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O Enfermeiro, Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)
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O Enfermeiro
PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode entrar
numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de
divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito
dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras
cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só
tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de
madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável
como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me
o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a
rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o
império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os
meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu
quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava os estudos de
teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim
me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de
1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior,
perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse
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ir servir de enfermeiro ao coronel
Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com
ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas
eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável,
estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava
mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que
não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-
me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me
recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não
me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de
gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as
feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que
tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao
faro das escravas; dous eram até gatunos!
— Você é gatuno?
— Não, senhor.
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de
espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo?
achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente
Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-
lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque
a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o
declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos
enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete
dias.
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão,
não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas,
com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe
fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia
era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou
quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda
a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só
rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a
humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar;
determinei vir embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma
fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era
preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter
comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por
uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.
— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver
muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro,
Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha
sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar
as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procópio?
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— Qual o quê!
— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente,
arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as
injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e
não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão,
era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses
nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de
maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes
aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez
minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro.
Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.
Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso
por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-
me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar
o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma
notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do
mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda
que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer
(visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado
integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez
testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era
mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por
esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer
os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão.
No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico,
aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedi-
lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado
do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel
teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-
me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o
prato foi cair na parede onde se fez em pedaços.
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono.
Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de
d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a
pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o
remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da
segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-
me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos
mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra
mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e
tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao
pescoço, lutamos, e esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito;
mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era
tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e
durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo
o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e
estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes
surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a
repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia
recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo;
digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam:
assassino! assassino!
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na
esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que
significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a
apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo
calado. Voltava a andar à toa na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça;
arrependia-me de ter vindo. — "Maldita a hora
em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de
Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me
pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos
outros homens.
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para
escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as
estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um
enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por
algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a
ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei
claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição
certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam
de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro
espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era
uma alucinação.
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao
quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não
cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a
pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer
desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos
arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos
séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no
pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo
a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel
amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.
A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão
doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que
se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar
suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um
preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que
descobrissem alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se
desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava
impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos,
as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as
mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a
outra com piedade:
— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A
passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande
abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no
chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os
homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram
naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo
para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime;
não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...
— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta
melancolia.
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe
boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E elogiando,
convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno
interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso,
mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do
Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la,
sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei
a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do
finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar
este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse:
"Deus lhe fale n’alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes
engraçados...
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário,
que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que
eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal,
fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escrito;
era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma
cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime
estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a
probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta,
cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.
— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.
— Não sei, mas era rico.
— Realmente, provou que era teu amigo.
— Era... Era...
Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às
minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um
vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso
três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer
desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo;
receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só
escrúpulo; era também o modo de resgatar
o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas
saldas.
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia
aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um
aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A
imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do
crime...
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado, defendi-me,
e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia.
E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era
culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim
rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade
daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito
mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas
semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo
de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre
homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas
coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixei-
me também nessa idéia...
Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-me e
fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do
testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o
zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser
grato.
— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As
primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila.
Constituí advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo,
falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele, mas sem a
moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era
austero...
— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias.
Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois,
entrou-me no coração um singular prazer, que eu sinceramente buscava
expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às
rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco?
Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o
boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e
vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos
lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado,
insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a
arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia ficando.
As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da
vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para
mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da
herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos
meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me
dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o
plano primitivo: distribuí alguma cousa aos pobres, dei à matriz da vila uns
paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao
todo trinta e dous contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel,
todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi
morrer, creio eu, no Paraguai.
Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada.
Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os
médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era
certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu,
involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade
é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma
coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por
epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem-
aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."
FIM
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