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Universidade Federal do Rio de Janeiro
A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Luiz Cristiano O. de Andrade
2004
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A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Luiz Cristiano O. de Andrade
Rio de Janeiro
Maio de 2004
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
pós-graduação em história social (PPGHIS),
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História.
Orientadora: Professora Dra. Andréa Daher
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A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Luiz Cristiano O. de Andrade
Orientadora:
Professora. Dra. Andréa Daher
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de pós-graduação em história
social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História.
Aprovada por:
_______________________________________
Presidente, Professora Dra. Andréa Daher
__________________________________
Professor Dr. Carlos Fico
__________________________________
Professor Dr. Alcir Pécora
__________________________________
Professor Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães (suplente)
Rio de Janeiro
Maio de 2004
Andrade, Luiz Cristiano Oliveira de.
A narrativa da vontade de Deus: a História do Brasil de frei Vicente do
Salvador (c. 1630) / Luiz Cristiano Oliveira de Andrade. Rio de Janeiro:
UFRJ / IFCS, 2004.
xi, 220f.
Orientadora: Andréa Daher
Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de pós-graduação em
história social, 2004.
Referências bibliográficas: f. 204-220.
1. Historiografia brasileira. 2. Frei Vicente do Salvador. 3. Retórica. 4.
ABREU, João Capistrano de. I. DAHER, Andréa. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filososfia e Ciências Sociais, Programa de
pós-graduação em história social. III. Título
RESUMO
A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Luiz Cristiano O. de Andrade
Orientadora:
Professora. Dra. Andréa Daher
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de pós-graduação em história
social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História.
Estudo sobre a História do Brasil (c.1630) de frei Vicente do Salvador, escrita ao
longo da terceira década do século XVII, que considera os preceitos retórico-poéticos e as
categorias teológico-políticas empregadas a fim de fornecer conselhos às autoridades
responsáveis pelo governo do Brasil. Nesse sentido, a narrativa do frade baiano tece
juízos sobre as virtudes e as ações de bispos, governadores e capitães e louva o papel da
ordem de São Francisco de Assis na obtenção da concórdia entre os súditos do império
católico.
Rio de Janeiro
Maio de 2004
ABSTRACT
The God’s will narrative:
the frei Vicente do Salvador’s History of Brazil
(c.1630)
Luiz Cristiano O. de Andrade
Orientadora:
Professora. Dra. Andréa Daher
This study of friar Vicente do Salvador’s History of Brazil (História do Brasil),
written during the third decade of seventeenth century, regards the conventions related to
the rhetorical-poetical pattern and the theological-political categories, used to offer
examples to the authorities that were responsible for the Brazil’s government. The
franciscan’s narrative presents judgments about the bishops, governors, capitains actions
and virtues, and praise the role of Saint Francis Order’s missionaries in order to reach the
concord among the catholic empire vassals.
Rio de Janeiro
Maio de 2004
Nós, os modernos, nos vamos esquecendo
que essas histórias de classe, de povos, de
raças, são tipos de gabinete, fabricados
para as necessidades de certos edifícios
lógicos, mas que fora deles desaparecem
completamente.
Afonso Henriques de Lima Barreto
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, à professora Andréa Daher, que orientou este trabalho com
precisas intervenções e ricas indicações bibliográficas. Desde o seu primeiro curso no
IFCS, em 1996, ela despertou em diversos estudantes, entre os quais me incluo, o prazer
de buscar a alteridade em relação ao passado, de analisar as invenções e as tensões que
perpassam a história, e de problematizar o ofício historiográfico – em suas mãos sempre
denso e complexo. Muito obrigado pelas inúmeras portas abertas e pelos caminhos que
me ajudou a trilhar. Indubitavelmente, as marcas deixadas em minha formação já são
indeléveis.
No Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde 2000, aprendo
com os técnicos da casa sobre as complexas tarefas de atribuir valor e preservar os bens
culturais brasileiros. Às amigas do IPHAN, Bia, Bat, Laura, Fátima e Maria Luiza,
obrgidado pelo apoio nesses dois anos de mestrado. Sem a fundamental ajuda de Luiza e
Mônica, da Biblioteca Noronha Santos, muitos livros não teriam sido achados e outros
ainda me seriam desconhecidos. Agradeço especialmente à Márcia Chuva, historiadora
que abriu clarões nessa densa mata de arquitetos, e à Lia Motta, historiadora ad hoc no
que se refere aos objetos patrimoniais. Ainda na seara patrimonial, devo expressar a
minha gratidão pelo que também aprendi com a arquiteta Dina Lerner durante o breve
período que pudemos trabalhar juntos no INEPAC.
Desde a entrevista de seleção para o ingresso no PPGHIS, em 2001, o professor
Carlos Fico foi um interlocutor generoso e, concomitantemente, rigoroso. Agradeço-lhe,
sinceramente, por ter acreditado em um projeto que ainda ensaiava os seus primeiros
passos. No exame de qualificação, pude contar com os seus necessários ajustes e
sugestões. Nessa mesma ocasião, o professor Alcir Pécora apontou caminhos
fundamentais que tentei seguir, assim como, posteriormente, sanou algumas dúvidas pelo
correio eletrônico. De todo modo, os seus livros e artigos, que conheci de forma mais
extensa e profunda ao longo do mestrado, já haviam ensejado questões importantes para
refletir sobre a História do Brasil de frei Vicente do Salvador.
Agradeço ainda ao professor Manoel Luiz Salgado Guimarães, cujas
preocupações intelectuais certamente perpassam esta dissertação; à professora Margarida
de Souza Neves, pela generosidade que demonstrou ao longo do seu instigante curso na
PUC; e à Maria Fernanda Bicalho, pelas diversas dicas de pesquisa.
Aos colegas do PPGHIS: Marcelo Ferreira de Andrades, ajuda providencial com
os livros da Editora Vozes; ao “maçom” Alex Moreira, à “inspetora” Aline Montenegro,
à “pernambucana” Juliana Sorgine e à “maranhense” Aline Menezes. Pude contar ainda
com imprescindíveis sugestões vindas de Campinas e São Paulo, tanto as de Guilherme
Amaral Luz como as de Eduardo Sinkevisque, cuja dissertação de mestrado foi essencial
para o desenvolvimento deste trabalho. Não poderia deixar de mencionar os dois amigos
que me acompanham nos momentos decisivos desde a graduação: Cláudio Pinheiro e
Ana Cristina.
Ao meu pai, que começou esta história nos lúdicos e perspicazes postais,
enviados dos mais diversos pontos do país e que tanto despertaram a minha curiosidade.
Para minha mãe, pois, sem o seu suporte, esta dissertação não teria chegado ao seu
término. Ambos estiveram sempre presentes.
Para Tatiana, com quem partilho projetos e sonhos. Certamente, a reflexão
sobre a retórica da história iniciou-se pelas suas teorias da argumentação jurídica. Não
tenho palavras para agradecê-la pela paciência diária e pelo apoio nos momentos mais
difíceis nesses dois útlimos anos tão atribulados.
Sou grato a todos.
SUMÁRIO
Introdução..............................................................................12
Ars historica e escriturização do poder nas cortes européias...........................................13
As histórias da América na Península Ibérica....................................................................25
Os gêneros historiográficos e a perspectiva imperial lusitana..........................................40
Capítulo I
Uma história de contornos esfumados:
a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil.............51
1.1 A trajetória do manuscrito e as primeiras publicações................................................52
1.2 A construção do cânone de Capistrano de Abreu........................................................62
Capítulo II
Verdade, clareza e juízo:
as essências da história seiscentista.............................................75
2.1 João de Barros: a celebração imperial.........................................................................85
2.2 Luís de Camões: a memória épica do Império.............................................................93
2.3 Diogo do Couto: o ocaso do Império...........................................................................98
2.4 Auctoritas lusas..........................................................................................................101
2.5 O caráter apologético: a auto-representação franciscana...........................................103
Capítulo III
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro....................119
3.1 A providência Divina, o livre-arbítrio e a graça........................................................142
3.2 O bom e o mau governo na zona tórrida....................................................................152
3.3 Os índios, a catequese e a guerra justa.......................................................................167
3.4 A retórica da construção do herege invasor...............................................................178
Conclusão..............................................................................197
Bibliografia...........................................................................204
INTRODUÇÃO
A melhor pintura produzida no século XV
era realizada sob encomenda por um
cliente que exigia sua execução conforme
suas especificações. As obras já prontas
se limitavam a objetos tais como Madonas
em série e arcas nupciais, executados
pelos artistas menos requisitados, durante
os períodos de trabalho escasso; os
painéis de altar e afrescos, que nos
interessam mais, eram feitos sob
encomenda, e geralmente o cliente e o
artista assumiam um compromisso legal
em que o último se comprometia a
entregar aquilo que o primeiro tinha
especificado, com mais ou com menos
detalhes.
Michael Baxandall
CAPÍTULO I
Uma história de “contornos esfumados”:
a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil
CAPÍTULO II
“Verdade, clareza e juízo”:
as essências da história seiscentista
CAPÍTULO III
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
CAPÍTULO III
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
CAPÍTULO I
Uma história de “contornos esfumados”
1
:
a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil
“Com um século, apenas, de existência, o Brasil já
produz um brasileiro que o compreende como um
todo solidário, com história própria; um brasileiro –
esse Frei Vicente do Salvador – que sente a
necessidade de escrever a história da sua pátria, e em
cujas páginas tantas vezes se destacam as qualidades
novas e próprias do Brasil, em oposição às de
Portugal. Por isso mesmo, caídas em mãos do
português, essa história, escondem-na, somem-na, no
mesmo empenho que procuram velar e afogar a pátria
distinta que no Brasil se revela. Mais de dois séculos
esteve sepultada nos arquivos oficiais de Portugal, a
História do Brasil, do brasileiro Frei Vicente;
finalmente o português Varnhagen a descobre e,
como português, deixa-a sumida, desconhecida dos
brasileiros...”
Manoel Bomfim
2
1.1 A trajetória do manuscrito e as primeiras publicações
Assim como outros textos do período colonial,
o manuscrito de frei Vicente do
Salvador chegou até o presente através de uma apropriação condicionada pelos
programas nacionalistas de “invenção de tradições”.
3
A publicação da narrativa do frade
baiano concluía um primeiro período de recuperação de documentos acerca da história
brasileira, iniciado com a criação do Instituto Histórico e Geográfico e Brasileiro em
1838.
4
1
A expressão é do próprio Capistrano de Abreu , escrita na Introdução da primeira edição da História do
Brasil. Cf. nota 15, à frente.
2
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, p. 337.
3
HOBSBAWM, Eric; RANGER, T. The invention of tradition.
4
Sobre o projeto político e civilizatório do IHGB ver: GUIMARÃES, Manuel. Nação e Civilização nos
Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história Nacional. Sobre as
identidades construídas no Brasil em meados do XIX, após a Proclamação da República e após a
Revolução de 1930, ver o artigo Brasil: Nações Imaginadas. In CARVALHO, José Murilo de. Pontos e
Bordados.
Uma história de “contornos esfumados”
53
Os estatutos do IHGB fixavam como seu principal objetivo coligir, publicar ou
arquivar os documentos necessários à escrita da história e da geografia do Império do
Brasil. Essa preocupação esteve presente ao longo das primeiras sessões e, nesse sentido,
o cônego Januário da Cunha Barbosa, primeiro-secretário da instituição, escreve para o
número inaugural da revista,
lembrando aos sócios o que deveria ser procurado nas
províncias.
5
Além da pesquisa nos arquivos brasileiros, o Instituto apoiou o levantamento de
fontes na Europa, destacando-se nesse campo a figura de Francisco Adolfo de
Varnhagen, sócio correspondente desde 1840, ano em que forneceu à instituição diversos
manuscritos coletados em Portugal. De 1842 a 1846, nomeado pesquisador oficial,
Varnhagen trabalharia sistematicamente nos arquivos da Torre do Tombo e,
posteriormente, na Espanha, onde tratou de coletar fontes acerca dos limites com a
América Espanhola. Investigou, ainda, arquivos franceses e holandeses, a fim de preparar
aquela que seria a
sua grande obra, a História Geral do Brasil, publicada a partir de 1854.
Nessa busca pelos arquivos europeus, em meados do século XIX, inicia-se a
história da publicação da narrativa seiscentista. De fato, Varnhagen conheceu o
manuscrito na década de 1840, na Biblioteca das Necessidades em Lisboa, e utilizaria
diversas de suas passagens na História Geral do Brasil, sem contudo se interessar em
publicá-lo na íntegra.
6
Em 1858, com o intuito de traçar um esboço biográfico de Gabriel
Soares de Sousa, cuja obra havia sido publicada em volume anterior, publicou um dos
capítulos escritos pelo franciscano sem qualquer destaque, ao lado de cartas e alvarás
régios.
7
No mesmo número da revista, publicava-se também a História da Província de
Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gandavo.
5
BARBOSA, Januário da Cunha. Lembrança do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto
Histórico Brasileiro para remeterem à Sociedade central no Rio de Janeiro. Revista do IHGB, t.1, 1839. O
primeiro tomo contém também as atas das primeiras sessões, nas quais essas propostas foram explicitadas.
6
Na introdução à obra do franciscano, publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Capistrano
critica o Visconde de Porto Seguro: “(...) Varnhagen conseguiu ver o livro de Fr. Vicente, que aliás não cita
quando devia. As maiores e melhores novidades que contém a segunda edição de sua História Geral quanto
ao período anterior à guerra holandeza foram bebidas em nosso primeiro chronista, como se poderá
convencer quem se quizer dar a este trabalho.” Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, p. III.
7
Sobre a transformação do texto de Gabriel Soares de Sousa em documento histórico, ver: CEZAR,
Temístocles. “Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel
Soares de Sousa (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica.” História em Revista, v.6, 37-58.
Excluído: como
Uma história de “contornos esfumados”
54
A narrativa de Frei Vicente fora copiada e enviada ao Brasil por João Francisco
de Lisboa, pesquisador oficial no exterior a partir de 1856, mas somente teria sua
importância reconhecida por Capistrano de Abreu alguns anos mais tarde.
Segundo Arno Wehling, o historiador cearense pertenceu a uma geração, surgida
a partir da Guerra do Paraguai, que “procurou reinterpretar a experiência brasileira, não
em termos do Estado Imperial, como o fizera Varnhagen, mas privilegiando o povo e sua
formação étnica, traduzindo a influência do sociologismo de Comte / Taine e dos
diversos determinismos progressistas.”
8
Capistrano de Abreu chegara ao Rio de Janeiro em 1875 e, três anos depois, seria
uma peça chave na reabilitação de Francisco Adolfo de Varnhagen, ao escrever em sua
defesa, no necrológio publicado pelo Jornal do Commercio. Ao longo da década de 1880,
abandonou paulatinamente os métodos deterministas, substituindo-os por uma posição
documentalista. Desse modo, afirma o primado da pesquisa documental sobre as leis
sociais enunciadas a priori. Segundo Wehling, “as insuficiências de cada sistema – e de
todos eles reunidos – reforçou-lhe, portanto, a convicção do primado do objeto sobre o
método.
9
Essa postura certamente estava relacionada ao seu emprego, a partir de 1879,
na Biblioteca Nacional, onde entrou em contato com os documentos sob a guarda da
instituição, que, à época, dedicava-se a publicar manuscritos inéditos nos seus Anais.
10
Já em 1881, Capistrano de Abreu participou da organização da Exposição de
História do Brasil, da Biblioteca Nacional, ensejando a reunião de textos impressos e
manuscritos, mapas, estampas, medalhas e moedas, que se encontravam dispersos nas
mãos de colecionadores particulares ou sob a guarda de algumas instituições.
11
A obra de
8
WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu: a fase cientificista. In A invenção da história, p. 169. O termo
“geração de 1870”, embora consagrado pela historiografia e crítica literária, confere certa homogeneidade a
grupos diversos. É aqui utilizado, uma vez que, de fato, Capistrano iniciou a sua trajetória intelectual na
primeira metade da década de 1870, publicando artigos de crítica literária no Ceará. Tais artigos, conforme
salienta Arno Wehling, caracterizaram-se pela aplicação das idéias positivistas, spencerianas e do
determinismo climático de Buckle. Ainda em 1880, travou um debate veemente com Sílvio Romero em
torno do determinismo (racial para este, e geográfico ou climático para Capistrano).
9
Idem, p. 214.
10
Desde o primeiro volume dos Anais da Biblioteca Nacional, publicado em 1876, a revista não apenas
transcreve documentos, mas também organiza diversos catálogos e inclui estudos de seus funcionários
sobre o acervo. No primeiro volume, após o artigo de Ramiz Galvão sobre Diogo Barbosa Machado, cuja
coleção fora doada à Real Biblioteca da Ajuda e, posteriormente, passaria ao Brasil, tem início o Catálogo
de manuscritos relativos ao Brasil.
11
O catálogo da exposição foi publicado em dois volumes pelo Anais da BN, 1881, v. 9.
Uma história de “contornos esfumados”
55
frei Vicente ingressou na exposição, doada por um livreiro carioca, João Martins Ribeiro,
que desconhecia o manuscrito adquirido entre outros papéis. O historiador cearense
conclui que o aspecto do códice, indubitavelmente, revelava que
“(...) era um dos numerosos volumes copiados dos arquivos e bibliotecas
lusitanas na era de [18]50 por comissão do governo imperial, confiada primeiro a
Gonçalves Dias e por fim a João Francisco Lisboa. A coleção, depois de ficar
alguns anos na Secretaria do Império, foi remetida para o Instituto Histórico,
donde uma parte escorreu para as mãos dos particulares.”
12
O Diário Oficial publicaria os dois primeiros livros da História do Brasil em
1886, mas a obra completa só viria à luz no fim de 1888, no volume 13 dos Anais da
Biblioteca Nacional, precedida de uma introdução na qual Capistrano – que planejava
editar a história seiscentista desde o final da exposição – esclarece o itinerário percorrido
pelo manuscrito até a doação para a biblioteca, discorre sobre outras cópias existentes na
Torre do Tombo, em Lisboa, e, finalmente, tece alguns comentários sobre a biografia do
frade.
Nesse primeiro estudo, Capistrano já deixaria as marcas de uma leitura
nacionalista. Ao inferir quais seriam as razões do manuscrito não ter sido publicado, entre
outras hipóteses, defende que talvez “não agradasse o tom em que falla do Brasil e
parecesse arriscado o modo porque pregava sua grandeza, sua independência do resto do
mundo.”
13
No fim do prefácio, o historiador cearense defende o tom popular da História,
na qual aparecem o branco, o índio e o negro, concluindo a sua idéia acerca das origens
nacionais:
“Neste [século XVI], com a dificuldade de communicações, com a fragmentação
do territorio em capitanias e das capitanias em villas, dominava o espírito
municipal: brasileiro era o nome de uma profissão (...) Portuguezes diziam-se os
12
ABREU, Capistrano de. Nota Preliminar, p. 30. In: SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil,
1982. Na introdução dos Anais da BN, p. III, também há uma descrição da trajetória do manuscrito entre
1850 e 1880: “Mesmo em 1857 ou em 1858 a copia deve ter chegado ao Rio de Janeiro. Conclue-se isto
sabendo que ficou em poder do Marquez de Olinda”, então ministro do Império. Após a morte do Marquês
em 1870, o códice passou aos seus herdeiros, que a leiloaram.
13
ABREU, Capistrano. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. I. (Grifo nosso)
Excluído: va
Excluído:
Uma história de “contornos esfumados”
56
que o eram e os que o não eram. Fr. Vicente representa a reacção contra a
tendencia dominante: Brasil significa para elle mais que expressão geographica,
expressão histórica e social. O seculo XVII é a germinação desta idéia, como o
seculo XVIII é a maturação.”
14
Capistrano de Abreu procurava as marcas embrionárias da nação brasileira em
pleno Seiscentos. Essa operação era fruto do mesmo anacronismo que lhe fazia censurar
o franciscano por não indicar as suas fontes. Na tentativa de validar a narrativa do frade,
o historiador cearense realizou um rigoroso trabalho crítico, apontando “as autoridades
em que [frei Vicente do Salvador] se apoia.”
15
Na introdução à primeira edição, informa
que, para a elaboração do livro, além das informações coletadas e observações realizadas
ao longo de suas viagens, frei Vicente utilizou, entre outros escritos, as Décadas, de João
de Barros e Diogo do Couto, e a História da Província Santa Cruz, de Gandavo.
Entretanto, Capistrano cobra-lhe uma postura mais rigorosa:
“A sua História não repousa sobre estudos archivaes. Haveria difficuldade em
examinar archivos? Ou não era seu espírito inclinado a leitura penosa de papeis
amarelados pelo tempo? Dahi certa laxidão no seu livro: muitos factos omittidos
que hoje conhecemos e que elle com mais facilidade e mais completamente
poderia ter apurado, contornos esfumados, datas fluctuantes, duvidas não
satisfeitas.
16
Não obstante seja possível identificar procedimentos característicos da crítica
documental moderna pelo menos desde o século XV – em 1440, por exemplo, como
assinala Ginzburg, com o Discurso sobre a falsa e enganadora doação de Constantino,
escrito por Lorenzo Valla –, os gêneros historiográficos nos séculos XVI e XVII tinham
na noção de testemunho ocular um de seus princípios fundadores.
17
Foi, sem dúvida, fora
de toda preocupação com as fontes arquivísticas que frei Vicente do Salvador citou o que
lhe fora dito por um soldado ou uma mulher de crédito, por homens do tempo de Tomé
14
ABREU, Capistrano de. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. XVII.
15
Idem, p. XI
16
Idem, ibidem.
17
Vide a esse respeito: LESTRINGANT, Frank. Le huguenot et le sauvage.
Uma história de “contornos esfumados”
57
de Souza, além de personagens como Martim Soares Moreno e Pero de Campos, segundo
observa o próprio Capistrano de Abreu, que chegou a tangenciar o critério utilizado de
autópsia dos fatos, mas a noção romântica de documento prevaleceu.
18
Num regime de historicidade em que se atribui valor exclusivo às fontes
documentais para o estabelecimento da verdade histórica, a ausência do recurso
arquivístico constituiu, assim, o cerne das críticas lançadas por Capistrano a Vicente do
Salvador, no final do século XIX e início do XX.
Nos 30 anos que separam a primeira publicação do franciscano nos Anais da
Biblioteca Nacional e a edição crítica, o historiador cearense desenvolveu intensa
atividade. Em 1899, publicou o artigo Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. No
ano de 1907, saíram os Capítulos de História Colonial e a anotação do primeiro volume
da História Geral do Brasil, de Varnhagen. Capistrano de Abreu passou então a ser
reputado “a mais incontrastável autoridade na história pátria.”
19
Desde 1883, ano em que ingressou no Colégio Pedro II como lente de Corografia
e História, Capistrano dedicava-se intensamente à pesquisa documental. Em carta ao
Barão de Rio Branco, no mês de abril de 1890, comunicou que havia se decidido a
escrever uma história do Brasil até 1807.
“Parece-me que poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar os
quadros de ferro de Varnhagen que, introduzidos por Macedo no Colégio Pedro
II, ainda hoje são a base do nosso ensino. As bandeiras, as minas, as entradas, a
criação de gado pode dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase
todo o século XVII, tirando-se as guerras espanholas e holandesas.”
20
Os novos objetos apareceriam em 1899, quando o artigo Caminhos antigos e o
povoamento do Brasil destacou a importância da conquista do sertão. A primeira versão
fora publicada no Jornal do Commercio e, posteriormente, em 1924, revista e ampliada,
18
Cf. ABREU, Capistrano de. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. XIV.
19
RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, p. LIV. O primeiro livro
de Capistrano de Abreu, O Brasil no século XVI, foi publicado em 1880. Após dois anos publicou Sobre o
Visconde de Porto Seguro, além dos diversos estudos publicados na imprensa e pelo IHGB, do qual se
tornara sócio em 1887.
20
Idem, p. 130.
Uma história de “contornos esfumados”
58
na revista América Brasileira. Após a morte do historiador cearense, a Sociedade
Capistrano de Abreu publicou uma coletânea de estudos que tratavam justamente das
expedições ao sertão, com o título do eminente artigo.
O tema dos sertões passou a chamar a atenção dos contemporâneos desde que os
seguidores de Antônio Conselheiro enfrentaram o exército republicano e com a célebre
obra de Euclides da Cunha, publicada em 1902, passou a ocupar um lugar permanente na
produção intelectual do país.
21
A proeminência de São Paulo na vida política nacional,
sem dúvida, também condicionou o olhar retrospectivo de Capistrano de Abreu, que
conferia aos bandeirantes um papel primordial na história brasileira: “A situação
geographica de Piratininga impellia-a para o sertão, para os dois rios de cuja bacia se
avizinha, o Tietê e o Parahiba do Sul, theatros provaveis das primeiras bandeiras, que
tornaram logo famoso e temido o nome paulista.”
22
Chegou mesmo a alimentar o projeto
de escrever uma história sertaneja – questão mais importante do período colonial – com
cerca de 400 páginas, mas não o fez.
23
Capistrano de Abreu voltou a escrever sobre o sertão nos Capítulos de história
colonial, cuja primeira edição foi publicada em 1907. Não obstante trate da paulatina
penetração ao longo do rio Amazonas, do papel do Pará e do Maranhão, o historiador
cearense destaca novamente o papel da vila de São Paulo de Piratininga e da criação de
gado que acompanhou o curso do rio São Francisco e ensejou o nascimento de uma época
do couro.
Os Capítulos constituem uma síntese da pesquisa realizada para anotar a obra do
Visconde de Porto Seguro. O limite de 120 páginas da obra fora imposto pelo editor,
fator que lhe impedia de fazer as citações que desejava e que tanto cobrava de frei
Vicente do Salvador e do próprio Varnhagen. Contudo, o ensaio aponta para novas
perspectivas, introduzindo temas desconhecidos, segundo o autor, como as bandeiras, as
minas, as estradas e a criação de gado.
21
Sobre a trajetória do livro de Euclides da Cunha e sua transformação num “clássico” da literatura
brasileira, cf. ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões.
22
ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil, p. 65.
23
Os projetos que lhe eram mais caros não foram realizados. Além da história sertaneja, Capistrano
pretendia publicar uma outra edição para os Capítulos de História Colonial, assim como anotar os outros
dois volumes da obra do Visconde de Porto Seguro.
Uma história de “contornos esfumados”
59
O livro inicia-se pelo capítulo intitulado “Antecedentes indígenas”, de forma
propositadamente oposta à introdução de Varnhagen, que tratou da Europa em primeiro
lugar.
24
Nesta seção, Capistrano de Abreu discorre sobre os fatores naturais, descrevendo
a geografia, o clima, a fauna e a flora do Brasil – matérias também presentes no primeiro
livro de frei Vicente do Salvador. É interessante notar como o autor reifica o território
nacional, incluindo em sua fronteira países que somente foram criados no século XIX.
25
A mesma operação verifica-se na conversão do português colonizador em “povo
brasileiro”:
“O povo brasileiro, começando pelo Oriente a ocupação do território,
concentrou-se principalmente na zona da mata, que lhe fornecia pau-brasil,
madeira de construção, terrenos próprios para cana, para fumo e, afinal, para
café.”
26
Após tratar da fauna, salienta que nenhum dos animais “pareceu próprio ao
indígena para colaborar na evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou
auxiliando o transporte”, apenas domesticou o papagaio para recreação.
27
Capistrano
ainda analisa a divisão das tribos, dividindo-as em grupos lingüísticos. Somente então
aborda a situação portuguesa no século XVI:
“O Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças de seus
tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios debatidos entre
clérigos, só punia um eclesiástico se, depois de degradado, era-lhe entregue por
seus superiores ordinários, respeitava o direito de asilo nos templos e mosteiros
24
José Honório Rodrigues observa que, após severas críticas, o Visconde de Porto Seguro optou por iniciar
a segunda edição com a “Descrição do Brasil”, antes na VII seção. Cf. ABREU, Capistrano. Capítulos de
História Colonial, p. 35 (Introdução). O programa de Capistrano também é fruto da importância conferida
por ele aos fatores antropogeográficos, decorrente da leitura de Ratzel.
25
“Como o Cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista 37 graus do Chuí, limite com o
Uruguai...”. Idem, p. 43.
26
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 50-51.
27
Idem, p. 51-52.
Uma história de “contornos esfumados”
60
para os criminosos cujas penas eram de sangue, abstinha-se de cobrar imposto do
clero.”
28
A censura de Capistrano à “soberania” eclesiástica no Portugal quinhentista
pertencia ao coro de vozes laicas que se levantaram contra o padroado régio no último
quartel do século XIX. À época, tanto em Portugal como no Brasil, a Igreja Católica era
considerada a principal culpada pelo atraso do país.
29
O autor dos Capítulos não estava
em busca das razões da expansão lusitana nem dos fundamentos teológicos do Império
português, mas sim das origens nacionais brasileiras. Capistrano de Abreu afirma que a
população exígua forçava Portugal, interessado em povoar suas possessões, à mestiçagem
– idéia que, na década de 30, foi desenvolvida pelo antropólogo Gilberto Freyre. “Ao
português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena.”
30
E
arremata, dissonante aos cientistas da eugenia, da hierarquização das raças e da teoria do
branqueamento racial, em voga na virada do século:
“O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio
sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se
instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas.
As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras
rainhas. O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos
mulatos, resumiu em 1711 o benemérito Antonil.”
31
Ao povo brasileiro, opuseram-se sobretudo os franceses – “intrusos” de acordo
com a sua perspectiva – e os holandeses, vencidos pelo “espírito nacional”.
32
A invasão
flamenga, contudo, constituiu “mero episódio da ocupação da costa. Deixa-a na sombra a
28
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 55. O fator geográfico aqui é novamente
determinante. Na p. 61 afirma que a “posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima...”
29
Capistrano salienta que a “Igreja dominava soberana” pelo batismo, casamento, sacramentos e pelo
ensino. Cf. p. 55. Em Portugal, apenas para citar os nomes mais conhecidos, o anticlericalismo pode ser
verificado em Alexandre Herculano, Teófilo Braga e Eça de Queirós.
30
Idem, p. 59.
31
Idem, p. 60.
32
Idem, p. 140.
Uma história de “contornos esfumados”
61
todos os respeitos o povoamento do sertão (...).”
33
Condicionado por fatores coevos,
Capistrano de Abreu inicia o seu capítulo sertanejo pela capitania de São Vicente:
“O estabelecimento de Piratininga, desde a era de 530, na borda do campo,
significa uma vitória ganha sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o
esforço de várias gerações. Deste avanço procede o desenvolvimento peculiar
de São Paulo.”
34
A história da vila de São Paulo de Piratininga demonstrava a vitória do homem
sobre o meio, da civilização sobre a natureza, mesmo que essa vitória tenha sido
resultado de inúmeras atrocidades cometidas pelos paulistas Após narrá-las, o historiador
cearense deixa em aberto a pergunta: “Compensará tais horrores a consideração de que
por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?”
35
O juízo não
interessava ao historiador, somente os fatos.
Em relação à expansão do território protonacional, segundo sua concepção,
Capistrano de Abreu trata ainda da difícil conquista do Maranhão, da penetração no
Amazonas, da criação de gado e da descoberta das minas de ouro. Todos esses fatores
“influíram consideravelmente na psicologia dos colonos (...) [que] não podiam mais se
reputar inferiores aos nascidos no além-mar.”
36
Portanto, a importância dos sertões na
história brasileira foi a de ter ensejado a percepção da diferença entre brasileiros e
portugueses, alteridade hierarquizada de forma que aqueles passaram a ocupar posição
proeminente em relação a estes. O surgimento de um espírito nativista no Setecentos
prenunciava os acontecimentos do século XIX – ponto de chegada do processo iniciado
em 1500 e, claro, objeto de análise do último capítulo da obra.
33
ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial, p. 141.
34
Idem, ibidem (grifo nosso).
35
Idem, p. 146.
36
Idem, p. 191.
Uma história de “contornos esfumados”
62
1.2 A construção do cânone de Capistrano de Abreu
Posteriormente à publicação de Capítulos de História Colonial, Capistrano
dedicou-se aos estudos acerca da lingüística indígena.
37
Desejava ainda terminar a
anotação dos outros dois volumes de Varnhagen e publicar uma edição crítica e sem
lacunas da obra de frei Vicente do Salvador. Na sua correspondência, as menções ao
franciscano apenas rivalizam em número com aquelas ao Visconde de Porto Seguro. De
modo geral, Capistrano utiliza a narrativa seiscentista como lastro de suas informações
ou, com maior freqüência, solicita que sejam procurados os códices completos nos
arquivos portugueses.
Entre os destinatários dessas solicitações, destacam-se o Barão do Rio Branco;
Guilherme Studart, seu conterrâneo e amigo desde os tempos de colégio; e João Lúcio de
Azevedo, historiador português, estudioso do Padre Antônio Vieira, com quem trocou
inúmeras cartas, de 1917 ao ano de sua morte.
38
A sua rede de relações profissionais
completava-se com José Veríssimo e alguns jovens que recebiam as suas orientações.
Entre eles Pandiá Calógeras, Mário de Alencar, Afonso Escragnole Taunay, Paulo Prado
e Rodolfo Garcia. A este coube o seu espólio intelectual, formado sobretudo pelas
anotações a Varnhagen e frei Vicente do Salvador.
A ânsia documental do historiador cearense não cessou de aumentar. Pouco tempo
antes de morrer, publicou em O Jornal o artigo intitulado A obra de Anchieta no Brasil,
no qual proclamou: “Reunir suas cartas, seus escritos vários, em prosa e verso, é uma
dívida que não admite mais moratória.”
39
O trecho acima foi igualmente citado por Afrânio Peixoto na nota preliminar do
livro que reúne as cartas de José de Anchieta, conferindo a Capistrano de Abreu o epíteto
37
Ver: ABREU, Capistrano de. Rã-txa hu-ni-ku-i. A língua dos Caxinauás do Rio Ibuaçu. A obra, cujo
título significa “falar de gente verdadeira”, trata da gramática e vocabulário de um grupo indígena do Acre.
Capistrano discorre ainda sobre alimentação, vida sexual, crenças e feitiçarias dos Caxinauás.
38
A lista de destinatários mais destacados se completa com Lino Assunção, cujas cartas não foram reunidas
no volume publicado por José Honório Rodrigues em 1953, pois já havia sido publicada anteriormente, e
Oliveira Lima, não autorizadas pelo diretor da Lima Library, na Universidade Católica de Washington.
Lino Assunção teve um papel importante na publicação da História de frei Vicente do Salvador. Saldanha
da Gama, então diretor da Biblioteca Nacional, relutava em publicar o códice. Então, Capistrano de Abreu
e Vale Cabral solicitaram a Lino uma cópia na Torre do Tombo, publicando os dois primeiros livros no
Diário Oficial.
39
ABREU, Capistrano de. A obra de Anchieta no Brasil, p. 27. In ANCHIETA, José de. Cartas:
informações, fragmentos históricos e sermões.
Uma história de “contornos esfumados”
63
de “o Mestre”, então comum a todos que se dedicavam ao estudo da história brasileira.
Paulo Prado, por exemplo, apenas após a leitura dos Capítulos teve despertado o seu
interesse histórico. Taunay seguiu fielmente os passos do historiador cearense,
publicando documentos espanhóis do Archivo General de Indias de Sevilla em alguns
volumes dos Anais do Museu Paulista. Ademais, elaborou a História seiscentista da villa
de São Paulo, em quatro volumes saídos de 1926 a 1929, e a monumental História geral
das bandeiras paulistas, cujos onze volumes foram publicados entre 1924 e 1950.
40
Rodolfo Garcia (1873-1949) – “o mais fiel e digno sucessor da obra de Capistrano
de Abreu”
41
– realizou a anotação dos outros dois volumes de Varnhagen, pois o
“Mestre” desistiu da tarefa em função do incêndio na Companhia Tipográfica do Brasil,
que destruíra a edição que estava no prelo. De fato, inversamente ao que sucedeu com os
estudos sobre frei Vicente, a introdução de Capistrano à obra mor do Visconde de Porto
Seguro foi suprimida a partir da quarta edição, permanecendo apenas as suas notas.
O tratamento dispensado à obra do frade baiano, porém, exigiu dedicação intensa
durante anos, conforme pode ser verificado na sua correspondência. Em carta a Assis
Brasil de 1897, solicita ao amigo que verifique se o códice – com que Varnhagen se
deparou na Biblioteca da Ajuda e nunca mais reviu – teria reaparecido e “se nele estão os
capítulos que faltam. Se isto suceder (nem quero pensar nisto, pois teria um ataque de
alegria), ficar-lhe-ia muito obrigado se V. me obtivesse cópia, o mais depressa
possível.”
42
A João Lúcio de Azevedo pergunta sobre a existência de notícias da matrícula de
Vicente Rodrigues Palha na Universidade de Coimbra, informa sobre o seu trabalho na
edição crítica – “Meu empenho principal é procurar as fontes”
43
– e, por fim, envia ao
historiador português o volume 13 dos Anais da Biblioteca Nacional: “Tenho certeza de
40
A obra monumental foi sintetizada na História das bandeiras paulistas, em dois volumes publicados em
1951 pela edições Melhoramentos de São Paulo. A brasiliana da Melhoramentos, que incorporou a
Weiszflog irmãos e seus títulos, era composta pela História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, História
Geral de Varnhagen, Cultura e Opulência de Antonil – obras tributárias do trabalho de Capistrano de
Abreu. Ademais, a Cia. Melhoramentos publicou a obra de Oliveira Lima.
41
RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, v. I, p. XX.
42
Idem, p. 85.
43
Idem, v. II, p. 77.
Uma história de “contornos esfumados”
64
que a leitura da História do Brasil o incluirá no mesmo empenho de ver a obra
completa.”
44
Apesar dos seus incessantes esforços e diversos pedidos, a edição de 1918 saiu
mesmo incompleta. Capistrano substituiu a sua primeira introdução pelos prolegômenos
que antecedem cada um dos cinco livros que compõem a obra do franciscano, além de
uma breve nota preliminar. Em carta de 1919 a Miguel Arrojado Lisboa, engenheiro de
minas, defendeu a importância de se ler o frade baiano, mas não os seus prolegômenos,
“que só interessam a especialistas.”
45
Este é justamente o ponto nodal deste capítulo, pois
o tratamento conferido à História do Brasil foi não apenas considerado exemplar como
definitivo pelos “especialistas”. Esta parece ser não só a opinião de Rodolfo Garcia, que
preparou a terceira edição do livro, publicada em 1931 – que manteve os prolegômenos e
as anotações de Capistrano – como também a de José Honório Rodrigues e, mais
recentemente, Francisco Iglésias.
José Honório foi um dos pioneiros no estudo da historiografia brasileira na década
de 1950, lançando A pesquisa histórica no Brasil. Sua evolução e problemas atuais.
46
Afirma que o historiador cearense “conhecia como ninguém as deficiências e
necessidades de nossa historiografia: sabia que pouco se poderia fazer enquanto novas
fontes não fossem dominadas e divulgadas.”
47
Das pesquisas de Capistrano de Abreu,
segundo Rodrigues, surgiram “edições exemplares.”
48
E conclui:
“Só as Cartas Jesuíticas, as Confissões e Denunciações e os textos de Cardim,
Frei Vicente e os Diálogos bastariam para consagrar a sua inesgotável
capacidade de pesquisar e oferecer textos limpos que reformavam velhos erros
ou conceitos.”
49
44
RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, v. II, p. 32
45
Idem, v. I, p. 442.
46
RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. A primeira edição é de 1952, porém, utilizo
a de 1982. O autor já havia lançado outros livros, entre eles Teoria da História do Brasil, em 1949.
47
Idem, p. 95. Em 1953, o IHGB, em comemoração ao centenário de nascimento do historiador cearense,
realizou uma série de conferências, intituladas Curso Capistrano de Abreu. Entre os conferencistas estavam
Afonso Taunay, Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso, além do próprio Rodrigues. Os respectivos
artigos foram reunidos no número 221 da Revista do Instituto, p. 44-245.
48
Idem, p. 96.
49
Idem, p. 97 (grifo nosso).
Uma história de “contornos esfumados”
65
A citação acima exemplifica tanto a concepção historiográfica de Rodrigues,
segundo a qual era possível identificar o sentido universal das obras, assim como o seu
juízo acerca do estabelecimento do texto de frei Vicente. Em 1979, na História da
História do Brasil, não emite opiniões divergentes às do historiador cearense.
50
Ao
contrário, participa da mesma leitura, definindo o texto seiscentista como uma primeira
manifestação de
historiador nacional, defendendo que o seu nacionalismo revela-se em
diversas passagens, nas quais, por um lado, louva as excelências do país, e, por outro,
censura a ação dos portugueses. Segundo Rodrigues, a narrativa do franciscano é
saborosa pelas “estórias populares” que quebram a monotonia do enredo:
“Popular porque o povo é o índio, que aparece no texto a todo o momento e
também porque a história dos governadores é também a história dos sacrifícios e
virtudes, dos benefícios e maldades da gente miúda branca, contra a multidão
indígena que começava a avolumar-se.”
51
Em publicação póstuma que reúne escritos sobre a historiografia brasileira,
Francisco Iglésias afirma que a edição de frei Vicente do Salvador – apesar dos textos de
Anchieta, dos Diálogos da Grandeza do Brasil, da identificação da autoria de Cultura e
opulência do Brasil por suas drogas e minas – constitui o trabalho mais importante de
Capistrano de Abreu no gênero, “dando o texto definitivo em 1918, com notas e o
admirável ‘Prolegômenos’.”
52
Iglésias defende ainda que o frade baiano foi, de fato, “o
primeiro censor do português, o primeiro a fazer crítica fundada e direta ao
colonizador.
53
Em sua obra, percebe-se “um ‘nacionalismo’ tímido, mal esboçado e
pouco explícito, mas real do autor.”
54
A aura que envolveu o trabalho de Capistrano também foi reforçada pelos autores
franciscanos, como o frei Venâncio Willecke, que, muito embora tenham realizado
50
RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. Contudo, nessa década,um outro modelo
interpretativo passa a ser adotado pelos historiadores do país. Carlos Guilherme Motta, apesar de não tratar
dos escritores coloniais em seu Ideologia da cultura brasileira, opera a leitura dos textos a partir das
condições sociais que o determinaram.
51
RODRIGUES, José Honório. Idem, p. 491.
52
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil, p. 119.
53
Idem, p. 31.
54
Idem, ibidem (grifo nosso).
Excluído: o
Uma história de “contornos esfumados”
66
excelente trabalho erudito, retificando alguns dados, recaem freqüentemente em
anacronismo em virtude de sua abordagem apologética.
55
Frei Venâncio Willecke organizou a quinta edição da História do Brasil de frei
Vicente do Salvador, comemorativa do IV Centenário de nascimento do autor, corrigida e
aumentada. Na ocasião, inclusive, o frade baiano foi oficialmente homenageado com um
selo comemorativo que lhe conferia o epíteto de “pai da História do Brasil” ou “Heródoto
Brasileiro”. Conquanto tenha mantido “as notas preliminares e os magistrais
prolegômenos”
56
de Capistrano de Abreu, Willecke observou que as edições anteriores
eram oriundas de uma cópia portuguesa “assaz defeituosa até que a quinta edição (...)
obedeceu a um apógrafo mais fiel, que se acha no Arquivo Nacional da Torre do Tombo
de Lisboa.”
57
Assim descreve os manuscritos utilizados, o primeiro intitulado “História
do Brasil”e o segundo “Addições e emendas”:
“O papel do códice 49, de 425 páginas e do tamanho de 410 x 275 mm, remonta
aos fins do século XVII, apresentando o códice a letra do século XVIII, o escudo
nacional no frontispício, o título e o nome do autor rodeado por uma moldura e
as letras capitais, no texto finamente desenhadas e ornamentadas. A
encadernação do códice 49 é da época, em carneira, e com ferragens; enquanto o
códice 24, de 139 páginas e de 300 x 207 mm, apresenta o papel e a letra do
século XVII e a encadernação em pergaminho da época.”
58
O cuidado que parece ter sido devotado à feitura dessa cópia do início do
Setecentos aponta para a permanência da circulação de manuscritos após o advento da
55
Ver ROWËR, frei Basílio. A ordem franciscana no Brasil. Ver ainda os artigos publicados na revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPE): WILLECKE, frei Venâncio. O
padre mestre franciscano, v. XLVII, p. 141-155; MÜLLER, frei Bonifácio; TEVES, frei Matias;
WILLECKE, frei Venâncio. Capítulos da história franciscana em Pernambuco, v. XLVI, p. 249-417.
Todos esses estudos utilizam os cronistas da ordem, sobretudo frei Vicente e frei Jaboatão, como
argumento de autoridade para a exaltação da atividade franciscana de catequese e educação durante o
período colonial. Além dessas atividades, destacam o serviço prestado à pátria, como o combate aos
holandeses.
56
WILLECKE, frei Venâncio. Duas palavras. In SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 25.
57
WILLECKE, frei Venâncio. Os franciscanos na história do Brasil, p. 59.
58
WILLECKE, frei Venâncio. Duas palavras. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 25
(grifo nosso).
Uma história de “contornos esfumados”
67
tipografia.
59
Entretanto, nenhum outro comentador ou analista da História do Brasil de
frei Vicente do Salvador ousou trilhar caminhos diferentes daquele de Capistrano. Em
coro com o historiador cearense, todos afirmaram e lamentaram o esquecimento do livro
até o final do século XIX.
Em que pesem os inegáveis méritos de Capistrano de Abreu, a sua canonização
ainda em vida, decerto – impossibilitou novos juízos em relação à obra do franciscano,
tratada, freqüentemente, como testemunho neutro do século XVII. Esta posição tem a sua
origem nos prolegômenos elaborados para a edição crítica de 1918, cuja concepção
historiográfica não difere da anterior, publicada trinta anos antes pela Biblioteca
Nacional, embora as preocupações com os documentos se façam mais presentes.
60
De modo geral, os prolegômenos acrescentam fontes não conhecidas pelo frade,
cotejam documentos que comprovam ou refutam sua narrativa; comparam o texto à
análise de contemporâneos a fim de chegar à verdade sobre o primeiro século de
colonização portuguesa; fornecem informações adicionais sobre as personagens que
aparecem na História, além de complementarem os capítulos perdidos. Alguns exemplos
talvez possam esclarecer melhor o tratamento dado à obra.
Na intervenção ao livro I, Capistrano de Abreu identifica como fontes a Cronica
de D. João III, de Francisco de Andrade, e a História da Província Santa Cruz, de
Gandavo, afirmando que a experiência de frei Vicente do Salvador dispensou a utilização
de outras autoridades. “São-lhe desconhecidos os documentos originais do período.
Dentre estes cabe o primeiro lugar ao tratado assinado em Tordesilhas a 7 de junho de
1494.”
61
Menciona ainda a carta de Pero Vaz de Caminha, “narrativa incomparável da
viagem de Pedro Álvares Cabral”, conhecida somente a partir de 1817, após a sua
publicação na Corografia do Padre Aires de Casal.
62
O mesmo desejo de preencher as
lacunas deixadas pelo franciscano e atualizar o conhecimento histórico à luz das novas
“descobertas”, leva-o à menção dos estudos sobre as línguas indígenas, desde Martius até
59
Roger Chartier assinala, em diversos estudos, os diferentes usos dos impressos e manuscritos na época
moderna. No séculos XVI e XVII, a imprensa era freqüentemente vista como corruptora dos textos. Nas
colônias, em particular na América, pela ausência de tipografias, a circulação dos manuscritos era ainda
mais recorrente. Este ponto será retomado ao fim do capítulo.
60
SALVADOR, frei Vicente do. São Paulo; Rio de Janeiro: Weiszflog irmãos, 1918.
61
ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro I, p. 49. In SALVADOR, frei Vicente do. História do
Brasil.
62
Idem, p. 50.
Uma história de “contornos esfumados”
68
Edgard Roquette-Pinto, através dos quais “tem-se procurado conhecer as relações entre as
diferentes tribos.”
63
Nos prolegômenos ao segundo livro, alguns procedimentos são repetidos. Desse
modo, o historiador cearense observa que os capítulos 2 e 7 fundam-se em Gandavo e
Pedro Mariz, além de notícias colhidas nas diversas capitanias pelo franciscano.
Acrescenta informações sobre os donatários, colhidas sobretudo em Varnhagen, “que
precisou nossos conhecimentos” em relação ao tema.
64
Os exemplos se repetem e seria fatigante enumerá-los todos aqui. Observe-se
apenas, por fim, a atitude de Capistrano de Abreu frente aos capítulos perdidos do livro
V, que esclareceriam os episódios relativos à expulsão dos franceses e conquista do
Maranhão. Para preencher as lacunas deixadas pelas partes perdidas, listou uma
quantidade enorme de fontes, dividindo-as em três blocos: 1613, 1614 e 1615. Tais
documentos já haviam sido publicados nos Anais históricos do Maranhão, de Berredo; na
separata do volume 26 dos Anais da Biblioteca Nacional, intitulada Documentos para a
história da conquista e colonização da costa leste-oeste do Brasil; ou ainda nos
Documentos para a história do Brasil, especialmente do Ceará, do Barão de Studart.
Em síntese, Capistrano de Abreu, imbuído da concepção cientificista da
disciplina, indag
ou constantemente se a narrativa de frei Vicente relatava “como as coisas
realmente aconteceram”, e buscou suprir suas lacunas. Em relação a Varnhagen, deu-lhe
os louros que merecia, mas cobrou-lhe a falta de rigor em relação ao uso e citação das
fontes. Se, nesse caso, a censura foi justa – afinal o Visconde de Porto Seguro, filho de
uma alemão, escreveu a sua obra algumas décadas após a nomeação de Ranke para a
cátedra de história na Universidade de Berlim – em relação a frei Vicente do Salvador, a
utilização dos critérios oitocentistas são um tanto anacrônicos.
Decerto, ao zelo do historiador cearense escapou a importância da dedicatória de
frei Vicente, quiçá porque a menção às autoridades não era parte integrante dos
acontecimentos narrados. Em sua nota preliminar, Capistrano de Abreu apenas tratou de
Manuel Severim de Faria, menosprezando a menção aos “três historiadores portugueses,
63
ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro I, p. 52. In SALVADOR, Frei Vicente do. História do
Brasil. Roquette-Pinto então acabara de publicar o seu Rondônia, em 1917.
64
ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro II, p. 94. In SALVADOR, Frei Vicente do. História do
Brasil.
Excluído: como uma fonte da
época e
Excluído: , portanto, perguntam-
se constantemente
Excluído: conta
Excluído: ou ainda se a
Uma história de “contornos esfumados”
69
Luís de Camões, João de Barros e Diogo do Couto”
65
– o que remetia, indubitavelmente,
às prescrições retórico-poéticas específicas dos gêneros historiográficos. Ademais, o
franciscano menciona Aristóteles e Santo Agostinho; Plutarco, Ovídio e Homero,
revalorizados e divulgados pelos humanistas europeus. Destarte, é possível identificar na
dedicatória as matrizes letradas que permitem compreender os critérios seiscentistas
utilizados na elaboração da História do Brasil.
O uso de lugares-comuns, por exemplo, era uma técnica recorrente nas práticas de
leitura e escrita da alta Idade Moderna.
66
Segundo Fernando Bouza:
“Una primera forma de realizar la lectura, es decir, de transformar el texto
recréandolo en el momento mismo de leer, tiene que ver con el substrato de
lugares comunes y autoridades que tanto autores como lectores compartían al
estar inmersos en la misma cultura letrada. (...) Esta manera de finalizar el texto
sólo puede ser compreendida se partimos de la mencionada cultura de
autoridades y si reconocemos que en muchos géneros el valor del autor no se
reducía a la innovación sino, por contra, a la recreación de argumentos y
temas perfectamente establecidos y conocidos.”
67
Em busca da originalidade tão valorizada após o Iluminismo, Capistrano de Abreu
lamenta a “impossibilidade de distinguir o próprio do alheio”
68
na obra do franciscano e
assinala que “a comparação do Brasil com uma harpa, a descrição do monstro marinho de
São Vicente, a observação sobre as letras que faltam ao tupi” procedem de Gandavo.
69
Na edição de 1888, a obra do franciscano já havia sido comparada com trechos de Diogo
do Couto e Jerônimo Machado.
70
De fato, esses topoi eram peças primordiais no século
XVII para a criação do verossímil e respectiva persuasão do leitor, alcançada sobretudo
pela noção de testemunho ocular.
65
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 43.
66
Cf. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita, p. 94.
67
BOUZA, Fernando. Comunicación, conocimiento y memoria en la España de los siglos XVI y XVII, p.98
(grifo nosso)
68
ABREU, Capistrano de. Nota preliminar, p.38. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil.
69
Idem. Prolegômenos ao Livro I, p. 49.
70
Michel de Foucault destaca a historicidade da função autor, situando a sua criação no final do século
XVIII e início do XIX, quando se instaurou um regime de propriedade para os textos. Cf. O que é um
autor? Ver ainda o artigo de João Adolfo Hansen, citado nas notas 76 e 77 da Introdução: Autor.
Uma história de “contornos esfumados”
70
Assim, as regras que regiam a cultura letrada durante a “era da eloqüência” –
analisada minuciosamente por Marc Fumaroli
71
– não poderiam ter sido consideradas nos
estudos sobre a obra do frade baiano, realizados no final do século XIX e início do XX.
Isso pode explicar a afirmação de Capistrano de Abreu de que o estilo pouco preocupava
o franciscano: “Pode escrever com elegância e graça, mas em geral desenvolvem-se os
períodos descuidosos, à maneira de contas de rosário debulhadas maquinalmente.”
72
Nada mais típico da concepção oitocentista, que entendia a retórica meramente como
adorno. Inversamente, no Seiscentos, a retórica encontrava-se no cerne dos debates
acerca do conhecimento, no qual a compreensão da forma passava pela analogia com a
essência.
73
Como poderá ser verificado nos próximos capítulos, são diversos os artifícios
retóricos presentes na História do Brasil de frei Vicente do Salvador, que certamente
conheceu os debates coevos na Universidade de Coimbra e mesmo no Colégio Jesuíta da
capital baiana. Desde a dedicatória, observa-se a construção de um lugar humilde para o
narrador:
“Desta maneira, havendo-me Vossa Mercê pedido um tratado das coisas do
Brasil, lhe ofereço dois, leitura que pudera causar fastio, se o diverso método a
não variara e dera apetite; e contudo receio de não satisfazer a curiosidade de
Vossa Mercê, segundo sei que gosta desta iguaria. Donde tomei também motivo
para dedicar a Vossa Mercê, e não a outrem (...).”
74
71
FUMAROLI, Marc. L’age de l’eloquence. Rhéthorique et ‘res literaria’ de la Renaissance au seuil de
l’époque classique.
72
ABREU, Capistrano. Nota preliminar, p. 39. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil. Sérgio
Buarque de Holanda defendeu que o realismo dos cronistas e historiadores portugueses dos séculos XVI e
XVII era fruto de uma mentalidade antiquada, apegada antes ao mundo sensível do que ao conceitual e
experimental. Para demonstrar a sua hipótese, referendou a postura de Capistrano em relação aos estilo de
frei Vicente do Salvador: “O que disse, por exemplo, Capistrano de Abreu do estilo de Frei Vicente do
Salvador, quando compara suas frases a contas do rosário mecanicamente debulhadas, estende-se à
maneira de narrar os fatos própria do frade historiador. ‘Seu livro, afinal’, disse ainda quem mais pelejou
por exumá-lo, ‘é uma coleção de documentos antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do
que História do Brasil.’ ” Visão do Paraíso, p. 316. A citação é oriunda da nota preliminar de Capistrano.
73
“As línguas estão com o mundo numa relação mais de analogia que de significação; ou, antes, seu valor
de signo e sua função de duplicação se sobrepõem; elas dizem o céu e a terra de que são imagem (...)”
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 51.
74
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 44 (grifo nosso). Esta passagem será analisada com mais
precisão no capítulo II.
Uma história de “contornos esfumados”
71
À acusação de laxidão por não ter examinado arquivos e papéis amarelados, como
desejava Capistrano, estimulado pelos pressupostos de aferição estabelecidos a partir dos
estudos de Leopold Von Ranke, contrapõe-se a inexistência, no Seiscentos, de uma rígida
hierarquia entre o que foi lido, escrito ou ouvido. A legitimidade da noção de testemunho
ocular funda-se justamente na indistinção entre “o que se vê e o que se lê, entre o
observado e o relatado.”
75
Os recentes estudos de Fernando Bouza apontam para a ampla utilização política
de textos, vozes e imagens, para diversos fins, assinalando a existência, durante o período
da União Ibérica, de:
“una clara conciencia de que lo oral, lo iconico-visual y lo escrito, tanto en su
versión tipográfica como manuscrita, así como en sus fórmulas de lectura
silenciosa o de lectura en voz alta, cumplían la misma función expressiva,
comunicativa e rememorativa, aunque, claro está, no en las mismas
circunstancias, correspondiendo a las figuras y a los carcateres escritos la
posssibilidad de, además de presentar, re-presentar el comocimiento.”
76
Muito embora frei Vicente do Salvador tenha escrito a sua história durante a
dominação dos Felipes, Capistrano de Abreu nem mesmo menciona o episódio nos seus
prolegômenos. Este talvez seja o mais grave, dentre todos os problemas da leitura
nacionalista dos documentos coloniais. Teria sido o franciscano um brasileiro avant la
lettre, que criticava os portugueses, ou as suas críticas dirigiam-se sobretudo aos
espanhóis?
A questão é irrelevante caso não se considere que, mesmo em Espanha e Portugal,
o conceito de nação, nos séculos XVI e XVII, não era definido de forma precisa, ou no
mínimo, não nos nossos termos. Segundo Ricardo García Cárcel,
“En el Antiguo Régimén puede decirse que fue prioritario el concepto de
jurisdicción. Lo que realmente afectaba al individuo de la época era su
vinculación a una família en un régimen de capitulaciones matrimoniales y
75
FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 54.
76
Idem, p. 31.
Uma história de “contornos esfumados”
72
testamentarias determinado y su condición de sujeto paciente de la jurisdición
eclesiástica o senõrial y de la administración real, de una corona lejana y sólo
visible a través de funcionarios de tercer grado, encargados del cobro de los
impuestos, de la represión del orden público y de la administración de la
justícia.”
77
O conceito de jurisdição pode ser perfeitamente adequado ao estatuto da América
portuguesa no século XVII. Ademais, considerando a formação jurídica de frei Vicente
do Salvador na Universidade de Coimbra e a sua atuação – a de conquistador das almas
, parece muito improvável que entendesse o “Brasil” de forma independente, ou pelo
menos, autônoma em relação ao Império português, entendido em uma perspectiva
sacramental, na qual o rei era a cabeça do corpo místico imperial.
78
Nesse sentido, os
santos assumem um papel de intervenção terrena, protegendo o reino contra seus
adversários, como pode ser verificado nos diversos escritos coevos de autores ibéricos.
A crença portuguesa na intervenção da Virgem e dos santos em seus combates era
tão forte que, em 1705, a pedido do Senado da Câmara, Santo Antônio de Lisboa foi
nomeado tenente-coronel do forte homônimo. Frei Vicente do Salvador, enquanto estava
preso num navio holandês, interpretou da seguinte forma o insucesso dos batavos:
e um dia lhes disse que se desenganassem de poder fazer presa alguma, porque
estava defronte uma fortaleza, mostrando-lhe uma igreja de Nossa Senhora do
Socorro de muitos milagres, a qual defendia todo aquele circuito, do que muito se
riram, mas enfim se tornaram para o porto sem pilhagem alguma.”
79
Os momentos de crise, como os vividos durante a primeira metade do Seiscentos,
quando recrudescia a insegurança frente às investidas dos holandeses, suscitam “um forte
sentimento de solidariedade por parte da família, dos amigos, da comunidade aldeã, dos
77
CÁRCEL, Ricardo García. Catalunã y el concepto de Espanã en los siglos XVI y XVII. In
BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1991.
78
Sobre o tema, ver o estudo clássico de KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do Rei.
79
Salvador, frei Vicente do. Op. Cit, p.373.
Uma história de “contornos esfumados”
73
poderes locais e, sobretudo, do poder central, que via a sua função protectora posta em
causa.”
80
No artigo intitulado A sociogénese do sentimento nacional, Francisco Bethencourt
analisa o sentimento de pertença a uma mesma comunidade histórica em Portugal, isto é,
a emergência de estados de comunhão, ensejados pela “percepção de uma solidariedade
mais ampla do que as solidariedades tradicionais (a família e a aldeia).”
81
O historiador
português assinala a importância da língua comum na geração de um sentimento
gregário, em uma sociedade ainda caracterizada pela fragmentação e forte valorização da
vida local.
Além da língua, das festas e dos momentos de crise, Bethencourt afirma que os
esforços de identificação política das diversas elites sociais portuguesas engendraram
diversas obras, manuscritas ou impressas, sobretudo relativas aos gêneros históricos, que,
a partir de 1580, passaram a legitimar este reino perante Castela, como a Monarquia
Lusitana, de frei Bernardo de Brito; e para as tentativas de síntese, como os Dialogos de
varia historia, de Pedro de Mariz. Esses esforços, segundo o historiador português:
“situam-se num nível de cultura escrita dominante, com um papel decisivo de
modelação da memória, integração das periferias e confirmação dos
sentimentos de pertença, dada a troca desigual de informações entre os diferentes
meios sociais e níveis de cultura. O enraizamento da noção de comunidade
histórica passa, assim, pelo ordenamento erudito da tradição, pelo conhecimento
do território e pelo conhecimento dos homens.”
82
As funções de modelar a memória, integrar as periferias e confirmar os estados de
comunhão, defendida por Bethencourt, podem ser utilizadas para analisar a narrativa de
frei Vicente do Salvador, que insere o tempo brasileiro na cronologia ocidental, mais
especificamente, no tempo da administração ibérica. A escrita então detinha um caráter
colonizador, assim como as imagens e as palavras proferidas em voz alta.
80
BETHENCOURT, Francisco. A sociogénese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo Ramada, Op. Cit., p. 475.
81
Idem, ibidem.
82
Idem, p. 486 (grifo nosso).
Uma história de “contornos esfumados”
74
Por fim, a leitura nacionalista não permite a compreensão da existência de
diversas cópias e versões do manuscrito da História, justamente no momento em que o
Brasil passou a ser a possessão portuguesa de maior importância, ou seja, a partir da
segunda metade do Seiscentos e, sobretudo, do início do Setecentos. Isso reforça a
hipótese de que houve uma circulação manuscrita entre os círculos letrados de Portugal.
A cópia produzida neste período, com o escudo do Império Português – e não da nação
conforme Willecke assinala –, aponta para a utilização da história de frei Vicente do
Salvador pelos responsáveis pelo bom governo da República Cristã.
Em síntese, a interpretação de Capistrano – não colocada à prova pelos seus
sucessores imediatos –, em sua busca pelas origens e identidade nacionais, não podia
considerar o Brasil como parte do Império Católico, no período da União Ibérica, e
tampouco a reunião dos homens em torno de um sentimento comum, que se realizava,
diferentemente das vias decimonônicas, pelas referências cotidianas ao sagrado. É
preciso, assim, problematizar os critérios adotados no século XIX, à luz das questões
historiográficas contemporâneas, para compreender a História do Brasil de frei Vicente
do Salvador não como um testemunho neutro ou segundo critérios de aferição
supostamente científicos, mas a partir dos preceitos retóricos coevos e das tópicas
teológicas, sobretudo as relacionadas ao bom governo do Brasil.
CAPÍTULO II
“Verdade, clareza e juízo”:
as essências da história seiscentista
“O favor ajuda o escritor, alivia-lhe o trabalho,
anima-o e dá-lhe fervor à sua obra; porém o que
agora vemos é que, querendo todos ser
estimados e louvados dos escritores, há mui
poucos que os louvem e estimem, e menos que
lhes façam as despesas. Só temos a V.M. em
Portugal que os estima e favorece tanto como se
vê em sua livraria, que quase toda tem ocupada
de livros históricos, e principalmente no que
fez de louvores dos três historiadores
portugueses, Luís de Camões, João de Barros,
e Diogo do Couto, favor tão grande para
escritores de histórias que se pode dizer, e assim
é, que aos mortos dá vida, ressuscitando a
memória, que já o tempo lhes tinha sepultada e
aos vivos excita, dá ânimo, e fervor, para que
saiam à luz com seus escritos, e folgue cada um
de contar e compor sua história.”
Frei Vicente do Salvador
Assim escreve frei Vicente do Salvador, com o intuito de dedicar a Manuel
Severim de Faria (1583-1655), chantre e cônego da Sé de Évora, a prosa histórica sobre o
Brasil, redigida ao longo da terceira década do Seiscentos. Claramente, as palavras do
frade baiano referem-se às páginas do eclesiástico acerca das vidas dos “três historiadores
portugueses”, inseridas nos Discursos vários políticos, publicados pelo impressor da
Universidade de Évora, Manoel de Carvalho, em 1624.
Manuel Severim de Faria possuía considerável prestígio entre os letrados
ibéricos. Filho de Gaspar Gil Severim, escrivão da Fazenda Real e executor-mor do reino,
e de D. Juliana Faria, tomou posse, em 1608, do canonicato e, em 1609, do chantrado da
“Verdade, clareza e juízo”
77
Sé de Évora, após a renúncia de Baltazar de Faria Severim, seu tio, que se recolheu ao
Convento dos Cartuxos da cidade.
1
Mestre em Artes e Doutor em Teologia e Filosofia
pela Universidade Jesuítica, continuou os seus estudos eruditos e passou a reunir, como
parte de seus interesses antiquários, livros e documentos manuscritos que compuseram
excelente “livraria”, aberta aos que desejassem consultá-la.
A estima obtida pelo doutíssimo antiquário levou diversos outros escritores
coevos a mencionarem-no elogiosamente, entre eles Lope de Vega e Manuel de Faria e
Sousa, célebres na corte de Madri. A sua erudição, colocada a serviço do rei e da pátria,
também foi destacada pelos freis Bernardo de Brito, Antônio Brandão e Francisco
Brandão nos sucessivos volumes da Monarquia Lusitana.
2
Além dos contatos na Europa,
Manuel Severim de Faria organizou em torno de si uma rede de correspondentes que
enviavam informações da África, América e do Oriente. Os contatos epistolares com os
missionários que partiam para o Ultramar foram mantidos com seu irmão, Cristóvão
Severim ou frei Cristóvão de Lisboa, primeiro Custódio franciscano no Maranhão, a
partir de 1624. Além dos poderes recebidos no reino do Santo Ofício, o frade recebeu do
administrador de Pernambuco, Bartolomeu Ferreira, os de vigário-geral e provisor. Frei
Vicente do Salvador narrou as ações pias do “nosso irmão Frei Cristóvão Severim”:
“Nem trabalhou menos o padre custódio em o edifício espiritual das almas,
que em a visita achou estragadas, e em a conversão dos índios. O mesmo fez no
Pará, onde reduziu à paz dos portugueses os gentios tocantins, que,
escandalizados de agravos que lhe haviam feito, estavam quase rebelados, e
levou consigo os filhos dos principais pera os doutrinar e domesticar, proibiu
com a excomunhão venderem-se os índios forros, como faziam, dizendo que só
lhe vendiam o serviço.
Queimou muitos livros que achou dos franceses hereges e muitas cartas de
tocar e orações supersticiosas de que muitos usavam, apartou os amancebados
das concubinas, e fez outras muitas obras do serviço do Nosso Senhor e bem das
1
Sobre a nobre família Faria, ver: ZÚQUETE, Afonso Eduardo Martins. Armorial lusitano: genealogia e
heráldica. O próprio Severim de Faria escreveu o Tratado da família dos Farias. Para mais informações
sobre os postos ocupados e os escritos de Manuel Severim de Faria ver a introdução aos Discursos Vários
Políticos, de VIEIRA, Maria Leonor Soares Albergaria.
2
Maria Leonor Soares Albergaria Vieira compilou algumas referências elogiosas a Severim de Faria.
Discursos vários políticos, p. XII-XVIII, nota 11.
“Verdade, clareza e juízo”
78
almas, não sem muito trabalho e perseguições, que por isto padeceu, sabendo que
são bem aventurados os que padecem pela justiça.”
3
Enquanto o chantre de Évora apoiava as atividades de diversos escritores
católicos, franqueando-lhes o acesso aos seus livros e manuscritos, o franciscano lisboeta
destruía a produção herege que chegara indevidamente à América Portuguesa. Entre as
penas apoiadas pelo antiquário, estava a de Vicente do Salvador, que o havia conhecido
na ocasião de sua segunda viagem a Portugal, realizada após ter ocupado o posto de
Custódio da Ordem de São Francisco no Brasil, entre 1614 e 1617. Ao reino, levou
consigo a Crônica da Custódia do Brasil, que, posteriormente, desapareceria sem deixar
vestígios.
4
Em 1619, Manuel Severim de Faria encomendou-lhe “um tratado das coisas do
Brasil” e prometeu “tomar a impressão à sua custa”.
5
Nesse mesmo ano, Filipe II de
Portugal, III de Espanha (1598 – 1621) visitava o reino e entrava em Lisboa com
magnífico aparato, “similar na sua disposição e nos seus conteúdos ao que tinha sido
realizado por seu pai em 1581.”
6
Desde 1583, com o regresso de Filipe II a Castela,
Lisboa ficou sem a assistência régia e perdeu a sua condição de capital. À época, a
escolha por Madri não era definitiva, considerando que Toledo havia abrigado a corte
espanhola até 1561 e Valladolid entre 1600 e 1606.
Os portugueses, de fato, esperavam pela visita régia desde a coroação do novo rei,
sucessivamente adiada. Segundo Fernando Bouza, a visita ao reino português “tinha a
finalidade de fazer jurar o príncipe herdeiro perante os Três Estados, e que acabou por ser
sempre retardada pelo Duque de Lerma. Este, não desejando convocar Cortes, preferia
tratar dos assuntos do reino em juntas particulares (...).”
7
3
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 377 (grifo nosso).
4
Essa crônica foi primeiramente utilizada por Frei Manuel da Ilha, que, em 1621, escreveu um suplemento
em latim sobre a Custódia de Santo Antônio, tratando também dos missionários anteriores, desde frei
Henrique de Coimbra. O livro do Insulano foi editado em 1975, em uma edição bilíngüe, latina e
portuguesa, pela Editora Vozes. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão cita a existência da crônica de frei
Vicente, não obstante afirme desconhecer o seu paradeiro
.
5
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 44.
6
ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes, p. 91.
7
Idem, p. 191.
“Verdade, clareza e juízo”
79
As cidades portuguesas dividiram o “serviço dos trezentos e setenta mil cruzados
que tinham sido pedidos como condição para a realização da viagem.”
8
Apesar de
brevíssima, a visita propiciou, por um lado, encômios e festas ao monarca, mas por outro,
o recrudescimento do debate sobre a redução de Portugal a uma mera Província de
Castela e os males causados pela ausência do rei às possessões portuguesas. Entre os
debatedores, destacou-se o doutíssimo antiquário Manuel Severim de Faria, que, em um
de seus discursos políticos, defendeu a assistência régia na cabeça do reino lusitano:
“(...) em quanto os Reis residiram em Lisboa, sabemos que além das grandes
frotas, que mandavam pera as suas conquistas, todos os anos saíam deste reino
três armadas, uã que andava em guarda da costa dele, outras nas ilhas, e a terceira
no estreito, com as quais conservaram seus estados de maneira, que nunca em
seu tempo chegou inimigo algum a roubar lugar da costa de Portugal, (...). Porém
depois que sua Majestade se ausentou, começou logo a ausência a fazer seus
efeitos, de modo que em poucos anos cessaram todas as armadas, e achando os
inimigos o mar desamparado delas, roubaram as frotas do Brasil, e de Guiné e
muitas naus da Índia, e saquearam toda a costa do Brasil, Ilhas do Cabo Verde,
e dos Açores, e nos tomaram as Molucas, e finalmente entraram no mesmo reino,
onde destruíram Faro e toda a costa do Algarve, e cercaram Lisboa passeando
muitas léguas com um exército per Portugal, o que tudo aconteceu por os Reis
estarem no sertão, e com a sua ausência faltarem as armadas, que defendessem as
costas do Reino, e as frotas que vêm de suas conquistas.”
9
Frei Vicente do Salvador certamente entrou em contato com os debates que
estavam em curso, tanto em Lisboa como em Évora, onde consultou a famosa biblioteca
de Manuel Severim de Faria. Em 1620, o frade retornou à Bahia, pois havia sido eleito
novamente guardião do convento de Salvador. Contudo, renunciou à função, que voltaria
a ocupar em 1630, quando a História do Brasil já estava concluída.
O livro foi dedicado ao licenciado Manuel Severim de Faria, que o encomendou.
Na dedicatória, além de Barros, Camões e Diogo do Couto, são mencionados Aristóteles,
Homero, Plutarco, Diodoro Sículo e Santo Agostinho. Mais do que um simples galanteio
8
ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes, p. 191.
9
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 11-12 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
80
cortesão, inserido na economia das mercês, as dedicatórias e os prólogos dos papéis
históricos seiscentistas remetem o leitor aos preceitos que governavam o bom uso desses
gêneros e, de forma subjacente, ao conceito de história partilhado entre os letrados
ibéricos no século XVII. Se a História do Brasil direcionava-se, de forma geral, aos
discretos letrados portugueses, o antiquário de Évora certamente figurava como seu
primeiro leitor.
Em referência à precípua autoridade aristotélica, as primeiras linhas expõem o
motivo que teve o Filósofo para “escrever livros históricos e morais, quais as suas Éticas
e Políticas e a História de animais, além de lho mandar o grande Alexandre e lhe fazer as
despesas(...).”
10
Afirma que o imperador da Macedônia tanto estimava o livro de
Homero que “o fechava em escritório guarnecido de ouro e pedras preciosas, melhor peça
que lhe coube dos despojos de Dário, ficando-lhe na mão a chave que ninguém a fiava.”
11
A passagem, de Plutarco, permite a vinculação dos gêneros historiográficos à Ética e à
Política de Aristóteles – alicerces da eloqüência e da teologia da escolástica no século
XVII. Em seguida, o franciscano dá razão a Alexandre, pois, de acordo com Túlio:
“(...) os livros históricos são luz da verdade, vida da memória, e mestres da
vida; e Diodoro Sículo diz in proemio sui operis que estes igualam os mancebos
na prudência aos velhos, porque a que os velhos alcançam com larga vida e
muitos discursos, podem os mancebos alcançar em poucas horas de lição,
assentados em suas casas.”
12
A prudência – cabe ratificar – era uma das principais virtudes do cortesão.
Associada diretamente à memória, ela permitia aos homens aprender com os exemplos do
passado e calcular as suas atitudes presentes. Assim, o homem político seiscentista,
ocupante de postos importantes no império, percebe os gêneros históricos como
instrumento auxiliar do bom governo. Nas palavras de frei Vicente, ressuscitar a memória
dos mortos, pela escrita, dava ânimo e fervor aos vivos. A história, à luz da razão de
estado católica, visava o bem comum da república, pois constituía uma prosa de
10
SALVADOR, Frei Vicente do. Op. Cit., p. 43.
11
Idem, ibidem.
12
Idem, ibidem (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
81
aconselhamento aos responsáveis pela condução dos seus negócios. Ademais, o
reconhecimento de bons serviços prestados ao rei, mesmo nas possessões ultramarinas,
possibilitava o acesso a outros postos hierarquicamente mais nobres e garantia lugares de
prestígio àqueles de sua Casa.
A Dedicatória segue conforme os preceitos retóricos adequados. Após informar
que incitou um amigo a compor a mesma história em verso, o franciscano lança mão do
genus humile, essencial para captar a benevolência dos leitores, e da idéia aristotélica
segundo a qual os discursos devem deleitar para persuadir. À escrita, portanto, cabia ser o
antídoto do tédio, resultado atingido pelo uso conveniente de tropos e figuras:
“Desta maneira, havendo-me Vossa Mercê pedido um tratado das coisas do
Brasil, lhe ofereço dois, leitura que pudera causar fastio, se o diverso método a
não variara e dera apetite; e contudo receio de não satisfazer a curiosidade de
Vossa Mercê, segundo sei que gosta desta iguaria.”
13
Após a metáfora, frei Vicente traça uma analogia com a passagem bíblica na qual
Jacó oferece ao pai, Isaac, uma iguaria de que gostava e, assim, alcança a sua benção:
“Bem enxergou o santo velho, ainda que cego, que Jacó o enganava, pois o
conheceu pela voz: vere quidem vox Jacob est; mas, levado do gosto da iguaria a
que era afeiçoado, depois da inspiração do céu lhe concedeu a benção. Esta peço
eu a Vossa Mercê, e com ela não tenho que temer a maldizentes.”
14
Por fim, faz uso de um hipérbato e encerra o trecho com um lugar comum
encomiástico no mundo católico: “Nosso Senhor vida, saúde e estado conserve e aumente
a Vossa Mercê, como os seus lhe desejamos.”
15
A saúde e a conservação dos estados
eram duas tópicas recorrentes entre os teólogos da Segunda Escolástica, cuja perspectiva
confessional forneceu as bases à sobrenaturalização da Monarquia Cristã, instrumento da
Providência Divina. Esse emprego mundano da figura sacramental supõe uma relação
13
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 44 (grifo nosso).
14
Idem, ibidem.
15
Idem, p. 45.
“Verdade, clareza e juízo”
82
análoga entre os homens e seu criador. Assim, a conservação e aumento dos estados –
reciclados e utilizados engenhosamente em louvor a Severim de Faria – são partes da
ordem natural instituída pelo Criador.
“Nessa sua orientação natural para o fim que forneceu a razão de sua Criação, o
mundo encontraria a sua ‘estabilidade fundamental’. E é preciso lembrar que,
nessa perspectiva, tal orientação se compõe com o voluntário do arbítrio, cuja
escolha concorre precisamente para a ordem realizada já na mente de Deus, em
que não há tempo, mas eternidade.”
16
Segundo Alcir Pécora, o modo sacramental de conceber o mundo incorpora três
instâncias principais de sua projeção: a idéia de que Deus se sinaliza no mundo, o que
permite ver a natureza e a história como depósitos de pistas deixadas aos homens; o lugar
privilegiado dos mistérios litúrgicos; e, por fim, “a instituição da figura pessoal de um
eleito, de um favorito da Providência, destinado a ter uma atuação decisiva no desfecho
da história humana.”
17
As prosas históricas seiscentistas, portanto, submetiam os acontecimentos
mundanos à hermenêutica cristã e desvelavam o seu sentido sobrenatural. Como magistra
vitae, a narrativa historiográfica fornecia exemplos de homens pios que participavam, por
meio do arbítrio, da ordem desejada e planejada pelo Criador. Assim, se o Estado
Católico era um dos instrumentos da Divina Providência, o serviço prestado ao Rei era
também uma contribuição para que o mundo atingisse o seu telos. Pécora assinala a
articulação entre Providência Divina e Livre Arbítrio, pedra fundamental do edifício
teológico construído em oposição às heresias luteranas:
“Não, claro, que a Vontade [divina] não possa afirmar-se por si mesma, mas
apenas que, nesse caso, os homens teriam falhado em responder ao mais
generoso chamamento do Ser às suas criaturas: o de fazê-las co-autoras do
16
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 148 (grifo nosso).
17
Idem, p. 140.
“Verdade, clareza e juízo”
83
estabelecimento de uma ordem em que o humano, sem deixar de o ser, participa
estreitamente, em cada ato voluntário seu, da suprema virtude do Que É.”
18
Essa concepção escatológica explicita-se no terceiro livro da História do Brasil,
no qual, após discorrer sobre as dificuldades vicissitudes da viagem de Jorge de
Albuquerque a Portugal, frei Vicente do Salvador roga “aos que lerem este capítulo que
dêem ao Senhor as mesmas graças e louvores e tenham sempre em ele firme esperança,
que os pode livrar de todos os perigos.”
19
A intenção do capítulo pode ser estendida aos
demais livros escritos pelo franciscano: interpretar os sinais de Deus no mundo e
defender, com base nos acontecimentos sucedidos no Brasil, que os portugueses
contavam com a proteção divina para realizarem os desígnios do Senhor.
A sua prosa historiográfica fornecia ainda exemplos de bom governo no Brasil e,
desse modo, reafirmava a legitimidade e justiça da colonização católica nessas partes.
Legítima porque justa e católica, pois, o argumento central desenvolvido pelos lusitanos
fundamentava-se na conversão do gentio e na salvação de suas almas. Como católicos, os
indígenas poderiam então ser considerados súditos do rei de Portugal. Todavia, quando
trata das discórdias entre as autoridades, do cativeiro injusto dos indígenas, ou mesmo
quando critica a fixação meramente litorânea do Brasil, frei Vicente do Salvador pretende
denunciar os obstáculos à realização dos desígnios divinos.
Os preceitos retórico-poéticos que presidem a ars historica no século XVII
podem ser identificados quando frei Vicente do Salvador menciona as vidas dos “três
historiadores portugueses”, escritas pelo antiquário de Évora. Em Os Lusíadas e nas
Décadas, livros exemplares, Severim de Faria encontrou excelentes usos dos seus
respectivos gêneros, conforme a preceptiva aristótelico-horaciana em voga no Seiscentos
ibérico.
Os Discursos vários políticos, portanto, constituem um meta-texto da dedicatória.
No livro, as vidas de Barros, Camões e Couto estão dispostas entre discursos que tratam
de práticas cortesãs – como no terceiro em que discorre sobre a caça – e de questões
relacionadas ao exercício político durante a União Ibérica. A preocupação com o novo
estatuto lusitano manifesta-se no Discurso Segundo, uma defesa da perfeição da língua
18
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 246
19
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 165.
“Verdade, clareza e juízo”
84
portuguesa, “uã das melhores do mundo” por ser mais chegada ao latim, corrompido por
vários modos em Itália, França e Espanha.
20
As questões relativas ao governo político da Monarquia Hispânica também são
tratadas no Discurso Primeiro, no qual advoga a transferência do rei e de sua corte para
Lisboa. A unidade do império espanhol, em virtude de sua abrangência, necessitava de
um centro marítimo que possibilitasse um contato mais eficiente entre a sua cabeça e o
seu corpo:
“(...) claro fica que a nenhum Príncipe importa tanto o poder do mar, como ao de
Espanha, pois só pelo meio das forças marítimas faz um corpo unido de tantas, e
tão distantes Províncias, como são as de sua Coroa, socorrendo-as a tempo, e
recebendo delas com segurança os imensos tesouros com que a enriquecem, os
quais não sendo os Espanhóis senhores do mar, ficam sujeitos a serem roubados
de seus inimigos.”
21
O primeiro procedimento para assegurar o senhorio dos mares, portanto, seria a
transferência do rei do sertão a um lugar marítimo, ou seja, de Madri a Lisboa. Segundo
Manuel Severim de Faria, era necessário considerar que “a Monarquia de Espanha, não
consta só de Espanha, mas de todas as Províncias de suas conquistas e que para estas não
fica Madrid no meio, mas muito desviado.”
22
Em seguida, refuta argumentos favoráveis à
cidade hispânica e fornece diversas razões à escolha de Lisboa. Resume, pois, o remédio
indicado à saúde dos reinos e à perpetuidade do império:
“Visto temos com evidência, como a conservação, e aumento da Monarquia
de Espanha consiste em forças marítimas, e que estas as não pode sua Majestade
ter sem assistir em porto de mar, e que em todos os de Espanha Lisboa é o
melhor, por ser situado no coração de seus estados, ser mais capaz, e mais seguro
porto, ter maior cópias de materiais pera armadas, e ser mais abundante, e
20
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 80.
21
Idem, p. 10.
22
Idem, p.13.
“Verdade, clareza e juízo”
85
provida de mantimentos e mais acomodada pera a defensão de seus estados, e
finalmente por ter os melhores ares, e recreações de todas.”
23
Além do fortalecimento imperial – “servindo de instrumento da glória de Deus, e
salvação das almas”
24
–, com a transferência da corte para Lisboa, teriam fim “as
prolongadas guerras de Flandres, as quais sustentam os rebeldes só com o poder do mar
(...).”
25
O alvitre visava ao bem comum, em prol de todos os súditos e não apenas dos
portugueses.
As vidas desempenham um papel análogo aos discursos políticos que as
acompanham. A reminiscência desses três escritores – textos que não devem ser
confundidos com biografias românticas – fornece exemplos de súditos pios, que
colocaram as suas penas a serviço de Deus e do rei. Ao contrário da milícia, onde muitos
trabalham pela conservação de um só Príncipe,
“na escritura um só trabalha pela conservação de todos, e faz com ela viver na
lembrança dos homens, aqueles, que pela pátria entregaram liberalmente as
vidas, e conservando a memória das cousas passadas, dá regra para acertar nas
futuras.”
26
Esses argumentos sobre o lugar dos escritores na república iniciam a Vida de João
de Barros, na qual Manuel Severim de Faria também expõe minuciosamente as regras
que constituem a ars historica na alta Idade Moderna.
2.1 João de Barros: a celebração imperial
O fidalgo João de Barros (c.1496-1570) ocupou importantes postos nas cortes de
D. Manuel e D. João III, culminando com o de feitor das Casas da Índia e Mina a partir
de 1533, o que lhe permitiu o acesso a informações privilegiadas da empresa ultramarina.
Em 1535, o rei de Portugal lhe doou a capitania do Maranhão. Muito embora não tenha
23
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p.25.
24
Idem, p.26.
25
Idem, ibidem.
26
Idem, p. 30.
“Verdade, clareza e juízo”
86
logrado êxito na empresa americana, a trajetória do fidalgo foi coroada pelos serviços
prestados na seara das letras, “trabalhando ele toda a vida por ilustrar a pátria, e deixar
de seus naturais gloriosa memória.”
27
O projeto original de Barros era amplo e ultrapassava a narração dos feitos
portugueses na Ásia, abrangendo a saga lusa nos quatro continentes, desde a época dos
romanos, passando pela tomada de Ceuta e o descobrimento do Brasil.
A Primeira Década da Ásia foi publicada em 1552. O seu estilo emulava a
história de Roma escrita por Tito Lívio, que compreendia 142 livros divididos em
décadas. Lívio desfrutava de imenso prestígio entre os letrados quinhentistas. Erasmo de
Rotterdan, cujas idéias de fé culta tiveram grande repercussão em Portugal até meados do
século XVI, recomendava a sua leitura aos seus discípulos.
28
“Erasmo acreditava que os
princípios do Cristianismo se situavam num plano ético mais elevado do que os
ensinamentos dos antigos filósofos, mas julgava que o estudo dos antigos autores pagãos
conduzia a uma compreensão mais profunda das doutrinas cristãs.”
29
Valorizado pela eloqüência de sua obra e pelas máximas morais, o historiador
romano escreveu sobre a ordenação da República e as virtudes necessárias à formação do
Império. A matéria não passou despercebida a Maquiavel, que, entre 1513 e 1517,
escreveu os Discorsi – comentários acerca da primeira década de Tito Lívio com o
objetivo de, com base nos exemplos da Antigüidade, “ordenar uma república, manter um
Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra ou de distribuir a
justiça aos cidadãos.”
30
O prólogo da Primeira Década da Ásia, dedicada ao muito poderoso e
cristianíssimo D. João III, inscreve a obra do português em um funcionamento diverso
daquele proposto pelo florentino às cidades italianas, mais precisamente, entre os
discursos letrados ibéricos caracterizados pela razão de estado antimaquiavélica. Ao
longo do prólogo, João de Barros discorre sobre as diferenças entre as cousas da natureza,
que se renovam de modo cíclico, e os atos humanos, cujo caráter breve e finito fez com
27
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 30.
28
Cf. BURKE, Peter. Da popularidade dos historiadores antigos: 1450-1700 “Lívio foi encarado como
conselheiro político, e isto porque a linha divisória entre a moral e a política parecia ser, neste período,
difícil de traçar, tal como tinha acontecido na Antigüidade Clássica.” In O mundo como teatro, p. 186
29
HIRSH, Elisabeth Feist. Damião de Góis, p. 6
30
MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, p.17.
“Verdade, clareza e juízo”
87
que buscassem um “divino artificio, que representásse em futuro, o que elles obrávam em
presente.”
31
A escrita, desse modo, teria a função de “guardar em futuro nóssas óbras
pera com ella aproveitarmos em bom exemplo (...) pera cõmu e temporal proveito de
nóssos naturaes.”
32
Os quatro primeiros livros acerca dos feitos que os Portugueses fizeram no
descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente tratam desde a conquista da
Espanha pelos Árabes e a transformação de Portugal em reino, até o descobrimento da
Índia por Vasco da Gama. A origem portuguesa, segundo João de Barros, teve início com
o dote concedido por D. Henrique a D. Afonso Henriques, na ocasião de seu casamento
com Dona Tereza. O dote consistia em:
“todalas terras q naquelle tempo eram tomadas aos mouros nesta parte da
Lusitania que ora e reyno de Portugal cõ todalas mais que elle podesse conquistar
delles. Em q entraram alguas de Andalusia, porque em todas estas elle e seu filho
el rey dom Afonso Anrriquez verterã seu sangue por as ganhar das mãos e poder
dos mouros.”
33
O compromisso assumido por D. Afonso Henriques na gênese do Reino, de ter
sempre “continua guerra com esta perfida gente dos Arabios”, foi passado aos seus
herdeiros, os quais deveriam permanecer em contínua guerra contra os infiéis. A
lembrança do ato fundador assume então um significado importante diante dos obstáculos
erigidos por mouros e gentios nas partes orientais, matéria de diversos capítulos da Ásia,
entre eles o segundo do nono livro:
“Posto que nesse passado capitulo dissemos que toda a térra de Ásia era habitáda
destas quatro nações de gente, Christãos, Judeus, Mouros e Gentios: as primeiras
duas podemos dizer que naquellas partes sam mais cativos que livres, pois por
razam de sua habitaçam sam subdictos dos mouros ou gentios q ocupam toda
aquella terra (...)”
34
31
BARROS, João de. Ásia. Primeira Década, p. 1.
32
Idem, p. 2.
33
Idem, p. 8.
34
Idem., p. 347.
“Verdade, clareza e juízo”
88
A missão apostólica do reino de Portugal vinculava-se à própria noção de
império. Segundo Barros, os portugueses sempre trabalharam por merecer, perante Deus,
o título de servos fiéis, espalhando a verdadeira fé pelo mundo:
“Finalmente per excelencia assy como Christo Jesu cõparou a multiplicaçam
do evãgelho ao espirito do grão da mostarda em respecto das outras sementes:
assy em comparaçã da grãdeza q outros reynos desta Európa tem em térra e povo,
bem podemos na virtude da multiplicaçam e fectos illustres em acrescetamento
da igreja e louvor de sua propria coróa, cõparar este reyno a hu grão de mostarda,
o qual tem produzido de si hua tam grande arvóre q a sua grandeza potencia e
doctrina asombra a mayor parte das terras q neste precedente capitulo apontamos.
E toda a sua conquista é com aquelles dous gladios, em q deos pos o estádo
de todo o universo: hu espiritual q consiste em a denunciaçam do evangelho
per todo o pagaismo do mundo q tem descoberto, augmentado, e dilatãdo o
estado da igreja, e o outro material com q offende a perfidia dos mouros que
quérerem empedir estas obras. Assy q recolhendonos a nósso próposito, toda
nóssa contenda na India é com estes dous géneros de gete mouros e gentios
(...)”
35
Mas a ars historica, pela narrativa dos feitos humanos, fornecia exemplos que
deviam ensinar os homens a agir com prudência, baseados na razão em detrimento das
paixões. Nesse sentido, o capítulo XVI do livro primeiro, intitulado Das feições da pesoa
do infante Dom Anrique e dos costumes que teve em todo o discurso de sua vida, inicia a
profusão de exemplos veiculados nas Décadas. O infante foi caracterizado pela limpeza
da alma, pela inclinação às letras e aos estudos, foi magnífico em despender e edificar,
ainda que despendesse da própria fazenda, “toda a sua vida pareceo hua perfecta religiã:
nam lhe faleceram pensametos de áltas impresas e obras de generoso animo, quaes
convem aos de real sangue.”
36
E Barros, após descrever diversas realizações na África do
infante D. Henrique, paradigma de conduta ao governante cristão, conclui que:
35
BARROS, João de. Op. Cit., p. 348-349(grifo nosso).
36
Idem, p. 61.
“Verdade, clareza e juízo”
89
“mostrando em estas e outras cousas que cometeo de bem comu, ter no coraçam
plantáda a vontáde de bem fazer, como elle trazia per móto de sua divisa nestas
palávras francesas: Talant de bien faire. (...) Posto que nos principios deste
descobrimento ouve grandes dificuldades, e foy muy murmurado: teve tanta
constancia e fé na esperança que lhe o seu espirito favorecido de deos prometia,
que nunca desestio deste descobrimento (em quanto pode) per espáço de
quorenta anos.
37
Ora, os feitos do infante na África são interpretados à luz das doutrinas da
Segunda Escolástica, que defendiam ser o bem comum o objetivo central dos governos.
Ademais, D. Henrique personificava algumas das virtudes cardeais e cristãs, dentre elas a
fé, a coragem e a prudência.
As palavras encomiásticas estendem-se a outros personagens da Expansão
Portuguesa, como o rei D. Manuel e, já na Segunda Década da Ásia, Afonso de
Albuquerque, capitão-mor enviado para conquistar a costa da Arábia. A valorização de
ambos não foi exclusiva da pena de João de Barros. Em 1551, a celebração do Venturoso
teve lugar no translado dos seus ossos para o Mosteiro dos Jerônimos. D. João III ainda
encomendou a João de Barros uma crônica manuelina, porém, após a sua morte em 1557,
o Cardeal Infante D. Henrique incumbiu Damião de Góis do ofício. Quanto à memória do
capitão-mor, cujos ossos também foram transladados com grande pompa da Índia para
Portugal, seu filho, Brás Afonso de Albuquerque, publicou, sucessivamente, em 1557 e
1576, os Comentários de Afonso de Albuquerque.
38
Mas, de acordo com Manuel Severim de Faria, além do serviço prestado a Deus,
ao rei e aos portugueses, lembrando as virtudes dos homens que propiciaram a dilatação
da fé e do império, João de Barros notabilizou-se pelo excelente uso que fez do gênero
histórico. O chantre de Évora lamentava apenas que o seu Clarimundo, livro fabuloso
escrito na juventude, tivesse melhor fortuna nas impressões que as Décadas: “donde se vê
37
BARROS, João de. Op. Cit, pp. 61-62 (Grifo nosso).
38
CURTO, Diogo Ramada. A literatura e o império: entre o espírito cavaleiroso, as trocas da corte e o
humanismo cívico, p. 453. In BETHENCOURT, Francisco; CHAUDURI, Kirti (dir.) História da Expansão
portuguesa, v.1.
“Verdade, clareza e juízo”
90
que o gosto do vulgo não se governa por razão, mas sim pelo apetite, e que o bom de
ordinário contenta aos menos.”
39
Os livros históricos eram apreciados apenas pelo público governado pela razão,
pelos gentis homens que controlavam as suas paixões e instintos. Destarte, os exemplos
fornecidos pela prosa historiográfica eram utilíssimos aos discretos que desejassem
exercitar a eloqüência necessária aos negócios da corte e do império. Segundo Manuel
Severim de Faria:
“É a história (segundo de Túlio em outra parte temos mostrado) o sujeito mais
capaz da Oratória que nenhum outro, porque nela se usa do género
Demonstrativo, contando vários feitos condenando os vícios, e lovando as
virtudes; e do Deliberativo, introduzindo orações, conselhos e discursos, e
muitas vezes do Judicial, o qual raramente se aparta do Deliberativo.”
40
A classificação aristotélica dos gêneros retóricos, indubitavelmente, constitui o
alicerce dos argumentos do antiquário, que aprofunda a sua reflexão:
“Em todos estes gêneros é esta história de João de Barros admirável, porque além
do sujeito que trata ser nobilíssimo pela variedade, grandeza, e novidade dos
casos admiráveis, guardou com suma inteireza todas as leis da história, assi
as essências que nela se requerem, que são verdade, clareza, e juízo, como as
outras partes a que chamam integrantes.”
41
As respectivas essências da história faziam parte do rol de questões tipicamente
seiscentistas, as quais visavam sobretudo diferenciar os escritos críveis e legítimos
daqueles fantásticos, destinados ao vulgo. Severim de Faria desfia cada uma delas, a
começar pela verdade, a qual deve constar tanto da notícia tratada, “como do verdadeiro
ânimo do mesmo historiador em não calar o bem, ou mal, que fizeram aqueles de quem
trata.”
42
João de Barros teve as mais certas notícias, pois lhe foram entregues os mais
39
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 46 (grifo nosso).
40
Idem, ibidem (grifo nosso).
41
Idem, ibidem (grifo nosso).
42
Idem, ibidem.
“Verdade, clareza e juízo”
91
diversos papéis para a empreitada, além de ter mandado buscar crônicas dos reis do
Oriente e ter se valido das informações dos pilotos portugueses. O ânimo verdadeiro, para
o chantre de Évora, era claro nas Décadas, “onde com suma liberdade reprova so vícios,
e louvas as virtudes que alguns Capitães tiveram, dando a cada um o seu (...).”
43
Ainda
que apontasse os vícios, Barros não ampliou miúdezas e se manteve ao essencial da
história.
A clareza, de acordo com Severim de Faria, era uma das características da pena de
João de Barros. Descrevia tudo como se visse diante dos olhos e comparava, segundo as
regras da Arte Memorativa, os elementos desconhecidos nas distantes províncias a algum
sinal conhecido. Com esse procedimento, fazia com que os leitores compreendesem “a
figura, ou cousa de que trata, com suma distinção.”
44
“A clareza da narrativa é assaz evidente, por falar com palavras muito
próprias, e naturais, e com tudo se vê nele tanta majestade, que causa admiração
poder ajuntar com tanta gravidade tanta clareza, porque nas descrições é tão fácil,
que muitas vezes parece poeta, posto que nesta parte história e poesia sejam
muito conformes.”
45
A ecfrase era um dos recursos da ars historica seiscentista que possibilitava a
amplificação dos topoi, mobilizando os afetos, a fim de persuadir os leitores. Desse
modo, o ornamento da elocutio historiográfica – com a pintura dos tipos e descrições
minuciosas que permitem ao leitor visualizar as cenas tal como em uma tela – articulava-
se intrinsecamente aos seus argumentos, pois, de acordo com os preceitos retórico-
poéticos em voga, as artes discursivas deviam docere, movere et delectare. O conceito do
ut pictura poesis aproxima não apenas a história da pintura, mas da poesia. É nesse
sentido que Manuel Severim de Faria afirma a conformidade de história e poesia, embora
fossem definidas por oposição pela preceptiva.
Entretanto, a elocutio historiográfica não tem autonomia em relação à inventio -
repertório de matérias e argumentos necessariamente verossímeis - e à dispositio - ordem
43
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 48.
44
Idem, p.49.
45
Idem, pp. 48-49 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
92
das partes discursivas. Os gêneros historiográficos eram confeccionados de acordo com a
noção de narrativa in ordo naturalis. Assim, Manuel Severim de Faria chega à terceira
essência da história seiscentista, o juízo, afirmando que a ordem das Décadas foi
“convenientíssima, seguindo os anos e os governos”
46
, procedimento que foi seguido por
muitos escritores que cuidaram dos feitos do Oriente e do Ocidente, como Diogo do
Couto e Antônio Herrera. Segundo o chantre da Sé de Évora:
“O juízo consta não só em observar as leis integrantes da História, mas na
boa ordem e disposição dela, e no julgar o que se errou, ou se acertou nas acções
públicas e particulares de que trata. As leis da História integrantes seguiu
propondo no princípio a matéria que tratava, introduzindo um excelente exórdio
da origem das guerras entre os Mouros, e Portugueses: no que têm faltado muitos
modernos, que começam suas histórias como se escreveram uã carta; não se
pejando de professarem compor uma Arte, sem aprenderem primeiro os
preceitos, e regras dela.”
47
A parte judicial do discurso, onde se acham prognósticos e elogios, fornecia
exemplos e máximas políticas. Pelo emprego do decoro exato, João de Barros era
considerado como “um dos mais insignes Historiadores do mundo.”
48
Recebeu louvores
de muitos que escreveram não apenas pelos livros que deixou, mas também pela vida
exemplar que levou:
“Foi varão de vida exemplar, e mui pio, como se vê bem de suas obras, que
podem ser nisto exemplo a outros escritores modernos; os quais compõem seus
livros com tal esquecimento das cousas divinas, que lidos eles não se pode
determinar, se é o Autor Cristão, se gentio, como já se disse de Joviano Pontano,
e de outros.”
49
46
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p.49.
47
Idem, ibidem (grifo nosso).
48
Idem, p. 50.
49
Idem, p.62.
“Verdade, clareza e juízo”
93
Em suma, a perfeição de João de Barroso residia apenas no uso engenhoso e
decoroso dos preceitos aristotélico-horacianos. Certamente, as Décadas possuíam as três
essências da prosa historiográfica seiscentista – verdade, clareza e juízo. Ao colocar a sua
eloqüente pena em funcionamento, Barros ainda fornecia exemplos virtuosos a fim de
melhorar os costumes dos demais súditos e, sucessivamente, os serviços prestados ao rei.
Ele próprio era um homem pio, preocupado com o bem comum e com a conservação do
império português. Assim, passou a servir de exemplo aos letrados e a ser considerado
uma autoridade no que se referia aos assuntos ditos históricos.
2.2 Luís de Camões: a memória épica do Império
A conformidade de certas partes da prosa historiográfica e da poesia épica permite
a Manuel Severim de Faria, ao tratar da vida de Luís de Camões (c.1517-1579), discorrer
também sobre o decoro da Perfeita História. O juízo da Poética aristotélica, que opõe a
história à poesia, fornece o ponto de partida ao chantre da Sé de Évora:
“Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de
Heródoto podia ser modificada; não seria menos uma história com o metro do
que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos
quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do
que a História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares.
Enunciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de natureza
tal vem a dizer ou a fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a Poesia,
ainda quando nomeia personagens. Relatar fatos particulares é contar o que
Alcibíades fez ou o que fizeram a ele.”
50
Todavia, antes de tratar da excelência do engenho camoniano e de sua doutrina,
“que nos varões doutos é o que principalmente se considera”
51
, Severim de Faria discorre
sobre as milícias e peregrinações de Luís de Camões na África e na Ásia. Nascido em
Lisboa, após os estudos em Coimbra – onde aprendeu Latim, filosofia e letras humanas –,
50
ARISTÓTELES. Poética, IX, p. 39 (grifo nosso).
51
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 121.
“Verdade, clareza e juízo”
94
foi desterrado da corte. De acordo com o antiquário, o poeta partiu para a Índia em 1553
e de lá regressou, já com Os Lusíadas, em 1569 – ano da Grande Peste em Lisboa, que
lhe fez esperar até 1572 para imprimir o poema.
O excelente uso que Camões fez do épico lhe valeu os louvores somente
aplicados a mais três poetas desde o “princípio do mundo”: “Homero, entre os Gregos,
Virgílio nos Latinos, Torquato Tasso entre os italianos, e o nosso Poeta em Espanha.”
52
Manuel Severim de Faria ratifica que a diferença entre o Poeta Heróico e o Historiador
residia no número de ações a serem imitadas:
“(...) porque o Historiador escreve a narração das cousas como aconteceram
sucessivamente, mas o Poeta escolhe uã só acção de um herói e essa refere, não
pontualmente como foi, mas como convinha ser, ornando a narração com vários
episódios, que são digrssões de fábulas, acontecimentos, e enredos, com que com
suavidade persuadam aos que o lerem, e ouvirem.”
53
Em Camões, o descobrimento da Índia constitui uma ação a ser cantada.
Outrossim, a ação devia ser honesta e digna de imitar, porque o fim da poesia heróica “é
ensinar, incitar, e mover deleitando,”
54
tal como Severim de Faria argumenta:
“(...) Vasco da Gama rodeou a maior parte da terra, vencendo com singular valor
as forças dos elementos, as traições, e armas dos inimigos, fomes, sedes,
estranheza de climas, injúrias dos tempos, e mostrou ao mundo o verdadeiro
conhecimento de si mesmo, em que desde o seu princípio até então estivera
ignorante achando novas estrelas, e novos mares, comunicando o Oriente com o
Ocidente, de que se seguiu dar aos povos da Europa a notícia de tantas drogas,
frutos, e pedras em que a natureza se mostrou maravilhosa, e benigna para os
mortais, e aos moradores da Ásia o conhecimento das Artes, polícia, ciências de
Europa, e sobre tudo do verdadeiro Deus, de que os mais deles estavam
52
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 121-122.
53
Idem, p. 122.
54
Idem, p. 124.
“Verdade, clareza e juízo”
95
totalmente ignorantes. Por onde na qualidade da acção heróica fica o nosso
poema superior a todos os antigos, e modernos.”
55
A ação era a mais digna de ser imitada, pois os portugueses revelaram aos demais
povos cristãos as maravilhas da natureza e, principalmente, aos hereges, infiéis e idólatras
a verdadeira fé. Em resposta aos que afirmavam que Camões teria profanado a
honestidade da ação por invocar as Musas, “indecentes a Poeta Católico”, e não os
santos, Severim de Faria argumenta que a poesia não é outra coisa “senão uã imitação, ou
fábula, a qual traz sempre consigo, como parte essencial, a invocação das Musas do
Parnaso.”
56
Assim, os poemas heróicos invocavam Calíope, uma das musas que, mesmo
os antigos, adoradores de deuses gentílicos, tinham por fingida. A decisão de não
introduzir santos e anjos no poema foi acertada nesse sentido, pois era necessário
“escrever deles com toda a reverência, e decência devida, que não se compadece misturar
cousas sagradas com as profanas.”
57
Mas como o livro de Camões tratava de argumentos verdadeiros, era necessário
diferenciar os verdadeiros milagres dos fabulosos, “com que os leitores ignorantes,
podem cair em erro de não conhecerem quais devem de ser cridos.”
58
Da mesma forma, a
gravidade dos seus argumentos não prescindia de episódios alegóricos, como os
esposórios celebrados na Ilha de Santa Helena entre Vasco da Gama e seus soldados e as
ninfas do Oceano, “pera entreter os leitores.”
59
Além de deleitar, o poema devia ser útil – utile et dulci. E a utilidade dos
Lusíadas era a de fornecer exemplos virtuosos, “porque não há ninguém que o leia que
não fique inflamado de um admirável desejo de glória, e de empregar a vida em feitos
ilustres, aventurando-a pela fé, pelo Rei, e pela pátria.”
60
Assim, Vasco da Gama constitui
o modelo de capitão prudente e heróico. Segundo Severim de Faria, deste poema,
55
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 125.
56
Idem, ibidem.
57
Idem, p. 126.
58
Idem, ibidem.
59
Idem, p. 128.
60
Idem, p.129.
“Verdade, clareza e juízo”
96
fundado sobre história verdadeira, “se podem tirar excelentes regras para a vida política,
e moral.”
61
Não obstante tratasse de acontecimentos verdadeiros, a dispositio épica obedecia
a regras de composição específicas em relação à prosa historiográfica. Ao contrário deste
discurso, narrado in ordo naturalis, o decoro da poesia heróica não prescreve que as
ações sejam dispostas de forma linear:
“Nem se há-de contar a história sucessivamente, mas começando no meio dos
sucessos, alcançar-se-á depois a notícia do precedente com súbito conhecimento.
Estes e os mais preceitos da arte se vêem tão bem guardados neste Poema como a
quem o lê é notório. Pelo que pudera ser, que se Aristóteles o alcançara não
gastara tantas palavras em louvar os de Homero.”
62
Assim, Luís de Camões recebeu o epíteto de Príncipe dos Poetas e passou a ser
celebrado em todo o mundo pelos “melhores Poetas, Históricos e Oradores, de maneira
que sua gloriosa memória durará igualmente com os séculos vindouros.”
63
Embora não
fosse preceptista, o poeta português passou a ser o exemplo máximo, no Seiscentos
ibérico, de emprego da arte.
Alcir Pécora defende que Camões, bem como o padre Antônio Vieira,
compreendem a sua respectiva arte – a épica e o sermão – “como estímulo, louvor e
documento das proezas memoráveis dos antepassados, de virtudes sublimes dos heróis e
de esperanças futuras do Reino.”
64
A lembrança dos feitos passados, quando alia o
engenho ao domínio técnico dos preceitos, permite conceber outro feito ainda maior por
vir. Segundo Pécora:
“Arte é, para estes dois monstros do engenho, publicidade de um passado elevado
e vibrante, e, ao mesmo tempo, fiança de uma história futura ainda mais alta que
ela descobre embutida ou figurada na antiga. Ao revelar esse futuro e torná-lo
61
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 130.
62
Idem, p. 134.
63
Idem, p. 152.
64
PÉCORA, Alcir. As artes e os feitos. In Máquina de gêneros, p. 138.
“Verdade, clareza e juízo”
97
presente em sua própria perfeição, tal arte antecipadamente participa de sua
existência e assegura a sua vinda.”
65
Os letrados desempenham, destarte, um papel proeminente no império, que se
reveste de uma aura providencial assinalada nos feitos pretéritos. A perspectiva imperial
camoniana contempla três ordens de heróis: os navegadores e conquistadores, os reis
portugueses e “os demais varões portugueses cujo esforço e bravura valeu-lhes a
imortalidade.”
66
O império era uma construção não apenas das armas, mas das letras, na
medida em que o Bem, inerente às conquistas lusitanas, era emulado das penas
quinhentistas e seiscentistas:
“O Império, a que tanto Camões quanto Vieira pretendiam servir, não era, de
modo algum, o da língua apenas – que foi, afinal, o que puderam ter –, a não ser
na medida em que da língua esperavam, com confiança e audácia desmedidas, o
fogo capaz de animar o seu movimento universal. Era em territórios objetivos
que pensavam, como objetiva supunham a ordem divina que impregnava a
geografia mundial.”
67
Se os feitos portugueses superavam os de qualquer outros povos, era necessário
imortalizá-los em um canto superior aos mobilizados pelos poetas antigos. Mas a epopéia
não celebra apenas as proezas pretéritas, pois, sem o poeta, o sentido do feito não pode
ser compreendido.
“Para Camões, o feito histórico não atinge verdadeiramente a sua plenitude
heróica ou sublime antes que se produza o canto que desempenha o seu valor,
isto é, sem que se acrescente aos sucessos das armas o espírito das letras. Ao
passado grandioso da pátria é necessário que se ajunte a inteligênciadele, pela
arte, a fim de que o acidental e particular dos feitos alcance o estatuto necessário
universal e excelência, que comunica perfectibilidade aos seres.”
68
65
PÉCORA, Alcir. As artes e os feitos. In Máquina de gêneros, p. 139.
66
Idem, p. 141.
67
Idem, p. 145.
68
Idem, p. 162.
“Verdade, clareza e juízo”
98
Os Lusíadas celebram as conquistas portuguesas a fim de garantir a conservação
do império formado paulatinamente desde o século XV. Nessa altura, a decadência,
apontada posteriormente por Diogo do Couto, ainda não era sentida nem no reino, nem
tampouco nas possessões ultrmarinas. O ano de 1578 marcou especialmente essa
inflexão, com o desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e a
sucessiva querela sucessória que dividiu os grandes do reino. Mas a menção de Frei
Vicente do Salvador a Camões como historiador, ao lado de Barros e Couto, somente era
possível porque a História e a Épica eram subgêneros epidíticos que comportavam o
louvor e, desse modo, serviam-se da mesma matriz de modelos teológicos-retóricos-
políticos.
2.3 Diogo do Couto: o ocaso do Império
A vida de Diogo do Couto (1542-1616), cronista e guarda-mor da Torre do
Tombo do Estado da Índia, é um texto mais breve, porém não menos importante para
apreender a “alma das histórias” seiscentistas. A percepção da crescente ruína do império
fez com que Couto tomasse posições nem sempre laudatórias em relação aos feitos
portugueses. Por volta de 1565, escreveu o Soldado Prático, diálogo no qual criticava as
práticas administrativas dos vice-reis da Índia aos mais humildes soldados. O livro não
foi publicado inicialmente. Apenas em 1611, quando já havia se tornado célebre pela
continuação das Décadas, foi impressa uma outra versão intitulada Enganos e
desenganos da Índia, cujo original foi enviado a Manuel Severim de Faria.
O próprio cronista estabeleceu o ano de 1561, quando o vice-rei D. Constantino
encerrou o seu governo e foi sucedido, como o início da decadência das possessões
portuguesas no Oriente. Nas palavras do chantre da Sé de Évora:
“E diz Diogo do Couto, que até seu tempo [de D.Constantino] durou naquele
Estado a primitiva Índia, em que os homens pretendiam somente ser valerosos, e
honrados, e desprezavam o interesse; e que dali por diante começou a ser
idolatrada a avareza, ao qual vício chama a Sabedoria Divina: Raiz de todos os
males; e como este se foi apoderando daquele Estado, tem introduzido nele
“Verdade, clareza e juízo”
99
tantos, que parece já agora irremediável a sua cura, se Deus milagrosamente lhe
não acode.”
69
Diogo do Couto fora testemunha ocular da inflexão, pois embarcou para a Índia
em 1556, onde militou durante alguns anos, “mostrando com particular valor que as letras
não impedem, antes favorecem as armas.”
70
: O título de Cronista da Índia lhe foi
conferido por Felipe II de Espanha, conhecedor da importância dos gêneros
historiográficos nos negócios do governo e desejoso de legitimar a sua majestade frente à
percepção do declínio português, marcado pelo desaparecimento de D. Sebastião no norte
da África e pela união das coroas ibéricas:
“Sucedendo el-Rei Dom Filipe I na Coroa destes Reinos, como era Príncipe
tão prudente, e que sempre trazia nos olhos o bem comum de seus vassalos,
desejou de mandar prosseguir a história da Índia, do tempo em que a deixou o
nosso João de Barros, e que se continuassem as suas Décadas com o mesmo
título, e estilo, pelo grande aplauso com que as três primeiras foram recebidas em
toda Europa.”
71
Súdito fiel, o cronista primeiramente escreveu a Décima Década, iniciando-a no
“dia em que o mesmo rei foi jurado, e recebido naquele Estado.”
72
Em carta, o rei
agradeceu o serviço prestado e recomendou novamente que continuasse a escrever a
partir de quando João de Barros havia deixado a Ásia. Assim, Couto escreveu a quarta, a
quinta, a sexta, a sétima, a undécima e a duodécima Década. Exerceu o ofício,
incessantemente, até adoecer gravemente no ano de 1614, quando já tinha em mãos a
oitava e a nona Década, que desapareceram de sua casa. Recuperou-se um pouco depois,
mas, como “já neste tempo era de setenta e dous anos”
73
, remediou o furto compilando as
duas em um só volume.
69
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 119.
70
Idem, p. 171.
71
Idem, p. 172.
72
Idem, ibidem.
73
Idem, 173.
“Verdade, clareza e juízo”
100
Manuel Severim de Faria informa que até 1616, ano de falecimento do cronista da
Índia, apenas foram impressas da quarta à sétima Década, sendo que da sexta apenas
restaram seis volumes em virtude de um incêndio ocorrido na casa do impressor. Mas ao
antiquário interessava tratar ainda da elocutio decorosa mobilizada nestes livros:
“O estilo que nestas Décadas guardou Diogo do Couto é muito claro, e chão,
mas cheio de sentenças, com que julga as ações de cada um, e mostra as causas
dos sucessos adversos, e prósperos que naquelas partes tiveram os Portugueses.
Porém ainda que nesta parte pode ser comparado na verdade do que escreve,
que é a alma da história, no que trata dos Príncipes do Oriente, nos costumes
daqueles povos e remotas províncias, na situação da sua verdadeira geografia,
levou a muitos conhecida ventagem, como se pode claramente ver das suas
Décadas, nas quais se mostram os erros que nestas matérias tiveram os que antes
dele escreveram as cousas do Oriente.”
74
A passagem reafirma dois elementos essenciais aos gêneros historiográficos
seiscentistas: a clareza e a verdade, esta última destacada como a alma da história. Na
perspectiva do antiquário, Couto pôde alcançar a verdade pois era cidadão de Goa,
cabeça do Estado da Índia, ponto de partida e chegada das armadas, onde assistiam todos
os vice-reis, “de maneira que recebeu as informações dos mesmos que se acharam nas
empresas, e a tempo, que as testemunhas de vista, que na mesma cidade havia, os
obrigavam a falar a verdade.
75
Além do testemunho ocular, Diogo do Couto se valeu do cargo de guarda-mor da
Torre do Tombo da Índia, mercê recebida de Felipe II no tempo em que o monarca
ordenou ao vice-rei Matias de Albuquerque organizar os dispersos papéis do Estado. A
estima que os contemponeos nutriam pelas nove Décadas, composta de noventa livros,
residia não apenas em sua grandeza, mas sobretudo no engenho do autor, que não tomou
a história narrada a outros, como fizeram Lívio, “ainda que lhe excedeu o número de
volumes”, e Políbio “o qual confessa de si, que das obras que muitos escritores tinham
74
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 173 (grifo nosso).
75
Idem, pp. 173-174 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
101
publicado de cada conquista dos romanos, em particular, tinha composto a sua universal
história.”
76
Por fim, mas não menos importante, Diogo do Couto representa um modelo a ser
seguido pelo “grande zelo do bem público da pátria” que o acompanhou desde o início.
77
Como cronista, apontou os inconvenientes que existiam no governo da República “e
principalmente no Estado da Índia, onde ele assistia, e onde por ausência dos Reis, e
excessos dos ministros, iam as desordens em maior crescimento.”
78
2.4 Auctoritas lusas
Os argumentos do antiquário participam da invenção de três autoridades
portuguesas, superiores aos auctores antigos, pois, além de guardarem de forma excelente
os preceitos retórico-poéticos, empregavam as artes em prol de um império cristão.
Assim, ao tratar de Barros, Camões e Couto, ratifica os preceitos aristotélico-horacianos
que presidiam a confecção dos discursos nos séculos XVI e XVII e reafirma a concepção
sacramental da história.
Em suma, Manuel Severim de Faria, em consonância com os letrados portugueses
seiscentistas e conforme os preceitos aristotélico-horacianos, concebia os gêneros
historiográficos, variantes encomiásticas do epidítico, como uma prosa ecfrásica narrada
in ordo naturalis. Assim, esse discurso deveria combinar de forma engenhosa, a fim de
ensinar, persuadir e deleitar, uma inventio, uma dispositio e uma elocutio peculiares ao
gênero. O estilo desta prosa, que relata fatos particulares e verdadeiros, deveria ser claro
e chão, posto que grave. Para atingir a verdade, que é a alma da história, os “Históricos”-
segundo Manuel Severim de Faria - deviam se valer de testemunhos escritos e oculares.
Para o antiquário, as essências da história eram a verdade, a clareza e o juízo. O
compromisso com a verdade supunha uma chave de leitura sacramental dos
acontecimentos e conferia ao império um sentido providencial e escatológico.
Os livros históricos eram apreciados pelos leitores discretos, pois forneciam
exemplos virtuosos àqueles governados pela razão e sempre dispostos a prestar serviços
76
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 174.
77
Idem, p. 175.
78
Idem, ibidem.
“Verdade, clareza e juízo”
102
ao rei, instrumento temporal da vontade divina. Destarte, os historiadores, como
conselheiros dos negócios da República, participavam da difícil tarefa de construir a
concórdia no seio do corpo imperial. Para confeccionar os seus discursos, deviam lançar
mão, além do epidítico, dos gêneros deliberativo e judiciário. Outrossim, os historiadores
deveriam ser homens pios, súditos fiéis e zelosos do bem público. A probidade do orador
era um dos elementos fundamentais da retórica aristotélica, pois, segundo o Filósofo, as
pessoas de bem inspiram mais confiança em todos os assuntos – o caráter moral do
orador “constitui, por assim dizer, a prova determinante por excelência.”
79
Mas se, por um lado, Manuel Severim de Faria louvava os livros que
conservavam a memória das possessões orientais, por outro, preocupava-se com a
escassez de informações sobre a América portuguesa. Na vida de João de Barros, após
discorrer sobre as tentativas do cronista de escrever sobre as milícias lusitanas em outras
partes além da Ásia, que seriam intituladas Europa, África e Santa Cruz, o antiquário
manifesta-se sobre o motivo que o teria levado a encomendar a História a frei Vicente do
Salvador:
“A última parte da milícia Portuguesa intitulou Santa Cruz (que é a Província
que agora dizemos Brasil) e lhe dava princípio no descobrimento de Pedralvrez
Cabral, desta não se acha nada escrito, que não é pequena falta para este
Reino, porque tendo hoje este Província crecido notavelmente em riqueza, e
polícia, com muitas povoações populosas, e nobres, está quasi totalmente falta
de História, defendendo nela os Portugueses aqueles portos e costas marítimas
contra poderosos piratas, que junto com os bárbaros gentios, obrigaram os nossos
a militar mais qua a cultivar as terras por muitos anos: estando naquele tempo os
portos abertos, sem fortalezas, ou castelos que proibissem estas entradas, em que
houve casos mil dignos de memória, e sendo as cousas naturais da terra mui
notáveis, e estranhas a nós, por quão maravilhoso se mostrou a natureza, é mais
pera sentir a falta que nesta parte nos faz a História de João de Barros.”
80
79
ARISTÓTELES. Retórica, Livro I, II, p. 33.
80
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 53-54 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
103
Desse modo, Severim de Faria, concomitantemente, afirma a necessidade de se
escrever uma história do Brasil e define algumas matérias a serem necessariamente
tratadas. O programa devia icluir informações acerca da natureza desconhecida, as
diversas povoações fundadas pelos portugueses, as ameaças dos corsários e do gentio.
Deveria ainda constar da inventio a polícia estabelecida pela coroa nessas partes, ou seja,
o governo e a administração do território, o que abrangia desde a construção de sistemas
defensivos, de acordo com as traças de mestre de obras e engenheiros militares, até a
política de catequese do gentio e as guerras justas que eram movidas contra os que se
opusessem à conversão.
2.5 O caráter apologético: a auto-representação franciscana
Frei Vicente do Salvador seguiu, indubitavelmente, o programa delineado de
forma breve pelo chantre da Sé de Évora. A História do Brasil narra a polícia da Coroa
na América portuguesa, celebrando os bons serviços prestados ao rei pelos governadores,
bispos, ouvidores, capitães, clérigos e demais pessoas qualificadas que contribuíam para a
conservação do império católico. Mas, entre os clérigos, o frade louva especialmente as
obras dos seus irmãos da ordem de São Francisco de Assis.
Desse modo, o franciscano contribuía para reivindicar o quinhão dos frades
menores na conquista espiritual do Brasil.
81
De fato, as outras ordens religiosas
estabeleceram-se institucionalmente no Brasil somente depois da união das coroas
ibéricas. Em 1581, os beneditinos chegaram a Salvador, seguidos, em 1584, pelos
carmelitas calçados que desembarcaram na vila de Olinda. Os franciscanos, oriundos da
família reformada alcantarina, também fixaram-se primeiramente na cabeça da capitania
de Pernambuco, onde fundaram o Convento de Nossa Senhora das Neves, em 1585.
A vinda dos franciscanos à América portuguesa atendia à
solicitação de Jorge
Coelho de Albuquerque, donatário da Capitania de Pernambuco, deferida pelo rei Felipe
II. Desse modo, foi criada pelo Ministro Geral da ordem, frei Francisco Gonzaga, a
81
Pero de Magalhães Gandavo não havia nem mencionado a presença dos frades menores na esquadra de
Cabral, tampouco que frei Henrique de Coimbra rezara a primeira missa na terra descoberta. Cf.
GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz, pp. 78-79. Em seu livro, publicado em
1576, Gandavo apenas contempla a atuação dos jesuítas desde 1549, quando os primeiros padres chegaram
junto com o governador geral, Tomé de Sousa.
Excluído: o país
“Verdade, clareza e juízo”
104
Custódia de Santo Antônio do Brasil, subordinada à Província de Santo Antônio de
Portugal, que enviou inicialmente sete religiosos
para Olinda.
82
Em 1587, após pedido do
Bispo e da Câmara de Salvador, o custódio frei Melquior de Santa Catarina ordenou a
construção de um Convento na cidade. Até o início do século XVII, os padres seráficos
ainda fundariam casas em Igaraçu (1588), Paraíba (1589), Vitória (1591), Recife (1606)
e, finalmente, no Rio de Janeiro (1606).
A abertura de novos territórios missionários na América e no Oriente e,
conseqüentemente, a profusão de conventos, ensejaram uma preocupação com a narrativa
sistemática das atividades seráficas. Desde 1619, o Ministro Geral da ordem
, frei
Benigno de Gênova, havia ordenado que todas as províncias nomeassem um de seus
religiosos para escrever a sua própria história. No caso da Custódia do Brasil, frei Manuel
da Ilha foi incumbido da tarefa, apesar de nunca ter pisado na América. O insulano
baseou-se nos relatos dos frades que voltavam ao reino e, sobretudo, na Crônica da
Custódia do Brasil, escrita por Frei Vicente Salvador alguns anos antes.
83
Escrita em latim, a Narrativa da Custódia de S. Antônio do Brasil inicia-se com a
decisão, tomada em 1584, de “enviar novos operários do santo evangelho para aquele
novo Portugal.”
84
A crônica discorre sobre a fundação dos conventos e das missões a
cargo dos franciscanos, fornecendo relatos de martírios e necrológios dos frades que se
destacavam na milícia espiritual. Refere-se ainda aos irmãos seráficos que estiveram
anteriormente no Brasil, como o frei Henrique de Coimbra, os dois protomártires de
Porto Seguro e o frei Pedro Palácios, fundador do santuário de N. S. da Penha na
capitania do Espírito Santo.
82
Para a história dos franciscanos na América Espanhola, ver: PÉREZ, Antolín. Los Franciscanos en
América. O papel da ordem de São Francisco na descoberta e colonização do Novo Mundo é conhecido. Os
frades do Convento de la Rábida – sobretudo Frei Juan Pérez, confessor de Isabel, e Frei Antônio de
Marchena, Custódio de Sevilha – não só acolheram os projetos de Colombo como facilitaram o seu acesso
à corte. Desde a segunda viagem do genovês à América, em 1493, os franciscanos estiveram presentes ao
lado dos conquistadores, e foram os primeiros a estabelecer uma organização permanente no Novo Mundo.
Em 1502, foi criada a Província de Santa Cruz de las Indias, com sede em São Domingos. Em 1543, o
primeiro convento da ordem foi criado em terra firme.
83
Ver a nota 4 deste capítulo.
84
ILHA, frei Manuel. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil ou relação e número das casas e
das doutrinas nela existentese outras coisas dignas de menção, etc. ou, originalmente, Divi Antonii
Brasiliae Custodiae enarratio seu relatio numerique domorum et doctrinarum quae in illa sunt, necnom
aliarum rerum narrationes dignarum, etc, p. 13.
Excluído: Os
Excluído: sete religiosos
Excluído: estudariam
Excluído: tentariam covertê-los
ao cristianismo
Excluído: Em meados do século
XVIII, Frei Antônio de Santa
Maria Jaboatão (1695 – 1779) foi
encarregado de escrever a história
da ordem no Brasil, percorrendo
todos os arquivos conventuais da
colônia a fim de realizar tal tarefa.
Sua obra, Novo Orbe Seráfico
Brasílico, constitui o mais
completo relato sobre a atuação
dos franciscanos durante os três
séculos de colonização e,
certamente, será também
considerada nesta pesquisa.
“Verdade, clareza e juízo”
105
A questão de maior relevo no livro de frei Manuel da Ilha talvez seja a querela
que envolveu, no fim do século XVI, franciscanos e jesuítas nas missões da Paraíba. A
questão tomou um vulto maior para os frades menores, pois esta era a primeira doutrina
da ordem na América portuguesa. O custódio, frei Melchior de Santa Catarina, aceitou a
conversão do gentio da aldeia de Pyraiuba ou Piragibe, não obstante os jesuítas já
tivessem construído uma capela e erguido cruzes no local. Os padres da Companhia não
residiam na aldeia, pois, segundo o Insulano, esperavam os estipêndios régios para iniciar
a sua missão. Nessa primeira menção, o episódio encerrou-se, aparentemente de forma
serena, após os frades menores deixarem a aldeia,:
“O Custódio agiu desse modo porque desejava manter a paz com estes e
todos os demais religiosos e fugir a qualquer ocasião de perdê-la, o que
procurava fazer sempre de novo o demônio, inimigo da nossa salvação e da paz.
Deixando, portanto essa doutrina, dirigiu-se imediatamente às outras, pelas quais
ele e seus companheiros foram acolhidos de braços abertos.”
85
Entretanto, ao final da Narrativa, frei Manuel da Ilha trata novamente da
Controvérsia e desentendimento suscitado pelo inimigo do gênero humano entre nós
Frades Menores e os padres da Santíssima Companhia de Jesus, acerca das doutrinas e
aldeias da Capitania da Paraíba do Brasil, etc. A culpa da discórdia é integralmente
imputada ao demônio, que não desejaria a conversão do gentio. De forma complementar,
o Insulano advoga a legitimidade da ação de frei Melchior de Santa Catarina, superior da
ordem no Brasil, que aceitou as aldeias da dita capitania.
“Nós Frades Menores sempre fomos obedientes e submissos à Santa Sé
Apostólica e jamais demos a alguém ocasião de se insurgir contra qualquer
autoridade, nem de arrogar-se jurisdição e bens temporais; sempre vivemos
contentes com um só hábito freqëntemente remendado, com a corda e as roupas
internas, levando na mão o santo evangelho que professamos e pregamos, nada
deixando abaixo do céu senão aquilo que o próprio evangelho concede para o
sustento da vida. No entanto, fomos acusados de tirar de outros religiosos as
85
ILHA, frei Manuel da. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil, p. 82.
“Verdade, clareza e juízo”
106
aldeias dos índios, sem permissão e sob o pretexto de doutriná-las, erguendo
cruzes em territórios alheios para os usurpar. Acusam-nos outrossim de sermos
incapazes de doutrinar, quando, na realidade, por 40 anos seguidos esta tarefa,
antes de quaisquer outros, coube aos franciscanos na Índia Oriental e em outras
conquistas.”
86
Nesta passagem, o Insulano obviamente responde às acusações feitas pelos
jesuítas à época do desentendimento. Concomitantemente, reafirma os votos de pobreza e
de obediência às autoridades temporais e espirituais. Em seguida, o franciscano afirma
omitir outras acusações para não ofender os “ouvintes e leitores” e, assim, os remete às
ordens régias de Felipe II, nas quais o monarca determina a permanência dos frades
menores na capitania da Paraíba, e, conseqüentemente, “que os Padres da Santíssima
Companhia de Jesus, seus acusadores, dela saíssem sem demora.”
87
Frei Manuel da Ilha ainda fortalece os seus argumentos pela transcrição de
testemunhos de Frutuoso Barbosa a favor dos frades seráficos. No primeiro deles, consta
que os frades “instruíram o gentio com sua licença e autoridade.”
88
Portanto, nada podia
ser objetado aos irmãos de São Francisco de Assis, a não ser “a decisão de obedecer um
rescrito do Sumo Pontífice Sisto V, de feliz memória, e aos alvarás do rei Filipe II da
Espanha, que os obrigara a viajar para lá a fim de auxiliar os demais Religiosos (...).”
89
Desejosos de conservar a amizade com os jesuítas e zelosos no serviço de Deus,
“os pobres Frades pediram humildemente ao dito governador e à Câmara os aliviassem
daquele compromisso” e entregaram as aldeias aos padres da Companhia. No fim deste
primeiro relato oficial sobre as atividades seráficas no Brasil, os documentos transcritos
são certificados pelo frei Leonardo de Jesus e pelo tabelião da Vila de Xira, Fernão Vaz.
Este relato apologético possui uma relação intrínseca com os escritos de frei
Vicente do Salvador. Em primeiro lugar, frei Manuel da Ilha utilizou a Crônica perdida
de frei Vicente como sua principal fonte. Em segundo lugar, os especialistas franciscanos
aferiram que a Narrativa possui muitas partes em comum à História do Brasil. Baseado
nos estudos de frei Adriano Hipólito, o frei Ildefonso Silveira afirma que:
86
ILHA, frei Manuel. Op. Cit., pp. 117-118.
87
Idem, p. 119.
88
Idem, ibidem.
89
Idem, pp. 123-124.
“Verdade, clareza e juízo”
107
“Na Narrativa há trechos idênticos a alguns que ocorrem na História do Brasil
de Frei Vicente do Salvador. Chega-se à conclusão que Frei Vicente repetiu em
sua História do Brasil o que havia escrito na Crônica, e foi desta que Frei
Manuel da Ilha traduziu para o latim diversas passagens.”
90
O procedimento do frade somente pode ser compreendido levando-se em conta
que a paráfrase, a compilação e a cópia eram práticas correntes. Ademais, entre os
séculos XVI e XVIII, não havia dicotomia entre as crônicas apologéticas e as histórias.
Ambas compunham os diversos papéis então classificados como gêneros históricos na
medida em que os sucessos da verdadeira fé – as aparições, os milagres, os martírios –
deviam ser matéria dos historiadores, o que absolutamente não se chocava com a
afirmação de Manuel Severim de Faria, para quem a verdade era a alma da história.
Nesse sentido, Eduardo Sinkevisque também assinala que a função “do discurso
historiográfico seiscentista é celebrar e não apenas fornecer informações objetivas de
conteúdos positivos e empíricos.”
91
Os relatos missionários, escritos pelas diversas ordens no início da Idade
Moderna, apresentam uma estrutura, segundo Pascale Girard, similares ao relato mítico,
aproximando-se, pois, do gênero hagiográfico. Embora Girard trate dos territórios
orientais, assinala que “a ambiência profética que caracterizou a conquista espiritual da
América parece se repetir em relação à Ásia.”
92
A autora afirma que essas crônicas
tinham como um dos seus objetivos precípuos a refundação das respectivas ordens
religiosas e que, portanto, não pretendiam apenas fornecer informações acerca da
geografia ou da atividade missionária, não obstante contivessem, indubitavelmente, tais
notícias:
“Elles sont avant tout des oeuvres d’autoprésentation des missionaries. L’analyse
des procédés narratifs montre que l’histoire de chacun est un mythe construit à
l’interieur de chaque ordre par l’effet des ‘générations de chroniques’, et par
90
SILVEIRA, frei Ildefonso, O.F.M. Introdução. In ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 10.
91
SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVII e XVIII, p. 212.
92
GIRARD, Pascale. Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, p. 143 (tradução nossa).
“Verdade, clareza e juízo”
108
rapport aux autres ordres par les phénomènes de démarquage et de
différenciation que nous avons pu observer. L’identité de chaque ordre est mise
en scène dans ces chroniques, mais elle est aussi rejouée, à l’occasion du
nouveau terrain missionaire que représente l’Éxtrême Orient.”
93
A apologia aos franciscanos – explícita e contínua no relato do Insulano e,
provavelmente, na Crônica perdida de frei Vicente – encontra-se dispersa na História do
Brasil. Contudo, uma leitura mais atenta revela já nas primeiras páginas a lembrança de
importante evento para a afirmação das obras dos franciscanos nas possessões
portuguesas. O primeiro capítulo da História trata de como foi descoberto o Estado do
Brasil. Discorre sobre o desembarque de Cabral e de seus soldados, chamados pelos
nativos de caraíbas, “que quer dizer na sua língua coisa divina.”
94
O franciscano faz uma
analogia com os eventos ocorridos na América espanhola e destaca o papel dos seus
irmãos seráficos neste primeiro contato com o gentio:
“Donde, assim como os índios da Nova Espanha, quando viram desembarcar
nela os espanhóis, lhes chamaram viracoches, que significa escumas do mar,
parecendo-lhes que o mar os lançara de si como escumas, e este nome lhes ficou
sempre, assim somos ainda chamados caraíbas e respeitados mais que homens.
Mas muito mais cresceu neles o respeito quando viram a oito frades da
ordem de nosso padre São Francisco, que iam com Pedro Álvares Cabral, e
por guardião o padre frei Henrique, que depois foi bispo de Cepta, o qual
disse ali missa e pregou, onde os gentios ao levantar a hóstia e cálix se
ajoelharam e batiam nos peitos como faziam os cristãos, deixando-se bem nisto
ver como Cristo senhor nosso neste divino sacramento domina os gentios (...)”
95
Há uma grande semelhança entre esta e a descrição de Gandavo – os gestos dos
índios e a sua disposição de aceitar a fé cristã –, mas a inclusão da menção aos frades
93
GIRARD, Pascale. Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, p. 142.
94
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 56.
95
Idem, ibidem (grifo nosso). Em 1584, o padre jesuíta José de Anchieta, em sua Informação do Brasil e de
suas capitanias, já afirmava que os franciscanos foram os primeiros religiosos que vieram ao Brasil, mas
não tratou da primeira missa, apenas dos protomártires de Porto Seguro. O trecho intitula-se Dos frades que
antes e depois da Companhia vieram ao Brasil. Cf. ANCHIETA, José de. Cartas: informações fragmentos
históricos e sermões.
“Verdade, clareza e juízo”
109
revela o intuito de afirmar a primazia dos franciscanos na catequese do gentio também na
América portuguesa. Em seguida, frei Vicente justifica a partida desses primeiros
missionários:
“Bem quiseram nossos frades, pela facilidade que nisto mostraram para
aceitarem nossa fé católica, ficar-se ali, pera os ensinarem e batizarem, mas o
capitão-mor, que os levava pera outra seara não menos importante, se partiu daí a
poucos dias com eles pera a Índia, deixando uma cruz ali levantada como
também dois portugueses degredados pera que aprendessem a língua (...)”
96
No segundo livro da História, cuja matéria são as capitanias do Brasil, há poucas
referências aos frades menores, com destaque, porém, à presença do frei Pedro Palácios
no Espírito Santo. Assim como o Insulano, frei Vicente confere uma aura santa ao
ermitão:
“Nesta ermida [de N. S. da Penha] esteve antigamente por ermitão um frade
leigo da nossa ordem, asturiano, chamado frei Pedro, de mui santa vida, como se
confirmou em sua morte, a qual conheceu alguns dias antes, e se andou
despedindo das pessoas devotas, dizendo que, feita a festa de Nossa Senhora,
havia de morrer. E assim sucedeu, e o acharam morto de geolhos, e com as mãos
levantadas como quando orava, e na tresladação de seus ossos desta igreja pera o
nosso convento fez muitos milagres, e poucos enfermos os tocam com devoção
que não sarem logo principalmente de febres, como tudo consta do instrumento
de testemunhas que está no arquivo do mesmo convento.”
97
O trecho, sem dúvida, poderia constar de uma hagiografia. Mas os freis Henrique
de Coimbra e Pedro Palácios apenas precediam e sinalizavam as gloriosas obras da
ordem de São Francisco de Assis, cujo estabelecimento definitivo e institucional fornece
matéria ao quarto livro, que abrange o período entre 1582 e 1612. Neste livro, o
franciscano dedica, sucessivamente, quatorze capítulos – do terceiro ao décimo sexto – às
tentativas de conquista da capitania da Paraíba.
96
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 56-57.
97
Idem, p. 109.
“Verdade, clareza e juízo”
110
Nessas páginas, narra sobretudo os conflitos entre portugueses e os índios
potiguares, então aliados dos franceses. Este gentio, empecilho à fixação lusa em 1579,
havia se unido aos tabajaras da aldeia do principal Braço de Peixe ou Piragibe, aliados
dos portugueses até que estes tentaram cativá-los – vicissitude descrita no vigésimo
capítulo do Livro III. Posteriormente, em 1585, a gente do Braço de Peixe pediria nova
trégua aos portugueses, cujos desdobramentos foram relatados por frei Vicente:
“Pera se aperfeiçoarem estas pazes pareceu necessário não se perder tempo,
antes ir-se logo fazer um forte, recuperar a artilharia do outro e assentar a
povoação. Pera o que por todos foi assentado que ninguém podia fazer todas
estas coisas senão o ouvidor-geral Martim Leitão, ao qual o pediram e
requereram todos, e ele o aceitou por serviço de Deus e de el-rei e por bem
destas capitanias e assim se partiu pera a Paraíba (...).”
98
Após a chegada do ouvidor-geral, Martim Leitão, o franciscano descreve
minuciosamente o virtuoso serviço de sujeição dos potiguares e conquista da Paraíba,
uma guerra indubitavelmente justa. O destaque conferido à aldeia tabajara do Braço de
Peixe, ou Piragibe, explica-se pela importância deste gentio no episódio que, alguns anos
depois, envolveria jesuítas e franciscanos. Além dos potiguares e tabajaras, o quarto livro
da História trata de forma residual da guerra movida contra os aimorés em Ilhéus e do
gentio de Cerigipe, que também teria feito uma “grande traição” aos homens da Bahia.
A longa exposição sobre os males causados pelos índios à conquista portuguesa
constitui o prelúdio da chegada definitiva dos franciscanos ao Brasil, onde atuariam em
prol da concórdia e da salvação das almas dos bárbaros gentios. O advento dos frades
seráficos, estrategicamente, é narrado no décimo oitavo capítulo do Livro IV, no qual frei
Vicente trata da morte do bom governador Manuel Teles de Barreto em 1587 e,
sucessivamente, da constituição de uma junta administrativa formada pelo bispo, D.
Antônio Barreiros, o provedor-mor, Cristóvão de Barros, e o ouvidor-geral. Este
momento representa uma inflexão nas guerras que eram travadas com os indíos e
corsários europeus: “E foi próspero o tempo do seu governo, assim por as vitórias que se
98
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 236 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
111
alcançaram contra os inimigos, de que faremos menção em os capítulos seguintes, como
por este tempo se abrir o comércio do Rio da Prata (...).”
99
E é justamente neste momento de inflexão que os franciscanos chegam à vila de
Olinda – a fim de auxiliar os outros religiosos, nas palavras do Insulano. Na História do
Brasil, o tratamento apologético repete-se e a Ordem de São Francisco de Assis aparece
como um dos remédios eficazes aos males causados pelo gentio:
“Também neste tempo e era do Senhor de 1587 (sic) vieram ao Brasil fundar
conventos os religiosos da nossa província capucha de Santo Antônio, com o
irmão frei Melchior de Santa Catarina, religioso de muita autoridade e bom
púlpito, por comissário, por um breve do senhor papa Xisto Quinto, e patente do
nosso reverndíssimo padre geral frei Francisco Gonzaga, que faz do breve
relação do fim do livro que fez de nossa seráfica ordem, e por virem à instância
de Jorge de Albuquerque, senhor de Pernambuco, fizeram lá o primeiro
convento, pela qual causa, e por termos naquela capitania quatro conventos, se
fazem nela os nossos capítulos e congregações custodiais.”
100
Não surpreende que frei Vicente do Salvador tenha errado a data de chegada da
própria ordem ao Brasil. Assim, o advento dos franciscanos passava a coincidir com a
formação de um novo governo que anuncia um período benfazejo à política imperial.
Destarte, o capítulo seguinte discorre sobre como Cristóvão de Barros, logo após a
formação dessa espécie de junta provisória, organizou um contra-ataque às três naus
inglesas que haviam tomado os navios que se encontravam no porto da Bahia e
bombardeado a cidade.
No capítulo vigésimo, a reviravolta em andamento nos negócios brasílicos fica
ainda mais evidente. A matéria é a “guerra tão justa”
101
aos índios de Ceregipe, dada com
licença régia e, portanto, da qual os portugueses esperavam trazer muitos escravos. Este
gentio era responsável pela morte do pai de Cristóvão de Barros, Antônio Cardoso de
99
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 250.
100
Idem, p. 251. Os franciscanos chegaram à vila de Olinda em 1585. No ano de 1587, houve o lançamento
da pedra Fundamental do Convento de São Francisco, em Salvador. Em nota, Capistrano de Abreu informa
que os quatro conventos citados localizavam-se em Olinda, Igaraçu, Recife e Ipojuca.
101
Idem, p. 253.
“Verdade, clareza e juízo”
112
Barros, o primeiro provedor-mor do Brasil, “que ali mataram e comeram indo pera o
reino com o primeiro bispo desta Bahia (...).”
102
“Alcançada a vitória e curados os feridos, armou Cristóvão de Barros alguns
cavaleiros, como fazem em África, por provisões de el-rei que pera isso tinha, e
fez repartição dos cativos e das terras, ficando-lhe de uma coisa e outra muito
boa porção, com que fez ali uma grande fazenda de currais de gado (...).
(...) E assim ficou Cristóvão de Barros não só castigando os homicidas de seu
pai, mas tirando esta colheita aos franceses que ali iam carregar suas naus de pau-
brasil, algodão e peimenta da terra, e sobretudo franqueando o caminho de
Pernambuco e mais capitanias do norte pera esta Bahia e daqui pera elas,
que dantes ninguém caminhava por terra que o não matassem e comessem os
gentios.”
103
O bom serviço prestado significava ligar a cabeça ao corpo do Estado do Brasil,
ou seja, a cidade de Salvador às capitanias do norte, que ainda necessitavam de polícia,
pois os franceses continuavam a ajudar os índios potiguares na Paraíba. Nesta, os
primeiros movimentos franciscanos mostravam-se imprescindíveis. Os frades “trataram
de fazer amigo o governador Frutuoso Barbosa com D. Pedro de la Cueva”
104
, espanhol
que ocupava o posto de capitão da infantaria na Paraíba e, desse modo, promoveram a
concórdia entre as autoridades.
À junta provisória segue-se a vinda de D. Francisco de Sousa como sétimo
governador geral, em 1591. A sua administração estendeu-se até 1602, coroando esse
período benfazejo aos lusitanos. Segundo frei Vicente do Salvador, D. Francisco –
caracterizado pela prudência, liberalidade e magnificência – “foi o mais benquisto
governador que houve no Brasil, junto com o ser mais respeitado e venerado.”
105
Este
juízo, indubitavelmente, era imputado ao conjunto das ações de Sousa, apoiadas pelo rei
Felipe II de Espanha:
102
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 253.
103
Idem, p. 255 (grifo nosso).
104
Idem, p. 258.
105
Idem, p. 261.
“Verdade, clareza e juízo”
113
“Não houve igreja que não pintasse, aceitando todas as confrarias que lhe
ofereciam, murou a cidade de taipa de pilão que depois caiu com o tempo, e fez
três ou quatro fortalezas de pedra e cal, que hoje duram; as principais, que têm
presídios de soldados e capitães pagos são a de Sto. Antônio na boca da barra e a
de São Filipe na ponta de Tapuípe (...). E tudo então podia fazer porque tinha
provisão de el-rei, pera que, quando não bastasse o dinheiro dos dízimos, que é
só o que cá se gasta a el-rei, o pudesse tomar de emprétimo a qualquer outra parte
(...). Porém a nem um outro governador a passou depois tão ampla, antes os
apertou tanto que nem dívidas velhas deel-rei podem pagar sem nova provisão,
nam fazer alguma despesa extraordinária. O motivo que el-rei teve pera alargar
tanto a mão de D.Francisco foi por as guerras da Paraíba, e por os muitos
cossários que então custavam esta costa do Brasil, como veremos em capítulos
seguintes.”
106
Frei Vicente, portanto, passa a discorrer sobre o sucesso obtido nas guerras da
Paraíba, às pazes com os potiguares e, sucessivamente, com os índios aimorés. O frade
baiano faz uma síntese das ações de polícia estabelecida pela coroa para as capitanias do
norte. Entretanto, o louvor de D. Francisco Sousa deve-se ainda a motivos assinalados no
relato de frei Manuel da Ilha e, muito provavelmente, em algum dos capítulos perdidos da
História do Brasil.
107
O Insulano descreve um milagre ocorrido em 1595, quando franceses luteranos
partiram para tomar e arrasar a cidade de Salvador da Bahia. Em resumo, os hereges
passaram pela fortaleza portuguesa de Arguim, na África, assassinaram os portugueses e
roubaram uma imagem do Santo Antônio de Lisboa, colocando-a no convés do navio.
Em seguida, os franceses “fizeram com ela tamanha abominações e maldades, indignas
até de luteranos.”
108
Além de chacotear e ofender o santo, deram-lhe várias cutiladas, e,
por fim, instigaram-no de forma jocosa a levar o navio para a Bahia. Após faltar gêneros
alimentícios à esquadra, outros castigos vieram:
106
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 261-262 (grifo nosso).
107
Os capítulos que não constam da História são o 26, 27, 28, 29 e parte do trigésimo do Livro IV. Esses
capítulos, considerando a narrativa in ordo naturalis, tratam do período entre 1591 e 1597.
108
ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 34.
“Verdade, clareza e juízo”
114
“Aos companheiros, cúmplices e testemunhas dos crimes, reservou Deus
suplícios e castigos que não puderam evitar, pois a breve espaço pereceram
repentinamente: com tal violência enfureceu-se o mar contra os sobreviventes
que, arrojando-os de si como se fosse a espada de Deus vinda com poder judicial
para os ligar e punir, formando uma horrível tempesdade, afogou a maioria deles.
Ficou incólume e intata a nave em que viajava a imagem do beatíssimo pai
Antônio.”
109
Depois de muitos infortúnios, os capitães luteranos dividiram-se já na costa
brasileira: o Pão de Milho foi ao rio Real a fim de abastecer a sua embarcação de água,
onde foi preso pelo gentio aliado aos portugueses; o Malvirado entregou-se ao
governador, após lançar ao mar a imagem do santo português. De acordo com o relato do
Insulano, a imagem de Santo Antônio de Lisboa teria sido levada milagrosamente até
uma praia e, desse modo, os franceses presos em Sergipe, quando levados a Salvador,
achariam-na de pé à espera de seus detratores hereges. Frei Manuel da Ilha narra os
episódios que se seguiram aos milagres do santo franciscano:
Com a chegada dos católicos à cidade da Bahia, divulgou-se logo o milagre
feito em favor de seu santo. Diante disso, os Frades Menores Capuchinhos desta
cidade foram à casa de Guarcia pedir a imagem, transladando-a com grande
solenidade e alegria ao convento de S. Francisco, onde se conserva com muita
devoção e reverência num altar a ela dedicado. A imagem é sobremaneira bela,
com estas chagas vermelhas parece ornada com o martírio. Aliás, tal martírio
Santo Antônio sempre desejou em vida; foi este incontido desejo que o levou da
Ordem dos Cônegos Regulares de S. Agostinho para a nossa ordem. (...)
Todos estes hereges que escaparam incólumes da fúria tempestuosa do mar
devorador e nele não receberam os castigos merecidos por suas abominações
foram, por sua vez, punidos com os outros na cidade da Bahia, onde juntamente
com seu comandante foram torturados e enforcados; eles mesmos foram suas
testemunhas ao confessarem seu crime iníquo diante de todos os magistrados
eclesiásticos e civis; com o apoio neles fez-se um sumárioautêntico o qual se
conserva neste convento, e mais um que foi remetido ao rei da Espanha, Filipe II,
109
ILHA, frei Manuel. Op. Cit, p. 37
“Verdade, clareza e juízo”
115
que logo decretou que a cidade tomasse Santo Antônio por seu padroeiro e que
em sua honra anualmente se celebrasse uma festa solene.”
110
Em virtude dos milagres, D. Francisco de Sousa, em comunhão com os
vereadores e nobres da Bahia, instituiu a confraria de Santo Antônio no Convento de São
Francisco de Salvador. Assentaram ainda que o governador seria sempre o juiz desta
irmandade. A deliberação do governador é transcrita na Narrativa do Insulano.
É possível inferir que os episódios acima tenham sido objeto da prosa de frei
Vicente do Salvador, pois, além da Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil,
fazem parte do Santuário Mariano escrito, já no século XVIII, pelo Frei Agostinho de
Santa Maria, que afirma ter utilizado largamente a História do franciscano.
111
Os milagres do santo lisboeta conferem aos franciscanos um papel importante na
conservação do Estado do Brasil em mãos católicas. O período que se segue à chegada da
ordem de São Francisco de Assis coincide com o governo de D. Francisco de Sousa,
marcado pelas vitórias frente aos índios e aos corsários franceses e ingleses. D. Francisco
era um súdito pio que primou pela união da cruz e da espada na conquista do território
americano. Nos relatos escritos pelos frades, os franciscanos não apenas tiveram um
papel imprescindível na conquista espiritual do Brasil e na salvação das almas indígenas,
mas destacaram-se, sobretudo, pela atuação miraculosa de Santo Antônio, na proteção
militar dos portugueses.
Mas o santo de Lisboa não era o único a intervir nos negócios terrenos. Há outras
partes da História em que frei Vicente do Salvador relata a intervenção mística a favor
dos portugueses. No livro V, o frade baiano conta que teria testemunhado um desses
milagres quando viajou à capitania de Pernambuco, em uma caravela de castelhanos, com
o governador Gaspar de Sousa. A embarcação enfrentava uma grande tormenta e o
governador mandou soltar os presos, solicitando também aos franciscanos que lhes
dessem alguma relíquia e rezassem.
110
ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 34
111
O trecho do Santuário Mariano que trata dos respectivos milagres de Santo Antônio são transcritos por
Willecke e inseridos ao fim do Livro IV, pp. 303-306.
“Verdade, clareza e juízo”
116
“(...) E meu companheiro lhe mandou o cordão com que estava cingido, o
qual penduraram do bordo até o mar, e quis Nosso Senhor que a caravela
incontinente se quietasse e moderasse o vento e os mares, de modo que ao dia
seguinte entramos com bonança.
O que visto pelos castelhanos não quiseram tornar o cordão, dizendo que por
ele esperavam de ir seguros de tempesdades ao rei da Prata. Nem foi só a vez,
mas infinitas, as que Deus por meio do cordão de nosso seráfico padre São
Francisco há livrado a muitos de naufrágios e feitas outras muitas
maravilhas, pelo que sejam dadas infinitas graças e louvores.”
112
Em relação aos jesuítas, que haviam sido seus primeiros mestres no Colégio de
Salvador, frei Vicente destaca, com certa veneração, as figuras de Nóbrega, Anchieta,
Fernão Cardim e Luís Figueira. Conquanto as questões que envolveram os padres
inacianos e os frades menores na capitania da Paraíba não sejam mencionadas na
História, o franciscano, em uma passagem, não deixa de enaltecer a experiência destes no
trato com o gentio.
O exemplo da eficiência franciscana provém da mesma capitania da Paraíba, onde
um índio chamado Surupiba, após descer o rio apregoando a paz, foi preso em ferros
pelos portugueses, os quais lhe conferiram bom tratamento pela “persuasão dos padres da
Companhia, posto que contradizendo-o o nosso irmão frei Bernardino, que conhecia
bem suas traições e enganos.”
113
Afinal, o índio foi solto, prometeu apaziguar o gentio
potiguar e trazê-lo aos católicos. Ao invés de entregarem-se, os potigures armaram mais
uma emboscada para os soldados portugueses.
Nas demais passagens em que trata dos frades menores, frei Vicente sempre tece
elogios ao auxílio prestado às autoridades lusitanas, em virtude da perícia na língua
brasílica e da facilidade em converter o gentio. A menção aos franciscanos não se fazia
sem um epíteto encomiástico. Assim, o frei Cosme de Damião é descrito como “varão
prudente e observantíssimo de sua regra” e frei Manuel da Piedade como letrado e
112
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 349-350 (grifo nosso).
113
Idem, p. 268 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
117
pregador mui perito na língua do Brasil, e respeitado dos índios potiguares e
tobajares.”
114
No Livro V, o papel dos franciscanos portugueses – mais especificamente dos
irmãos da Custódia de Santo Antônio do Brasil – destaca-se, ainda mais durante a
retomada do Maranhão aos franceses. Os serviços pios foram prestados mesmo antes de
1621, quando foi fundado o Estado do Maranhão e Grão-Pará, apartado do Estado do
Brasil, e de 1624, ano de criação da Custódia do Maranhão, também subordinada
diretamente à Província franciscana de Portugal. O papel da custódia maranhense seria
mencionado já no fim da História, quando frei Vicente tece elogios à excelente atuação
de frei Cristóvão de Lisboa. Diante da presença anterior dos capuchinhos franceses, frei
Vicente afirma:
“E também se foram logo os frades franceses, vendo o pouco fruto que
faziam na doutrina dos gentios por lhe não saberem a língua, deixando aos dois
da nossa custódia que os entendiam e sabiam os seus modos, e não foram
pouco admirados de ver que nestas partes tão remotas houvesse religiosos
tão observantes da regra do nosso seráfico padre São Francisco. Não menos
o ficaram os nossos de ver que religiosos de tanta virtude e autoridade viessem
em companhia de hereges, posto que nem todos o eram, que muitos eram
católicos romanos, que ouviam missa, confessavam-se e comungavam.”
115
Na descrição da disputa pelo litoral norte da América, os adjetivos empregados
para qualificar a pátria subordinam-se às representações de católicos e hereges. Os
capuchinhos franceses, não obstante estivessem ao lado de hereges, apresentavam tanta
virtude quanto os portugueses, mas estes já sabiam a língua dos índios e, portanto,
obtinham mais êxito em sua conversão.
Em poucas palavras, os franciscanos da Custódia de Santo Antônio do Brasil
demonstravam-se eficentes na conversão do gentio, respeitosos às autoridades temporais
e espirituais, e, desse modo, imprescindíveis ao bom governo do Brasil. A associação das
ordens religiosas com o governo fica evidente no trigésimo nono capítulo do Livro IV,
114
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 337-338.
115
Idem, p. 343 (grifo nosso).
“Verdade, clareza e juízo”
118
trecho que, segundo o frei Venâncio Willecke, constaria também da Crônica de Vicente
do Salvador, visto que se encontra também na Narrativa de frei Manuel:
“[É tão necessário ao bom governo do Brasil zelarem os governadores a
conversão dos gentios naturais e a assistência dos religiosos com eles que, se
isto viesse a faltar, seria grande mal porque, como estes índios não tenham bens
que perder por serem pobríssimos e desapropriados e por outra parte tão variáveis
e incostantes, que os leva quem quer, facilmente se espalham donde não podem
acudir aos rebates dos inimigos, como acodem das doutrinas que os religiosos os
têm juntos] e principalmente contra os negros da Guiné, escravos dos
portugueses, que cada dia se lhes rebelame andam salteandopelos caminhos e se
o não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os
buscam e os trazem presos a seus senhores ”
116
Os relatos de ambos franciscanos – Manuel da Ilha e Vicente do Salvador – não
posicionam a sua ordem em uma relação de disputas com os outros missionários.
Inversamente, os frades menores encontram-se lado a lado com as demais ordens
religiosas no sentido de promover a concórdia no interior do império católico. A
concórdia, conceito escolástico fundamental, representava um dos valores políticos a ser
perseguido pelo Estado cristão, em oposição ao acirramento das facções que debilitavam
a saúde do corpo imperial. Assim, também na História do Brasil, o conceito ocupa um
lugar importante, pois frei Vicente do Salvador fornece exemplos a fim de garantir a
união mística dos súditos, ordenados em uma hierarquia providencial, encabeçada pelo
rei e posta em serviço da Vontade do Senhor.
116
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 285 (grifo nosso). Em nota ao trecho entre
colchetes, Willecke afirma pertencer à Crônica, conforme Capistrano de Abreu supunha. Infere ainda que
todo o capítulo 39, com exceção das estatísticas, faziam parte da Crônica escrita em 1617 pelo frei Vicente
do Salvador.
CAPÍTULO III
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
A narrativa de frei Vicente do Salvador divide-se em cinco livros, compostos e
ordenados conforme o decoro prescrito aos gêneros historiográficos no Seiscentos. Essa
combinação específica das categorias retóricas da inventio, dispositio e elocutio fornecia
exemplos de ações virtuosas e conselhos prudentes ao governo do Brasil, além de
mobilizar encômios às autoridades religiosas e seculares portuguesas responsáveis pela
conquista e conservação deste Estado. Este capítulo discorre sobre a confecção dos livros
da História do Brasil e, depois do breve panorama, aprofunda a análise das tópicas mais
importantes que perpassam o escrito do franciscano.
O Livro Primeiro, composto de 17 capítulos, inicia-se com o descobrimento,
episódio fundamental não apenas pela participação virtuosa dos franciscanos que
acompanharam Cabral, mas pela legitimidade que confere à ocupação portuguesa na
América. À opção, que certamente contempla o preceito da narrativa in ordo naturalis,
subjaz a concepção de que os índios não possuíam história “porque entre eles não há
escrituras, nem houve algum autor antigo que deles escrevesse”.
1
Ademais, define que o
tempo do império português constitui a referência à história do frade baiano e confere à
escrita um caráter colonizador, “pela imposição sistemática da referência ao tempo
ocidental e cristão, já que a colonização dos tempos acompanhou a colonização do espaço
em todas as partes”.
2
O Brasil, segundo frei Vicente do Salvador, “não se descobriu de propósito e
principal intento, mas acaso (...)”.
3
Pedro Álvares Cabral navegava em direção à Índia e
“achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia notícia alguma”.
4
Desta forma, o frade
baiano pôde creditar o descobrimento do Brasil como parte dos desígnios de Deus, que
governa os destinos deste mundo e teria reservado essa parte da América aos lusitanos.
1
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 77. Neste capítulo, apenas foi utilizada a edição de
1982, que incorporou a crítica documental de frei Venâncio Willecke, realizada para a 5ª edição, após
consulta do apógrafo guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.
2
GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories, p.184.
3
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 56.
4
Idem, ibidem.
Excluído: do Brasil
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
121
Do ponto de vista do tomismo, “quando um efeito escapa à ordem de uma causa
particular, nós o chamamos de casual ou fortuito, em relação a esta causa particular;
porém, em relação à causa universal, de cuja ordem não se pode escapar, nós o
chamamos previsto.”
5
A missão portuguesa de levar a verdade cristã aos pagãos evidencia-se já no
segundo capítulo, em que trata do nome da terra, com base no lugar comum do
esquecimento do primeiro topônimo “Santa Cruz”:
“Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha
sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra,
trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa
de um pau com que tingem panos, do qual há muito, nesta terra, como que
importava mais o nome de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha
com que tingem panos que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos
os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem
fundada como sabemos”.
6
O lugar comum enseja a primeira menção à conservação ou firmeza do Estado do
Brasil, tópica, por sua vez, que constitui um dos pilares da teoria política escolástica. Era
necessário fundar este estado em bases sólidas, ou seja, na Santa Cruz, símbolo da
verdadeira fé levada pelos portugueses às quatro partes do mundo. De acordo com frei
Vicente, o Brasil era “tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto
escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra
tão grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em aumento.”
7
Mas a razão
da instabilidade não era fruto apenas do equívoco dos nomes, mas dos reis portugueses,
que, com exceção de D. João III, “que o mandou povoar e soube estimá-lo”, não se
interessaram pela terra “senão para colher as suas rendas e direitos”.
8
Desse modo, os exemplos fornecidos ao longo da narrativa visavam auxiliar na
conservação do Brasil e, sucessivamente, do império católico, visto como um corpo
5
AQUINO, São Tomás de.Suma teológica, p. 442.
6
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 57 (grifo nosso).
7
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
122
político no qual o rei representaria a cabeça. O bom funcionamento e, respectivamente, a
saúde desse corpo – a concórdia entre os súditos conduzidos pelo monarca para o mesmo
fim – levariam ao estabelecimento do bem comum e à prosperidade de cada uma das
partes. Como a missão do império revestia-se de uma aura sacramental, as ações de cada
súdito conferiam-lhes uma parcela de responsabilidade no processo escatológico, embora
nem sempre os seus atos contribuíssem plenamente à realização da Providência Divina:
“E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados
que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pertendem levar a Portugal e, se
as fazendas e bens que possuem souberam falar também lhe houveram de ensinar
a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio
real pera Portugal, porque tudo querem para lá(...).
Donde nasce também que nem um homem nesta terra é republico, nem
zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular.
(...) Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma
piedade, porque, atendo-se uns aos outros, nenhum as faz, ainda que bebam água
suja e se molhem ao passar dos rios ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto
vem de não tratarem do que cá há de ficar, senão do que hão de levar para o
reino.”
9
A preocupação do franciscano com a dicotomia, existente no Brasil, entre o bem
comum e o bem particular parece derivar de um dos pontos da Política aristotélica, no
qual o Estagirita propõe a seguinte questão: “que vida preferir, a que toma parte do
governo e dos negócios públicos ou a vida retirada e livre de todos os embaraços do
gênero?”
10
Segundo Aristóteles, a felicidade dos cidadãos constitui a natureza e o fim das
sociedades políticas, formadas para que os homens possam bem viver juntos. É da
natureza do homem que viva civicamente: “nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele
que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um
9
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., pp. 57-58 (grifo nosso).
10
ARISTÓTELES. A Política, pp. 58-59.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
123
deus, ou um bruto”.
11
Destarte, o filósofo conclui que “a fonte da felicidade é a mesma
para os Estados e para os particulares”.
12
Em uma leitura teológico-política, caracteristicamente escolástica, a concórdia
entre os súditos do rei era um elemento fundamental ao êxito do Estado Cristão, por sua
vez, instrumento dos desígnios divinos entre os homens. Se, para Aristóteles, o governo
justo é aquele que busca senão a felicidade geral, para São Tomás de Aquino e os
tomistas, a felicidade última do homem está na contemplação da Verdade. Assim, a
respublica cristiana deveria buscar a felicidade geral pela via de propagação e
estabelecimento da verdadeira fé entre pagãos, hereges e infiéis. As três categorias,
embora distintas, eram percebidas como ameaças aos alicerces deste Estado fundado em
bases teológicas.
Além da conservação, a razão de estado seiscentista prescrevia o aumento dos
impérios como elemento indispensável à saúde dos corpos políticos, quase sempre
articulada à noção de guerra justa. É nesse sentido que frei Vicente do Salvador, ao tratar
da demarcação das terras portuguesas com as Índias de Castela, formula a engenhosa
alegoria:
“Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até
agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo
grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de
as andar arranhando ao longo do mar feito caranguejos.”
13
Ao longo da narrativa, outros diversos tropos são utilizados a fim de ornamentar
os argumentos e deleitar o discreto leitor. Para descrever a terra do Brasil, por exemplo,
frei Vicente tece uma analogia com a forma de uma harpa, “cuja parte superior fica mais
larga ao norte correndo do Oriente ao Ocidente, e as colaterais (...) se vão ajuntar no rio
11
ARISTÓTELES. A Política, p. 5.
12
Idem, p. 64.
13
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 59. No Livro IV, ao tratar da Ilha de Santa Catarina, o frade
baiano afirma que estava despovoada “por ser os portugueses que não sabem povoar nem aproveitar-se das
terras que conquistam.” Idem, p. 218.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
124
da Prata”.
14
Além da descrição, o franciscano indica inúmeras imagens ao longo do texto
com o mesmo intuito de ensinar, persuadir e deleitar.
15
O interesse nos sertões não se vinculava apenas à possível existência de metais e
pedras preciosas nessas partes do Brasil, matéria do quinto capítulo. A catequese do
gentio, que havia se deslocado da costa ao interior, também era um motivo para a
presença dos representantes espirituais da Coroa no sertão, conforme pode ser apreendido
na seguinte passagem:
“(...) agora me é necessário continuar com murmuração, havendo de tratar das
minas do Brasil, pois, sendo contígua esta terra com a do Peru, que a não divide
mais do que uma linha imaginária indivisível, tendo lá os castelhanos descobertas
tantas e tão ricas minas, cá nem uma passada dão por isso, e quando vão ao
sertão é a buscar índios forros, trazendo-os à força e com enganos para se
servirem deles e os venderem com muito encargo de suas consciências. E é
tanta a fome que disto levam que, ainda que de caminho achem mostras ou novas
de minas, não as cavam, nem ainda as vêm ou as demarcam”.
16
Ao gentio são dedicados os últimos seis capítulos deste primeiro livro, ainda que a
necessidade de catequese dos pagãos perpasse toda a História do Brasil. Nas linhas
acima, o franciscano combina duas reprimendas aos súditos da Coroa no Brasil. Refere-
se, primeiramente, ao desinteresse pelos metais e pedras preciosas, que, se descobertos,
serviriam para fortalecer e aumentar o poder da Monarquia Católica. Da mesma forma, o
tratamento que era conferido aos indígenas não estava de acordo com as leis imperiais e
romanas, as quais estabeleciam que a escravidão dos indígenas só seria permitida quando
fossem movidas guerras justas.
Os argumentos utilizados para descrever os índios e seus costumes, analisados
mais adiante, fazem parte da descrição minuciosa dos elementos naturais à terra. No que
se refere à natureza, frei Vicente discorre sobre o clima em primeiro lugar, pois era
14
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 59.
15
Capistrano de Abreu informa que essas estampas foram perdidas. No entanto, de acordo com frei
Venâncio Willecke: “Parece que nunca chegou a haver as estampas previstas, mas sim que frei Vicente as
pretendia encomendar em Portugal.” Cf. Prolegômenos ao Livro I da História do Brasil, p. 49.
16
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp.62-63 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
125
necessário responder a Aristóteles e a outros filósofos antigos, que defendiam a
impossibilidade de se habitar a zona tórrida. O franciscano valoriza a experiência diante
da opinião do filósofo:
“Donde se responde ao argumento de Aristóteles que o sol aquenta mais na
zona tórrida que na temperada intensivè, mas não extensivè, e que esta intensão
de calor se modera com os ventos frescos do mar e umidade da terra, junto com a
frescura do arvoredo de que toda está coberta; de tal sorte que os que a habitam
vivem alegremente. O em que se verifica a opinião dos filósofos é nas coisas
mortas, porque, estando nas outras terras a carne três ou quatro dias sã e
incorruta, e da mesma maneira o pescado, nesta não está vinte e quatro horas que
se não dane e corrompa.”
17
Em seguida, frei Vicente, como os demais tratadistas coevos, discorre sobre as
árvores agrestes; as ervas medicinais e suas qualidades ocultas; os mantimentos,
destacando a mandioca como principal alimento dos habitantes; os animais e os bichos;
as aves e “outras coisas que há no mar e terra do Brasil”. A descrição da natureza
emprega diversas hipérboles – como, por exemplo, o juízo de que o Brasil era “o mais
abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo”.
18
Antes de começar a tratar
do gentio, frei Vicente do Salvador conclui que “digna é de todos os louvores a terra do
Brasil”.
19
Na perspectiva seiscentista, essa exposição inicial sobre a natureza associava-se
aos negócios do governo, pois as teorias da razão de estado fundavam-se no direito
natural. A concepção tomista de natureza como ordem do mundo estabelecia fins
específicos para cada coisa, entre elas a própria sociedade política, a qual, de acordo com
os teóricos da Segunda Escolástica, inseria-se em um universo hierarquicamente
ordenado e governado, em última instância, pelos desígnios divinos. Deus é a causa
primeira, que instaurou esse sistema de leis e depositou no universo marcas passíveis de
serem interpretadas pelos homens. História e natureza, portanto, convergiam.
17
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 62.
18
Idem, p.68.
19
Idem, p. 76.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
126
O Livro Segundo, composto de 14 capítulos, trata sobretudo das capitanias
hereditárias até a criação do Governo Geral, em 1549. A partir deste livro, todos os
demais iniciam-se pelas ações ou ordens régias. Assim, D. Manoel, D. João III, Felipe II
e Felipe III, respectivamente, são citados nas primeiras sentenças dos livros II, III, IV e
V.
20
A estrutura narrativa da História do Brasil, portanto, é análoga à hierarquia do
poder vigente no império católico. Os atos virtuosos da cabeça imperial constituíam fonte
de exemplos emulados aos súditos responsáveis pelo bom governo no Ultramar, matéria
principal desta prosa encomiástica, alegoria do poder régio.
O primeiro capítulo do Livro II discorre sobre as expedições costeiras ordenadas
pelos reis portugueses D. Manoel II e D. João III. Talvez por isso, frei Vicente inverta a
ordem adotada na narrativa de Gandavo e inicie a sua exposição do sul para o norte, com
as capitanias dos irmãos Pero Lopes e Martim Afonso de Sousa, os quais já haviam
“andado por estas partes do Brasil”.
21
Há um roteiro que perpassa a descrição das
capitanias, contemplado não necessariamente nesta ordem: o nome do donatário que
recebeu a mercê régia, sempre seguido de epítetos como “fidalgo mui honrado”; as vilas
e povoações fundadas; as primeiras lavouras e criações; os conflitos com o gentio ou a
presença de corsários franceses; milagres havidos em prol dos portugueses.
A eloqüência prescrita ao gênero historiográfico nos séculos XVI e XVII
manifesta-se ainda pelas hipérboles e metáforas, entre as quais a da cabeça e do corpo é a
mais recorrente, sobretudo para designar a vila onde se estabelecia o governo de cada
uma das terras doadas. O capítulo que trata da capitania da Bahia, nesse sentido, é
retoricamente exemplar aos demais:
20
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, Livro II: “Posto que el-rei D. Manuel, quando soube a
nova do descobrimento do Brasil (...), andava mui ocupado com as conquistas da Índia Oriental, (...) não
deixou, quando teve ocasião, de mandar uma armada de seis velas (...).”, p. 103. Livro III: “Depois que El-
Rei soube da morte de Francisco Pereira Coutinho (...) determinou povoá-la e fazer nela uma cidade (...).”,
p.143. Livro IV: “Como a Majestade de El-Rei Filipe Segundo de Castela e Primeiro de Portugal foi jurado
nele por rei no fim do ano de 1580, (...) mandou como governador a Manuel Teles Barreto (...).”, p. 216.
Por fim, o Livro V inicia-se com as seguintes palavras: “Sabida por sua Majetasade a nova da morte de D.
Francisco de Sousa, tornou a juntar todo o governo do Brasil em um e o deu a Gaspar de Sousa.”, p. 336. O
livro primeiro, embora informe que Pedro Álvares Cabral navegava “por mandado de el-rei Dom Manoel”,
inicia-se de forma diferente: “A terra do Brasil, que está na América, uma das quatro partes do mundo
(...)”, p. 56.
21
Idem, p. 104.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
127
“Toma esta capitania o nome de Bahia por ter uma tão grande que por
antonomásia e excelência se levanta com o nome comum e apropriando-se a si se
chama a Bahia, e com razão, porque tem maior recôncavo, mais ilhas e rios
dentro de si que quantas são descobertas no mundo, (...); nem há terras que
tenha tantos caminhos por onde se navega.
As ilhas que tem dentro de si tem, entre grandes e pequenas, trinta e duas: só
tem um senão que é não se poder defender a entrada dos corsários, porque tem
duas bocas ou barras uma dentro da outra: (...).
Está esta baía a treze graus e um terço, e tem em seu circuito a melhor terra
do Brasil; (...) pelos que os índios velhos comparam o Brasil a uma pomba,
cujo peito é a Bahia, e as asas outras capitanias, porque dizem que na Bahia
está a polpa da terra, e assim dá o melhor açucar que há nestas partes”.
22
De modo geral, a estratégia narrativa repete-se: depois de louvar as qualidades e
potencialidades da terra, o capítulo expõe a dificuldade em se manter povoações estáveis
na terra, ora com referências ao gentio, ora com referências aos corsários. No último
capítulo deste livro, frei Vicente lamenta que o Maranhão não tivesse sido povoado, o
que havia permitido a fixação dos franceses, e adverte que, até aquele ponto do discurso,
adotara uma ordo artificialis, mas que, doravante, seguiria o preceito da narrativa in ordo
naturalis:
“Mas hão se aqui por fim deste advertir duas coisas: a primeira que não
guardei nele a ordem de tempo e antiguidade das capitanias e povoações, senão a
do sítio, contiguação de umas com outras, começando do sul pera o norte, o que
não farei nos seguintes livros, em que seguirei a ordem do tempo e sucesso das
coisas. A segunda, que não tratei das do Rio de Janeiro, Serigipe, Paraíba e
outras, porque estas se conquistaram depois e povoaram por conta del-rei,
por ordem dos seus capitães e governadores gerais, e terão o seu lugar quando
tratarmos deles, em os livros seguintes”.
23
22
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 112 (grifo nosso).
23
Idem, p.129 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
128
O Livro Terceiro, composto de 26 capítulos, tem início com a chegada de Tomé
de Sousa ao Brasil e termina com o episódio da sucessão do Reino de Portugal, e a
coroação de Felipe I, em 1580. Se o tempo do império – parte da era do Senhor – fornece
os marcos que balizam a História, o seu principal foco, conforme pode ser apreendido do
trecho acima, são os sucessivos governos e as ações dos representantes da autoridade
régia no Ultramar, julgados com base nos critérios da Segunda Escolástica. Destarte, o
capítulo primeiro deste livro trata da determinação régia de povoar a Bahia “e fazer nela
uma cidade, que fosse como coração no meio do corpo, donde todas se socorresem e
fossem governadas”.
24
Os representantes do rei chegavam para remediar os males do Brasil e unir o
corpo à cabeça do império. No coração do estado, ficariam sediados, além do governador
e o ouvidor-geral, os jesuítas, enviados para doutrinar o gentio. Assim seria o caso da
cidade do Salvador, cujo próprio nome já denuncia as suas atribuições vitais frente às
necessidades dos donatários envolvidos em conflitos com índios e corsários. De acordo
com frei Vicente, por volta de 1550, o estado do Brasil era muito estimado pelos
lusitanos, que cogitavam, hipoteticamente, a possibilidade de transferir o reino a essas
terras em caso de invasão de Portugal, pois as Índias eram muito distantes e as ilhas
atlânticas pequenas para abrigar a corte. “Mas toda esta reputação e estima do Brasil se
acabou com el-rei D. João, que o estimava e reputava.”
25
Os capítulos seguintes narram as ações dos governadores Tomé de Souza, que se
cansou de lutar com os degredados e solicitou ao rei que o substituísse, e D. Duarte da
Costa, que veio a Salvador em companhia de seu filho, D. Álvaro, e de mais irmãos da
Companhia de Jesus, “um dos quais era José de Anchieta, que depois foi cá seu
provincial e se pode chamar apóstolo do Brasil pelas obras e milagres que nele fez, como
o padre São Francisco Xavier se chamou da Índia.”
26
Entre as autoridades desse tempo,
destaca-se ainda o primeiro bispo, D. Pedro Fernandes Sardinha, “pessoa de muita
autoridade e exemplo e extremado pregador.”
27
24
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 143 (grifo nosso).
25
Idem, p. 145.
26
Idem, p. 147.
27
Idem, p. 146.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
129
Entre todos os governos tratados no terceiro livro, o de Mem de Sá, que esteve à
frente do Brasil durante 15 anos, decerto recebe mais encômios, posição defendida
primeiramente pelo padre Manoel da Nóbrega e reafirmada, desde então, pelos jesuítas.
Os louvores, contudo, não se devem apenas ao tempo que fora dedicado aos serviços
prestados à Coroa. Mem de Sá, segundo frei Vicente do Salvador, “com razão pode ser
espelho de governadores do Brasil, porque, concorrendo nele letras e esforço, se sinalou
muito na guerra e justiça.”
28
O franciscano refere-se aos conflitos nas capitanias do Rio
de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco, contra o gentio e seus aliados franceses.
29
Entretanto, a linearidade da narrativa dos governos é composta ainda de algumas
digressões que relacionam os acontecimentos do ultramar ao reino, ou, mais
precisamente, à cabeça do império. Nesse sentido, após discorrer sobre cinco naus,
capitaneadas por D. João de Menezes de Sequeira que arribaram na Bahia antes de
seguirem para as Índias, frei Vicente do Salvador conclui o capítulo com a primeira
referência a Felipe II:
“Também este mesmo ano de 1555 se recolheu o imperador Carlos Quinto à
religião no convento de S. Jerônimo de Juste, por ser lugar sadio, e acomodado a
quem larga o governo e inquietações do mundo, que ele deixou ao muito católico
príncipe D. Filipe seu filho.
30
O interesse pelo início do governo de Felipe II se explica pelos acontecimentos
que, posteriormente, resultaram na união das coroas ibéricas. O mesmo procedimento de
ligar o Brasil à futura cabeça do império repete-se no capítulo seguinte:
“Seguiu-se o ano de 1557, mui sinalado assim pela morte do imperador
Carlos Quinto, que nele morreu na idade de cinqüenta e oito anos e sete meses,
renunciando ainda em vida em seu filho Filipe os seus reinos, e em seu irmão
Fernando o império, e recolhendo-se em um mosteiro onde acabou
28
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p.151.
29
As tópicas do bom governo e da guerra justa serão analisadas posteriormente, ainda neste capítulo.
30
Idem, p. 149.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
130
felicissimamente a vida; como pela morte de el-rei D. João, que faleceu em 11
de junho de idade de cinqüenta e cinco anos, tendo reinado trinta e cinco.”
31
Este tipo de referência constitui parte fundamental da História do Brasil de frei
Vicente do Salvador. A digressão acima assinala que, em 1557, as histórias de Portugal e
Espanha se vincularam pela primeira vez em virtude da morte dos dois monarcas.
Apenas o sucessor do trono espanhol foi mencionado, afinal, em 1580, Felipe II tornar-
se-ia também o I de Portugal, episódio tratado no último capítulo deste terceiro livro,
quando as histórias providencialmente se encontram.
O franciscano inicia o epílogo do Livro III pelo breve reinado de D. Henrique,
“por morte de el-rei D. Sebastião seu sobrinho”, e pela preocupação “sobre quem havia
de lhe suceder no reino.”
32
Esta é a última menção da História ao rei morto em África; as
anteriores são igualmente breves, conquanto encomiásticas. A primeira delas informa
que, em 1559, na regência de D. Catarina, D. Sebastião não tinha mais que cinco anos de
idade.
33
Posteriormente, o franciscano cita a morte de Duarte de Albuquerque Coelho em
companhia do monarca, que, mais adiante, recebe os devidos louvores:
“Tão zeloso era el-rei D. Sebastião da honra de Deus e de guerrear por ela
contra os infiéis, que só por isto aceitava o casamento (a que não era afeiçoado) e
não queria outro dote. Mas, não se concluindo este matrimônio, que tantos males
e desventuras pudera escusar, casou com ela Henrique de Bourbon, duque de
Vandoma e príncipe de Biarne, e el-rei D. Sebastião continuou com suas guerras,
que era o que desejava sobre todas as coisas da vida, até que nelas a perdeu.”
34
Destacam-se ainda as ações régias no Brasil, sempre a serviço de Deus, quando
nomeou Cristóvão de Barros – “homem sagaz e prudente e bem afortunado em as
guerras”
35
– governador do Rio de Janeiro, a fim de submeter definitivamente os tamoios,
31
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 151.
32
Idem, p. 193.
33
Idem, p. 154.
34
Idem, p. 177. A morte do donatário de Pernambuco está na página 173.
35
Idem, p. 178.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
131
e quando dividiu o governo em dois centros, para as capitanias do sul e do norte,
ordenando a conquista da Paraíba, contra franceses e índios potiguares.
Se neste último capítulo, por um lado, a referência a D. Sebastião é fugaz, por
outro, frei Vicente define precisamente a linhagem dos candidatos à sucessão de Portugal,
“todos netos de el-rei D. Manuel, pai dos seus genitores e do mesmo Henrique, seu tio.”
36
De modo prudente, frei Vicente confere legitimidade a todos, embora tome partido,
sutilmente, de um dos lados da contenda:
“El-rei, posto que de princípio se inclinou à parte da duquesa de Bragança,
contudo por ser fêmea e el-rei católico varão e por outras razões se resolveu que
a ele pertencia o reino; mas não o quis declarar por sentença, nem em testamento,
porque era melhor pera os pertensores e pera o mesmo rei de Portugal, que lho
dessem por concerto.
Já a este tempo el-rei se achava mui fraco e foi apertando o mal de maneira
que morreu sendo de idade de sessenta e oito anos e os perfez no mesmo dia em
que morreu, que foi o último rei de Portugal de linha masculina e, como o
primeiro senhor de Portugal, se chamou Henrique, assim se chamou o último.”
37
Era necessário, portanto, que os direitos do novo monarca fossem reconhecidos
pelas diversas partes do corpo político, para que Portugal pudesse ser governado em
concórdia, buscada pelo próprio Felipe II:
“(...) E já estava assegurado de consciência, com pareceres de teólogos e
canonistas, que o podia fazer e se aparelhava pera isso; mas escreveu primeiro
aos governadores e a cinco principais cidades do reino e aos três estados que
estavam em cortes em Almeirim, pedindo que os declarassem conforme à
vontade do rei defunto seu tio e a sei direito.”
38
36
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 193. Refere-se ainda aos pais dos pretendentes ao
trono.
37
Idem, ibidem (grifo nosso).
38
Idem, p. 194 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
132
Além da tentativa de convencimento da nobreza portuguesa com argumentos
teológico-jurídicos, Felipe II ordenou que as tropas do Duque de Alba entrassem no reino
lusitano para debelar os partidários de D. Antônio. O episódio ensejou novamente a
ligação entre os acontecimentos do reino e do ultramar, pois Tristão Vaz da Veiga –
partidário do prior do Crato e irmão de Lourenço da Veiga, governador do Brasil –
entregara a torre de São Gião ao exército castelhano em troca das mesmas mercês que lhe
seriam dadas por D. Antônio. Em nenhum momento frei Vicente do Salvador questiona a
legitimidade de Felipe II, mas apenas a ação de Tristão da Veiga:
“Hei dito estas coisas em suma, não sem prepósito, senão para declarar o
achaque ou ocasião da morte do governador do Brasil Lourenço da Veiga, que,
como se prezava de português, sentiu tanto haver seu irmão Tristão Vaz da Veiga
entregue a torre de São Gião da maneira que temos visto, que ouvindo a nova
enfermou e morreu.
E assim acabou o governador Lourenço da Veiga, e nós com ele acamos
também este livro.”
39
O Livro Quarto compreende o período entre 1582 e 1612, ou seja, desde o
governo de Manuel Teles Barreto até a vinda de Gaspar de Sousa. A julgar pela relação
entre quantidade de páginas e período analisado, os dois últimos livros são os mais
importantes da História do Brasil, respectivamente, compostos de 47 e 49 capítulos, o
que significa, em uma primeira análise, um destaque ao período da União Ibérica.
40
Mas
há outros elementos que devem ser considerados, como a chegada dos franciscanos, os
combates contra o gentio e as ameaças de corsários.
O primeiro capítulo deste livro já anuncia a presença de naus francesas e inglesas
no Rio de Janeiro e São Vicente. O seguinte discorre sobre a passagem do estreito de
Magalhães realizada pelo corsário inglês Francisco Drake, que, no ano de 1579, colocou
o vice-reino do Peru em desassossego. Entretanto, a presença de armadas a serviço de
39
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 194 (grifo nosso).
40
O Livro II possui 14 capítulos relativos à primeira metade do século XVI; o Livro III, com 26 capítulos,
refere-se a cerca de 32 anos – entre 1549 e 1581. O quarto livro narra 30 anos de história em 47 capítulos,
dos quais foi perdida a parte que vai do fim do XXV até o início do XXX. Por fim, o quinto livro trata de
cerca de apenas 15 anos em 49 capítulos, dos quais também foram perdidos a parte que vai do fim do IX ao
XVII capítulo.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
133
outras coroas, embora prenuncie os acontecimentos do último livro da História do Brasil,
constitui apenas desvios em meio ao principal propósito dessa parte da narrativa. Os
franceses, aliados dos potiguares, representavam um obstáculo à catequese dos pagãos e,
portanto, ao fim cristão da conquista que, concomitantemente, fornecia-lhe o seu esteio
moral.
De acordo com a pena de frei Vicente do Salvador, os sucessos mais importantes
relacionam-se à conquista da capitania da Paraíba, nos quais os franciscanos
desempenharam importante papel. De fato, os conflitos com os potiguares, que se
iniciaram em 1574 e estenderam-se até 1599, estruturam o Livro IV ao lado das não
menos importantes guerras justas contra o gentio de Cerizipe e os aimorés em Ilhéus. O
capítulo vigésimo terceiro marca um ponto de inflexão da narrativa, expresso pela
chegada de D. Francisco de Sousa, o qual, segundo juízo do franciscano, fora o melhor
governante que houve no Brasil, à frente dos negócios públicos entre 1591 e 1602.
As ações virtuosas de D. Francisco, indubitavelmente, destacam-se como a
principal matéria deste terceiro livro, sobretudo pelos resultados obtidos frente aos índios
e hereges, os quais propiciam palavras encomiásticas, adequadas aos gêneros
historiográficos. O penúltimo capítulo ainda menciona o seu retorno para governar as
capitanias do sul em 1609. Segundo o franciscano, o posto de governador do Rio de
Janeiro e capitanias meridionais foi conferido a D. Francisco em virtude dos bons
serviços prestados à coroa:
“Muito se receava no Brasil, pelo muito dinheiro que D. Francisco de Sousa
havia gastado da fazenda de Sua Majestade, que lhe tomassem no reino estreita
conta; porém, como nada tomou pera entesourar, antes do seu próprio gastou,
como o outro grão-capitão, não tratou e-l-rei senão de lhe fazer mercês. E, porque
ele não pediu mais que o marquesado das minas de São Vicente, o tornou a
mandar a elas, com o governo do Espírito Santo, Rio de Janeiro, e mais
capitanias do Sul, ficando nas do Norte governando D. Diogo de Menezes (...).
(...) D. Francisco foi pera as minas, e D. Antônio pera o reino com as mostras
do ouro delas, de que levava feita uma cruz e uma espada a Sua Majestade, o que
tudo os cossários no mar lhe tomaram. Nem o governador teve lugar de mandar
outra com uma enfermidade grande que teve na vila de São Paulo, da qual
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
134
morreu, estando tão pobre que me afirmou um padre da Companhia, que se
achava com ele à sua morte, que nem uma vela tinha pera lhe meterem na mão,
se a não mandara levar do seu convento; mas queria Deus alumiá-lo em aquele
tenebroso transe, por outras muitas que havia levado adiante, de muitas
esmolase obras de piedade que sempre fez.”
41
A morte do governador na vila de São Paulo, em 1611, cumprindo as ordens
régias de descobrir metais nos sertões, exemplifica uma conduta virtuosa do bom súdito
e, conseqüentemente, do bom cristão. Mas entre os dois governos de Sousa, o período de
Diogo Botelho, entre 1602 e 1608, também recebe tratamento laudatório da pena de frei
Vicente do Salvador. O oitavo governador zelou muito pela conversão do gentio e, com
esse objetivo, essencial ao bom governo do Brasil, conferiu aos franciscanos importantes
obras:
“Entendendo isto muito bem, o governador Diogo Botelho apertou muito
com o nosso custódio, que então era, que pois doutrinávamos tobajares (do que
os potiguares estavam mui invejosos), desse também ordem e ministros que os
doutrinassem, pois essa foi a principal condição com que aceitaram as pazes na
Paraíba, e havia cinco anos que os entretínhamos, dizendo que fizessem primeiro
igrejas, ornamentos, sinos e o mais que era necessário. E, vendo que o custódio
se escusava por não ter frades peritos na língua brasílica, escreveu a Sua
Majestade e ao nosso ministro provincial grandes, pelo que, vindo do reino o
irmão custódio frei Antônio da Estrela, veio sobre isto muito encarregado e
ordenou três doutrinas pera os potiguares da Paraíba, além das duas que tínhamos
dos tobajares (...).”
42
Ao contrário da atenção conferida aos governos de D. Francisco Sousa e Diogo
Botelho, há apenas um capítulo dedicado ao período de Diogo de Menezes nas capitanias
do Norte, entre 1608 e 1612, com destaque à vinda do Tribunal da Relação. Com a
pacificação do gentio, seria então possível o estabelecimento definitivo de engenhos,
cujas técnicas novas são tratadas no último capítulo deste livro:
41
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 300-301 (grifo nosso).
42
Idem, p. 286 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
135
“Como o trato e negócio principal do Brasil é de açúcar, em nenhuma outra
coisa se ocupam os engenhos e habilidades dos homens tanto como em inventar
artifícios com que o façam, e por ventura por isso lhe chamam engenhos.”
43
Entretanto, os índios não eram os únicos males à saúde da América portuguesa.
As constantes ameaças ao território brasileiro, de 1612 a 1627, constituem a matéria
primordial do Livro Quinto. Neste, o franciscano descreve a tomada de Salvador pelos
holandeses e a sua prisão durante quatro meses num navio. A partir de então,
descreve
como testemunha ocular a luta com os batavos, expulsos em 1625.
Dos 49 capítulos deste último livro, os cinco primeiros tratam da conquista do
Maranhão aos franceses. Outros oito capítulos, que provavelmente narrariam o governo
de Luís de Sousa, sobrinho de D. Francisco de Sousa, de 1617 ao ano de 1621, foram
perdidos. Todavia, a partida deste governador ao reino proporciona referências elogiosas
ao “bom cortesão”, que deixou, segundo o franciscano, “a todos saudosos com a sua
absência, porque nunca por obra ou por palavra fez mal algum, e foi mui rico sem tomar
o alheio, senão pelo grande cabedal que trouxe seu e retorno que sempre lhe vinha.”
44
Às guerras contra os hereges holandeses em Salvador, frei Vicente dedica nada
menos do que 22 capítulos, os quais fornecem importantes lições às autoridades ibéricas,
principalmente com base na tópica da conservação dos estados. A condição de
testemunha ocular, outro topos fundamental dos gêneros historiográficos, é recurso
corrente ao longo do Livro V. Assim, menciona os primeiros preparativos de defesa, após
o aviso dado pelo rei de que partira uma armada holandesa, composta de 26 naus, em
direção ao Brasil:
“Sem esta, foram muitas as preparações de guerra que fez Martim de Sá
nesta ocasião. As mesmas fariam nas outras capitanias (que a todas se deu aviso,
até o rio da Prata), mas faço menção do Rio de Janeiro como testemunha de
vista, porque ainda lá então estava.”
45
43
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 301.
44
Idem, p. 354.
45
Idem, p. 361 (grifo nosso). Ver ainda p. 373: “O que eu sei como testemunha de vista, porque neste
tempo estava cativo nesta nau (...)”; ou p. 352: “(...) segundo alcancei algumas vezes que com ele falei em
Excluído: participante
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
136
Ao descrever os episódios entre maio de 1624 e abril de 1625, distribui encômios
a todos os que prestaram valorosos serviços ao rei a fim de recuperar a cabeça do Estado
do Brasil. Nesse sentido, o frade baiano apresenta diversas “pessoas qualificadas” como o
governador Diogo de Mendonça Furtado, que preferiu enfrentar os holandeses a fugir da
cidade; o bispo D. Marcos Teixeira, que, aclamado pelo povo capitão-mor, ordenou
vários assaltos aos holandeses; Matias de Albuquerque, que substituiu Mendonça
Furtado; o governador do Rio de Janeiro Martim de Sá e seu filho, Salvador Correia de
Sá e Benevides, entre outros.
Outrossim, o capítulo 34 fornece uma extensa listagem, “seguindo a ordem do
alfabeto”, dos fidalgos lusitanos que compuseram a célebre Jornada dos Vassalos.
Informa ainda, o capítulo seguinte, a quantia doada para o apresto da armada pelos
grandes portugueses, como, por exemplo, os duques de Bragança, de Vila Hermosa e de
Caminha, o marquês de Castelo Rodrigo e D. Luís de Sousa, “alcaide-mor de Beja,
senhor de Bringel e governador que foi do estado do Brasil.”
46
A construção retórica da retomada de Salvador permitiu a relação entre as
diversas partes do corpo imperial em torno de um objetivo comum. Desse modo, frei
Vicente não trata apenas de clérigos e fidalgos lusitanos ou de “pessoas qualificadas” do
Brasil, mas dos súditos cristãos de Castela e Nápoles. A junção dos súditos de Felipe IV,
III de Portugal, realizou-se na Ilha de Cabo Verde, onde as naus portuguesas esperavam a
armada vinda de Castela:
“Na capitânia real vinha por generalíssimo do mar e terra D. Fadrique de
Toledo, por almeirante D. João Fajardo, general do estreito, em a sua; na
capitânia de Nápoles capitão o marquês de Cropani; na almeiranta o marquês de
Torrecuso, mestre de campo de terço de Nápoles (...), e em outros de todas as
esquadras outros capitães, sargentos e oficiais de guerra, a que não sei os nomes,
mas em os tratados particulares que se imprimiram da jornada se poderão ver, e
Lisboa, onde me achei em aquele tempo (...).” Nos livros anteriores, frei Vicente do Salvador recorre ainda
a “uma mulher de crédito”ou a “um soldado de crédito”.
46
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 389.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
137
neste e no capítulo seguintes se verão as obras, das quais, mais que dos
nomes, se colige a verdadeira nobreza.
Juntas pois estas armadas em o Cabo Verde, e feitas suas salvas militares e
cortesãos cumprimentos, se partiram daí em 11 de fevereiro de 1625 em dia de
entrudo pera esta Bahia, à qual chegaram em 29 de março, véspora de Páscoa, a
salvamento.”
47
Com a Restituição da Bahia – à época, representada também pelo espanhol Lope
de Vega, pelo padre jesuíta Antônio Vieira e pelo cartógrafo João Teixeira Albernaz – a
História do Brasil passa a se encaminhar paulatinamente ao seu fim. Frei Vicente do
Salvador ainda menciona as guerras contra o gentio que se rebelou na ocasião dos
holandeses, o retorno da armada católica ao reino, o envio do governador Francisco
Coelho de Carvalho ao estado do Maranhão, entre outros atos de Matias de Albuquerque
à frente do Brasil.
A eloqüência buscada pelo franciscano manifesta-se nas hipérboles, nos epítetos,
hipérbatos e metáforas, entre outros tropos e figuras que perpassam todos os cinco livros,
que, de modo geral, adotam o genus medium ou modicum, caracterizado pelo uso de
ornatus suaves, que deleitam ao proporcionar graus leves de estranhamento.
48
A ironia
destaca-se como um dos expedientes retóricos recorrentes na História do Brasil, utilizada
por exemplo, para censurar a demora do envio de um primeiro governador ao recém-
criado Estado do Maranhão:
“Sabendo sua Majestade da morte de Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor
do Maranhão, proveu na capitania com título de governador, independente do
governador do Brasil, a D. Diogo de Carcome, espanhol casado em Lisboa, o
qual se deteve tanto tempo em seus requerimentos e pretensões, ou os
ministros del-rei em o despachar, que primeiro o despachou a morte e
morreu em sua casa antes que de Lisboa se partisse.”
49
47
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 391 (grifo nosso).
48
Cf. LAUSBERG, Heinrich. Elemementos de retórica literária.
49
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 355 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
138
Em outra passagem, ao discorrer sobre os primeiros momentos em que ficou
cativo dos holandeses, em companhia de jesuítas, frades beneditinos e um franciscano,
frei Vicente lança mais um dos seus engenhosos gracejos. Os religiosos, o governador
Diogo de Mendonça Furtado, o ouvidor-geral e o sargento-mor, também presos nas naus,
haviam sido enviados para a Holanda:
“E a nós deixaram pera nos trocarem pelos seus que estavam cativos dos assaltos,
sobre o que andavas um português, morador da terra, que falava a língua
flamenga, o qual depois acharam que lhe era tredo e os enganava, pelo que o
prenderam e o enforcaram com um irmão seu e um mulato que os acompanhava,
e a nós se ficaram dilatando as espqranças da nossa liberdade, de tal sorte que
meu companheiro teve por melhor arriscar-se a ir a nado, o que eu ainda que
quisera não podia fazer, porque quem não sabe nadar vai-se ao fundo.”
50
O uso de linguagem jocosa manifestava, ainda, a espirituosidade do escritor
frente à situação adversa na qual se encontrava. A espirituosidade era uma das
excelências morais definidas pela ética aristotélica, que considerava o meio-termo como a
medida ideal a todas as disposições da alma. No Seiscentos, a autoridade do filósofo,
cristianizada, impunha um decoro próprio para gracejar com bom gosto:
“As pessoas que tendem para o excesso na ânsia de gracejar são consideradas
bufões vulgares, esforçandos-se por provocar o riso a qualquer preço; seu
interesse maior é provocar uma gargalhada, e não dizer o que é conveniente e
evitar o desgosto naquelas pessoas que são o objeto de seus gracejos. Aquelas
que, ao contrário, são incapazes de fazer um gracejo e não suportam aqueles que
o fazem, são consideradas enfadonhas e grosseiras. As pessoas, porém, que
gracejam com bom gosto, são chamadas espirituosas, ou seja, dotadas de
presença de espírito, que se traduz em repentes pertinentes; tais repentes são
considerados movimentos do caráter, e da mesma forma que o corpo é apreciado
por seus movimentos, o caráter também o é.
51
50
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 375 (grifo nosso).
51
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 190.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
139
Portanto, os gracejos de uma pessoa polida, ou discreta, deviam diferir dos de
uma pessoa vulgar. No último capítulo da História, que trata da vinda de Diogo Luís de
Oliveira ao Brasil, frei Vicente do Salvador – depois de dedicar encômios ao ex-
governador, Matias de Albuquerque, que partia ao reino depois de bons serviços
prestados ao império – emprega o recurso para concluir a narrativa de forma elegante e
proporcionar um derradeiro deleite aos seus leitores,:
“[Matias de Albuquerque] Teve boa fortuna em seu governo, por serem os
tempos tão infortunos e calamitosos, e na viagem o livrou Deus de inumeráveis
cossários, de que o mar estava povoado, levando-o sem os ver a salvamento, em
cinqüenta e dois dias a Caminha, onde achou o duque dela e marquês de Vila
Real D. Miguel de Menezes, seu parente, onde os deixaremos, e darei fim a esta
minha história, porque sou de sessenta e três anos de idade e já é tempo de tratar
só da minha vida, e não das alheias.”
52
O emprego do hilari dicendi genus visa terminar a narrativa com gratia e
elegantia. Ao longo dos cinco livros, frei Vicente emprega variações engenhosas como
antídoto do tédio: da ordo artificialis à ordo naturalis, do genus medium ao hilari
dicendi. As diversas digressões também funcionam com esse objetivo, oferecendo
iguarias variadas aos leitores – funcionamento que, contudo, não esgota as suas
possibilidades, pois, com o intuito de persuadir, tratavam muitas vezes dos corsários
franceses, ingleses ou holandeses ou da cabeça do corpo imperial.
53
Por fim, a descrição de monstros – como o que apareceu na capitania de São
Vicente em 1564, mencionada anteriormente pela pena de Pero de Magalhães Gandavo –
e de outros elementos fabulosos, visam proporcionar o gozo dos leitores, conforme pode
ser observado na pintura dos goitacazes, que, até o início do século XVII, inviabilizaram
a colonização efetiva da capitania de São Tomé ou Paraíba do Sul:
52
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 422.
53
Sobre os corsários, ver, por exemplo, no Livro Quarto, os capítulos I, que trata da presença de naus
francesas e inglesas no Rio de Janeiro e São Vicente; XIX, no qual informa sobre três naus inglesas na
BahiaXLII, que discorre sobre uma nau flamenga na capitania do Espírito Santo; e, no Livro Quinto, os
capítulos VI e IX, que tratam de holandeses e franceses.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
140
“No distrito desta terra e capitania cai a terra dos Aitacases, que é toda baixa
e alagada, onde estes gentios vivem mais à maneira de homens marinhos que
terrestres. E assim nunca se puderam conquistar, posto que a isso foram algumas
vezes do Espírito Santo e Rio de Janeiro, porque, quando se há de vir às mãos
com eles, metem-se dentro das lagoas, onde não há entrá-los a pé nem a cavalo.
São grandes buzios e nadadores e a braços tomam o peixe ainda que sejam
tubarões, pera os quais levam em uma mão um pau de palmo pouco mais ou
menos, que lhes metem na boca direito e, como o tubarão fique com a boca
aberta, que a não pode cerrar com o pau, com a outra mão lhe tiram por ela as
entranhas, e com elas a vida, e o levam pera a terra, não tanto pera os comerem
como pera dos dentes fazerem as pontas de suas frechas, que são peçonhentas e
mortíferas (...).
Estas e outras incredíveis se contam deste gentio; creia-as quem quiser, que
o que daqui eu sei é que nunca foi alguém a seu poder que tornasse com vida
para as contar.
54
A mesma fabulação pode ser exemplificada pelo caso da cobra, iguaria servida
pelo franciscano, ainda no Livro Primeiro:
“Também me contou uma mulher de crédito na mesma capitania de
Pernambuco que, estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em
os peitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança e, depois
que conheceu o engano, o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte e
a matou.”
55
De acordo com João Adolfo Hansen, a introdução de elementos fantásticos na
prosa dos séculos XVI e XVII constituía uma licença poética, fruto de um hibridismo
estilístico que se apropriava do ut pictura poesis horaciano. “Figurações fabulosas são
deleitosas, mas provavelmente nada ensinam, pois não têm a utilidade ponderada do
54
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 107 (grifo nosso).
55
Idem, p. 72. Há outras passagens igualmente deleitosas, como por exemplo: “E não hei de deixar aqui o
que me contou um soldado desta companhia que fez um principal destes que vieram, o qual diz-se foi à
estrebaria onde estava um cavalo dos nossos e assentando-se pôs-se a falar com ele e dizer-lhe que o
tomava por compadre (...).”, p. 257.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
141
docere.”
56
Os leitores discretos certamente saberiam diferenciar as passagens verdadeiras
das fabulosas, aprendendo com as primeiras e fruindo as segundas.
Portanto, não parece correto afirmar que tais passagens devem-se à ingenuidade
do franciscano “de aceitar como verdadeiras algumas coisas absurdas.”
57
Segundo
Francisco Iglésias, “o livro é simples, direto, com o máximo de naturalidade, quando a
história, notadamente em Portugal, era tratada com eloqüência e retórica.”
58
Esse tipo de
juízo originou-se na definição de Capistrano de Abreu, para quem “o estilo pouco
preocupa o autor.”
59
O estilo, de acordo com os preceitos retóricos vigentes nos séculos XVI e XVII,
definia-se como o decoro necessário a cada tipo de gênero e frei Vicente certamente
zelou pela conveniência de sua narrativa.
60
Em segundo lugar, seria impensável que
algum escritor desse período não tivesse como parâmetro a preceptiva retórica, então
concebida como a arte responsável pela elaboração de discursos que deviam ensinar,
persuadir e deleitar.
Para aprofundar algumas questões tratadas brevemente nessa perspectiva
panorâmica, é necessário dar um vôo rasante nas tópicas que fundamentam a História do
Brasil. A eloqüência de frei Vicente do Salvador mobilizou de forma aguda argumentos
teológicos característicos do tomismo, valorizados pelos teólogos da Segunda Escolástica
opostos ao agostinianismo de luteranos e calvinistas.
56
HANSEN, João Adolfo. Prefácio. In PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 29. Sobre o conceito de
ut pictura poesis, ver também: MUHANA, Adma. A epopéia em prosa seiscentista: uma definição de
gênero; SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVII e XVIII.
Introdução a a um debate sobre gênero.
57
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil, pp. 29-30.
58
Idem, p. 29.
59
ABREU, J. Capistrano de. Nota preliminar, p. 39. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil.
60
No caso dos gêneros historiográficos, ver a dissertação de SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política:
a prosa histórica dos séculos XVI e XVII – introdução a um debate sobre gênero.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
142
3.1 A providência Divina, o livre-arbítrio e a graça
“Onde é que os advinhos viram as coisas futuras
que vaticinaram, se elas ainda não existem?
Efetivamente, não é possível ver o que não
existe. E os que narram fatos passados, sem
dúvida não os poderiam veridicamente contar, se
os não vissem com a alma. Ora se esses fatos
passados não existissem, de modo nenhum
poderiam ser vistos. Existem, portanto, fatos
futuros e pretéritos.”
Santo Agostinho
61
No século XVII, os gêneros historiográficos, fundados sobre as bases do direito
natural, estavam impregnados de uma concepção sacramental do universo, que derivava
sobretudo da teologia escolástica. No interior do sistema tomista, “le même Dieu de la
religion fût à la fois l’Auteur de la Nature e le Dieu de l’histoire.
62
Ainda nessa
perspectiva, a imanência de Deus manifesta-se em tudo o que existe e, portanto, tudo está
ligado ao sentido escatológico instaurado pela Causa Primeira no momento da criação.
Segundo Étienne Gilson:
“Tel est en effet le Dieu de Saint Thomas d’Aquin. Non pas seulement le
principe, mais le créateur, et non pas seulement le Bien, mais le Pére. Sa
providence s’étend jusqu’au moindre détail de l’être, parce que sa providence
n’est que sa causalité. (...) Ce qu’il est éternellement em soi-même, le Dieu de
Saint Thomas le reste donc comme cause des événements. (...) L’homme pèche
et se perd, mais le Verbe se fait chair pour sauver l’homme: il nomme Dieu
son Rédempteur. Toute cette histoire se développe selon le temps e dans un
monde qui change, mais Dieu lui-même n’en est pas plus changé qu’une
colonne qui passé de droite à gauche selon que nous allons et venons devant
elle.”
63
61
Confissões, p. 325.
62
GILSON, Étienne. Le thomisme, pp. 205-206.
63
Idem, p. 205 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
143
O movimento do mundo, toda essa história escatológica, deve-se ao Criador,
Causa Primeira e Fim do Universo. Nessa perspectiva, os misteriosos desígnios divinos
poderiam ser interpretados pelos sinais deixados às criaturas na Natureza e na História.
Em virtude dessa analogia tomista entre o mundo e o seu Criador, a Natureza constituía
um lugar de interpretação e de iniciação à fé. Esta concepção hermenêutica em relação à
natureza pode ser observada ainda no primeiro livro da História, no capítulo em que o
franciscano discorre sobre as árvores do Brasil:
“Maracujás é outra planta que trepa pelos matos, e também a cultivam e
põem em latadas nos pátios e quintais (...). E o que mais se pode notar é a flor,
porque, além de formosa e de várias cores, é misteriosa: começa no mais alto em
três folhinhas, que se rematam em um globo que representa as três divinas
pessoas em uma divindade, ou (como outros querem) os três cravos com que
Cristo foi encravado, e logo têm abaixo do globo (que é o fruto) outras cinco
folhas, que se rematam em uma roxa coroa, representando as cinco chagas e
coroa de espinhos de Cristo Nosso Redentor.”
64
A mesma concepção é utilizada em relação aos episódios ocorridos no Brasil a
partir de 1500, como por exemplo a passagem na qual relata que o governador Gaspar de
Sousa ordenou a Jerônimo de Albuquerque conquistar o Maranhão aos franceses. A
expedição partiu no dia de São Bartolomeu, 24 de agosto de 1614, e aportou no Buraco
das Tartarugas, onde dezoito arcabuzeiros portugueses, liderados pelo capitão Manuel de
Sousa, enfrentaram com sucesso duzentos franceses:
“E deu por causa o Monsiur a quem lhe perguntou por que se retirara, que viram
muita gente na trincheira donde os nossos saíram e temera que vindo socorro lhes
não poderiam escapar, não tendo por possível que tão poucos homens tivessem
cometido a tantos senão com as costas quentes (como diziam), e confiados nos
muitos que trás eles saíram. E os muitos eram vinte soldados que haviam ficado
por não terem pólvora e munição, e se assumavam por cima da trincheira a ver de
64
SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, pp. 66-67.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
144
palanque a briga, que na praia se fazia, mas melhor causa dera se dissera que o
quis assim Deus. E foi esta vitória como um presságio da que havia de
conseguir no Maranhão (...).”
65
Entretanto, a História do Brasil não era composta apenas de bons presságios. No
capítulo anterior à conquista de Salvador pelos holandeses, o franciscano discorre sobre a
discórdia entre as duas principais cabeças deste Estado, o bispo D. Marcos Teixeira e o
governador Diogo de Mendonça Furtado. Menciona ainda o conflito entre o mesmo bispo
e os desembargadores e conclui:
“(...) Enfim estas eram as guerras civis que havia entre as cabeças, e não eram
menos as que havia entre os cidadãos, prognóstico certo da dissolução da
cidade, pois o disse a suma verdade, Cristo Senhor Nosso, que todo o reino
onde as houvesse entre os naturais e moradores seria assolado e destruído.
Outro prognóstico houve também, que foi arruinarem-se as casas del-rei,
em que o governador morava, de tal maneira que, se as não sustentaram com
espeques, se vieram todas ao chão, sendo assim que eram de pedra e cal, fortes e
antigas, sem nunca até este tempo fazerem alguma ruína.”
66
Esse procedimento – que resulta na sacralização da história – só era possível em
virtude da concepção tomista do Deus criador e ordenador do mundo, pois os signos
forneciam pistas acerca da direção instituída aos homens pelo Senhor. De acordo com
São Tomás de Aquino:
“(...) é necessário dizer que todas as coisas estão sujeitas à providência divina,
não só em geral, mas também no particular. O que assim se demonstra: como
todo agente age em vista a um fim, a ordenação dos efeitos ao fim deve se
estender tanto quanto se estende a causalidade do primeiro agente. Por isso
acontece nas obras de um agente que algo provenha sem ser ordenado ao fim,
porque este efeito procede de alguma outra causa fora da intenção do agente.
Ora, a causalidade de Deus, o agente primeiro, se estende a todos os entes, não
65
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 338-339 (grifo nosso).
66
Idem, p. 361 (grifo nosso)
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
145
apenas quanto a seus princípios específicos como também quanto a seus
princípios individuais; tanto aos das coisas incorruptíveis quanto aos das
corruptíveis. (...) Portanto, como a providência de Deus nada mais é do que a
razão da ordenação das coisas a seu próprio fim, como foi dito, é necessário
que todas as coisas, na medida em que participam do ser, estejam sujeitas à
providência divina.”
67
A vontade inexorável de Deus fornece, evidentemente, o fundamento da estrutura
narrativa da História de frei Vicente do Salvador. No que se refere aos metais e pedras
preciosas, por exemplo, o Senhor revelaria providencialmente a sua existência, a fim de
auxiliar o aumento da Monarquia Católica, instrumento dos Seus desígnios. Isso era uma
certeza para os portugueses, que incentivaram, em 1591, uma jornada liderada pelo mui
nobre Gabriel Soares de Sousa, por haver indícios de metais no sertão:
“O intento que Gabriel Soares levava nesta jornada era chegar ao rio de São
Francisco e depois por ele até a lagoa Dourada, donde dizem que tem seu
nascimento, e pera isto levava por guia um índio chamado Guaraci, que quer
dizer sol, o qual também se lhe pôs e morreu no caminho, ficando de todo as
minas obscuras até que Deus, verdadeiro sol, queira manifestá-las.”
68
Nesse ponto reside uma das diferenças mais importantes entre os católicos
tomistas e os luteranos ultra-agostinianos. Estes pregavam a idéia do Deus absconditus,
cuja vontade seria incompreensível aos homens, pela sua natureza decaída. Em oposição
aos hereges, os tomistas defendiam o bem inerente ao homem, redimido do pecado
original pela Encarnação de Deus em Cristo. Desse modo, apesar dos seus pecados e
fraquezas morais, os homens eram portadores da graça e, portanto, capazes de
compreender os sinais divinos e, em virtude do seu livre-arbítrio, atuar – como causa
segunda – no sentido da sua realização.
A concepção tomista, difundida pelas universidades ibéricas e pelos colégios
jesuítas no ultramar, constitui o parâmetro de frei Vicente do Salvador ao narrar as ações
67
AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 2, p. 442 (grifo nosso).
68
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 264 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
146
dos portugueses no Brasil, relacionando-as à escatologia cristã, à Causa Primeira e ao
Fim. É nesse sentido que o franciscano, embora não desse crédito ao gentio, afirma a
presença pretérita de São Tomé nessas terras, com base ainda em indícios encontrados na
natureza:
“Também é tradição antiga entre eles [os índios] que veio o bem-aventurado
apóstolo São Tomé a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca e das bananas
de São Tomé (...); e eles, em paga deste benefício e de lhes ensinar que
adorassem e servissem a Deus e não ao demônio, que não tivessem mais de uma
mulher e comessem carne humana, o quiseram matar e comer, seguindo-o com
efeito até uma praia donde o santo se passou de uma passada à ilha de Maré (...).
Devia ser indo pera a Índia, que quem tais passadas dava bem podia correr todas
estas terras, e quem as havia de correr também convinha que desse tais passadas.
Mas, como estes gentios não usem de escrituras, não há disto mais outra
prova ou indícios que achar-se uma pegada impressa em uma pedra em aquela
praia, que diziam ficara do santo quando passou à ilha, onde em memória fizeram
os portugueses no alto uma ermida do título e invocação de São Tomé.”
69
Aos portugueses cabia, portanto, completar a missão do apóstolo e colocar fim
aos costumes gentílicos que atentavam contra as leis naturais e, em conseqüência, contra
as leis civis do império. De acordo com São Tomás de Aquino, a providência de Deus
compreende “a razão da ordem das coisas destinadas a seu fim e a execução dessa ordem,
o que se chama governo.”
70
No que se refere ao segundo ponto, Deus vale-se de
intermediários, as causas segundas, não pela “deficiência de seu poder, mas por
superabundância de bondade, a fim de comunicar às criaturas a dignidade da causa.”
71
Em síntese, a ordem instituída pela Causa Primeira é executada pela causas segundas,
portadoras de livre-arbítrio e da graça, estado sobrenatural da alma humana, pois o
espírito de Deus habita em cada criatura. Assim, a vida dos homens reveste-se de uma
missão histórica e, ao mesmo tempo, transcendente.
69
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 112.
70
AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 3, pp. 445-446.
71
Idem, p. 446.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
147
No caso específico da História do Brasil de frei Vicente do Salvador, o bem a ser
atingido parece ser a conversão dos pagãos ao catolicismo – dando fim à missão iniciada
pelo apóstolo e cumprindo a ordem de Cristo de levar a Sua Palavra aos quatro cantos do
mundo.
72
Esse também era o objetivo do Estado Católico pós-tridentino, na medida em
que a sua cabeça, o Rei, constituía instrumento privilegiado da vontade de Deus. Desse
modo, os portugueses, cristãos e súditos leais, concorriam para a perfeição do mundo, o
que legitimava combater todos os que erguessem obstáculos a esse fim. Ainda de acordo
com São Tomás de Aquino:
“É próprio, com efeito, da providência ordenar as coisas a seus fins. Ora, depois
da bondade divina, que é o fim transcendente, o principal bem imanente às coisas
é a perfeição do universo; perfeição que não existiria caso todos os graus de ser
não se encontrassem nas coisas.”
73
Na História do Brasil, Deus está sempre do lado português, tanto nas lutas contra
o gentio como contra os hereges. A primazia lusitana adquire contornos nítidos pela
intervenção dos santos nos combates. Segundo Francisco Bethencourt, “a invocação de
anjos e santos protetores assume, numa sociedade imersa em referências quotidianas ao
sagrado, uma função primordial de securização do reino.”
74
Frei Vicente cita uma das
tantas guerras contra os tamoios, “industriados pelos franceses”:
“Os tamoios, não ainda bem começada a batalha, viraram as costas, (...) e
meteram os nossos, que atrevidamente os iam seguindo, em a cilada, donde
saíram as mais canoas inimigas e subitamente as cercaram por todas as partes.
Mas nem por isso perderam o ânimo os portugueses, antes resistiram
valerosamente ajudados do divino favor, o qual ainda das coisas que parecem
adversas sabe tirar prósperos sucessos, como aqui se viu que, acaso
acendendo-se a pólvora em uma das nossas canoas, chamuscou a alguns dos
72
Mateus, 28. 19. Jesus, depois de sua ressurreição, apareceu aos discípulos e falou-lhes: “Portanto, ide,
ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;”ou ainda em
Mateus, 24.14; Lucas 24.47; Marcos, 16.15.
73
AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 4, p. 447.
74
BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação, p. 479.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
148
inimigos que a tinham abordada. Com o que e com a chama que levantou a
pólvora se alterou tanto a mulher do general tamoio que, dando gritos e vozes
espantosas, atemorizou a todos e, sendo seu marido o primeiro que fugiu com ela,
os seguiram os mais, deixando livres os nossos, os quais, tornando às suas
fronteiras, deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de
perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois
declararam os inimigos que não fora por isto, senão por haverem visto um
combatente estranho, de notável postura e beleza que, saltando atrevidamente nas
suas canoas, os enchera de medo. Donde creram os portugueses que era o
bem-aventurado São Sebastião, a quem haviam tomado por padroeiro desta
guerra.
75
Na História do Brasil, é obra da Divina Providência a vitória de portugueses
católicos frente a hereges, sejam franceses ou holandeses, e ao gentio que se opunha à
catequese. Desse modo, frei Vicente do Salvador justificava a posição dos portugueses
como eleitos.
Para São Tomás de Aquino, Deus, pela vontade antecedente, deseja a salvação de
todos os homens; contudo, pela vontade conseqüente, elege apenas alguns e reprova os
pecadores. Pois, se todos os homens são escolhidos e predestinados em Cristo, alguns, ao
pecar, tornam-se réprobos. Em virtude da redenção de todos os homens pela morte de
Cristo, a graça estende-se a todos, mas a criatura pode se tornar infiel e desmerecer o
divino dom.
O pensamento aquinate defende que a predestinação – execução da ordenação de
alguns à salvação e, portanto, parte da Providência, já que as escolhas são conhecidas
desde o princípio – é atemporal e tem com a graça relação de causa e efeito:
“Ora, é próprio à providência permitir alguma deficiência nas coisas que lhe
estão sujeitas, como acima foi dito. Por isso, sendo os homens destinados à vida
eterna pela providência divina, cabe igualmente à providência permitir que
alguns não alcancem este fim. É o que chamamos reprovar.
75
SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 161 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
149
(...)A predestinação inclui a vontade de conferir a graça e a glória, assim
também a reprovação inclui a vontade de permitir que alguém caia em culpa e de
infligir a pena da condenação por esta culpa.
(...)Porque a predestinação é causa tanto do que esperam os predestinados na
vida futura, a saber, da glória, quanto do que recebem nesta, a saber, da graça. A
reprovação, pelo contrário, não é causa do que acontece no presente, a saber, da
culpa; ela é causa do abandono por parte de Deus. É causa, porém, da sanção
futura, a saber, da pena eterna. A culpa provém do livre-arbítrio daquele que é
reprovado e que separa da graça.”
76
O pecado, pois, é uma iniciativa puramente humana, que resulta na recusa da
graça. Isso não significa, absolutamente, que Deus não ame todas as criaturas. Entretanto,
além de misericordioso, o Senhor é justo e pune os pecadores.
“Porém, mesmo na condenação dos réprobos, a misericórdia aparece, não
relaxando totalmente, mas mitigando de algum modo as penas, pois Deus pune
menos do que o merecido. Assim, na justificação do ímpio, a justiça aparece,
pois relaxa as faltas em razão do amor, que o próprio Deus infunde por
misericórdia.
77
Deve-se salientar que, para São Tomás de Aquino, Deus apenas permite o pecado,
deixando intacto o livre arbítrio dos homens, “pelo qual o efeito da predestinação se
realiza de maneira contingente.”
78
O mal, todavia, não é uma manifestação dicotômica no
que se refere à perfeição do universo, à qual “são requeridos diversos graus de coisas,
sendo que umas se encontram num alto nível e outras no mais baixo nível do universo.”
79
O Senhor – que sabe de todas as escolhas, embora não seja responsável por elas – permite
alguns males para evitar que muitos bens deixem de acontecer.
Mas se a predestinação é parte da Providência, ela apenas se realiza pelas orações
e boas obras neste mundo, conforme transparecia nas palavras do fundador da
76
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23, 3, pp. 454- 455. É preciso não confundir com o
emprego luterano desta categoria, que constituiu um dos pontos de divergências com os católicos.
77
Idem, questão 21,4, pp. 436-437.
78
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23,6, p. 463.
79
Idem, questão 23, 5, p. 461.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
150
Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loiola: “Trabalha como se tudo dependesse de ti;
reza como se tudo dependesse de Deus.”
80
Em suma, a predestinação é uma potência de
realizar a Providência, de ser instrumento dos desígnios divinos. Nas palavras de São
Tomás de Aquino:
“Dessa maneira, Deus é ajudado por nós na medida em que executamos o
que decidiu, como está dito na primeira Carta aos Coríntios: ‘pois somos
colaboradores de Deus’. E isto não resulta de uma deficiência do poder divino;
mas, porque se vale das causas intermediárias a fim de que nas coisas se conserve
a beleza da ordem, e também para comunicar às criaturas a dignidade de serem
causas.”
81
O universo só existe para Deus, que nos homens realiza o seu fim. Frei Vicente do
Salvador articula os conceitos de providência Divina, livre-arbítrio e graça, a fim de
vincular o tempo de sua narrativa ao tempo contínuo e escatológico que a transcende,
porém no qual todos os episódios narrados se inserem. Os portugueses – “tão firmes na fé
da santa igreja católica romana e tão leais a seus reis como são”
82
– agiam na direção
providencial, o que lhes conferia certamente um papel proeminente na história da
salvação humana.
Diretamente relacionado ao sentido transcendente conferido à história pela
concepção tomista, frei Vicente do Salvador pinta uma profusão de cenas de morte, pois,
como magistra vitae, era fundamental que a história lembrasse a fugacidade da vida
humana e, portanto, o inexorável acerto de contas com o Senhor, momento em que os
efeitos encontram a sua Causa. A morte, não raro, propicia um derradeiro comentário
acerca das obras do morto em vida. Segundo o franciscano, “todos os contentamentos do
mundo são aguados”.
83
A oposição entre a vida neste mundo e a vida eterna aparece na
passagem em que discorre sobre a morte do governador Manuel Teles Barreto, em 1587:
80
Citado por MULLET, Michael. A contra-reforma, p. 20.
81
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23, 8, p. 469.
82
SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 364.
83
Idem, p. 249.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
151
“Como o governador Manuel Teles Barreto era tão velho, ainda antes de ver
o fim destas guerras, enfermou e passou desta vida, que também é uma
contínua guerra, como diz o santo Jó; quereria Deus que fosse pera a
triunfante, donde tudo é uma suma paz, glória e bem aventurança. Foi este
governados mui amigo e favorável aos moradores e o que mais esperas concedeu
pera que os mercadores não os executassem nas fábricas de suas fazendas (...)”.
84
A tópica da fugacidade da vida foi intensamente veiculada ao longo do Seiscentos
em diversas representações, as do teatro de Shakespeare, assim como as imagens
pictóricas e esculturais produzidas no ultramar. Talvez os franciscanos sejam os
responsáveis pelo seu uso mais veemente, realizado na Capela dos Ossos em Évora, onde
os frades, ainda no século XVI, mandaram gravar em uma das paredes o apanágio
também comum às outras ordens: “Nós os ossos que aqui estamos pelos vossos
esperamos”. O topos manifesta-se novamente no capítulo em que o franciscano trata da
invasão dos holandeses e censura todos os que deixaram de lutar contra os invasores
hereges:
“Mas como [o governador] se não pôs em um cavalo correndo e discorrendo
por toda cidade que lhe não fugisse a gente, todos se foram saindo, o que não
podia ser sem que os capitães das portas e mais saídas fossem os primeiros. (...)
O mesmo fizeram clérigos e frades e seculares, que só trataram de livrar as
pessoas e algumas coisas manuais, deixando as casas com o mais, que tinham
adquirido em muitos anos. Tanto pôde o receio de perder a vida, e enfim se
perde tarde ou cedo, e às vezes em ocasião de menos honra.”
85
Esse discurso, confeccionado com base nos preceitos retóricos do XVII, produz
uma hierarquia dotada de lugares específicos para cada um dos súditos do império,
hierarquia temporal que se articula no plano teológico, à medida que fornece exemplos de
ações convergentes ao sentido salvífico cristão. João Adolfo Hansen assinala a unidade
dos discursos seiscentistas no Brasil:
84
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 251 (grifo nosso).
85
Idem, p. 363 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
152
“Na síntese disjuntiva da agudeza, a representação é virtualmente infinita
porque sua unidade pressuposta é a da Luz teológica, espelhada como luz natural
na natureza, na história e nas consciências. (...) Nada foge nesses discursos à
difusão da Luz difusa que, oferecendo-se como consolo das instituições, espelha-
se nítida, sublime, no tenebrismo. Ou se obscurece e clarifica no claro-escuro.
(...) Ou simplesmente Luz, sinderése, centelha da consciência em São Tomás,
que determina a ocasião e o ato de prudência, e que faz discernir o mal, e
encaminha para o bem, na honesta dissimulação. Ou Luz teórica, visão
intelectual, como em Sór Juana ou Vieira. (...) E, sempre, Luz estritamente
beata, ortodoxa, tipicamente ibérica, como é o caso dos inumeráveis centões,
dos poemas encomiásticos, dos sermões celebratórios de tanta festa litúrgica,
entradas de bispo, autos-da-fé, vitórias contra hereges, gentio bravo e negros
rebelados. E, principalmente, Luz terrível da morte sempre anunciada no
vazio onde todos os efeitos encontram a sua Causa: como uma arte
cenográfica, os discursos encenam o ponto fixo como perspectiva adequada para
que suas misturas sejam fruídas como integração, quando se reduzem à justa
proporção de sua unidade.”
86
A ordem teológico-política, construída pelas práticas e representações do
Seiscentos ibérico, pressupunha que todas as ações humanas participassem da
Providência e, como a execução desta denomina-se governo, a sociedade política,
segundo a leitura católica do aristotelismo, constitui parte do universo sacramental
direcionado para o Fim. Desse modo, os sucessivos governos do Brasil fazem parte de
um processo escatológico mais amplo, conforme será analisado a seguir.
3.2 O bom e o mau governo na zona tórrida
As formulações da Segunda Escolástica ibérica – que teve os padres jesuítas Luís
de Molina e Francisco Suárez entre os seus principais representantes – forneceram o
parâmetro de frei Vicente do Salvador para definir a excelência dos serviços prestados
86
HANSEN, João Adolfo. Colonial e Barroco, pp. 358-359 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
153
pelas autoridades à Coroa. Portanto, a presença da doutrina católica pós-tridentina na
História evidencia-se também no juízo acerca do governo do Brasil, em que o
franciscano utiliza conceitos da teologia de São Tomás de Aquino, da Política e da Ética
de Aristóteles.
Os tomistas defendiam que a sociedade política, fundada na lex naturalis,
constituía uma invenção humana – ao contrário da Igreja, fundada pelo próprio Cristo.
87
Entretanto, muito embora fosse concebido como criação humana, o Estado, inserido em
um universo regido por uma hierarquia de leis, revestia-se de uma aura sobrenatural, pois
os atos humanos, sempre de acordo com a teologia aquinate, participam do mistério
divino. Nesse sentido, a imposição de leis positivas – lex civilis – e de uma autoridade
consentida e, portanto, legítima, deveria garantir que as leis da natureza, implantada por
Deus nos homens, fossem respeitadas. Ao contrário dos luteranos, os tomistas afirmavam
que mesmo as ordens de um governante ímpio eram de cumprimento obrigatório, pois
desrespeitar qualquer lei significava pecar contra a lei eterna de Deus. Nas primeiras
páginas da Política, Aristóteles expõe um dos argumentos que fundamentaram a questão
no Seiscentos ibérico: “É para a mútua conservação que a natureza deu a um o comando e
impôs a submissão ao outro.”
88
De fato, o Estagirita definia que o princípio de todo o governo era a esperança de
um bem e a sua finalidade era o bem comum de seus cidadãos. A Política estabelece que
a melhor forma de governo “é necessariamente a que é administrada pelos melhores
funcionários.”
89
A monarquia, conforme o juízo aristotélico, constituía um dos melhores
regimes, conveniente aos grandes Estados que desejassem estabelecer a felicidade geral.
Segundo Aristóteles, “mesmo os príncipes que detêm sozinhos as rédeas do governo
multiplicam os seus olhos, suas mãos e seus pés, confiando a seus favoritos uma parte
dos negócios de Estado.”
90
A felicidade não se alcançava sem virtude e, para estabelecer o reinado da virtude,
era necessário que os responsáveis pelos negócios públicos praticassem ações boas e
justas, objeto de reflexão da Ética a Nicômaco. De acordo com o Filósofo, a excelência
87
Esta concepção da Igreja foi afirmada no “Decreto sobre as escrituras canônicas”, promulgado pelo
Concílio de Trento em 1546. Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno.
88
ARISTÓTELES. A Política, p. 2.
89
Idem, p. 151.
90
Idem, p. 155.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
154
moral, produto do ethos, é uma disposição da alma que consiste no meio-termo,
determinado pela razão humana. Definidas em oposição, as deficiências morais consistem
na falta ou no excesso de uma determinada ação, em agir com base na paixão. Assim, a
moderação, relacionada aos sentidos e prazeres do corpo, tem a concupiscência como o
seu inverso. Em relação aos prazeres da alma, o amor às honrarias e ao conhecimento, a
prudência define a justa medida, expressa pelos conceitos de liberalidade, magnificência
e magnanimidade, além da própria justiça, “que é a disposição da alma graças à qual elas
se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo.”
91
Aristóteles define que a liberalidade “é a observância do meio termo em relação à
riqueza.”
92
O excesso em relação aos gastos consiste na prodigalidade e a falta na
avareza. “Chamamos pródigas as pessoas incontinentes, que gastam dinheiro para
satisfazer a sua concupiscência.”
93
A magnificência também constitui uma excelência moral relacionada ao uso que
se faz da riqueza, porém, ultrapassa a liberalidade em amplitude, “pois como sugere o
próprio nome, ela consiste em um dispêndio consentâneo com seus objetivos e em grande
escala.”
94
À ação magnificente, contrapõem-se a mesquinhez e a vulgaridade, esta última
em alusão aos dispêndios ostentatórios em ocasiões erradas, de maneira equivocada.
Da mesma forma, a magnanimidade, coroamento de todas as formas de
excelência moral, relaciona-se aos grandes objetivos. Trata-se de uma disposição própria
da “pessoa que aspira a grandes coisas e está à altura delas, pois quem aspira a grandes
coisas sem estar à altura delas é insensato.”
95
As deficiências correspondentes são a
pretensão e a pusilanimidade.
Aristóteles discorre ainda sobre a dicotomia entre a amabilidade e a cólera, a
sinceridade e a jactância. Por fim, assinala a necessidade de zelar pelo meio-termo
também nas ocasiões de repouso ou entretenimento, ou seja, precreve a espiritualidade,
virtude das pessoas situadas entre os bufões, que pecam pelo excesso, e os enfadonhos,
que pecam pela falta.
91
ARISTÓTELS. Ética a Nicômaco, p. 193.
92
Idem, p. 173.
93
Idem, ibidem.
94
Idem, p. 178.
95
Idem, p. 180.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
155
Às virtudes morais antigas, somam-se as cristãs, tão importantes quanto às
primeiras para as autoridades do império católico e, portanto, presentes na História
escrita pelo frade baiano como critério de aferição do valor das autoridades. A narrativa
dos sucessivos governos do Brasil – exercidos pelos olhos, mãos e pés do Rei na América
– inicia-se em 1549, com a vinda de Tomé de Sousa, “homem muito avisado e prudente e
muito experimentado, nas guerras de África e Ásia.”
96
Dentre as boas e justas ações do
primeiro governador geral, destaca-se a fundação de Salvador, em terras férteis, de bons
ares e de boas águas, conforme descrição do primeiro capítulo do Livro III, convergente
com as prescrições políticas aristotélicas. Segundo o Filósofo, se possível for escolher a
localização, “a proximidade do mar é não apenas mais segura para a cidade e suas
dependências, mas também mais propícia à abundância.”
97
No Livro II da Política, Aristóteles destaca quatro elementos importantes para a
comodidade dos habitantes: em primeiro lugar, a salubridade, para o que concorre a
abundância de fontes e a exposição aos ventos; em seguida, recomenda que o local seja
próprio para os exercícios e para as reuniões civis, “tenha saídas fáceis para os cidadãos e
acesso difícil aos inimigos e seja ainda mais difícil de sitiar”
98
; em terceiro lugar, as casas
particulares devem ser adequadas, bem como o alinhamento das ruas; e, por fim, “se não
se quer morrer, nem se expor ao ultraje, deve-se considerar como uma das medidas mais
autorizadas pelas leis da guerra manter suas muralhas no melhor estado de fortificação”.
99
A fundação de Salvador, portanto, atendia em grande parte aos requisitos
aristotélicos, apropriados em um viés absolutista pós-tridentino. Tomé de Sousa, com o
intuito de se estabelecer num lugar defensável tanto dos corsários como dos indígenas,
trouxe consigo instruções régias de como fundar a cidade, encarregando o mestre Luís
Dias de executá-las, o qual ergueu muros de taipa que circundavam o núcleo da
povoação. Ainda que Tomé de Sousa tivesse solicitado, inúmeras vezes, licença para
regressar ao reino, arrependeu-se quando o navio com o seu sucessor chegou ao porto,
conforme um dito, “entre outros que tinha mui galantes”, reproduzido pelo franciscano:
96
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 146. Já foi afirmado que o tempo dos governadores
gerais fornece os marcos da narrativa.
97
ARISTÓTELES. A Política, p. 89.
98
Idem, p. 91.
99
Idem, p. 92.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
156
“(...) Respondeu-lhe ele depois de estar um pouco suspenso: vedes isso,
meirinho? Verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na boca
quando cuidava em ir pera Portugal; mas não sei que é que agora se me seca a
boca de tal modo que quero cuspir e não posso. Não deu o meirinho resposta a
isto, e nem eu a dou, porque os leitores dêem a que lhes parecer.”
100
A atitude prudente de frei Vicente do Salvador repete-se em relação ao segundo
governador, que também foi objeto de comentários elogiosos. Não obstante o seu período
tenha se caracterizado pelos conflitos com o primeiro bispo, D. Pero Sardinha, Duarte da
Costa, “além de ser grande servidor del-rei”, tinha uma virtude singular:
“(...) sofria com paciência as murmurações que de si ouvia, tratando mais de
emendar-se que de vingar-se dos murmuradores, como lhe aconteceu uma noite
que, andando rondando a cidade, ouviu que em casa de um cidadão se estava
murmurando nele altissimamente, e depois que ouviu muito lhes disse de fora:
Senhores, falem baixo, que os ouve o governador.
Conheceram-no eles na fala, e ficaram mui medrosos que os castigaria, mas
nunca mais lhes falou nisso, nem lhes mostrou ruim vontade ou semblante.”
101
No entanto, entre os governadores nomeados antes da União Ibérica, matéria do
Livro III, o mais louvado, indubitavelmente, foi Mem de Sá. O frade baiano o
considerava espelho dos governadores do Brasil, em virtude de seus esforços para
remediar os males causados pelo gentio:
“Este, pondo os pés no Brasil que foi o ano de 1557, nenhuma coisa do seu
regimento executou primeiro que o que el-rei lhe mandava em favor da religião.
Pera isto mandou logo chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta
baía, e assentou com eles pazes com condição que se abstivessem de comer carne
humana, ainda que fosse de inimigos presos ou mortos em justa guerra, e que
recebessem em suas terras os padres da Companhia e os outros mestres da fé, e
lhes fizessem casas em suas aldeias onde se recolhessem, e templos onde
100
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 147.
101
Idem, p. 151.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
157
dissessem missa aos cristãos, doutrinassem os catecúmenos e pregassem o
evangelho livremente. E, porque a cobiça dos portugueses tinha dado em cativar
quantos podiam colher, fosse justa ou injustamente, proibiu o governador isto
com graves penas, e mandou dar liberdade a todos os que contra justiça eram
tratados como escravos.”
102
Por um lado, Mem de Sá promoveu guerras justas contra o gentio, nas quais
perdeu o seu sobrinho, Estácio de Sá, e o seu filho, Fernão de Sá – “depois de haver feito
grandes coisas em armas contra a multidão destes bárbaros”
103
– perdas que
exemplificam o seu empenho em bem servir ao rei. Por outro, o terceiro governador
zelou pela justiça no trato com os índios, permitindo apenas a escravidão daqueles que
recusavam a catequese e eram cativos nas guerras justas. Mas o zelo pela justiça era uma
tarefa ainda mais ampla. Nesse sentido, frei Vicente discorre sobre a medida exata para o
bom desempenho nos negócios públicos:
“O tempo que lhe vagava da guerra gastava o bom governador na
administração da justiça, porque, além de ser a em que consiste a honra dos
que regem e governam, como diz Davi: Honor regis judicium diligit, a trazia ele
particularmente a cargo por uma provisão del-rei, em que mandava que nenhuma
ação nova se tomasse sem sua licença. O que mandou el-rei por ser informado
das muitas usuras, que ja em aquele tempo cometiam os mercadores no que
vendiam fiado.”
104
Aristóteles considerava a justiça não uma parte da excelência moral, mas a
excelência moral inteira. Todavia, o justo em sentido político “se apresenta entre as
pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo
pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais.”
105
O governante justo se
opõe ao tirano, pois “a função do governante é ser o guardião da justiça e, se ele é
102
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 151-152 (grifo nosso).
103
Idem, p. 153
104
Idem, p. 152 (grifo nosso).
105
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 205.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
158
guardião da justiça, também é guardião da igualdade.”
106
O franciscano trata novamente
da administração da justiça no governo de D. Diogo de Menezes, informando sobre a
vinda do Tribunal da Relação em 1608, e na administração de Gaspar de Sousa, entre
1612 e 1617:
“O primeiro dia que [Gaspar de Sousa] foi presidir na relação fez uma prática
aos desembargadores, acerca das queixas que deles tinha ouvido, que não ficaram
mui contentes e, se as de ouvido lhes não ficaram no tinteiro, menos lhes ficou
depois alguma, se havia, que logo a não repreendesse.
É incrível o cuidado com que Gaspar de Sousa vigiava sobre todos os
ministros e ofícios de justiça e fazenda, da milícia e da república, sem lhe escapar
o erro ou descuido do almotacé ou de algum outro, que não emendasse. Esta era a
sua ocupação, não jogos e passatempos, com que outros governadores diziam
evitam a ociosidade, os quais ele desculpava, dizendo que teriam mais talento,
pois, com lidar e trabalhar de dia e de noite nas coisas do governo, confessava de
si que não acabava de remediá-las.”
107
Mas além da justiça, Mem de Sá, “espelho dos governadores do Brasil”, fundou a
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Se São Salvador, fundada na parte central da
costa brasileira, auxiliou a conquista efetiva das capitanias do norte, a cidade de São
Sebastião inicialmente investiu-se da função de garantir a ocupação da parte meridional
da América portuguesa e rechaçar a ameaça herege francesa. Ambas constituíam as
cabeças das primeiras capitanias da Coroa, enquadravam-se na sentença aristotélica
acerca da boa localização da cidade e, estrategicamente, situavam-se em baías que
possibilitavam a defesa de seus portos. Frei Vicente discorre sobre a escolha do sítio para
a fixação do núcleo português na Baía de Guanabara:
“Sossegadas as coisas da guerra, escolheu o governador sítio acomodado ao
edifício de uma nova cidade, a qual mandou fortalecer com quatro castelos, e a
106
Idem, ibidem.
107
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 348-349.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
159
barra ou entrada do Rio com dois; chamou a cidade de São Sebastião, não só
por ser nome do seu rei, senão por benefícios recebidos do santo (...).
O sítio em que Mem de Sá fundou a cidade de São Sebastião foi o cume de
um monte, donde facilmente se podiam defender dos inimigos; mas depois,
estando a terra de paz, se estendeu pelo vale ao longo do mar (...).
Fundada pois a cidade pelo governador Mem de Sá em o dito outeiro,
ordenou logo que houvesse nela oficiais e ministros da milícia, justiça e
fazenda.”
108
As homenagens ensejadas pelos episódios de fundação de cidades remetem à
hierarquia temporal e mística do império. Mem de Sá, depois do bom serviço prestado ao
rei e a Deus, ordenou “todas as coisas tocantes ao governo político”
109
, encarregou seu
outro sobrinho, Salvador Correia de Sá, de governar a terra e retornou para a Bahia, onde
esperou até 1571, ano de sua morte, que o rei lhe mandasse sucessor. Frei Vicente
emprega engenhoso eufemismo para descrever o episódio:
“Neste mesmo ano (...), que foi o de 1571, morreu de sua enfermidade o
governador Mem de Sá, que o estava esperando pera ir-se pera o reino, mas
quereria Nosso Senhor levá-lo pera outro reino melhor, que é o do céu, como por
sua vida e morte principalmente pela misericórdia divina se pode confiar.”
110
Entre as autoridades nomeadas até 1580, ainda recebem referências elogiosas o
governador Luís de Brito de Almeida, que recebeu ordens régias de fundar uma forte
povoação próxima ao rio Paraíba, para se defender de franceses e do gentio; o Doutor
Antônio Salema, bom letrado, que atacou franceses e tamoios no Cabo Frio; e Lourenço
da Veiga, o qual “por mais negócios que tivesse, não deixava de ouvir missa.”
111
Durante a União Ibérica, já no Livro IV, destacam-se os dois governos de D.
Francisco de Sousa, chamado D. Francisco das Manhas em virtude de sua prudência. Ao
chegar, o governador logo recebeu a notícia da morte de sua mulher, com o que resolveu
108
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 166 (grifo nosso).
109
Idem, p. 167.
110
Idem, p. 175.
111
Idem, p. 192.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
160
não mais tornar ao reino. D. Francisco reunia em si as virtudes necessárias a um bom
governante, como transparece no trecho que o apresenta aos leitores:
“(...) foi o mais benquisto governador que houve no Brasil, junto com o ser mais
respeitado e venerado; porque, com ser mui benigno e afável, conservara a sua
autoridade e majestade admiravelmente. E sobre tudo o que o fez mais famoso
foi sua liberalidade e magnificência, porque tratando os mais do que hão de
levar e guardar, ele só tratava do que havia de dar e gastar, e tão inimigo era do
infame vício da avareza que, querendo fugir dele, passava muitas vezes o meio
que a virtude da liberalidade consiste e inclinava pera o extremo da
prodigalidade, dava a bons e a maus, pobres e ricos, sem lhes custar mais do que
pedi-lo, donde costumava dizer que era ladrão quem lhe pedia a capa, porque
pelo mesmo caso lha levava dos ombros.”
112
D. Francisco das Manhas, conforme já analisado, empenhou-se nas guerras contra
o gentio da Paraíba e os corsários hereges que andavam pela costa do Brasil. Outrossim,
tentou encontrar as minas do sertão, enviando ao rei pequenas amostras de ouro e pérolas.
Eis porque o franciscano define este governador como magnificente, pois os seus
dispêndios eram tão altos quantos os seus objetivos. Segundo Aristóteles, a pessoa
magnificente “gastará também tais importâncias tendo em vista a nobreza da ação, pois
esta característica é comum às várias formas de excelência moral.”
113
Além das virtudes, o homem nobre ainda devia conhecer bem os assuntos
militares, entre os quais, destacava-se a construção de fortalezas, outro aspecto
importante relacionado à tópica do bom governo.
114
Nesse sentido, frei Vicente discorre
sobre a construção dos fortes de São Felipe e São Tiago na capitania da Paraíba e sobre
os serviços prestados pelo arquiteto-mor de Sua Majestade no Brasil, Francisco de Frias,
112
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 261 (grifo nosso).
113
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 178.
114
Sobre a formação de um sistema integrado de defesa e as suas relações com a formação urbana de
Salvador, ver: ANDRADE, Luiz Cristiano de. A cidade Real: história urbana de Salvador da Bahia (1549-
1649). Em Salvador os fortes de Santo Antônio e São Felipe, atual Fortaleza de Nossa Senhora de Monte-
Serrate, foram construídos pelo governador Manuel Teles Barreto. Os fortins de Santo Alberto, São Tiago e
São Francisco foram erigidos durante o governo de D. Francisco de Sousa.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
161
como a traça do forte de Santa Maria, ao leste da ilha de São Luís.
115
Segundo Fernando
Bouza, desde pelo menos o século XVI, em Portugal, havia uma tradição consolidada de
unir o saber arquitetônico à cortesania:
“No panorama seiscentista da cultura de corte européia destaca-se, por mérito
próprio, o extraordinário interesse pelos saberes arquitetônicos que tiveram
alguns membros da nobreza portuguesa, o qual parece chegar a constituir-se
como um traço original do seu ethos enquanto grupo corporativo.”
116
Ainda de acordo com Bouza, na época de Felipe II, passou a ser uma obrigação de
quem governava Portugal “ter de se ocupar de traças e despachar com engenheiros e
desenhadores, já que o próprio monarca seguia de muito perto a prossecução de obras em
palácios, fortalezas, igrejas ou mosteiros.”
117
Pois essa idiossincrasia do ethos cortesão
português também pôde ser observada no ultramar. Entre as boas obras que fez Diogo de
Mendonça Furtado, governador que era “liberal e gastava muito em esmolas”
118
, frei
Vicente do Salvador destaca as fortificações, traçadas também pelo arquiteto-mor,
Francisco de Frias.
Entretanto, as atividades de governo da América portuguesa não eram exercidas
apenas pelas autoridades seculares, mas também pelas eclesiásticas. Afinal, não havia
uma separação nítida entre a cruz e a espada, nem mesmo no que se refere à competência
jurisdicional. De fato, em situações emergenciais, os bispos poderiam assumir o governo
e tomar a frente dos assuntos militares, como no episódio da prisão do governador pelos
holandeses, em que “elegeu o povo e aclamou por seu capitão-mor que os governasse o
bispo D. Marcos Teixeira, o qual a primeira coisa que intentou foi recuperar a cidade se
pudesse”, nomeando coronéis e determinando a entrada na cidade.
119
O bispo assentou o
seu arraial a uma légua dos muros de Salvador e, de lá, ordenou vários assaltos contra os
hereges.
115
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, respectivamente, p. 223 e p. 339.
116
BOUZA, Fernando. Portugal no tempo dos Filipes, p. 27.
117
Idem, p. 29.
118
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 359.
119
Idem, p. 366.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
162
O governo de D. Marcos Teixeira é narrado em sete capítulos do Livro V, até a
morte do bispo, “deixando todos assaz saudosos e desconsolados com a falta de sua
presença.”
120
O franciscano tece então diversos comentários encomiásticos, “porque era
mui esmoler e liberal, devotíssimo do santíssimo sacramento, o qual levava ele próprio
aos enfermos.”
121
Frei Vicente do Salvador destaca as suas obras espirituais, parte apenas
dos serviços prestados a Deus e ao rei:
“Celebrava cada dia derramando em a missa muitas lágrimas de devoção,
pregava sem ser teólogo, posto que grande canonista, melhor que muitos
teólogos, com muito zelo da salvação de suas almas. Enfim dele se podia dizer
(..) que o levou Deus deste mundo, e em tão pouca idade, que ainda não chegava
a cinqüenta anos, porque não era o mundo digno de tanto bem. E se isto se pode
dizer dos seus merecimentos pera com Deus, não menos pera com el-rei,
como bem se viu em esta ocasião, em que o serviu de capitão-mor e governador
depois da Bahia tomada; porque ele foi o que, andando os homens espalhados
pelos matos, morrendo de fome, e nem neles se rendo por seguros, os fez ajuntar
em um arraial (...) e ali deu ordem a que se levassem mantimentos de todas as
partes a vender, sustentando ele os pobres à sua custa, que o não podiam
comprar.”
122
E como as contendas não se definiam apenas neste mundo, o bispo orou muito
pedindo que Deus desse vitória aos católicos, “que não só governava estas guerras com
sua indústria, conselho e agência, como Josué e outros famosos capitães, mas com
lágrimas e orações como Moisés.”
123
Por fim, o frade baiano conta que D. Marcos
Teixeira entendia a tomada da cidade como castigo divino causado pelos vícios e pecados
de seus moradores, por esse motivo
“(...) fazia tão áspera penitência que nunca mais fez a barba nem vestiu
camisa, senão uma sotaina de burel, dormia mui pouco e jejuava muito, pegava e
120
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 378.
121
Idem, ibidem.
122
Idem, ibidem (grifo nosso).
123
Idem, p. 379.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
163
exortava a todos à emenda de suas culpas pera que aplacassem a divina ira, até
que destes trabalhos o tirou Deus pera o descanso da bem-aventurança, como se
pode confiar em sua divina misericórdia.”
124
Entretanto, era justamente a sobreposição de atribuições dos bispos e dos
governadores que engendravam discórdias entre as autoridades eclesiásticas e seculares.
Estas eram tomadas como exemplos de mau governo e, portanto, censuradas pelo frade
baiano. Os desentendimentos iniciaram-se já com o primeiro bispo do Brasil, D. Pero
Sardinha, ao longo do governo de D.Duarte da Costa. Frei Vicente do Salvador discorre
sobre o episódio:
“Porém o demônio, pertubador da paz, a começou a pertubar de modo
entre estas cabeças eclesiástica e secular, e houve entre eles tantas diferenças
que foi necessário ao bispo embarcar-se pera os reinos com suas riquezas
aonde não chegou por se perder a nau em que ia no rio Cururuípe, seis léguas do
de São Francisco, com toda a mais gente que nela ia, que era Antônio Cardoso de
Barros, que fora provedor-mor, e dois cônegos, duas mulheres honradas, muitos
homens nobres e outra muita gente, que por todos eram mais de cem pessoas, os
quais, posto que escaparam do naufrágio com vida, não escaparam da mão do
gentio caité que naquele tempo senhoreava aquela costa, o qual, depois de
roubados e despidos, os prenderam a ataram com cordas, e poucos a poucos os
foram matando e comendo, senão a dos índios que iam desta Bahia, e um
português que sabia a língua.”
125
O frade baiano narra com prudência as situações de discórdia. Se, neste primeiro
caso, imputou a culpa ao demônio, outras contendas, como as diferenças e desgostos
entre o bispo D. Antônio Barreiros – “homem benigno, esmoler e dotado de muitas
virtudes” – e o governador Luís de Brito, foram representadas de outra forma.
126
A
discórdia girou em torno da prisão de um homem chamado Sebastião da Ponte, que,
conquanto fosse honrado e rico, castigava os seus servos – brancos ou negros – de
124
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 379.
125
Idem, p. 148 (grifo nosso).
126
Idem, p. 183.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
164
maneira cruel. Um dos brancos foi marcado com o ferro das vacas e solicitou justiça ao
rei, que ordenou ao governador que prendesse e enviasse ao reino o tal Sebastião da
Ponte:
“Teve ele notícia disto e acolheu-se a uma ermida de Nossa Senhora da
Escada, que está junto a Pirajá, onde o réu então morava. Demais disto chamou-
se às ordens, dizendo que tiha as menores, e andava com hábito e tonsura porque
não era casado, pelas quais razões deprecou o bispo ao governador não o
prendesse. Mas não lhe valeu. Começou logo a proceder censuras e finalmente
chegou o negócio a tanto que houveram de vir às armas, correndo com elas o
povo néscio e inconstante já ao bispo com o temor das censuras, já ao governador
com o temor da pena capital que ao som da caixa se publicava e, o que mais era,
que, ainda depois de todos os acostados ao governador seus próprios filhos, que
estudavam pera se ordenarem, com pedra nas mãos contra seus pais se acostavam
ao bispo e a seus clérigos e familiares.
Porém enfim jussio regis urgebat, e se mandou o preso ao reino, como el-rei
o mandava, onde foi metido na prisão do Limoeiro, e nela acabou como suas
culpas mereciam.”
127
Com efeito, nessa perspectiva sacramental do império, adotada pelo franciscano, e
considerando o regime de padroado ibérico, só havia um partido a ser tomado: o de Deus
e, conseqüentemente, o do rei. Ademais, também existiam diferenças exclusivamente
entre as autoridades seculares, como a que houve na capitania da Paraíba, onde o capitão
da infantaria espanhol, D. Pedro de la Cueva, e Diogo Nunes Correia desentenderam-se:
“(...) estes dois capitães (como se só o foram pera se fazerem guerra um ao
outro) começaram logo a ter contendas entre si, deixando os inimigos andar
livremente salteando as roças e fazendas dos brancos e aldeias dos índios amigos,
em tal modo que já não ousavam ir a pescar ou mariscar, porque a qualquer hora
que iam achavam inimigos que os matavam, sem estes capitães porem nisto
remédio (...).”
128
127
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 183 (grifo nosso).
128
Idem, p. 258.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
165
Essas discórdias tomaram maiores proporções no governo de Diogo de Mendonça
Furtado, na medida em que foram percebidas como prognósticos da tomada de Salvador
pelos holandeses. O conflito tornou-se público quando o bispo, D. Marcos Teixeira, que
não aprovava a construção da fortaleza sobre um recife, recusou-se a benzer o
lançamento da pedra fundamental da edificação, “dizendo que se lá fosse seria antes
amaldiçoá-la, pois fazendo-se o dito forte cessaria a obra da Sé.”
129
Frei Vicente
novamente emprega a tópica das cabeças discordantes a fim de explicar o episódio:
“Mas não foi este o mal, que o governador lhes reservou seis mil cruzados
pera correr a obra da sé, senão que do dia que chegou o bispo a esta cidade, que
foi a 8 de dezembro de 1622, desconcordaram estas cabeças, não querendo o
governador achar-se no ato de recebimento e entrada do bispo, senão se houvesse
de ir debaixo do pálio praticando com ele, no que o bispo não quis consentir,
dizendo que havia de ir revestido da capa de asperges, mitra e báculo, lançando
bênçãos ao povo, como manda o cerimonial romano, e não era decente ir
praticando. Por isto não foi o governador, mas mandou o chanceler e os
desembargadores, e depois o foi visitar à casa (...).”
130
Outrossim, houve uma contenda acerca dos lugares adequados ao governador e ao
bispo no interior da igreja, problema que, segundo frei Vicente, também ocorreu entre as
respectivas autoridades de Cabo Verde. Em seguida, os desembargadores ainda
desentenderam-se com o bispo “sobre o espiritual e jurisdição que tem pera a correição
dos vícios”, o qual excomungou o procurador da coroa, desencadeando uma guerra civil
entre as cabeças, fator desestabilizador do corpo imperial.
De acordo com as formulações políticas da Segunda Escolástica ibérica, todas as
ações dos súditos deviam concorrer para a conservação e o aumento do império católico,
pois o rei era instrumento do bem de Deus. Frei Vicente do Salvador faz uso engenhoso
desses argumentos ao tratar da retomada de Salvador pelas forças luso-espanholas, pois a
129
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 359.
130
Idem, ibidem (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
166
restituição do poder político do rei Felipe IV sobre a cidade significava também a
restituição da verdadeira fé:
“Donde se colige o gosto que seria depois vermos nossas lágrimas tornadas
em alegria e restituído o nosso pão de cada dia que é o mesmo Deus em espécies
de pão, ao qual depois de havermos dados as graças as dávamos também ao
nosso católico rei por haver sido por meio de suas armas o instrumento deste
bem, conhecendo todos que, se o seu reino de Espanha se pinta em figura de uma
donzela mui formosa, com a espada na mão e espigas de trigo em a outra, não é
pera denotar a sua fortaleza e fertilidade, mas pera significar como pelas armas
de seus exércitos se goza este divino trigo em todas as terras de sua
conquista.”
131
A propagação da verdadeira fé, pois, constituía a natureza e o fim do império
católico, providencialmente encabeçado pelo monarca espanhol. Nessa perspectiva de
sobrenaturalização do Estado, a conversão do gentio era concebida como uma atribuição
essencial do governo no Brasil. Frei Vicente do Salvador destacou veementemente a
importância das missões de catequese dos índios, “meio eficacíssimo pera com muita
facilidade os pacificarem e povoarem a terra.”
132
Em síntese, os homens responsáveis pelo governo do Brasil deviam possuir, a
julgar pelos exemplos ao longo da História, virtudes morais como a prudência, a
liberalidade e a magnificência – conceitos entendidos com base na Ética de Aristóteles.
Como governantes de um império cristão deviam ainda ser pios e devotos aos
sacramentos. Entre as boas obras que constam da narrativa de frei Vicente do Salvador,
destacam-se a fundação de cidades, a administração da justiça, a projeção de sistemas
defensivos e construção de fortes; a administração dos sacramentos aos fiéis e, por fim
mas não menos importante, a conversão do gentio.
O frade baiano sempre descreve elogiosamente as autoridades responsáveis pelo
governo do Brasil, mesmo aquelas que se envolviam em contendas. Desse modo, era
mantido o decoro adequado às prosas encomiásticas como os gêneros historiográficos. As
131
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405 (grifo nosso).
132
Idem, p. 336.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
167
censuras não eram feitas às autoridades, mas às ações que resultavam em discórdia entre
as partes do corpo imperial. Nessas ocasiões, frei Vicente do Salvador, com urbanitas et
elegantia, sugeria tacitamente pelos exemplos que as diferenças fossem resolvidas para
que todos, em concórdia, caminhassem em uma única direção, conforme os desígnios
divinos.
3.3 Os índios, a catequese e a guerra justa
“Uma cousa têm estes peior de todas, que quando
vêm a minha tenda, com um anzol que lhes dê, os
converterei a todos, e com outros tornarei a
desconverter por serem inconstantes, e não lhes
entrar a verdadeira fé nos corações; ouvi eu já um
evangelho a meus padres, onde Christo dizia: ‘Não
deis o santo aos cães, nem deiteisas pedras preciosas
aos porcos’. Se alguma geração há no mundo, por
quem Christo Nosso Senhor isto diga, deve ser esta;
porque vemos que são cães,cem se comerem, e
matarem e são porcos, por vicios, e na maneira de se
tratarem, e esta deve ser a razão, por que alguns
padres, que do reino vieram, os vejo resfriados,
porque vinham cuidando de converter a todo o Brasil
em uma hora, e vêm-se que não podem converter em
uma anno, por sua rudeza e bestialidade.”
Pe. Manuel da Nóbrega
133
Embora o Livro Primeiro da História do Brasil dedique os seis últimos capítulos
exclusivamente aos naturais da terra e aos seus costumes gentílicos, os esforços pela
conversão e pacificação dos índios constituem o pano de fundo de toda a narrativa. Os
ataques indígenas impediram a fixação dos portugueses em diversas capitanias, matéria
do segundo livro. Nas duas partes seguintes da História, que tratam dos esforços do
governo entre 1549 e 1612, o gentio aparece como o grande obstáculo ao domínio efetivo
da costa – em virtude das alianças celebradas com os franceses – ou ainda à expansão do
domínio imperial – tanto em direção ao sertão como ao norte da capitania de
Pernambuco, passando pela Paraíba e pelo Ceará em direção ao Maranhão. Ademais, as
tribos inimigas impediam a ligação entre os esparsos núcleos portugueses, como em
Sergipe, Ilhéus e Porto Seguro. Mesmo no Livro Quinto, que trata sobretudo dos
133
Diálogo da conversão do gentio. In Cartas do Brasil, p. 230.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
168
franceses em São Luís e dos holandeses em Salvador, a questão dos índios faz-se
presente.
Mas é no primeiro livro que frei Vicente do Salvador define a natureza do gentio
a ser catequizado. Com base na Miscelânea Austral, de D. Diogo de Avalos, informa que
essa gente bárbara habitava, em tempos remotos, as serras de Altamira em Espanha, onde
já comiam carne humana. Os espanhóis teriam lhes movido uma guerra na Andaluzia e os
sobreviventes migraram para as Ilhas Canárias, depois Cabo Verde e, finalmente, ao
Brasil. “Saíram dois irmãos por cabo desta gente, um chamado Tupi e outro Guarani; este
último, deixando o Tupi povoando o Brasil, passou a Paraguai com a sua gente e povoou
o Peru.”
134
Segundo o franciscano, esta opinião não era certa, porém havia outras que não
tinham nenhum fundamento: “o certo é que essa gente veio de outra parte, porém donde
não se sabe, porque nem entre eles há escrituras, nem houve algum autor antigo que deles
escrevesse.”
135
A falta da escrita entre esses povos significava, concomitantemente, a
ausência de história e, portanto, a sua exclusão do processo escatológico cristão. Esses
elementos condicionam a escolha do ano de 1500 como marco inicial da História do
Brasil, em conjunto com a instituição do tempo imperial.
A escrita era, contudo, apenas mais uma lacuna observada entre os gentios. Da
mesma forma, não possuíam médicos, mas feiticeiros, nem números “por onde contem
até mais que cinco”, tampouco utilizavam de pesos ou medidas.
136
O conjunto de faltas,
que lhes definia como bárbaros, era expresso no lugar comum veiculado em tantos outros
discursos, como a História de Pero de Magalhães Gandavo:
“Mas nenhuma palavra pronunciam com f, l ou r, não só das suas mas nem
ainda das nossas, porque, se querem dizer Francisco, dizem Pancicu e, se querem
dizer Luís, dizem Duí; e o pior é que também carecem de fé, de lei e de rei, que
se pronunciam com as ditas letras.”
137
134
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 77.
135
Idem, ibidem.
136
Idem, p. 82.
137
Idem, p. 78.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
169
A missão lusitana era a de suprir as carências de fé com a verdadeira religião,
protegendo-os da ameaça herege; preencher a ausência de lei, pela imposição da lex
naturalis e do ius gentium em oposição aos gentílicos costumes, entre os quais o
canibalismo forneceu o mais persuasivo argumento à catequese e à guerra justa; e, enfim,
estender o imperium do monarca católico, cujo dever, como instrumento do bem de Deus,
era o de zelar pela salvação de seus súditos. Destarte, os índios, posto que de uma forma
passiva, participariam do sentido divino deste mundo e ingressariam na sua história pelas
mãos portuguesas.
O frade baiano discorre, ainda, sobre as aldeias, o casamento e a criação dos
filhos, a cura dos enfermos e o enterro dos mortos. Em relação aos fracos e doentes, frei
Vicente afirma que o gentio tinha pouca caridade, o que permitia, no entanto, perceber
“a misericórdia do Senhor e efeitos de sua perdestinação, (..) ordenando que
percam os religiosos em o caminho que levam e vão dar nos tijipares ou cabanas
com enfermos que estão agonizando, os quais, recebendo de boa vontade o
sacramento do batismo, se vão a gozar da bem-aventurança em o céu.”
138
A natureza do gentio era belicosa, mas a guerra dos índios não era justa como a
dos católicos, pois não eram justos os seus motivos, tampouco o tratamento que era
conferido aos cativos:
“Os que podem cativar na guerra levam para vender aos brancos, os quais
lhes compram por um machado ou foice cada um, tendo-os por verdadeiros
cativos, não tanto por serem tomados em guerra, pois não conta da justiça
dela, quanto por a vida que lhe dão, que é maior bem que a liberdade.
Porque, se os brancos os não compram, os primeiros senhores os têm em prisões
atados pelo pescoço e pela cinta com as cordas de algodão grossas e fortes, e dão
a cada um por mulher a mais formosa moça que há na casa, a qual tem o cuidado
de o regalare lhe dar de comer até que engorde e esteja pera o poderem comer.
138
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 83.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
170
Em morrendo este preso, logo as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e
forçura, que mal lavadas cozem para comer e reparte-se a carne por todas as
casas e pelos hóspedes que vieram a esta matança (...).
(...) E é tão cruel este gentio com os seus cativos que não só matam a eles,
mas, se acontece a algum haver filho da moça que lhe deram por mulher, a
obrigam que o entregue a um parente mais chegado, pera que o mate quase com
as mesmas cerimônias, e a mãe é a primeira que lhe come a carne; pos to que
algumas, pelo amor que lhes têm, os escondem, e às vezes soltam também os
presos e se vão com eles pera suas terras ou pera outras.”
139
Assim termina o Livro Primeiro da História do Brasil. De acordo com a narrativa,
os bárbaros costumes persistiriam até 1549, quando a coroa portuguesa interveio
providencialmente a fim de doutrinar e catequizar o gentio, enviando seis padres da
Companhia de Jesus. O Livro Segundo expõe a as dificuldades dos donatários em se fixar
efetivamente nas terras doadas pelo rei. Frei Vicente do Salvador menciona a presença
dos índios em todas as capitanias, com exceção de Porto Seguro, quase sempre como um
obstáculo à fixação dos portugueses. Assim, na capitania de São Vicente, cita as muitas
guerras que houve contra os gentios e franceses; descreve fabulosamente os temidos
goitacazes que habitavam as terras de Pedro de Góis; lamenta a morte à flechadas de D.
Jorge de Menezes, locotenente do donatário no Espírito Santo, após a queima dos
engenhos e fazendas, entre outros episódios que visavam convencer que os índios eram
um mal a ser remediado.
Na Bahia, por exemplo, embora Francisco Pereira Coutinho tivesse inicialmente
feito pazes com o gentio, os engenhos também foram queimados e houve diversas
guerras, “de maneira que lhe foi forçado e aos que com ele estavam embracarem-se em
caravelões e acolherem-se à capitania dos Ilhéus.”
140
Depois de ter assentado nova trégua
com os índios, Coutinho retornou à sua capitania, “onde o mesmo gentio os matou e
comeu todos, exceto um, Diogo Álvares, por alcunha posta pelos indios o Caramuru,
porque lhes sabia falar a língua.”
141
139
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 87.
140
Idem, p. 113.
141
Idem, p. 114.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
171
De acordo com o franciscano, o único donatário que obteve êxito foi Duarte
Coelho. Se a capitania de Tamaracá fornece matéria para dois capítulos e todas as outras
apenas para um, frei Vicente dedica três capítulos a Pernambuco, nos quais destaca as
diversas guerras movidas tanto aos gentios como aos franceses. Os seus feitos indicavam
o caminho a ser seguido pelos portugueses a fim de participar dos desígnios divinos para
essa terra:
“Com estas e outras vitórias, alcançadas mais por milagres divinos que
por forças humanas, cobrou Duarte Coelho tanto ânimo que não se contentou
ficar na sua povoação pacífico, senão ir-se em suas embarcações pela costa
abaixo até o rio São Francisco, entrando nos portos de sua capitania, onde achou
naus francesas que estavam ao resgate de pau-brasil com o gentio e as fez
despejar os portos e tomou algumas lanchas de franceses (...). E contudo não se
quis recolher até não alimpar a costa destes ladrões e fazer pazes com os
mais dos índios, e isto feito se tornou pera sua povoação com muitos escravos
que lhes deram os índios, dos que tinham tomados em suas guerras que uns lá
tinham com os outros, o que o fez muit temido e estimado dos circunvizinhos de
Olinda, dizendo todos que aquele homem devia ser algum diabo imortal, pois se
não contentava
de pelejar em sua casa com eles e com os franceses, mas
ainda ia buscar fora com quem pelejar.”
142
A narrativa da vinda de Tomé de Sousa – com “grande alçada de poderes e
regimento em que [D. João III] quebrou os que tinha concedido a todos os outros
capitães-proprietários”
143
– aponta para essa direção providencial. Aqui tem início a
história da imposição do governo sobre o gentio, da providência divina sobre as
artimanhas do demônio. Mas ao governador geral, além de dar fim aos costumes
gentílicos, cabia ainda submeter à justiça régia, da qual era representante, as relações
entre os moradores do Brasil e os índios. Nesse sentido, frei Vicente do Salvador opõe a
cobiça daqueles que apresavam o gentio ao zelo pela sua conversão e pacificação:
142
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 118 (grifo nosso).
143
Idem, p. 143.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
172
“Com estes enganos e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que
davam aos principais e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em
cordas pera os comerem, abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista do mar,
apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do
marido, levando uns o capitão mamaluco, outros os soldados, outros os
armadores, outros os que impetraram a licença, outros quem lha concedeu, e
todos se serviam deles em suas fazendas e alguns os vendiam, porém com
declaração que eram índios de consciência e que lhes não vendiam senão o
serviço, e quem os comprava, pela primeira culpa ou fugida que faziam, os
ferrava na face, dizendo que lhes custaram dinheiro e eram seus cativos.
Quebravam os pregadores os púlpitos sobre isto, mas era pregar em
deserto.”
144
Era preciso achar um meio-termo – conforme as prescrições ético-políticas de
Aristóteles – entre a cobiça dos moradores, que injustamente cativavam o gentio, e os
bárbaros costumes como a antropofagia. Para o franciscano, a justa medida, a fim de
conservar este estado, seria atingida pela adoção de dois procedimentos que vinculavam a
cruz e a espada: a conversão e a guerra justa àqueles que resistissem à catequese. É nesse
sentido que frei Vicente do Salvador censura as atitudes de alguns portugueses que não
diferenciavam aqueles que mereciam, de fato, o cativeiro:
“Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam
guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o
gentio que não lhes havia feito mal algum nem lhes constava que houvessem
feito aos vendedores injustiça deixando em sua liberdade os rebeldes e homicidas
que lhes haviam feito tanta guerra e traições.”
145
O conceito de guerra justa implicava no estabelecimento da concórdia entre as
autoridades. O frade baiano descreve um episódio em Pernambuco, à época de Duarte de
Albuquerque Coelho, sucessor de seu pai no governo desta capitania, que havia enviado
144
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 181 (grifo nosso).
145
Idem, p. 192 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
173
línguas para propor que os índios da região fossem pacíficos e não salteassem os
engenhos, nem inquietassem o gentio que já estava sujeito:
“(...) Ao que eles com muita arrogância responderam que não o haviam com os
brancos nem com ele, senão com aqueles que eram seus inimigos e contrários
antigos; mas, se os brancos queriam por eles tomar pendências, ainda tinha
braços pera se defenderem de uns e de outros.
Tornados os línguas com esta resposta, fez Duarte de Albuquerque Coelho
uma junta de oficiais da câmera e mais pessoas da governança, onde se
julgou ser causa bastante pera se lhes fazer guerra justa e os cativar a
todos.”
146
A vitória das milícias organizadas pelo donatário de Pernambuco atemorizou de
tal forma os índios “que se deixavam amarrar dos brancos como se foram seus carneiros
e ovelhas.”
147
Mais uma vez, os portugueses pecavam pelos excessos e pela cobiça. A
atitude foi devidamente censurada pelo franciscano: “Isto não faziam os que temiam
Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida que da que haviam de dar
a Deus.”
148
O exemplo de guerra justa, de acordo com os princípios éticos do império, volta a
ser veiculado no fim do Livro Quinto, em que frei Vicente do Salvador discorre sobre o
combate ao gentio da Serra da Copaoba que se rebelou na ocasião da ocupação de
Salvador pelos holandeses. Terminada a guerra contra os hereges, era, pois, necessário
concentrar os esforços a fim de corrigir os pagãos:
Do que tudo foi informado, o governador Matias de Albuquerque mandou
suster na jornada Antônio Lopes de Oliveira e os mais capitães que iam da
Paraíba, até se informar melhor do caso e tomar conselho sobre a justiça da
guerra, pera o que fez ajuntar em sua casa os prelados das religiões, teólogos
e outros letrados canonistas e legistas. E concluindo-se entre eles ser causa de
guerra justa, e pelo conseguinte os que fossem nela tomados escravos, que são
146
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 172 (grifo nosso).
147
Idem, 173
148
Idem, ibidem.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
174
no Brasil os despojos dos soldados, e ainda o soldo, porque o gentio não possui
outros bens, nem os que vão a estas guerras recebem outro soldo, logo o
governador mandou os capitães Simão Fernandes Jácome e Gomes de Abreu
Soares, e por cabo deles Gregório Lopes de Abreu, com suas companhias.”
149
Entretanto, as guerras movidas contra o gentio eram apenas um meio de se
realizarem os objetivos precípuos da conquista, a salvação das almas pagãs pela
catequese e seu respectivo ingresso na Igreja, o que significava também o pertencimento
desses povos ao corpo místico imperial. Desse modo, a conversão era concebida como
uma tarefa fundamental do império católico e, no que se refere aos índios, os argumentos
formulados pelo padre Manoel da Nóbrega, em seu Diálogo da conversão do gentio,
continham as bases das representações e das práticas catequéticas no Brasil.
Nessa questão, em que pese a rivalidade entre franciscanos e jesuítas, os
argumentos de frei Vicente do Salvador convergem com os de Nóbrega e dos inacianos,
como também no juízo acerca do governo de Mem de Sá. De fato, durante mais de trinta
anos, a Companhia de Jesus foi a única ordem institucionalmente estabelecida no Brasil.
A chegada das demais ordens, a partir de 1581, não modificaria as tópicas defendidas
pelos jesuítas. A mais célebre delas, em virtude da estreita relação com a catequese,
referia-se à inconstância dos índios. O frade baiano emprega este topos a fim de
descrever o trabalho dos capuchos nas missões da Paraíba:
“Confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância,
porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção com que acudiam à igreja, e
quando lhes tangiam o sino à doutrina ou à missa corriam com um ímpeto e
estrépito que pareciam cavalos, mas em breve tempo se começaram a esfriar de
modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças e
lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só acodem todos com muita
vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de
novidades, como o dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas
(...).”
150
149
Idem, pp. 407-408 (grifo nosso).
150
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p.286 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
175
Ainda que a inconstância fosse um obstáculo à conversão, era preciso persistir
nesta árdua tarefa.
151
Em um dos momentos da narrativa, o frade baiano expõe o bem que
seria realizado ao gentio pela voz de um deles. Tratava-se de um índio chamado Ilha
Grande, feiticeiro e principal de uma tribo dos potiguares, enviado pelo padre jesuíta
Gaspar de Sampares e Jerônimo de Albuquerque para propor as pazes com os parentes:
“ ‘Vós, irmãos, filhos e parentes meus, bem conheceis e sabeis quem eu sou,
e a conta que sempre de mim fizestes assim na paz como na guerra. E isto é o que
agora me obrigou a vir dentre os brancos a dizer-vos que, se quereis ter vida e
quietação e estar em vossas casas e terras com vossos filhos e mulheres, é
necessário sem mais outro conselho irdes logo comigo ao forte dos brancos a
falar com Jerônimo de Albuquerque, capitão dele, e com os padres, e fazer com
eles pazes, as quais serão sempre fixas, como foram as que fizeram com o
braço de peixe e com os mais tobajaras, e o costumam fazer em todo o Brasil,
que os que se metem na igreja não os cativam, antes o doutrinam e
defendem, o que os franceses nunca nos fizeram e menos os farão agora, que
têm o porto impedido com a fortaleza, donde não podem entrar sem que os
matem e lhes metam com a artilharia no fundo os navios’ ”.
152
Como em todas as outras ações políticas, a prudência era fundamental no trato
com os inconstantes e ardilosos índios, características que se evidenciam no caso “de uma
grande traição e engano que fez [ao governador-geral Manuel Teles Barreto] o gentio de
Cerigipe.”
153
Este havia manifestado o desejo de ir à Bahia, onde seria doutrinado pelos
jesuítas da Companhia. Nesse sentido, solicitaram que alguns soldados lhes
acompanhassem pelo caminho e os defendessem de eventuais contrários:
“Fez o governador sobre isto uma junta de oficiais da câmera e outras
pessoas discretas, onde o primeiro que votou foi Cristóvão de Barros, provedor-
151
Sobre as representações do índio docilmente convertível, veiculadas pelo capuchinho francês Claude
d’Abbeville e pelo huguenote Jean de Léry, ver o artigo de DAHER, Andréa. Do selvagem convertível.
152
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 273.
153
Idem, p. 249.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
176
mor da Fazenda, dizendo, como experimentado nas traições deste gentio, que
se lhes respondesse que se queriam vir viessem embora, e seriam bem recebidos
e favorecidos em tudo, mas que lhes não davam soldados, porque lhes não
fizessem alguns agravos, como costumam. E o mesmo votaram os mais
experimentados.
Porém pôde tanto a importunação e a autoridade dos terceiros, alegando a
importância da salvação daquelas almas que se queriam vir ao grêmio da Santa
Madre Igreja, que o bom governador lhes veio a conceder o que pediam e lhes
deu cento e trinta soldados brancos e mamalucos que os acompanhassem com os
quais e com alguns indíos das aldeias e doutrinas dos padres se partiram mui
contentes aos embaixadores (...).”
154
Escoltados pelos soldados, os índios, em uma madrugada, mataram todos “como
vê-lhes o cordeiro, sem ficarem vivos mais que alguns índios dos padres, que trouxeram a
nova.”
155
Nesses casos de traição, cabia responder com a guerra justa, como quis o
governador, mas a conversão, segundo frei Vicente do Salvador, constituía um remédio
aos males do Brasil, meio eficacíssimo de pacificar os índios e povoar a terra:
“[É tão necessário ao bom governo do Brasil zelarem os governadores a
conversão dos gentios naturais e a assistência dos religiosos com eles que, se isto
viesse a faltar, seria grande mal porque, como estes índios não tenham bens que
perder por serem pobríssimos e desapropriados e por outra parte tão variáveis e
inconstantes, que os leva quem quer, facilmente se espalham donde não podem
acudir aos rebates dos inimigos, como acodem das doutrinas que os religiosos os
têm juntos] e principalmente contra os negros da Guiné, escravos dos
portugueses, que cada dia se lhes rebelam e andam salteando pelos caminhos e se
o não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os
buscam e os trazem presos a seus senhores ”
156
Destarte, converter os índios significava, além da salvação de suas almas,
transformá-los em súditos do rei e, portanto, em aliados dos portugueses na conservação
154
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 249 (grifo nosso).
155
Idem, p. 250.
156
Idem, p. 285 (grifo nosso). Ver nota 116 do capítulo 2.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
177
do Brasil contra os inimigos hereges e os negros. Sobre estes, contudo, paira um silêncio
significativo na História do Brasil. Ao contrário dos índios, os negros são tratados
esporadicamente pela pena do franciscano e sempre de forma fugaz, como no capítulo
sobre a capitania de Porto Seguro em que informa sobre a existência de muito zimbo,
“dinheiro de Angola, que são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias e
trazem por elas navios de negros
157
, ou ainda em uma passagem na qual discorre sobre o
retorno dos homens do capitão Simão Falcão da Paraíba a Pernambuco, “onde lhes
morreram muitos cavalos e escravos à míngua.”
158
Os negros aparecem mais na tomada
de Salvador, como eventuais traidores à espera de uma ocasião para se rebelar contra os
seus senhores:
“Nem só andavam os holandeses insolentes por estes caminhos, mas muito
mais os negros que se meteram com eles, entre os quais houve um escravo de um
serralheiro que prendeu a seu senhor em a roça de Pero Gracia, onde se havia
acolhido e, depois de o esbofetear, dizendo-lhe que já não era seu senhor, senão
seu escravo, não contente só com isto lhe cortou a cabeça, ajudado de outros
negros e de quatro holandeses e a levou ao coronel, o qual lhe deu duas patacas e
o mandou logo enforcar, que quem fizera aquilo a seu senhor também o faria a
ele, se pudesse.”
159
Em uma única ocasião, o franciscano cita o nome de um negro, “que nos servia na
horta, chamado Bastião”.
160
Este também se meteu com os holandeses, mas porque
queriam lhe tomar um facão, saiu da cidade. O descrédito parece ser a marca
característica da natureza dos negros, conforme narra frei Vicente de Salvador:
“Mas, como Bastião levava ainda seu facão (...) o escondeu em o peito de
um, e matando-o lançou a correr pelo caminho que vai pera o rio Vermelho, onde
encontrou uns criados de Antônio Cardoso de Barros, os quais informados do
caso fingiram também que fugiam com o negro e se foram todos embrenhar
157
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 110.
158
Idem, p. 223.
159
Idem, p. 365.
160
Idem, ibidem.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
178
adiante, donde depois que os holandeses passaram lhes saíram nas costas e os
foram levando até um lamarão e atoleiro, onde mataram quatro e cativaram um.
E será bem saber-se pela glória dos valentes que o era tanto um dos mortos,
homem já velho, que metido no atoleiro quase até à cinta ali guardava as frechas
tão destramente com a espada que todas as desviava e cortava no ar, o que visto
por Bastião se meteu também no lodo e lhe deu com um pau nos braços
atormentando-lhos de modo que não pôde mais manear a espada.”
161
Portanto, cabia conferir aos negros traidores, que se aliaram aos holandeses, os
mais severos castigos, embora estes não fossem matéria importante a constar em sua
História do Brasil. Frei Vicente do Salvador descreve apenas um desses castigos para
tratar de um desafio feito aos holandeses:
“Não trato dos assaltos que se deram aos negros seus confederados, que
algumas vezes saíram fora pelas roças, como quem bem as sabia e os caminhos, a
buscar frutas pera lhes venderem, dos quais foram alguns tomados, e a um destes
cortou o capitão Padilha ambas as mãos e o tornou a mandar pera a cidade com
um escrito pendurado ao pescoço, em que desafiava o capitão Francisco, que era
o mais conhecido (...).”
162
Se, por um lado, negros e índios – os quais adquiriam a salvação de suas almas
em virtude dos sacramentos administrados pelas pias mãos portuguesas – deviam ser
tratados, a priori, com amor e misericórdia, por outro, era preciso agir com justiça
quando erguessem obstáculos à realização dos desígnios divinos. Todavia, nesse caso, a
principal lição que se tira da História é a de que os primeiros são traidores e os segundos
inconstantes e, portanto, era necessário prudência no trato com esses homens nitidamente
inferiores na hierarquia providencial do mundo, incapazes de entender os mais elevados
fins do império católico.
161
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 365 (grifo nosso).
162
Idem, p. 385.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
179
3.4 A retórica da construção do herege invasor
Para frei Vicente do Salvador, além do gentio, a presença de franceses, ingleses e
holandeses na costa do Brasil é mais um elemento perturbador ao estado de comunhão
no império católico. Porém, não se pode atribuir um caráter nacional às categorias que
estruturam a História de frei Vicente do Salvador tal como foram formuladas no
Oitocentos. A percepção de elementos relacionados à alteridade e à identidade, no século
XVII ibérico, fundamentava-se na teologia da Segunda Escolástica, definindo os
católicos – espanhóis, franceses ou portugueses – em oposição aos hereges protestantes,
aos infiéis muçulmanos, aos judeus e aos índios pagãos.
O historiador Francisco Bethencourt defende a existência de um sentimento
gregário, impulsionado a partir do século XVI sobretudo pela exaltação das virtudes da
língua pátria, ainda que o bilinguismo fosse uma prática comum na Península Ibérica. De
acordo com Bethencourt:
“(...) a sociedade medieval e, em certa medida, a sociedade moderna, são
sociedades debilmente integradas, com uma forte valorização do quadro de vida
local, onde as rivalidades de vizinhança são vividas no dia-a-dia e ritualizadas
através de cerimônias públicas (...). Nesta situação, caracterizada por uma
relativa fragmentação de poderes e pela distância do poder central, a percepção
de uma solidariedade mais ampla do que as solidariedades tradicionais (a família
e a aldeia) fez o seu caminho através da experiência de emoções partilhadas, que
testemunham fortemente a presença dos outros e permitem o aparecimento de
estados de comunhão. Entre essas emoções partilhadas destacamos o medo e a
festa, dois pólos de efervescência colectiva, bem como as revoltas e revoluções,
tempos fortes de crise e conscientização.”
163
A integração do reino e de suas possessões ultramarinas revestia-se de um caráter
místico, na medida em que o império era percebido como um corpo sacralizado, cuja
cabeça era o rei. Segundo o historiador português, a guerra, por um lado, constituía um
163
BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação, pp. 474-475.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
180
dos fatores de insegurança dos povos – além das epidemias e crises de subsistência –,
mas, por outro, suscitava forte sentimento de solidariedade por parte da comunidade e
dos poderes locais e, “sobretudo, do poder central, que via a sua função protetora posta
em causa.”
164
Bethencourt acrescenta que esses sentimentos foram ensejados, no
Quinhentos, também pelas atividades de corsários franceses e ingleses, ao longo da faixa
costeira do reino, ilhas atlânticas e Brasil.
Os franceses já são mencionados no Livro II da História, relacionados à extração
do pau-brasil ao longo da costa, com a qual quebravam o legítimo monopólio da coroa
portuguesa – prática prescrita pela Política de Aristóteles para aquisição de recursos
financeiros pelos Estados.
165
Contudo, passaram a representar um risco mais grave à
conservação do Estado do Brasil quando tentaram se fixar no Rio de Janeiro, em aliança
com os índios tamoios. Posteriormente, os franceses se aliaram aos potiguares na Paraíba,
o que levou os portugueses a lhes atribuir responsabilidade nos levantes gentílicos
ocorridos no último quartel do século XVI. O ápice narrativo da presença francesa na
América – possessão luso-espanhola, no início do Seiscentos – constitui a fundação de
São Luís do Maranhão, à qual todos os outros episódios contados fornecem o preâmbulo.
Segundo frei Vicente do Salvador, os franceses chegaram ao Rio de Janeiro no
ano de 1556, terra que “esteve por povoar até que Nicolau Villaganhon, homem nobre de
França e cavaleiro do hábito de São João”, fortificou-lhe a entrada, “solicitou o gentio e
fez liga e amizade com eles.”
166
Ordenado pela rainha D. Catarina, que então governava
Portugal, Mem de Sá, auxiliado pela providência divina na figura de São Sebastião,
iniciou a restituição desta terra à Coroa. Mais adiante, o franciscano informa que
acompanhava Villegagnon um herege calvinista chamado João Bouller, o qual, após a
vitória católica, fugiu para a capitania de São Vicente, onde fingiu professar a verdadeira
fé: “dourava as pílulas e encobria o veneno aos que o ouviam e viam morder algumas
vezes na autoridade do Sumo Pontífice, no uso dos sacramentos, no valor das
164
BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional, p. 475.
165
De acordo com o Filósofo: “Em geral, o monopólio é um meio rápido de fazer fortuna. Assim, algumas
cidades, quando precisam de dinheiro, usam desse recurso. (...) É bom que os que governam os Estados
conheçam esse recurso, pois é preciso dinheiro para as despesas públicas e para as despesas domésticas, e o
Estado está menos do que ninguém em condições de dispensá-lo.” A Política, pp. 30-31.
166
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 154.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
181
indulgências, e em a veneração das imagens.”
167
Entretanto, o herege francês foi
reconhecido – “que ao lume da fé nada se esconde” –, denunciado ao bispo e sentenciado
à pena capital pelo governador. Frei Vicente narra a verdadeira vitória católica, que nem
sempre era oriunda das coisas aguadas deste mundo:
“Achou-se ali pera ajudar a bem morrer o padre José de Anchieta (...), posto
que no princípio achou rebelde, não premitiu a divina providência que se
perdesse aquela ovelha fora do rebanho da igreja, senão que o padre com
suas eficazes razões, e principalmente com a eficácia da graça, o reduzisse a
ela. Ficou o padre tão contente deste ganho, e por conseguinte tão receoso de o
tornar a perder que, vendo ser o algoz pouco destro em seu ofício e que se
detinha em dar a morte ao réu e com isso angustiava e o punha em perigo de
renegar a verdade que já tinha sido confessada, repreendeu o algoz e o
industriou que fizesse com presteza seu ofício, escolhendo antes pôr-se a si
mesmo em perigo de incorrer nas penas eclesiásticas, de que logo se absolveria,
que arriscar-se aquela alma às penas eternas.
168
Além de professarem heresias, os franceses ajudavam os tamoios que andavam
pela costa do Rio de Janeiro até São Vicente, “salteando os índios novos cristãos,
prendendo, matando e comendo a quantos podiam alcançar.
169
Nas palavras do
franciscano, os franceses são percebidos como principal obstáculo ao fim da
antropofagia:
“Durou esta moléstia dois anos, sem que força alguma pudesse reprimir o
atrevimento dos bárbaros insolentes, que cada dia crescia com o favor e ajuda
dos franceses com que já se não contentavam do mal que faziam aos outros
índios, mas a todos os moradores de São Vicente ameaçavam com cruel
guerra, e aprestavam uma armada de canoas pera por mar e por terra os
combaterem.”
170
167
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil p. 167.
168
Idem, ibidem (grifo nosso).
169
Idem, p. 158.
170
Idem, ibidem (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
182
A vitória dos portugueses no Rio de Janeiro não afastou de todo a ameaça
francesa, deslocada para o Cabo Frio, onde continuou a industriar os tamoios. No entanto,
os hereges não eram somente um perigo na América, mas na própria travessia do
Atlântico. Frei Vicente conta que, em 1570, os corsários luteranos assassinaram D. Luís
Fernandes de Vasconcelos, que vinha suceder o governador Mem de Sá. O mesmo
destino tiveram os quarenta jesuítas que vinham ao Brasil com o padre Inácio de
Azevedo, os quais embarcaram em uma nau que se apartou das outras em virtude de uma
tormenta.
171
Os franceses são mencionados logo no primeiro capitulo do Livro IV, novamente
na capitania do Rio de Janeiro. Desta vez, não atuaram ao lado dos tamoios e de seus
gentílicos costumes, mas ainda assim contra o legítimo rei católico Felipe II, I de
Portugal. Segundo o frade baiano, corria o ano de 1582, no qual Manuel Teles Barreto,
primeiro governador-geral nomeado pelo monarca espanhol, havia chegado à Bahia e
informado a todas as outras capitanias “que conhecessem a Sua Majestade por seu rei e
foi de importância este aviso, porque daí a poucos dias chegaram três naus francesas ao
Rio de Janeiro (...) dizendo que iam com uma carta de D. Antônio para o Capitão
Salvador Correia de Sá.”
172
O governador estava em uma guerra contra o gentio no
sertão, porém a sua mulher utilizou engenhoso artifício para enganar os franceses, que
deixaram a Baía.
No mesmo capítulo, frei Vicente do Salvador menciona dois galeões ingleses que
foram à capitania de São Vicente, interessados nas “minas de ouro e outros metais que há
naquela terra, e publicavam que el-rei católico era morto e D. Antônio tinha o reino de
Portugal, oferecendo da parte da rainha da Inglaterra grandes coisas.”
173
Os lusitanos
perceberam a artimanha e como estavam “mui firmes por el-rei católico”, não quiseram
admitir os ingleses, expulsos pelas três naus de Castela que navegavam em direção ao
estreito de Magalhães. O franciscano conclui o capítulo de forma encomiástica:
171
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 174.
172
Idem, p. 216.
173
Idem, ibidem.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
183
“Entraram as naus castelhanas em o porto, sendo bem recebidas dos portugueses,
que rogavam mil bens a Sua Majestade, pois (ainda que acaso) tão presto os
começava a defender.”
174
Os dois episódios evidenciam, primeiro, a lealdade dos súditos portugueses ao
monarca espanhol, em um momento imediatamente posterior à sucessão do reino de
Portugal, e, segundo, a inexistência de qualquer sentimento nacional, invenção
oitocentista que resulta em anacronismo se aplicada ao Seiscentos absolutista. Ainda no
Livro IV, os franceses aparecem como aliados dos bárbaros potiguares, que os
auxiliavam carregando pau-brasil na Paraíba.
Em relação ao Maranhão, a posse dos portugueses parecia ser assegurada pela
Providência desde o naufrágio das naus enviadas pelo feitor da Casa das Índias João de
Barros às suas terras, vicissitude narrada pelo franciscano no Livro II. Os muitos
sobreviventes recolheram-se à Ilha de São Luís, onde fizeram pazes com o gentio tapuia:
“E chegou o trato e amizade a tanto que alguns houveram filhos de tapuias,
como se descobriu depois que cresceram, não só porque barbaram e barbam
ainda hoje todos os seus descendentes, como seus pais e avós, senão pelo amor
que tem aos portugueses, em tanta maneira que nunca mais quiseram paz com os
outros gentios, nem com os franceses, dizendo que aqueles não eram
verdadeiros perós (que assim chamam aos portugueses, parece por respeito
de algum que se chamava Pedro) e todavia, quando na era de 614 entraram
os nossos no Maranhão, logo os vieram ver e fazer pazes com eles, dizendo
que estes eram os seus perós desejados, de que eles descendiam.
175
A ocupação efetiva da ilha de São Luís, a partir de 1612, fornece matéria aos
primeiros capítulos do Livro V da História do Brasil. Os franceses alegavam que tinham
direito ao Maranhão, “pois Adão o não deixara em testamento mais a uns que a outros, e
com este pretexto trouxeram doze religiosos da nossa ordem dos capuchinhos pera
174
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 217.
175
Idem, p. 127 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
184
converterem os gentios.”
176
Em que pese a ajuda dos católicos, essa tentativa de ocupação
era liderada pelo “general Daniel de Touche, que era Monsiur de Reverdière e
calvinista.”
177
Em resposta, o governador-geral, Gaspar de Sousa, enviou Jerônimo de
Albuquerque a fim de reconquistar essa possessão, o qual ajuntou o “nosso gentio
pacífico”e solicitou religiosos franciscanos da Custódia de Santo Antônio do Brasil. A
expedição obteve sucesso e, enfim, foram feitas as pazes entre os dois lados da contenda,
cujos termos encontram-se transcritos no capítulo 4 deste último livro.
Os capuchinhos de França deixaram a ilha, “vendo o pouco fruto que faziam na
doutrina dos gentios por lhe não saberem a língua.”
178
Frei Vicente do Salvador descreve
a admiração mútua entre os religiosos de ambos os reinos, não obstante estivessem os
franceses em companhia de hereges. Em seguida, depois de enviados reforços
capitaneados por Francisco Caldeira de Castelo Branco, a questão foi finalmente
resolvida. Para o franciscano, o gentio do Maranhão já estava inclinado a ajudar os
lusitanos, “porém, eles se resolveram em largar tudo o mais sem contenda, dando-lhes
embarcações em que se fossem pera a França, pelo que se passaram os nossos pera a
ilha.”
179
A conquista do Maranhão aos franceses, posto que comandada pelo calvinista La
Ravardière, não proporciona a construção efetiva de um inimigo cruel e que em tudo se
opunha aos portugueses, certamente pela presença de capuchinhos de França, entre outros
“católicos romanos que ouviam missa, confessavam-se e comungavam.”
180
Não obstante,
frei Vicente, alguns capítulos adiante, afirma que frei Cristóvão Severim, enviado como
custódio franciscano, vigário-geral e provisor do estado do Maranhão, em 1624,
“queimou muitos livros que achou dos franceses hereges e muitas cartas de tocar e
orações supersticiosas de que muitos usavam.”
181
A construção retórica do invasor herege, em oposição ao bem que representava a
povoação portuguesa, é coroada, sem as tensões apresentadas acima, pela narrativa da
tomada de Salvador pelos holandeses. De fato, frei Vicente já havia assinalado sinais que
176
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 336
177
Idem, p. 340.
178
Idem, ibidem.
179
Idem, p. 346.
180
Idem, p. 343.
181
Idem, p. 377.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
185
prenunciavam o episódio no capítulo em que trata das urcas flamengas que, embora
proibidas pelo rei, vinham ao Espírito Santo e ao Cabo Frio com o intuito de carregar
pau-brasil. Já no Livro V, informa ainda sobre uma armada de holandeses que passou
pelo Rio de Janeiro. Os riscos potenciais à conservação do Estado do Brasil são
enunciados na passagem acerca da vinda de Diogo de Mendonça Furtado, governador
geral enviado para tempos de guerra, conforme pode ser interpretado pelas suas primeiras
preocupações:
“Em 12 de outubro de 1621, a uma terça-feira, que o vulgo tem por dia
aziago, chegou o governador Diogo de Mendonça Furtado, que foi o duodécimo
governador do Brasil, à Bahia, e desembarcando foi levado a sé com
acompanhamento solene e daí a sua casa, onde, antes de subir a escada, foi ver o
almazém das armas e pólvora que estava na sua loge, demonstração de se prezar
mais de soldado e capitão que de outra coisa. E na verdade esta era em aquele
tempo a mais importante de todas, por se haverem acabado as pazes ou
tréguas entre Espanha e os holandeses, e se esperarem novas guerras nestas
partes transmarinas, que estas são sempre as que pagam por nossos pecados
e ainda pelos alheios, e assim é necessário que as ilhas e costas do mar
estejam sempre em arma.”
182
Portanto, a invasão dos hereges holandeses apresenta-se claramente como um
castigo aos pecados e às discórdias entre as partes do corpo imperial católico. Com o
intuito de expor as causas que levaram à tomada da Bahia, frei Vicente discorre sobre as
“guerras civis que havia entre as cabeças” do Brasil – entre o governador e o bispo, D.
Marcos Teixeira, entre este e os desembargadores – e também entre os cidadãos,
“prognóstico certo de dissolução da cidade.”
183
Os flamengos iniciaram a conquista de Salvador pelo porto da vila velha e,
segundo o franciscano, não houve resistências dos homens enviados para dar o primeiro
combate, pois os “que estavam com seus arcabuzes feitos detrás do mato pera os
dispararem ao desembarcar dos batéis, porém, vendo ser muito maior o número dos
182
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 354 (grifo nosso).
183
Idem, p. 360
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
186
inimigos, não os quiseram esperar.”
184
O medo, “como mal contagioso”, espalhou-se aos
moradores, cuja maior parte fugiu antes mesmo da queda do núcleo da cidade. Em meio à
pusilanimidade que se abateu sobre as milícias lusas, frei Vicente destaca ações virtuosas
em outra frente de combate, na qual destaca-se um franciscano que participou
devidamente protegido pela Providência:
Melhor o fizeram os da fortaleza nova, a qual o almirante Petre Petrijans ou,
como os portugueses lhe chamamos, Pero Peres, com o resto da sua soldadesca
valorosamente combateu, e não com menos valor e ânimo lha defendeu Vasco
Carneiro e Antônio de Mendonça que o ajudou com mui poucos dos seus
soldados, que já os mais lhe haviam fugido. Também os socorreu com muito
ânimo Lourenço de Brito, capitão dos aventureiros; porém, como eram muitos os
holandeses e o forte não estava acabado nem com os repairos necessários, foi
forçado larga-lho, estando já Lourenço de Brito ferido e treze homens mortos,
sendo dos últimos que se saiu o nosso irmão frei Gaspar do Salvador, que os
esteve exortando e confessando e, quando se abaixou pera entender o que lhe
dizia um castelhano a quem um pelouro havia levado a perna, o livrou Deus
de outro, que lhe passou por cima da cabeça, havendo-lhe já outro levado
um pedaço de túnica.”
185
O exemplo mais engenhoso e eloqüente, ainda neste capítulo, é o de Pero Gracia,
o qual, após ser fatalmente atingido pelo bombardeio batavo, zelou pelos sacramentos
católicos e buscou a concórdia. Mesmo doente, Gracia havia se posicionado na praia,
junto com seus criados, a fim de combater os inimigos hereges. Após ser perguntado pelo
governador como estava, respondeu:
“‘Senhor, já estou bom, que neste tempo os enfermos saram e tiram forças da
fraqueza’, ânimo por certo que os próprios inimigos deveram ter respeito e assim,
depois que o souberam, mostraram pesar, pondo a culpa à diabólica arma de
fogo, que aos mais valentes mata primeiro, e como raio onde fortaleza acha faz
mais dano. O pelouro lhe deu pelas queixadas, e ainda lhe deu lugar a se
184
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 362.
185
Idem, pp. 362-363 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
187
confessar e de se reconciliar com alguns de seus inimigos, que ali se acharam, um
dos quais era Henrique Álvares, a quem também outro pelouro matou pouco
depois.”
186
Os holandeses instalaram-se no convento dos beneditinos, no limite de uma das
portas da cidade, onde passaram a noite. O governador mandara vir toda a gente do
recôncavo e determinou que “a gente não lhe fugisse”, mas não foi atendido. Frei Vicente
conclui o capítulo com uma articulação das tópicas da fugacidade da vida e da honra
advinda do serviço ao Rei: “Tanto pôde o receio de perder a vida, e enfim se perde tarde
ou cedo, e às vezes em ocasião de menos honra.”
187
O capítulo seguinte inicia-se com mais um exemplo de bom governo, fornecido
pela constatação de que, ao contrário da gente, o governador não foge, pois não teme
perder a vida de forma honrada, ou seja, prestando um serviço ao seu rei. Diogo de
Mendonça Furtado, após se confessar com um franciscano que passava, recolheu-se em
sua casa acompanhado do filho, Antônio de Mendonça, do sargento-mor Francisco de
Almeida de Brito, de Lourenço de Brito e Pero Casqueiro da Rocha. Os holandeses
entraram e tomaram posse pacífica de Salvador, o governador e as demais autoridades
foram presas e espalhadas pelas naus. Depois de narrar esses episódios, frei Vicente
discorre sobre o coronel João Vandort, que começou a governar as coisas da terra:
“O coronel era homem pacífico, e se mostrava pesaroso do dano feito aos
portugueses e desejoso da sua paz e amizade, e assim aos que quiseram tornar
passou passaportes e lhes mandou dar quanto quiseram, não sem os seus lho
estranharem, porque, segundo o princípio que levava, lhe houveram de levar
tudo; porém, a não serem os portugueses tão firmes na fé da santa igreja
católica romana e tão leais a seus reis como são, não lhes fizera menos guerra
com estas dádivas, sujeitando os ânimos dos que as recebiam, do que os seus a
faziam por outra parte com as armas, tomando quanto podiam pelas roças
186
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 363.
187
Idem, p. 363.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
188
circunvizinhas da cidade, e isto com tanto atrevimento como se foram senhores
de tudo.”
188
O episódio ratifica a lealdade dos súditos portugueses ao monarca espanhol,
virtude que não era característica dos holandeses, os quais, desde o fim do século XVI,
lutavam contra o imperium de Felipe II e de seus sucessores. A lealdade ao rei significava
também seguir à Igreja romana. Desse modo, frei Vicente do Salvador estabelece uma
primeira oposição entre as duas partes da contenda. Esta relação fica evidente na
descrição do enterro do coronel João Vandort, morto em um dos assaltos ordenados pelo
bispo, D. Marcos Teixeira:
“E no dia seguinte o enterraram na sé com a pompa que costumam, muito
diferente da nossa, porque não levaram cruzes, música, nem água benta,
senão o corpo em um caixão coberto de baeta de dó. Os capitães que o
levaram aos ombros, e um filho do defunto, um cavalo à destra, que também ia, e
as caixas que se tocaram destemperadas, tudo isto ia coberto de dó, e diante as
companhias todas dos mosqueteiros, e diante as companhias todas dos
mosqueteiros, com os mosquetes debaixo do braço e as forquilhas arrastando. Os
quais, entrando na igreja o defunto, se ficaram de fora ao redor dela, e ao tempo
que o enterraram os dispararam todos três vezes (...).
189
A heresia flamenga manifestava-se principalmente pela profanação dos templos
católicos e das suas imagens. Portanto, a luta contra os holandeses revestiu-se de um
caráter místico, na medida em que, conforme relatos coevos, a Providência operava
milagres a favor dos portugueses. O próprio Vicente do Salvador, preso em uma das naus
dos hereges, afirma ter dito à sua tripulação que não tentasse tomar a fortaleza,
posicionada em frente a uma “igreja de Nossa Senhora do Socorro de muitos milagres, a
qual defendia todo aquele circuito, do que muito se riram, mas enfim se tornaram pera o
porto da cidade sem pilhagem alguma.”
190
188
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 364 (grifo nosso).
189
Idem, p. 368 (grifo nosso).
190
Idem, p. 373.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
189
O frade baiano conta ainda um episódio no qual os holandeses foram à ilha de
Taparica, em busca de azeite de baleia. Ao chegarem no engenho de Gaspar de Azevedo
não lhe fizeram nenhum dano, entretanto, como hereges, não deixaram de magoar uma
cruz que havia no local:
“E somente a uma cruz de pau, alta, que estava no terreiro do engenho,
deram algumas cutiladas, a qual milagrosamente se torceu e virou logo pera
outra parte, pera qual caminhando depois os holandeses acharam alguns
moradores da ilha com Afonso Rodrigues da Cachoeira, que então ali chegou
com o seu gentio e, mortos oito a frechadas e arcabuzadas, lhes tomaram uma
lancha com três roqueiras e fizeram embarcar os mais com a água pela barba e
muitos mui mal feridos. Pelo que se ficou tendo aquela cruz em tanta
veneração e estima dos católicos que fazem dela relíquias, com que saram
muitos enfermos de maleitas e outras enfermidades.”
191
A descrição das primeiras medidas tomadas por Matias de Albuquerque, tão logo
recebeu a provisão do governo, em substituição a Diogo de Mendonça Furtado, destaca
quem eram as cabeças responsáveis pelas decisões sobre o governo do Brasil. Segundo
frei Vicente:
“[Matias de Albuquerque] fez logo uma junta dos oficiais da câmera,
capitães, prelados das religiões, e outras pessoas qualificadas sobre se viria em
pessoa socorrer a Bahia, o que por todos lhe foi contradito, assim porque não
bastaria o socorro que de lá podia trazer pera recuperá-la, como pelo perigo em
que deixava estoutra capitania, de cuja fortificação e defensa se devia também
tratar, pois viam arder as barbas dos seus vizinhos.
192
O ponto de inflexão da luta contra os holandeses, de acordo com a prosa
historiográfica do frade baiano, foi o início da ação régia em Madri, determinando o
envio de armadas ao Brasil. Afirma que “sabida pelo nosso rei católico Filipe Terceiro a
nova da perda da Bahia, a sentiu grandemente, não tanto pela perda quanto por sua
191
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 372 (grifo nosso).
192
Idem, pp. 373–374 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
190
reputação.”
193
A partir desse capítulo, frei Vicente inicia a distribuição de louvores aos
discretos fidalgos ou às pessoas qualificadas que, ao travarem os primeiros combates para
restituir a cidade de São Salvador, prestaram excelente serviços ao império. Esses
atributos lhes transformavam em potenciais alvos encomiásticos do escritor, em
prováveis agraciados pelas mercês régias e, por fim, mas não menos importante, esses
serviços garantiam a salvação das suas almas. Desse modo, conta que os governadores do
reino de Portugal, D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva, enviaram os capitães
Francsico Gomes de Melo e Pero Cadena a Pernambuco; Salvador Correia de Sá e
Benevides ao Rio de Janeiro, D. Francisco de Moura, que já havia sido governador de
Cabo Verde, à Bahia.
A integração mística do império católico evidencia-se de forma mais clara nos
momentos de socorro às partes que o compunham. A construção retórica da unidade
substancial e transcendente desse corpo teológico-político inclui, além das ações
empreendidas pela aristocracia ultramarina, o apresto das armadas de Portugal, Biscaia e
Castela. Em Portugal, D. Afonso de Noronha, fidalgo velho, eleito vice-rei da Índia, foi o
primeiro a se alistar na jornada. O posto de capitão-mor da esquadra portuguesa foi
ocupado pelo fidalgo Tristão de Mendonça Furtado.
O capítulo 34 fornece uma listagem, dividida hierarquicamente em duas partes,
dos mais importantes fidalgos que embarcaram a fim de libertar a Bahia do jugo
protestante. A primeira parte da lista destaca os nomes daqueles que ocuparam os postos
de comando, como o próprio Tristão de Mendonça Furtado ou Antônio Moniz Barreto,
que vinha investido das patentes de capitão e mestre de campo na galeão Conceição. Em
alguns casos, frei Vicente do Salvador fornece o nome, patente e, quando necessário,
ascendência do súdito que embarcava:
“Partiu esta armada de Lisboa a 22 de novembro de 1624, dia de Santa
Cecília, por general dela D. Manuel de Menezes em o galeão São João, do qual
vinha por capitão seu filho D. João Teles de Menezes e juntamente de uma
companhia de soldados, e D. Álvaro de Abranches, neto do conde de Vila-
193
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 381.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
191
Franca, e Gonçalo de Sousa, governador do reino de Angola, de outras duas, que
por todos eram seiscentos soldados.”
194
Em poucas palavras, frei Vicente menciona, primeiramente em quatro pequenos
parágrafos, os capitães dos quatro galeões que compunham a armada portuguesa; em
seguida, num único e longo parágrafo fornece o nome dos capitães que vinham em 14
naus ou navetas, sem, no entanto, contemplar a sua ascendência. Por fim, novamente em
um parágrafo curto, informa laconicamente: “Os mais navios eram patachos e caravelas,
que por todos eram vinte e seis, dez do Porto e Viana, e os mais de Lisboa.”
195
Na segunda parte do capítulo, o franciscano lista os fidalgos que “vinham
embarcados por soldados, seguindo a ordem do alfabeto.”
196
Por fim, afirma que havia
“muitos outros nobres, que parece se não tinham por tais os que se não embarcavam nesta
ocasião.”
197
No capítulo seguinte, a extensa lista de súditos leais abrange ainda aqueles
que não embarcaram, mas financiaram o apresto da esquadra. Frei Vicente do Salvador
discorre sobre as virtudes da nobreza de Portugal e Espanha, sempre de acordo com os
critérios aristotélicos:
“E, se tão liberais se mostraram de suas pessoas os portugueses em esta
ocasião, não o foram menos de suas fazendas, não somente os que se
embarcaram, que estes claro está que aonde davam o mais haviam de dar o
menos, e onde arriscavam as vidas não haviam de poupar dinheiro, e assim
fizeram grandíssimas despesas, mas também os que não puderam embarcar
deram um grande subsídio pecuniário pera o apresto da armada.”
198
Entre os grandes nobres e instituições liberais citados, destacam-se a Câmara da
cidade de Lisboa; “o excelentíssimo duque de Bragança D. Teodósio Segundo”; os
duques de Caminha e Vila Hermosa, este último presidente do Conselho de Portugal; o
marquês de Castelo Rodrigo; D Luís de Sousa, “alcaide-mor de Beja, senhor de Bringel e
194
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 386.
195
Idem, ibidem.
196
Idem, ibidem.
197
Idem, p. 388.
198
Idem, p. 389.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
192
governador que foi do estado do Brasil.”
199
Os prelados eclesiásticos também
contribuíram, como o “ilustríssimo e reverendíssimo arcebispo de Lisboa D. Miguel de
Castro”; o arcebispo primaz D. Afonso Furtado de Mendonça; e o “ilustríssimo arcebispo
de Évora D. Joseph de Melo.
200
Por fim, frei Vicente cita genericamente os mercadores
de portugueses, italianos de alemães. O montante reunido – ao todo duzentos e vinte mil
cruzados – foi suficiente para os gastos da armada portuguesa, “sem entrar nele a fazenda
de Sua Majestade, e assim veio provida abundantissimamente de todo o necessário pera a
viagem.”
201
A construção da concórdia inclui ainda a armada real de Espanha, matéria do
capítulo 36, que apresenta, de forma mais breve, o nome dos principais nobres de Castela
e de Nápoles, entre os quais se destaca “o generalíssimo do mar e terra D. Fadrique de
Toledo.”
202
Unidas as até então disperas partes do corpo imperial no arquipélago de Cabo
Verde, torna-se possível, no capítulo 37, anunciar o momento em que os católicos iniciam
providencialmente a sua vitória. Esta tarefa quase profética cabe a um franciscano,
durante confronto ocorrido no Espírito Santo, entre Salvador Correia de Sá e Benevides,
que, do Rio de Janeiro, também dirigia-se à Bahia, e o almirante holandês Pero Peres, que
retornava sem sucesso de Angola:
Também o guardião da casa do nosso padre São Francisco, frei Manuel do
Espírito Santo, que andava com os seus religiosos animando os nossos
portugueses, vendo já os inimigos junto às trincheiras, se assomou por cima delas
com um crucifixo dizendo: ‘Sabei, luteranos, que este senhor vos há de
vencer’. E, com isto, vendo-se livre de uma chuva de pelouros, se foi ao sino da
igreja matriz que ali estava perto, e o começou a repicar publicando vitória, com
que a gente se animou mais a alcançá-la, de sorte que o general dos holandeses se
retirou pera as naus com perto de cem feridos de trezentos que haviam
desembarcado, e alguns mortos (...).”
203
199
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 389.
200
Idem, ibidem.
201
Idem, p. 390.
202
Idem, p. 391.
203
Idem, p. 393 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
193
Com a chegada da armada católica à Bahia e o desembarque de “dois mil
castelhanos, mil e quinhentos portugueses e quinhentos napolitanos”, frei Vicente passa a
descrever as batalhas ocorridas nas duas portas da cidade – a do Carmo e a de São Bento.
De acordo com o preceito do ut pictura poesis, as cenaso minuciosamente pintadas a
fim de reconstituir a participação dos fidalgos que serviam Felipe IV. Para o melhor
entendimento dos leitores, o frade baiano pretendia inserir, no fim do capítulo 40, uma
imagem com a “descrição da cidade e sítio das fortalezas, donde se tirava de dentro e fora
dela.”
204
Em meio aos conflitos, as preces flamengas pareciam não ser atendidas pelo
Senhor:
“Nem deixavam com toda esta ocupação os holandeses todos os dias, manhã
e tarde, de se ajuntar em a sé a cantar salmos e fazer deprecações a Deus que os
ajudasse: donde um domingo pela manhã deu um pelouro que vinha da nossa
bateria de São Bento e, passando a parede da capela de São José, levou a perna a
quatro que estavam assentados em um banco ouvindo a sua pregação, de que
morreram dois.”
205
Destarte, sem o auxílio divino, só restava a rendição aos hereges. Frei Vicente
discorre sobre o favor de Deus à parte mais justificada da contenda, a qual lutava pela
honra das majestades celeste e terrena:
“Quão enganados vivem os homens que põem a sua confiança em as forças e
indústria humana experimentaram brevemente os holandeses em esta cidade da
Bahia, cuja guarda e defensão cuidavam estar em tirarem um capitão e porem
outro mais diligente e industrioso, sendo o certo o que diz Davi que, se o senhor
não guarda a cidade, em vão vigiam os que a guardam.”
206
Depois da vitória, os católicos encontrariam os seus templos profanados. O
colégio dos jesuítas serviu de depósito de mercadorias e morada dos comerciantes. A
204
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 400.
205
Idem, pp. 396-397.
206
Idem, p. 402.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
194
igreja dos inacianos foi utilizada como adega e enfermaria. As igrejas dos franciscanos e
da Misericórdia serviram de armazém de pólvora.
“E assim não houve outra igreja que fosse necessário desviolar-se senão a sé,
coisa que os hereges sentiram muito, ver que desenterraram dois seus coronéis e
outros capitães que ali estavam enterrados, e chamaram alguns pera que
mostrassem a sepultura e os levassem a enterrar no campo, pera se haver de
celebrar no campo a primeira missa in gratiarum actionem, a qual cantou
solenemente o vigário geral do bispado do Brasil, o cônego Francisco Gonçalves
(...).”
207
Embora a Providência deseje somente o bem das criaturas fiéis, Deus permite o
mal para que depois aconteça ainda um bem ainda maior. Se, por um lado, a tomada de
Salvador foi percebida pelo franciscano como um castigo em função da discórdia e dos
pecados, por outro, serviu para atar as diferentes partes do império em torno de um
objetivo comum. Desse modo, a justiça divina se manifesta no castigo infligido aos
católicos e, posteriormente, na restituição da Bahia, revelar-se-ia toda a Sua Misericórdia.
A ação do rei é fundamental para a passagem da justiça para a misericórdia de Deus. Esse
movimento subjaz às eloqüentes linhas em que frei Vicente do Salvador descreve a
sensação dos católicos após a vitória:
“Aqui confesso eu minha insuficiência pera poder relatar os júbilos, a
consolação, a alegria que todos sentíamos em ver que nos púlpitos, onde se
haviam pregado heresias, se tornava a pregar a verdade de nossa santa fé
católica, e nos altares, donde se haviam tirado ignominiosamente as imagens dos
santos, as víamos já com tanta reverência restituídas, e sobretudo víamos já o
nosso Deus em o santíssimo sacramento do altar, do qual estávamos havia um
ano privados, servindo-nos as lágrimas de pão de dia e de noite, como a Davi,
quando lhe diziam os inimigos cada dia: Onde está o teu Deus?
Donde se colige o gosto que seria depois vermos nossas lágrimas tornadas
em alegria e restituído o nosso pão de cada dia que é o mesmo Deus em espécies
207
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
195
de pão, ao qual depois de havermos dado as graças as dávamos também ao
nosso católico rei por haver sido por meio de suas armas o instrumento deste
bem, conhecendo todos que, se o seu reino de Espanha se pinta em figura de uma
donzela mui formosa, com a espada em uma mão e espigas de trigo em a outra,
não é pera denotar sua fortaleza e fertilidade, mas pera significar como pelas
armas de seus exércitos se goza este divino trigo em todas as terras de sua
conquista.”
208
Ainda no quadragésimo terceiro capítulo, frei Vicente de Salvador afirma que,
depois de saber da notícia em Madri, Felipe IV “fez dar solenemente as graças a Nosso
Senhor pela mercê recebida.”
209
O rei, portanto, situa-se entre Deus e seus súditos. Esse
caráter místico estende-se a todo o império, cujo destino providencial frei Vicente do
Salvador relaciona a Roma e ao Estado do Brasil:
“Em Flandres foi tomada aos hereges a poderosa cidade de Breda e no
Brasil (como temos dito) recuperada de outros a Bahia, que o ano dantes a
tinham ocupada. Bem parece que foi aquele bissexto e estoutro de jubileu, em
que o vigário de Cristo em Roma tão liberalmente abre e comunica aos fiéis o
tesouro da Igreja, pera que confessando-se sejam absolutos de culpas e censuras,
que são muitas vezes as que impedem as mercês e benefícios divinos, e nos
acarretam os castigos. E principalmente se pode atribuir a felicidade deste
ano a Espanha em ser nele celebrada a canonização de Sta. Isabel, rainha de
Portugal e natural do reino de Aragão, por cuja intercessão e merecimentos
podemos crer que fez e fará Deus muitas mercês a estes reinos.”
210
Os argumentos teológico-políticos da História do Brasil, longe de pertencerem a
uma perspectiva autonomista, sacramentam a união das coroas ibéricas como meio de
promover a concórdia entre os reinos católicos para combater os inimigos da fé. Assim,
no confronto que opõe os católicos portugueses, espanhóis e napolitanos aos hereges
holandeses e franceses, frei Vicente do Salvador destaca, como virtudes necessárias aos
208
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405 (grifo nosso).
209
Idem, p. 406.
210
Idem, pp. 406-407 (grifo nosso).
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
196
homens a serviço de Felipe IV, a coragem e o ânimo, mas, sobretudo, a lealdade ao Rei e
à Igreja Romana. A liberalidade, excelência moral de acordo com Aristóteles, também é
“própria da nobreza castelhana.”
211
O papel dos religiosos, entre os quais,
indubitavelmente, destacam-se os seus irmãos da ordem de São Francisco de Assis,
devia ser o de exortar os soldados, animá-los e confessá-los, para que, em caso de morte,
pudessem chegar puros ao reino do céu.
O Brasil havia sido providencialmente revelado aos homens e, nesse sentido,
cabia aos portugueses, reunidos em torno do seu Rei, instrumento do Bem neste mundo,
fazer com que Sua Vontade predominasse nessas partes até então governadas pelas
artimanhas do demônio, expressas nos bárbaros costumes do gentio. Em oposição a esse
tempo de trevas, o governo lusitano devia fazer reinar a Luz e, nesse sentido, nas últimas
páginas do Livro V, que tratam da presença de holandeses ao longo da costa, frei Vicente
do Salvador adverte “que os quis Deus deixar ainda no Brasil (como deixou os cananeus
aos filhos de Israel) pera freio de nossos pecados.”
212
211
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 406.
212
Idem, p. 410.
CONCLUSÃO
“A fortaleza louvada
Anda em braços com a prudência,
Irmã sua muito amada.
Põe na avante a experiência.
Tudo sem saber é nada/
Por forças nós que podemos?
Isso que é do saber veio:
O bem todo está no meio,
O mal todo nos extremos.”
Francisco de Sá de Miranda
Estes versos, elaborados pelo irmão do governador Mem de Sá, no século XVI,
foram citados na segunda metade do Oitocentos pelo Visconde do Uruguai, em seu
Ensaio sobre o direito administrativo, publicado em 1862. Nesse livro, o autor discorre
sobre o papel do Estado e sua relação com a sociedade, criticando a eficiência das
instituições que havia ajudado a fundar. Se, por um lado, a obra é tributária das leituras
de Alexis de Tocqueville e François Guizot, por outro, as tópicas da moderação, do mau e
do bom governo – fundamentadas na filosofia ético-política de Aristóteles, e apropriadas
pelos teóricos ibéricos da Segunda Escolástica – estão presentes na argumentação do
Visconde do Uruguai. Ao longo do duradouro século XIX brasileiro, essas tópicas
continuaram a ser utilizadas, certamente em um quadro diverso, de construção do Estado
e de invenção da nacionalidade brasileira.
O funcionamento político-administrativo do Império brasileiro, não obstante a
ruptura política com Portugal e o desprezo pelas repúblicas latino-americanas, deitou as
suas raízes na longa tradição ibérica, firmada sobretudo pelos teólogos e juristas
escolásticos a partir do Quinhentos.
1
Segundo José Murilo de Carvalho, que analisa a
1
Sobre a Segunda Escolástica e a sua relação com a Contra-Reforma, ver SKINNER, Quentin. As
fundações do pensamento político moderno. Acerca da opção tomista ibérica e o uso dos seus conceitos
para governo do Novo Mundo, ver MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e idéias nas
Américas.
Conclusão
199
construção de sucessivas imagens nacionais, entre 1822 e 1945, a representação
romântica do Brasil como um índio foi adotada com unanimidade pela imprensa
decimonônica. Entretanto, ao lado desse novo elemento simbólico – percebido como
elemento genuinamente nacional – é possível verificar também a permanência de
conceitos políticos escolásticos: “A nação era também raramente representada como
índia. Quando o era, tornava-se Brasília em vez de Brasil. Ou era entidade abstrata como
a Concórdia.”
2
A permanência de certos termos do léxico aristotélico-tomista pode ser verificada
mesmo entre aqueles que tentaram romper com a tradição absolutista portuguesa,
associando-a ao domínio colonial e ao atraso do país. Em oposição ao vínculo ibérico,
Tavares Bastos propunha a adoção do sistema político norte-americano – a república.
3
Em Os males do presente e as esperanças do futuro, publicado em 1861, Bastos
defendia que as raízes dos problemas brasileiros encontravam-se na herança colonial,
condenando de forma veemente o despotismo burocrático lusitano.
No século XX, a linha do americanismo foi seguida pelo médico sergipano
Manoel Bomfim, autor de A América Latina: males de origem, publicado em 1905. Nessa
altura, havia outros elementos que fundamentavam a obra de Bomfim, sobretudo as
teorias biológicas e os conceitos marxistas. Entretanto, as ações portuguesas na América
continuavam a ser interpretadas ou como um bem, responsável pela vocação branca e
católica, pela catequese do gentio e pela instituição da cultura civilizada européia no
Brasil; ou como um mal, responsável pelo parasitismo metropolitano, procedimento que
continuou a permear as ex-colônias depois das independências. Os termos da operação
apenas invertiam-se.
Manoel Bomfim, em meados da década de 1920, escreveu O Brasil na América,
livro dedicado à memória de frei Vicente do Salvador, que, segundo o autor, foi o
“primeiro definidor da tradição brasileira”.
4
O uso nacionalista da História do Brasil
identificou no livro do franciscano críticas à colonização portuguesa. Ademais, para
Bomfim, frei Vicente, “que não cala verdades a respeito dos reinos do seu tempo”
5
,
2
CARVALHO, José Murilo de. Brasil: nações imaginadas, pp. 243-244 (grifo nosso).
3
Cf. Idem, p. 243.
4
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira.
5
Idem, p. 89.
Conclusão
200
parece ser portador de uma intenção objetiva, prenúncio da disciplina historiográfica
oitocentista. Concomitantemente, esse uso transformou a História em um meio
privilegiado para, supostamente, apreender a realidade da Colônia, porque vista por um
brasileiro. Ainda de acordo com Manoel Bomfim, frei Vicente do Salvador era “o melhor
espelho da vida colonial no primeiro século do Brasil”.
6
A leitura nacionalista e documentalista da História do Brasil foi primeiramente
instituída pelos comentários de Capistrano de Abreu, tanto em sua primeira publicação
completa, no volume 13 dos Anais da Biblioteca Nacional em 1888, como na edição
crítica do livro, de 1918. Para o historiador cearense, a idéia de Brasil, como expressão
histórica e social e não apenas geográfica, teria suas raízes no Seiscentos e frei Vicente
do Salvador teria sido um de seus artífices. Essa perspectiva foi absolutizada pelos
sucessores de Capistrano, transformado em cânone da historiografia brasileira, sobretudo
pela crítica realizada aos escritos produzidos na América portuguesa entre os séculos XVI
e XVIII. Desde então, o frade baiano recebe os epítetos de primeiro historiador brasileiro,
crítico da colonização portuguesa, além do uso, ainda comum, que institui a História
como um reflexo fiel dos acontecimentos seiscentistas.
A operação que levou a tais leituras devia-se à paulatina laicização e à
nacionalização das teorias políticas ao longo do Oitocentos, bem como à ruptura com a
preceptiva retórica, transformada em parte da disciplina literária com fins meramente
estéticos.
Desse modo, nem Capistrano nem seus sucessores teceram comentários mais
profundos à dedicatória da História do Brasil, uma das partes fundamentais da narrativa,
como defendido no segundo capítulo, pois contém passagens que permitem a análise dos
princípios retórico-poéticos que presidiam a confecção dos gêneros historiográficos
seiscentistas. Nesse sentido, esta dissertação assinalou o papel desempenhado pelo
antiquário Manuel Severim de Faria, letrado português que encomendou o livro a frei
Vicente do Salvador, que lho dedica. O antiquário de Évora, que mantinha uma rede de
correspondentes em diversas possessões ultramarinas, era irmão do eminente frei
Cristóvão de Lisboa, custódio dos franciscanos no Maranhão, onde chegou em 1624,
investido também das funções de visitador eclesiástico e comissário do Santo Ofício. Em
6
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, p. 90.
Conclusão
201
1642, Cristóvão de Lisboa foi nomeado bispo do Congo e Angola. No mesmo ano da
chegada do irmão em São Luís, Manuel Severim de Faria publicou os seus Discursos
vários políticos, em que discorre sobre a vida dos três célebres letrados portugueses: João
de Barros, Luís de Camões e Diogo do Couto. Essas vidas, ao fornecerem exemplos de
súditos que colocaram as suas penas a serviço de Deus e do rei, explicitam os preceitos
de composição da ars historica seiscentista, cuja alma, segundo o antiquário, era
composta de verdade, clareza e juízo.
De modo geral, a fortuna crítica da História do Brasil mencionou Manoel
Severim de Faria apenas para tratar da questão relativa à sua impressão, que o antiquário
prometera ao franciscano ao encomendar o livro. Entretanto, como não há vestígios
documentais que possam servir de esteio a argumentos mais elaborados, discorrer mais
amplamente sobre o assunto implicaria em suposições, o que foi evitado. Mais importante
do que a publicação da narrativa do frade baiano, foi o uso conferido às histórias no
mundo cortesão ibérico, o que inclui as autoridades ultramarinas, e a circulação
manuscrita dessas prosas como um gênero de aconselhamento político. Os gêneros
historiográficos no Seiscentos, sempre de acordo com os modelos da preceptiva retórico-
poética, deviam, concomitantemente, ensinar, persuadir e deleitar os leitores ou ouvintes
do discurso.
No que se refere ao primeiro elemento, docere, a concepção ciceroniana de
historia magistra vitae, em uso católico pós-tridentino, manifestou-se pelos exemplos de
bom governo. Na história de frei Vicente do Salvador, destacam-se dois governadores
exemplares: Mem de Sá, no período anterior ao Portugal dos Felipes, que chega ao Brasil
depois da brigas entre o bispo e o governador e funda a cidade do Rio de Janeiro, contra
tamoios e franceses. O outro, já no período da União Ibérica, é D. Francisco Sousa, que
definiu a guerra com o gentio da Paraíba, além de outras muitas boas obras que fez.
Ambos destacam-se pela sua piedade e habilidades militares, duas características
vinculadas, na medida em que as guerras que moviam eram justas, com o objetivo de
expandir a verdadeira fé. Pela narrativa do franciscano, na qual bispos comandam
assaltos a hereges holandeses e santos intercedem a favor de católicos portugueses,
observa-se a unidade das atribuições de governo, ao contrário de uma suposta autonomia
pós-iluminista das esferas política, militar e religiosa.
Conclusão
202
Nesse quadro de unidade teológico-política, em que os fins do império, em última
instância, são transcendentes, a conversão do gentio constitui atribuição primordial do
governo do Brasil e, portanto, perpassa os cinco livros da História do Brasil. Se por um
lado, frei Vicente do Salvador louva as virtudes dos governantes e suas ações, por outro,
prescreve remédios à saúde política do Estado do Brasil. Esses remédios fundamentam-se
sobretudo nos conceitos ético-polílicos aristotélicos e na teologia tomista. Assim, as
tópicas do bom e do mau governo abrangem as virtudes necessárias às autoridades, como
a prudência, a liberalidade, a magnificência e a magnanimidade, além da própria justiça,
da piedade cristã e da concórdia.
Os episódios narrados visavam ainda louvar a ação da ordem de São Francisco e,
nesse sentido, destacam-se a guerra dos potiguares na Paraíba – quando os capuchos
ganharam a sua primeira missão catequética –, a conquista de São Luís aos franceses –
quando também desempenharam importante papel ao substituir os religiosos de França –
e a tomada da cidade da Bahia pelos holandeses. Nesses três episódios, frei Vicente do
Salvador realiza uma ligação entre o rei católico, já na época da União Ibérica, a Igreja
Romana e o Estado do Brasil, em oposição ao gentio, aos holandeses e à heresia luterana.
Nesse sentido, o franciscano emprega diversas analogias com passagens bíblicas, nas
quais o império católico, encabeçado pelo monarca espanhol, ocupa o lugar de Israel,
como reino eleito para a realização dos desígnios divinos neste mundo. O posicionamento
de frei Vicente do Salvador em relação ao passado, ao presente e ao futuro do Estado do
Brasil confirmava os planos da Providência Divina: a propagação da verdadeira fé ao
gentio, completando a missão do apóstolo São Tomé. A História era um dos argumentos
persuasivos – movere – acerca da importância dos missionários franciscanos para a
realização dos desígnios do Senhor.
Por fim, mas não menos importante, a narrativa do frade baiano atendia ao
propósito retórico de delectare. O emprego engenhoso de diversos tropos e figuras –
como na alegoria do caranguejo ou na analogia com a harpa – e do hilari dicendi genus e
de passagens fabulosas, para a fruição dos leitores discretos que saberiam distinguir entre
a fantasia de monstros e homens marinhos – como os goitacazes, que matavam tubarões
com as próprias mãos – encontram-se lado a lado com os testemunhos ocular e auditivo
Conclusão
203
do franciscano ou dos homens de crédito sobre assuntos graves como o governo dessas
partes do império e os milagres operados pelos santos católicos.
A História do Brasil de frei Vicente do Salvador, escrita aproximadamente entre
1619 e 1630, não deve ser tratada de forma incauta como espelho que fornece o reflexo
objetivo da suposta sociedade colonial brasileira, nem como livro – expressão da “gênese
do Brasil” – repleto de lacunas e omissões. Essa suposta carência de base arquivística da
sua narrativa é fruto do juízo instituído pelo cânone capistraniano, imbuído, por sua vez,
dos critérios de validação da disciplina decimonônica. Com efeito, essas perspectivas não
deixam de lado a crença positivista de testemunho neutro, transparente, que prevalece até
hoje, a despeito da consonância da prosa historiográfica de frei Vicente do Salvador aos
princípios retórico-poéticos, ao decoro prescrito a esses subgêneros epidíticos, e às
concepções teológico-políticas do Seiscentos ibérico.
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ANAIS DO MUSEU PAULISTA. São Paulo, t. 3, 1927
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Rio de
Janeiro, v. 1,1839; v. 21, 1858; v. 221, 1953
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