— Qual o quê!
— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente,
arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as
injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e
não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão,
era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses
nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de
maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes
aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez
minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro.
Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.
Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso
por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-
me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar
o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma
notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do
mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda
que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer
(visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado
integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez
testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era
mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por
esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer
os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão.
No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico,
aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedi-
lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado
do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel
teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-
me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o
prato foi cair na parede onde se fez em pedaços.
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono.
Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de
d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a
pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o
remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da
segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-
me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos
mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra
mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e
tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao
pescoço, lutamos, e esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito;