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Umas Férias, de Machado de Assis
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A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
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NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
<http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html>
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UMAS FÉRIAS
VIERAM DIZER ao mestre-escola que alguém lhe queria falar.
-- Quem é?
-- Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.
-- Que entre.
Houve um movimento geral de cabeças na direção da porta do corredor, por onde devia
entrar a pessoa desconhecida. Éramos não sei quantos meninos na escola. Não tardou
que aparecesse uma figura rude, tez queimada, cabelos compridos, sem sinal de pente, a
roupa amarrotada, não me lembra bem a cor nem a fazenda, mas provavelmente era
brim pardo. Todos ficaram esperando o que vinha dizer o homem, eu mais que
ninguém, porque ele era meu tio, roceiro, morador em Guaratiba. Chamava-se tio Zeca.
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Tio Zeca foi ao mestre e falou-lhe baixo. O mestre fê-lo sentar, olhou para mim, e creio
que lhe perguntou alguma cousa, porque tio Zeca entrou a falar demorado, muito
explicativo. O mestre insistiu, ele respondeu, até que o mestre, voltando-se para mim,
disse alto:
-- Sr. José Martins, pode sair.
A minha sensação de prazer foi tal que venceu a de espanto. Tinha dez anos apenas,
gostava de folgar, não gostava de aprender. Um chamado de casa, o próprio tio, irmão
de meu pai, que chegara na véspera de Guaratiba, era naturalmente alguma festa,
passeio, qualquer cousa. Corri a buscar o chapéu, meti o livro de leitura no bolso e desci
as escadas da escola, um sobradinho da Rua do Senado. No corredor beijei a mão a tio
Zeca. Na rua fui andando ao pé dele, amiudando os passos, e levantando a cara. Ele não
me dizia nada, eu não me atrevia a nenhuma pergunta. Pouco depois chegávamos ao
colégio de minha irmã Felícia; disse-me que esperasse, entrou, subiu, desceram, e fomos
os três caminho de casa. A minha alegria agora era maior. Certamente havia festa em
casa, pois que íamos os dous, ela e eu; íamos na frente, trocando as nossas perguntas e
conjeturas. Talvez anos de tio Zeca. Voltei a cara para ele; vinha com os olhos no chão,
provavelmente para não cair.
Fomos andando. Felícia era mais velha que eu um ano. Calçava sapato raso, atado ao
peito do pé por duas fitas cruzadas, vindo acabar acima do tornozelo com laço. Eu,
botins de cordovão, já gastos. As calcinhas dela pegavam com a fita dos sapatos, as
minhas calças, largas, caíam sobre o peito do pé; eram de chita. Uma ou outra vez
parávamos, ela para admirar as bonecas à porta dos armarinhos, eu para ver, à porta das
vendas, algum papagaio que descia e subia pela corrente de ferro atada ao pé.
Geralmente, era meu conhecido, mas papagaio não cansa em tal idade. Tio Zeca é que
nos tirava do espetáculo industrial ou natural. -- Andem, dizia ele em voz sumida. E nós
andávamos, até que outra curiosidade nos fazia deter o passo. Entretanto, o principal era
a festa que nos esperava em casa.
-- Não creio que sejam anos de tio Zeca, disse-me Felícia.
-- Por quê?
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-- Parece meio triste.
-- Triste, não, parece carrancudo.
-- Ou carrancudo. Quem faz anos tem a cara alegre. -- Então serão anos de meu
padrinho...
-- Ou de minha madrinha...
-- Mas por que é que mamãe nos mandou para a escola? -- Talvez não soubesse.
-- Há de haver jantar grande...
-- Com doce...
-- Talvez dancemos.
Fizemos um acordo: podia ser festa, sem aniversário de ninguém. A sorte grande, por
exemplo. Ocorreu-me também que podiam ser eleições. Meu padrinho era candidato a
vereador; embora eu não soubesse bem o que era candidatura nem vereação, tanto
ouvira falar em vitória próxima que a achei certa e ganha. Não sabia que a eleição era ao
domingo, e o dia era sexta-feira. Imaginei bandas de música, vivas e palmas, e nós,
meninos, pulando, rindo, comendo cocadas. Talvez houvesse espetáculo à noite; fiquei
meio tonto. Tinha ido uma vez ao teatro, e voltei dormindo, mas no dia seguinte estava
tão contente que morria por lá tornar, posto não houvesse entendido nada do que ouvira.
Vira muita cousa, isto sim, cadeiras ricas, tronos, lanças compridas, cenas que mudavam
à vista, passando de uma sala a um bosque, e do bosque a uma rua. Depois, os
personagens, todos príncipes. Era assim que chamávamos aos que vestiam calção de
seda, sapato de fivela ou botas, espada, capa de veludo, gorra com pluma. Também
houve bailado. As bailarinas e os bailarinos falavam com os pés e as mãos, trocando de
posição e um sorriso constante na boca. Depois os gritos do público e as palmas...
Já duas vezes escrevi palmas; é que as conhecia bem. Felícia, a quem comuniquei a
possibilidade do espetáculo, não me pareceu gostar muito, mas também não recusou
nada. Iria ao teatro. E quem sabe se não seria em casa, teatrinho de bonecos? Íamos
nessas conjeturas, quando tio Zeca nos disse que esperássemos; tinha parado a
conversar com um sujeito.
Paramos, à espera. A idéia da festa, qualquer que fosse, continuou a agitar-nos, mais a
mim que a ela. Imaginei trinta mil cousas, sem acabar nenhuma, tão precipitadas
vinham, e tão confusas que não as distinguia, pode ser até que se repetissem. Felícia
chamou a minha atenção para dous moleques de carapuça encarnada, que passavam
carregando canas, -- o que nos lembrou as noites de Santo Antônio e S. João, já lá idas.
Então falei-lhe das fogueiras do nosso quintal, das bichas que queimamos, das rodinhas,
das pistolas e das danças com outros meninos. Se houvesse agora a mesma cousa... Ah!
lembrou-me que era ocasião de deitar à fogueira o livro da escola, e o dela também, com
os pontos de costura que estava aprendendo. -- Isso não, acudiu Felícia.
-- Eu queimava o meu livro.
-- Papai comprava outro.
-- Enquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; aprender é muito aborrecido.
Nisto estávamos, quando vimos tio Zeca e o desconhecido ao pé de nós. O
desconhecido pegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para ele, fitou-nos com
seriedade, deixou-nos e despediu-se.
-- Nove horas? Lá estarei, disse ele. -- Vamos, disse-nos tio Zeca.
Quis perguntar-lhe quem era aquele homem, e até me pareceu conhecê-lo vagamente.
Felícia também. Nenhum de nós acertava com a pessoa; mas a promessa de lá estar às
nove horas dominou o resto. Era festa, algum baile, conquanto às nove horas,
costumássemos ir para a cama. Naturalmente, por exceção, estaríamos acordados. Como
chegássemos a um rego de lama, peguei da mão de Felícia, e transpusemo-lo de um
salto, tão violento que quase me caiu o livro. Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do
gesto; vi-o abanar a cabeça com reprovação. Ri, ela sorriu, e fomos pela calçada adiante.
Era o dia dos desconhecidos. Desta vez estavam em burros, e um dos dous era mulher.
Vinham da roça. Tio Zeca foi ter com eles ao meio da rua, depois de dizer que
esperássemos. Os animais pararam, creio que de si mesmos, por também conhecerem a
tio Zeca, idéia que Felícia reprovou com o gesto, e que eu defendi rindo. Teria apenas
meia convicção; tudo era folgar. Fosse como fosse, esperamos os dous, examinando o
casal de roceiros. Eram ambos magros, a mulher mais que o marido, e também mais
moça; ele tinha os cabelos grisalhos. Não ouvimos o que disseram, ele e tio Zeca; vimo-
lo, sim, o marido olhar para nós com ar de curiosidade, e falar à mulher, que também
nos deitou os olhos, agora com pena ou cousa parecida. Enfim apartaram-se, tio Zeca
veio ter conosco e enfiamos para casa.
A casa ficava na rua próxima, perto da esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portais da
casa forrados de preto,-- o que nos encheu de espanto. Instintivamente paramos e
voltamos a cabeça para tio Zeca. Este veio a nós, deu a mão a cada um e ia a dizer
alguma palavra que lhe ficou na garganta; andou, levando-nos consigo. Quando
chegamos, as portas estavam meio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho.
Na rua, curiosos. Nas janelas fronteiras e laterais, cabeças aglomeradas. Houve certo
rebuliço quando chegamos. É natural que eu tivesse a boca aberta, como Felícia. Tio
Zeca empurrou uma das meias portas, entramos os três, ele tornou a cerrá-la, meteu-se
pelo corredor e fomos à sala de jantar e à alcova.
Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a cabeça entre as mãos. Sabendo da
nossa chegada, ergueu-se de salto, veio abraçar-nos entre lágrimas, bradando:
-- Meus filhos, vosso pai morreu!
A comoção foi grande, por mais que o confuso e o vago entorpecessem a consciência da
notícia. Não tive forças para andar, e teria medo de o fazer. Morto como? morto por
quê? Estas duas perguntas, se as meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele
momento não perguntei nada a mim nem a ninguém. Ouvi as palavras de minha mãe, se
repetiam em mim, e os seus soluços que eram grandes. Ela pegou em nós e arrastou-nos
para a cama, onde jazia o cadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe
estava eu daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o
silêncio das pessoas que rodeavam a cama ajudaram a explicar que meu pai morrera
deveras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não era festa, não
eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da
escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dor de filho não
é cousa que possa afirmar ou negar; melhor é calar. O pai ali estava defunto, sem pulos,
nem danças, nem risadas, nem bandas de música, cousas todas também defuntas. Se me
houvessem dito à saída da escola por que é que me iam lá buscar, é claro que a alegria
não houvera penetrado o coração, donde era agora expelida a punhadas.
O enterro foi no dia seguinte às nove horas da manhã, e provavelmente lá estava aquele
amigo de tio Zeca que se despediu na rua, com a promessa de ir às nove horas. Não vi
as cerimônias; alguns vultos, poucos, vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu
padrinho, dono de um trapiche, lá estava, e a mulher também, que me levou a uma
alcova dos fundos para me mostrar gravuras. Na ocasião da saída, ouvi os gritos de
minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas
alças do caixão, creio eu:-- "vire de lado,-- mais à esquerda,-- assim, segure bem..."
Depois, ao longe, o coche andando e as seges atrás dele...
Lá iam meu pai e as férias! Um dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas
oito, oito dias de nojo, durante os quais alguma vez me lembrei do colégio. Minha mãe
chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pêsames. Eu também chorava; não via
meu pai às horas do costume, não lhe ouvia as palavras à mesa ou ao balcão, nem as
carícias que dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de pássaros, e tinha três ou
quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quase que só falava às pessoas de fora. Foi
assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta notícia muitas vezes;
as visitas perguntavam pela causa da morte, e ela referia tudo, a hora, o gesto, a ocasião:
tinha ido beber água, e enchia um copo, à janela da área. Tudo decorei, à força de ouvi-
lo contar.
Nem por isso os meninos do colégio deixavam de vir espiar para dentro da minha
memória. Um deles chegou a perguntar-me quando é que eu voltaria.
-- Sábado, meu filho, disse minha mãe, quando lhe repeti a pergunta imaginada; a missa
é sexta-feira.
Talvez seja melhor voltar na segunda.
-- Antes sábado, emendei.
-- Pois sim, concordou.
Não sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao ver que eu queria voltar mais cedo à escola.
Mas, sabendo que eu não gostava de aprender, como entenderia a emenda?
Provavelmente, deu-lhe algum sentido superior, conselho do céu ou do marido. Em
verdade, eu não folgava, se lerdes isto com o sentido de rir. Com o de descansar
também não cabe, porque minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo,
aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à
mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava um recurso que recomendo aos
preguiçosos: deixava os olhos na página e abria a porta à imaginação. Corria a apanhar
as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a
espancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro.
Uma vez, como desse por mim a andar na sala sem ler, minha mãe repreendeu-me, e eu
respondi que estava pensando em meu pai. A explicação fê-la chorar, e, para dizer tudo,
não era totalmente mentira; tinha-me lembrado o último presentinho que ele me dera, e
entrei a vê-lo com o mimo na mão.
Felícia vivia tão triste como eu, mas confesso a minha verdade, a causa principal não
era a mesma. Gostava de brincar, mas não sentia a ausência do brinco, não se lhe dava
de acompanhar a mãe, coser com ela e uma vez fui achá-la a enxugar-lhe os olhos. Meio
vexado, pensei em imitá-la, e meti a mão no bolso para tirar o lenço. A mão entrou sem
ternura, e, não achando o lenço, saiu sem pesar. Creio que ao gesto não faltava só
originalidade, mas sinceridade também.
Não me censurem. Sincero fui longos dias calados e reclusos. Quis uma vez ir para o
armarinho, que se abriu depois do enterro, onde o caixeiro continuou a servir.
Conversaria com este, assistiria à venda de linhas e agulhas, à medição de fitas, iria à
porta, à calçada, à esquina da rua... Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele
nascer. Mal chegara ao balcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da
casa e para o estudo. Arrepelei-me, apertei os dedos à guisa de quem quer dar murro;
não me lembra se chorei de raiva.
O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha
grandes saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troça nos
bancos, e os saltos à saída. Senti cair-me na cara uma daquelas bolinhas de papel com
que nos espertávamos uns aos outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador.
A bolinha, como acontecia às vezes, foi cair na cabeça de terceiro, que se desforrou
depressa. Alguns, mais tímidos, limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco,
mas já me valia por ele. Aquele degredo que eu deixei tão alegremente com tio Zeca
parecia-me agora um céu remoto, e tinha medo de o perder. Nenhuma festa em casa,
poucas palavras, raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a lápis maior
número de gatos nas margens do livro de leitura; gatos e porcos. Não alegrava, mas
distraía.
A missa do sétimo dia restituiu-me à rua; no sábado não fui a escola, fui à casa de meu
padrinho, onde pude falar um pouco mais, e no domingo estive à porta da loja. Não era
alegria completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido de preto, fui
mirado com curiosidade, mas tão outro ao pé dos meus condiscípulos, que me
esqueceram as férias sem gosto, e achei uma grande alegria sem férias.
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