as
razões pés de Sua Majestade das causas que tiveram e os moveram, em que
se fundamentaram para depor ao dito Salvador Correia de Sá e Benavides
(...)
132
Por trás da tentativa de alerta, os fluminenses visavam, além do esclarecimento
sobre a morte do mineiro Jayme Commere, angariar o apoio dos paulistas frente ao domínio
130
Exceto de uma memória manuscrita sobre a História do Rio de Janeiro durante o governo de Salvador
Correia de Sá e Benavides. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. , Volume 3, p. 18.
131
Resposta do reitor dos jesuítas padre Antonio Forte. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Op. Cit. , Volume 3, pp. 18-19.
132
Carta dos cariocas alertando aos paulistas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. ,
Volume 3, pp. 19-20.
170
do luso-espanhol na repartição sul. Um mês e dois dias depois, a resposta dos paulistas
deixaria os camareiros fluminenses perplexos:
em razão do general Salvador Correia de Sá nosso Governador,
experimentamos tanto pelo contrário as mau fundadas queixar desse povo,
que com todos os desse povo, que com todos os dessa capitania juntos e não
deverão parte do muito que as estranham a novidade do sucesso, a que vos
mercês devem acudir com remédio, para que Sua Majestade fique melhor
servido, e nós não faltaremos a obrigação que temos de seus leais
vassalos.
133
O apoio dos paulistas a Salvador de Sá para os fluminenses não correspondia aos
acontecimentos de 1640, quando governador da repartição sul ficou ao lado dos
eclesiásticos nas restrições à escravização dos negros da terra. No entanto, o
posicionamento dos paulistas relacionava-se muito mais aos benefícios imediatos
empreendidos pelo governador nas regiões mineradoras, que se encontravam listadas na
carta que a câmara da vila de São Paulo escreveu a Salvador Correia de Sá declarando seu
apoio:
(...) grandes benefícios nas estradas, nas passagens do rio na
observância da justiça, tendo-se nestas capitanias o que parecia impossível
em tão breve tempo, sobretudo a V.S. mandado fazer a estrada do mar de
que posso mandar carros por elas, cortando serras, e passar por onde uma
pessoa passava mal (...), onde fizeram mais de setenta pontes, obra que
ainda é aos que a fizeram lhes parecem impossível.
134
A satisfação diante da administração da sombra do sol era tão grande que os
paulistas colocaram-se à disposição para acompanhar o governador na empreitada de
retomada da capitania do Rio de Janeiro. Tal atitude de fidelidade retribuiu as benfeitorias
em solos paulistas.
135
Em resposta, Salvador de Sá agradeceu o zelo e o apreço dos
ministros, câmara e povo da vila de São Paulo, mas recusou o apoio militar, acreditando
133
Resposta dos paulistas à câmara do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Op. Cit. , Volume 3, pp. 21-22.
134
Carta dos paulistas a Salvador Correia de Sá e Benavides. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Op. Cit. , Volume 3, p. 22.
135
Ibidem, p. 23.
171
que a publicação de seu bando no Rio de Janeiro não encontraria dificuldades de adentrar
na capitania amotinada.
136
Sobre a relação entre a Vila de São Paulo e a Revolta da Cachaça, os historiadores
estão acostumados a se apropriar da perplexidade dos fluminenses quando os paulistas
aliam-se a Salvador Correia de Sá, desprezando, concomitantemente, a conjuntura
específica em que viviam as regiões paulistas. A vila de São Paulo em nenhum momento
foi atingida pela crise econômica açucareira que assolava a baía da Guanabara. Sua
economia voltava-se para a produção de cereais, como o trigo, e não para a aguardente ou
cana-de-açúcar. Nesse sentido, os privilégios da Companhia Geral do Comércio, as
restrições à geribita e à imputação de tributos não diziam respeito aos súditos paulistas,
fazendo com que o movimento fluminense não contemplasse os interesses daquela Vila.
137
Sem dúvida alguma, a ausência dos paulistas no motim apontara como a diminuição da
possibilidade de alastramento da revolta por toda a repartição sul, como ao mesmo tempo,
foi responsável pela curta estabilidade dos acontecimentos fluminenses.
A atitude dos paulistas e o posicionamento de Salvador Correia de Sá e Benavides
sobre a revolta fizeram, inesperadamente, outra vítima: Agostinho Barbalho Bezerra. Após
ter atendido às reivindicações dos revoltosos, como a realização de eleições municipais, a
finalização do imposto e a reforma da tropa e capitães, o administrador local passou a
configurar-se como um elemento de desconfiança após a autorização de Salvador de Sá
para que assumisse a capitania em sua ausência. José Vieira Fazenda desconfiou que
Agostinho Barbalho sofreu o impacto da importância de assumir o governo local, pois
diante de tantas novidades não sabia que fazer o novo governador (verdadeiro Pilastono
Credo); e vendo as constantes exigências dos amotinados (entre a cruz e caldeirinha)
pretendeu moléstia, meteu-se na cama e sangrou-se (...)
138
Na realidade, a sedimentação dos revoltosos nos cargos da câmara e da tropa não
havia assegurado a possibilidade de outras reformas serem implementadas na capitania,
136
Reposta de Salvador Correia de Sá aos paulistas, 2 de Março de 1661. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Op. Cit., Volume 3, p. 24.
137
Sobre as condições específicas da Vila de São Paulo, Cf John Manuel Monteiro. Negros da Terra, Op.
Cit.; Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; Adolfo Taunay.
História Seiscentista da Vila de São Paulo. São Paulo: Tipografia Ideal, 4 Volumes, Volume 2, 1926-1929;
Ilana Braj. História e Utopias: Textos Apresentados no XVII Simpósio Nacional de História. São Paulo:
Anpuh, 1996.
138
José Vieira Fazenda, Op. Cit. , p. 557.
172
como por exemplo, a diminuição das restrições impostas pela Companhia Geral do
Comércio do Brasil, o retorno da liberdade de navegação, a autorização para a fabricação
de moeda e amoedação do ouro. Todas essas reivindicações dependiam de ordens régias,
forçando os revoltosos a recorrerem ao procurador da coroa, Francisco da Costa Barros,
que relutante somente fixou o preço do açúcar e evitou a entrada de navios estrangeiros da
baía da Guanabara. Mas o fluminenses queriam mais.
Adoecido, Agostinho Barbalho não cumpriu suas funções e solicitou reuniões em
sua residência, desrespeitando um dos pontos reivindicados nos 'capítulos da revolta'.
139
Além disso, o mesmo não aceitou assinar resoluções impostas pelos revoltosos sem a sua
autorização. Desta forma, em 8 de fevereiro de 1661 o até então considerado o 'governador
do povo', foi afastado do cargo, pois, segundo os revoltosos, também não estava mantendo
em vigor o pacto estabelecido. A deposição de Agostinho Barbalho marcou o início da
radicalização da revolta, pois exacerbou a diversidade interna de posições dos homens
envolvidos no conflito. Os interesses entre os ultramarinos fluminenses eram distintos,
demonstrando que a teia de conflitos era inesgo tável. Em nosso entendimento esse é um
momento fulcral no desencadeamento da revolta. Iniciada como resultado de
descontentamentos dos produtores fluminenses do recôncavo da Guanabara, os demais
grupos integrantes do movimento passaram a pressionar para a ampliação dos raios de ação
da revolta. Por isso, mesmo Agostinho Barbalho Bezerra assumindo o papel de sombra, por
mais moderado que fosse não representava a gama de interesses que borbulhavam pelas
áreas ultramarinas fluminenses. Sua deposição, então, é um reflexo visível de incapacidade
de aumento dos objetivos do movimento. Em seu lugar assumia uma junta formada por
homens bons fluminenses, os procuradores do povo.
A conjuntura confusa que se instalou na capitania do Rio de Janeiro além de
favorecer a Salvador de Sá a possibilidade de angariar homens para retomar a
administração fluminense. Do outro lado do Atlântico a revolta passou a causar
139
Que o Governador que hoje governa esta praça e ao diante governar não chame a sua casa os oficiais da
câmara em corpo de câmara, e quando quiser alguma cousa vá ou manar pela pessoa que lhe parecer a casa
do conselho o negocio de que tratar para assim os ditos oficiais da câmara livremente a possam resolver o
que não podem fazer livremente por que de assim não ser se segue grandes danos a republica. Capítulos que
Propõem o povo deste recôncavo desta cidade que se ajuntou na ponta do brabo ao senhor governador Thomé
Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores. Biblioteca Nacional de Lisboa. Fundo Geral, Caixa
199, Número 47.
173
preocupação ao Conselho Ultramarino. Relatando os acontecimentos ao sol lusitano, os
conselheiros afirmavam:
(...) pareceu representar a V.M. que ainda pareça semelhantes os
exemplos, de que se fez em Macau ao capitão D. Francisco Coutinho, por
sua arrogância; e a Manuel Mascarenhas Homem, em Ceilão, e ao conde de
Óbidos na Índia, nos quais casos se fez pouca demonstração pela distancia,
em nenhum dele concorrem as circunstâncias deste, por o Brasil ser tão
vizinho, e as mais importante conquista, e ter tantos apetitosos vigilantes de
tomarem pé nele, como 'são os holandeses e castelhanos, que tem por
vizinhos Buenos Aires, se não forem também outros'(...)
140
O reconhecimento de que havia um problema no ultramar trouxe a necessidade de
uma mudança no relacionamento que perpassava as relações coloniais. Todavia, o
problema envolvendo as regiões brasílicas parecia afetar ainda mais a integridade do
Império, caso a aliança com outra monarquia viesse a se concretizar na capitania
fluminense. E não é demais relembrar que a monarquia lusitana ainda se recuperava do
rompimento com Castela. No entanto, se a possibilidade real dessa aliança se realizasse,
estava distante dos pensamentos dos revoltosos, a invasão de Salvador Correia de Sá e
Benavides parecia aproximar-se o quanto antes. Nas próprias palavras do governador
deposto:
(...) não colhi mais fruto deste meu desejo que um desengano que aqueles
que governavam levados do temor se iam precipitando a maior ruína, e por
evitá-la me deliberei a meter-me na praça havendo feito aviso ao general
Manoel Freire para a prevenção necessária, e fiado nela me vim só com meu
filho, meus criados e cem índios de minha aldeia, mas meia légua desta
cidade achei o próprio que alheio do juízo se havia entregue ao sono, e
vendo certo o dano quis antes resolver-me a maior perigo entrando na praça
só com os companheiros que trazia, do que voltar-me; porque nas ocasiões
do serviços de Vossa Majestade nunca me foram estorvos os perigos da vida:
investindo o corpo da guarda principal me fiz senhor dele e da torre da
140
Sobre o que escreveram os oficiais da câmara do Rio de Janeiro acerca do levantamento que houve no
povo daquela capitania contra Thomé Correia de Alvarenga, Pedro de Souza Pereira, e o Sargento-mor
Martim Correia Vasques, que todos vinham presos a este reino. Arquivo Histórico Ultramarino. Códice 16, fl.
11-12.
174
pólvora, e das fortalezas de São Sebastião, e Santiago avisando logo ao
almirante e ao general da armada (...)
141
Nessa altura do acontecimentos, o discurso do sacrifício da vida valia mais do que a
perda das fazendas, pois, afinal de contas, a sombra do sol desafiava aqueles que eram os
maiores negociadores da coroa portuguesa. Os principais líderes do movimento foram
presos. Quanto a Jerônimo Barbalho Bezerra, como nos diz Vivaldo Coaracy, 'imbuído por
um espírito de vingança', Salvador de Sá foi mais longe:
(...) e como o mais culpado na vox comuna pelos desaforos com que
obrava era Jerônimo Barbalho gastando muito da sua fazenda na
recondução da gente que intimidava com ameaças para que viessem fazer o
que ele queria e haver incorrido nos maiores rimes, resolvemos pôr a cabeça
no pelourinho com que não só conseguira quietação, mas um geral exemplo
as conquistas de Vossa Majestade (...)
142
A morte do líder da Revolta da Cachaça não simbolizava somente uma tentativa de
exemplificar o destino daqueles que viessem a ameaçar a administração de Salvador
Correia de Sá, como também o afastamento dos homens bons do controle efetivo da
capitania e, mais do que isso, a sufocação do crescimento do papel político gonçalense e
das outras regiões periféricas na região fluminense. Visto de outro ângulo, o mesmo assento
demonstra que o governador pisoteou sobre a importância de determinadas famílias na
construção do espaço colonial, leia-se aqui, os Barbalho Bezerra. Afinal de contas,
Jerônimo Barbalho não era qualquer cidadão comum. Talvez por isso que D. Luísa de
Gusmão tenha aceitado as reivindicações dos revoltosos e destituído Salvador de Sá da
administração do Rio de Janeiro, nomeando em seu lugar, Pedro de Melo.
143
Mas, como
141
Notícia de um motim no Rio de Janeiro enviado à rainha regente, D. Luísa de Gusmão por Salvador
Correia de Sá - Rio de Janeiro, 10 de Abril de 1661. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Códice 10563/83,
fl. 195-196. Cf. também Carta para o administrador do Rio de Janeiro acerca da restituição de Salvador
Correia de Sá ao seu governo. Documentos Históricos, Op. Cit., Volume 5, pp. 133-134; Carta para Salvador
Correia de Sá e Benavides, governador das capitanias do sul, acerca do aviso que fez de se haver restituído ao
governo. Documentos Históricos, Op. Cit. , Volume 5, pp. 131-132.
142
Ibidem, fl. 195-196.
143
Charles R. Boxer, Op. Cit. , p. 329. Apesar da morte de Jerônimo Barbalho, os demais revoltosos que
foram presos por Salvador de Sá e Benavides tiveram que aguardar anos para serem reconhecidos como fiéis
vassalos do Rei, somente ocorrendo quando conquistaram a clemência e a ordem de cavaleiro de Cristo. Cf.
Carta Régia de Clemência aos Amotinados Presos. Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit., Volume IV, pp. 64-71;
Resposta do Rei a Clemência dos Amotinados. Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit., Volume IV, pp. 71-72;
Reposta dos Vassalos em Agradecimento à Coroa. Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit., Volume IV, pp. 72-
73.
175
esse último encontrava-se em Lisboa no momento da nomeação, em 17 de maio de 1661,
até a sua chegada a rainha solicitou que Agostinho Barbalho Bezerra assumisse a capitania.
Ponto, mais uma vez, para nossas personagens gonçalenses.
Em seu balanço final, podemos dizer que a Revolta da Cachaça foi totalmente
benéfica aos homens ultramarinos e que deposição de Salvador de Sá pela coroa deixava
transparecer que o controle dos Sás na administração tinha extrapolado todos os limites. Os
revoltosos ultramarinos tinham alcançado o principal ponto de reivindicação dos 'capítulos
apresentados a Thomé Correia de Alvarenga',
144
afastando toda a família da administração
fluminense e conservando o mesmo cargo hereditário de alcaide-mor à dinastia dos Sás.
145
Como nos aprofundaremos nessa questão no próximo capítulo, basta dizer que os
vassalos fluminenses ganharam uma significativa importância no espaço brasílico. Eles
passaram a se enxergar enquanto um grupo coeso, que sustentava as rendas régias e
conseqüentemente possuíam direitos, que podiam e deveriam ser negociados através de
acordos ou barganhas. Quando não eram atendidos, uma das formas de manifestação de
insatisfações era através de revoltas, motins e insurreições. No próprio desfecho da revolta,
a coroa portuguesa reconhecia a superioridade destes homens para a manutenção do mundo
ultramarino português, fazendo concretizar algumas de suas reivindicações e confirmando o
discurso dos teólogos medievais de que residia no povo a salvaguarda do poder real salus
populi suprema lex.
Mas quem eram esse homens? De que forma faziam da revolta uma recurso de
negociação? Como estavam inseridos na configuração familiar da capitania do Rio de
Janeiro? A que gama da população representa essencialmente a Revolta da Cachaça? Quais
eram as especificidades dos revoltosos no âmbito local? Para Luciano Raposo de Almeida
Figueiredo, o caráter popular da revolta da cachaça salta aos olhos de qualquer leitor,
146
mas não se pode deixar escapar que essa mesma visualização do perfil dos revoltosos
144
- Que em nenhum caso querem que governe esta praça e mais distrito o governador Salvador Correia de
Sá e Benavides pelas muitas fintas, tributos e tiranias com que tiraniza este cansado povo destruindo suas
fazendas tomando lhes com violência sem atender a conservação dos vassalos de Vossa Majestade
(...).Capítulos que Propõem o Povo deste Recôncavo desta Cidade que se Ajuntou na Ponta do Brabo ao
Senhor Governador Thomé Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores. Biblioteca Nacional de
Lisboa. Fundo Geral, Caixa 199, Número 47.
145
Charles R. Boxer, Op. Cit., pp. 339-340.
146
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, Op. Cit., 1996, pp. 40-41.
176
passem fundamentalmente pelas características dos objetivos que consolidavam o
movimento, já que o mesmo serviu para atender os interesses da nobreza do recôncavo
fluminense, como analisaremos no capítulo que se segue.
176
Capítulo 4 : Entre os Sá e os Barbalhos Os Personagens Gonçalenses
e a Revolta da Cachaça
No Brasil não há pessoa que se persuada não ter
nobreza, em tal forma, que ainda os homens que nesse reino
são jornaleiros, caixeiros, trabalhadores, oficiais e outros
semelhantes, em passando à América, de tal sorte se
esquecem de sua vileza, que querem ter igualdade com as
pessoas de maior distinção, e o mesmo acontece (...) também
com os sujeitos oriundos do Brasil, (...) querendo uns e
outros naturais e forasteiros de inferior, atropelar a nobreza
principal da terra e servirem os cargos honrosos da
república.
(Vereadores da Câmara do Rio de Janeiro, 1730)
Em seu primoroso trabalho sobre a sociedade açucareira colonial baiana, Segredos
Internos, Stuart Schwartz, especialmente no capítulo 9, intitulado Um Sociedade
Escravista Colonial, nos chamava a atenção, ainda em sua epígrafe, para a especificidade
da sociedade emergida nas regiões américo-lusitanas. Cruzando as informações do viajante
alemão, Alexander Von Humboldt e de um funcionário régio não identificado o autor
afirmava que [na] América, todo blanco es caballero [...] onde uma pessoa de origem das
mais modestas dá-se ares de grande fidalgo.
1
Essa curiosa afirmativa, ao nosso ver, ilustra como a sociedade do mundo
ultramarino encontrava-se extremamente pautada nos estatutos que vigoravam no reino
português. Até porque cabellero eram os nobres ou aqueles que usavam perucas, uma
simbologia clássica para a distinção entre um nobre e um simples plebeu, que segundo a
construção do autor era um apetrecho usado de forma bastante livre e aleatória quando se
tratava do mundo americano.
Dessa maneira, é muito fácil visualizar nos trópicos luso-americanos a presença da
busca desenfreada pela condição de nobre, até porque tal estatuto abriria várias portas
naquela sociedade, uma delas era a participação na câmara de vereadores. Na própria lista
1
Stuart Schwartz. Segredos Internos - Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988, p. 209.
177
de exigências encaminhadas pelos revoltosos à sombra interina, Thomé Corrêa de
Alvarenga, no início da Revolta da Cachaça, a preocupação com a questão da nobreza era
demarcada em pelo menos dois pontos dos quinze assinalados. No que se refere às eleições
da câmara reivindicavam que os vitoriosos deveriam ser homem mais antigos e prudentes
que houver nesta praça, já quanto aos almotacés exigiam a presença de homens nobres e
de bem.
2
Serão essas pertinentes questões que o presente capítulo se propõe a analisar. No
primeiro momento, discutiremos o estatuto de nobreza, tanto aquele vigente no Portugal
moderno como aquele adaptado na América lusitana, o que conseqüentemente nos
permitirá vislumbrar a intrínseca ligação entre esse estatuto e a participação política no
mundo ultramarino português. Em seguida, debruçar-nos-emos na percepção de como os
revoltosos absorviam tais estatutos e de que forma estavam ligados ou não à nobreza da
capitania fluminense, ou seja, visamos responder questionamentos como: quem eram esses
homens? Do que viviam? Qual era o seu papel na freguesia de São Gonçalo de Amarante?
Como se estruturam socialmente? Para isso, nos propomos a enxergar essa situação de
forma isolada, através da análise da família Barbalho, e de forma coletiva, através de um
estudo dos grupos sociais gonçalenses envolvidos na Revolta da Cachaça. Por fim, a título
de conclusão buscaremos perceber o impacto causado pelo movimento de 1660, sobretudo
avaliando suas conseqüências para a capitania do Rio de Janeiro.
Nobreza, Status e Fidalguia em Portugal e nas Conquistas Ultramarinas
Conforme fora discutido no início do capítulo anterior deste mesmo trabalho, a
sociedade do antigo regime português era pautada por uma estrutura corporativa e
polissonodal, extremamente apegada à disposição social encontrada ao longo do período
medieval. Nessa composição o rei encabeçaria a pirâmide social, sendo responsável pelo
controle da ordem, pela manutenção da paz e pela organização política. Enquanto isso, a
2
Capítulos que Propõem o Povo deste Recôncavo desta Cidade que se Ajuntou na Ponta do Brabo ao Senhor
Governador Thomé Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores. Biblioteca Nacional de Lisboa.
Fundo Geral, Caixa 199, Número 47.
178
nobreza, os bellatores, considerados os membros do rei, auxiliavam o mesmo na defesa do
reino, evitando as guerras e conflitos. Já ao clero, os oratores, cabia a defesa espiritual e
religiosa do monarca e de seus súditos. Por fim, o povo, também denominado laboratores,
como o próprio nome em latim designava (labor = trabalho), sustentava e alimentava a
sociedade corporativa através do seu esforço físico.
Percebe-se que era uma sociedade regida por ordens e completamente
hierarquizada, mas não pode escapar de vista a heterogeneidade presente em cada um
desses estados, o que abria a possibilidade de uma mobilidade social não muito constante,
mas completamente possível. Com relação à nobreza, Stuart Schwartz brilhantemente
afirma que era muito mais fácil definir sua caracterização pelo que não fazia, ou seja,
dedicar-se ao trabalho braçal, ser dono de loja, artesão e outras ocupações "inferiores"
era para os plebeus.
3
De uma certa maneira foram essas mesmas concepções que
atravessaram o medievo e aplacaram na época moderna.
Na historiografia portuguesa, ao lado da recente intensificada discussão sobre
História dos municípios e História local, enfrentada de forma mais sistemática por Joaquim
Romero Magalhães e Antonio Manuel Hespanha
4
, passou-se a fazer um debate de forma
quase que atrelada à discussão sobre a cultura nobiliárquica e das oligarquias camarárias,
no qual se destaca as obras tanto dos autores acima citados como a de Nuno Gonçalo
Monteiro.
5
Entre todos eles, é consenso o caráter plural e diversificado da noção da cultura
nobiliárquica, o que significa dizer que a condição de nobreza variou significativamente de
acordo com o tempo e para cada localidade.
Tais dificuldades de enquadramento das delimitações jurídicas da condição de
nobre em Portugal, segundo Nuno Gonçalo Monteiro, relacionam-se diretamente ao
vastíssimo processo de alargamento da nobreza lusitana ao longo da época moderna,
3
Stuart Schwartz, Op. Cit. , p. 210.
4
Joaquim Romero Magalhães. "Reflexões sobre a Estrutura Municipal Portuguesa e a Sociedade Colonial
Portuguesa" IN: Revista de História Econômica e Social, Número 16, 1986; Joaquim Romero Magalhães. O
Algarve Econômico (1600-1733). Lisboa: Editorial Estampa, 1988; Maria Helena Coelho e Joaquim Romero
Magalhães. O Poder Concelhio: das Origens às Cortes Constituintes. Coimbra, 1986; Antonio Manuel
Hespanha. As Vésperas do Leviatã: Instituições e Poder Político, Portugal Século XVII. Coimbra: Livraria
Almedina, 2 Volumes, 1986.
5
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Elites Locais e Mobilidade Social em Portugal nos finais do Antigo Regime"
IN: Revista Análise Social. Volume XXXII (141), 1997; O Crepúsculo dos Grandes: a Casa e o Patrimônio
da Aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998. "Os Concelhos
e as Comunidades" IN: José Mattoso (Dir.) História de Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 4, 1993; "Poder
Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia" IN: José Mattoso (Dir.) História de Portugal. Lisboa:
Estampa, Volume 4, 1993.
179
principalmente após a restauração portuguesa, em 1640.
6
Sendo assim, as diferentes
condições do estatuto de nobreza suscitaram uma diferenciação interna no reino português,
a qual é relatada por Antonio de Villas Boas e Sampaio:
(...) a verdadeira nobreza há de ser herdada, e derivada dos pais aos
filhos (...) E se algumas pessoas de nascimento humilde chegam nos povos a
ser avaliados por nobres por ações valorosas, que obraram, por cargos
honrados, que tiveram, ou por alguma proeminência, ou grau, que os
acrescente, não é esta nobreza verdadeira derivada pelo sangue, e herdada
dos avós, mas pertencente à classe da nobreza civil, e política, que se
adquire pelos cargos, e postos da república, e servir-lhes-ão estes, e os
feitos gloriosamente obrados de os constituir nos princípios da nobreza de
sorte que verdadeiramente se não pode dizer deles que são nobres, se não
que o começam de ser (...) a verdadeira nobreza não pode dá-la o príncipe
por mais amplo que seja o seu poder.
7
É clara a distinção estabelecida entre uma nobreza de sangue e uma nobreza civil
ou política. Logo, a nobreza de sangue era pautada pela hereditariedade da condição
nobiliárquica, ou seja, os filhos herdavam do pai o estatuto de nobreza, não necessitando
do monarca para poder revesti-la. Por outro lado, a nobreza civil ou política era aquela
surgida seja através da compra do título, seja pela concessão desse mesmo estatuto pelo rei.
As concessões, normalmente, eram feitas devido à prestação de serviços no âmbito militar,
social, religioso e administrativo. No entanto, a nova condição atribuída pelo rei para
muitos autores defensores da concepção corporativa da sociedade moderna, como Diogo
Guerreiro Camacho de Aboim, não igualava o nobre civil ao nobre de sangue, o que
desqualificava o primeiro como um nobre verdadeiro, já que o monarca não poderia mudar
o seu nascimento de origem.
8
Nesse sentido, a questão da fidalguia ou da grandeza, como determina Nuno
Gonçalo Monteiro, tornou-se um parâmetro recorrente para a diferenciação entre um nobre
civil e um nobre de sangue, o que nos permite afirmar que todo fidalgo era um nobre,
porém nem todo nobre era um fidalgo. É lícito supor que, ao longo dos séculos XVI e
6
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia" IN: José Mattoso
(Dir.) História de Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 4, 1993, p. 334.
7
Antonio de Villas Boas e Sampaio. Nobiliarquia Portuguesa: Tratado de Nobreza Hereditária e Política,
pp. 28-29 Apud Nuno Gonçalo Monteiro, Ibidem, p. 335.
8
Diogo Guerreiro Camacho de Aboim. Escola Moral, Política, Cristã e Jurídica, p. 223 Apud Nuno
Gonçalo Monteiro, Ibidem, p. 338.
180
XVII, as principais casas da nobreza portuguesa passaram a disputar intensamente o
domínio de status, poder e patrimônio. A constituição de casamentos, a configuração de
novas alianças e a concessão de títulos redefiniu a posição de cada grupo lusitano,
distinguindo uma primeira nobreza dos grandes fidalgos.
Condição importante para se tornar um fidalgo era pertencer a uma das principais
casas do reino. A casa constituía-se em um conjunto de bens tanto materiais como
simbólicos que valoravam a condição da elite social. Eram sobre as casas que recaíam as
doações régias, a distribuição de comendas
9
, o direito do padroado, o direito da cobrança
de imposto, o direito de senhorios e de concentração de rendas. Além disso, um fidalgo
deveria também residir na corte, próximo ao monarca, mostrando-se fiel e um bom
súdito.
10
Participantes ativos dos círculos sociais palacianos, a alta nobreza não se ligava a
nobreza provincial, o que fazia com que os casamentos ficassem restritos aos grupos da
mesma condição social.
A transferência de toda essa teoria nobiliárquica para o mundo américo-lusitano
português deu-se de maneira bastante peculiar, primeiro devido à própria caracterização
dos primeiros europeus que aqui chegaram, e segundo porque os mesmos encontraram ao
seu redor grupos sociais que deveriam, de certa forma, se inserir na divisão social
anteriormente estabelecida, o caso dos índios. Nesse sentido, já se sabe que os europeus
que enveredaram pela prática marítima não eram oriundos da primeira nobreza lusitana,
apesar de serem influenciados pelos seus arquétipos de caracterização, o que determinava a
esperança do novo mundo se constituir para esses homens como uma alternativa em busca
do enobrecimento. A sua margem encontravam-se os distintos grupos étnicos indígenas
que não se enquadravam em nenhum a das categorias sociais armazenadas na mentalidade
do homem europeu recém chegado à América. Sendo assim, nos trópicos de domínio
lusitano a distinção social e a conseqüente caracterização da nobreza foram profundamente
influenciadas não só pelos privilégios e pela propriedade, recorrentemente usados como
parâmetros em Portugal, como também na questão da cor.
9
Há de mencionar que embora as comendas fossem um atributo de grandeza e fidalguia, muito nobres civis
conseguiram seu estatuto através da conquistas desses bens. Cf. Nuno Gonçalo F. Monteiro, Ibidem, p. 341.
10
Interessante notar que durante o período da união da coroa castelhana com a coroa lusitana a
obrigatoriedade desse ponto foi colocada em segundo plano, já que dos 21 senhores das grandes casas
portuguesas, apenas cinco viviam em Lisboa, muitos mudando-se para Madri, assinalando uma significativa
dispersão territorial das residências dos principais donos de terra lusitano. Cf. Nuno Gonçalo Monteiro. "A
Corte, as Províncias e as Conquistas: Centros de Poder e Trajetórias Sociais no Portugal Restaurado (1668-
1750)" IN: O Barroco e o Mundo Ibero-Atlântico. Lisboa: Edições Colibri, 1998, pp.24-26.
181
A introdução da mão-de-obra africana, a partir do último quartel do século XVI,
somente acentuou a hierarquização calcada na raça e na cor e o dualismo da sociedade
colonial, pois no dia a dia ou você se enquadrava na condição de branco ou negro, livre ou
escravo, fidalgo ou plebeu, católico ou pagão. Sendo assim, um dos primeiros requisitos
para caracterizar um nobre no ultramar lusitano é indubitavelmente sua cor, ou seja, ser
branco. Agora, por outro lado, não podemos também esquecer o próprio processo de
mestiçagem que assolou a América, o que hora alargaria o número de não nobres, mas que
de maneira alguma excluía a possibilidade desses alcançarem tal estatuto, já que a
condição de nobreza também incluía a questão da propriedade.
Ter escravos era, sem dúvida alguma, um dos pilares da propriedade nobiliárquica
na América portuguesa, o que evidentemente alimentava a distinção dualista da sociedade.
Em seguida, a propriedade de terras, intrinsecamente ligada à posse de uma escravaria,
constituía-se como um fator relevante para a determinação da condição de nobre.
Interessante é perceber aqui que o ideal medieval dos bellatores permanece intacto, até
porque quem ficou com o trabalho pesado foram os escravos e não os proprietários de
terra. Assim, ser agraciado com um pedaço de terra, ou seja, uma sesmaria era um dos
primeiros caminhos que qualquer indivíduo com perspectiva de alcançar a fidalguia
deveria seguir.
Um outro componente da propriedade, mas que não pode ser considerado como um
elemento essencial para a condição de nobreza é a conquista de cargos administrativos.
Digo isso porque somente a conquista de cargos não dava o direito dos súditos lusitanos se
intitular como nobre, mas por outro lado dava-lhe o direito de votar, mas não o de ser
votado em eleições municipais.
11
Assim, a participação na administração nas regiões
américo-lusitanas era apenas um ingrediente a mais para sua caracterização e não o seu
determinante, diferente do que acontecia em Portugal, onde a massa de indivíduos que
recebia cargos do rei passava a compor o que Nuno Gonçalo Monteiro chamou de nobreza
de serviços.
12
Por fim, o último atributo para a denominação da nobreza em solo américo-lusitano
eram os privilégios. Nesse caso, as honras e as mercês incluíam-se em uma política
11
Sobre a questão daqueles que recebem cargos terem o direito de eleger seus vereadores, Cf. Maria
Fernanda Baptista Bicalho. "As Câmaras e o Governo do Império" IN: João Fragoso, Maria Fernanda
Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial
Portuguesa (XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 213.
12
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia" In: José Mattoso
(Dir.) História de Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 4, 1993, p. 363.
182
portuguesa de restringir e delimitar as hierarquias sociais dispostas não só no reino
português como no ultramar. Eram concessões feitas a partir de serviços prestados à coroa,
da mesma forma que uma demonstração de fidelidade. Talvez por isso que muitos autores
atualmente insistem na atribuição desse benefício à configuração de uma 'economia moral
do dom'.
Tal economia constituía-se como uma troca de favores, sendo também um
instrumento utilizado pelo antigo regime português na dinamização da relações políticas.
13
Segundo Maria Fernanda Bicalho, a possibilidade de acesso à administração local,
ou seja, às câmaras era uma das principais facetas da conquista desses privilégios. Mas por
que fazer parte da câmara era algo tão importante no mundo ultramarino? Para Nuno
Gonçalo Monteiro, os poderes municipais ao mesmo tempo que tinham uma natureza
oligárquica, permitiam a existência de uma autonomia política.
14
Em Portugal, as câmaras
possuíam certas especificidades que não eram encontradas em outras sociedades do antigo
regime, como por exemplo: a) uma ampla uniformidade institucional; b) a equiparação de
estatutos entre as vilas e as cidades; c) a ausência de hereditariedade dos cargos
administrativos, com exceção dos pequenos cargos municipais como escrivães e juízes; d)
uma ampla autonomia camarista pelo menos até o Setecentos; e) a eleição era feita
seguindo os padrões de riqueza vigorantes naquelas sociedades; e f) a inexistência de
capitais provinciais, como ocorria na América Hispânica.
15
Com atribuições administrativas e judiciais, as câmaras eram compostas por
homens não letrados que formavam uma autarquia econômica e que executavam as leis de
acordo com os seus interesses, e a amizade, a familiaridade e a localidade auxiliavam na
aplicabilidade da justiça local.
16
Além disso, em Portugal, a câmara tinha o direito de
interferência no tabelamento de preços e gêneros alimentícios, era responsável pela
realização de feiras e mercados, controlava a administração de baldios e maninhos e
13
Antonio Manuel Hespanha e Ana Bárbara Xavier. "As Redes Clientelares" IN: José Mattoso (Dir.)
História de Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 3, 1993, p. 381; compactuam também desta idéia Maria
Fernanda Baptista Bicalho. A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial Portuguesa,
Séculos XVII-XVIII. Tese (Doutorado em História). Departamento de História da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1997,p. 370; e João Fragoso "A Formação da
Economia Colonial no Rio de Janeiro e de sua Primeira Elite Senhorial (Séculos XVI e XVII)" IN: João
Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos,
Op. Cit.
14
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Os Concelhos e as Comunidades" IN: IN: José Mattoso (Dir.) História de
Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 4, 1993, p. 303.
15
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Elites Sociais e Mobilidade Social". Análise Social. Volume XXXII (141),
1997, pp.337-338.
16
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Os Concelhos e as Comunidades" IN: IN: José Mattoso (Dir.) História de
Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 4, 1993, pp. 316-318.
183
possuía a liberdade de aplicação de impostos e do encabeçamento das sisas.
17
No entanto,
com todas esses privilégios, a câmaras conseguiam menos arrecadação do que, por
exemplo, as casas fidalgas e os mosteiros, fazendo com que as dificuldades econômicas
fossem categoricamente solucionadas pelo aumento de impostos e taxações, desagradando
de forma substancial à população, principalmente às freguesias rurais.
18
No ultramar américo-lusitano a realidade do poder local encontrava-se de maneira
muito semelhante à que foi apresentada entre os lusitanos. Mas, é óbvio que a
especificidade das localidades faziam emergir situações distintas daquelas vistas nas
regiões metropolitanas. Caso ilustrativo dessa situação é a própria justificativa das
motivações que levavam esses homens a enveredarem por uma administração previamente
condenada a problemas financeiros. Se em Portugal fazer parte da câmara era ter acesso de
forma imediata aos lugares centrais das decisões político-econômicas da localidade e do
exercício da influência política, na América, da mesma maneira que tais atribuições eram
um dos interesses dos camaristas, porque poder local abria a possibilidade de novos
estatutos nobiliárquicos: o de homem bom e do cidadão.
È óbvio que na metrópole lusitana a participação na câmara também concedia ao
indivíduo o estatuto de cidadão, mas nas áreas luso-metropolitanas a conquista da
qualidade de cidadão estava presente não só através do exercício de funções na
administração camarista, como também no nascimento, no merecimento, no matrimônio e
nas letras.
19
Na América portuguesa, de imediato já se excluía a possibilidade da conquista
da cidadania pelas letras e pelo merecimento, pois os cargos do governo local não tinham
nenhuma intervenção régia, restando a conquista da cidadania por nascimento, pelo
casamento e pela via institucional. A primeira, se levarmos em consideração os primeiros
momentos da conquista ultramarina excluiríamos todos os primeiros povoadores, já que
ninguém possuía sangue nobre; a segunda, conseqüência da anterior, também não seria
tomada como parâmetro se acreditarmos que ninguém possuía tal estatuto. Ou seja, é com
a participação nas atividades da vereança que os conquistadores não só fluminenses, como
américo-lusitanos, passavam efetivamente a se caracterizar como cidadãos, decidindo os
rumos da res publica.
17
Ibidem, pp. 320-323.
18
Ibidem, p. 323.
19
Francisco Teixeira da Silva. O Porto e seu termo. Os Homens, as Instituições e o Poder. Porto: Arquivo
Histórico/Câmara Municipal do Porto, 2 Volumes, 1988, pp. 296-301.
184
No entanto, seja na América ou em Portugal, o poder municipal estava
intrinsecamente relacionado às oligarquias locais. Sendo assim, foi através do exercício das
atividades na vereança que as oligarquias estruturavam e solidificavam a sua superioridade
política. Para Nuno Gonçalo Monteiro, essa política de cristalização das elites locais
através da câmara fora de uma certa forma estimulada pela coroa em Portugal,
configurando o que Max Weber chamou de administração dos Honoratiores.
20
Ilustrativo
dessa situação foi a promulgação, em 12 de novembro de 1611, de um alvará que
organizava as eleições municipais no qual, dentre outras medidas, determinava que
somente as pessoas 'antigas e honradas' poderiam ser consideradas elegíveis.
21
Nessa
lógica, apareciam, então, dois grupos sociais com possibilidades de se elegerem: os grupos
oriundos das famílias tradicionais, que possuíam uma autoridade quase que natural devido
às tradições familiares; e as famílias ricas, que, teoricamente, utilizavam a vereança para
um governo coletivo, já que eram abastadas financeiramente antes da ocupação desses
cargos.
22
Na América lusitana esta situação encontrar-se-á disposta de forma interessante.
Por exemplo, a promulgação do alvará de 1611 coube como uma luva para o afastamento
da participação política dos grupos sociais não muito bem quistos pelos antigos camaristas,
leia-se os oficiais mecânicos, os comerciantes, as pessoas impuras (principalmente os
cristãos-novos) e aqueles de vinham do reino em busca de enobrecimento rápido. Ao
mesmo tempo, o alvará auxiliou na cristalização de um modelo distinto de nobreza
existente no ultramar, a nobreza da terra. Se a determinação régia somente possibilitava a
participação política na câmara daqueles que eram oriundos das famílias antigas e
honradas, no ultramar, tal pressuposição assumiu a figura daqueles primeiros homens que
20
Nuno Gonçalo F. Monteiro. "Os Concelhos e as Comunidades" IN: IN: José Mattoso (Dir.) História de
Portugal. Lisboa: Estampa, Volume 4, 1993, p. 324.
21
Ibidem, p. 324.
22
Ibidem, p. 325. É interessante notar que as restrições impostas para a participação da câmara eram
asseguradas pelo processo de eleição, pois o modelo de eleição trienal então definido configurou até o final
do Antigo Regime, sem alterações de substância. Incumbia aos corregedores a escolha de dois ou três
informantes, os quais elaboravam a lista dos elegíveis. Convocando-se depois os eleitores que votavam
dentre os arrolados, aqueles que deviam preencher os ofícios municipais (juiz ordinário, quando era o caso,
vereadores, procuradores e, eventualmente, tesoureiros). Todas as escolhas acabavam por recair dentro do
mesmo círculo, ou seja, dos mais nobres e da governança da terra, filhos e netos de quem já tivesse servido
e, até às leis pombalinas, sem raça alguma. A lista dos elegíveis e a relação dos votos eram depois enviadas
para confirmação do Desembargo do Paço, nas terras da coroa, ou aos senhores, no caso dos concelhos de
donatário. Nuno Gonçalo Monteiro. "Elites Locais e Mobilidade Social" IN: Revista Análise Social. Volume
XXXIII (141), 1997, p. 340.
185
chegaram ao solo americano, se enraizaram e fizeram dessas regiões efetivos domínios
lusitanos, ou seja, eram os primeiros conquistadores e povoadores.
23
Assim, nesse caso, o estatuto de nobreza da terra além de angariar as
características da tradicional nobreza anteriormente descritas a pureza do sangue, a
conquista de honras e mercês, a propriedade de terras e escravos, a ascendência familiar e a
participação nas atividades da câmara de vereadores , deveria obrigatoriamente possuir os
méritos da conquista, povoamento e defesa das regiões coloniais.
24
Retornando ao alvará
de 1611 e sua aplicabilidade na América portuguesa podemos notar que a separação entre
as famílias tradicionais e as famílias ricas existentes em Portugal, do outro lado do
Atlântico, corporificaram-se na imagem da nobreza da terra. Isto significa dizer que a
casa nobiliárquica portuguesa assumia novos contornos na América, novamente recaindo-
se sob os nomes das principais famílias da terra. Como estavam presentes na câmara eram
essas famílias tradicionais que negociavam diretamente com a autoridade régia, tentando
tecer acordos, impor seus interesses e resolver os impasses.
Em se tratando dessa relação entre os súditos ultramarinos e a autoridade régia,
acredito que cabe o conceito de economia política de privilégios formulado por Maria
Fernanda Bicalho, João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa. Principalmente se levarmos
em consideração a distribuição de honras e mercês por serviços prestados, as restrições
impostas à participação nos concelhos municipais à nobreza tradicional ou nobreza da
terra e a própria lógica interlocutora entre as esferas do poder central e do poder local.
25
23
Creio que aqui cabe fazer uma menção das particularidades das regiões coloniais américo-lusitanos sobre a
efetiva aplicação do alvará de 1611, principalmente no que tange a Minas Gerais. É sabido que ao contrário
do que acontecera com as demais regiões litorâneas da América portuguesa, as regiões mineiras tiveram seu
processo de conquista e domínio do território extremamente atrelado a extração aurífera, o que determinou
absolutamente a configuração de uma composição social vastíssima e profundamente diferenciada. Sendo
assim, naquelas regiões, a possibilidade de aplicabilidade do alvará esbarrava na inexistência de um grupo até
então denominado família tradicional, o que, concomitantemente, abriu a possibilidade da câmara de Vila
Rica atropelar qualquer tipo de restrição para ocupação dos cargos camaristas, o que muitas vezes dava a
falsa impressão da mediocridade da vereança mineira. Cf. Charles R. Boxer. A Idade do Ouro no Brasil:
Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. São Paul: Companhia Editora Nacional, 1963; Laura de
Mello e Souza. Desclassificados do Ouro: a Pobreza Mineira do Século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1986;
A. J. R. Russell-Wood. "Local Government in Portuguese America: a Study in Cultural Divergence" IN:
Comparative Studies in Society and History. Vol. 16. N. 2, March 1974; Maria Fernanda Baptista Bicalho. A
Cidade e o Império, Op. Cit. , pp. 354-356.
24
Maria Fernanda Baptista Bicalho. "As Câmaras Ultramarinas e Governo do Império" IN: João Fragoso,
Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos, Op. Cit.
, p. 218; Cf. também Maria Fernanda Baptista Bicalho. "As Câmaras Municipais no Império Português: o
Exemplo do Rio de Janeiro" IN: Revista Brasileira de História. Volume 18, Número 36, São Paulo, 1998.
25
Maria Fernanda Baptista Bicalho, João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa "Uma Leitura do Brasil
Colonial: Bases da Materialidade e da Governabilidade do Império" IN: Penélope. Fazer e Desfazer
História. Número 23, Lisboa, 2000, pp. 67-88; Cf. também João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e
Maria de Fátima Gouvêa (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos, Op. Cit. , pp.219-221.
186
No que tange a esse último ponto é conveniente perceber que a câmara de vereadores era o
locus primordial para o embate entre as principais famílias das localidades e da negociação
da autoridade entre o rei e o seus súditos ultramarinos. Talvez por isso que a mesma
configurar-se-á também como o principal espaço de conflitos entre os vereadores (os
principais da terra) e os funcionários régios ultramarinos (governadores, vice-reis e
ouvidores), principalmente se levarmos em consideração que teoricamente os primeiros
deveriam estar subordinados aos segundos.
Situação extremamente exemplar para ilustrar este impasse entre o poder da
nobreza da terra, o embate entre as principais famílias tradicionais, o questionamento sobre
a funcionalidade dos administradores régios na América e a manutenção da autoridade do
monarca encontra-se na Revolta da Cachaça. Apesar de não ter questionado a soberania da
luminosidade solar, o movimento fluminense em primeiro lugar enfrentou duramente a
figura de Salvador Correia de Sá e Benavides, membro mais do que ilustre dos primeiros
povoadores e conquistadores da capitania do Rio de Janeiro. No entanto, ao mesmo tempo
que açambarcava para si privilégios que a ocupação do cargo de governador lhe
proporcionava, por outro lado desagradava aos demais membros da nobreza da terra,
estando presentes na câmara ou não. Logo, o conflito quando foi iniciado colocou frente a
frente duas das principais famílias tradicionais ultramarinas: os Sás e os Barbalho.
Nesse embate, a coroa portuguesa deveria tomar alguma posição, tendo a certeza
de que, inevitavelmente, uma das principais famílias sairia prejudicada. A escolha pela
família Barbalho, como vimos no final do capítulo anterior não teve como parâmetro de
referência a opção por aquela que possuía mais prestígio, honra ou tradicionalismo, pois se
fosse assim Salvador de Sá não seria retirado de seu cargo. Logo, a escolha pautou-se pela
permanência da autoridade régia e, mais do que isso, pela continuidade da possibilidade de
negociação e barganha sem a qual a soberania do sol seria impossível, principalmente em
se tratando de áreas afastadas da luminosidade do poder régio. Por tudo isso, a Revolta da
Cachaça, ao nosso ver, reúne todos os ingredientes das incompatibilidades de governança
no âmbito municipal do antigo regime português. Talvez, agora fosse interessante analisar
essas famílias e grupos sociais que derrubaram o tradicionalismo dos Sá, começando, é
óbvio, pela família líder do movimento: os Barbalho.
187
Os Honoratiores Gonçalenses: A Família Barbalho
A família Barbalho, ou talvez fosse melhor dizer, a família Barbalho Bezerra
deixou inúmeros descendentes que se estabeleceram em Pernambuco mas que tiveram uma
ilustre e significativa ramificação na capitania do Rio de Janeiro. A conjunção dos
sobrenomes deu-se através do casamento entre Guilherme Bezerra Felpa de Barbuda com
Camila Barbalho.
26
Guilherme Bezerra Felpa Barbuda era filho de Antonio Bezerra Felpa de Barbuda,
patriarca dos Bezerra. Segundo Bueno e Barata esta família era originária da província do
Lugo, na Galiza, onde habitava antes da conquista da Estremadura e Andaluzia (1231 e
1249). A alcunha teve origem nos irmãos Antonio Martins Bezerra e Fernão Gonçalo
Bezerra: o primeiro, também conhecido como Bezerra Felpa, casou-se com Maria Martins
Bezerra, chegando a Pernambuco com o seu donatário, Duarte Coelho Pereira. Desse seu
casamento, nasceu Guilherme.
27
Enquanto isso, Camila Barbalho era filha de Brás Barbalho Feyo, patriarca da
família Barbalho. Não sabemos sua origem em Portugal, mas Brás Barbalho chegou à
América, ou melhor, a Pernambuco também no momento da conquista da região pelos
portugueses. Lá se casou com Catarina Tavares Guardes, com quem deixou uma larga
descendência, entre elas Camila, que viveu até 1608.
28
Do casamento entre Guilherme Bezerra e Camila Barbalho, nasceu, em 1584, na
própria capitania de Pernambuco, Luís Barbalho Bezerra que se configurará como o
grande responsável pelo estabelecimento dessa família nas regiões fluminenses. O mesmo
casou-se aos 30 anos, ainda em Pernambuco, com D. Maria de Mendonça Furtado, filha de
um dos descendentes das mais ilustres famílias fluminenses, os Furtado de Mendonça.
Dessa união nasceram seis filhos.
29
Porém, antes de conhecermos um pouco da vida de
seus filhos, personagens ilustres da Revolta da Cachaça, cabe, neste momento, nos
debruçar sobre o pouco que conhecemos da trajetória de Luís Barbalho Bezerra, figura
26
Afonso Henriques da Cunha Bueno & Carlos Eduardo de Almeida Barata. Dicionário das Famílias
Brasileiras. São Paulo: Iberoamerica, Volume 1, 2000, p. 368 (Barbalho Bezerra)
27
Ibidem, p. 470 (Bezerra).
28
Ibidem, pp. 368 e p. 328 (Barbalho).
29
Carlos G. Rheingantz. Primeiras Famílias do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: Livraria
Editora Brasiliana, Volume 1, 1965, p. 188.
188
importante para a reafirmação da família Barbalho Bezerra como uma das famílias
principais da terra.
30
Nas palavras de Vivaldo Coaracy, Luís Barbalho Bezerra era um homem
ponderado e íntegro, de inatacável honestidade. Ainda em Pernambuco enfrentou a
invasão dos holandeses, onde perdeu grande parte de sua fortuna e de sua saúde física,
tornando-se pobre e enfermo.
31
A insustentável situação na capitania pernambucana o
forçou a transferir-se para a Bahia, em 1638, para onde levou toda a sua família e
posteriormente para o Rio de Janeiro, já em 1642.
32
O afastamento de Salvador Correia de Sá e Benavides do controle da região
fluminense fez emergir um novo governador, era ele, Luís Barbalho Bezerra, que assumiu
o cargo em 1643. Todavia, antes de tomar posse da complicada administração fluminense,
ele já havia conquistado para si várias outras atribuições, entre elas a fidalguia da casa real,
a comenda da ordem de Cristo, o governo de Arraial do Cabo de Santo Agostinho, o cargo
de mestre de campo da infantaria e o governo da Bahia.
33
Devido as suas condições financeiras precárias, a câmara do Rio de Janeiro decidiu
prover aposentadoria ao governador, pagando-lhe o aluguel da casa onde residia. Prática
esta que, após a saída de Luís Barbalho da administração fluminense tornou-se recorrente
na capitania.
34
Quanto a sua gerência na capitania, conforme fora assinalado em outros
momentos deste trabalho, não teve muita sorte. Sua rápida administração foi resultado dos
constantes problemas que envolviam o sustento da frota fluminense e a conseqüente
eclosão de uma revolta contra a tentativa de desvio da arrecadação dos impostos da câmara
para a região baiana, flagelada pelas guerras contra os flamengos. A morte, em 16 de maio
de 1644, não se sabe se foi realmente por desgosto frente aos amotinados, mas podemos
dizer que marcou indiscutivelmente a história fluminense. Primeiro porque, a inexistência
de um sucessor fez com que pela primeira vez a câmara escolhesse um administrador,
Duarte Corrêa Vasqueanes, uma atribuição que pertencia ao rei;
35
e em segundo lugar,
porque, anos depois, seus filhos encabeçaram um movimento que, no nosso entendimento,
possui profundas raízes nos acontecimentos de 1643-1644.
30
Bernardino José Souza. “Luis Barbalho” In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Volume 13, 1964.
31
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, pp. 117-118.
32
Afonso Henriques da Cunha Bueno & Carlos Eduardo de Almeida Barata. Dicionário das Famílias
Brasileiras, Op. Cit. , Volume 1, p. 368.
33
Ibidem, p. 368.
34
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 118.
35
Ibidem, p. 119.
189
Antonio Barbalho Bezerra, o mais novo dentre seus filhos, foi fidalgo cavaleiro da
casa real e segundo senhor do morgado da Paraíba. Enraizou-se na Paraíba, onde se casou,
em 6 de novembro de 1633, com Joana Gomes da Silveira, neta do ilustre Duarte Gomes
da Silveira, fundador do morgado de São Salvador do Mundo.
36
Já o filho mais velho era
Guilherme Barbalho Bezerra. Nascido em Pernambuco, tornou-se coronel do regimento
da Bahia, fidalgo da casa real, capitão e alcaide-mor da cidade de São Cristóvão. Em 15 de
janeiro de 1642 foi agraciado com a mercê da comenda do Mareto na ordem de São Thiago
pelos servidos prestados à América portuguesa. Cinco anos depois foi a vez de receber a
comenda de Nossa Senhora dos Casais, da ordem de Cristo, pelos seus benefícios
realizados na Bahia, em Pernambuco e em Elvas.
37
O terceiro filho do governador do Rio de Janeiro foi Francisco Monteiro Bezerra.
Também fidalgo da casa real, sentou praça aos oito anos de idade. Residente na Bahia,
tornou-se capitão da Fortaleza de Nossa Senhora do Populo.
38
Quanto a sua única filha,
apenas temos a referência de seu matrimônio. Nascida em Pernambuco, por volta de 1633,
Cecília Barbalho casou-se, em 1650, com o capitão Antonio Barbosa Calheiros, que quatro
anos depois tornou-se coronel. Dessa união tiveram dois filhos, Antonio (nascido no Rio
de Janeiro, em 1654) e Isabel (também natural do Rio de Janeiro, em 1658).
39
Cecília
falecera em 1702, ainda no Rio de Janeiro. Dessa forma, chegamos aos filhos mais
importantes de Luís Barbalho e Maria de Mendonça: Jerônimo Barbalho Bezerra e
Agostinho Barbalho Bezerra.
Natural de Pernambuco, Jerônimo Barbalho Bezerra nasceu por volta de 1616, o
que significa dizer que quando liderou o movimento fluminense, em 1660, estava com 44
anos, morrendo degolado aos 45. No mesmo ano em que seu pai morria, casara-se com
Isabel Pedrosa, filha de João de Couto Carnide e Cordula Gomes. Como seu pai, dessas
núpcias teve seis filhos: Jerônimo Barbalho, 1645; Felipe Barbalho Bezerra, 1647; Páscoa
Barbalho, 1650; Luís Barbalho, 1651, que faleceu ainda menor; Micaela Pedrosa, 1653;
Luis Barbalho, 1660. Tendo como parâmetro a genealogia de Carlos Rheingantz, todos os
filhos de Jerônimo Barbalho nasceram na cidade do Rio de Janeiro, porém os seus netos,
36
Afonso Henriques da Cunha Bueno & Carlos Eduardo de Almeida Barata. Dicionário das Famílias
Brasileiras, Op. Cit. , Volume 1, p. 368 (Barbalho Bezerra)
37
Ibidem, p. 368 (Barbalho Bezerra)
38
Idem, Ibidem.
39
Carlos Rheingantz, Op. Cit. , Volume 1, p. 190 e 195.
190
principalmente daqueles nascidos do casamento de suas filhas, possuíam ligação com a
região gonçalense.
40
Não possuímos nenhuma referência que nos possibilite afirmar com certeza que
Jerônimo havia ocupado algum cargo ou recebido alguma mercê na região fluminense,
nem muito menos constatamos sua participação na câmara de vereadores. Segundo
Rheingantz ele era capitão, mas o mesmo não mencionou quando Jerônimo Barbalho havia
recebido essa titulação. Por outro lado, sua ligação com a região gonçalense pode ser
confirmada pelo alvará régio, que recriava da freguesia de São Gonçalo, em 1647.
Jerônimo Barbalho era citado entre os ilustres sesmeiros que a partir daquela data
desmembravam-se da freguesia da Sé para fazer parte da freguesia de São Gonçalo de
Amarante.
41
Como na principal referência para este trabalho no que tange a distribuição de
sesmarias no Seiscentos, a obra de José Pizarro de Souza Azevedo de Araújo
42
, não
nenhuma menção a existência de terras que Jerônimo Barbalho tenha recebido, tivemos
que buscar outro tipo de documentação para provar o enraizamento de Jerônimo em São
Gonçalo. Assim, optamos por levar em consideração toda documentação sobre a Revolta
da Cachaça que apontava a região da ponta do Bravo como de domínio da família
Barbalho, o que fez também com que aquela localidade ficasse conhecida com a alcunha
de ponta dos Barbalhos. Seus domínios na ponta do Bravo, que atualmente se conhece pelo
nome de Gradim, foi o local escolhido pelos revoltosos para o planejamento e arquitetura
do movimento contra Salvador Correia de Sá e Benavides.
Além da referência dessas terras à margem da orla oriental da baía da Guanabara,
os registros deixados no cartório do primeiro ofício de notas aponta a existência de uma
outra propriedade de Jerônimo Barbalho. Não se sabe ao certo onde ela se localizava, pois
não há referências desse tipo, mas consta como seus antigos proprietários Barnabé de
Castro, Sebastião Pinto e Antonio Dias. Estes, em 1662, recebiam da viúva Dona Isabel
40
Ibidem, pp. 188-190.
41
Alvará e mercê que sua Majestade faz como governador e perpétuo administrador que é do mestrado do
Rio de Janeiro se erigiu quatro vigairarias de novo. Arquivo Nacional. Códice 61, Volume 1, pp. 216v-219v.
42
José Pizarro de Souza Azevedo de Araújo. "Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro Extraída
dos Livros de Sesmarias e Registros do Cartório do Tabelião Antonio Teixeira de Carvalho, 1565-1796" IN:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Tomo 63, Volume 1, 1900.
191
Pedrosa a importância de 900$00 réis como pagamento da aquisição de terras e ajustes de
contas.
43
Até cogitamos a hipótese de ser as mesmas terras localizadas na ponta do bravo,
mas a distância entre a primeira referência em que Jerônimo aparece como proprietário das
terras no Gradim e o pagamento feito por sua esposa não nos possibilitam dar continuidade
em assegurar essa afirmação. No entanto, um dos antigos proprietários das terras
compradas por Isabel Pedrosa, Sebastião Pinto, igualmente constava como um dos
sesmeiros desmembrados para a nova freguesia em 1647, o que aumenta a possibilidade
destas terras encontrarem-se situadas também em São Gonçalo. Além do que, o mesmo
Sebastião Pinto era casado com Madalena Sardinha, oriunda de uma tradicional família
proprietária de terras no fundo oriental da baía da Guanabara.
44
Seja como for, acreditamos que a figura de Jerônimo Barbalho Bezerra enquadrava-
se perfeitamente em uma das contradições motivadora para a eclosão da Revolta da
Cachaça: o afastamento da participação política e de ocupação de cargos administrativos
dos grandes proprietários de terras das regiões fluminenses. A inexistência de dados que
confirmem a circulação de Jerônimo Barbalho pelos meandros políticos, ao contrário do
que ocorrera com seu pai, o qualificava basicamente como um grande proprietário de terra,
ligado à nobreza tradicional, não do Rio de Janeiro se levarmos em consideração a
herança familiar –, e sim de Pernambuco. Isso significa supor que as possibilidades abertas
pelo movimento de 1660 faziam de Jerônimo Barbalho um símbolo incontestável das
dificuldades econômicas e políticas pelas quais passava não só a capitania do Rio de
Janeiro, mas sobretudo a freguesia de São Gonçalo de Amarante.
Com uma notoriedade, historicamente construída, bem maior do que seu irmão
talvez pela sua fulminante e tumultuada administração na capitania do Rio de Janeiro,
Agostinho Barbalho Bezerra teve uma trajetória de vida completamente distinta de
Jerônimo Barbalho, sendo apenas a Revolta da Cachaça o momento que uniu esses dois
irmãos. E não é demais lembrar que somente se concretizou com muita relutância, já que
Agostinho evitou a todo custo cumprir as funções que seu irmão lhe investira no início do
43
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Ar quivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, p. 27.
44
Sebastião Pinto também era proprietário de casas na cidade do Rio de Janeiro. Em 1654, junto com sua
mulher, vendeu moradas na rua dos pescadores a Manoel Soares Robina. A casa localizava-se próxima as
residências de Francisco Dias Frade e Francisco Pinto Ferreira, sendo adquirida pelo casal como herança do
pai da Madalena Sardinha, Manoel André. Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e
Registros do Século XVII, 1622-1671. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-57, p. 39.
192
movimento. Nascido em Olinda, três anos depois de Jerônimo, em 1619, só veio a falecer
em 1670 no rio Doce, quando retornou a Pernambuco, estando com 51 anos.
45
Por incrível
que possa parecer, nos trabalhos de genealogia não existe nenhuma menção a casamentos
ou a filhos, mas segundo a documentação do ofício de notas contraiu núpcias com Beatriz
de Lemos.
46
Ao contrário de Jerônimo, Agostinho conquistou inúmeras honras e mercês. Em 19
de julho de 1645, foi agraciado com a mercê do hábito de Cristo e da ordem de São Thiago
como seu irmão mais velho Guilherme Barbalho pelos serviços que foram prestados na
defesa de Pernambuco, na Várzea do Capirabibe, na armada do conde da torre, no Rio de
Janeiro, nos Açores e em Elvas. Um ano depois, adquiriu a mercê da comenda de São
Pedro Fins de Canelas, também na ordem de Cristo, e no mesmo ano tornou-se
comendador da Ordem de Cristo. Em seguida veio o cargo de governador do Rio de
Janeiro, em 1660-1661, que lhe rendeu posteriormente a fidalguia da casa real, em 1663, o
ofício do correio-mor do mar e da terra, a administração geral das minas do sul e a
donataria da ilha de Santa Catarina.
47
O seu prestígio social pode ser visto através do exercício do cargo de Procurador.
Em 1653, passou a representar Dona Potência, viúva de D. Gaspar Coutinho de Bragança,
que lhe concedeu amplos poderes para agir em nome de sua pessoa em todos os assuntos
tangentes, seja na costa do Brasil ou em Portugal.
48
Quanto às suas posses, tinha sobre seu
domínio terras e casas. Em 13 de dezembro de 1653, a coroa portuguesa concedeu-lhe
sesmaria na região de Guandumerim, no fundo da baía da Guanabara.
49
Seis anos depois,
comprava um engenho situado em Guaraquasava, no distrito de Guaratiba. O mesmo foi
comprado por 228$990 réis de Maria de Araújo, que herdou de seu marido Francisco de
Lima.
50
Por fim, pelo menos até primeiro de novembro de 1669, tinha a propriedade de
morada de casas de dois sobrados na rua que chamam de Gadelha. A casa era de pedra e
cal, cobertas de telha, com sala, câmara e corredores, ficando ao lado da residência de
45
Carlos R. Rheingantz, Op. Cit. , Volume 1, p. 190; Afonso Henriques da Cunha Bueno & Carlos Eduardo
de Almeida Barata, Op. Cit. , Volume 1, p. 368.
46
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, p. 120.
47
Afonso Henriques da Cunha Bueno & Carlos Eduardo de Almeida Barata, Op. Cit. , Volume 1, p. 368
48
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-57, p. 39.
49
José Pizarro de Souza Azevedo de Araújo. "Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro Extraída
dos Livros de Sesmarias e Registros do Cartório do Tabelião Antonio Teixeira de Carvalho, 1565-1796" IN:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Tomo 63, Volume 1, 1900, p. 124.
50
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Op. Cit. , pp. 118-119.
193
Manoel da Silva. Sendo, nessa data, vendida por 1.425$000 réis para João Fernandes
Pedra.
51
Logo, Agostinho Barbalho Bezerra tinha honras, mercês, propriedade e tradição
familiar que o qualificavam para a ocupação de qualquer cargo elegível na câmara de
vereadores. Contudo ele não esperava que sua experiência na administração do Rio de
Janeiro fosse ocupando o cargo de governador. Para Vivaldo Coaracy, a não ser por ser
irmão do líder da revolta, a escolha de Agostinho não era a mais acertada para o controle
da região fluminense, definindo-o como timorato de temperamento e receoso de
responsabilidades, faltando-lhes as qualidades para chefiar um governo revolucionário.
52
Todavia, acreditamos que cair nessa tautologia é desprezar as pré-condições existentes para
a ocupação dos altos cargos administrativos na América portuguesa, e de que os próprios
revoltosos tinham conhecimento pois as assinalaram no momento da aclamação que
Agostinho Barbalho.
É lícito supor que tais qualidades recaíam-se sobre o tradicionalismo da família
Barbalho, que reunia as exigências de que a ocupação do cargo de governador exigia.
Jerônimo Barbalho, como vimos, nem de longe possuía uma trajetória tão prestigiosa
quanto a de Agostinho Barbalho. E como o movimento encarava uma das mais, se não a
mais tradicional família fluminense, os Sá, obviamente o governador durante o movimento
deveria, no mínimo, reunir em torno de si as qualidades básicas de um honoratiores do
ultramar.
Por isso, acreditamos não ser exagero afirmar que a Revolta da Cachaça
proporcionou um embate direto entre a família Sá e a família Barbalho Bezerra, reunindo,
cada uma delas, suas redes familiares de dependência. Foi o choque entre nobreza mais do
que tradicional fluminense e nobreza em busca de um espaço político; a nobreza que
controlava a economia fluminense e a nobreza sufocada pelas restrições para expansão de
suas atividades econômicas. Assim Revolta da Cachaça caracterizava-se como o momento
da resolução das pendengas, da rixa por interesses e da disputa pelo poder, iniciadas em
1644, quando o patriarca dos Barbalho Bezerra morria em detrimento de um movimento
que não era resultado direto dos problemas gerados por sua administração.
A posição de liderança conquistada pela família Barbalho na realização do
movimento de 1660 de uma certa maneira põe em dúvida o conceito de nobreza tradicional
51
Ibidem, Códice 42-3-56, pp. 114-115.
52
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 164.
194
na região fluminense. Naturais de Pernambuco, os Barbalho Bezerra transferiram-se para o
Rio de Janeiro e encontraram em São Gonçalo um espaço privilegiado para a manutenção
das características que constituíam um nobre da terra. Tal situação nos possibilita supor
que a opção por São Gonçalo deu-se pelas semelhantes características econômicas daquela
localidade com a capitania pernambucana: enriquecimento através da produção açucareira
e participação política no senado da câmara. Quanto ao primeiro ponto vimos que foi
possível, no entanto com relação a questão política as dificuldade talvez fossem maiores
daquelas encontradas em Pernambuco. Se naquela região o envolvimento com as
atividades açucareiras era uma condição sine qua non para pleitear uma vaga na câmara,
no Rio de Janeiro a situação periférica que se encontravam as capitanias responsáveis pela
produção de açúcar afastavam ainda mais os senhores de engenho da vereança. E a solução
dessa isolamento deu-se através da Revolta da Cachaça, espaço no qual se processou a luta
por espaços de interseção política. Por isso, analisar a formação das oligarquias
gonçalenses presentes ao longo deste movimento seiscentista é nada mais do que confirmar
a extensão e a grandiosidade das redes de interesses que circulavam em torno da família
Barbalho.
"Os Descontentes de São Gonçalo"
A análise do papel da freguesia de São Gonçalo de Amarante ao longo da Revolta
da Cachaça traz a obrigatoriedade da visualização das principais personagens ligadas
àquela freguesia. Para isso optamos por fazer um análise prosopográfica destes súditos
portugueses localizados em São Gonçalo, privilegiando a busca pela ocupação de cargos, a
conquista de terras, as relações familiares e a união matrimoniais. Utilizando essa
metodologia acreditamos que conseguiremos compor um painel bastante interessante dos
revoltosos, e comprovar ou não a presença gonçalense em todas as engrenagens que
sustentavam o movimento de 1660. Sendo assim, conseguimos flagrar cinco momentos de
intensa presença gonçalense na organização, sustentação e desenvolvimento do conflito,
são eles: a formação dos procuradores do povo, a escolha do governador, a nomeação dos
novos capitães da capitania, a instauração da nova câmara e a listagem de assinaturas do
auto de aclamação de Agostinho Barbalho Bezerra.
195
Em 2 de novembro de 1660, ou seja, antes da eclosão do motim, os revoltosos,
como vimos, tentaram uma negociação com a sombra interina, Thomé Correia de
Alvarenga, enviando-lhe um documento intitulado "capítulos que propõem o povo deste
recôncavo desta cidade que se ajuntou na ponta do Brabo ao Senhor governador Thomé
Correia de Alvarenga por mãos de quatro procuradores". Como o próprio nome do
documento assinalava, o mesmo foi elaborado pelos representantes do povo que o
assinaram. Seis dias depois de esgotadas as negociações, tais líderes do povo invadiram a
câmara e assumiram a frente do movimento, evidentemente respaldados pelos demais
revoltosos que em nome dos mais elegiam para assinar [o auto de aclamação do novo
governador] por ele povo ao capitão Jerônimo Barbalho Bezerra, Diogo Lobo Pereira,
Jorge Ferreira de Bulhão e o Alferes Lucas da Silva, que assinaram com os sobreditos.
53
Foram justamente estes quatro homens, que no término da revolta sofreram as
maiores reveses praticadas por Salvador Correia de Sá e Benavides. Mas, enquanto tudo
estava dando certo eles controlavam e determinavam os passos a serem seguidos pelos
demais membros da nobreza da terra envolvidos na revolta e do próprio "governador dos
revoltosos". Jerônimo Barbalho Bezerra, o grande líder do conflito, acreditamos que
dispensa qualquer tipo de comentário, pois sua imagem de grande proprietário e
pertencente à nobreza tradicional fluminense tornou-se pública nas alíneas anteriores.
Sobre o alferes Luiz da Silva, infelizmente, não se sabe mais nada além de sua profissão. O
que nos obriga a concentrar nossos esforços nos outros dois procuradores.
O capitão Diogo Lobo Pereira, nascido por volta de 1625, casou-se aos trinta anos
com D. Luisa da Costa Barros, filha de Francisco da Costa Barros.
54
Sendo assim, é
curioso notar que a misteriosa morte do sogro de Diogo Lobo Pereira tinha como um dos
principais suspeitos Thomé Correia de Alvarenga, o que nos possibilita supor a existência
de uma vingança entre eles, evidentemente não desprezando toda conjuntura para a eclosão
do movimento.
55
Apesar de não possuir terras no recôncavo tinha um irmão chamado
Antônio Lobo Pereira que também encontrava-se na lista dos proprietários de terras na
53
Excepto de uma memória manuscrita sobre a história do Rio de Janeiro durante o governo de Salvador
Correia de Sá e Benavides" In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Op. Cit. , p. 6.
54
Carlos R. Rheingantz, Op. Cit. , Volume 2, p. 405.
55
Sobre o suposto envolvimento de Thomé Correia de Alvarenga na morte de Francisco da Costa Barros
conferir nota de rodapé número 156 do capítulo 4 deste mesmo trabalho.
196
freguesia de São Gonçalo do alvará régio de 1647,
56
o que nos instiga a deduzir que ele
possuía ligações diretas com aquela freguesia.
Enquanto isso, Jorge Ferreira de Bulhão nasceu em 1605. Era filho de Manuel de
Castilho, juiz ordinário do conselho da cidade do Rio de Janeiro no final do século XVI e
um dos primeiros conquistadores e povoadores das terras fluminenses.
57
Jorge Ferreira
contraiu primeiras núpcias com Apolônia Gonçalves, em 1633, e pela segunda vez com
Maria Pinheira.
58
Honrando a tradição familiar, o procurador do povo ocupou duas vezes
cargos na vereança local: em 1644 como vereador e quatro anos depois como juiz
ordinário.
59
Tornou-se sesmeiro de chãos no rio Magé, Sernambitiba e Guapimirim, em 20 de
junho de 1657,
60
que o qualifica como um grande proprietário de terras não em São
Gonçalo mas em outra região importante na produção açucareira da capitania do Rio de
Janeiro, caso bastante semelhante ao encontrado quando é analisada a trajetória de vários
outros revoltosos. Mas sua ligação com São Gonçalo relacionava-se em primeiro lugar ao
seu irmão, João de Castilho Pinto, um grande proprietário de terras na região gonçalense e
um dos pioneiros na formulação de sagazes críticas, encaminhadas ao sol lusitano, sobre a
administração de Salvador Correia de Sá e Benavides. Em segundo lugar, seu filho,
Manuel de Castilho Pinto casou-se em São Gonçalo em 1672,
61
confirmando a extensão
das redes familiares da família Castilho Pinto naquela freguesia.
Assim, no que tange aos procuradores do povo, a ligação com as regiões
gonçalenses são mais do que comprovadas. Dos quatro, três procuradores (75%) tinham
algum tipo de envolvimento com a recém criada freguesia da orla oriental da baía da
Guanabara, nos possibilitando comprovar a hipótese de que a arquitetura do movimento
estava sim em mãos gonçalenses. Resultado imediato deste controle foi a escolha do nome
de Agostinho Barbalho Bezerra para a ocupação do cargo de governador durante o motim.
Sem dúvida alguma, acreditamos que naquele momento a seleção do administrador da
região fluminense configurava-se como um dos elementos chaves para o sucesso da
56
"Alvará Porque Sua Majestade Há por Bem e Manda se Erija de novo e Crie uma Vigairaria da Invocação
de São Gonçalo sita nos Limites e lugar de Guaxindiba Capitania do Rio de Janeiro". Arquivo Nacional.
Códice 61, Volume 1, pp. 219v-221v.
57
Elysio de Oliveira Belchior. Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria
Brasiliana Editora, 1965, p. 117.
58
Carlos R. Rheingantz , Op. Cit. , Volume 1, p. 325.
59
Cf. em Anexo o quadro com a composição do senado da câmara de vereadores do Rio de Janeiro.
60
José Pizarro de Souza Azevedo de Araújo, Op. Cit., p. 124.
61
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit., Volume I, 1965, p. 325.
197
revolta. Isso porque o novo governador deveria ao mesmo tempo reunir em torno de si as
qualidades exigidas para pleitear o cargo, era obrigado a estar afinado com as idéias e os
objetivos dos revoltosos. E mais do que isso, estar disposto a cumprir rigorosamente as
metas traçadas pelos arquitetos do movimento.
Seguindo em frente, o terceiro foco da análise da participação gonçalense na
Revolta da Cachaça encontra-se na nomeação dos novos capitães da capitania do Rio de
Janeiro, cargo importantíssimo para a manutenção da defesa e da ordem na região
fluminense, sobretudo em momentos tumultuados como ocorriam em revoltas e motins.
Dentre todos, apenas sobre Francisco de Souza Vargas não conseguimos encontrar
nenhum referência familiar, de propriedade ou de ocupação de cargos.
Comecemos, então, por aqueles que a priori não possuíam envolvimento com as
regiões gonçalenses. Cristóvão Lopes Leite, que acreditamos ser Leitão, enraizou-se na
cidade do Rio de Janeiro, onde conseguiu terras nos sobejos até a serra do Tingia, em
1653. Sendo casado com Mariana de Soberal, nasceu em 1610 e faleceu em 1676.
62
Sobre
o capitão Miguel de Azedias Machado não temos menção sobre possessões de terras, mas
apenas sabemos que contraiu núpcias três vezes, todas na cidade do Rio de Janeiro.
63
Sendo essas mesmas informações que sabemos a respeito do capitão Miguel
Gonçalves, nascido em 1627, casado com Ana Leitoa, em 1657, com quem teve três filhos,
todos nascidos na Candelária.
64
O capitão Francisco de Macedo Freire nasceu em
Portugal, em 1625, foi sargento-mor e faleceu depois de 1721. Casou-se no Rio de Janeiro,
em 1655, com Mariana do Soberal, tendo três filhos.
65
Um outro português é o capitão
Francisco Martins Soares, que nasceu em Viana do Castelo e faleceu em solo fluminense,
em 1684.
66
E por fim, encerrando a lista daqueles que não possuía raízes em São Gonçalo,
o capitão Francisco Ferreira Dormundo, nascido em 1636 e falecido antes de 1698.
Casou-se com D. Bárbara de Madureira, oriunda de uma família tradicional fluminense,
com quem teve oito filhos, um deles, inclusive, D. Bárbara, nasceu em Icaraí, em 1673,
longe demais da conjuntura revolucionária.
67
Em 1680 foi agraciado com terras no rio de
62
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , p. 124; Marina de Soberal era filha de Francisco Viegas e
Joana de Soberal. Cf. Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume II, p. 434.
63
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume I, p. 143.
64
Ibidem, Volume II, p. 302.
65
Já esta Mariana de Soberal era filha de André Velho de Araújo e de Maria Viegas. Ibidem, Volume II, p.
467.
66
Ibidem, Volume II, p. 553.
67
Ibidem, Volume II, p. 99.
198
Ubatiba até o rio maricá, onde seis anos depois conseguiu terras no sertão desta mesma
localidade.
68
Sobre aqueles que estavam relacionados com o recôncavo da Guanabara os dados
são muito interessantes. O capitão Matheus Correia Pestana, nascido em 1603, casou-se
com Lourenço da Costa Albergas, em 1633. De seu matrimônio nasceram 17 filhos. Dentre
eles, José Correia Pestana contraiu núpcias com D. Cecília da Câmara, família tradicional
estabelecida em solo gonçalense; além disso o mesmo capitão possuía terras no fundo da
Baía, especificamente nos sobejos e terras do rio de Guapiasu, em 1650.
69
O capitão
Sebastião Coelho de Amorim casou-se com Ana Fagundes, em 1649, tendo quatro filhos,
dos quais dois deles nasceram na freguesia gonçalense, Escolástica (1660) e Antonio
(1662),
70
o que nos possibilita aviltar a hipótese de seu enraizamento naquela localidade. O
capitão Francisco de Brito de Meireles, nascido na Ponte do Lima em 1630, casou-se com
D. Helena Ribeiro, em 1660, filha de Sebastião Martins, uma das figuras mais importantes
de São Gonçalo, não sendo à toa que seus filhos nasceram ou se casaram na mesma
freguesia.
71
Mesmo depois do término da revolta, conquistou terras no sertão de Arantiba,
em 1676.
72
Enquanto isso, o capitão Matheus da Costa possuía terra no porto de São Gonçalo,
onde ganhou de herança de seu sogro, Joseph Batista. As mesmas terras foram vendidas,
posteriormente, a Manuel Fernandes.
73
O capitão João Gomes Sardinha, o moço, faz parte
de uma das principais famílias do recôncavo fluminense, os Gomes Sardinha. Nascido em
torno de 1587, só falecera em 1674. Casado com Margarida Antunes, teve filhos e netos
que se casaram em São Gonçalo.
74
Além disso, recebera, em 1625, 1500 braças e 3000
para o sertão do rio de Guapiguasu. Seis anos depois, havia sido agraciado com mais 800
braças e 9000 braças na serra de Tapacurá, provando enraizar-se no fundo da baía.
75
O
coronel Francisco Sodré Pereira nasceu por volta de 1618, vindo a falecer pouco depois
do fim da revolta, em 1669.
76
Casou-se com Catarina da Silva Sandoval, em 1648, filha de
João Gomes da Silva, possuidor de grandes propriedades próximas às terras de Antonio de
68
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , pp. 129-130.
69
Ibidem, Volume I, p. 392; José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , p. 122.
70
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume I, p. 346.Ibidem, Volume I, pp. 268-269.
71
Ibidem, Volume I, pp. 268-269.
72
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , p. 127.
73
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, pp. 150-151.
74
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume II, pp. 274-275.
75
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , pp. 119-120.
76
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume III, Fascículo 4, pp. 163-164.
199
Marins, em 1613.
77
Sendo assim, todos os filhos do casal nasceram e se casaram entre as
regiões de São Gonçalo, Itaboraí e Niterói.
78
O capitão Sebastião Lobo Pereira engrossa a lista dessa família na ocupação de
cargos ao longo da revolta. Irmão de Diogo e Antonio, Sebastião foi casado com Maria
Dantes, filha do sargento-mor João Dantes.
79
Dentre suas propriedades, conseguimos listar
os sobejos localizados entre as terras dos padres da companhia, do senado da câmara e
costa do mar, em 1682.
80
Quanto ao capitão Ambrósio Paes Sardinha não encontramos
nenhuma referência concreta sobre sua trajetória. Todavia, estamos inserindo-o no grupo
dos envolvidos com a região gonçalense por conta de sua tradição familiar, já que os
Sardinhas possuíam propriedades naquela região.
81
Nesta mesma situação, encontra-se
Manoel da Guarda Muniz, nascido em 1619 e falecido em 1700. Casado em 1649 com
Joana de Andrade com quem teve quatro filhos, um deles, o capitão Luís de Araújo e
Souza casou-se em São Gonçalo, onde também nasceram seus filhos.
82
Por fim, tanto o sargento-mor Domingos de Faria, como o capitão Mathias de
Mendonça encontravam-se listados entre os proprietários desmembrados para a freguesia
de São Gonçalo no momento da confirmação da criação da mesma freguesia, em 1647.
83
Sobre Mathias de Mendonça ainda pode ser mencionado que recebeu mais terras e sobejos
em Guaguasi, em 1650,
84
como da mesma forma concedeu a sua filha, Dona Francisca de
Mendonça, como dote, terras na ilha de Balthazar Leitão, proprietário gonçalense, em
1668.
85
Logo, de uma forma geral, estas esparsas informações nos possibilitam montar o
seguinte quadro: dos dezoito nomes arrolados como novos capitães do Rio de Janeiro, onze
ou 61% deles tinham algum tipo de contato ou ligação com a freguesia de São
Gonçalo de Amarante. Diga-se de passagem, esse não é um número que deve ser
desconsiderado, já que o recôncavo fluminense passava a estender seus tentáculos políticos
77
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , pp. 115.
78
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume III, Fascículo 4, pp. 163-164.
79
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume II, p.408.
80
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , p. 129.
81
Para ver os principais membros a família Sardinha, Cf. Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume III,
Fascículo 3, p. 143.
82
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit., Volume II, p. 341.
83
Alvará Porque Sua Majestade Há Por Bem e Manda se Erija de Novo e Crie uma Vigairaria da Invocação
de São Gonçalo sita nos Limites e Lugar de Guaxindiba, Capitania do Rio de Janeiro. Arquivo Nacional, Op.
Cit. , pp. 219v-221v.
84
José Pizarro Souza Azevedo e Araújo, Op. Cit. , p 122.
85
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, p. 88.
200
sobre a administração da capitania, questão necessária para a manutenção dos interesses
daqueles proprietários de terras.
Seguindo na perseguição dos rastros gonçalenses, vemos na configuração da nova
câmara municipal um outro possível caminho para respaldar nossos pensamentos. Nesse
sentido, os novos camaristas seriam: para juizes a Diogo Lobo Pereira e Lucas da Silva e
para vereadores a Fernando Faleiro Homem, Simão Botelho e Clemente Nogueira da
Silva.
86
Analisar a trajetória destes camaristas também é um outro viés para perceber a
atuação da freguesia gonçalense.
Diogo Lobo Pereira foi alíneas acima analisado, pois também era um dos
procuradores do povo ao longo do movimento e vimos que tinha intensos contatos com
São Gonçalo. Da mesma forma que Diogo, Lucas da Silva também era um dos
procuradores listados nos capítulos de exigências enviados a Thomé Correia de Alvarenga,
mas somente sabemos que era alferes.
No que tange aos demais, mais dados esparsos nos vem a lume: o capitão e
vereador Fernão Faleiro Homem, nasceu por volta de 1616 e faleceu em 1678, casou-se
com Inês de Andrade em 1646 , com quem teve oito filhos, que aparentemente não
tiveram nenhuma ligação com a região em questão;
87
o vereador Simão Botelho, nascido
em 1613, contraiu núpcias, em São Gonçalo, com D. Isabel Pedrosa, do qual desse
matrimônio teve três filhos;
88
e por fim, o vereador Clemente Nogueira da Silva, aquele de
que temos mais informações, talvez por isso mereça uma atenção especial.
Clemente Nogueira, capitão da fortaleza de Santa Cruz, nasceu por volta de 1588,
falecendo somente em 1668, com oitenta anos. Veio a se casar aos trinta anos com Maria
Gomes, filha de um grande proprietário de terras no fundo da baía da Guanabara, Estevão
Gomes,
89
com quem teve oito filhos. Possuía um grande prestígio na sociedade, já que foi
procurador do capitão Gregório da Távora, em 1653.
90
Além disso, tinha a propriedade de
uma casa rumo à rua Direita, uma das mais importantes da cidade do Rio de Janeiro, que
doou, em 1653, para o patrimônio de Jerônimo Vieira de Mello, que pertencia a ordem
sacra. A Casa, indo para a misericórdia onde o próprio vivia, era constituída em vinte e
86
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 165.
87
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume II, pp. 13-14.
88
Ibidem, Volume I, p. 264.
89
Sobre Estevão Gomes, Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do
Século XVII, 1622-1671. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, pp. 62-64.
90
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-57, p. 26.
201
quatro palmos de chãos e contam de sala e para dentro uma câmara e despensa e quintal
que lhe toa até o trasto de calçada que vai para o colégio.
91
Diante desse quadro, podemos afirmar que naquele momento havia se constituído
uma câmara tipicamente gonçalense. Dos cinco novos membros do senado da câmara a
partir de novembro de 1660, três, ou seja, 60% dos homens tinham algum tipo de ligação
com a freguesia de São Gonçalo de Amarante. Era uma situação mais do que convincente
para fazer valer as decisões e as prioridades daquela freguesia, conforme vimos no capítulo
que antecedeu a este.
De qualquer forma a superioridade das personagens gonçalenses não pode ser
avaliada somente com a formação da câmara, a nomeação dos capitães, a escolha do novo
governador e na liderança dos procuradores do povo. A aclamação de Agostinho Barbalho
Bezerra, em 8 de novembro de 1660, pelo menos documentalmente falando, parecia
demonstrar uma certa unanimidade não só na aceitação do filho de Luis Barbalho Bezerra
como novo governador, como também na inevitabilidade de que aquele movimento deveria
se concretizar. Tal afirmação advém da talvez inédita situação apresentada na
documentação que elevava Agostinho Barbalho à administração da capitania do Rio de
Janeiro: a lista de assinaturas. Ao todo, cento e dez homens ultramarinos fizeram valer sua
vontade e apoiaram a realização da Revolta da Cachaça. Sendo assim, acredito que cabe
neste momento, lançar mão de uma lupa e enxergar um pouco mais de perto o perfil desses
homens.
Para a concretização de uma análise prosopográfica do grupo dos revoltosos
levamos em consideração três itens: em primeiro lugar, a ocupação de cada um deles; em
seguida, a propriedade ou não de terras e sua localização; e por fim, mas não a menos
importante, a possível ligação desses homens com a região gonçalense. Sendo assim, em
termos documentais, optamos pelas informações genealógicas oferecidas por Carlos G.
Rheingantz e Elysio Belchior, que comumente tem aparecido neste trabalho, como da
mesma forma os dados sobre sesmarias de José de Souza Pizarro e Araújo e as
informações complementares do primeiro cartório do ofício de notas. No cômputo geral,
dos 110 revoltosos que assinaram a aclamação de Agostinho Barbalho conseguimos
rastrear algum tipo de pistas de 76, o que representa 69% da lista de assinaturas.
91
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, p. 46.
202
Obviamente não é um número ideal, mas, no entanto, não é uma quantidade que pode ser
desprezada, já que representa mais da metade dos revoltosos. Por isso, observemos agora o
perfil daqueles homens, iniciemos pela ocupação.
Quadro VIII - Ocupação dos Súditos Portugueses Envolvidos na Revolta da Cachaça
Ocupações Número de Revoltosos (%)
Militares 12 16
Câmara 10 13
Militares + Câmara 03 3,9
Licenciado 04 5,1
Mestre de Açúcar 01 1,5
Ourives 01 1,5
Não Há Referência 45 59
Total 76 100
É inegável que, a maioria dos revoltosos (59%) não deixaram pistas sobre suas
ocupações, o que não nos possibilita montar um painel adequado de suas funções naquela
sociedade. Todavia, duas questões nos chamam a atenção. A priori, a própria superioridade
dos militares envolvidos no conflito (16%) nos faz concluir que a conjuntura adversa das
guarnições era uma realidade mais do que comprovada quando se analisam todos os
aspectos do movimento. Sem dúvida, tais homens viam na revolta um momento oportuno
para resolver seus pertinentes problemas. Por outro lado, a reduzida participação dos
homens que tinham ocupado, pelo menos uma vez, as cadeiras da vereança (13%) sinaliza
que o movimento foi muito mais econômico do que político (se é que podemos lidar com
esses dois aspectos da sociedade colonial de forma separada). Aguardemos, então, o
aparecimento de novas referências desses homens para a certificação dessa última hipótese.
Ao se tratar da propriedade de terras dos revoltosos, obtivemos um quadro bastante
interessante:
203
Quadro IX - Propriedade e Localização das Terras dos Homens Envolvidos na
Revolta da Cachaça.
Local da Propriedade da Terra Número de Revoltosos (%)
Outra Localidade 24 31,5
Freguesia de São Gonçalo* 16 21
Outra Localidade + São Gonçalo 40 52,5
Não Há Referência 36 47,5
Total ** 76 100
(*) Quando nos dados dos proprietários de terras na região gonçalense apareciam menção também à posse
de terras em outros lugares, foram levados em consideração somente as terras gonçalenses; (**)O total não
foi levada em consideração feita entre os proprietários de terras em outras localidades da capitania do Rio
de Janeiro com os proprietários de terra na freguesia de São Gonçalo.
Apesar de continuarmos observando a inexistência de referências para a maioria
dos revoltosos (47,5%) quando somamos os revoltosos que tinham terras em São Gonçalo
e aqueles que tinham terra em outras localidades da região fluminense, vemos saltar aos
nossos olhos 52,5% dos catalogados. Isso significa dizer que a Revolta da Cachaça foi sim
um movimento encabeçado pelos proprietários de terra que viram nas restrições
econômicas impostas pelo governador Salvador Correia de Sá e Benavides um empecilho
para a expansão de suas atividades econômicas e políticas. Além disso, acreditamos que a
superioridade dos proprietários gonçalenses, nesse caso, pode ser até comprovada, pois se
levarmos em consideração que os 31,5% dos donos de terra em outras localidades
constituem a soma das terras localizadas em Magé, Cabo Frio, Campo Grande,
Guapimirim, Suruí e demais regiões, constata-se que houve um concentração superior a
21% dos revoltosos somente na freguesia de São Gonçalo
Quadro X - Relação dos Revoltosos com a Freguesia de São Gonçalo de Amarante
Nível de Contato Número de Revoltosos (%)
Não Há Referência
23 30,5
Com o Fundo a Baía da Guanabara
16 21
Contato Familiar
15 20
Propriedade de Terras
08 10,5
Negócios
07 09
Com a Freguesia de São Gonçalo
União Familiar com
Propriedade de Terra
07
37
09
48,5
Total 76 100
204
Respaldando e concluindo a exposição dessas informações, o quadro IX atesta
ainda mais a inegável primazia de São Gonçalo na instauração daquele movimento
seiscentista fluminense. Dos 76 revoltosos que assinaram o documento a favor da
instauração da revolta, 37, ou seja, 48,5% tinham algum tipo de ligação com a recém-
erigida freguesia gonçalense. Quanto a esse contato, percebemos ao longo da
contabilização das informações que eles poderiam se dar de variadas e distintas maneiras.
Havia aqueles que possuíam terras naquelas região, como Braz Sardinha,
contemplado com mangues na barra de Macacu correndo para Guaxindiba e rio
Nunguasuhi, em 8 de outubro de 1648;
92
ou Francisco Barreto, que é mencionado como
um dos sesmeiros da freguesia da Sé que fora desmembrada para a freguesia de São
Gonçalo, em 1647.
93
Mas, existiam também aqueles que através de casamentos entre
famílias, inevitavelmente, aproximaram-se da região gonçalense. Foi o caso de Balthazar
Coutinho, que casou em segundas núpcias com Maria de Araújo, moradora em São
Gonçalo;
94
ou também do capitão Clemente Nogueira, que contraiu matrimônio com a
filha de Estevão Gomes, morador em São Gonçalo, Maria Gomes.
95
No entanto, encontramos também aqueles que combinavam a propriedade de terras
com ligações familiares, denotando a formação da verdadeira nobreza da terra gonçalense.
Dentre essas famílias podemos apontar os Barbalho Bezerra, os Lobo Pereira, os Martins
Ribeiro, os Brito Meireles, os Gomes Sardinha, os Azeredo Coutinho, os Castilho Pinto, os
Ferreira Bulhão e os Gomes Bravo. Por fim, outros estabeleceram negócios com
gonçalenses, situação encontrada, por exemplo, em Balthazar Leitão, que fez uma doação
com Cristóvão Vaz, dono de terra em São Gonçalo, para o órfão José na importância de
150$000 réis, em 1653.
96
Situação idêntica pode ser vista com o licenciado João Alves de
Figueiredo, que era procurador de Catarina da Fonseca, viúva de Gregório Lopes, também
proprietário de terra gonçalense.
97
92
José Pizarro de Souza Azevedo de Araújo. "Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro Extraída
dos Livros de Sesmarias e Registros do Cartório do Tabelião Antonio Teixeira de Carvalho, 1565-1796" IN:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Tomo 63, Volume 1, 1900, p. 122.
93
Alvará e Mercê que sua Majestade Faz como Governador e Perpétuo Administrador que é do Mestrado do
Rio de Janeiro se Erigiu Quatro Vigairarias de Novo. Arquivo Nacional. Códice 61, Volume 1, pp. 216v-
219v.
94
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume I, p. 466.
95
Ibidem, Volume III, Fascículo 1, p. 17.
96
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-57, p. 74.
97
Cartório do 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro - Documentos e Registros do Século XVII, 1622-1671.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Códice 42-3-56, p. 74.
205
Um outro detalhe que não pode deixar de ser analisado é mais uma vez a
comprovação de que os revoltosos tinham intensas ligações com a regiões agrícolas
fluminenses. A soma do número dos revoltosos que tinham algum contato com São
Gonçalo com aqueles que possuíam relações com o fundo da Baía da Guanabara dão a
importância de 79% , nos possibilitando supor que a Revolta da Cachaça visava beneficiar
muito mais as regiões afastadas do centro das decisões políticas da capitania do que a
cidade do Rio de Janeiro. O movimento tornou-se uma revolta da periferia, que via de um
lado as retaliações à expansão econômica e a concomitante distância desses grupos da
participação política fluminense. Os efeitos de toda essa conjuntura, que passaremos a
analisar agora, talvez nos ajude a perceber as perdas e os ganhos gerados pela revolta.
A Capitania do Rio de Janeiro após a Revolta da Cachaça
Quando a sombra do sol, Salvador Correia de Sá e Benavides, retornou da Vila de
São Paulo e atacou a capitania do Rio de Janeiro, desconstruindo o movimento que entrava
em seu quinto mês, acreditava-se que os rumos daquela região já estavam traçados.
Jerônimo Barbalho Bezerra foi enforcado em praça pública como um exemplo para que
ninguém novamente ousasse ameaçar a estabilidade da capitania, os outros líderes do
movimento Lucas da Silva, Jorge Ferreira Bulhão e Diogo Lobo Pereira foram presos
e enviados a Portugal para serem julgados e condenados. E a sombra do sol novamente
havia colocado "ordem" na região fluminense, correto? Errado!
A forma trágica com que se desenrolaram os últimos momentos da Revolta da
Cachaça apenas confirmava à coroa portuguesa as atrocidades realizadas por Salvador
Correia de Sá e Benavides ao longo de sua administração na capitania e que chegavam ao
solo luso-americano através das queixas dos revoltosos. Dessa forma, talvez a mudança
mais imediatista observada no Rio de Janeiro após o 6 de abril de 1661 foi a opção do sol
lusitano em afastar sua sombra fluminense do cargo que ocupava. A deposição de Salvador
Correia de Sá e Benavides não simbolizava somente o afastamento daquele considerado
um mau administrador régio, como também significava o término da preponderância
política da família Sá sobre a capitania do Rio de Janeiro.
Um ótimo foco de análise do desprestígio dos Sá após a Revolta da Cachaça
relaciona-se à própria reconfiguração das alianças dessa família na capitania do Rio de
206
Janeiro. Os casamentos após 1662 uniram a família Sá e seus aliados com outras
importantes famílias fluminenses. Com relação aos Azedias Machado três matrimônios
demonstravam muito bem tal situação: o capitão Manuel de Azedias Valadão com Ana de
Azeredo Coutinho, em 1666, filha de uma ilustre família gonçalense; o capitão Miguel
Azedias Machado com Clara Barreto de Brito, em 1676; e o capitão Miguel de Azedias
Machado com Bárbara Barreto de Brito, em 1672.
98
A tradicional família Brito de Meireles
uniu-se com a família Correia de Sá através do matrimônio da filha de Francisco de Brito
de Meireles: em 1681, Micaela de Brito e Manuel Correia de Araújo.
99
Por último, os
descendentes de Fernão Faleiro Homem também uniram-se aos apaniguados de Salvador
Correia de Sá e Benavides, com Maria Faleira e o capitão Domingos Aires de Aguirre, em
1687; Agueda Faleira e o capitão Inácio de Madureira, em 1688; e Inês de Andrade e
Pedro Gago da Câmara, em 1674.
100
A obrigatoriedade da realização de um reajuste na política de alianças era resultado
da opção da coroa portuguesa não mais pelos seus administradores régios, facilmente
corruptíveis, e sim da valorização dos interesses das famílias tradicionais, a nobreza da
terra. A escolha de Agostinho Barbalho Bezerra para substituir Salvador Correia de Sá e
Benavides enquanto Pedro de Melo cruzava o Atlântico
101
é sintomático na percepção de
que o movimento desencadeado pelos revoltosos fluminenses havia sido respaldado pelo
sol, até porque, se fosse feito de forma diferente, o mesmo estaria pondo em xeque a
permanência de pequena luminosidade que ainda irradiava para as regiões ultramarinas
fluminenses.
Com a chegada de Pedro de Mello, em 1662, Agostinho Barbalho seria transferido,
dois anos depois para a administração das minas de Paranaguá com recomendações
elogiosas.
102
Enquanto isso, à família Sá restou apenas a recomposição de alianças e o
cargo hereditário de alcaide-mor, que dava a possibilidade da permanência do prestígio e
do status social. No entanto, grande parte de suas riquezas que foram saqueadas ao longo
do movimento não foram, da mesma forma, restituídas à família com o término da revolta
e passaram a engrossar as posses do senado da câmara fluminense.
98
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. , Volume I, pp. 142-143.
99
Ibidem, Volume I, pp. 268-269.
100
Idem, Ibidem, Volume II, pp. 13-15.
101
Mando a Agostinho Barbalho Bezerra, a cujo cargo está o governo da dita capitania, e em falta dele aos
oficiais da câmara dela, lhe dêem posse do dito governo. Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII,
Op. Cit., p.171.
102
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p.176.
207
Em Portugal, Salvador Correia de Sá e Benavides ainda reocupou sua função de
conselheiro no Conselho Ultramarino, usando da sua influência para prevalecer em seus
interesses pessoais.
103
Mas no Rio de Janeiro tudo mudara, pois todas as medidas
colocadas em prática pela "câmara revolucionária" tendo como referência as reivindicações
contidas nos "capítulos da revolta" permaneceram intactas após 1662. Isso significa dizer
que os impostos excessivos foram abolidos, as reuniões da câmara na casa dos
governadores estavam suspensas, a fixação de editais nas regiões afastadas para a
realização das eleições foram colocadas em prática e a escolha daqueles que ocupariam as
cadeiras da vereança dentre os oriundos da nobreza da terra confirmou-se como recurso
recorrentemente acionado.
Sobre a aguardente foram revogados todas as disposições estabelecidas por
Salvador Correia de Sá. Assim, em 18 de junho de 1661, criou-se um contrato da
aguardente que punha em prática um imposto arrecadado sobre o consumo e a exportação
do produto.
104
Com relação a uma das principais motivadoras para a crítica situação
econômica na qual vivia a capitania do Rio de Janeiro no século XVII, a companhia geral
do comércio do Brasil, também não escapou da nova postura régia após 1662. Sendo mais
um dos redutos de arrecadação financeira da família Sá, a companhia teve seus privilégios
restringidos em 1667. Assim, a liberalidade à economia do aguardente e a diminuição das
restrições da companhia geral do comércio escancaram com a possibilidade de crescimento
da economia fluminense. No que diz respeito à produção e comercialização da cachaça,
não só a freguesia de São Gonçalo, como todo o Rio de Janeiro se tornou, no último
quartel do século XVII, um destacado pólo exportador para a região angolana.
105
Enquanto isso, em Portugal, o trono estava sendo duramente disputado por D.
Afonso VI e D. Pedro II. O primeiro, coroado como príncipe herdeiro pelo pai, D. João IV,
era considerado doente para manter um reinado decente, sendo por isso, que sua mãe, D.
Luísa de Gusmão, reinou durante grande parte de sua regência. Por outro lado, D. Pedro II,
103
Miguel Arcanjo de Souza. Política e Economia no Rio de Janeiro Seiscentista: Salvador de Sá e a
Bernarda de 1660-1661. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994, p. 186.
104
Vivaldo Coaracy, Op. Cit. , p. 173.
105
Sobre o papel do Rio de Janeiro na transição do século XVII para o XVIII Cf. Selma Pantoja e José Flávio
Sombra Saraiva (Orgs.) Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999;
Roquinaldo Ferreira. "Dinâmica do Comércio Intracolonial: Geribitas, Panos Asiáticos e Guerra no Tráfico
Angolano de Escravos (Século XVIII)" IN: João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de
Fátima Gouvêa (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; e Luis Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes: a
Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
208
apoiado pela mãe, era revestido da imagem de um típico rei, reunindo todas as
características para tal. Com a ajuda de Luis de Vasconcelos e Sousa, o conde de Castelo
Melhor, em 1662, D. Afonso VI, assumiu o trono e passou a adotar medidas que revestiam
sua figura de magnitude, configurando-o como um bom rei.
106
Tal conjuntura terá seus
reflexos no ultramar e, por incrível que possa parecer, ainda envolvendo algumas
personagens ativas da Revolta da Cachaça.
A política do ministro Castelo Melhor na reconstrução da imagem de D. Afonso VI
fez dos condenados pelo movimento fluminense de 1660 fiéis vassalos do monarca
português. Sobre esta temática, existe uma confusão historiográfica sobre a concessão da
liberdade aos revoltosos. Segundo Miguel Arcanjo de Souza, Vivaldo Coaracy e outros
historiadores a proximidade entre Castelo Melhor e Salvador Correia de Sá e Benavides
prolongou o julgamento e absolvição dos condenados pelo motim. Isso está correto, mas,
no entanto, para os mesmos tal indulto foi concedido com a subida de D. Pedro II ao trono
português, questão, ao nosso ver, equivocada. Ao olhar atentamente a documentação o
dilema pode ser esclarecido. Em 2 de julho de 1666, ainda sob o reinado de D. Afonso VI,
os camaristas escreveram ao rei suplicando:
(...) ainda que a morte de Jerônimo Barbalho Bezerra tão bom servidor
de Vossa Majestade, e a prisão de Diogo Lobo Pereira, Lucas da Silva e
Jorge Ferreira Bulhão, falecido no cárcere, nos tenham dado bastantes
razão para deixarmos antes ao descuido de tudo o que fosse em utilidade
desta república a serviço de Vossa Majestade, do que expomo-nos a padecer
as misérias que aqueles pobres e leais vassalos estão a tanto tempo
padecendo nessa corte em prisão, sem se lhes deferir, causado tudo por
inteligência de ministros e pessoas poderosas, que com o seu poder
escondem a verdade e a razão (...)
107
A resposta da coroa portuguesa tardou a chegar, mas sete meses depois, em 6 de F
fevereiro de 1667, o rei de Portugal absolvia os culpados:
(...) em razão do que me escrevestes, pela vossa carta que recebeu
sobre Diogo Lobo Pereira e Lucas da Silva, que estão presos nas cadeias da
corte, mandei ordenar ao conde regedor da casa da suplicação fizesse
abreviar a causa dela, achou que a dilação que tem havido em sentenciar,
procede deles não fazerem diligência alguma, porque concedendo-se
106
Rodrigo Bentes Monteiro. O Rei no Espelho: a Monarquia Portuguesa e a Colonização da América,
1640-1720. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002, especialmente o capítulo 3 - Corte Brigantina.
107
"Carta Dirigida ao Rei Solicitando Clemência ao Amotinados Presos em Portugal, 2 de Julho de 1666" IN:
Balthazar da Silva Lisboa. Anais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Leitura S/A, Volume IV, 1967,
p. 64.
209
homenagem a Diogo Lobo Pereira, em Outubro de 1666, e oferecendo o
promotor da justiça libelo contra ele, não tratou até agora de correr com a
causa, e da mesma forma se há Lucas da Silva, que estando preso na cadeia
desta cidades, ainda fora dela há muito tempo, e com estas liberdades não
tratam de causa, em que se lhes há de fazer todo o favor e justiça (...)
108
Se D. Pedro II somente seria aclamado pelas cortes portuguesas em fins de 1667,
109
o monarca da absolvição dos revoltosos condenados ainda era D. Afonso VI. No entanto, o
sol não só libertou Lucas da Silva e Diogo Lobo Pereira já que Jorge Ferreira Bulhão
havia morrido enquanto estava preso como também os condecorou com a comenda da
cavalaria da ordem de Cristo. Dessa forma, os revoltosos passaram de condenados por
crime de inconfidência à mais fiéis vassalos ao sol metropolitano.
110
Mesmo inserindo a
concessão da liberdade na discussão da reconstrução da imagem do monarca D. Afonso
VI, não se pode perder de vista que essa atitude fazia com que a coroa portuguesa
reconhecesse a revolta de 1660 como legítima, o que venhamos e convenhamos já havia
sido feito pela própria regência de D. Luísa de Gusmão quando afastou Salvador Correia
de Sá e Benavides da administração da capitania do Rio de Janeiro.
Outra importante marca deixada pela Revolta da Cachaça foi a legitimidade da
autonomia da vereança frente às decisões metropolitanas. Nas palavras de Miguel Arcanjo
de Souza:
(...) a atuação da câmara municipal do Rio de Janeiro em seu conflito
com o governador Salvador Correia de Sá, marcou sobremaneira as
relações entre o poder local e o poder burocrático concedido aos
representantes da coroa. Aos abusos do governador nomeado diversas vezes
para o comando da capitania do Rio de janeiro, os camaristas souberam se
impor e enfatizar a importância das câmaras municipais no contexto
político e administrativo das relações entre colônia e metrópole.
111
É plenamente visível que a autoridade da câmara de vereadores foi um elemento
importante para o afastamento da família Sá, como também que os acontecimentos de 1660
108
"Resposta do Rei de Portugal a Solicitação de Clemência da Câmara do Rio de Janeiro, 6 de Fevereiro de
1667" IN: Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit. , pp. 71-72.
109
Rodrigo Bentes Monteiro, Op. Cit. , p. 138.
110
Sobre este discurso relacionando à Revolta da Cachaça como uma inconfidência ela apareceu pela
primeira vez na resposta da câmara de vereadores do Rio de Janeiro ao rei de Portugal no momento da
concessão da liberdade dos revoltosos. Não acreditamos em tal magnitude do movimento, pois
caracteristicamente, uma inconfidência tem por objetivo o questionamento imediato da autoridade régia. Cf.
"Resposta da câmara de vereadores do Rio de Janeiro ao pedido de clemência aos revoltosos feita ao Rei, 2
de Setembro de 1667". Balthazar da Silva Lisboa, Op. Cit. , pp. 72-73.
111
Miguel Arcanjo de Souza, Op. Cit. , p. 190.
210
apenas colocaram em prática o exercício da autonomia que a câmara já tinha anteriormente
e que fora demonstrado em outro momento deste trabalho. Nesse caso, em nosso
entendimento o grande avanço da revolta foi descortinar a superioridade da nobreza de
terra em impor seus interesses nas decisões da vereança local. E mais do que isso, a
nobreza da terra passou a enxergar a revolta como um grande recurso direto de recorrer ao
rei, sem que fosse necessário passar pela câmara.
Pensando por esse prisma, percebe-se que o sol negociava não só com a vereança
mas também com as famílias tradicionais, presentes ou não no senado municipal. No caso
dos grupos afastados das decisões da câmara a solução era recorrer ao passado imemorial
para impor suas reivindicações. E o rei aceitava! Abria-se então um novo canal para a
negociação, a revolta. Voltando a discussão sobre o perdão aos revoltosos podemos
descortinar um sintoma da mudança dessa relação entre as áreas coloniais e as regiões
metropolitanas. Quando D. Pedro II foi coroado em Portugal, em novembro de 1667, foi
inaugurada uma nova etapa dessa relação, onde definitivamente a família Sá não teria
meios de inserção nas regiões fluminenses e a tradicionalíssima nobreza da terra ditaria as
regras políticas e econômicas não só da câmara como de toda a capitania.
Uma das formas possíveis de visualizar como os envolvidos com o movimento de
1660 e com a região gonçalense passaram a tomar as rédeas do senado municipal é
voltarmos a composição da câmara após 1662 (tabela encontra-se em anexo). Pensando até
1680, somaram 9 procuradores, 20 juízes, 26 vereadores e 20 que não conseguimos
identificar suas funções. Dentre os procuradores, 5 ou 55% ligavam-se aos acontecimentos
de 1660, seja de forma imediata como o capitão Manoel da Guarda Muniz (1676) e Inácio
de Oliveira Vargas (1680), ou de maneira mais distante como Domingos Aires de Aguirre,
que possuía conexões familiares com a região gonçalense.
112
Quanto aos juízes, podemos destacar os capitães Miguel de Azedias Machado
(1679) e Sebastião Coelho de Amorim (1670), ou até mesmo o procurador do povo após
ser absolvido pela coroa portuguesa, Diogo Lobo Pereira (1670), que somavam 7
revoltosos (35%) que se fizeram no legislativo municipal. Outro caso curioso, ainda em se
tratando dos juízes, refere-se a Francisco de Brito de Meirelles, que assumiu cadeira na
câmara três vezes quase seguidas 1674, 1677 e 1678.
No cômputo geral, o número de vereadores é quase semelhante àquele constatado
no caso dos juízes. Dos 26 vereadores, 8 tinham alguma relação com a conjuntura
112
Carlos G. Rheingantz, Op. Cit. Volume 1, p. 28.
211
revolucionária, importando 30%. O capitão Manoel da Guarda Muniz (1671), o
proprietário de terra Ignácio de Oliveira Vargas (1679) e João Gomes da Silva (1677),
vizinho das terras de Antonio de Marins, são alguns exemplos destes casos específicos. Por
fim, quanto àqueles não identificados, a percentagem sobe um pouco, somando 40%,
todavia, diferente do que aconteceu nos dados anteriormente arrolados, os camaristas não
identificados freqüentaram o senado logo após o término da revolta, exemplos não nos
faltam: Manoel Pimenta de Carvalho (1662), Manoel de Gouvêa (1663), Mathias de
Mendonça (1663) e Custódio Coelho Madeira (1663).
Diante desse quadro, é visível que mais um dos objetivos traçados por aqueles que
arquitetaram e sustentavam o movimento tornou-se efetivamente possível: a presença mais
ativa das regiões periféricas no senado da câmara. A partir da tabela com a composição do
senado da câmara após 1662, observa-se claramente que alguns dos envolvidos na Revolta
da Cachaça e proprietários de terras nas regiões gonçalenses participaram das decisões
políticas levadas para o legislativo municipal, passando a fazer valer seus interesses na
capitania do Rio de Janeiro. Logo, a câmara ficou mais acessível às regiões periféricas,
situação difícil de se imaginar sem os sucessos conquistados pelos revoltosos com o
término do movimento e a atuação política de inúmeros dos rebeldes de 1660 demonstrava
ainda como a prática da rebelião pôde ser absorvida pela cultura política do antigo regime.
No entanto, a manutenção da superioridade econômica e política da nobreza da
terra nas regiões fluminenses trouxe uma inusitada necessidade após o movimento de
1660: uma aliança econômica com os comerciantes. Se de um lado o crescimento
econômico fluminense após 1660 possibilitou a nobreza da terra assegurar seu domínio
político na capitania, por outro lado a mesma prosperidade também auxiliou na
consolidação de uma nobreza mercantil,
sedenta de espaços políticos, sobretudo na câmara
de vereadores.
113
Dessa forma, o século seguinte será pautado por constantes embates
entre a nobreza da terra, tentando resguardar seus espaços na câmara, e a nobreza
113
Sobre a consolidação da chamada nobreza mercantil em fins do século XVII, Cf. João Fragoso. "A
Formação da Economia Colonial no Rio de Janeiro e de sua Primeira Elite Senhorial (Séculos XVI-XVII)"
IN: João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. O Antigo Regime nos
Trópicos, Op. Cit., pp. 29-73; Para a análise da nobreza mercantil já no século XVIII, ver. João Fragoso.
Homens de Grossa Aventura: Acumulação e Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; João Fragoso e Manolo Florentino. Arcaísmo como Projeto:
Mercado Atlântico e Sociedade Agrária no Rio de Janeiro (c. 1790-1840). Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
212
mercantil, buscando artifícios, como por exemplo o casamento, para se inserir nas mais
importantes decisões políticas da capitania.
114
Assim, de forma geral, seja de forma imediata o afastamento da família Sá da
administração fluminense ou seja a longo prazo o conflito entre comerciantes e a
nobreza da terra –, a Revolta da Cachaça marcará profundamente a capitania do Rio de
Janeiro em todos os seus aspectos, fazendo dessa conquista ultramarina uma região
próspera economicamente e capaz de barganhar seus interesses políticos. Logo, talvez seja
por este o grande impacto causado pelos acontecimentos de 1660-1661 que a região
fluminense não será assolada por grandes motins até o final do século XVIII. Até por que a
nova invasão francesa que assolou o Rio de Janeiro no início do século XVIII despenderia
muito tempo dos homens ultramarinos fluminenses. Mas isso é uma outra história...
114
Sobre o embate entre comerciantes e a nobreza da terra na câmara do Rio de Janeiro no século XVIII, Cf.
Maria Fernanda Baptista Bicalho. A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro na Dinâmica Colonial Portuguesa,
Século XVII-XVIII. Tese (Doutorado em História). Departamento de História, Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, 1997.No que tange as estratégias utilizadas pelos comerciantes para adquirir o
estatuto de nobreza, ver. Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano
Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
213
Conclusão
E a tempestade caíra por durante cinco meses! Os vassalos ultramarinos sabiam
que mais cedo ou mais tarde que o céu desabaria, ou como diziam os nativos americanos,
que os deuses chorariam. Todavia, eles não acreditavam na intensidade das águas. Após
grandes manifestações da natureza sempre buscamos saber os impactos por ela causados e
nos surpreendemos com as alterações por ela realizadas. No nosso caso, percebeu-se muito
bem que a Revolta da Cachaça foi uma baita tempestade, digna daqueles filmes de
desastre, repletos de efeitos especiais. Resta-nos, somente, ver o que a natureza nos deixou.
Pouco estudada pela historiografia recente sobre os movimentos sociais, a Revolta
da Cachaça marcou profundamente a História fluminense colonial. O movimento de 1660
possui muitas características semelhantes a outras rebeliões que eclodiram após a
restauração lusitana, mas, no entanto, ao pensarmos no Rio de Janeiro ficamos surpresos
ao perceber que talvez a Revolta da Cachaça poderia ter sido o grande motim colonial
fluminense, já que não mereceu uma significativa elaboração historiográfica como a guerra
dos emboabas em São Paulo, a Conjuração dos Alfaiates na Bahia ou a Revolta de Vila
Rica em Minas Gerais.
O próprio descrédito que o século XVII fluminense possui em nossa historiografia
pode ter grande influência na desqualificação, ou melhor dizendo, no esquecimento do
papel do movimento de 1660. A escassez das fontes, a obscuridade dos períodos de crise, o
domínio espanhol e as preocupações com as invasões batavas fizeram desse século, como
nos ensinou Vivaldo Coaracy, um mero momento de transição dos primeiros contatos com
a região fluminense para o aparecimento de uma sociedade tipicamente mercantil e
escravista,
1
sem falar nos ricos momentos da exploração aurífera.
Por isso, privilegiamos uma repaginação nos cortes cronológicos para o estudo da
capitania do Rio de Janeiro seiscentista, não desprezando a conexão que o mesmo
desenvolveu entre o século que o antecedeu e aquele que se seguia. Logo, a visualização
1
Vivaldo Coaracy. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. Cf. Também
Antonio Carlos Jucá Sampaio. Na Curva do Tempo, na Encruzilhada do Império: Hierarquização Social e
Estratégias de Classe na Produção da Exclusão (Rio de Janeiro, C. 1650-1750). Tese (Doutorado em
História) Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2000.
214
da conquista da região fluminense somente após a invasão francesa, em 1565, em primeiro
lugar revelava não só a própria dificuldade enfrentada pelos primeiros conquistadores da
América portuguesa, como também, em segundo lugar, auxiliava, cada vez mais, no
desenvolvimento do Rio de Janeiro enquanto praça mercantil de destaque e conectada às
diversas redes do império colonial português no século XVII.
Nesse caso, é quase inegável o papel desempenhado pela união ibérica nas regiões
americanas, principalmente em se tratando do Atlântico Sul. Caracterizado por nós como o
efetivo momento da colonização fluminense, visamos demonstrar que a união das duas
coroas Ibéricas não se reservou somente às áreas metropolitanas, mas também se
processou no mundo americano. Os intensos contatos com a região do Prata, a explosão de
órgãos administrativos, o enraizamento populacional e o conseqüente desenvolvimento da
economia açucareira autentificam esse momento como extremamente benéfico para os
ultramarinos, sobretudo os fluminenses, que viram a dinamização da sua praça em pleno
“século obscuro”.
É óbvio que em 1640 tudo havia de mudar. A redefinição da coroa, o reajuste na
forma de colonizar e a readaptação no mundo moderno forçaram a construção de uma
nova imagem para os súditos mais distantes: a do sol presente e brilhante. Assim, o pacto
colonial vinha atrelado à intensa preocupação da manutenção da autoridade e do exercício
da soberania, sem fazer do súdito um legítimo colono. Tais posições levavam a uma nova
mentalidade moderna lusitana. Calcado no neotomismo utilizado para destronar o
castelhano Filipe IV, o pensamento político português atribuía ao povo o legítimo direito
da concessão da autoridade solar, sem a qual os raios luminosos não poderiam se fazer
presentes e o conseqüente exercício da tirania tornar-se-ia visível.
Mas, ao mesmo tempo em que o discurso restauracionista, angariado do
neotomismo, inseriu Portugal na modernidade, por outro lado serviu de instrumento para
os domínios ultramarinos lusitanos legitimarem e justificarem o desenvolvimento de
manifestações não contra o sol, que de uma certa forma conseguia manter seus raios
luminosos, e sim contra as sombras, que dificultavam o acesso dos súditos ao exercício da
autoridade pelo monarca, até porque os mesmos estavam muito mais interessados em
tornaram-se sol do que realizarem suas atribuições de sombra. Iniciada na Bahia, em 1641,
com deposição do Marquês de Montalvão D. Jorge de Mascarenhas passando por
Pernambuco, Macau, Ceilão, Maranhão, até chegar novamente à Bahia, em 1688, com a
revolta do Terço Velho, os movimentos sociais após 1640 usaram e abusaram do discurso
restauracionista lusitano e fizeram valer, mesmo estando bastante distantes, suas condições
215
de leais e legítimos súditos portugueses.
Enquadra-se também nesse grupo a Revolta da Cachaça. Mas ao falar dela
novamente deparamos com uma ótica não muito privilegiada para o seu estudo: São
Gonçalo. Apesar de a grande maioria dos autores que estudaram ou estudam esse motim
entre eles Charles Boxer, Vivaldo Coaracy, Luis Norton, Miguel Arcanjo de Souza e
Luciano Raposo de Almeida Figueiredo reconhecerem o envolvimento gonçalense em
1660, eles apenas apontaram São Gonçalo como local onde se iniciou a revolta. Esse ponto
de vista resultava do próprio desconhecimento pelos autores dos parâmetros políticos,
econômicos e sociais que caracterizavam a região gonçalense no Seiscentos. Por isso, o
que nos propomos aqui foi apontar a obrigatoriedade do estabelecimento de uma conexão
entre a freguesia de São Gonçalo de Amarante e a Revolta da Cachaça para uma
compreensão da complexa crise política que assolou a capitania do Rio de Janeiro entre
1660-1661.
A freguesia de São Gonçalo de Amarante, elevada a essa condição em 1647, não
possuía somente o grande líder do motim, Jerônimo Barbalho Bezerra, e o governador dos
revoltosos Agostinho Barbalho Bezerra inúmeras personagens gonçalenses foram as
grandes responsáveis pela arquitetura e sustentação do movimento, destacamos os
procuradores do povo, os capitães de ordenança e os componentes da câmara municipal
fluminense. A análise prosopográfica não só das principais personagens envolvidas no
conflito como das famílias tradicionais gonçalenses atestamos a gigantesca ligação da
freguesia gonçalense com os acontecimentos de 1660.
As dificuldades de enraizamento populacional gonçalense estava conjuntamente
atrelada às adversidades impostas pela produção econômica. A região foi beneficiada com
a intensa distribuição de sesmarias após 1565 seja para conter o avanço de monarquias
estrangeiras, seja para o isolamento dos índios bravos no interior fluminense que de
imediato não propiciou um efetivo povoamento. Esse só adveio com a união ibérica, que
também possibilitou o aparecimento dos primeiros engenhos, o que atesta a necessidade de
uma significativa presença humana para que o crescimento da produção fosse adensado.
Logo em seguida, a conquista do estatuto de freguesia em 1647 reconheceu o resultado de
quase um século de enraizamento dos primeiros conquistadores e povoadores da região,
como da mesma forma reafirmava a política lusitana de mais uma vez cercear a capitania
do Rio de Janeiro de ataques inimigos, caso contrário as freguesias de Macacu, Irajá e
Meriti não seriam criadas ao mesmo tempo.
Apesar do enorme esforço de enquadramento do recôncavo fluminense na política
216
econômica implementada pela coroa portuguesa, as condições físicas da capitania eram um
empecilho constante para o sucesso do Rio de Janeiro na produção de gêneros primários.
Os produtos de abastecimento interno oscilavam entre fases áureas e de extrema
dificuldade, obrigando a realização de trocas comerciais com o celeiro do Brasil, as regiões
paulistas.
2
Quanto à economia açucareira as adversidades não eram menores. As péssimas
condições do solo faziam do açúcar fluminense um produto secundário no comércio
internacional, onde se preferia aqueles produzidos na Bahia ou, principalmente, em
Pernambuco. Sendo assim, os gêneros derivados do açúcar passaram a despontar como
produtos mais lucrativos para os produtores fluminenses, já que não possuíam nenhum
investimento adicional no momento da produção e não eram normalmente divididos entre
os lavradores de cana. Dentre eles, a aguardente tornou-se ao longo do Seiscentos a
menina dos olhos” dos senhores de engenho do recôncavo.
Mas o comércio dessa bebida alcoólica passou, aos poucos, a atrapalhar as
intenções mercantilistas da coroa portuguesa. Tudo porque a cachaça se transformou numa
forte concorrente do vinho português no comércio de cativos trazidos da África.
Comumente, a historiografia sobre a escravização africana tem apontado,
significativamente, as inúmeras restrições ao comércio da aguardente no final do
Seiscentos e início do Setecentos. No entanto, a pendenga iniciou-se um pouco antes, em
1649, quando da criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil.
A proibição do fabrico e a comercialização da aguardente era uma resposta
imediata ao duro golpe que o vinho sofria nas trocas por africanos, por conta das inúmeras
desvantagens que a bebida portuguesa possuía frente àquela produzida no mundo
americano. Em se tratando da região fluminense, o impacto dessas restrições foi
absurdamente maior, até porque a posição desqualificada do açúcar produzido no Rio de
Janeiro delegava à cachaça a função de produto compensador. A cachaça proporcionava os
lucros aos engenhos açucareiros fluminenses, que com essas restrições somadas às graves
crises do preço do açúcar no mercado por conta do estabelecimento dos flamengos nas
ilhas antilhanas, após a expulsão das regiões pernambucanas, viveram uma imensa
inquietação econômica.
Nesse quadro insere-se a freguesia de São Gonçalo de Amarante que despontava
como a principal região produtora tanto de açúcar quanto da aguardente. Ela caracterizava-
2
John Manuel Monteiro. Negros da Terra Índios e Bandeirantes na Sociedade Colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
217
se como uma grande articuladora das regiões fluminenses, porque desempenhava a função
de resguardar a manutenção do comércio quadrangular entre o Rio de Janeiro, Angola,
Portugal e a região do Prata.
3
São Gonçalo, como o principal local de concentração de
engenhos do Rio de Janeiro no Seiscentos era responsável pela produção da aguardente,
subsidiava, a conquista de moedas e abastecia a regiões açucareiras brasílicas com as peças
africanas. Ou seja, a cachaça gonçalense sustentava as redes comerciais do atlântico sul e
tornava viável a empresa açucareira da América portuguesa.
O importante papel desempenhado pela freguesia de São Gonçalo no conjunto
econômico do Atlântico Sul foi constantemente solapado por Salvador Correia de Sá
durante suas administrações. As regalias e os privilégios possuídos pelo governador da
repartição sul agravaram ainda mais a situação das praças fluminense. Personagem
indiscutivelmente polêmico da história do Rio de Janeiro, Salvador de Sá tinha
representava o típico ethos lusitano transportado para as conquistas ultramarinas, no qual
prevalecia a superioridade das famílias tradicionais, dos proprietários de terras e escravos,
dos ocupantes de cargos administrativos e daqueles que circulavam na vereança local.
Todas as vezes que administrou a capitania do Rio de Janeiro, seja pelas acusações de
tirania por antigos funcionários, seja por obrigar a população a contribuir para a
restauração de Angola, ou simplesmente por extrapolar suas funções enquanto sombra e se
enveredar na aplicação de impostos sem as determinações do sol, deixou a população
insatisfeita.
É óbvio que a aplicação do imposto de 1660, sem consulta régia e sem a
legitimação da câmara do Rio de Janeiro antes de sua visita fiscalizadora às minas
paulistas, foi a grande motivadora para a efetivação de seu afastamento do cargo e o
conseqüente início da Revolta da Cachaça. Agora, o que também se quis chamar a atenção
aqui foi a própria construção à longo prazo do movimento de 1660. O descontentamento
frente às tiranias da sombra solar havia sido geradas em momentos anteriores a 1660 e
ousamos até em afirmar que a revolta de 1644, durante o governo de Luis Barbalho
Bezerra, possuía enormes chances de ter ocorrido antes do afastamento de Salvador de Sá
e Benavides da administração para responder às acusações contra ele levantadas. Como
bom estrategista que era, Salvador de Sá sabia da instabilidade que rondava sua
administração! Dessa forma, apostamos até que a Revolta da Cachaça carregava em seu
3
Luis Felipe de Alencastro. O Trato dos Viventes - A Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
218
germe sementes de vingança dos herdeiros de Luis Barbalho Bezerra, sobretudo Jerônimo,
que vira seu pai falecer em detrimento de um movimento gerado por problemas deixados
pela sombra do sol enquanto era governador.
Nessa lógica, a revolta de 1660 pôs frente a frente duas famílias distintas: os Sá e
os Barbalho. Enquanto os primeiros dominavam o cenário político fluminense, os
segundos eram um dos sustentadores da economia da capitania. A revolta foi o ajuste de
contas típicos do mundo ultramarino entre essas famílias e seus respectivos apaniguados,
onde o objetivo era o equilíbrio da balança política das elites sociais da região do Rio de
Janeiro.
Somada às questões econômicas e aos problemas ocasionados pelas administrações
de Salvador Correia de Sá e Benavides, o debate sobre a participação política das regiões
periféricas é um ingrediente importantíssimo a ser acrescentado nesta mistura conjuntura.
Bastou uma análise da composição do legislativo municipal antes, durante e depois da
revolta para comprovarmos o grau de exclusão que as regiões do recôncavo possuíam
naquele fórum político. Apesar de se constituírem como centros econômicos de destaque
na capitania do Rio de Janeiro, regiões como São Gonçalo não tinham nenhum mecanismo
para se fazer presente na vereança, mesmo que seus moradores possuíssem os requisitos
básicos e necessários para ocupação de alguma cadeira naquele espaço político. Isso
ocorria por conta da supremacia dos Sás na margem ocidental da baía da Guanabara, e que
acabava isolando as famílias da banda oriental ligada à produção açucareira da câmara de
vereadores. Tal conjuntura refletia uma verdadeira crise política que se instaurava na
capitania no Rio de Janeiro, no qual os interesses políticos regionais deveriam ser afinados
com a atuação econômica das regiões periféricas da Guanabara.
Assim, dentre suas reivindicações, os revoltosos exigiam uma publicidade maior
dos editais de convocação para as eleições municipais, sem a qual não seria possível uma
presença mais ativa das regiões politicamente periféricas na câmara, espaço fulcral para as
determinações dos rumos econômicos e políticos da capitania do Rio de Janeiro. Durante a
revolta, esse mesmo espaço serviu como experiência dos grupos gonçalenses para o
exercício do poder político, já que após 1661, com o término do motim, a freguesia de São
Gonçalo de Amarante e as demais regiões periféricas fluminenses tornaram-se mais
presentes na câmara, auxiliava, indiscutivelmente, no apontamento dos interesses não só
dessas regiões como dos grupos sociais nelas inseridos.
Por tudo isso compactuamos com a idéia de “campo de tensões” defendida por
219
Antonio Manuel Hespanha.
4
Qualquer tipo de manifestação social, principalmente os
motins da época moderna, eram resultados não de um, mas sim de uma gama de fatores
que contribuíam diretamente para sua realização. Até porque ao levarmos em consideração
a própria especificidade de se viver nas regiões américo-lusitanas percebemos que as
motivações imediatas para incentivar o aparecimento de revoltas eram subsidiadas por
questões, no mínimo, contraditórias. Isto significa dizer que as estruturas mentais, políticas
e sociais trazidas do reino português por aqueles que cruzavam o Atlântico já eram em si
grande motivadoras de rebeliões, seja pela distância física do rei, pelo exagero de
flexibilidade e autonomia que o paradigma corporativo proporcionava aos órgãos
administrativos coloniais ou pela própria dificuldade de manutenção da condição de súdito
diante das necessidades mercantilistas que circulavam em torno das monarquias européias
modernas. Junta-se a isso a positividade que a revolta passou a ter como um modelo de
resistência legítimo durante o barroco, no qual a restauração lusitana encontrava-se como
um exemplo do exercício de resistência diante das insatisfações proporcionadas pelo
monarca.
Seja como for, a visualização dessas questões no ultramar tem na Revolta da
Cachaça um dos símbolos que podem ser cotejados pelos historiadores. Agora, é
interessante notar que o movimento fluminense traz uma grande novidade: a questão da
periferia. E quando relacionamos a revolta e a sua condição periférica, não visamos
enxergar a resistência fluminense como algo especificamente brasílico, ou seja, delegando
à América portuguesa o papel natural de periferia. Utilizando o debate da multiplicidade de
perspectivas centrais e periféricas defendidos por A. J. R. Russell-Wood
5
fica fácil
perceber como a Revolta da Cachaça representava intenções de mudanças exigidas pelas
localidades periféricas da capitania do Rio de Janeiro, já que o movimento resultara das
articulações políticas, sociais e econômicas da região gonçalense no quadro da crise
política de 1660.
Nesse caso, como havíamos dito, a posição política periférica dessas regiões,
dentre elas a freguesia de São Gonçalo de Amarante, chocava-se com uma posição central
nos assuntos econômicos. Além disso, o sufoco gerado pelas restrições e problemas
econômicos da capitania do Rio de Janeiro ameaçaram, inclusive, a permanência dessa
4
Antonio Manuel Hespanha. “Revoltas e Revoluções: Resistência das Elites Provinciais” IN: Revista
Análise Social. Volume XXXVIII 120), 1993.
5
A. J. R. Russell-Wood. “Centros e Periferias no Mundo Luso-brasileiro, 1500-1808” IN: Revista Brasileira
de História. Volume 18, Número 36, 1998.
220
centralidade no Atlântico sul que São Gonçalo obtinha. Sendo assim, um viés interessante
para analisar a Revolta da Cachaça encontra-se de um lado na tentativa de inversão do
papel político exercido por estas regiões na vereança municipal, e de outro, na busca
desenfreada pela manutenção da posição econômica destas periferias, pois tal status era
um canal para o sucesso do alcance do espaço político tanto vislumbrado.
Foi mais uma vez na análise prosopográfica das personagens envolvidas na revolta,
mais especificamente daqueles que assinaram o auto de aclamação de Agostinho Barbalho
Bezerra, onde constatamos tais argumentos. A grande maioria deles eram proprietários de
terra em São Gonçalo ou em outras regiões do recôncavo fluminense, o que nos
possibilitou supor que os mesmos estavam sendo prejudicados na expansão de suas
atividades econômicas. A ínfima participação no senado da câmara não ajudava na
reversão desta conjuntura, deixando-os de “mãos e pés atados”. Assim, a revolta foi o
único caminho imediato pensado por aqueles súditos para reverter o quadro no qual se
encontravam, pois as queixas contra Salvador de Sá haviam sido enviadas anos antes à
coroa portuguesa e a sombra do sol conseguira burlar a autoridade régia. Restou-lhes fazer
justiça com as próprias mãos.
Os revoltosos até que tentaram barganhar com a administração fluminense
lançando mão do recurso do direito, ao elaborar um documento fazendo propostas de
mudanças a serem implementadas na capitania pela sombra interina, Thomé Correia de
Alvarenga. Não deu certo! Tais capítulos, ao longo do movimento, serviram como
parâmetros das exigências daqueles que lideravam e sustentavam a rebelião. Por isso,
Salvador de Sá fora afastado do cargo, aboliu-se o imposto por ele aplicado, os oficiais da
câmara e os capitães de ordenança foram substituídos e reafirmou-se o estatuto da nobreza
da terra para obtenção de cargos na vereança municipal. Enfim, a Revolta da Cachaça foi
um movimento apropriando-se do termo de Antonil
6
dos homens bons.
Em seu cômputo geral, a revolta foi bem sucedida. A coroa portuguesa recebeu
bem as notícias do motim e deu ouvido às queixas dos valorosos súditos ultramarinos
contra Salvador Correia de Sá e Benavides. Por que a coroa havia mudado de posição? A
priori há de se lembrar que se antes de 1643 apenas a deposição do Marquês de Montalvão
na Bahia despontava como a principal resistência ultramarina envolvendo administradores
régios. Após as primeiras acusações feitas contra Salvador Correia de Sá outros três motins
explodiram no império ultramarino denotando uma certa tendência para a eclosão de
6
André João Antonil. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
221
movimentos contendo essas características.
Nesse sentido, o procedimento adotado pela coroa portuguesa foi uma tentativa
evidente de conter o avanço desses tipos de manifestações em outras partes do império
português. Escutar os súditos, mesmo estando eles distantes da luminosidade solar era uma
condição sine qua non para a manutenção de sua autoridade, o que conseqüentemente
legitimava sua soberania. Se entendemos, como Rubem Barbosa Filho,
7
que a visualização
do poder político do sol encontrava-se na América ou nas conquistas, torna-se indubitável
compreender esses movimentos como constantes ameaças da supremacia solar, mesmo
não estando os mesmos em nenhum momento questionando a autoridade do monarca
português. Em conjunturas de instabilidade como essa após a restauração lusitana e da
constante disputa do trono português entre D. Luísa de Gusmão, D. Pedro e D. Afonso VI
facilitava o desgaste dos raios solares nas áreas mais longínquas do império e auxiliava no
estabelecimento de alianças com monarquias que beneficiem mais seus súditos do que seus
administradores.
O Conselho Ultramarino chegou, inclusive, a aviltar tal possibilidade ao deparar
com o ricochete espalhado pelas conquistas lusitanas. O que de uma certa maneira
podemos reconhecer é que os receios eram plenamente justificáveis, principalmente se
pensarmos na relação entre a capitania do Rio de Janeiro e a coroa hispânica. A
concretização da união ibérica concedeu inúmeros benefícios tanto econômicos quanto
políticos para a região fluminense. Logo, manter o poder político lusitano era o mesmo que
atender as reivindicações da nobreza da terra ultramarina.
E fora justamente isso que os monarcas portugueses fizeram: D. Luísa de Gusmão,
enquanto regente, retirou o cargo de governador das mãos de Salvador Correia de Sá e
Benavides; D. Afonso VI concedeu a absolvição e a comenda da ordem de Cristo aos
líderes da revolta presos em Portugal, além de nomear D. Vasco de Mascarenhas, o conde
de Óbidos, para o governo-geral da América portuguesa visando à diminuição da
autoridade dos Correias de Sá no Atlântico Sul; e D. Pedro aboliu os privilégios da
companhia geral do comércio do Brasil, um dos órgãos mais detestáveis pelos súditos
ultramarinos. Vendo sob esse prisma a revolta foi um sucesso, seja para a coroa que teve
sua soberania mantida , seja para os revoltosos, que tiveram seus anseios escutados. Além
disso, São Gonçalo reafirmou sua supremacia econômica e equilibrou as desvantagens
7
Rubem Barbosa Filho. Tradição e Artifício: Iberismo e Barroco na Formação Americana. Rio de Janeiro,
IUPERJ, 2000.
222
políticas que tinha contra si, fazendo-se mais presentes na câmara de vereadores e
afastando as famílias ligadas aos Sá, podendo se impor, com mais recursos nas conexões
do Atlântico sul.
É, tempestades são assim mesmo! Além de destruir, nutre a terra para torná-la
novamente fértil. E o sol, aos pouquinhos volta a ficar a pino no céu, até o momento de ser
invadido outra vez por sombras...
228
FONTES E BIBLIOGRAFIA
I - Fontes
a) Fontes Manuscritas:
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
Acordos e Vereanças do Legislativo Municipal, 1635-1650. Códice 16-3-20.
Cartório do 1º Ofício de Notas. Rio de Janeiro, 1621-1672, Códigos 42-3-55, 42-3-56 e 42-
3-57.
Legislativo Municipal/Senado da Câmara - Vereança, 1635 - 1650. Códice 16-3-20.
Arquivo Histórico Ultramarino
"Sobre o que escrevem os oficiais da câmara do Rio de Janeiro do levantamento que houve
no povo daquela capitania contra Thomé Correia de Alvarenga que estava governando".
Códice 16, fls.11-12.
Arquivo Nacional
Alvará porque sua majestade há por bem e manda se erija de novo e crie uma vigairaria da
invocação de São Gonçalo sita nos limites e lugar de Guaxindiba, capitania do Rio de
Janeiro. Códice 61, fl. 219v-221v.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Notícia de um Motim no Rio de Janeiro Enviado à Rainha Regente, D. Luísa de Gusmão,
por Salvador Correia de Sá e Benavides. Rio de Janeiro, 10 de Abril de 1661. Código
10563/83.
Papéis do Brasil. Códice 9, fls. 136-136v.
Papéis do Brasil. Códice 540, fls. 4v e 3v.
229
Biblioteca Nacional
Relação da aclamação que se fez na capitania do Rio de Janeiro do Estado do Brasil, & nas
mais do sul, ao senhor rei Dom João o IV por verdadeiro rei, & senhor de seu reino de
Portugal, com a felicíssima restituição que dele se fez a Sua Majestade que Deus Guarde.
Lisboa: Oficina de Jorge Rodrigues, 1641. Códice 26-3-25-2.
Biblioteca Nacional de Lisboa
Capítulos que propõem o povo deste recôncavo desta cidade que se ajuntou na ponta do
brabo ao senhor governador Thomé Correia de Alvarenga por mão de quatro procuradores.
Fundo Geral, Caixa 199, Número 47.
British Museum
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782, 847, 848-849, 850, 854, 855, 856-858, 859, 860, 861-862, 863, 864, 865-866, 867,
868, 869, 871, 872, 873, 874, 875, 877, 878, 879, 880, 974, 6082, 6083, 6084, 6085, 6086,
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