Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos
gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de
casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas
comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que
seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico,
se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a
quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa
gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de
preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com
todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza
implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou
estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma
fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um
defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;
é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo
que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas
estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao