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Argemiro Eloy Gurgel
A Lei de 7 de novembro de 1831
e as ações cíveis de liberdade na Cidade de Valença
(1870 a 1888)
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
História Social (PPGHS) no
Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais (IFCS) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Murilo de Carvalho
Rio de Janeiro
2004
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II
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS
Programa de Pós-Graduação em História Social – PPGHI
A Lei de 7 de novembro de 1831
e as ações cíveis de liberdade na Cidade de Valença
(1870 a 1888)
Argemiro Eloy Gurgel
Orientador: prof. Dr. José Murilo de Carvalho
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em
História Social (PPGHS) no Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre.
Aprovada por:
______________________________________ Orientador
Presidente, prof. Dr. José Murilo de Carvalho
______________________________________
Profª.Drª.Keila Grinberg
______________________________________
Profª. Drª. Mônica Grin
Rio de Janeiro
2004
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III
Gurgel, Argemiro Eloy.
A Lei de 7 de novembro de 1831 e as ações cíveis de
liberdade na Cidade de Valença (1870-1888). Rio de
Janeiro, UFRJ / IFCS, 2004.
x. 102 f.: il.
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais – IFCS, 2004.
Orientador : José Murilo de Carvalho
1. Escravidão – Legislação. 2. Brasil – História -
Império. 3. Valença (RJ). 4. História – Dissertação.
I- José Murilo de Carvalho (orientador).
II- Universidade Federal do Rio de Janeiro -
Mestrado do programa de pós-graduação
em História Social (UFRJ/IFCS).
III- A Lei de 7 de novembro de 1831 e as
ações cíveis de liberdade na Cidade de
Valença (1870-1888).
IV
Resumo
Esta dissertação tem por objetivo analisar a trajetória da lei de 7 de
novembro de 1831, desde a sua promulgação, com a finalidade de abolir o tráfico de
africanos, até a aplicação de seus novos usos, a partir de década de 1850, para requerer
por via judicial a liberdade dos africanos ilegalmente escravizados.
O tema não é inédito, mas o que procuramos fazer foi reunir em um mesmo
trabalho esses dois momentos da lei, visando, por um lado, obter uma visão de conjunto,
e por outro, identificar os meios legais usados por advogados, magistrados, escravos e
fazendeiros na busca de estabelecer uma definição da lei que atendesse aos seus
interesses.
A base empírica da pesquisa concentrou-se numa cidade pertencente à então
província do Rio de Janeiro – a cidade de Valença, cuja economia estava em crise na
segunda metade do século XIX.
ABSTRACT
The purpose of this essay is to analyse the course taken by the Law of
November 7
th
1831, from the date of its promulgation, destined to abolish the slave
traffic, until new meanings thereof were applied, from the 1850’s onwards, to request by
judicial means the liberty of Africans that had been illegally enslaved.
The matter has already been discussed elsewhere; however, we intended to
gather in a single piece of work those two moments of the said law, on the one hand to
view it as a whole, and on the other to identify the legal texts used by lawyers, judges,
slaves and landowners who tried to establish a definition of that law which would meet
their interests.
The empirical basis for this research was centred in a city in the old Province
of Rio de Janeiro, that is, the city of Valença, which was undergoing an economic crisis
on the second half of the 19
th
century.
V
“A lei de 7 de novembro de 1831 é
a carta de liberdade de todos os
importados depois da sua data.”
Joaquim Nabuco
VI
Agradecimentos
Em virtude de haver escolhido como tema de estudo a trajetória de uma lei,
optei por fazer os agradecimentos seguindo a trajetória do projeto que resultou nesta
dissertação.
Em 1997, quando trabalhava em um programa de organização da
documentação judiciária do Estado do Rio de Janeiro, tive o prazer de encontrar a
professora Marcia Motta, que ali passou um período pesquisando a documentação por
nós catalogada.e constantemente elogiava a maneira como eu guardava as fontes,
incentivando-me a retorna a academia. Por coincidência, em 1998, ela foi coordenar
um curso de especialização em História do Brasil na Universidade Federal Fluminense
e convidou-me a participar dele como aluno. Com alguma resistência, fiz a inscrição e
a prova de seleção e, para minha surpresa, fui selecionado. No trabalho de final de
curso, apresentei uma monografia reunindo as obras publicadas que haviam usado as
ações de liberdade como fonte de pesquisa, tendo contado então com a orientação da
professora Hebe Mattos, que pacientemente me ajudou nessa tão árdua tarefa, para um
neófito da pesquisa acadêmica. Após conclusão desse compromisso, fiquei empolgado
e, incentivado pela a amizade de Nilza e Marise, que conheci durante o curso, resolvi
formular um novo projeto para dar continuidade às pesquisas em um estágio superior.
Em 2001 prestei concurso para seleção do mestrado do Programa de pós-
Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,. com um
projeto de pesquisa sobre ações de liberdade na cidade de Valença, localizada no Vale
VII
do Paraíba fluminense , grande centro produtor de café no século XIX. Para a
construção desse projeto busquei o apoio das professoras Keila Grinberg e Hebe
Mattos, que receberam meu trabalho com entusiasmo e forneceram-me valiosos
conselhos.
O projeto foi aprovado e, logo que ingressei no Programa, recebi o apoio da
Capes para realização das pesquisas no Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional e Biblioteca da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro, Mais tarde, tive a feliz oportunidade de freqüentar o curso da professora
Andreia Daher sobre teoria e pesquisa em História, onde surgiram algumas idéias para
a reformulação do meu trabalho inicial. Outra importante disciplina que cursei foi
ministrada pela professora Jacqueline Hermann sobre a micro-história, momento em
que descobri a importância dos vestígios para o estudo de um fato histórico. Não
poderia esquecer de incluir nesse conjunto de cursos preparatórios, dois seminários que
abordaram, entre outros temas, a questão da escravidão no Brasil, o primeiro oferecido
pelo professor José Murilo de Carvalho, que se realizou na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, e o outro sob a coordenação da professora Hebe Mattos, na
Universidade Federal Fluminense.
A defesa da qualificação do projeto foi um importante estágio dessa história,
quando, a partir das sugestões da banca examinadora, formada por José Murilo de
Carvalho, Keila Grinberg e Mônica Grin, descobri o norte da minha pesquisa. Por fim,
com a orientação final do professor José Murilo de Carvalho, consegui escrever esta
VIII
dissertação, na qual me reservo exclusivamente a responsabilidade pelos possíveis
equívocos e omissões.
Entretanto, uma dissertação não é construída apenas dentro dos muros da
academia, mas também recebe valiosa contribuição externa, como o apoio dos amigos
Tristão, Frederico, Serginho, Maria Lúcia, Margareth e Fabiana, além da tolerância de
Nilda, Eliza, Pedro e Francisca em relação à minha ausência familiar nesse período
final da redação. A todos os que participaram dessa história, os meus sinceros
agradecimentos.
IX
Lista de siglas
ACD Anais da Câmara dos Deputados
ASF Anais do Senado Federal
AMJUS Arquivo do Museu da Justiça do Rio de Janeiro
APERJ Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
X
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
CAPÍTULO 1 – A PROIBIÇÃO DO TRÁFICO ATLÂNTICO DE
AFRICANOS E A LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831
15
1.1. Antecedentes históricos 15
1.2. Uma lei “ para inglês ver” 20
1.3. Primeira tentativa de revogação 23
1.4. Uma lei “para brasileiro ver” 25
1.5. Segunda tentativa de revogação 26
1.6. Uma nova lei brasileira contra o tráfico 27
CAPÍTULO 2 – OS NOVOS USOS DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831
(1851-1888)
30
2.1.Novas Reivindicações Inglesa 30
2.2. A Experiência Paulista 34
2.3.Os Atos Repressivos 41
2.4.Os Debates No Senado 44
2.5.A Campanha Abolicionista da década de 1880 a Lei de 1831
50
CAPÍTULO 3 - AS AÇÕES DE LIBERDADE NA CIDADE DE VALENÇA
(1871 –1888)
55
3.1.Panorama Sócio-Econômico da Cidade de Valença 55
3.2.Escravos e curadores na prática jurídica 58
CONSIDERAÇÕES FINAIS 88
REFERÊNCIAS 91
ANEXO 1 97
ANEXO 2 100
11
INTRODUÇÃO
Hoje em dia, quando se fala em reclamar algum prejuízo na justiça, o indivíduo
das classes populares tem alguma dificuldade em viabilizar suas reivindicações por
meio dos instrumentos legais da burocracia judiciária. É esta visão atual que leva as
pessoas a ficarem surpresas quando descobrem que, no século XIX, alguns cativos
ingressaram na justiça para reclamar o direito à liberdade, negado pelo senhor. Sem
dúvida, naquele período, as barreiras deveriam ser muito maiores do que no atual,
porém os pesquisadores têm encontrado nos arquivos uma quantidade significativa de
processos que definem essa atitude como norma, em especial na segunda metade do
século.
O tema Direito e Escravidão pertence atualmente a um ramo da historiografia
brasileira que elegeu fazer uma reconstituição do processo histórico da legislação que
foi construída ao longo dos anos para tratar dos assuntos relacionados aos escravos,
buscando confrontá-la com as práticas judiciais, nas quais valores e interesses
conflitantes travaram combate e criaram diversas interpretações do legal, do justo e do
direito. Segundo Adriana Campos (2003 p. 27):
Tais estudos podem ser divididos em dois grandes
blocos, conforme as fontes utilizadas. No primeiro
bloco a matéria prima das pesquisas são as alforrias
e os processos de liberdade, enquanto no segundo,
privilegiam-se os processos criminais. Vale ressaltar
que alguns trabalhos utilizam ambas as fontes.
Na tentativa de oferecer uma contribuição ao bloco
1
que usa de recursos da
área cível para desenvolver suas pesquisas, enfocamos nosso trabalho no sentido de
1
Entre alguns trabalhos desse bloco utilizados nesta dissertação, podemos ver: Chalhoub, S. Visões da
liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das Letras, 1990;
Mattos, Hebe Maria. Das cores do silêncio: significados da liberdade no sudeste escravista, século XIX. Rio de
Janeiro, Nova, 1998; Keila Grinberg, Liberata. A lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de
Apelação do Rio de Janeiro; _____. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; Pena, Eduardo Spiller. Pajens da Casa
Imperial, jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, Editora da Unicamp, 2001; Elciene Azevedo.
Orfeu da carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas, Editor da
Unicamp, 1999; _____. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo na
segunda metade do século XIX. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, 2003; Mendonça, Joseli. Entre a mão e os anéis: a lei do sexagenário e os caminhos da
12
acompanhar a trajetória da lei de 7 de novembro de 1831, desde a sua promulgação,
com a finalidade de abolir o tráfico de africanos, até a aplicação de seus novos usos, a
partir da década de 1850, para buscar por via judicial a liberdade dos africanos
ilegalmente escravizados.
O tema não é inédito, mas o que procuramos fazer foi reunir em um mesmo
trabalho esses dois momentos da lei, por um lado, para obter uma noção de conjunto, e
por outro, para identificar os textos legais usados por advogados, juízes, escravos e
fazendeiros na busca de estabelecer uma definição da lei que atendesse aos seus
interesses.
A base empírica da pesquisa concentrou-se numa cidade pertencente à então
província do Rio de Janeiro - a cidade de Valença, cuja economia estava em crise na
segunda metade do século XIX.
Os trabalhos que nos precederam sobre esse tema apresentam a mesma base
teórica. Por nosso lado, também não vamos fugir dessa sustentação argumentativa, que
vem atendendo aos fins previstos.
Seguindo esta perspectiva, a obra de E.P.Thompson, principalmente Senhores e
caçadores, é bastante representativa. O autor estuda o direito inglês do século XVIII
com o objetivo de romper com explicações simplistas acerca da relação entre o direito e
o poder da classe dominante. Para Thompson, o direito pode até vir a ser um
instrumento de afirmação da dominação de uma classe, porém isto não ocorre
necessariamente em todas as situações. Ele define o direito, portanto, como instrumento
de mediação entre as classes, um campo de lutas com resultados imprevistos.
Além disso, no sentido de reforçar sua teoria, Thompson afirma que a lei não
pode ser declaradamente parcial, devendo apresentar-se com uma máscara de
abolição no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 1999; Rodrigues, Jaime. O infame comércio: proposta e
experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800 – 1850). Campinas, Editora da Unicamp,
2000; Mamigonian, Beatriz Gallotti. To be a liberated African in Brazil: labor and citizenship in the nineteenth
century. Tese de doutorado em Filosofia e História, Universidade de Waterloo, 2002; _____. Do que o “preto
mina” é capaz: etnia e resistência entre africanos livres. Afro-Ásia , 24 (2000), pp. 71-95.
13
independência para que possa parecer justa. A partir desse aspecto das regras jurídicas,
a classe dominante, em alguns momentos, vai ficar prisioneira de sua própria retórica,
tendo que restringir e mediar o exercício de sua força, possibilitando certa proteção aos
destituídos de poder. Estas contradições e incertezas identificadas no mundo jurídico
permitem-nos desenvolver um estudo com as fontes selecionadas (THOMPSON, 1987).
A presente dissertação foi organizada de acordo com a evolução dos usos e
significados da lei de 7 de novembro de 1831. Na primeira parte, procuramos
compreender qual era a situação política do Brasil quando surgiu a necessidade da
criação de uma lei para abolir o comércio atlântico de escravos, tendo como norte o
trabalho de Jaime Rodrigues O infame comércio, que evita considerar a lei como
resultado único da pressão inglesa, procurando ressaltar as influências internas,
representadas pelos parlamentares e outros segmentos da sociedade. Outro aspecto que
abordamos nesse capítulo são as tentativas fracassadas de revogação da lei de 7 de
novembro de 1831, por não haver esta atendido à sua finalidade. Entretanto, mesmo
com a criação de uma segunda lei contra o tráfico, em 1850, ela permaneceu vigorando.
O segundo capítulo enfoca o novo uso que a lei de 7 de novembro de 1831
recebeu. Nesse sentido, acompanhamos um movimento iniciado logo após a extinção
definitiva do tráfico na década de 1850, quando a diplomacia inglesa passou a exigir
satisfações sobre a escravização ilegal de africanos, com base em acordo firmado entre
o Brasil e a Inglaterra em 1826 e também no artigo 1º da lei de 1831, que tornava livres
todos os africanos que ingressassem no país a partir da data de sua promulgação. A
divulgação da existência dessa irregularidade atingiu vários setores da sociedade, tais
como escravos, libertos, advogados, juízes e jornalistas.
Durante o período da década de 1870, a participação paulista foi a que mais se
destacou, especialmente com a militância de Luiz Gama, por meio de artigos em
jornais e atuação em processos judiciais, sob a forma de petições, habeas corpus e
ações de liberdade. Gama conferiu um sentido político ao movimento, conseguindo dar
grande publicidade à questão do direito dos africanos ilegalmente escravizados, que
passou a receber o apoio de vários segmentos sociais paulistas, como, por exemplo, a
14
maçonaria e os alunos da Faculdade de Direito de São Paulo, dentre eles Rui Barbosa,
um colaborador entusiasmado.
Durante esses anos o movimento foi ganhando expressão em outros centros do
país, e o governo publicou uma série de medidas legislativas, como pareceres e
resoluções, destinadas a inibir os recursos em defesa da causa dos africanos
escravizados ilegalmente, que estavam aumentando no Judiciário. O fato era que as
reivindicações não estavam sendo feitas apenas para aqueles africanos, mas incluíam
também os seus descendentes. Sendo assim, se fossem plenamente atendidas,
acarretariam a ruína da economia e o descontrole social.
Apesar dos atos repressivos do Executivo, esse movimento continuou. Assim,
em 1883, na cidade do Rio de Janeiro, realizou-se um debate no Senado Imperial, onde
um representante do governo, o conselheiro Lafayette, reconheceu em plenário a
independência do Judiciário para definir jurisprudência sobre a vigência da lei de 7 de
novembro de 1831. Esse ato marcou a efetiva aceitação, por parte de uma grande
parcela da magistratura, dos recursos de solicitação de liberdade com base na lei de
1831, coincidindo com o aumento de sentenças favoráveis aos escravos.
Finalmente, no terceiro capítulo, procedemos a uma análise das ações de
liberdade da cidade de Valença, que pertenciam direta ou indiretamente à questão
considerada “perniciosa”, relativa ao direito à emancipação sem indenização, com base
na lei de 28 de setembro de 1871 e, especialmente, na de 7 de novembro de 1831. Tais
processos pertenciam às décadas de 1870 e 1880, quando a cidade de Valença passava
por uma forte crise econômica. Dentro desse quadro, procuramos identificar quais os
diplomas legais utilizados pelos advogados e juízes, tendo em vista a hipótese, por nós
desenvolvida, sobre a existência de duas correntes formadoras do instrumental teórico
que fundamentava suas argumentações. Assim, retomando a trajetória da lei de 7 de
novembro de 1831, buscamos resgatar a contribuição de um movimento legalista para o
desmonte da sociedade escravista no Brasil.
15
CAPÍTULO 1 – A PROIBIÇÃO DO TRÁFICO ATLÂNTICO DE AFRICANOS
E A LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831
A Lei Feijó, promulgada em 7 de novembro de 1831, tinha como finalidade
principal reprimir o tráfico de africanos, dando assim à Coroa britânica uma
demonstração de que o Brasil estava se empenhando em contribuir para a extinção do
comércio internacional de escravos. Entretanto, na prática, essa lei nunca foi executada,
sendo desrespeitada por todos os responsáveis pelo tráfico. Somente em 1850, com a
publicação de uma segunda lei, foi que o seu objetivo inicial pôde finalmente se
realizar.
Por outro lado, foi justamente um aspecto secundário da lei de 1831,
garantindo a liberdade aos escravos que entraram no país após a data de sua
promulgação, que motivou as tentativas de sua revogação por parte dos fazendeiros e
seus representantes no Parlamento, por se sentirem essas classes ameaçadas no seu
direito de propriedade.
1.1. Antecedentes históricos
No inicio do século XIX, a Grã-Bretanha lançou uma campanha de combate ao
tráfico internacional de escravos, aparentemente com preocupações humanitárias.
Apoiada nos princípios naturais de liberdade, segundo os quais todos os homens
nasciam livres e iguais, procurava denunciar as péssimas condições de transporte,
alimentação, saúde e trabalho a que eram submetidos os africanos, vítimas da
exploração desse “infame comércio” (Rodrigues, 2000, p. 111).
O projeto de transformar o comércio de escravos em uma atividade ilegal nos
países europeus e nas colônias americanas tornou-se a principal política de Estado para
o governo britânico durante a primeira metade do século XIX. Oportunamente,
aproveitando-se das divergências diplomáticas entre Portugal e a França nesse período,
as quais, devido ao temor de uma ofensiva mais intensa por parte das tropas
napoleônicas, resultaram na transferência da administração portuguesa para a colônia
brasileira, conseguiu a Inglaterra, em troca da proteção oferecida ao reino português,
16
assinar com este, em 1810, um tratado de aliança e amizade que, entre outras coisas,
definia princípios de abolição gradual do comércio de escravos (Bethell, 1976, pp. 20-
21).
Na verdade, Portugal resistiu a colocar em prática o acordo, tendo em vista que
o comércio de escravos era um dos mais importantes negócios da sua economia
colonial. Diante dessa realidade, a Inglaterra impôs um novo tratado, firmado em 1815,
com medidas mais definidas, tais como a declaração de ilegalidade do tráfico de
escravos ao norte do paralelo do Equador. Outros pontos desse tratado só foram
regulamentados mais tarde, na Convenção Adicional de 28 de junho de 1817, que
permitia à marinha britânica a captura de embarcações portuguesas ou brasileiras
carregadas de africanos, além de julgar os seus comandantes e tripulantes nos tribunais
de uma comissão mista.
Com a independência do Brasil, em 1822, a Inglaterra recuperou a esperança
de ver suspenso o tráfico nessa ex-colônia portuguesa e obter um avanço significativo
na sua cruzada internacional, tendo em vista que o Estado brasileiro se destacava nesse
período por apresentar o mais elevado índice de importação de escravos africanos
(Bethell, 1976, p.41-46). Assim, repetindo a prática de negociar o seu auxílio aos
interesses específicos de nações envolvidas com o tráfico em troca da suspensão deste, a
Inglaterra definiu, como condição para o reconhecimento da independência do Brasil na
comunidade internacional, a assinatura de um tratado nos moldes dos estabelecidos
anteriormente com Portugal.
Assim, em 1826, o Brasil assumiu com os ingleses o compromisso de tornar o
tráfico ilegal num prazo de três anos e incorporar as cláusulas dos antigos tratados
firmados entre as Coroas da Grã-Bretanha e Portugal.
2
. O acordo foi ratificado pelas
partes em 13 de março de 1827, porém a insatisfação de alguns deputados com a atitude
do governo de firmar acordos internacionais sem consultá-los, desrespeitando a
2
Tratado de 23 de novembro de 1826: Art. 1°. Ao fim de três anos a contar da troca de ratificações do presente
tratado, será considerado ilegal para os súditos do Imperador do Brasil dedicar-se ao tráfico de escravos
africanos sob qualquer pretexto ou maneira, e o exercício desse tráfico por qualquer pessoa, súdito de sua
Majestade Imperial, após esse prazo, será julgado e tratado como pirataria (Apud, BETHELL, 1976, p. 69).
17
Constituição, ficou evidenciada nos discursos registrados em atas durante esses anos.
3
Além desse fator, assinalavam os parlamentares três conseqüências básicas prejudiciais
ao Estado brasileiro: primeiro, a ameaça à soberania nacional, ao se absorver de antigos
acordos portugueses a competência de comissões mistas para julgar navios brasileiros
apreendidos com cargas ilegais; segundo, o risco de arruinar a nossa economia de base
agrícola, que tinha como principal mão-de-obra o escravo proveniente do tráfico;
finalmente, a redução das lucrativas divisas comerciais decorrentes das transações de
compra e venda de africanos. Alegavam ainda que, na verdade, as intenções inglesas
não primavam pela filantropia, mas pelo desejo de afastar a influência brasileira na
África, visando obter o domínio da região com a finalidade de transformá-la num
mercado para seus produtos manufaturados e numa fonte de matérias primas. Essa
indignação expressa nas palavras do deputado Cunha Mattos, evidenciava o sentimento
de uma parcela substancial de parlamentares:
Quem quer exercitar obras de caridade neste mundo
não tem precisão de sair fora de sua pátria, os
ingleses querem fazer-se senhores da África, assim
como já estão na Ásia, [...] falem-nos verdade e não
nos venham iludir com filantropias imaginárias.
4
A partir desse período, a questão da extinção do tráfico atlântico foi um tema
constante na pauta do legislativo, até a sua efetiva abolição, na década de 1850. Sempre
que havia oportunidade, alguns deputados, da linha mais conservadora, protestavam
contra o acordo lesivo à pátria firmado pelo governo brasileiro com os ingleses. Em
suas exposições de motivos, ressaltavam preliminarmente que não estavam em oposição
à nova filosofia do século no que dizia respeito à valorização dos princípios
humanitários e ao direito natural, pois reconheciam que esse tipo de comércio não
poderia continuar indefinidamente, porém entendiam como precipitada a atitude do
Poder Executivo de se comprometer em torná-lo ilegal num prazo tão curto. Foi Cunha
Mattos quem melhor expressou esse pensamento, ao dizer:
3
“A convenção celebrada entre o governo do Brasil e o britânico para a final abolição do comércio de
escravos [...] ataca a lei fundamental do Império quando o governo se atribui o direito de legislar, direito que
só pode ser exercido pela Assembléia Geral [...]”. Voto do deputado Cunha Mattos na Comissão Diplomática
e de Estatística sobre a abolição do comércio da escravatura (ACD, 02 jun. 1827, I, p. 11).
4
ACD, 02 jul. 1827, I, p.15.
18
Antes, porém, de começar o meu discurso, peço a
indulgência desta Câmara para expor dois artigos da
minha fé política a respeito do negócio de que
vamos tratar: o primeiro é que eu por modo nenhum
me proponho a defender o comércio de escravos
para o Império do Brasil: eu não cairia no
indesculpável absurdo de sustentar no dia de hoje
[...] uma doutrina que repugna às luzes do século, e
que se acha em contradição com os princípios de
filantropia geralmente abraçados: o que me
proponho a mostrar é que ainda não chegou o
momento de abandonarmos a importação dos
escravos [...] este comércio deveria terminar quando,
e pelo modo que a nação brasileira julgasse
conveniente, sem que nisso pudesse entrar a
influência inglesa.
A divulgação do acordo entre o Brasil e a Inglaterra rompeu os limites dos
órgãos oficiais, sendo, durante alguns dias do ano de 1827, matéria principal do Jornal
do Commercio,
5
um novo periódico que começava a se destacar na imprensa carioca da
época. Os artigos apontavam para a data limite do tráfico legal e a atuação das
comissões mistas contra os navios portugueses e brasileiros que trafegavam ao norte do
Equador, proibição esta que já vigorava em conseqüência de tratados anteriores. Com a
massificação das notícias, despontou entre proprietários e traficantes uma preocupação
mais séria em relação à ameaça de que, em breve, o tráfico estaria totalmente extinto,
fator que resultou em um aumento considerável do preço e da entrada de africanos no
país. Segundo Robert Conrad (1985, p. 77), “o número de negros que presumivelmente
chegaram ao Rio de Janeiro saltou de pouco mais de 25.000 em 1825, ano anterior ao
tratado, para 44.205 em 1829, ano anterior ao fim do tráfico”.
A intensificação do tráfico nesse período, como registram alguns
pesquisadores,
6
teve o apoio das autoridades brasileiras, que facilitavam o contrabando,
deixando de aplicar medidas repressivas em alguns casos já definidos como proibitivos.
Tal comportamento, na verdade, será identificado durante os vintes anos seguintes em
que funcionou o transporte ilegal de cativos da África. De modo semelhante ao que
5
Jornal do Commercio, dias 02, 08 e 09 de outubro de 1827.
6
Robert Conrad (1985) e Leslie BethelI (1976).
19
fizera Portugal no passado, o governo brasileiro resistiu, na prática, ao cumprimento dos
acordos, por entender que isso resultaria na ruína da economia nacional.
Quando, em março de 1830, venceu o prazo determinado pelo acordo entre
Brasil e Inglaterra para tornar ilegal o tráfico de escravos africanos, o governo britânico,
ciente das atividades desrespeitosas e abusivas praticadas por comerciantes brasileiros
nos últimos anos, passou a exigir medidas mais eficientes de combate ao contrabando.
Entre uma série de sugestões, Paula Beiguelman (1976, p. 50) destacou a solicitação de
assinatura de artigos adicionais ao tratado de 1826, de forma a tornar possível
apreender navios que, mesmo sem a presença de africanos a bordo, manifestassem,
contudo, indícios de havê-los conduzido (cláusula de equipamentos)”. Diante dessa
renovada pressão inglesa, D. Pedro, em sua fala do trono em 3 de maio de 1830,
procurou demonstrar que honraria seus compromissos, anunciando oficialmente que o
comércio de africanos, a partir daquele ano, seria uma atividade ilícita, e que o governo
providenciaria o que fosse necessário para a sua extinção definitiva.
7
Paralelamente a essa questão diplomática com os ingleses, o país estava
vivendo uma crise doméstica que influenciou em alguns aspectos a tomada de novas
medidas sobre o destino do tráfico. Desde 1827, irrompera um conflito entre o
Executivo e a Câmara sobre como o governo deveria proceder: manter a tradicional
herança portuguesa de comportamento absolutista, simpática ao Imperador, ou
estabelecer um modelo com características mais liberais e descentralizadoras, a partir de
tendências predominantes, surgidas no cenário político da época, tais como a
parlamentarista, a republicana e a federalista. Além desse aspecto, crescera a
impopularidade de D. Pedro, em face de sua dedicação aos problemas de instabilidade
política por que Portugal vinha passando após a morte de D. João VI (Beiguelman,
1976, p. 50). Esse conjunto de fatores resultou, em 7 de abril de 1831, na abdicação do
Imperador ao trono e na conseqüente nomeação de uma Regência Trina para dirigir o
país, conforme determinava a Constituição.
7
Sobre a expressão “fala do trono”, ver Leslie Bethell (1976. P.75) e Ronaldo Vaifas (2002 p. 259).
20
Um gabinete liberal assumiu a Regência e de imediato promoveu uma série de
reformas na estrutura do Estado, em especial no Judiciário: promulgou o Código
Criminal em 1832 e ampliou as atribuições do cargo de juiz de paz, magistrado eleito
nas localidades. No que dizia respeito às relações internacionais, deu instruções no
sentido de fazer cumprir rigorosamente as cláusulas do acordo vigente com a Inglaterra,
que estava então em vigor, relativo à proibição da entrada no país de escravos
importados da África, além de solicitar à sua bancada no Parlamento que apresentasse
proposta de uma legislação exclusivamente nacional sobre o assunto.
Um dos projetos que mais atendia às expectativas políticas foi o do senador
Felisberto Caldeira Brant, Marquês de Barbacena, apresentado em 31 de maio de 1831,
com o apoio irrestrito do padre Diogo Antônio Feijó, que assumia a pasta do Ministério
da Justiça no mês de julho daquele mesmo ano. Finalmente, em 7 de novembro de
1831, foi promulgada a primeira lei nacional sobre o tráfico, mais conhecida como Lei
Feijó, tendo em vista o esforço empenhado por esse político para a sua urgente
aprovação.
8
1.2.. Uma lei “para inglês ver”
Constituída de nove artigos, a Lei Feijó, no primeiro deles, declarava livres
todos os escravos que entrassem no Brasil a partir da data de sua promulgação. Essa
cláusula obteve uma importância histórica porque, nas décadas posteriores, foi utilizada
por escravos e advogados como argumento jurídico para pleitearem o direito à alforria.
Retornaremos a este tema mais adiante, ao abordarmos a pratica dos operadores da
justiça.
Outros aspectos que podemos destacar nesse diploma legal são a punição dos
responsáveis pela importação de escravos, com base no Código Penal brasileiro, e a
ampla classificação de quem seria considerado importador, que incluía não apenas os
comandantes das embarcações, mas também os financiadores das viagens e os
compradores do produto do tráfico. Em 12 de abril de 1832, um decreto determinou que
21
a polícia e o juiz de paz seriam as autoridades competentes para vistoriar as
embarcações suspeitas, além de cobrar dos traficantes um depósito para reexportação
dos escravos. Nesse mesmo texto, foi também garantido ao cativo o direito de requerer
em juízo, a qualquer tempo, a declaração da ilegalidade de sua condição de escravo, por
força dessa lei:
“Art.10. Em qualquer tempo, em que o preto
requerer a qualquer juiz de paz ou criminal, que veio
para o Brasil depois da extinção do tráfico, o juiz o
interrogará sobre todas as circunstâncias que possam
esclarecer o fato e oficialmente procederá a todas as
diligencias necessárias para certificar-se dele,
obrigando o senhor a desfazer as dúvidas que
suscitarem a tal respeito. Havendo presunções
veementes de ser o preto livre, o mandará depositar
e procederá nos termos da Lei”.
9
Durante o primeiro ano de vigência da lei, houve uma queda nas importações,
o que, segundo o historiador inglês Leslie Bethell, resultou não tanto da repressão
policial, mas do abastecimento exagerado do mercado quando estava próximo de vencer
o prazo estabelecido pelo tratado com os ingleses para a extinção do comércio de
escravos. Logo em seguida, entretanto, o tráfico se reorganizou em base ilegais e voltou
a atingir índices alarmantes no fornecimento de mão-de-obra africana para as lavouras
de café e açúcar (Bethell, 1976, p. 80).
Quando procuramos investigar, no corpo da lei, os elementos causadores de
dificuldades para a sua aplicação, entendemos que, apesar de sua aparente severidade,
ela desconsiderou o acordo assinado entre o Brasil e a Inglaterra em 1826, segundo o
qual o tráfico era entendido como um ato de pirataria, o que permitia a ingerência da
marinha britânica no aprisionamento e julgamento dos traficantes. Essa atitude veio, na
verdade, favorecer aqueles importadores que continuaram trabalhando na
clandestinidade, porque, a partir de então, eles passaram a ser subordinado
exclusivamente às autoridades nacionais.
8
Ver Branca Borges Góes (org.). A abolição no Parlamento: 65 anos de luta. Brasília, Senado Federal, 1988,
vol. I, pp.60-62.
9
Decreto de 12 de abril de 1832, que regulamentou a lei de 7 de novembro de 1831. A abolição no Parlamento,
1988, p. 68.
22
Torna-se mais fácil compreender tal fator como principal barreira à aplicação
da lei, na medida em que, dentre as reformas administrativas descentralizadoras em fase
de implantação pelo novo governo liberal, identificamos que o judiciário e a força
policial locais passaram a ser conduzidos por um juiz de paz, escolhido por critério
eletivo na região (Flory, 1986, p. 128). Pelo fato de serem as funções de juiz de paz e
chefe de polícia quase sempre exercidas pela classe de proprietários, interessada na
continuidade do tráfico, ou por alguém com quem tivesse laços de parentesco, esta
exercia grande influência sobre aquelas autoridades, quando não usava de corrupção ou
ameaças para que agissem com indulgência em relação à entrada ilegal de escravos no
país. Assim, segundo Leslie Bethell (1976, p. 85), todo o esforço para suprimir o tráfico
era derrotado por “uma combinação de suborno e intimidação”.
Diante desse quadro, onde a autoridade competente para julgar os casos de
importação ilegal de escravos estava atrelada ao poder político, o que comprometia a
sua imparcialidade nas decisões, fica evidenciado por que motivo essa lei de 7 de
novembro de 1831 já nasceu fadada ao fracasso. Na verdade, seus legisladores nunca
tiveram a intenção de fazer uma norma que, na prática, resultasse na suspensão
definitiva do tráfico, mas apenas uma lei “para inglês ver”,
10
pretendendo assim
demonstrar que o país estava empenhado em resolver de uma forma autônoma seus
problemas de mão-de-obra escrava.
Outro fato que também contribuiu para dificultar a aplicação da lei de 1831 foi
o deslocamento de grande parte da frota da marinha nacional para combater as rebeliões
separatistas que irrompiam do norte ao sul do país, deixando a costa da província do Rio
de Janeiro livre de fiscalização.
11
10
José Murilo de Carvalho define com propriedade a expressão “lei para inglês ver”, que surgiu dessa primeira
lei contra o tráfico, significando “uma lei, ou promessa, que se faz apenas por formalidade, sem intenção de
por em prática”. Cf. Cidadania no Brasil, p. 45.
11
Sobre esse aspecto da influência das rebeliões para o insucesso da lei de 1831, ver Bethell (1976, p. 84). Para
uma visão mais geral dos movimentos separatistas que irromperam em quase todo o Império (Pará, Bahia,
Maranhão, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais), após as reformas descentralizadoras do gabinete
liberal, ver José Murilo de Carvalho (1988, p. 166).
23
1.3. Primeira tentativa de revogação
Mesmo sendo a Lei Feijó considerada “letra morta”, “inócua” e “inexeqüível”,
no sentido de não haver alcançado o objetivo de suspender por completo o fornecimento
de mão-de-obra escrava nas fazendas, teve início, em 1834, um movimento político pela
sua revogação. Os proprietários de terras do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais
encaminharam várias petições ao parlamento, argumentando que esse tipo de legislação
contrariava os interesses da nação porque, sem a importação de escravos, a agricultura,
que representava a nossa principal força econômica, entraria em processo de falência.
(Bethell, 1976, p. 87).
Na verdade, a preocupação desses senhores com a nova lei antitráfico não
estava relacionada ao acesso à mercadoria, e sim à garantia do direito de propriedade.
Os artigos que conferiam a liberdade ao escravo que houvesse ingressado no país após a
data da promulgação da lei e lhe concediam o acesso à justiça quando suspeitasse da
ilegalidade de seu cativeiro poderiam causar embaraço às transações de compra e venda,
além de constituírem uma ameaça em termos de perda, no futuro, de todo o capital
aplicado. Leslie Bethell (1976, pp. 87-88) sublinha essa insegurança quando afirma que
“os fazendeiros e seus representantes na capital pediam não só a revogação da lei, mas
também uma anistia geral para os que já a tivessem infringido”. O mais interessante
disso tudo foi o fato de que essa ameaça se manteve como uma sombra na vida dos
proprietários durante todo o período em que existiu o sistema escravista no país, porque
a lei de 7 de novembro de 1831 resistiu a diversas tentativas de anulação.
Até 1837, vários projetos foram apresentados nas sessões do Senado, buscando
atender aos anseios dos proprietários por mudanças na legislação sobre o tráfico, porém
o único que conseguiu ser aprovado e depois remetido à Câmara dos Deputados para
apreciação foi o do senador Caldeira Brant, Marquês de Barbacena (Goés, 1988,
pp.101-102), que contemplava as expectativas daqueles senhores, na medida em que
excluía os compradores de mão-de-obra africana da autoria dos crimes de importação e
protegia suas mercadorias já adquiridas contra qualquer tipo de ação por posse ilegal,
24
além de sugerir a revogação da lei de 1831
12
, também de sua autoria, por admitir a
ineficácia desta durante os seis anos de sua vigência.
13
Em síntese, o novo projeto
responsabilizava apenas os traficantes pelas atividades criminosas, afastando toda a
possibilidade do escravo de reivindicar o seu direito à liberdade.
Na apresentação do projeto, em sessão de 30 de junho de 1837 (ASF),
Barbacena sublinhou o seu objetivo principal:
“longe de mim fazer elogio aos que infringiram a lei
com pleno conhecimento de causa, mas confesso
que nenhuma infração da lei jamais houve, que
apresentasse tão plausíveis razões para ser atenuada
como a que têm cometido os lavradores do Brasil
[...] muitas das vezes não há meio de saber se são ou
não do contrabando [...] é necessário conceder
anistia aos compradores de negros ilicitamente
importados e ao mesmo tempo é preciso reformar a
lei de 1831.”
A historiografia considera que a ascensão do gabinete conservador na
administração da Regência, nesse mesmo ano de 1837, favoreceu a aprovação do
projeto de Barbacena no Senado. Isso porque, assim que assumiu a pasta da Justiça,
Bernardo Pereira de Vasconcelos baixou um conjunto de medidas revogando alguns
atos de seu antecessor, Francisco Gê Acaiaba Montezuma, que causavam prejuízo ao
tráfico, tais como, por exemplo, as vistorias rigorosas nas embarcações que retornavam
da África. Juntamente com isso, pediu satisfação à Câmara dos Deputados sobre um
antigo projeto seu, datado de 1835, relativo à revogação da lei de 7 de novembro de
1831 (Bethell, 1976, pp. 90-91). Até 1840, período em que durou a gestão
conservadora, ficou evidenciado, em atos e pronunciamentos, o seu interesse em
proteger abertamente o tráfico:
12
Projeto do Senado do Império n° 133, de 1837, de autoria de Felisberto Caldeira Brant Pontes, Marquês de
Barbacena, Art. 14. Nenhuma ação poderá ser tentada contra os que tiverem comprado escravos, depois de
desembarcados, e fica revogada a lei de 7 de novembro de 1831, e todas as outras em contrário (Goés, 1988, p.
102).
13
O aspecto ambíguo evidenciado no comportamento do senador Caldeira Brant é resultado do caráter
contraditório do liberalismo brasileiro, formado por uma elite política que buscava conciliar o projeto de
modernização do Brasil independente com os interesses particulares de um forte grupo econômico de
plantadores de café, que estava se impondo naquele momento.
25
Os ingleses que tratem de pôr em execução esse
tratado, que nos impuseram pela sua
superioridade, mas esperar que cooperemos com
eles nessas especulações mascaradas sob o nome
de humanidade, é insensatez (Vasconcelos, apud
Bethell, 1976, p. 90).
Diante desse cenário político, o projeto de lei de Barbacena chegou à Câmara
dos Deputados respaldado, mas aí obteve uma recepção diferenciada em comparação à
que teve no Senado. Os deputados da bancada oposicionista, influenciados pelos
protestos britânicos, que entendiam a proposta como um ato de violação ao tratado
firmado em 1826, pelo qual o Brasil deveria adotar medidas cada vez mais repressivas
ao tráfico, promoveram um debate preliminar que resultou na formação de uma
comissão diplomática para estudar o assunto antes de ser este levado ao plenário. Em
conseqüência, o projeto ficou suspenso até que se concluíssem os trabalhos e, em
respeito às exigências inglesas, não mais voltou a ser debatido naquela legislatura.
1.4. Uma lei “para brasileiro ver”
Em 1844, num contexto onde a maioridade de D. Pedro II já havia sido
decretada quatro anos antes, marcando o fim da administração regencial no país, o
governo inglês dirigia sua atenção para encontrar um entendimento sobre a renovação
do tratado de 1826, que garantia à marinha inglesa o direito de vistoriar navios
brasileiros suspeitos de contrabando durante quinze anos, a partir do dia em que o
tráfico fosse abolido. Como o comércio de africanos se tornara ilegal no ano de 1830,
esse prazo expiraria em 13 de março de 1845, ficando os atos de repressão ao tráfico
sob o controle exclusivo de uma lei brasileira que demonstrara pouca eficácia durante
todo o período de sua vigência. Lord Aberdeen, então Ministro dos Estrangeiros
britânico, entendia que, mesmo ocorrendo a hipótese do Brasil se apoiar nesse aspecto
do acordo para sentir-se livre de compromissos, existia uma outra cláusula que tratava o
tráfico como pirataria sem data limite, respaldando as intervenções inglesas. Daí em
diante, as negociações foram marcadas por acirradas divergências de interpretação entre
os representantes diplomáticos dos países envolvidos, o que demonstrou aos ingleses a
falta de interesse do governo brasileiro na prorrogação do tratado de direito mútuo de
26
busca e também nas comissões mistas. Assim, no dia 8 de agosto de 1845, foi
transformado em lei no parlamento britânico o projeto de Aberdeen, que considerava o
tráfico negreiro um ato de pirataria, sujeito à repressão por parte de qualquer nação,
independentemente de acordo entre países, autorizando, desse modo, a marinha inglesa
a capturar e julgar navios do Brasil sem nenhuma restrição, ignorando a legislação
nacional e a opinião dos nossos governantes.
14
Tratava-se, assim, de uma lei para o
brasileiro ver que a campanha de combate ao tráfico internacional de escravos era uma
coisa séria, diferente das pretensas tentativas das autoridades nacionais de extingui-lo
por conta própria.
1.5. Segunda tentativa de revogação
A marinha inglesa, após a promulgação da Lei Aberdeen, intensificou o
patrulhamento sobre o tráfico negreiro em águas brasileiras, elevando o número de
navios capturados com carregamento ilegal. Essa atitude repressiva causou grande
indignação entre os políticos nacionais, que viam a soberania de uma nação
independente sendo desrespeitada por uma lei “injusta e ofensiva”.
15
Durante quase
toda a década de 1840, ambos os lados procuraram radicalizar suas posições: o Brasil
não reconhecia a validade da lei, e tampouco a Inglaterra tinha a intenção de revogá-la.
Somente em 1848, quando a administração do país estava sob a direção do partido
liberal, buscou-se uma solução para esse conflito marítimo internacional, com a
intenção de evitar uma guerra de prejuízos irreparáveis para o Brasil. Era necessária
uma lei nacional que fosse mais eficiente no combate ao tráfico, dando aos ingleses uma
demonstração de que o governo brasileiro estava se empenhando para extinguir esse
“infame comércio”, mas que por outro lado, não ameaçasse a posse das mercadorias
adquiridas pelos grandes fazendeiros rurais. Para Leslie Bethell, os dirigentes nacionais
pretendiam:
Concentrar-se na supressão do tráfico no mar e
nos portos, ao longo da costa em que os escravos
era desembarcados [...], não propondo medidas
14
Leslie Bethell explica com clareza os compromissos que o Brasil independente herdou das relações
diplomáticas entre as Coroas da Grã-Bretanha e de Portugal sobre o tráfico de escravos, como, por exemplo, o
tratado de 1817, que foi incorporado ao acordo de 1826 (Bethell, 1976, pp. 232-235).
15
Portugal também sofreu semelhante constrangimento com a lei de 1839. (Bethell, 1976, p. 246-247)
27
para os casos em que o carregamento de escravos
tivesse sido desembarcado e levado para o interior
(Bethell, 1976, p. 278).
Finalmente, a comissão legislativa da Câmara dos Deputados, designada para
formular uma proposta que atendesse às necessidades apontadas acima, apresentou para
discussão, como sendo a mais adequada, uma versão modificada do projeto de 1837 do
Marquês de Barbacena.
16
Na verdade, quase todos os artigos foram aprovados, à
exceção do 13, por sugerir este a revogação da lei de 7 novembro de 1831, causando
uma grande divergência entre os parlamentares e precisando, então, ser debatido em
sessão secreta, onde teve a sua votação adiada.
17
Alguns deputados entediam que esse
ato poderia causar insatisfação aos britânicos, a exemplo da vez anterior, quando essa
proposta apareceu em nossas casas legislativas na sessão de 21 de setembro de 1848. O
deputado Rodrigues dos Santos resumiu essa preocupação com as seguintes palavras:
“[...] a matéria é tão grave [...] que tem relação tão íntima com os nossos negócios
internacionais, não podendo ser discutida com toda liberdade e franqueza em sessão
pública” (ACD, 01 set., 1848, II, p. 409).
1.6. Uma nova lei brasileira contra o tráfico
A 29 de setembro de 1848, o gabinete liberal foi substituído por uma
administração conservadora, assumindo a pasta da Justiça Eusébio de Queiroz Coutinho
Matoso Câmara. Para surpresa de muita gente, o novo ministro procurou dar
continuidade à política de construção de uma legislação nacional mais eficaz no
combate ao tráfico de escravos, sugerindo uma proposta que aproveitava grande parte
da nova versão do projeto de Barbacena de 1937, apresentada ao Congresso pela gestão
anterior, como, por exemplo, dar prioridade à repressão ao traficante a partir da criação
de um tribunal especial – a Auditoria da Marinha - para julgar os seus delitos, deixando
os fazendeiros, aqueles que compravam os africanos importados ilegalmente, sob a
16
Nessa nova versão, alguns artigos foram emendados e outros suprimidos. Entre as inovações, destacamos o
combate ao tráfico de escravos exclusivamente nos mares e portos do território brasileiro e a criação de um
tribunal especial – a Auditoria da Marinha – para julgar os importadores (cf. ACD, 01 set., 1848, II, pp. 325-
326).
17
No projeto de 1837 do Marquês de Barbacena, o artigo que tratava da revogação da lei de 7 de novembro de
1831 era o de nº 14, porém, com as modificações e supressões que o projeto sofreu durante a sua discussão,
quando foi representado, em 1848, passou a ser o de nº 13 (cf. ACD, 21 set., 1848, II, p. 409).
28
alçada da justiça comum, que certamente tinha penas mais brandas. Realmente, o que
observamos como original e fundamental na Lei Eusébio de Queiroz, promulgada em 4
de setembro de 1850, foi o fato de não haver insistido na revogação da Lei Feijó pura e
simplesmente, mas aplicado um recurso que demonstrou grande habilidade política:
suprimir os pontos que porventura representassem ameaça ao direito de propriedade dos
senhores rurais, em especial o relativo à situação irregular dos milhares de africanos que
entraram ilegalmente no país após 7 de novembro de 1831. “Para reprimir o tráfico de
africanos, sem excitar uma revolução no país, faz-se necessário: 1º atacar com vigor as
novas introduções, esquecendo e anistiando as anteriores à lei [...]”.
18
Por outro lado,
ressaltou a vigência do texto legal, ao definir as penalidades para os comerciantes
infratores com base nas suas proibições:
Art. 1°. As embarcações brasileiras encontradas em
qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos
portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriais
do Brasil, tendo a seu bordo escravos cuja
importação é proibida pela Lei de sete de novembro
de mil oitocentos e trinta e um [...], serão
apreendidas pelas autoridades ou pelos navios de
guerra brasileiros, e consideradas importadoras de
escravos.
19
Dessa maneira, conseguiu relativo apoio dos fazendeiros, satisfazendo, ao
mesmo tempo, os opositores brasileiros e ingleses do tráfico, na medida em que deixava
o traficante com a responsabilidade quase que total pelo “infame comércio”.
No ano de 1852, o comércio de africanos já estava praticamente extinto no
Brasil, em resultado da aplicação rápida da Lei Eusébio de Queiroz. Além da pressão
inglesa, alguns estudos apontam outros fatores conjunturais que favoreceram o sucesso
imediato dessa segunda lei antitráfico em comparação à primeira, que estava então
completando vinte anos sem execução. Entre essas motivações, destacamos, em
18
Memorando confidencial de Eusébio de Queiroz para os seus colegas de ministério em 1849, lido para a
Câmara dos Deputados em discurso de 16 de julho de 1852 (ACD, II, p. 251).
19
O projeto de Eusébio de Queiroz, aprovado em sessão secreta de 17 de julho de 1850, e que resultou mais
tarde na Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, teve sua versão definitiva constituída por dez artigos, tendo sido
rejeitada a proposta inicial do Marquês de Barbacena (1837) sobre a revogação da lei de 13 de novembro de
1831, que foi reapresentada em 1848 (cf. Góes, 1888, pp. 151-156).
29
primeiro lugar, uma mudança na opinião pública nacional, principalmente nas áreas
açucareira e algodoeira do nordeste, que viam na paralisação do comércio internacional
de africanos uma saída para saldar suas dívidas, vendendo os seus cativos para as áreas
em expansão no sul; em segundo, o medo revelado por alguns autores nacionais em
relação ao futuro da nação em termos de estrutura racial
20
; finalmente, a força política
do governo conservador, que controlava amplamente a Câmara e o Conselho de Estado,
aspecto nunca antes identificado durante todo esse período de país independente
(Rodrigues, 2000, pp. 69-82).
A promulgação de uma segunda lei antitráfico viria ocasionar mais tarde, nos
debates sobre os novos usos da lei de novembro de 1831, uma falsa interpretação por
parte dos defensores da propriedade servil, no sentido de que tal lei houvesse sido
derrogada automaticamente. Entretanto, para decepção dos fazendeiros e seus
representantes no parlamento, a Lei Feijó sobreviveu a toda legislação sobre a
escravidão, permanecendo, assim, uma constante ameaça ao seu patrimônio.
20
Sobre esse tema, ver Jaime Rodrigues. O infame comércio, 2000, 1° capítulo.
30
CAPÍTULO 2 – OS NOVOS USOS DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831
(1851-1888)
2.1. Novas reivindicações inglesas
Com a promulgação da lei de 4 de setembro de 1850, não foram encerradas de
imediato as divergências diplomáticas entre o Brasil e a Inglaterra, porque algumas
questões ainda ficaram em aberto: o governo brasileiro sentia-se ofendido com a
vigência da Lei Aberdeen, de 1845, criada inicialmente como medida temporária até
que o tráfico fosse abolido, e cobrava também uma indenização relativa aos prejuízos
causados pela captura de seus navios pela marinha inglesa. Por outro lado, a Coroa
britânica prosseguia com suas pressões, passando a exigir informações sobre o destino
dos africanos que haviam ingressado ilegalmente no país, com o objetivo de aplicar a
segunda parte de seu plano, que era ver definitivamente abolido o trabalho escravo no
Brasil. De fato, essa contenda ainda se alongou por mais vinte anos, aproximadamente,
até a revogação da Lei Aberdeen pela Inglaterra, em abril de 1869, e o surgimento, na
década de 1870, de um projeto brasileiro de abolição gradual da escravidão a partir da
libertação do ventre escravo.
No que diz respeito ao conjunto de africanos introduzidos ilegalmente no
Brasil no período de 1830 a 1850, a legislação sobre o assunto distinguia duas
categorias. A primeira, constituída de uma pequena parcela de emancipados ou
Africanos Livres, apreendidos antes do desembarque ou imediatamente depois, em
armazéns situados na costa ou em portos, era estimada em aproximadamente 11 mil
pessoas; a segunda, formada por aqueles que, tendo escapado à fiscalização, haviam
sido vendidos para diferentes partes do Brasil e absorvidos pela população escrava em
geral, correspondia a 760 mil importados (MAMIGONIAN, 2002). Juridicamente,
aqueles africanos apreendidos no ato do desembarque recebiam a liberdade, porém,
apesar de emancipados, deveriam prestar serviços a repartições públicas ou a
arrendatários particulares por um período de 14 anos, consistindo uma das justificativas
desse aluguel na possibilidade de financiar a reexportação desses africanos introduzidos
ilegalmente no país. Todo esse procedimento tinha como base as determinações do
acordo assinado em 1826 entre a Inglaterra e o Brasil, que incorporou antigos
31
compromissos da ex-metrópole portuguesa. Na prática, as concessões a particulares
abriam oportunidades para trocas de favores políticos, até que se chegou a um ponto em
que o governo central perdeu o controle da distribuição dos emancipados, em face da
extrema violação das normas, que se traduzia em trabalho compulsório, fraudes em
certidões de óbito e fugas. Segundo Joaquim Nabuco (1997), “eles passariam de pais a
filhos como se fizessem parte das sucessões e, com o tempo, perdendo-se o vestígio do
destino que tinham tido, [...] muitos passaram ao rol dos escravos”, sendo vendidos
mais tarde como autênticos cativos.
Em 1851, quando representantes ingleses encaminharam ao governo brasileiro
uma proposta de criação de uma comissão mista destinada a identificar a localização
dos africanos livres, esta foi imediatamente rejeitada:
Senhor – Recebi e apresentei à rainha vosso
despacho de 12 de maio último, cobrindo uma cópia
e tradução de uma nota datada de 26 de abril último,
a qual recebestes do Sr. Paulino de Sousa em
resposta à nota que, em cumprimento das instruções
contidas em meu despacho de 8 de novembro de
1850, lhe dirigistes a 18 de fevereiro último,
propondo ao governo brasileiro a criação de uma
comissão mista no Rio de Janeiro, a qual devia ter
poderes para investigar os casos dos negros
suspeitos de serem ilegalmente mantidos em
escravidão no Brasil, e para declarar se tais negros
são ou não são livres.
Eu observo que o senhor Paulino, em resposta a
vossa nota, meramente estabelece que o governo
brasileiro, bem como os governos das outras nações
independentes, executa suas próprias leis em seu
próprio país e as faz executar por meio de seus
próprios tribunais e autoridades, que ele não pode,
além disso, permitir a criação de uma comissão na
qual juízes estrangeiros tenham votos e exercitem a
jurisdição dentro do Império.
21
Mesmo diante dessa resposta, as pressões britânicas continuaram, e o governo
brasileiro, buscando aliviar essa difícil situação, expediu, em 28 de dezembro de 1853, o
21
Sobre o despacho de 5 de julho de 1851, de Lord Palmerston a Lord Hudson, ver Joaquim Nabuco (1999) e
Leslie Bethell (1976).
32
Decreto n° 303, que autorizava os africanos livres com 14 anos de serviços prestados a
particulares a solicitar carta de emancipação ao Imperador. Na realidade, o objetivo
dessa medida era fazer mais uma lei “para inglês ver”, tendo em vista as dificuldades e
limitações envolvidas: primeiro, pelo fato de exigir que esses pedidos fossem
formulados por ofício, dificultando, assim, o acesso à justiça a quem não conseguisse
um procurador para representá-lo; segundo, pela razão de haver deixado de incluir nessa
autorização os emancipados que estavam prestando serviço a estabelecimentos públicos.
Até o final da década de 1850, os britânicos permaneceram insistindo na
proposta de recenseamento dos africanos livres, a fim de evitar que estes fossem
incorporados totalmente à escravatura, porém sempre receberam respostas negativas do
governo brasileiro. Foi somente em 24 de setembro de 1864 que o Imperador D. Pedro
II promulgou a Lei n° 3.310, emancipando todos os africanos livres, sem restrição, o
que coincidiu com o desdobramento da “Questão Christie”, um incidente naval bastante
noticiado nos jornais, ocorrido entre as marinhas das duas nações na cidade do Rio de
Janeiro, no início do ano de 1863, onde o embaixador britânico William Douglal
Christie, de caráter extremamente autoritário, mandara apreender os navios brasileiros
envolvidos, além de fazer ameaças de invasão, caso o Brasil não garantisse a liberdade
de todos os africanos importados ilegalmente após 1830, marcando um dos momentos
mais sérios dessa crise diplomática.
Na verdade, apenas mais uma lei fora criada com a mera intenção de iludir os
ingleses quanto aos esforços envidados pelo governo brasileiro na busca de soluções
para os problemas decorrentes da indiscriminada utilização dos serviços prestados pelos
Africanos Livres. Isto porque, pelo fato de nunca haver se interessado em possuir um
registro completo sobre o destino dessas pessoas (CONRAD, 1985), o Estado só
intimou, para receber carta de emancipação, apenas dois mil do conjunto dos onze mil
emancipados a quem esse texto legal estava destinado a beneficiar. Além desse aspecto,
a promulgação da lei tinha a intenção de abafar a discussão sobre uma questão levantada
por Christie e considerada muito mais perigosa pelo governo brasileiro, relativa à
garantia do direito de liberdade a todos os africanos que haviam ingressado ilegalmente
no país, com base nos termos do tratado anglo-brasileiro de 1826 e da lei de 1831
33
(CONRAD, 1985, p. 93, e MAMIGONIAN, 2002, p. 261). Como mais de cinqüenta por
cento da população escrava nacional em atividade era formada por esse grupo e seus
descendentes, caso efetivamente ocorresse o cumprimento rigoroso da legislação,
acarretaria a falência total da sociedade escravista. Era o fantasma da Lei Feijó,
novamente assustando a elite escravista, onde, para muitos, era considerada tacitamente
revogada.
Não devemos perder de vista o fato de que uma considerável parcela dos
cativos sempre esteve atenta aos acontecimentos políticos relacionados aos destinos da
escravidão, visando a tirar proveito daquela situação. Como podemos observar no
exemplo oferecido por Mamigonian (2000), que encontrou no Arquivo Nacional um
conjunto de aproximadamente 100 petições de Africanos Livres, motivadas pelo
anúncio do Decreto n° 1.303, de 28 de dezembro de 1853. A autora destacou para
análise alguns pedidos de personagens com trajetórias semelhantes, bastante articulados,
demonstrando ter noção do que era valorizado pela legislação ao relatarem, com
firmeza de detalhes, a sua procedência africana, os locais onde trabalharam no Brasil e o
tempo de serviços prestados. Todos de origem nagô, desembarcaram na Bahia em 1835,
onde serviram no Arsenal de Marinha, sendo posteriormente transferidos para uma
fábrica em São Paulo e depois para outro órgão da Marinha no Rio de Janeiro. A
documentação era rica em informações, permitindo reconstruir a trajetória difícil,
marcada por barreiras quase intransponíveis, daqueles que ousavam pleitear os seus
direitos pela via legal.
Félix, africano livre de nação mina [...], tendo ele
sido apreendido na Província da Bahia em 1835, e
prestado serviços no Arsenal de Marinha da Bahia, e
depois sendo remetido para esta Corte, foi mandado
para a fábrica de ferro Ipanema, onde esteve por
algum tempo, e quando voltou, foi mandado para a
Fortaleza de Lagos, onde se acha até hoje, e tendo
prestado serviços por espaço de mais de vinte anos
[...], e não devendo continuar a prestá-los, à vista do
Alvará de 26 de janeiro de 1818, § 5º, e do Decreto
de 28 de dezembro de 1853, que marcou o prazo de
14 anos para obterem suas cartas de
emancipação[...], se digne VMI mandar expedir
ordem para que se entregue ao suplicante a sua carta
34
de emancipação [...]. Rio de janeiro, 20 de março de
1857.
22
Outro episódio que reforça essa tese de que os escravos não ficaram passivos
diante da conjuntura nacional é quando Gomes (1995-1996, p. 4) nos apresenta um
relatório do chefe de polícia do Rio de Janeiro, destacando uma ocorrência relacionada
às exigências que o embaixador britânico Wiilliam Christie estava fazendo ao governo
brasileiro em 1863, no tocante ao cumprimento da lei de 7 de novembro de 1831, que
garantia a liberdade a todos os escravos que houvessem ingressado no país após a data
da sua promulgação. A divulgação da vigência dessa lei causava preocupação às
autoridades brasileiras quanto à manutenção da ordem pública:
O chefe da polícia, percorrendo toda a província
fluminense, informou ao Ministro da Justiça [...] que
na freguesia do Carmo fez correcionalmente castigar
três escravos por terem dito publicamente, em
conversação com outros parceiros, que os ingleses
tratavam de liberar a escravatura do Brasil e que esta
os devia ajudar em terra (Gomes, 1995/96, p. 44).
2.2 A experiência paulista
Mesmo após os ingleses terem, em 1869, revogado a Lei Aberdeen e
suspendido a pressão relacionada às questões do tráfico, a busca pela garantia do direito
de liberdade de todos os africanos que haviam ingressado ilegalmente no país após a
promulgação da lei de 7 de novembro de 1831 não foi abandonada, pois alguns
escravos, advogados, magistrados, parlamentares e jornalistas investiram nos meios
legais como uma forma importante de combater a sociedade escravista, fazendo desse
argumento uma das principais bandeiras políticas na luta pela abolição.
Acompanhar essa trajetória da evolução dos novos usos da lei de 1831, que não
tinha mais a preocupação de reprimir o tráfico de africanos, e sim de iniciar um
processo de emancipação dos escravos no Brasil, será nossa tarefa.
23
Nesse sentido,
22
Conferir em Mamigonian (2000, p.71)
23
Vale a pena ressaltar que concordamos com as afirmações de Grinberg (1994, p.88) e Azevedo (2003, p.98)
de que não há maneira de saber com precisão desde de quando tal significado estava sendo usado.
35
elegemos três lugares onde essa discussão se fez presente, ou seja, o Judiciário, o
Parlamento e a imprensa do eixo Rio - São Paulo, representando, até o final da década
de 1880, uma ameaça constante ao rico patrimônio dos senhores fazendeiros.
Na arena jurídica, o registro mais antigo que encontramos sobre a aplicação do
art. 1º da lei de 7 de novembro de 1831, que garantia a liberdade a todos os escravos que
ingressaram no país após aquela data, está em Joaquim Nabuco (1997, p. 229), em obra
sobre a vida de seu pai, José Thomaz Nabuco de Araújo, um dos mais importantes
políticos do Império brasileiro, onde, no capítulo dedicado à sua atuação como Ministro
da Justiça, aparece uma orientação dada por ele em 22 de setembro de 1854 ao
Presidente da província de São Paulo, em resposta a uma consulta a respeito da validade
dessa nova maneira de usar a lei de 1831, aplicada por um juiz da cidade de Jundiaí.
Confidencial Exmo Sr., acuso nesta data o reservado
de V. Exª, n° 16, de 18 de julho, antecedentes sobre
o africano Bento, apreendido pela polícia de Jundiaí
como escravo fugido e reclamado por uma pessoa
que se diz seu senhor por título de compra, sendo
que o juiz de direito, na visita das prisões,
reconheceu ter sido ele introduzido depois da
cessação do tráfico e o enviou ao chefe de polícia
com interrogatório, exames, etc. Deploro com V.
Exª que o juiz de direito, por um rigor contrário
à utilidade pública e pensamento do governo,
levasse as coisas ao ponto a que chegaram. Louvo os
escrúpulos e hesitação do chefe da polícia e de V.
Exª na colisão que se dá entre a lei e a prescrição
24
que o governo se impôs, com a aprovação geral
do país e por princípios de ordem pública e alta
política, anistiando esse passado cuja liquidação
fora difícil, cujo revolvimento fora uma crise. O
governo estabeleceu essa prescrição para si e seus
agentes e, até onde chega a sua ação, nada pode ele
em relação ao poder judiciário. O império das
circunstâncias o obriga, porém, a fazer alguma coisa
senão direta, ao menos indiretamente, a bem dos
24
Segundo Joaquim Nabuco (1997, p. 249), essa prescrição foi apresentada ao Senado em 20 de setembro de
1853 pelo Marquês de Paraná, Conselheiro do Império, tranqüilizando os proprietários de africanos com uma
palavra de compromisso de não mexer em seu patrimônio: “Os pacíficos fazendeiros que têm escravos
anteriormente adquiridos [...], qualquer que tenha sido a maneira de compra, não devem esperar perseguição
alguma da parte do governo, porque este tem em consideração o estado do país e as desordens que poderia
suscitar uma inquirição imprudente sobre um passado em que há tão grande número de compreendidos”.
36
interesses coletivos da sociedade, cuja defesa
incumbe ao governo. Não convém que se profira
um julgamento contra a lei, mas convém evitar
um julgamento em prejuízo e com perigo desses
interesses, um julgamento que causaria alarme e
exasperação aos proprietários. está dito o meu
pensamento, a execução é de V. Exª. (22 de
setembro de 1854). [O grifo é nosso]
Achei conveniente transcrever esse extenso parecer porque ele nos revela
fielmente uma nova estratégia do governo para combater os riscos iminentes que a Lei
Feijó sempre proporcionara ao controle da ordem social. Durante os anos de 1830 e
1840, as tentativas foram no sentido de revogá-la por completo, mas nenhuma obteve
sucesso, permanecendo ela, tal como a ameaça de um vulcão adormecido, a preocupar
os senhores proprietários de escravos, mesmo tendo estes o comprometimento oficial do
governo. Entretanto, na década de 1850, após a supressão definitiva do tráfico de
escravos africanos, o que percebemos são orientações no sentido de inibir a utilização
das novas interpretações da Lei Feijó, alertando as autoridades judiciais e policiais para
os prejuízos que tais atitudes poderiam causar aos fazendeiros, classe que o governo
tinha se comprometido a não incomodar. Na verdade, o objetivo principal da
jurisprudência era frear a possível formação de um movimento que fizesse dessa lei um
instrumento de luta pelo fim da escravidão.
Apesar dos atos oficiais do governo externando o seu pensamento conservador
na tentativa de intimidar as novas interpretações sobre a Lei Feijó, foi identificado em
São Paulo, a partir da década de 1860, um grupo formado por operadores do direito,
tendo como liderança o rábula Luiz Gama, um ex-escravo que veio a se tornar mais
tarde um dos maiores militantes abolicionistas que o Império brasileiro conheceu.
25
Elciene Azevedo (2003) estudou a atuação de Luiz Gama e sua roda de amigos
como curadores nos processos judiciais de liberdade, apoiados na lei de 1831, movidos
pelos cativos contra seus senhores. A marca original do trabalho de Azevedo está em
não limitar a análise dos processos às estratégias jurídicas dos advogados, mas destacar
25
Para saber mais sobre a biografia de Luiz Gama, ver Elciene Azevedo (1999).
37
os aspectos que davam uma dimensão política à lei e que se cruzavam com a exploração
de outras áreas de atuação, como a publicidade dada aos debates pela imprensa.
O primeiro desses processos (Azevedo, 2003, pp. 76 e 84), é datado de 1868,
26
ano em que Luiz Gama, na época funcionário de uma delegacia policial, atualizado
sobre os debates envolvendo direito e escravidão, deixou de expedir o passaporte do
cativo José, solicitado pelo seu proprietário para levá-lo em uma viagem ao Rio de
janeiro, onde pretendia vendê-lo. Verificando na certidão do escravo que este contava
28 anos de idade naquela data, deduziu que nascera em 1840 e, somando a essa
informação as características pessoais que revelavam a sua origem africana, apreendeu o
cativo, presumindo que ele fora importado posteriormente à promulgação da lei de 7 de
novembro de 1831, que proibia o tráfico e garantia a liberdade a todos os escravizados
ilegalmente. Mas tarde, comunicou o fato ao delegado, para que este desse início às
investigações sobre a suspeita levantada, tal como determinava o decreto de 12 de abril
de 1832, que regulamentara a lei. Lamentavelmente, o processo não estava completo e,
assim, não foi possível saber o final da história, porém, segundo Azevedo (2003, p. 78),
isso não chegou a prejudicar a análise, “porque um pequeno fragmento do cotidiano da
delegacia na capital indica a possibilidade de que funcionários como Luiz Gama
estivessem agindo politicamente no exercício rotineiro de suas funções”.
Um outro processo (Azevedo, 2003, p. 80), datado de outubro de 1869,
expressa a maneira entusiasmada ou mesmo radical com que Luiz Gama se apropriou
do novo uso da lei de 1831 para lutar na justiça pela liberdade dos africanos ilegalmente
escravizados. Nele Gama solicita em juízo a liberdade de uma família inteira, pelo fato
de um casal de africanos ter sido importado após a primeira lei que proibiu o tráfico, e
haver o seu senhor, para esconder tal realidade, fraudado um batizado para os dois, com
a ajuda do padre da cidade, pois nenhum registro fora encontrado no livro de
assentamento da casa paroquial. No final da petição, junta uma lista de nomes que
26
Grinberg (1994) informa que esses novos usos da lei aparecem pela primeira vez na Corte de Apelação do
Rio de Janeiro, tribunal de instância superior, também na década de 1860. Eram sete ações originárias do
extremo sul do país, onde os advogados usavam o argumento de reescravização ilegal daqueles escravos que
retornavam de viagem ao Uruguai, país vizinho que já havia abolido a escravidão.
38
poderiam testemunhar sobre a referida farsa, requisitando o depósito
27
de Jacinto, Ana,
filhos e netos. O juiz declarou-se incompetente para julgar, tendo em vista que o senhor
dos escravos não residia oficialmente na cidade de São Paulo. Já no terceiro pedido de
reconsideração do despacho, indignado por não haver sido atendido, Luiz Gama
apresenta uma petição extremamente ofensiva, classificando como fútil aquela decisão.
Descrente em atingir o seu objetivo se ficasse meramente limitado ao âmbito
do Poder Judiciário, tendo em vista os constantes indeferimentos do magistrado às suas
reivindicações, Luiz Gama procurou dar publicidade ao caso, utilizando a imprensa,
onde também já tinha ampla experiência. Seria, então, com artigos no jornal Radical
Paulistano que prosseguiria em sua luta pelo direito de liberdade de seus patrocinados.
Em 13 de novembro de 1869, na sessão Crônicas forenses, do Radical
Paulistano,
28
Luiz Gama apresentou o art. 10 do decreto de 12 de abril de 1832, que
regulamentara a lei de 7 de novembro de 1831, o qual, no seu entendimento, o juiz
fingia ignorar: “Em qualquer tempo que o preto requerer a qualquer juiz de paz ou
criminal, que veio para o Brasil depois da extinção do tráfico, o juiz o interrogará
sobre todas as circunstâncias que possam esclarecer o fato e oficialmente procederá a
todas as diligências necessárias para certificar-se d’ele, obrigando o senhor a
desfazer as dúvidas que suscitarem a tal respeito. Havendo presunções veementes de
ser o preto livre, o mandará depositar e proceder nos termos da lei” [ destaques do
original ].
Na verdade, o que pretendia Luiz Gama com a reprodução desse artigo do
Decreto de 1832 era tentar convencer de que a sua argumentação estava restrita ao
direito positivo, sendo também dessa maneira que o magistrado deveria proceder, “sem
envolver-se em questões particulares ou políticas, geradas por outros interesses que
não o de direito, expresso na letra da lei” (Azevedo, 2003, p. 84).
27
A definição de deposito aparece em Joseli Mendonça: “Durante todo o andamento do processo, o escravo
deveria ser retirado da companhia do senhor e colocado em depósito. Geralmente era realizado pela entrega do
escravo à responsabilidade de uma pessoa livre, de idoneidade reconhecida pelo juiz [...]” (Mendonça, 2001, p.
61).
28
Conferir em Azevedo (2003, pp. 83-89).
39
Após esse episódio, Luiz Gama foi demitido da função de amanuense da
delegacia policial da cidade de São Paulo, por desrespeito e contestação pouco polida à
magistratura pública, além de ser indiciado por crime de calúnia e injúria. Mas, na
realidade, o que motivou essa decisão das autoridades provinciais foi a atitude
inconveniente de Gama ao recuperar a lei de 1831 para sustentar reivindicações de
escravos que se diziam lesados nos seus direitos. Como bem expressa Azevedo (2003,
p. 84), “de todos os argumentos que os escravos até então podiam lançar mão para
conseguir sua liberdade na arena judiciária, este, sem sombra de dúvida, era o mais
explosivo”, se considerarmos que a maior parcela da escravaria nacional era composta
de africanos introduzidos ilegalmente no país após 1831 e seus descendentes, e que o
governo paulista tinha a clara consciência de que esse não era um ato isolado e
inconseqüente de um ex-escravo querendo salvar seus irmãos do martírio da escravidão,
mas o nascimento de um movimento de “politização institucional” (Azevedo, 2003, p.
15), pelo fato de Luiz Gama estar envolvido com importantes segmentos da sociedade
simpáticos à substituição do trabalho servil, tais como o Clube Radical, o Jornal Radical
Paulistano e a Maçonaria.
Na década de 1870, apesar das atitudes intimidadoras anteriores do governo, o
movimento seguiu em busca de seu objetivo de abalar as estruturas da sociedade
escravista, através da politização da lei de 7 de novembro de 1831. Luiz Gama
continuou a prestar sua colaboração jurídica e jornalística na defesa dos escravizados e
na publicidade das discussões forenses. Nessa época, passou a dedicar seu apoio a uma
iniciativa que surgira das experiências entre os próprios escravos. Os Africanos Livres
eram uma categoria de homens e mulheres emancipados oficialmente no momento do
desembarque, quando começou a vigorar a proibição do tráfico atlântico, mas que, antes
de receberem efetivamente tal direito, eram obrigados por um certo período a prestar
serviços a repartições públicas ou a particulares. O governo criara até mesmo uma
legislação especifica para cuidar de sua emancipação, ao ser pressionado pelos ingleses,
logo após a supressão definitiva do tráfico internacional, em1850. Quando tratamos
desse assunto anteriormente, aproveitamos os resultados das pesquisas de Mamigonian
(2000), que relatava como eram elaborados os recursos de alguns Africanos Livres que
sabiam da existência de leis que garantiam o seu direito de emancipação. Esses homens,
40
com base na experiência de companheiros de viagem reencontrados depois de um certo
tempo, os quais, apesar de haverem ingressado no Brasil no mesmo período que eles,
estavam gozando de liberdade, começaram a juntar provas testemunhais para
requererem isonomia, por motivo de se acharem em condição semelhante.
Essa experiência vai se repetir em relação aos Africanos Livres auxiliados por
Luiz Gama, diferenciando-se apenas quanto à legislação usada para instrumentalizar o
recurso, pois o grupo mais antigo operou com as leis de 1853 e de 1864, que tratavam
especificamente sobre os emancipados, enquanto o mais novo recebeu apoio do
movimento que estava politizando a lei de 1831, buscando enquadrar suas
reivindicações dentro do que a lei oferecia, em especial o art. 10 do decreto de 12 de
abril de 1832, que regulamentou a Lei Feijó, garantindo a qualquer escravo o direito de
requerer em juízo a sua liberdade quando suspeitasse que viera para o Brasil após a
proibição do tráfico.
Mesmo não conseguindo sentença favorável na maior parte dos processos que
defendeu, a contribuição de Luiz Gama foi marcante na publicidade que cercou o debate
sobre o uso da lei de 7 de novembro de 1831 como principal instrumento de defesa da
liberdade dos escravos ilegalmente escravizados.
Não se deve esquecer, é claro, de que esse movimento para se atribuir um
significado político à lei de 7 de novembro de 1831 não estava restrito ao âmbito
judiciário, mas também envolvia outras áreas formadoras de opinião da sociedade. Para
encerrar os comentários sobre essa fase paulista do movimento, selecionamos um trecho
da conferência de Rui Barbosa no Clube Radical Paulistano, grupo político que deu
origem ao Partido Republicano Paulista, em 12 de setembro de 1869: “[...] uma porção
imensa de propriedade servil existente entre nós, além de ilegítima, como toda
escravidão, é também ilegal, em virtude da lei de 7 de novembro de 1831, e do
regulamento respectivo, que declararam expressamente ‘que são livres todos os
africanos importados daquela data em diante’ – donde se conclui que o governo tem a
obrigação de verificar escrupulosamente os títulos dos senhores e proceder na forma
do decreto sobre a escravatura introduzida pelo contrabando [...].” (o grifo é nosso)
41
A gravidade desse discurso estava em ter sugerido ao governo que fizesse uma
devassa nos títulos de propriedade escrava dos fazendeiros para que, mediante o critério
de nacionalidade e idade do cativo, fossem identificados os africanos contrabandeados.
Além disso, apontava para o fato de que, sendo as propriedades ilegais, visto não existir
nenhuma lei posterior que reconhecesse o direito de posse dos senhores, ficava o
governo desobrigado de indenizar qualquer pessoa em razão dos prejuízos causados. Tal
proposta, se colocada em prática, ocasionaria grandes distúrbios na estrutura da
sociedade, pois resultaria na liberdade de um grande número de escravos, considerando
que a população cativa era formada basicamente por esse grupo de africanos e seus
descendentes.
Assim, mesmo sendo algo quase inexeqüível, em face da desorganização e da
incompetência da burocracia imperial, causou preocupação ao governo, que,
coincidentemente, iniciou a aplicação de uma série de medidas para combater esses
novos usos que a lei vinha ganhando. Era o fantasma de uma velha legislação relativa ao
tráfico que voltava a ameaçar os senhores fazendeiros e que, portanto, precisava ser
exorcizado.
2.3. Os atos repressivos
Em 28 de setembro de 1871, foi promulgada uma lei tendo como principal
objetivo responder a uma série de protestos nacionais e internacionais, em razão do
Brasil ainda estar persistindo no trabalho escravo, que já havia sido extinto em quase
todo o mundo. Havia também, por outro lado, o propósito de aliviar as constantes
revoltas de escravos que estavam irrompendo no sul do país, pelo fato de muitos
cativos, vitimas do tráfego interprovincial, reagirem à violência do cativeiro nas grandes
plantações de café, por meio de agressões e assassinatos de feitores.
29
As medidas adotadas para atingir tais reivindicações, sem fazer mudanças
radicais que abalassem a ordem social foram, basicamente, a libertação do ventre e a
29
Sobre o assunto, conferir em Hebe Mattos (1995, p.182).
42
oficialização da compra da alforria pelo escravo, porque, com esses gestos, se adotaria
uma emancipação gradual e se respeitaria o direito de propriedade, mediante a
indenização do senhor.
Uma leitura rápida e geral da lei de 1871 produz um entendimento de que nada
foi colocado a respeito da propriedade escrava proveniente do tráfico. Entretanto, se
dirigirmos nossa atenção para os vestígios e silêncios do texto, perceberemos que o art.
8º determinava a obrigatoriedade da matrícula especial de todos os escravos existentes
no império, “com declaração de nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e a
filiação de cada um, se for conhecida”, porém era omisso quanto à nacionalidade.
Esse esquecimento foi intencional, porque eliminava qualquer possibilidade de
prova para o cativo contrabandeado, dificultando, assim, o recurso sugerido por Rui
Barbosa em sua conferência no Clube Radical Paulistano, amplamente divulgada na
imprensa. Segundo Azevedo (2003, p. 97):
O governo criava neste momento um documento
legal que possibilitava aos senhores regularizarem a
situação dos africanos que mantinham ilegalmente
como escravos, fosse se omitindo sobre sua
naturalidade ou simplesmente modificando sua
idade.
Quando observamos a maneira discreta com que o governo encaminhou as
medidas contra o uso da lei de 7 de novembro de 1831 como argumento favorável ao
direito de liberdade dos africanos ilegalmente escravizados, suspeitamos de que, na
realidade, essa atitude constituía uma estratégia para evitar polêmica e publicidade,
tendo em vista a gravidade da questão, considerada como um verdadeiro “vulcão”. Essa
hipótese se confirma quando Eduardo Spiller Pena (2001, p. 288) nos oferece um
discurso de Perdigão Malheiro
30
no Parlamento, um mês antes da promulgação da Lei
do Ventre Livre, requerendo o maior sigilo possível no debate sobre o “movimento
30
Conrad (1978) nos informa que Perdigão Malheiros era advogado do Conselho de Estado, tinha relações
íntimas com a Coroa e era membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, que estava afinado com a política
do Império.
43
pernicioso” que exigia a defesa da liberdade dos escravos mediante a aplicação da lei de
1831:
Todavia ocorre-me, e era uma das razões por que
desejava que a sessão fosse secreta, ocorre-me que
no próprio norte começou um movimento
pernicioso [...] que suponho ser movimento
auxiliar da emancipação, mas por uma forma
terrível. (Apoiados) [...] Refiro-me, senhores, à
execução inquisitorial da lei de 7 de novembro de
1831, chamo a atenção do governo para este fato, a
fim de que tome suas providências em ordem a evitar
que este elemento de propaganda se não desenvolva,
como pode desenvolver-se, o que produzirá ainda
maior agravação dos males [...] (ACD, 26 ago.
1871, pp. 296-7). (o grifo é nosso)
Apesar da grande repercussão da Lei do Ventre Livre, continuou a se espalhar
no país o uso dos novos significados da lei de 7 de novembro de 1831, levando o
governo a sair de sua postura discreta no encaminhamento de seu pensamento sobre o
assunto. Em 28 de outubro de 1874 (O direito, 1884, v. 33, pp. 285-291), foi publicada
uma resolução do governo, com parecer do Conselho de Estado, provocada por um
comunicado do Presidente da Província do Rio Grande do Norte ao Ministro da Justiça,
informando sobre o depósito de africanos “que, alegando em seu favor a disposição dos
arts. 1° da lei de 7 de novembro de 1831 e 9° do decreto de 12 de abril de 1832,
reclamam por sua liberdade, da qual são privados”. Diante dos fatos, havia
recomendado ao promotor público “que promovesse o quanto antes a ação de liberdade
a favor daqueles infelizes.”
Em seu parecer, o Conselho advertia para o perigo da questão: “O negócio não
é tão simples como supõe o presidente da província [...], é muito grave pelo seu alcance
e conseqüências”, alegando que ações dessa natureza poderiam ser uma “temeridade”
em uma terra onde grande número de escravos era proveniente de importações
anteriores a 1850, quando ocorreu a efetiva supressão do tráfico. Outrossim,
demonstrava a irregularidade cometida ao se usar esse tipo de procedimento: “A lei de
1831 foi destinada a impedir a importação de escravos vindos do continente africano,
suas disposições não tiveram em vista mais do que organizar um sistema de repressão
44
[...] e sustentavam que só a Auditoria de Marinha tinha competência para julgar a
liberdade dos escravos provenientes do tráfico”.
Mais do que qualquer comentário, palavras do texto como “perigo”,
“gravidade” e “temeridade” expressam a preocupação do governo com a repercussão
pública de ações dessa natureza.
Nesse sentido, o Conselheiro procurava criar uma estrutura legal baseada em
conceitos jurídicos que fundamentassem e justificassem o seu projeto oficial de
emancipação lenta e gradual dos escravos.
2.4. Os debates no Senado
Diante dessas constantes intervenções do Poder Executivo em questões que
diziam respeito ao Judiciário, em especial sobre ao novo uso da lei de 7 de novembro de
1831, o Senado Imperial iniciou uma série de debates sobre a vigência da referida lei,
dominando a pauta das sessões do período transcorrido entre os dias 26 de junho e 7 de
julho do ano de 1883. A simples apresentação desse tema no Senado dá a medida do
avançado estágio de preocupação em que vivia o país com a questão do elemento servil,
que se tornou ainda mais séria porque, na verdade, o que definia os debates que estavam
sendo travados sobre essa lei no Judiciário, na imprensa e nas ruas, era precisamente a
contestação da própria legalidade da escravidão.
Assim, na sessão do dia 26 de junho de 1883, o senador Silveira da Motta, um
antigo crítico do regime de escravidão adotado no país, com a intenção de provocar o
governo, leu em um dos jornais da Corte a sentença proferida pelo Dr. Domingos
Rodrigues Guimarães, juiz de direito de Pouso Alto, Minas Gerais, a qual dizia:
Verificando-se da matrícula em original às fls. 96
dos autos do inventário do finado Flávio Antônio
de Pádua Junior, que o preto Galdino é natural da
costa da África, e que nasceu em 1836, visto
como tinha a idade de 36 anos em 1872, data da
referida matrícula, e cumprindo a lei de 7 de
novembro de 1831, que em seu artigo 1° declara
45
livres todos os escravos que entrassem no
território do Brasil vindos de fora, mando que
seja o mesmo africano excluído da partilha, e se
lhe dê carta de liberdade. [...
E ainda, a esse respeito, faz o seguinte
questionamento: “A lei de 7 de novembro ainda
está em vigor? Ora, eu vejo que o governo precisa
tomar alguma providência a esse respeito. O
nobre Presidente do Conselho [...] deve
reconhecer os inconvenientes graves que resultam
da incoerência dessas decisões judiciais a respeito
de direitos tão melindrosos como são esses, e que
é preciso tomar-se uma deliberação sobre este
assunt (Moraes, 1938, pp. 30-31).
Na sessão seguinte, o Conselheiro Lafayette, representando o governo,
respondeu ao senador, dizendo que, sendo a matéria da competência do Judiciário, não
cabia ao Executivo interferir no assunto:
O nosso sistema de governo repousa sobre o
princípio fundamental da divisão e da
independência dos poderes. [...] Ora, se este é o
nosso sistema, se um poder não pode intervir em
questões que são da competência do Poder
Judiciário, que não pode ditar normas a esse
poder, que não pode estabelecer interpretações de
leis cuja interpretação e execução pertence ao
poder judiciário. Se o poder executivo tivesse a
faculdade de interpretar as leis cuja execução
pertencem ao Poder Judiciário, e obrigá-lo a
segui-las, o Poder Judiciário deixaria de ser
independente, seria tão subordinado ao Executivo
como são os agentes do poder administrativo [...].
Sua Excelência sabe que a uniformização de
jurisprudência no nosso Império [...] está confiada
ao próprio Poder Judiciário, representado pelo
tribunal mais alto [...] no Brasil, o Supremo
Tribunal de Justiça (Moraes, 1938, pp. 34-35).
O Conselheiro Lafayette, nesse momento, procurava manter uma certa
neutralidade sobre a matéria discutida, evitando emitir um parecer que revelasse a
posição do Executivo. Isto porque, até alguns anos, antes o governo abusava do suposto
46
direito de interpretar as leis, com o propósito de influenciar os juízes e funcionários no
exercício de sua função judicante. Pode-se constatar essa influência pelo fato de que
muitos magistrados indeferiam pedidos sustentados nos novos usos da lei de 1831,
fundamentando suas sentenças em parecer do Conselho de Estado publicado em 1874,
já comentado por nós em outra parte da pesquisa. A provocação do Senador Silveira da
Motta foi de grande habilidade porque fez o governo declarar em sessão aberta do
Senado que não tinha autoridade para interferir nas questões que diziam respeito ao
Judiciário, reconhecendo, assim, a independência da magistratura na sua prática
judicante.
Na sessão de 30 de junho, o senador Christiano Ottoni pronunciou-se contra o
vigor da lei de 7 de novembro de 1831, entendendo que a mesma havia caído em desuso
pelo tempo, usando os seguintes argumentos:
Quais são os caracteres jurídicos, qual é o limite
do tempo de inexecução que permite ao juiz
considerar uma lei civil em desuso e não
aplicável? [...] O orador entende que uma lei
manifestamente aplicável a centenas de milhares
de casos ocorrentes, e que por largo período de
tempo, como o de 52 anos, não foi aplicada, nem
tentada aplicar a um só desses casos, deve ser
reputada em desuso. Ora, tal é o caso da lei de 7
de novembro de 1831, que nunca por espaço de
meio século foi aplicada. É notório e sabido: as
sentenças apontadas são todas recentes. [...]
Assim, dos importados antes de 31 só podem
existir alguns maiores de 65 anos, sabe-se que
raros desses infelizes transpõem tal meta.
Portanto, ou não existem, ou são raríssimos os
indivíduos naturais da África que estejam isentos
da sanção da lei de 1831 (Moraes, 1938, pp. 39-
41).
Já no final do seu discurso, o senador Ottoni conclui que a grande maioria da
escravatura existente naquele período era composta de importados ilegalmente e seus
descendentes, mas sendo de quase impossível prova, por isso entende que a lei em
questão fora revogada pelo desuso. Seguem-se as suas últimas palavras no debate,
47
defendendo os senhores que estavam sendo alvo dos operadores do direito que vinham
fazendo uso da Lei Feijó:
Não se pode averiguar se o crioulo tal é
descendente de um africano importado antes ou
depois de 1831. Se em um ou outro caso, por
declaração da parte interessada, pode-se verificar-
se a infração, aplicar a pena aos poucos que
disseram a verdade e anistiar os inúmeros
infratores que, por serem insinceros, impediram a
prova, poderá ser legalidade, mas é
iniqüidade.[...] Assim, pois, e até que seja
esclarecido por quem mais sabe destas matérias,
S. Exª reputará a lei de 7 de novembro caída em
desuso (Moraes, 1938, p. 42).
Na sessão de 7 de julho, foi a vez do senador Ribeiro da Luz manifestar-se
também contrario à vigência da lei de 7 de novembro de 1831, descaracterizando o
poder de emancipação que alguns operadores do direito estavam lhe dando e, por outro
lado, afirmando que a mesma foi revogada pelas leis de 1850 e 1854:
A lei de 7 de novembro [...] foi promulgada, não
para iniciar a emancipação dos escravos no Brasil,
porém para acabar com o tráfico no continente
africano [...]. Entretanto, em 4 de setembro de
1850, publicou-se uma nova lei decretando
providências mais enérgicas e minuciosas a
respeito da repressão do tráfico de escravos, e
nessa lei, que derrogou a de 1831, não se contém
uma só palavra relativamente a escravos
importados nesse período de 19 anos.” [...] A essa
lei seguiu-se a de 5 de julho de 1854, que ampliou
a competência do Auditor da Marinha. O art. 1º
da lei dispõe: ‘A competência dos auditores de
marinha para processar e julgar os réus
mencionados no art. 3º da Lei nº 581, de 4 de
setembro de 1850, terá lugar depois da publicação
da presente resolução’. [...] Ainda nesta lei devem
notar as seguintes palavras: ‘depois da publicação
da presente resolução’, que, mais uma vez,
demonstram que o poder legislativo, entre nós,
não quis, propositalmente, conhecer e
providenciar sobre o passado, considerando,
senão como legal a escravidão dos africanos
48
importados anteriormente, ao menos tolerando-a
como fato consumado (Moraes, 1938, p. 48).
Finalizando o seu discurso, o senador Ribeiro da Luz procurou demonstrar
que a lei de 7 de novembro de 1871 era a única em vigor para tratar de alforria, e que
ela também veio para apagar as dúvidas do passado :
Depois das leis de 1850 e de 1854, que
derrogaram, cada uma por sua vez, a lei de 7 de
novembro de 1831, tivemos a de 28 de setembro
de 1871, a primeira que, direta e exclusivamente,
tratou da emancipação de escravos no Brasil,
porquanto as outras a que o orador se tem referido
são simplesmente leis de repressão do tráfico, mas
não de emancipação. O art. 8° desta lei dispõe o
seguinte: ‘O governo mandará proceder à
matrícula especial de todos os escravos existentes
no Império, com declaração do nome, sexo,
estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada
um, se for conhecida.’ Sabia-se, quando se
discutiu e votou esta lei, que existiam, como
escravos no Brasil, africanos importados depois
de 7 de novembro de 1831. Entretanto, no art. 8º
citado não se estabeleceu exceção alguma; ao
contrário, determinou-se que fossem matriculados
todos os existentes no Brasil, omitindo,
calculadamente, entre as declarações que na
matrícula deveriam ser feitas, a da naturalidade do
escravo, omissão esta que foi mantida nos
respectivos regulamentos. Do exposto se deve
concluir que esta lei não lançou unicamente um
véu sobre o passado, mas legalizou a escravidão,
existente no Brasil, dos africanos importados
depois de 1831 (Moraes, 1938, p. 50).
Nessa mesma sessão de 7 de julho de 1883, o senador Silveira da Mota,
procurou desfazer toda argumentação técnica dos opositores que intentavam debilitar a
força da lei de 1831. Afastando inicialmente a idéia de que o desuso revoga uma lei,
procurou, em seguida, demonstrar que nenhuma lei subseqüente havia alterado as
disposições da lei em questão. Outrossim, no que dizia respeito à função do magistrado
em face da competência dada ao Auditor da Marinha, tanto pela lei de 1850 como pela
de 1854, afirmou Silveira da Motta que essa competência não tinha eficácia em relação
49
aos escravos ladinos, ou seja, aos africanos já há algum tempo internados no território
nacional, pois retratava uma determinação restrita aos cativos aprisionados dentro das
embarcações ou imediatamente após o desembarque (MORAES, 1938).
O discurso do senador Motta nesse debate no Senado do Império e algumas
sentenças judiciais favoráveis às ações de liberdade que usavam como argumento a lei
de 7 de novembro de 1831, como, por exemplo, as do juiz Antônio Joaquim Macedo
Soares, propiciaram uma mudança de comportamento em alguns magistrados em
relação a essas ações, o que fez aumentar o número de cativos que pleiteavam seus
direitos no fórum.
Destacamos aqui duas sentenças de Antônio Joaquim Macedo Soares, pioneiro
na aplicação desse novo uso da lei de 1831 nos círculos da magistratura nacional,
quando juiz em Mar de Espanha, município de Minas Gerais, e na cidade de Cabo Frio,
no Estado do Rio de Janeiro. Não se limitando a aplicar a lei supostamente revogada
pelo desuso, esse militante do movimento de politização da Lei Feijó, tal como Luiz
Gama, fez publicidade dos debates que aconteciam nos fóruns de diferentes partes do
país, escrevendo estudos doutrinários
31
e matérias para revistas especializadas.
Por exemplo, em um inventário do ano de 1882, verificando a relação dos bens
do inventariado, Macedo Soares expediu o seguinte despacho de fls. 77:
Segundo a matrícula de fls. 40, os africanos
Matheus e José nasceram, aquele em 1836 e este
em 1832; ora, nos termos do art. 1° da lei de 7 de
novembro de 1831, são livres. Portanto, sejam
excluídos da partilha [...], recebendo carta de
liberdade.
Reclamando da medida, o inventariante,
representante do espólio do falecido, alegou que
“na matrícula geral
32
de 1872, que se procedeu
em todo o Império, os senhores, não tendo
atestado de idade exata dos seus escravos
africanos, fizeram [...] muitas declarações
arbitrárias, pelo que os dizeres da matrícula não
31
Macedo Soares foi um importante colaborador da revista O direito no período de 1883 a 1884.
32
Matrículas eram registros dos escravos feitos em órgão público. Ver Mendonça (2001, p. 60).
50
induziam a verdade provada, e por isso dava-se o
caso, não de decretar a alforria do escravo,
excluindo-o logo da partilha, porém sim de
nomear-lhe curador que por ele reclamasse a
liberdade.
Em seguida, vem o despacho final do juiz: “A
declaração de idade na matrícula dos escravos faz
prova, e quando assinada pelo próprio senhor a de
fls. 40, a prova é plena [...]. Seria irrisório impor-
se-lhes o ônus da prova da liberdade, quando é
aos seus pretensos senhores que incumbe provar o
estado de escravidão (Moraes, 1938, pp. 148-
150).
Semelhante procedimento adotou o referido magistrado em inventário de 1884,
da cidade de Cabo Frio, separando os africanos escravizados ilegalmente, aos quais
concedeu carta de liberdade. A parte final da sentença diz o seguinte:
Cumpre não perder de vista que a matrícula é
documento construído pelo senhor contra o
escravo, sem ciência [...] deste e, desde que em
documento dessa ordem aparecem duvidas,
manda a hermenêutica jurídica resolvê-las contra
quem os fez e a favor daqueles contra quem
foram feitas.
33
2.5. A campanha abolicionista da década de 1880 e a lei de 1831
Após essa longa trajetória do novo uso da lei de 1831, que provavelmente teve
início com a definitiva supressão do tráfico, em 1850, marcada por um processo de luta
em defesa dos direitos de africanos ilegalmente escravizados, observamos que, em
virtude dessa interpretação diferente e ousada do texto legal, o movimento foi
incorporado à campanha abolicionista surgida na década de 1880 e, a partir daí, bastante
difundido:
33
AMJUS, processo Manoel Antônio Vidal. Caixa n° 1.815, reg. n° 17.475, ano de 1884.
51
Em 1883, Joaquim Nabuco publicou a obra O Abolicionismo, com várias páginas
dedicadas ao debate sobre a ilegalidade da escravidão, a qual, segundo ele, era
exercida em sua quase totalidade sobre os africanos introduzidos criminalmente no
país. Afirmava que a ‘geração de 1850’, que defendia um pensamento político de
legitimação da propriedade sobre os africanos introduzidos no país depois de 1831,
não havia tido coragem de enfrentar os desmandos dessa classe de traficantes:
Por sua vez, a atual geração, desejosa de romper
definitivamente a estreita solidariedade que ainda
existe entre o país e o tráfico de africanos, pede
hoje a execução de uma lei que não podia ser
revogada, e não foi, e que todos os africanos em
cativeiro têm direito de considerar como sua carta
de liberdade (Nabuco, 2000, pp. 75-76).
Indignados com o desrespeito de traficantes e proprietários de escravos ao
estabelecido na lei de 1831 e com a indiferença demonstrada pelos poderes públicos no
tratamento dessas transgressões, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio publicaram
enérgicos protestos nos jornais, comentando sobre editais de venda de escravos cuja
idade e nacionalidade indicavam haverem sido importados após a promulgação da lei e
que, portanto, estavam sendo ali negociados ilegalmente.
Em um artigo publicado no jornal Gazeta da Tarde, de 12 de janeiro de 1880,
Joaquim Nabuco denunciava:
Há cerca de um mês, a Gazeta de Notícias e o Rio
News chamaram a atenção do Sr. Ministro de
Justiça para um fato grave e sobre o qual até hoje
[...] ainda não disse uma palavra. Depois da
denúncia dada por esses jornais, o edital do juízo
municipal de Valença, anunciando a venda de
sessenta africanos ilegalmente escravizados [...],
com nomes e respectivas idades [...], e todos eles
tendo menos de quarenta e oito anos, foram
evidentemente importados depois da lei de 7 de
novembro, de 1831, não cumpre ao governo
tomar uma providência?[...] Assim como o
escravo pode libertar-se pelo preço da avaliação,
deve também poder libertar-se sumariamente pela
52
idade admitida em juízo, sempre que essa idade
constituir-se só por si uma prova de liberdade
para ele , como no caso dos escravos importados
depois da lei de 7 de novembro [...]. Seria uma
perturbação para as propriedades agrícolas
intentar-se qualquer processo que tivesse por fim
reduzir a servidão aos seus elementos
estritamente legais. Hoje mesmo a prova seria
difícil, os responsáveis foram substituídos por
herdeiros que nada conhecem das transações do
tráfico. [...] Nem por ser impossível a medida
geral, deixa de ser a lei de 7 de novembro de
1831 a carta de liberdade de todos os que foram
importados como escravos depois dela, sempre
que esses, tendo a prova do seu direito, o
quiserem justificar perante os tribunais[...]. Sr.
Redator, em falta de justiça pública, haverá no
fórum do município de Valença quem tome a
peito a causa desses infelizes. Flamengo, 11 de
janeiro de 1880.” (o grifo é nosso)
Outro artigo que confirma haverem os abolicionistas adotado a estratégia da
politização da Lei Feijó como uma das principais bandeiras de sua campanha foi o de
José do Patrocínio, publicado na coluna Belezas do Segundo Reinado, do jornal Gazeta
da Tarde do dia 3 de setembro de 1885:
Estávamos quase dispensados de publicar a escritura
hipotecária dos bens do Sr. Ministro da Fazenda ao
Banco do Brasil. [...] Na certidão que abaixo
publicamos vêm os nomes de Joaquina (mina),
Maria (mina) e Sophia (benguela), a primeira e a
segunda com cinqüenta e dois anos de idade e a
terceira com quarenta e um anos de idade. Ora, pela
lei de 7 de novembro de 1831, os africanos dessa
data em diante importados no Brasil são livres, e de
1831 a 1885 são decorridos cinqüenta e quatro anos,
pelo que nós reclamamos de S. Exª explicações a
respeito[...]. Nós esperamos que o Sr. Ministro da
Fazenda faça espontaneamente entrar no gozo de sua
liberdade aquelas africanas e seus descendentes, se
os têm, para que não se saiba em todo o mundo que
os ministros do Imperador são os primeiros a violar
uma lei que teve origem em compromissos solenes,
tomados pela nação brasileira no ato do
reconhecimento da sua independência.
53
Outra tentativa de restauração da Lei Feijó como argumento contra a
resistência de políticos conservadores e proprietários de escravos a qualquer tipo de
mudança nas relações escravistas que envolvessem a liberdade dos cativos sem
indenização do seu valor encontra-se no parecer redigido por Rui Barbosa no ano de
1884 em defesa do Projeto Dantas, segundo o qual “os escravos com idade superior a
60 anos, completos antes ou depois da lei, deveriam adquirir a liberdade, não provendo
a indenização para os senhores cujos escravos fossem libertados por esta disposição
[...].
34
Rui Barbosa fez inicialmente uma análise da legislação existente sobre a
escravidão, procurando demonstrar que a lei de 7 de novembro de 1831, mesmo sendo
amplamente desrespeitada, continuava em vigor, e que, nesse sentido, a defesa da
legalidade do direito de propriedade dos senhores caía por terra, e sugeriu então a eles a
seguinte opção:
Não seria de bem avisada prudência abraçar, na
libertação dos sexagenários, uma transação
compensadora, que, quanto hoje caiba desafronte
a humanidade a dignidade nacional dos
escândalos vitoriosos do tráfico africano, antes a
lei e a fé solene dos tratados? (apud Mendonça,
1999, p. 172).
Mesmo com toda essa brilhante argumentação de Rui Barbosa, o Projeto
Dantas foi derrotado em plenário e substituído por outro, de autoria do Senador José
Antônio Saraiva, que garantia o direito de indenização ao proprietário do escravo
alforriado.
É nessa realidade ainda bastante fechada, onde os fazendeiros não admitiam
ceder mediante nenhum tipo de negociação o seu intocável direito de propriedade, que
desenvolveremos nosso próximo capítulo sobre como essa questão relativa à legalidade
da escravidão transcorreu no município de Valença, Estado do Rio de Janeiro, mediante
34
Sobre as discussões dos projetos que diziam respeito a alforria dos escravos sexagenários, realizadas no
parlamento, ver Mendonça (1999).
54
o estudo das ações empreendidas na justiça pelos escravos em busca do direito de
liberdade.
55
CAPÍTULO 3 - AS AÇÕES DE LIBERDADE NA CIDADE DE VALENÇA (1871
–1888)
3.1. Panorama sócio-econômico da cidade de Valença
Localizado na parte ocidental do Vale do Paraíba fluminense, o município de
Valença tinha seu território inicialmente habitado pelos índios Coroados, que foram
brutalmente exterminados quando, em 1789, chegaram os seus primeiros
conquistadores, sob a liderança de Inácio de Souza Werneck, que mais tarde se tornou
um dos grandes proprietários de terras da região. Em 1823, Valença foi elevada à
categoria de vila e, em 1857, adquiriu foros de cidade, chegando a cabeça de comarca
em 7 de novembro de 1872, e toda essa ascensão política deveu-se à sua posição de
destaque na produção de café na região do Vale do Paraíba. O antigo município de
Valença compreendia as freguesias de Nossa Senhora da Glória de Valença, Santo
Antônio do Rio Bonito, Santa Isabel do Rio Preto, Nossa Senhora da Piedade das
Ipiabas e Santa Teresa.
35
No que diz respeito à situação econômica da região no período em que
tramitaram os processos por nós selecionados, ou seja, entre as décadas de 1870 e 1880,
a propriedade rural passava por uma séria crise de produção em decorrência das
contradições do sistema, pois, durante o seu período de apogeu, entre as décadas de
1830 e 1860, as matas eram derrubadas para o plantio do café, sem nenhuma
preocupação com a conservação do solo para uso no futuro. Quando uma terra estava
esgotada, era abandonada pelo fazendeiro, incorporando-se então novas áreas virgens
para iniciar um outro processo de produção, porque o objetivo era o lucro imediato e o
mercado internacional não podia esperar. Aos poucos, as terras virgens foram ficando
escassas e seus preços elevados, o que gerou uma crise na lavoura cafeeira de todo o
Vale do Paraíba. No Congresso Agrícola de 1878
36
, uma das questões mais discutidas se
relacionava à introdução de novas tecnologias que impedissem o esgotamento das
terras, acenando-se para que a classe investisse em projetos de melhor aproveitamento
35
Sobre o nascimento da cidade, ver Damasceno (1925) e Iório (1953).
36
Sobre o Congresso Agrícola de 1878, ver EISENBERG, Peter L. A mentalidade dos fazendeiros no
Congresso Agrícola de 1878, in AMARAL, LAPA, J. R. (org). Modos de produção e realidade brasileira.
Petrópolis, Vozes, 1980.
56
do solo. Mas não podemos esquecer que a adoção de hábitos modernos implicava em
grandes investimentos, que os cafeicultores fluminenses já não tinham mais recursos
para aplicar, pelo fato de muitos estarem endividados em virtude de haverem adquirido
empréstimos junto aos bancos e aos comissários (MORAES, 1977) para aquisição de
terras e escravos, mas como, a partir de então, as safras adquiridas não mais
correspondiam aos investimentos, a crise se aprofundava.
Sendo assim, podemos relacionar o extremado apego dos fazendeiros dessa
região à manutenção do trabalho escravo, pois o cativo representava o seu único meio
de negociação nesse período, tendo em vista que as fazendas já estavam quase todas
hipotecadas aos credores e as terras exauridas não atraíam imigrantes, que se
encaminhavam para as novas áreas do oeste paulista (Machado, 1983, p. 241).
Os fazendeiros do Vale do Paraíba reagiam a uma emancipação imediata,
buscando de todas as formas adiar uma solução definitiva para o escravismo.
Criticavam o abolicionismo, pois, para eles, os escravos não estavam preparados para
sobreviver sozinhos e independentes, sem a proteção do seu senhor. Na verdade,
queriam os cativos presos a eles para evitar o declínio definitivo da cafeicultura do Rio
de Janeiro. Stein descreveu uma reunião dos fazendeiros de Vassouras, realizada no dia
20 de março de 1888, na qual se pode verificar a sua preocupação com o desenrolar dos
acontecimentos, com as notícias de fugas e revoltas de escravos e a com a atuação dos
abolicionistas. Alguns, mais lúcidos, pensavam em soluções alternativas, como atrair
mão-de-obra livre ou manter o antigo escravo ligado à propriedade, na condição de
meeiro. A grande maioria, no entanto, ainda acalentava esperanças de manter o regime
escravista, buscando preservar obstinadamente a força de trabalho escravo para as suas
lavouras decadentes:
Nos minutos finais da reunião, os fazendeiros
concordaram em resumir sua posição diante da
abolição iminente. Como um último testamento
na véspera da emancipação oficialmente
decretada, a reunião testemunhou o temor e o
descontentamento, o sentimento de injustiça
pessoal e a esperança infundada de que, de
alguma maneira, uma grande revolução social
57
poderia ocorrer sem perda financeira para
aqueles que mais haviam lucrado e agora
estavam prestes a perder, de maneira
irrevogável, o que os fazendeiros de Vassouras e
seus simpatizantes compartilhavam: ‘Embora os
acontecimentos recentes tenham produzido um
certo descontentamento e provocado apreensões,
justificadas naturalmente pelas injustiças de que
a classe fazendeira tem sido vitima, os
fazendeiros de Vassouras ainda confiam na
solicitude e no patriotismo das autoridades
públicas, confiantes de que a substituição do
trabalho escravo, que é sinceramente desejada
por todos, virá com a devida cautela e
acompanhada por medidas que a prudência mais
natural e o exemplo de outras noções cujo
trabalho, como o nosso consiste de escravos,
recomendam. [...] Pelo benefício das pessoas
que não participaram dessa reunião, registre-se
que [...] os fazendeiros de Vassouras não são
contra a libertação da classe escrava, mas
desejam que tal libertação venha sem
perturbação e conflito, sem abalar a riqueza do
povo, sem perigo para os nossos concidadãos,
por meios pacíficos e ordeiros, como todos os
brasileiros desejam (Stein, 1990, p. 295-299).
Diante desse quadro, que caracterizava toda a região do Vale do Paraíba,
procuramos entender como ficou a relação senhor/escravo, após alguns cativos do
município de Valença terem tomado a iniciativa de buscar a via judiciária como forma
de romper com as desumanas condições de trabalho a que eram submetidos. Porque,
mesmo com um movimento de emancipação escrava ocorrendo nas principais cidades
do país nesse período, Valença, tal qual a sua vizinha Vassouras, sempre se mostrou
mais resistente a novas idéias. Nada melhor para evidenciar isto do que o artigo de
Joaquim Nabuco, do ano de 1880, comentado por nós anteriormente, traduzindo a
indignação do autor com o desrespeito e a indiferença dos fazendeiros valencianos em
relação às leis, quando se anunciava em edital público a venda de sessenta africanos
37
.
37
ver o artigo na íntegra às fls. 51.
58
3.2 Escravos e curadores na prática judiciária
Pelo fato de que as ações de liberdade, a partir do ano de 1871, serem de rito
sumário, não encontramos nesses processos nenhum registro da fala dos escravos. Sendo
assim, somente poderemos conduzir essa pesquisa através da atuação dos operadores do
direito – juízes e advogados e, dentre estes, especialmente aqueles que se tornavam
curadores, ou seja, representantes legais dos cativos junto à justiça.
Segundo Bulhões Carvalho, o direito português e, por extensão, o brasileiro,
teria tomado do direito romano o conceito de curador, pois na Constituição de
Constantino ter-se-ia estabelecido que todos os miseráveis poderiam requerer a nomeação
de um curador para representá-los em questões jurídicas que envolvessem seus interesses.
No Brasil, a questão foi definida pelo Decreto nº 7, de 25 de janeiro de 1843, segundo o
qual seriam considerados miseráveis os pobres, os cativos, os presos, os loucos e os
religiosos mendicantes. Para completar esse dispositivo, o Decreto nº 5.135, de 13 de
novembro de 1872, que veio regulamentar a Lei do Ventre Livre, não permitia ao
advogado nomeado curador de escravo recusar o cargo sem motivo legítimo ou
justificado (GRINBERG, 2002).
Na realidade, esses dados nos previnem contra interpretações precipitadas de
que todos os curadores eram simpáticos à causa da liberdade. Muitas das vezes o
advogado estava ali apenas atendendo a solicitação de seu ofício, pela imposição de um
conjunto de normas e obrigações, e não por uma atitude voluntária. Era comum encontrar
advogados que atuavam defendendo tanto senhores como escravos, sendo pouco provável
que o fizessem por posicionamento ideológico, fosse contra ou a favor da causa da
liberdade. Para ilustrar esse fato, transcrevemos o juramento de um curador:
Aos trinta e um de agosto de mil oitocentos e
oitenta e cinco, nesta cidade de Valença, em casa
da residência do juiz municipal Dr. José Felipe
dos Santos, aí presente o doutor Carlos Augusto
d’Oliveira Figueiredo, pelo juiz lhe foi deferido
seu juramento dos Santos Evangelhos em um
59
livro dele, enquanto pôs sua mão direita,
encarregando-lhe de bem e fielmente servir de
curador da liberdade de Colomba, defendendo
com zelo o interesse de sua curatelada.
38
Sendo assim, optamos por selecionar os recursos jurídicos utilizados pelos
principais curadores atuantes nos processos de liberdade em Valença, combinados com
a realidade política do período que ocorreram as ações, acreditando ser esta uma boa
pista para identificarmos de que maneira eles se comportavam na defesa de seus
curatelados.
Para desenvolver essa investigação, fizemos uma seleção de sessenta e cinco
ações cíveis de liberdade do período de 1873 a 1888 e, a partir delas, procuramos traçar
um quadro com dados estatísticos que nos possibilitasse definir preliminarmente
algumas características gerais e, em seguida, verificar quais as distinções específicas
entre as atuações dos advogados nessas ações.
Inicialmente encontramos, na totalidade dos processos, vinte e três defensores,
entre advogados e solicitadores, atuando nas ações de liberdade. Mas, na verdade,
somente quatro se destacaram por suas reiterada presença nos processos, porque os
outros foram representantes em apenas um ou dois atos jurídicos (ver quadro na página
87).
Entre esses defensores mais atuantes, encontramos três advogados (bacharéis
em direito) e um solicitador, ou seja, pessoa sem formação em direito, mas com
permissão oficial da Justiça para exercer a profissão, por comprovar verdadeiro domínio
do saber jurídico. Essa prática era comum no século XIX, em especial nas zonas rurais,
que careciam de pessoas habilitadas.
O advogado mais antigo em atividade nesse período por nós estudado, o Dr.
Carlos Augusto de Oliveira Figueiredo, representou senhores em quinze ações e
escravos em seis. Nascido em 4 de novembro de 1837, obteve o grau de bacharel em
38
Processo: AMJUS, processo, Colomba, cx. nº1733, reg. nº 1683, ano de 1885.
60
direito pela Faculdade de São Paulo em 1858, na mesma turma do conselheiro Lafayette
e do Visconde de Ouro Preto, duas grandes expressões da política nacional. No final da
década de 1860, instalou banca de advogado em Valença, onde atuou até 1887.
Dedicou-se também à política, na condição de membro do partido conservador, tendo
exercido muita influência nos destinos daquela cidade. Após a proclamação da
República, ocupou os cargos de deputado, senador e ministro do Supremo Tribunal
federal. Faleceu em 26 de outubro de 1912.
O solicitador, que era o major João Rufino Furtado de Mendonça,
contemporâneo do Dr. Oliveira Figueiredo, atuou nas ações de liberdade de 1873 a
1888. Teve participação em vinte e três processos, sendo que em dezessete representou
escravos, e em seis representou senhores.
O terceiro na lista dos representantes mais atuantes nos processos de liberdade,
o Dr. João Francisco Barcellos, era de uma geração mais jovem. Nascido em Valença
no ano de 1861, bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo em 1883,
período em que esta instituição de ensino era palco de uma grande campanha
abolicionista desenvolvida pelo seu corpo discente. Advogou na sua terra natal de 1884
a 1890 e dedicou-se também à política, tendo sido deputado federal e fundador do
Partido Republicano na cidade de Valença. Posteriormente abandonaria a política,
voltando à advocacia até a data do seu falecimento, ocorrido na própria tribuna do
Tribunal da Relação, em 25 de maio de 1928.
A escolha do Dr. Lúcio Eugênio de Menezes e Vasconcelos Drummond
Furtado de Mendonça não se deu pelo critério da quantidade de representações
processuais, porque, na realidade, conforme o quadro de fls. 87, ele não teve uma
atuação efetiva no exercício da advocacia em Valença, mas pelo fato de que o início de
sua campanha republicana na cidade coincidiu com o aparecimento das ações de
liberdade que usavam recursos voltados para a ilegalidade de escravidão, marcando um
novo momento da arena jurídica e política valenciana. Assim, mesmo tendo se dedicado
quase que exclusivamente à formação de novos quadros para o movimento republicano
durante a sua permanência em Valença, Lúcio de Mendonça foi, nesse período, indicado
61
para curador em algumas ações de liberdade que alegavam cativeiro ilegal, não apenas
por sua influência política, mas também porque, desde que conhecera Luiz Gama em
um congresso do Partido Republicano Paulista, na década de 1870, passara a ter uma
certa simpatia pelas idéias de liberdade para o elemento servil.
39
Lúcio de Mendonça nasceu no município de Piraí, província do Rio de Janeiro,
em 10 de março de 1854. Recebeu o grau de bacharel pela Faculdade de Direito de São
Paulo em 9 de novembro de 1877 e, nesse mesmo ano, foi nomeado promotor público
de Itaboraí. Contudo, exerceu o cargo durante um curto período, pois logo se mudou
para Sapucaí, aí permanecendo até 1885, ano em que passou a residir em Valença, onde
instalou banca de advocacia e fundou o Clube Republicano da cidade, a exemplo do que
fizera em Sapucaí e outros locais. Após a abolição da escravatura, transferiu-se para a
Corte e, mais tarde, com a proclamação da República, chegou a ocupar vários cargos da
administração no país. Literato de grande valor, foi um dos membros fundadores da
Academia Brasileira de Letras. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 23 de novembro
de 1909.
Após esse breve levantamento biográfico, dividimos em dois grupos a atuação
desses operadores do direito nos processos de liberdade. O primeiro, formado pelo
advogado Carlos Augusto de Oliveira Figueiredo, o solicitador João Rufino Furtado de
Mendonça, o juiz de direito Raimundo Furtado de Albuquerque Cavalcanti, o juiz de
órfãos João Batista de Araújo Leite e o juiz municipal José Felipe dos Santos, destacou-
se no período de 1873 a 1883; o segundo, integrado pelos advogados João Francisco
Barcelos e Lúcio de Mendonça e pelos juízes Antônio Gonçalves de Carvalho e Manuel
Ramos Moncorvão, revelou-se entre os anos de 1884 a 1888.
40
O primeiro desses grupos servia-se de um recurso encontrado na Lei nº 2.040,
de 28 de setembro de 1871, conhecida popularmente como Lei do Ventre Livre, que
concedia a liberdade aos filhos de escravas nascidos no Império a partir da data de sua
39
Sobre Lúcio de Mendonça, ver Loureiro Lago. O Supremo Tribunal de Justiça: dados biográficos, 1940; e
Elciene Azevedo. Orfeu da Carapinha, 1999,pp.144-145.
40
Sobre a biografia desses advogados, ver Iório (1933,cap. II). Infelizmente, não encontramos dados referentes
aos magistrados.
62
promulgação. Sendo a primeira lei positiva a tratar da alforria de escravos, não se
limitava apenas aos direitos das crianças, mas contemplava também os adultos,
reconhecendo o seu direito de formar um pecúlio e utilizá-lo como indenização para
adquirir sua alforria. Esse expediente, o mais acionado em oitenta por cento das ações
de liberdade do município estudado e o único a ser considerado pelo grupo em questão,
foi um recurso incentivado pelo governo, na medida em que se inseria em um projeto de
emancipação lenta, gradual e ordeira, sem grandes prejuízos para os fazendeiros, onde a
propriedade era respeitada e o máximo que poderia ocorrer seria um conflito em torno
do justo valor da indenização.
Nesse período, entretanto, já existia nas grandes capitais brasileiras um
movimento legalista de combate à escravidão que atuava na arena judiciária,
apresentando novas interpretações sobre as leis de 28 de setembro de 1871 e 7 de
novembro de 1831, que tratavam da alforria dos escravos. Seus representantes, na
verdade, formulavam elaboradas estratégias jurídicas para favorecer os projetos de
liberdade dos cativos, a exemplo da militância dos advogados Luiz Gama e Antônio
Bento, em São Paulo, e do magistrado Macedo Soares, no Rio de Janeiro, estudados no
capítulo anterior.
Os recursos explorados pelos integrantes desse movimento tinham como
fundamento a contestação da escravidão ilegal, buscando, nesses casos, a alforria para o
escravo sem a obrigação de indenização ao senhor. No que se refere à lei de 1871, era
apontada a ilegalidade de domínio, por força do art. 4º, § 9°, e do art. 8º, § 2°, que
negavam a revogação da alforria condicionada e também cassavam os direitos do
proprietário quando da ausência de matrícula do escravo dentro do prazo determinado.
Mas o que mais provocou controvérsia foi a recuperação da lei de 7 de novembro de
1831, considerada por muitos como revogada pelo desuso. Essa lei, que no seu art. 1º
declarava livres os africanos importados após a data da sua promulgação, foi
aproveitada pelos escravos, curadores e magistrados após a verificação da nacionalidade
e idade do cativo, eventualmente registradas no livro de matrícula geral por aqueles
senhores que não acreditavam na sua vigência. Outro ponto recuperado dessa mesma lei
foi o que estabelecia o art. 10 do decreto de 12 de abril de 1832, que regulamentou a sua
63
execução, ou seja, a garantia dada ao escravo africano de requerer em juízo a sua
liberdade, quando houvesse presunção de ser livre. Em geral esses procedimentos
causavam preocupação aos senhores e parlamentares escravistas, no sentido de que a
concessão de uma desapropriação sem ressarcimento poderia colocar em risco o
princípio de legalidade da escravidão. A aplicação dessas questões foi o que marcou a
experiência do segundo grupo por nós classificado.
Para ilustrar a atuação dos curadores pertencentes ao primeiro grupo,
selecionamos inicialmente um conjunto de processos referentes ao período de 1873 a
1883. Num deles, datado de 6 de junho de 1873, Agostinho de Nação
41
. e Joaquim de
Nação ofereceram em juízo um pecúlio de um conto de réis para a compra de sua
liberdade, com base do que constava avaliados no autos de inventário de sua falecida
senhora. Em seguida, o juiz de órfãos, Dr. João Batista de Araújo Leite, indicou para
curador o major João Rufino Furtado de Mendonça, que prestou juramento e, logo após,
solicitou ao juiz que juntasse certidão de avaliação dos libertandos, presente nos autos
de inventário. O magistrado acatou o pedido e convocou os herdeiros da antiga
proprietária dos escravos. Através de seu representante, a parte contrária solicitou nova
avaliação dos cativos, que foi autorizada, mas no final o juiz deu a sentença
confirmando a oferta inicial. Na realidade, o que percebemos nesses autos é o curador
procedendo de uma maneira bem tradicional em relação aos recursos a que o escravo
tinha direito para pleitear sua alforria, ou seja, limitando-se aos termos da lei e
respeitando o direito de propriedade. Porque o processo oferecia indícios que permitiam
a aplicação de um outro tipo de recurso, a partir das informações sobre a nacionalidade
e idade dos escravos, contidas na certidão de avaliação e que caracterizavam uma
escravidão ilegal, com base na lei de 7 de novembro de 1831.
Certifico que, revendo os autos de inventário a
que se refere a petição supra (...), digo que o
escravo Joaquim Angola, com idade de quarenta
e nove anos, foi avaliado na quantia de
quatrocentos mil réis, e que o escravo Agostinho
Angola, idade quarenta anos, foi avaliado na
quantia de seiscentos mil réis (Agostinho de
Nação e outro, 1873).
41
AMJUS, processo, Agostinho de nação e outro, cx. nº1651, reg. nº 2349, ano de 1873.
64
Outro processo em que o major João Rufino Furtado de Mendonça funcionou
como curador, já em agosto de 1883, foi o da escrava Josefina
42
“[...] viúva de mais de
50 anos, escrava de Dona Maria José do Carmo Moraes, que possui a quantia de 400 §
000. [...] quer ser declarada livre, nos termos da Lei n° 2.040, de 28 de setembro de
1871, [...].” O juiz municipal, Dr. José Felipe dos Santos, nomeou o curador e em
seguida juntou a petição da proprietária, que declarava aceitar a quantia oferecida pela
suplicante. Como não havia divergência entre as partes, mandou passar carta de
liberdade para a cativa, encerrando o processo.
Mas uma vez observamos que o curador limitou-se apenas a cumprir o papel
que lhe fora designado, procurando ater-se apenas ao pedido inicial, reconhecendo,
nesse sentido, que a única maneira de um escravo alcançar a alforria seria mediante a
indenização do senhor. Porque, se o advogado tivesse considerado a lei de 7 de
novembro de 1831 como válida para o cativo apoiar suas reivindicações, teria
suspeitado da legalidade da escravização de Josefina, com base no decreto de 12 de
abril de 1832, que regulamentara a referida lei, e que garantia ao cativo, quando
houvesse presunção de ser livre, requerer a qualquer juiz investigações a respeito. Teria
então solicitado uma certidão de matrícula da suplicante, a fim de averiguar se ali
constava sua nacionalidade, elemento importante de prova. Segundo o raciocínio de
Luiz Gama e outros militantes que combatiam a ilegalidade da propriedade escrava
nesse período, um cativo com 50 anos de idade, sendo africano, deveria ter sido
importado com a idade mínima de dez anos, visto que os contrabandistas só faziam
comércio com mercadoria apta para o trabalho. Diante dos fatos, Josefina deveria estar
no Brasil há quarenta anos, tendo entrado a partir de 1843, quando o tráfico já era
considerado ilegal pela lei de 1831.
Ainda para ilustrar a atuação dos curadores do primeiro grupo, que conduziam
as ações de liberdade de uma maneira sempre comportada, destacamos o processo de
João , escravo do interdito Manuel Francisco de Azevedo, tramitado em 1882, onde o
suplicante ofereceu a quantia de trezentos mil réis para a compra de sua liberdade,
42
AMJUS, processo, Josefina, cx. nº1705, reg. nº2956, ano 1883.
65
alegando ser velho e amputado de uma perna. Uma atitude que caracterizava um
exemplar respeito ao direito de propriedade, pelo fato de um cativo, tendo se tornado
velho e incapaz após vários anos de trabalho compulsório, procurar indenizar o seu
senhor para ter acesso à liberdade, com base na lei de 28 de setembro de 1871. O
advogado indicado pelo juiz municipal José Felipe dos Santos para representar o cativo
foi o Dr. Carlos Augusto de Oliveira Figueiredo, o mais conceituado bacharel da cidade
naquele período, que demonstrou nesse processo ser também adepto da tradicional
jurisprudência sobre a alforria de escravos. Inicialmente solicitou a juntada aos autos de
uma certidão com o valor do pecúlio e a matricula do cativo:
O escravo João, pertencente ao interdito Manuel
Francisco de Azevedo, requer a V. Sª que o
escrivão deste juízo, revendo os autos da praça de
escravos pertencentes a seu senhor, passe por
certidão:
1º - Quanto tem o suplicante de pecúlio recolhido
na coletoria e em que data tem lugar o
recolhimento;
2º - Qual o número de matrícula do suplicante e a
data da mesma.
P. a V. Sª deferimento. Valença, 5 de dezembro
de 1882”.
43
Em seguida, o juiz determinou que fosse atendido o pedido, e o escrivão
Fernando Rodrigues Silva, cumpriu a primeira parte da solicitação, esquecendo-se de se
manifestar sobre a matrícula do cativo: “[...] certifico que o pecúlio do suplicante
recolhido na coletoria importa em quatrocentos e quarenta mil réis, e que esse
recolhimento teve lugar em três de novembro de mil oitocentos e oitenta e um [...].”
Insatisfeito com a oferta, o advogado do proprietário solicitou nova avaliação do cativo,
levando o juiz a convocar, para arbitrar o valor, três avaliadores, que vieram concordar
com a oferta inicial. Após o arbitramento, o Dr. Oliveira Figueiredo, curador do
escravo, reiterou o pedido de certidão de matrícula, desta vez atendido: “certifico que,
revendo os autos de prestação de contas de João Batista de Azevedo, curador do
43
AMJUS, processo João, cx. nº 1.591, reg. nº 1.5081, ano 1882.
66
interdito Manuel Francisco de Azevedo, deles consta a seguinte matrícula: [..] Número
de ordem da matrícula: vinte mil trezentos e quarenta e um; João, cor preta, idade:
quarenta anos; estado: solteiro; naturalidade: africana; filiação desconhecida;
aptidão para o trabalho: boa; profissão: tropeiro [...].” (o grifo é nosso) Finalmente, o
juiz confirmou na sentença o valor arbitrado.
Na realidade, o que percebemos nessa parte final da ação foi um curador
preocupado principalmente em cumprir as formalidades processuais que a lei de 1871
definia e, no que dizia respeito aos direitos do curatelado, garantir apenas o valor
ofertado, sem considerar outras formas de recursos que protegeriam por completo o seu
pecúlio, em face das valiosas informações surgidas no final do processo, no tocante à
idade e naturalidade do cativo, declaradas inadvertidamente pelo senhor na certidão de
matrícula, e que demonstravam a ilegalidade da escravidão, com base na lei de 7 de
novembro de 1831.
Em relação ao perfil da atuação dos curadores, o que, de maneira geral,
notamos no período estudado, ou seja, de 1873 a 1883, foi um procedimento que se
limitava às discussões jurídicas sobre a lei de 28 de setembro de 1871, não querendo
desrespeitar a propriedade nem perturbar a relação senhor/escravo. Comedidos,
conservadores e moderados, faziam da justa indenização o único meio de obtenção da
liberdade legal.
No que diz respeito ao segundo grupo, que corresponde à atuação dos
operadores do direito no período de 1884 a 1888, encontramos ações cíveis de liberdade
que apontavam para uma mudança de comportamento, revelando que as idéias do
movimento de combate à escravidão por via judicial se espraiavam entre os novos
advogados e juízes da cidade de Valença. Nesse sentido, vamos encontrar em alguns
procedimentos de defesa dos cativos uma valorização bem acentuada de informações
sobre a biografia dos escravos, informações estas que serviram para sustentar recursos
de ilegalidade de escravidão sem indenização do valor, diferindo, assim, do
comportamento dos curadores anteriormente estudados, que tinham apenas a
preocupação de saber da existência do pecúlio oferecido.
67
O primeiro processo que identificamos foi um pedido de liberdade por ausência
de matrícula, datado de 28 de setembro de 1884, tendo como curador dos cativos o
jovem bacharel João Francisco Barcelos, recentemente formado pela Faculdade de
Direito de São Paulo, um advogado que atuou exclusivamente nas representações de
escravos (dados apresentados no quadro, pág. 87), além de ser o que mais participou dos
recursos com características polêmicas e ousadas, em uma cidade com uma elite
identificada com os modelos tradicionais de acesso à alforria pelo escravo.
Diz Reginaldo, escravo de Francisco José dos
Santos, que, não tendo sido matriculado na forma
da lei de 28 de setembro de 1871, nem na forma de
lei alguma, e achando-se sujeito ao cativeiro [...],
vem requerer a V. Sª que seja declarado livre.
44
Em seguida, o curador Barcelos requereu ao juiz que intimasse o pretenso
senhor do libertando a exibir a matrícula de registro. Em resposta à solicitação do juiz, o
senhor alegou não ter como exibi-la, pois Reginaldo recebera a liberdade condicional
antes da vigência da lei de 28 de setembro de 1871, não sendo mais escravo para
receber matrícula, além do fato de reconhecer sua paternidade.
Diz Francisco José dos Santos que, tendo sido
intimado para exibir matrícula do escravo
Reginaldo, vem declarar que o crioulo
Reginaldo não é cativo de propriedade do
suplicado, porque o suplicado é apenas o seu
pai, o seu protetor desde que veio à luz do dia.
Esse crioulo é filho de uma ex-escrava do
suplicado, de nome Brazilina, e que, sendo
batizado como cativo, o suplicado passou-lhe
carta de liberdade, com a condição de, depois de
criado, acompanhá-lo, e assim tem acontecido
(Reginaldo, 1884, p.6).
44
AMJUS, processo, Reginaldo, cx. nº 1.621, reg. nº 2.069, ano 1884, p.2.
68
Diante dessa confissão, o Dr. Barcelos fez um arrazoado de duas laudas, onde
defendia o direito de Reginaldo à liberdade incondicional por razões jurídicas e morais,
fundamentando sua argumentação em pareceres de grandes doutrinadores, como
Perdigão Malheiros e Cândido Mendes, além de buscar apoio na legislação romana:
A petição retroapresentada em juízo, sem
ressalva, importa confissão e, como tal, faz prova
plena contra Santos. Admitidas, pois, como exatas
as alegações, resulta para Reginaldo direito
perfeito à liberdade completa e incondicional,
porquanto não são admissíveis cláusulas adjectas
à liberdade, como essa de o acompanhar
sempre, visto como tal limitação ao exercício
pleno da liberdade, importa, de fato, um
subterfúgio sábil, pelo qual, furtando-se ao
pagamento [...] ao Estado por essa anômala
propriedade, mantém, todavia, o patrono em seu
poder o statu-liber, cujos serviços desfruta
indefinidamente. Eliminada, por conseguinte, tal
cláusula, deve Reginaldo entrar no gozo pleno de
sua liberdade. Mas, ainda mesmo que se quisesse
admitir como legal e válida tal condição,
Reginaldo tem a seu favor uma razão não menos
jurídica e mais moral para ser declarado
imediatamente livre. Santos reconhece-o como
seu filho [...], porque foi sempre repugnante ao
direito, como uma monstruosidade, conciliar no
mesmo indivíduo o poder dominical com a
paternidade do escravo (Reginaldo, 1884, p.7).
Contudo, não obstante todo o embasamento jurídico do curador sobre o direito
do escravo à liberdade e o reconhecimento da paternidade pelo senhor, o juiz de direito
Raimundo Furtado Albuquerque Cavalcanti indeferiu o pedido, com base
exclusivamente no texto da lei de 28 de setembro de 1871, que reconhecia as cartas de
liberdade condicionais antes de sua promulgação como prova de manutenção do direito
de propriedade, deixando de considerar doutrinas mais liberais da época, que
condenavam esse ato jurídico, que eximia das responsabilidades e encargos sociais
aqueles senhores exploradores de mão-de-obra “parcialmente” livre.
69
O que percebemos aqui, na verdade, é um confronto de duas linhas de
pensamento; por um lado, um jovem advogado afinado com as novas interpretações
sobre a alforria do escravo, e do outro um velho magistrado preso a uma tradição que
evitava ferir o direito de propriedade, não reconhecendo, portanto, o acesso à liberdade
sem a indenização do valor.
A partir do ano de 1886, observamos que a comunidade judiciária favorável às
novas interpretações sobre o direito de liberdade havia se ampliado na cidade de
Valença, passando a contar com o apoio dos novos juízes que apareciam atuando nas
ações nesse período, um municipal e o outro de direito, respectivamente Manuel Ramos
Moncorvão e Antônio Gonçalves de Carvalho, que elegiam sempre o Dr. Barcelos ou o
Dr. Lúcio de Mendonça para curadores nos processos de liberdade que questionavam o
direito de propriedade.
Na ação coletiva de liberdade movida por Custódio
45
, Adão, Peregrino, Basílio,
Felício, Fausto, Rita, Elisa, Verônica e Delfina, nesse ano de 1886, vieram estes
denunciar cativeiro injusto, pelo fato de que sua senhora lhes havia concedido carta de
alforria, em cujo gozo entrariam após o falecimento de sua benfeitora. Ocorre, no
entanto, que, falecida esta, foram transferidos os suplicantes para o poder do seu filho,
que passou a retê-los em injusto cativeiro, segundo provas documentais apresentadas,
com a ajuda de uma testemunha, que fez publicidade do ato, que até então o herdeiro
ocultava dos próprios beneficiados.
Com a defesa inicial dos cativos feita pelo Dr. Barcelos em duas laudas,
demonstrando verdadeiro domínio sobre a legislação e as novas doutrinas e
jurisprudência relativas à alforria de escravos, conseguimos melhor entender as razões
do pedido. A ex-proprietária dos escravos lhes havia outorgado carta de liberdade em
declaração assinada por testemunhas, porém, tendo mais tarde se arrependido do seu
ato, revogou-o em testamento: “Declaro mais que, por este meu testamento e
disposição de última vontade, revogo, expressa e terminantemente, uma carta de
liberdade com que havia tido a intenção de, por meu falecimento, libertar e deixar
livres todos os meus escravos [...].” Para o curador, essa atitude foi ilegal, com base na
45
. AMJUS, Processo, Custódio e outros cx. n° 1.728, reg. n° 3.218, ano 1886.
70
Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, que tornou irrevogáveis as alforrias
condicionadas:
Que não grado o arrependimento da finada,
perdura legal e válido o primitivo título de
liberdade, por força [...] do art. 4º da L. de 28 de
setembro de 1871, e § 9º do mesmo artigo. Não
colhendo a declaração testamentária de estar
ainda em simples desejo [...], pois destes autos vê-
se que se tratava de uma resolução firme,
assegurada por documento, o qual teve a devida
publicidade por intermédio das diversas pessoas
que nele figuravam e em outros que a ele se
referiam. E para a hipótese basta esta publicidade,
não carecendo indagar se também os escravos,
assim favorecidos, conheciam a liberalidade que
lhes era feita, porquanto, não dependendo de seu
consentimento a eficácia do ato, esta, em todo
caso, seria garantida pela intervenção que, em
favor do liberto, prestaria qualquer pessoa do
povo ou o poder judicial. Que contra a pretensão
legal dos autores não se pode invocar a natureza
das doações causa mortis [...], porque a alforria
não é rigorosamente uma doação, como explica
Savigny [...] no seu Tratado do direito romano,
[...] e, conforme as fontes do nosso direito
positivo, o termo é igual a uma restituição
(Custódio e outros, 1886, p.20).
Nas razões finais do réu, o seu representante, o Dr. Oliveira Figueiredo,
advogado que mais defendeu a causa de proprietários no conjunto das ações analisadas
(ver quadro na pág. 87), inicia sua argumentação com a seguinte afirmação: “A questão
ventilada nestes autos tem duas faces: a jurídica e a abolicionista. Baseado pelo
primeiro aspecto, a solução não é duvidosa para o bom direito do réu; examinada pelo
prisma do segundo [...], é uma causa perdida para o senhor dos autores”(Custódio e
outros, 1886, p. 40).
Essa introdução teve o propósito de desqualificar o recurso apresentado pelo
Dr. Barcelos, em razão deste haver se utilizado de uma opinião sobre a irrevogabilidade
da liberdade condicionada desenvolvida pelo jurista romano Savigny e por Perdigão
71
Malheiro em seu livro A escravidão no Brasil, de 1867, sendo este um dos maiores
especialistas em matéria de escravidão nacional, de tendência moderada, mas muito
avançado para a cultura local. Some-se a isto o fato de estar o Dr. Barcelos apoiando a
ousada reivindicação de um grupo de nove escravos, a qual, se concretizada, por um
lado, extinguiria por completo todo um plantel herdado pelo suplicado, e por outro,
abalaria o direito supremo de propriedade. Ratificando mais à frente esse raciocínio, ele
afirmou claramente o seguinte: “A opinião colhida em Perdigão Malheiro, Escravidão
no Brasil, acha-se mais no espírito da propaganda do que irmanada pela consciência
jurídica”.
Avançando na defesa de seu cliente, o Dr. Oliveira Figueiredo demonstrou
nesse processo muito mais empenho, em comparação com a sua atuação anterior como
curador. Não tendo encontrado na legislação pátria nenhum apoio para sustentar sua
tese, que considerava um direito do senhor a revogação da alforria condicionada, foi
buscar tal respaldo nas lições dos doutrinadores romanos, contraditoriamente
abandonando o texto da lei nacional nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, que
anteriormente considerava como única lei positiva para assuntos referentes à alforria.
Sendo assim, destacamos uma citação do direito romano por ele utilizada: “[...] não
pode encontrar o ex-adverso outro texto que contrarie o apresentado aqui por nós: 1º
que a doação causa mortis é também um meio de manumissão; 2º que, quando a
liberdade é conferida por tal modo, torna-se revogável durante a vida do doador
[...]”(Custódio e outros, 1886, p.41).
Para concluir esse processo, o juiz de direito, Dr. Antônio Gonçalves de
Carvalho, proferiu uma sentença de vinte folhas que é, na verdade, um verdadeiro
manifesto à liberdade dos escravos, julgando procedente a ação e declarando livres os
seus autores. Sua posição, no que diz respeito à matéria discutida nos autos, conciliou
com os argumentos de defesa do Dr. Barcelos, declarando em várias partes de sua
sentença a seguinte frase: “Este juízo está em geral de acordo com a doutrina de
Perdigão Malheiro”.
72
A partir de uma crítica à desatualização da natureza da legislação romana
invocada pelo Dr. Oliveira Figueiredo, representante do réu, que considerava revogável
a doação causa mortis, o juiz Antônio Gonçalves de Carvalho sinalizou para um espírito
emancipacionista que rondava a cultura nacional:
Interessa ao Estado altamente a emancipação
geral dos escravos, por isto foi criado um
parágrafo (Lei nº 2.040, art. 3º), e por lei
posteriores [...], toda tendência dela é extinguir a
escravidão no mais breve prazo. Assim, mesmo
quando não estiver expressa nas nossas leis a
irrevogabilidade das alforrias, esta
irrevogabilidade seria conseqüência do novo
aspecto mais conformado à natureza humana, sob
o qual vai sendo considerado o escravo [...] Para
concluir, cita um princípio das Ordenações
Filipinas, segundo o qual em favor da liberdade,
muitas coisas são outorgadas contra as regras
gerais (Custódio e outros, 1886, pp. 48-61).
Na realidade, esse processo guarda uma certa singularidade, inicialmente pela
sua riqueza de informações, porque raramente vamos encontrar, após a lei de 28 de
setembro de 1871, que tornou as ações de liberdade estritamente sumárias, um processo
com 64 folhas, revelando um debate que estava sendo introduzido na arena forense de
Valença, um debate de interpretações sobre o direito de propriedade do senhor versus o
princípio de liberdade do escravo. Por outro lado, foi um marco da articulação de um
discreto movimento de denúncias de escravização ilegal na cidade, envolvendo
anônimos, advogados e magistrados. As divisões de tarefas entre eles são indicadores de
que começava a se delinear uma aliança que, pelo menos em relação às questões de
liberdade, renderia ainda alguns frutos. Enquanto um fazia a publicidade de uma
informação desconhecida, o outro procurava nomear aquele curador que considerava as
novas interpretações sobre os direitos dos escravos, para confirmá-las mais tarde na
sentença final, deferindo o pedido inicial de liberdade do cativo.
73
Assim, em outro processo desse mesmo ano de 1886, a escrava Margarida
46
ingressou com um pedido de liberdade, alegando estar em cativeiro injusto, devido ao
fato de não ter sido matriculada, conforme declaração oficial que juntou ao pedido. O
juiz municipal Ramos Mancorvo, após receber o pedido, nomeou como curador do
liberto o Dr. Lúcio de Mendonça, que instalara banca de advocacia na cidade nesse
período e já gozava de uma certa experiência política: “Nomeio depositário Antônio
José Cardoso, e para curador o Dr. Lúcio de Mendonça”. Para nós, a escolha não foi
casual, porque o juiz Mancorvo provavelmente acreditou que, pelas características do
processo, a suplicante precisava de um representante que considerasse esse tipo de
recurso, dando-lhe igual tratamento ao aplicado pelo Dr. Barcelos na ação anterior.
Logo em seguida à nomeação, o Dr. Lúcio de Mendonça solicitou ao coletor de rendas
do município de Vassouras, local onde a escrava vivia com seu senhor, confirmação da
certidão de ausência de matrícula, recebendo resposta que ratificava a informação
inicial. A certidão tinha o seguinte teor: “Certifico que, revendo os livros de matrículas
de escravos deste município, não encontrei a que se refere à escrava Margarida, em
nome de Manuel Inácio Martins Pamplona [..]. Vassouras, 10 de julho de
1886”(Margarida, 1886, p. 7).
Diante dessa informação, tudo levava a crer que mais uma vez se alcançaria o
objetivo desse segundo grupo de operadores do direito, ou seja, o de devolver a
liberdade àqueles homens e mulheres que viviam em cativeiro ilegal. Mas, para surpresa
deles, quando o senhor da escrava compareceu à audiência para se pronunciar sobre o
pedido de sua escrava, revelou o seguinte:
Declaro que em mil oitocentos e sessenta e três, mais ou
menos, concedi liberdade à minha escrava de nome
Margarida, com a condição de prestar-me serviço,
acompanhando-me enquanto estiver vivo. A carta de
liberdade acha-se registrada em Vassouras. E que, tendo
sido a mesma escrava libertada antes da lei, não foi
matriculada. Disse mais que, depois de libertada
condicionalmente, a dita escrava lhe tem acompanhado
até o dia vinte de maio do corrente ano, dia em que saiu
de casa com licença, [...] finalmente juntado a original
da carta de liberdade aos autos (Margarida, 1886, p.12).
46
AMJUS, processo, Margarida, cx.. nº 1.570, reg. nº 14.875, ano 1886.
74
Infelizmente, esses novos dados apresentados impediram que o Dr. Lúcio de
Mendonça levantasse qualquer outro argumento em favor da escrava, e tamm
obrigaram o juiz a indeferir o pedido, com a seguinte sentença:
Visto que a citada Lei nº 2.040 não alterou
quanto às alforrias condicionadas anteriormente,
fossem quais fossem as condições das mesmas
[...], visto que, sendo já liberta a suposta
libertanda ao tempo da dita lei, não estava sujeita
à matricula por esta lei criada e, portanto, nada
prova a seu favor a circunstância de não ter sido
matriculada. Julgo improcedente o presente
procedimento (Margarida, 1886, p. 18).
Finalmente, apesar de Margarida não ter alcançado o seu objetivo, esse
processo vem corroborar a nossa hipótese de que, nesse período, os operadores de
direito da cidade de Valença já estavam dando uma assistência mais atenciosa às
denúncias de cativeiro ilegal, sendo, em alguns casos, até acatados os pedidos.
Margarida, provavelmente informada sobre esse comportamento, saiu de seu município
de origem para ingressar com uma ação na cidade vizinha, com a esperança de alcançar
a sua alforria com base na lei de 28 de setembro de 1871, que estabelecia a liberdade
para os cativos que não tivessem registro de matrícula. Semelhante procedimento foi
encontrado por Joseli Mendonça (1999, pp. 173-179) e Elciene Azevedo (2003, pp. 101-
105) em alguns escravos que fugiam do município de Campinas para ingressar com
ações de liberdade em São Paulo, devido à reconhecida militância de Luiz Gama na
defesa dos direitos dos escravos mantidos em cativeiro injusto.
A partir do processo de Manuel Africano
47
, o segundo grupo de operadores do
direito da cidade de Valença por nós classificado passa também a atuar em ações de
liberdade que apoiavam seus recursos na lei de 7 de novembro de 1831, sendo este
47
AMJUS, processo, Manuel Africano, cx. nº 1.664, reg. nº 2.456, ano 1887.
75
considerado o mais polêmico procedimento jurídico da história da legislação sobre a
alforria escrava, porque ameaçava a legalidade do sistema.
A lei de 7 de novembro de 1831, que no seu art. 1º declarava livres os africanos
importados após a sua promulgação, foi aproveitada por essa aliança que se construía
entre escravos, libertos, homens livres, advogados e magistrados, os quais adotavam, de
forma direta, estratégias jurídicas semelhantes àquelas formuladas na cidade de São
Paulo e na Corte por outros grupos que buscavam provar a entrada ilegal de africanos
no Brasil através do registro de matrículas de escravos, quando constava naquele
documento a idade e, eventualmente, a nacionalidade do cativo, informações que, após
um simples cálculo aritmético, poderiam demonstrar a sua condição servil irregular.
O fator diferenciador dessas ações de liberdade, que agora vamos comentar,
está em que os escravos de Valença utilizaram o novo registro de matrícula determinado
pela Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, em substituição às antigas matrículas
estabelecidas pela lei de 28 de setembro de 1871. Os principais artigos dessa lei eram os
seguintes:
Art. 1º. Proceder-se-á em todo o Império a nova
matrícula dos escravos, com declaração do nome,
nacionalidade, sexo, filiação, se for conhecida,
ocupação ou serviço em que for empregado, idade
e valor, calculado conforme a tabela do § 3º.
Art. 3º, § 10. São libertos os escravos de 60 anos
de idade, completos antes e depois da data em que
entre em execução essa lei, ficando, porém,
obrigados, a título de indenização pela alforria, a
prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de
três anos.
Art. 3º, § 11. Os que foram maiores de 60 anos e
menores de 65 anos, logo que completarem esta
idade não serão sujeitos aos aludidos serviços,
qualquer que seja o tempo que os tenham prestado
com relação ao prazo acima declarado (Góes,
1988, pp. 889- 893).
76
Na realidade, era muito difícil contestar a legalidade de um cativeiro com base
na lei de 7 de novembro de 1831, porque os senhores sempre procuraram burlar os
registros de matrícula que as leis estabeleciam. Em 1872, a idade segura para matricular
um africano era acima de 51 anos e, segundo Conrad (1972, p. 261), a fraude ficou
evidenciada em um recenseamento feito no mesmo ano, em que as províncias com
maior concentração de escravos, a saber, Rio de Janeiro e Minas Gerais, tinham um
número desproporcional de escravos com idade superior a essa. Já em 1886, como a
preocupação imediata era evitar as conseqüências da lei de 1885 sobre a libertação dos
sexagenários, alguns africanos que, em 1872, receberam idade superior à real para
escaparem ao enquadramento na lei de 7 de novembro de 1831, foram dessa vez
matriculados com idade mais próxima à realidade. Por outro lado, aqueles que, também
em 1872, receberam uma idade que dava margem à suspeita de ilegalidade de
escravidão, já em 1886, ou seja, quatorze anos decorridos da última matrícula, conforme
determinava a lei, ficaram com idade abaixo de sessenta anos, o que protegia a
propriedade contra qualquer investida, sem a preocupação de se fazer nenhuma
adaptação. Na realidade, porém, as estratégias das fraudes nunca são perfeitas, muitas
vezes deixando brechas que são aproveitadas por aqueles prejudicados em conseqüência
de tais atitudes.
Diante dos fatos, para se aplicar esse recurso da lei de 7 de novembro de 1831,
era necessário preliminarmente investigar os livros de matrícula e então, de posse de
uma declaração, mover a ação na justiça. Assim procedeu Manuel Africano, com a
ajuda de um homem livre. Fez o seguinte requerimento à coletoria de rendas gerais de
Valença, repartição pública responsável pela guarda dos livros de matrícula de escravos
daquele município: “Diz Manuel Africano, escravo de Domingos Manuel da Fonseca,
que, desejando tratar de sua liberdade, primeiro que V. Sª lhe mande passar por
certidão o teor de sua matrícula” (Manuel Africano, 1887, p. 3). Em seguida, o
escrivão da coletoria expediu a seguinte declaração: “Certifico que, revendo o livro
primeiro da nova matrícula dos escravos desse município, nele consta a matrícula que
é pedida por certidão, e é do teor seguinte: ‘Data: dia trinta, mês de outubro, ano de
1886. Nome: Manuel, sexo masculino, cor preta, idade de cinqüenta e quatro anos,
filiação desconhecida, profissão roça [...]”(Manuel Africano, 1887, p.3).
77
Essa informação sobre a idade atual era o que faltava a Manuel para reclamar
sua liberdade porque, em relação à nacionalidade, não tinha dúvida, pelo fato de ser
conhecido como Manuel “Africano”, alcunha que provava sua origem, como teremos
oportunidade de comparar com os dois outros processos que vamos estudar mais à
frente, onde os cativos estrangeiros também recebem esse tratamento. O raciocínio aqui
aplicado foi aquele simples cálculo aritmético: se no ano de 1886, período da matrícula,
se completavam cinqüenta e cinco anos da primeira lei que proibia o tráfico, e constava
registrado na certidão de Manoel 54 anos de idade, era impossível haver ele entrado no
país com apenas um ano de idade, o que revelava então a fraude da matrícula, pois,
como já comentamos anteriormente, a idade mínima para os escravos exportados era
dez anos, pelo fato das viagens exigirem muita resistência física, tendo em vista a
distância entre os continentes, as condições insalubres dos navios e os maus tratos
recebidos dos traficantes. Provavelmente a idade real de Manuel Africano deveria estar
em torno de 64 anos. Ora, se os senhores donos de escravos com registro de idade em
torno de 50 a 55 anos em 1886 se sentiram protegidos contra as conseqüências da Lei
dos Sexagenários, esqueceram, por outro lado, as implicações da lei de 1831 - situação
que serviu de base para Manuel preparar o seu recurso inicial:
Diz Manuel Africano, escravo de Domingos
Manuel da Fonseca, que, pelo documento junto,
mostra matriculado com 54 anos de idade, e tendo a
lei de 7 de novembro de 1831 proibido o tráfico de
escravos africanos, por isso o suplicante tem o
direito de reclamar sua liberdade em virtude
daquela lei, e por essa razão requer a V. Sª se digne
nomear curador ao suplicante(Manuel Africano,
1887, p.2).
O juiz municipal Ramos Mancorvo, após receber o pedido, expediu o seguinte
ato: “Nomeio o Dr. Lúcio de Mendonça curador do suplicante para que, prestando o
devido juramento, defenda os direitos do mesmo. Valença, 7 de novembro de 1887”.
Podemos inferir que essa escolha não foi casual, pelo fato de entendermos que o recurso
apresentado pelo escravo precisava também de um advogado que considerasse essas
novas interpretações da lei de 1831.
78
Para surpresa do juiz, quando o Dr. Lúcio de Mendonça foi intimado,
respondeu ao escrivão que não aceitaria o cargo de curador para o qual fora nomeado.
Diante da resposta, o magistrado reiterou o pedido e, talvez para cobrar uma posição
mais explícita do Dr. Mendonça, que, enquanto republicano, precisava ser moderado no
que dizia respeito à emancipação dos escravos para não perder o apoio dos fazendeiros à
sua causa, lembrou o seguinte, em tom provocativo: “Não é permitido ao advogado
nomeado curador do escravo recusar-se ao cargo sem motivo legitimo ou justificado,
sob pena de incorrer na execução do art. 86 [...] do Decreto nº 5.135, de 13 de
novembro de 1871 [...]” (Manuel Africano, 1887, p. 4).
Em seguida, o advogado Lúcio de Mendonça esclareceu o fato, dando uma
declaração de simpatizante à causa da emancipação escrava no país:
Tenho a declarar que, ao receber intimação de
despacho que o nomeava curador, disse ao fiel
de cartório que lhe veio mostrar os autos [...] que
não podia aceitá-la, por se considerar impedido
para o cargo pelas relações particulares que tem
com a pessoa contra a qual se há de propor essa
ação de liberdade. É prática neste fórum que
semelhante declaração, por parte do advogado,
se faça verbalmente ao escrivão, que em certidão
a refere. Assim, no caso de que se trata, a
omissão que o despacho de V. Sª nota é apenas
devida ao escrivão do feito ou ao fiel do seu
cartório.
Muito acima de qualquer sanção legal estão
para o requerente as suas próprias convicções
para o obrigarem a advogar a causa dos
escravos, como mais de uma vez tem feito e
continuará a fazer, sempre que não seja
impedido por causa legitima “(Manuel
Africano, 1887, p. 5). (o grifo é do advogado).
79
Diante dos fatos, o juiz se viu na obrigação de nomear um novo curador para o
cativo e, por coincidência ou não, recaiu a escolha sobre outro advogado que vinha
também demonstrando uma certa simpatia pelas novas interpretações a respeito da
emancipação escrava: “Nomeio, em substituição ao Dr. Lúcio, o Dr. João Barcelos
[...]”. Lamentavelmente, o processo não teve continuidade, mas os dados existentes
foram suficientes para percebemos que estava começando a ser tecida uma rede de
solidariedade aos cativos que aproveitavam as contradições cometidas pelos senhores
nos novos registros de matrícula para denunciar uma escravização injusta com base na
antiga lei de 7 de novembro de 1831, considerada por muitos, à época, já revogada ou
fora de uso.
Outro processo de denúncia de escravização ilegal com base na lei de 7 de
novembro de 1831, organizada por escravos africanos com o apoio de libertos, homens
livres e operadores do direito, é o de Cosme Africano
48
, que, provavelmente informado
sobre esses novos recursos de liberdade apresentados no fórum de Valença, solicitou
inicialmente uma declaração de matrícula a título de investigação junto à coletoria de
rendas municipal: “Cosme Africano, escravizado de João Maurício de Araújo Leite,
matriculado na coletoria desta cidade sob o nº 7.774, requer, a bem de sua liberdade,
que V. S.ª lhe mande dar certidão à sua matrícula”. Logo em seguida, o escrivão da
coletoria forneceu a seguinte certidão:
Certifico que, revendo o livro segundo da atual
matrícula de escravos deste município, nele, às
folhas sessenta e sete, consta a matrícula que me é
ordenada extrair por certidão: nome do senhor:
João Maurício de Araújo Leite; matrícula: sete
mil setecentos e setenta e quatro; data: dia vinte e
um de dezembro de 1886; número de matrícula
anterior: vinte cinco mil duzentos e setenta e três;
nome: Cosme; sexo: masculino; cor: preta; idade:
cinqüenta e três anos; estado: casado; filiação:
desconhecida; profissão: roça; valor da tabela:
quatrocentos mil réis. Observação: África, casado
com Maria. Averbações: nada costa. Nada mais se
continha no mencionado sobre o pedido por
certidão, além do que neste fielmente vem
transcrito. O referido é verdade do que dou fé, e
48
AMJUS, processo, Cosme, caixa.nº 1.771, reg. nº 3.784, ano de 1888.
80
no próprio livro me reporto. Coletoria de Valença,
12 de dezembro de 1887 (Cosme Africano, 1888,
p. 3). (grifo do original)
Diante dessa resposta, cresceu a esperança que tinha Cosme de alcançar o seu
objetivo, porque o seu senhor, além de declarar na nova matrícula uma idade que
favorecia o recurso pretendido, informou também a nacionalidade, garantindo por
completo as razões do direito de liberdade. Diferentemente da matrícula de 1872, a que
começou vigorar em 1886 exigia o registro de nacionalidade do cativo, informação que
se tornou um dos principais elementos de prova para o recurso de ilegalidade da
escravidão. Acreditamos que essa cláusula, pertencente ao art. 1º da Lei dos
Sexagenários, de 28 de setembro de 1885, passou despercebida quando de sua
aprovação, pelo fato do projeto vitorioso do ministro Saraiva ter aproveitado quase
todos os artigos que considerava secundários no projeto derrotado do ex-ministro
Dantas, pois havia dedicado toda a sua atenção à necessidade de introduzir a
indenização ao senhor, sob a forma de prestação de serviços, no artigo em que o projeto
Dantas previa a liberdade para os escravos com mais de 60 anos - aspecto que entendia
como grave ameaça ao direito de propriedade.
Com a ajuda de um homem livre, Cosme deu entrada em uma ação de
liberdade na justiça:
Cosme Africano, escravizado de João Maurício de
Araújo Leite, com 53 anos de idade, casado, vem
respeitosamente requerer a V. Sª que se digne dar
um curador ao suplicante, para que promova os
termos de sua liberdade, em vista do documento
que oferece e de conformidade com a lei de 7 de
novembro de 1831 [...]. Valença, 14 de dezembro
de 1887. A rogo de Cosme, por não saber ler nem
escrever. Joaquim Cândido de Oliveira (Cosme
Africano, 1888, 2).
81
Após receber o pedido, o juiz municipal, Dr. Ramos Mancorvão, procedeu
adotando o mesmo princípio das ações anteriores no que dizia respeito a esses recursos
polêmicos de solicitação de alforria sem indenização do senhor, ou seja, convocando um
advogado que já tivesse demonstrado atenção e empenho na defesa dos cativos: “Como
requer, nomeando curador do suplicante o Dr. Barcelos. Valença, 17 de dezembro de
1887” (Cosme Africano 1888).
Seguindo os procedimentos legais, o Dr. Barcelos pediu para citar o
proprietário do suplicante:
Diz Cosme Africano, importado depois da lei de
1831, que, com a devida vênia, quer fazer citar o
seu senhor, João Maurício de Araújo Leite, para,
na primeira audiência deste juízo, falar a uma
ação sumária de liberdade, na qual o suplicante
pedirá o reconhecimento de seu direito. Valença,
21 de fevereiro de 1888 (Cosme Africano, 1888,
p.5).
Diante da ausência do proprietário do escravo na primeira audiência, o escrivão
fez os autos conclusos ao juiz de direito Antônio Gonçalves de Carvalho, magistrado já
conhecido por nós pela sua sentença na ação coletiva de liberdade movida por Custódio
e mais nove escravos em 1886, onde demonstrou uma simpatia explícita pela
emancipação geral dos escravos, que, como veremos, se repete neste processo. O Dr.
Carvalho produziu uma sentença de cinco laudas apontando a vigência da lei de 7 de
novembro de 1831, que estabelecia o direito de liberdade dos africanos importados
ilicitamente, tendo em vista que esse direito não havia sido alterado por nenhuma lei
posterior :
Considerando o tratado de 29 de agosto de 1826
com a Inglaterra, a lei de 7 de novembro de 1831
e o regimento de 12 de abril de 1832 [...]
declaram que os africanos importados no Império
como escravos depois da cessão legal do tráfico,
iniciada a 13 de março de 1830, são livres [...].
82
Considerando que o direito dos africanos
importados ilicitamente não foi alterado por lei
alguma posterior, nem expressa nem
implicitamente, não sendo possível a revogação
de tal direito em forma alguma, sem flagrante e
clamorosa violação dos sagrados preceitos
constitucionais... [...] (Cosme Africano, 1888, p.
7).
Dando continuidade à sua exposição, onde revelou domínio e atualização sobre
o tema, o juiz amparou sua fala no fórum de debates realizado no Senado em 1883,
destacando de forma irônica o insucesso de todas as tentativas de construção de uma
jurisprudência no sentido de não reconhecer o direito desses africanos à liberdade:
Considerando que a única tentativa que se ousou
fazer no Parlamento no sentido de afastar as ações
originárias da lei de 7 de novembro de 1831
frustou-se em votação da Câmara dos Deputados
de 12 de julho de 1850 [...], provendo-se à vista
disso, dar o dito valor à doutrina do parecer do
Conselho do Estado que serviu de base à
Resolução Imperial de 28 de outubro de 1874 e ao
discurso do senador Joaquim Ribeiro da Luz em
sessão de 7 de julho de 1883. (Cosme Africano,
1888).(grifo nosso)
A legislação citada, na verdade, fazia parte do conjunto de diplomas legais que
amparavam a corrente conservadora nos debates de 1883: a resolução de 28 de outubro
de 1874 do Conselho de Estado, que desautorizava o uso da lei de 7 de novembro de
1831 como recurso para julgar a liberdade dos escravos provenientes do tráfico; o
senador Ribeiro da Luz foi quem se colocou contra os direitos dos africanos importados
ilegalmente, rivalizando com o senador Silveira da Motta, simpático aos novos usos da
lei de 1831, tendo inclusive formulado em seu discurso nos referidos debates uma
verdadeira doutrina sobre o tema.
83
Finalmente, confirmando a atualidade e vigência da lei de 7 de novembro de
1831, após descrever toda sua evolução histórica, o Dr. Carvalho julgou procedente a
ação:
Considerando que o autor, o escravo Cosme, é
natural da África e tendo hoje a idade de 54 anos,
segundo a matrícula especial última [...] e,
portanto, o autor foi importado da África
indevidamente depois da lei de 7 de novembro de
1831, que declarava livre os escravos vindo de
fora [...]. Julgo procedente a ação e declaro livre o
autor Cosme, para quem deve cessar
imediatamente o injusto cativeiro em que se acha
(Cosme Africano, 1888).
Após essa longa exposição, o juiz Antônio Gonçalves de Carvalho confirmou
que nutria uma certa simpatia pela corrente progressista de magistrados que procurava
defender a autonomia do Judiciário e garantir o direito a qualquer pessoa,
independentemente de sua posição ou das conseqüências que isso acarretaria para uma
elite privilegiada.
Logo após conquistar a sua liberdade, Cosme aplicou os mesmos
procedimentos para retirar também a sua mulher do cativeiro injusto, acreditando que
ela reunia igualmente condições necessárias para alcançar tal objetivo. Antes de
qualquer ação judicial, fez uma consulta à coletoria de rendas para obter provas que
confirmassem a sua suspeita: “Cosme, ex-escravizado de João Maurício de Araújo
Leite, requer, a bem da liberdade de sua mulher Maria, que V. S.ª lhe mande dar por
certidão a matrícula desta. P. deferimento.” Maria Africana
49
A intervenção de parente nas ações de liberdade era muito comum,
demonstrando o papel importante exercido pela família escrava, só recentemente
reconhecida pela historiografia. Um ex- escravo não se sentia plenamente livre enquanto
não conseguisse a emancipação de todos os membros de sua família. A certidão foi
49
AMJUS, processo: Maria Africana, caixa. nº1.665, reg. nº 2.463, ano 1888.
84
expedida pelo escrivão da coletoria de rendas, no mesmo dia do pedido, com o seguinte
teor:
Certifico que, revendo o livro segundo da atual
matrícula de escravos deste município, nele, às
folhas sessenta e sete, consta a matrícula que me
é ordenada extrair por certidão: nome do senhor:
João Maurício de Araújo Leite; matrícula: sete
mil setecentos e setenta e cinco; número de
matrícula anterior: vinte cinco mil duzentos e
setenta e três; nome: Maria; sexo: feminino;
cor: preta, idade: cinqüenta anos; estado: casada;
filiação: desconhecida; profissão: roça; valor da
tabela: trezentos mil réis. Observação: África,
mulher de Cosme; averbações: nada consta.
Nada mais se continha no mencionado sobre o
pedido por certidão além do que neste fielmente
vem transcrito. O referido é verdade, do que dou
fé, e no próprio livro me reporto. Coletoria de
Valença, dezenove de março de mil oitocentos e
oitenta e oito (grifo do original) Maria Africana,
1888, p. 3).
Considerando os dados fornecidos pela coletoria, de que Maria era originária
da África e tinha em 1886 a idade de 50
anos, a aliança pela liberdade formada por
escravos, parentes, operadores do direito e amigos aplicou o mesmo raciocínio utilizado
no recurso de Cosme, com base nos 55 anos de proibição do tráfico, referente à lei de 7
de novembro de 1831. Entrou com a ação na justiça o homem livre Joaquim Cândido de
Oliveira, que pareceu ser um simpatizante da causa pela emancipação escrava, pelo fato
de ter se colocado como procurador voluntário para assinar os recursos iniciais, tanto de
Cosme quanto esse de Maria:
Diz Maria Africana, escravizada de João Maurício
de Araújo Leite, que, sendo importada para este
Império quando a áurea lei de 7 de novembro de
1831 já havia fechado os portos ao tráfico e
considerado livres todos aqueles infelizes, como a
suplicante, importados posteriormente àquela lei.
Assim, requer a V. Sª (sic) que, em face do doc.
85
junto, sirva-se de nomear um curador que
promova na forma da lei os termos precisos para
que possa a suplicante resolver a sua
liberdade(Maria Africana, 1888).
Após receber o pedido, o juiz municipal, Dr. Ramos Mancorvão, tal como já
dissemos anteriormente, adotou o mesmo princípio das ações anteriores por ele julgadas
que dizia respeito a esses recursos polêmicos de solicitação de alforria sem indenização
do senhor, ou seja, convocou um advogado que já houvesse demonstrado atenção e
empenho na defesa dos cativos: “Nomeio curador da suplicante o Dr. Barcelos, que
prestará o devido juramento”.
À semelhança do que ocorreu com o processo de Manuel Africano, já estudado
por nós, também neste havia falta de folhas, deixando-nos, portanto, sem saber o
resultado da sentença. Acreditamos, porém, ser tal aspecto secundário, visto que o nosso
objetivo é procurar descobrir nas ações de liberdade de Valença indícios que confirmem
a hipótese da influência do movimento revelado na Corte e em São Paulo, que lutava
pelo reconhecimento da lei de 7 de novembro de 1831 como recurso de liberdade do
africano ilegalmente escravizado. E, no que diz respeito a esse interesse, o documento
não nos deixa sem informações, fornecendo dados tais como a ampliação de uma rede
de solidariedade que não se restringia apenas à simpatia dos operadores do direito, mas
abrangia fundamentalmente os parentes e amigos, que articulavam todos os
procedimentos preparatórios para ingressar com o pedido na justiça
Na realidade, ainda que nos tenhamos deparado com um número que poderia
ser considerado desprezível perante o plantel de escravos existente em Valença,
pensamos que o simples fato de tais cativos terem buscado a justiça sob a alegação da
ilegalidade de sua escravidão já é revelador do surgimento, em uma das cidades mais
escravistas da província do Rio de Janeiro, da influência de um movimento que tentava
usar a lei de 7 de novembro de 1831 como aliada na luta pela emancipação dos
escravos.
86
Os operadores do direito formadores do segundo grupo por nós classificado e
os quais, a partir do ano de 1886, começaram a atuar em conjunto no fórum de Valença,
lidavam com autoridades locais e, sendo assim, suas atividades jurídicas em comarcas
do interior obedeciam a uma lógica diversa daquela que pautava a atuação dos
advogados e magistrados militantes dos tribunais paulistanos e cariocas, como Luiz
Gama, em São Paulo, e Macedo Soares, no Rio de Janeiro. Portanto, se não chegavam,
como aqueles, a formular elaboradas estratégias jurídicas para favorecer a liberdade,
mostravam-se abertamente simpáticos às interpretações dadas por esses militantes da
liberdade às leis relativas à escravidão, assumindo o papel de aplicadores do princípio
de liberdade no fórum de Valença. Nesse sentido, embora sejam poucos os processos
encontrados, é possível perceber nas suas atuações como curadores e julgadores, se não
tinham uma postura francamente abolicionista, ao menos uma predisposição a defender
e julgar favoravelmente as reivindicações dos cativos injustamente escravizados,
diferentemente dos curadores e magistrados integrantes o primeiro grupo por nós
selecionado, os quais tiveram as mesmas oportunidades de atuar em processos com
características semelhantes, porém se colocaram em uma posição de neutralidade,
evitando qualquer envolvimento.
87
QUANTIDADE DE ATUAÇÕES DOS ADVOGADOS EM AÇÕES DE LIBERDADE
Advogados Período Representando
escravo
Representando
senhores
Nº de atuações
João Francisco Barcellos 1884-1888 16 - 16
João R. Furtado de Mendonça 1873-1887 17 6 23
Carlos D'Oliveira Figueiredo 1873-1887 5 15 20
Joaquim Ignácio de M. Jequiriçá 1875-1886 4 3 7
Marciano Antonio de Mello 1875-1885 4 4 8
Martinho Vieira de F. Mello 1880 1 - 1
Manoel Benício Fontenelle 1874 1 - 1
Joaquim de Oliveira Machado 1881 1 - 1
Lúcio de Mendonça 1886 1 - 1
Álvaro Ernesto da Cunha 1874-1884 3 1 4
Paulino Antônio de Carvalho 1884-1885 2 - 2
Antônio Manoel de Menezes 1885 - 2 2
Polycarpo José Vieira 1884 - 1 1
Manoel Gonçalves V. França 1875 1 - 1
Ignácio Loyola G. da Silva 1884 - 1 1
Nicolau de Moura Neves 1882 1 - 1
Carlos F. de Souza Fernandes 1884-1887 2 - 2
Domingos José da Cunha Júnior 1873-1875 2 - 2
Cândido D. Furtado de Mendonça 1875 1 - 1
Francisco Augusto da Cunha 1883 1 - 1
Luiz Alves dos Santos 1875 - 1 1
José Resende T. Guimarães 1875 - 1 1
Francisco Soares Leite Marques 1884 1 - 1
José Antônio de Souza Lima 1871 1 - 1
Lúcio de Mendonça 1885-1888 3 - 3
88
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer de nossa pesquisa, acompanhamos a trajetória da lei de 7 de
novembro de 1831, no sentido de descobrir o que poderia existir de idêntico entre os
dois momentos mais significativos de sua vigência, sendo o primeiro o período
referente à sua promulgação, com a finalidade de abolir o tráfico de africanos, e o
segundo o relativo à aplicação de seus novos usos, a partir da década de 1850, para
buscar por via judicial a liberdade dos africanos ilegalmente escravizados. Assim,
identificamos que a referida lei representou uma ameaça permanente, tal como um
fantasma a assombrar os senhores proprietários de escravos.
Criada com a função de extinguir o comércio atlântico de escravos, não apenas
por pressão da Inglaterra, cujo projeto de criar um novo mercado de comércio era
dificultado pela existência desse infame negócio, mas também por motivações internas
ligadas à construção de uma imagem negativa do comércio escravista para o futuro de
nossa civilização, essa lei pouco foi executada, porque, na verdade, o governo
brasileiro não estava interessado em abolir o tráfico, tendo em vista que este tipo de
atitude acarretaria prejuízos para a economia nacional, que tinha por base o trabalho
escravo.
Assim, contrariando todas as determinações britânicas, os representantes dos
fazendeiros no Congresso iniciaram uma campanha pela revogação da lei de 7 de
novembro de 1831, por entenderem que, embora a sua promulgação não tivesse
interrompido o comércio de escravos, o art. 1º, que garantia a liberdade de todos os
escravos que tivessem entrado no país após aquela data, poderia futuramente causar
sérios problemas relativos à conservação do patrimônio. Eram as primeiras aparições
do fantasma.
Seguindo essa linha de raciocínio, procuramos acompanhar as tentativas de
revogação apresentadas no Congresso com a finalidade de afastar a ameaça
representada por uma lei que, a princípio, parecera letra morta devido à sua pouca
aplicação. O primeiro projeto, de autoria do senador Caldeira Brant, Marquês de
89
Barbacena, obteve aprovação no Senado, porém, ao chegar à Câmara dos Deputados,
ficou suspenso até que se concluísse um estudo preliminar, em cumprimento à
exigência inglesa. Em 1848, foi colocada em discussão no parlamento uma nova
tentativa de afastar essa assombração que colocava em risco a propriedade escrava.
Tratava-se, na verdade, de uma versão modificada do projeto anterior e, nesse caso,
todos os artigos foram aprovados, à exceção daquele que dizia respeito à liberdade dos
africanos que já haviam ingressado no país.
Somente em 1850 foi promulgada uma nova lei contra o tráfico, colocando um
ponto final no comércio atlântico de escravos, mas sem conseguir revogar a lei de 7 de
novembro de 1831, que continuou existindo, para infelicidade dos proprietários de
escravos ilegais. A partir dessa década iniciou-se um movimento para conquistar o
reconhecimento da vigência dessa lei por parte do Judiciário e da sociedade em geral.
Era a volta do fantasma, atacando a partir de então com mais intensidade, saindo de um
estágio de ameaça implícita para atitudes concretas de conquista, corporificadas na
participação ativa de escravos brutalmente castigados pela polícia da Corte por
divulgarem os direitos garantidos pela lei de 1831; na atuação dos advogados que
aceitavam representar cativos que pleiteavam a alforria sem indenização de valor,
tocando, assim, em uma questão bastante polêmica dessa legislação, tal como o fez
Luiz Gama, não apenas no Judiciário, mas também na imprensa paulista; nas decisões
de magistrados como o Dr. Macedo Soares, que ousavam retirar da relação de bens de
um espólio as propriedades escravas ilegais, construindo assim uma jurisprudência que
serviria de base às ações a favor dos escravos ilegalmente escravizados; finalmente, na
habilidade dos parlamentares que conseguiram arrancar do governo o respeito à
independência do Judiciário.
Diante desse conjunto de fatos que registram a evolução da trajetória da lei de
7 de novembro de 1831, absorvida por um movimento social de concepção legalista,
concluímos que esses advogados e magistrados que colaboraram com os escravos,
principais sujeitos dessa luta pela liberdade, tiveram uma participação muitas vezes
ousada e radical, que pode até surpreender aqueles que só enxergam atitudes
revolucionárias em atos extremistas, como fugas, crimes e rebeliões.
90
Outro aspecto por nós observado foi que, em virtude dessa interpretação
diferente e ousada do texto legal haver sido incorporada à campanha abolicionista
surgida oficialmente na década de 1880 e, a partir daí, bastante difundida, couberam
indevidamente a essa campanha todos os méritos pela utilização desse expediente
legal, o qual, entretanto, já havia sido empregado várias décadas antes por pessoas que,
por sua denodada atuação em defesa da liberdade dos africanos escravizados
ilegalmente, sofreram muitas dificuldades, perseguições e discriminação, o que vem
levando alguns historiadores a se dedicarem à revisão dessa questão.
50
.
41
Assim, ao acompanharmos a trajetória da lei de 7 de novembro de 1831 e,
especialmente, a seu novo uso pelos operadores de direito e escravos da cidade de
Valença nos últimos anos da escravidão no país, podemos concluir que, longe de ter
tido uma existência apagada durante os seus cinqüenta e sete anos de vigência, ela
representou uma constante ameaça ao patrimônio dos senhores fazendeiros, porque
denunciava a ilegalidade do sistema escravista, no qual a maior parte da população
cativa era formada por africanos que ingressaram no país após 1831 e os seus
descendentes.
50
Sobre a revisão da consagrada periodização do movimento abolicionista, ver Azevedo (2003, p. 7).
41
91
5. REFERÊNCIAS
FONTES
1-Fontes Primárias
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Radical Paulistano – 1860, 1870
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97
Anexo 1
Lei de 1831
Lei do Governo Feijó de 7 de novembro de 1831
Declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos
importadores dos mesmos escravos.
A Regência, em nome do Imperador o Senhor D.Pedro II, faz saber a todos os
Súditos do Império, que a Assembléia Geral decretou, e Ele Sancionou a lei seguinte:
ART.1º Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de
fora, ficam livres. Excetuam-se:
Os escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a país, onde a
escravidão é permitida, enquanto empregados no serviço das mesmas embarcações.
Os que fugirem do território ou embarcação estrangeira, os quais serão entregues
aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fora do Brasil.
Par os casos de exceção n° 1, na visita da entrada se lavrará termo do numero dos
escravos, com as declarações necessárias para verificar a identidade dos mesmos, e
fiscalizar-se na visita da saída se a embarcação leva aqueles, com que entrou.Os
escravos, que foram achados depois da saída da embarcação, serão apreendidos, e
retidos até serem reexportados.
ART.2º Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do
artigo cento e setenta e nove do Código Criminal, imposta aos que reduzem à
escravidão pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos
escravos importados, além de pagarem as despesas da reexportação para qualquer parte
da África; reexportação, que o governo fará efetiva com a maior possível brevidade,
contratando com as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os infratores
responderão cada um por si e por todos.
98
ART. 3º São importadores:
1º O Comandante, mestre ou contramestre.
2º O que cientemente deu ou recebeu o frete ou por qualquer ou titulo a embarcação
designar para o comércio de escravos.
3º Todos os interessados na negociação, e todos os que cientemente forneceram fundos,
ou por qualquer motivo deram ajuda a favor, auxiliando o desembarque ou consentindo-
o nas suas terras.
4º Os que cientemente comprarem como escravos os que são declarados livres no art.1°;
estes, porém só ficam obrigados subsidiariamente às despesas da reexportação, sujeitos,
com tudo, às outras penas.
ART. 4º Sendo apreendida fora dos portos do Brasil pelas forças nacionais alguma
embarcação fazendo o comércio de escravos, proceder-se-a segundo a disposição dos
arts.2° e 3º como se apreensão fosse dentro do Império.
ART.5º Todo aquele, que der notícia, fornecer os meios de apreender qualquer número
de pessoas importadas como escravos, ou sem ter precedido denuncia ou mandado
judicial, fizer qualquer apreensão desta natureza, ou perante o Juiz de Paz, ou qualquer
autoridade local, der noticia do desembarque de pessoas livres, como escravos, por tal
maneira que sejam apreendidos, receberá da Fazenda Publica a quantia de trinta mil réis
por pessoa apreendida.
ART. 6º O Comandante, Oficiais, e marinheiros de embarcação, que fizer apreensão, de
quem faz menção o art.4º, tem direito ao produto da multa, fazendo-se a partilha,
segundo o regimento da marinha para a divisão das presas.
99
ART. 7º Não será permitido a qualquer homem liberto que não for brasileiro,
desembarcar nos portos do Brasil debaixo de qualquer motivo que seja.O que
desembarcar será imediatamente reexportado.
ART. 8º O Comandante, mestre, e contra mestre que trouxerem as pessoas mencionadas
no artigo antecedente, incorrerão na multa de cem mil réis por cada uma pessoa, e farão
as despesas de sua reexportação. O denunciante receberá da Fazenda Publica a quantia
de trinta mil réis por pessoa.
ART. 9º O produto das multas impostas em virtude desta lei, depois de deduzidos os
prêmios concedidos nos arts. 5º e 8º, e mais despesas que possa fazer a Fazenda Publica,
será aplicada para as casa de Expostos da Província respectiva; e quando não haja tais
casas para os hospitais.
Manda, portanto a todas as Autoridades, a que conhecimento, e execução da referida lei
pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guarda tão inteiramente, como nela se
contém. O Secretário de Estado dos Negócios da justiça a faça imprimir, publicar, e
correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos sete dias do mês de novembro de mil
oitocentos e trinta e um, um décimo da Independência e do Império.
*GÓES, B.B. (Org.) A abolição no Parlamento: 65 anos de luta. Brasília: Senado Federal, 1988.
100
Anexo 2
Decreto de 1832
DECRETO
A Regência, em nome do Imperador o Senhor D.Pedro II em virtude do
Art.102, § 12 da Constituição, e querendo regular a execução da carta de Lei de 7 de
novembro do ano passado, decreta:
ART.1º Nenhum barco deixará de ser visitado pela polícia logo à sua entrada,
e imediatamente à sua saída. A autoridade que fizer a visita porá no passaporte a verba
Visitado...Dia, era, e assinatura.-sem o que será despachado.
ART.2º Nos portos, onde não houver visita de polícia irá no escaler de visita
da alfândega, e na falta dele em outro qualquer, um Juiz de Paz ou seu delegado
acompanhado do escrivão, proceder a visita.onde houver mais de um Juiz de Paz, o
governo da Província designará o que deve ser incumbido desta diligencia.
ART.3º Nesta visita informar-se-há à vista dos documentos que devem ser
exigidos, de que porto vem o barco; do motivo que ali o conduziu; que cargo e destino
trazem; quem seja o dono, ou o mestre dele; os dias de viagem. Examinará igualmente a
capacidade do mesmo barco, a sua aguada e qualquer outra circunstancia por onde se
possa conjeturar haver conduzido pretos africanos de tudo se fará menção no auto de
visita que assinará o Juiz, ou Delegado, o Escrivão, e mais duas testemunhas, havendo-
as.
ART.4° Se na visita, encontrar pretos, procederá na forma do artigo segundo da
referida carta de lei, declarando-se no termo os nomes, naturalidades, fisionomias, e
qualquer sinal característico de cada um pelo qual possa ser reconhecido na visita da
saída.
101
ART.5° Sendo encontrados, ou apreendidos alguns pretos, que estiverem nas
circunstancias da Lei, sejam eles escravos, ou libertos, serão imediatamente postos em
depósito: obrigados os importadores a depositar a quantia que se julgar necessária para a
reexportação dos mesmos e quando o recusem, procedesse-a a embargos nos bens.
Além disto serão presos como em flagrante, e processados até a pronúncia por qualquer
Juiz de Paz, ou Intendente Geral da Polícia; e depois remetidos ao Juiz Criminal
respectivo; e onde houver mais de um ao Ouvidor da Comarca. O qual finalizado o
processo, dará parte ao governo da Província para dar as providencias para a pronta
reexportação.
ART.6º O Intendente Geral da Polícia ou o Juiz de Paz, que proceder á visita,
encontrando indícios de ter o barco conduzido pretos, procederá as indagações, que
julgar necessárias para certificar-se do fato, e procederá na forma da lei citada.
ART.7º Na mesma visita procurasse-a observar o número e qualidade da
tripulação negra, ou passageiros dessa cor; e notando-se que alguns ou todos não são
civilizados, ou muito além do numero necessário para o manejo do barco, se forem
libertos não desembarcarão, e se forem escravos serão depositados, procedendo-se
ulteriormente conforme a Lei.
ART.8º Não serão admitidos os depositários, e donos de barcos a justificar
morte dos pretos, senão pela inspeção do cadáver pela autoridade que lhe tomou os
algozes, á vista do auto de exame, a que se procedeu na entrada.
ART.9° Constando ao Intendente Geral da Polícia, ou a qualquer Juiz de Paz,
ou criminal, que alguém comprou ou vendeu preto boçal, o mandará vir a sua presença,
examinará se entende a língua brasileira, se está no Brasil antes de ter cessado o tráfico
da escravatura, procurando por meio de interprete certificar-se de quando veio da
África, em que barco, onde desembarcou, porque lugares passou, em poder de quantas
pessoas tem estado, etc. Verificando-se ter vindo depois da cessação do tráfico, o fará
102
depositar, e procederá na forma da lei, e em todos os casos serão ouvidas
sumariamente, sem delongas supérfluas, as partes interessadas.
ART.10° Em qualquer tempo, em que o preto requerer a qualquer Juiz de Paz,
ou criminal, que veio para o Brasil depois da extinção do tráfico, o Juiz o interrogará
sobre todas as circunstâncias, que possam esclarecer o fato e oficialmente procederá a
todas as diligências necessárias para certificar-se dele; obrigando o senhor a desfazer as
dúvidas, que suscitarem se a tal respeito. Havendo presunções veementes de ser o preto
livre, o mandará depositar, e procederá nos mais termos da Lei.
ART.11° As autoridades encarregadas da execução do presente decreto, darão
parte aos governos das províncias de tudo quanto acontecer a este respeito; e estes o
participarão ao governo Geral.
Diogo Antonio Feijó, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça,
o tenha assim entendido, e faça executar, Palácio do Rio de Janeiro em 11 de Abril de
1832, um .décimo da Independência, e do Império.
Francisco de Lima e Silva – José da Costa Carvalho – João Bráulio Moniz.
*GÓES, B.B. (0rg). A abolição no Parlamento: 65 de anos de luta. Brasília, Senado Federal, 1988.0
103
71
REFERÊNCIAS
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75
Anexo 1
Lei de 1831
Lei do Governo Feijó de 7 de novembro de 1831
Declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos
importadores dos mesmos escravos.
A Regência, em nome do Imperador o Senhor D.Pedro II, faz saber a todos os
Súditos do Império, que a Assembléia Geral decretou, e Ele Sancionou a lei seguinte:
ART.1º Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de
fora, ficam livres. Excetuam-se:
Os escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a país, onde a
escravidão é permitida, enquanto empregados no serviço das mesmas embarcações.
Os que fugirem do território ou embarcação estrangeira, os quais serão entregues
aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fora do Brasil.
Par os casos de exceção n° 1, na visita da entrada se lavrará termo do numero dos
escravos, com as declarações necessárias para verificar a identidade dos mesmos, e
fiscalizar-se na visita da saída se a embarcação leva aqueles, com que entrou.Os
escravos, que foram achados depois da saída da embarcação, serão apreendidos, e
retidos até serem reexportados.
ART.2º Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do
artigo cento e setenta e nove do Código Criminal, imposta aos que reduzem à
escravidão pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos
escravos importados, além de pagarem as despesas da reexportação para qualquer parte
da África; reexportação, que o governo fará efetiva com a maior possível brevidade,
contratando com as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os infratores
responderão cada um por si. e por todos.
ART. 3º São importadores:
1º O Comandante, mestre ou contramestre.
2º O que cientemente deu ou recebeu o frete ou por qualquer ou titulo a embarcação
designar para o comércio de escravos.
3º Todos os interessados na negociação, e todos os que cientemente forneceram fundos,
ou por qualquer motivo deram ajuda a favor, auxiliando o desembarque ou consentindo-
o nas suas terras.
4º Os que cientemente comprarem como escravos os que são declarados livres no art.1°;
estes, porém só ficam obrigados subsidiariamente às despesas da reexportação,
sujeitos,com tudo, às outras penas.
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ART. 4º Sendo apreendida fora dos portos do Brasil pelas forças nacionais alguma
embarcação fazendo o comércio de escravos, proceder-se-a segundo a disposição dos
arts.2° e 3º como se apreensão fosse dentro do Império.
ART.5º Todo aquele, que der notícia, fornecer os meios de apreender qualquer número
de pessoas importadas como escravos, ou sem ter precedido denuncia ou mandado
judicial, fizer qualquer apreensão desta natureza, ou perante o Juiz de Paz, ou qualquer
autoridade local, der noticia do desembarque de pessoas livres, como escravos, por tal
maneira que sejam apreendidos, receberá da Fazenda Publica a quantia de trinta mil réis
por pessoa apreendida.
ART. 6º O Comandante, Oficiais, e marinheiros de embarcação, que fizer apreensão, de
quem faz menção o art.4º, tem direito ao produto da multa, fazendo-se a partilha,
segundo o regimento da marinha para a divisão das presas.
ART. 7º Não será permitido a qualquer homem liberto que não for brasileiro,
desembarcar nos portos do Brasil debaixo de qualquer motivo que seja.O que
desembarcar será imediatamente reexportado.
ART. 8º O Comandante, mestre, e contra mestre que trouxerem as pessoas mencionadas
no artigo antecedente, incorrerão na multa de cem mil réis por cada uma pessoa, e farão
as despesas de sua reexportação. O denunciante receberá da Fazenda Publica a quantia
de trinta mil réis por pessoa.
ART. 9º O produto das multas impostas em virtude desta lei, depois de deduzidos os
prêmios concedidos nos arts. 5º e 8º, e mais despesas que possa fazer a Fazenda Publica,
será aplicada para as casa de Expostos da Província respectiva; e quando não haja tais
casas para os hospitais.
Manda, portanto a todas as Autoridades, a que conhecimento, e execução da referida lei
pertencer, que a cumpram, e façam cumprir, e guarda tão inteiramente, como nela se
contém. O Secretário de Estado dos Negócios da justiça a faça imprimir, publicar, e
correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos sete dias do mês de novembro de mil
oitocentos e trinta e um, um décimo da Independência e do Império.
*GÓES, B.B. (Org.) A abolição no Parlamento: 65 anos de luta. Brasília: Senado
Federal, 1988.
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Anexo 2
Decreto de 1832
DECRETO
A Regência, em nome do Imperador o Senhor D.Pedro II em virtude do
Art.102, § 12 da Constituição, e querendo regular a execução da carta de Lei de 7 de
novembro do ano passado, decreta:
ART.1º Nenhum barco deixará de ser visitado pela polícia logo à sua entrada,
e imediatamente à sua saída. A autoridade que fizer a visita porá no passaporte a verba
Visitado...Dia, era, e assinatura.-sem o que será despachado.
ART.2º Nos portos, onde não houver visita de polícia irá no escaler de visita
da alfândega, e na falta dele em outro qualquer, um Juiz de Paz ou seu delegado
acompanhado do escrivão, proceder a visita.onde houver mais de um Juiz de Paz, o
governo da Província designará o que deve ser incumbido desta diligencia.
ART.3º Nesta visita informar-se-há à vista dos documentos que devem ser
exigidos, de que porto vem o barco; do motivo que ali o conduziu; que cargo e destino
trazem; quem seja o dono, ou o mestre dele; os dias de viagem. Examinará igualmente a
capacidade do mesmo barco, a sua aguada e qualquer outra circunstancia por onde se
possa conjeturar haver conduzido pretos africanos de tudo se fará menção no auto de
visita que assinará o Juiz, ou Delegado, o Escrivão, e mais duas testemunhas, havendo-
as.
ART.4° Se na visita, encontrar pretos, procederá na forma do artigo segundo
da referida carta de lei, declarando-se no termo os nomes, naturalidades, fisionomias, e
qualquer sinal característico de cada um pelo qual possa ser reconhecido na visita da
saída.
ART.5° Sendo encontrados, ou apreendidos alguns pretos, que estiverem nas
circunstancias da Lei, sejam eles escravos, ou libertos, serão imediatamente postos em
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depósito: obrigados os importadores a depositar a quantia que se julgar necessária para a
reexportação dos mesmos e quando o recusem, procedesse-a a embargos nos bens.
Além disto serão presos como em flagrante, e processados até a pronúncia por qualquer
Juiz de Paz, ou Intendente Geral da Polícia; e depois remetidos ao Juiz Criminal
respectivo; e onde houver mais de um ao Ouvidor da Comarca. O qual finalizado o
processo, dará parte ao governo da Província para dar as providencias para a pronta
reexportação.
ART.6º O Intendente Geral da Polícia ou o Juiz de Paz, que proceder á visita,
encontrando indícios de ter o barco conduzido pretos, procederá as indagações, que
julgar necessárias para certificar-se do fato, e procederá na forma da lei citada.
ART.7º Na mesma visita procurasse-a observar o número e qualidade da
tripulação negra, ou passageiros dessa cor; e notando-se que alguns ou todos não são
civilizados, ou muito além do numero necessário para o manejo do barco, se forem
libertos não desembarcarão, e se forem escravos serão depositados, procedendo-se
ulteriormente conforme a Lei.
ART.8º Não serão admitidos os depositários, e donos de barcos a justificar
morte dos pretos, senão pela inspeção do cadáver pela autoridade que lhe tomou os
algozes, á vista do auto de exame, a que se procedeu na entrada.
ART.9° Constando ao Intendente Geral da Polícia, ou a qualquer Juiz de Paz,
ou criminal, que alguém comprou ou vendeu preto boçal, o mandará vir a sua presença,
examinará se entende a língua brasileira, se está no Brasil antes de ter cessado o tráfico
da escravatura, procurando por meio de interprete certificar-se de quando veio da
África, em que barco, onde desembarcou, porque lugares passou, em poder de quantas
pessoas tem estado, etc. Verificando-se ter vindo depois da cessação do tráfico, o fará
depositar, e procederá na forma da lei, e em todos os casos serão ouvidas
sumariamente, sem delongas supérfluas, as partes interessadas.
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ART.10° Em qualquer tempo, em que o preto requerer a qualquer Juiz de Paz,
ou criminal, que veio para o Brasil depois da extinção do tráfico, o Juiz o interrogará
sobre todas as circunstâncias, que possam esclarecer o fato e oficialmente procederá a
todas as diligências necessárias para certificar-se dele; obrigando o senhor a desfazer as
dúvidas, que suscitarem se a tal respeito. Havendo presunções veementes de ser o preto
livre, o mandará depositar, e procederá nos mais termos da Lei.
ART.11° As autoridades encarregadas da execução do presente decreto, darão
parte aos governos das províncias de tudo quanto acontecer a este respeito; e estes o
participarão ao governo Geral.
Diogo Antonio Feijó, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça,
o tenha assim entendido, e faça executar, Palácio do Rio de Janeiro em 11 de Abril de
1832, um .décimo da Independência, e do Império.
Francisco de Lima e Silva – José da Costa Carvalho – João Bráulio Moniz.
*GÓES, B.B. (0rg). A abolição no Parlamento: 65 de anos de luta. Brasília, Senado
Federal, 1988.