Duarte procurou desviar aquele cálice de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível
alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta e
cinco minutos, enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do
manuscrito.
- Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse
que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor
irmos para o seu gabinete?
Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este,
com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar
ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves
tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o
desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais
depressa ao termo.
O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada
havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os
lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo
desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do
que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo.
Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um
envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não
menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos
embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano do
sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina,
já então moça de dezessete anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de
um testamento.
Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia
conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar
que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício
da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a
leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce
que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha de
Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de
Cecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso,
dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo,
e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o ruge-ruge das sedas;
enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os
diálogos, com a impassibilidade de uma grande convicção.
Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito;
o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito,
erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente
do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos.