cansaço, ao vencerem aquele terreno incerto, que lhes foge de sob os cascos e onde se enterram até meia
canela.
Freqüentes são também os desvios, que da estrada partem de um e outro lado e proporcionam, na mata
adjacente, trilha mais firme, por ser menos pisada.
Se parece sempre igual o aspecto do caminho, em compensação mui variadas se mostram as paisagens em
torno.
Ora e a perspectiva dos cerrados, não desses cerrados de arbustos raquíticos, enfezados e retorcidos de São
Paulo e Minas Gerais, mas de garbosas e elevadas árvores que, se bem não tomem, todas, o corpo de que são
capazes à beira das águas correntes ou regadas pela linfa dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama
o terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que as alimenta; ora são campos a
perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de viridente e mimosa grama, toda salpicada de
silvestres flores; ora sucessões de luxuriantes capões, tão regulares e simétricos em sua disposição que
surpreendem e embelezam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, meio secas, onde nasce o altivo
buriti e o gravata entrança o seu tapume espinhoso.
Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do Sol transforma-
se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado,
ateia com uma faúlha do seu isqueiro.
Minando à surda na touceira, queda a vivida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que
seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços
imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo,
rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas
superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagais de tabocas e
taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para
além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição.
Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido
em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir
de todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes
passos
Através da atmosfera enublada mal pode então coar a luz do Sol. A incineração é completa, o calor intenso, e
nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham,
sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas
aragens, ao embaterem umas de encontro às outras.
Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas.
É cair, porém, daí a dias copiosa chuva, e parece que uma varinha de fada andou por aqueles sombrios
recantos a traçar às pressas jardins encantados e nunca vistos. Entra tudo num trabalho intimo de espantosa
atividade. Transborda a vida. Não há ponto em que não brote o capim, em que não desabrochem rebentões
com o olhar sôfrego de quem espreita azada ocasião para buscar a liberdade, despedaçando as prisões de
penosa clausura.
Aquela instantânea ressurreição nada, nada pode pôr peias.
Basta uma noite, para que formosa alfombra verde, verde-claro, verde-gaio, acetinado, cabra todas as tristezas
de há pouco. Aprimoram-se depois os esforços; rompem as flores do campo que desabotoam as carícias da
brisa as delicadas corolas e lhe entregam as primícias dos seus cândidos perfumes.
Se falham essas chuvas vivificadoras, então, por muitos e muitos meses, ai ficam aquelas campinas,
devastadas pelo fogo, lugubremente iluminadas por avermelhados clarões sem uma sombra, um sorriso, uma
esperança de vida, com todas as suas opulências e verdejantes pimpolhos ocultos, como que raladas de dor e
mudo desespero por não poderem ostentar as riquezas e galas encerradas no ubertoso seio.
Nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de vez
em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se à terra, a
fim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo que lavrou.
Rompe também o silêncio o grasnido do caracará, que aos pulos procura insetos e cobrinhas ou, junto ao solo,
segue o vôo dos urubus, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino olfato, buscam a carniça putrefata.
É o caracará comensal do urubu. De parceria se atira, quando urgido pela fome, à rês morta e, intrometido
como é, a custo de alguma bicada do pouco amável conviva, belisca do seu lado no imundo repasto.
Se passa o caracará a vista do gavião, precipita-se este sobre ele com vôo firme, dá-lhe com a ponta da asa,
atordoa-o, atormenta-o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada superioridade.
Nada, com efeito, o mete em brios.