para a cama, onde jazia o cadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe
estava eu daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o
silêncio das pessoas que rodeavam a cama ajudaram a explicar que meu pai morrera
deveras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não era festa, não
eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da
escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dor de filho não
é cousa que possa afirmar ou negar; melhor é calar. O pai ali estava defunto, sem pulos,
nem danças, nem risadas, nem bandas de música, cousas todas também defuntas. Se me
houvessem dito à saída da escola por que é que me iam lá buscar, é claro que a alegria
não houvera penetrado o coração, donde era agora expelida a punhadas.
O enterro foi no dia seguinte às nove horas da manhã, e provavelmente lá estava aquele
amigo de tio Zeca que se despediu na rua, com a promessa de ir às nove horas. Não vi
as cerimônias; alguns vultos, poucos, vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu
padrinho, dono de um trapiche, lá estava, e a mulher também, que me levou a uma
alcova dos fundos para me mostrar gravuras. Na ocasião da saída, ouvi os gritos de
minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas
alças do caixão, creio eu:-- "vire de lado,-- mais à esquerda,-- assim, segure bem..."
Depois, ao longe, o coche andando e as seges atrás dele...
Lá iam meu pai e as férias! Um dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas
oito, oito dias de nojo, durante os quais alguma vez me lembrei do colégio. Minha mãe
chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pêsames. Eu também chorava; não via
meu pai às horas do costume, não lhe ouvia as palavras à mesa ou ao balcão, nem as
carícias que dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de pássaros, e tinha três ou
quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quase que só falava às pessoas de fora. Foi
assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta notícia muitas vezes;
as visitas perguntavam pela causa da morte, e ela referia tudo, a hora, o gesto, a ocasião:
tinha ido beber água, e enchia um copo, à janela da área. Tudo decorei, à força de ouvi-
lo contar.
Nem por isso os meninos do colégio deixavam de vir espiar para dentro da minha
memória. Um deles chegou a perguntar-me quando é que eu voltaria.