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Pílades e Orestes, de Machado de Assis
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A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
<http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html>
Universidade Federal de Santa Catarina
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PÍLADES E ORESTES
QUINTANILHA engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dous juntos,
não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves
comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total
divergia inteiramente. Acresce que eram quase da mesma idade. A idéia da paternidade
nascia das maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais
em carinhos, cautelas e pensamentos.
Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo ano. Quintanilha
não seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na política; mas, eleito deputado
provincial em 187... cumpriu o prazo da legislatura e abandonou a carreira. Herdara os
bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu
Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro.
Posto que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode dizer que
Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado o desgosto que lhe
trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que ele esteve prestes a abrir mão
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dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe dava idéias e conselhos, o
convenceu de que semelhante ato seria rematada loucura.
-- Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros parentes? Não foi
você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto, como os outros. Se ele deixou
tudo a você, é que o achou melhor que eles; fique-se com a fortuna, que é a vontade do
morto, e não seja tolo.
Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com ele,
mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a
porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por
toda a parte:
-- Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de se ver o fim que leva.
Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu,
chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena irritar-se por ditinhos.
-- Uma só cousa desejo, continuou, é que nos separemos, para que se não diga...
-- Que se não diga o quê? É boa! Tinha que ver, se eu passava a escolher as minhas
amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-vergonha!
-- Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes.
-- Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas que me forem
designadas por meia dúzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro? Não,
Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é
o meu coração. Ou você está... está aborrecido de mim?
-- Eu? Tinha graça.
-- Pois então?
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-- Mas é ...
-- Não é tal!
A vida que viviam os dous era a mais unida deste mundo. Quintanilha acordava,
pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita,
passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer
à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-
os, copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado,
ora uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na
Rua do Ouvidor, vendo passar as moças , Gonçalves lembrava-se de uns autos que
deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente
que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o ansiosamente com
os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.
-- São estes?
-- São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.
-- Deixa, eu 1evo.
A princípio, Gonçalves suspirava:
-- Que maçada que dei a você!
Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não se
acusou de mais nada; concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios
ficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao outro: "Você hoje há de lembrar-me isto
e aquilo". E o outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas.
Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à
espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo. E
levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperá-las na
estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo descobria-lhe bons charutos,
bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não tinha liberdade de falar de um livro
novo, ou somente caro, que não achasse um exemplar em casa.
-- Você é um perdulário, dizia-lhe em tom repreensivo.
-- Então gastar com letras e ciências é botar fora? É boa! concluía o outro.
No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando, e o
prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo,
como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o
retrato dos dous, e mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar de
lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz.
-- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.
-- Pois o pintor disse-me...
-- Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter
a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço torto?
-- Que ladrão !
-- Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o sentimento da arte,
nem prática, e espichou-se redondamente. A intenção foi boa, creio...
-- Sim, a intenção foi boa.
-- E aposto que já pagou?
-- Já.
Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado
e aborrecido, olhava para a tela, até que sacou de um canivete e rasgou-a de alto a baixo.
Como se não bastasse esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao artista com um
bilhete em que lhe transmitiu alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem
muitas de tais pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que
este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase
brigaram, a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante,
entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos),
ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse, quando pudesse. Gonçalves
não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que
este admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro.
-- Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você...?
-- Ou recebe, ou não fazemos nada.
-- Mas, meu querido...
Teve que concordar. A união dos dous era tal que uma senhora chamava-lhes os
"casadinhos de fresco", e um letrado, Pílades e Orestes. Eles riam, naturalmente, mas o
riso de Quintanilha trazia alguma cousa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma
ternura úmida. Outra diferença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de
entusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se
inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a
ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um
olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o
fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o
gesto e as circunstâncias durante dous e três dias.
Não era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também era comum vê-lo rir-
se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da boca, dos olhos, da testa, dos
braços, das pernas, todo ele era um riso único. Sem ter paixões, estava longe de ser
apático.
A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do vencimento ,
não só não pensou em cobrá-la , mas resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o
amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi
levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o
guardasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.
Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves; via a constância do seu trabalho, o zelo
que ele punha na defesa das demandas, e vivia cheio de admiração. Realmente, não era
grande advogado, mas na medida das suas habilitações, era distinto.
-- Você por que não se casa? perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar.
Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia, única parenta, a quem ele queria muito, e que
lhe morreu, quando eles iam em trinta anos. Dias depois, dizia ao amigo:
-- Agora só me resta você.
Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe respondesse. Quando se
lembrou de dizer que "iria até à morte" era tarde. Redobrou então de carinhos, e um dia
acordou com a idéia de fazer testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o
testamenteiro e herdeiro universal.
-- Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe entregando o testamento. Sinto-me forte,
mas a morte é fácil, e não quero confiar a qualquer pessoa as minhas últimas vontades.
Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.
Quintanilha tinha uma prima segunda, Camila, moça de vinte e dous anos, modesta,
educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era guarda-livros de uma casa de
café. Haviam brigado por ocasião da herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher
de João Bastos, e este ato de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu
facilmente alguns nomes crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e
pediu-lhe que fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o
elogio da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos
louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança
moral da mãe.
-- Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta, e, se
começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que é tão
bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é
que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía.
Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir
tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao piano; ela respondeu, cheia
de melancolia:
-- Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais tempo. Demais,
eu toco mal.
-- Mal?
-- Muito mal.
Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que a prova de tocar
bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo, era certo que apenas passara um mês;
todavia era também certo que a música era uma distração natural e elevada. Além disso,
bastava tocar um pedaço triste. João Bastos aprovou este modo de ver e lembrou uma
composição elegíaca. Camila abanou a cabeça.
-- Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar que eu toquei
uma polca.
Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três meses fossem
passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais próximas
e longas. Enfim, pôde ouvi-la tocar piano, e gostou. O pai confessou que, ao princípio,
não gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes
sabor. Chamava à filha "a minha alemãzinha", apelido que foi adotado por Quintanilha
apenas modificado para o plural: "a nossa alemãzinha". Pronomes possessivos dão
intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três,-- ou quatro, se contarmos
Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo;-- mas fiquemos nos três.
Que ele é cousa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça.
Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais? Não é que os pousasse muita vez
nele, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a princípio, como as crianças
que obedecem sem vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram
tais que, ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava
com graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila
não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha
descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela
todo o dia. e concluiu da descoberta que a amava e era amado. Tão tonto ficou que
esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas. Quando menos, quis dizê-lo ao amigo
Gonçalves e correu ao escritório deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de
respeito e temor. Quase a abrir a boca, enguliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo
nesse dia nem no outro. Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha.
Adiou a revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas
hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.
-- Você aprova, Gonçalves?
Gonçalves empalideceu, -- ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade confundia-se
com a palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.
-- Aprova? repetiu Quintanilha.
Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas fechou-a de novo,
e fitou os olhos "em ontem", como ele mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe.
Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era
asneira. Estava tão acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem
afrontava, ainda em matéria tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si daquela
meditação, sacudiu os ombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão
surdamente que o outro mal a pôde ouvir:
-- Não me pergunte nada; faça o que quiser.
-- Gonçalves, que é isso? perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado.
Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se tinha asas, ainda agora estará voando. Tal
foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relógio da sala de jantar
bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o outro
despediu-se.
Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender aqueles gestos, aquele
suspiro, aquela palidez, todo o efeito misterioso da notícia dos seus amores. Entrara e
falara, disposto a ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos,
idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de
Gonçalves alguma cousa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao
jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que
trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado.
"Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que Camila tem que não possa ser boa
esposa?"
Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que
Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar outra vez, abraçá-lo,
interrogá-lo... Não teve forças; enfiou pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João
Bastos, e não viu Camila; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe
tudo, e aqui é preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares
da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não
podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com o amigo, tinha
o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era uma consolação no meio
daquela agonia; o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da casa, pior do que entrara.
Recolheu-se à sua.
Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para agitação
maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas
montanhas, e a meio caminho viu surdir debaixo um vulto e fincar os pés defronte dele.
Era Gonçalves. “-Infame, disse este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva
de meu coração, a mulher que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é
mais completo." E com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e meteu-lho
na boca. Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la no peito de Gonçalves; foi
impossível. Os queixos acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la, e foi pior; os dentes
cravaram-se no coração. Quis falar, mas vá alguém falar com a boca cheia daquela
maneira. Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de
maldição que ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos
olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água, atirou-se abaixo e
desapareceu. Quintanilha acordou sufocado.
A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para arrancar de lá o
coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava?
Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se
deitou, para outra insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.
De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à conclusão de que o
amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era talvez amado por ela... Sim,
sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal pegou em si e foi ao
escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse
verdade...
Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo um instante,
erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis graves, tirar de lá o
testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.
-- Que é isto?
-- Você vai mudar de estado, respondeu Gonçalves, sentando-se à mesa.
Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que
guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou muito; só lhe respondia o
som áspero da pena correndo no papel. Não corria bem a pena, a letra era tremida, as
emendas mais numerosas que de costume, provavelmente as datas erradas. A consulta
dos livros era feita com tal melancolia que entristecia o outro. Às vezes, parava tudo,
pena e consulta, para só ficar o olhar fito "em ontem".
-- Entendo, disse Quintanilha subitamente, ela será tua.
-- Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava escada abaixo, como uma
flecha, e ele continuou as suas razões de embargo.
Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem se crê; mas a
alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro
testamento, legando tudo à prima, com a condição de desposar o amigo. Camila não
aceitou o testamento, mas ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de
Gonçalves, que aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor
remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.
O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de
padrinho aos dous primeiros filhos. Um dia em que, levando doces para os afilhados,
atravessava a Praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o
matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a
sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia frase: "Orai por
ele!" É também o fecho da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos do
modelo grego. Pilades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele!
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