lava inextinguível e infernal, contra cuja violência eram baldadas quase sempre todas as prevenções, e
não menos baldadas a valentia e a força dos mais duros cavaleiros e homens de armas.
Mas o Castelo de Guimarães podia, do teso sobre que estava assentado, olhar com tranqüilo desdém
para os formidáveis e variados engenhos militares de cristãos e sarracenos. A melhor fortaleza da Galiza,
o Castro Honesto, que o mui poderoso e venerando Senhor Diogo Gelmires, primeiro Arcebispo de
Compostela, reformara de novo, com todo o esmero de quem sabia ser aquele castro como a chave da
extensa Honra e Senhorio Compostelano, era, por trinta léguas em roda, o único, talvez, que ousaria
disputar primazias com os de Guimarães. Como o daquele, a carcova deste era larga e profunda; as
suas barreiras eram amplas e defendidas por boas barbacãs, e as suas muralhas, torreadas com curtos
intervalos, altas, ameadas e desmarcadamente grossas, do que dava testemunho o espaçoso dos
adarves que corriam por cima delas. O circuito, que tão temerosas fortificações abrangiam, encerrava
uma nobre alcáçova, que, também coberta de ameias, campeava sobranceira os lanços de muros entre
torre e torre, e ainda assoberbava estas, à exceção da alvarrã ou de menagem, que, maciça e
quadrangular, com os seus esguios miradouros bojando nos dous ângulos exteriores, e erguida sobre o
escuro portal da entrada, parecia um gigante em pé e com os punhos cerrados sobre os quadris,
ameaçando o burgo rasteiro e humilde que, lá embaixo no sopé da suave encosta, se escondia e
apoquentava, como vilão que era, diante de tamanho senhor.
Mas não vedes aí ao longe, por entre a casaria da povoação e verdura das almuinhas, que,
entressachadas com os edifícios burgueses, servem como vasto tapete, onde assentam os panos de
muros alvos, e os telhados vermelhos e aprumados das casas modestas dos peões? – Não vedes, digo,
a alpendrada de uma igreja, a portaria de um ascetério, a grimpa de um campanário? É o Mosteiro de D.
Mumadona: é um claustro de monges negros: é a origem desse burgo, do castelo roqueiro e dos seus
paços reais. Havia duzentos anos que neste vale viviam apenas alguns servos, que cultivavam a vila ou
herdade de Vimaranes. Mas o mosteiro edificou-se, e a povoação nasceu. O ameno e aprazível sítio
atraiu os poderosos: o Conde Henrique quis aí habitar algum tempo, e sobre as ruínas de um fraco e
pequeno castelo, a que os monges se acolhiam ante o assolador tufão das correrias dos mouros, se
alevantou aquela máquina. O trato e freqüência da corte enriqueceu os burgueses: muitos francos,
vindos em companhia do Conde, aí se tinham estabelecido, e os homens de rua, ou moradores do burgo,
constituíram-se em sociedade civil. Então surgiu o município: e essas casas, aparentemente humildes,
encerravam já uma porção do fermento da resistência antiteocrática e antiaristocrática que, espalhado
gradualmente pelo país, devia em três séculos pôr manietadas aos pés dos reis a aristocracia e a
teocracia. Os imperantes supremos, enfarados já na caça, que abasteceria de futuro as mesas dos
banquetes triunfais dos seus sucessores, atrelavam perto dela os lebréus: punham o concelho ao pé do
castelo do mosteiro e da catedral. Guimarães breve obteve do Conde um foral, uma carta de município,
tudo pro bono pacis, como reza o respectivo documento.
É nesta alcáçova, cingida das suas fortificações lustrosas, virgens, elegantes, e todavia formidáveis, onde
a nossa história começa. Habitavam então nela a mui virtuosa dona, e honrada Rainha, D. Teresa,
Infanta dos portugueses, e o mui nobre e excelente Senhor Fernando Peres, Conde de Trava, cônsul da
terra portugalense e da colimbriense, alcaide-mor na Galiza do Castelo de Faro, e em Portugal dos de
Santa Ovaia e de Soure. Era ele a primeira personagem da corte de Guimarães depois de D. Teresa, a
formosíssima Infanta, para nos servirmos do epíteto que em seus diplomas lhe dava o Conde D.
Henrique, o qual devia saber perfeitamente se esta denominação lhe quadrava. Apesar de entrada em
anos, não cremos que, na época a que se refere a nossa narrativa, este epíteto fosse inteiramente
anacrônico, porque nem a bastarda de Afonso VI era ainda idosa, nem devemos imaginar que a afeição
de Fernando Peres fosse nua e simplesmente um cálculo ambicioso.
Esta afeição, porém, ardente e mútua, como pelo menos parecia ser, sobremaneira afiava, tempos havia,
as línguas dos maldizentes. Pouco a pouco muitas graves matronas, em quem a idade fizera seu ofício
de mestra da virtude, se tinham alongado da corte para suas honras e solares. Com mais alguma
resignação as donzelas ofereciam a Deus o próprio sofrimento em presenciar este escândalo. Demais, a
vida cortesã era tão risonha de saraus, de torneios, de banquetes, de festas! – alegravam-na tanto a
chusma de cavaleiros mancebos, muitos dos quais tinham pela primeira vez vestido as armas na guerra
do ano antecedente contra o Rei de Leão! – Além disso, que igreja havia aí, a não ser a Sé de Braga,
onde as solenidades religiosas fossem celebradas com mais pompa que no Mosteiro de D. Muma, tão
devotamente assentado lá em baixo no burgo? Que catedral ou ascetério tinha órgão mais harmonioso
que este? Onde se podiam encontrar clérigos ou monges, que em mais afinadas vozes entoassem um
gloria in excelsis, ou um exsurge domine? Culto, amor, saraus, tríplice encanto da Idade Média, como vos
resistiriam estes corações inocentes? As donzelas, bem que lhes custasse, continuavam, portanto, a
cercar a sua bela Infanta, que muito amavam. As velhas, essas pouco importava que tivessem
desaparecido.
Tais razões, e várias outras, davam as damas a seus naturais senhores, para continuarem a viver a vida
folgada do paço: aos pais a devoção: aos maridos o acatamento à mui generosa Rainha, de quem eles
eram prestameiros e alcaides: aos irmãos, sempre indulgentes, a paixão pelas danças e torneios, cujo
engodo eles melhor ainda sabiam avaliar. Debaixo, porém, destes urgentes motivos outro havia não