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O Caso da Vara, de Machado de Assis
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A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
<http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html>
Universidade Federal de Santa Catarina
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O CASO DA VARA
DAMIÃO fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não
sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com
o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado,
medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde
iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom
castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais
tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João
Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil.
Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:
Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom.
A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na
rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as
casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
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— Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que
eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa
situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns
minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde
estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre,
e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho.
Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o
conhecera. Que vem fazer aqui!
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar
tudo.
— Descanse; e explique-se.
— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam
sentadas ern volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros
e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado.
Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal,
Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia
ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
— Como assim? Não posso nada.
— Pode, querendo.
— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal
conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais
sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para
aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A
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vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer
as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca! redargüia Damião, abanando a cabeça e
beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo;
afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a
ninguém...
— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende
ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já;
e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe
que precisava muito de lhe falar imediatamente.
— Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens,
explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas
crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o
nariz, rindo:
— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era
apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis
alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles
riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma
destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o
trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da
marquesa, e ameaçou-a:
— Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência;
se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião
olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma
cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou
que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve
pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe
negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter
chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá
Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do
seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos
que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro,
assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e
repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou
que o castigaria.
— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu
compadre.
— Não afianço nada, não creio que seja possível...
— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom
insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João
Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
— Mas, minha senhora...
—Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças
opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico,
ou outra qualquer cousa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente
com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse
negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele
não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila
desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram
de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por
que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo
persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe
quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma
solução — cruel, é certo, mas definitiva.
— Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus
do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os
seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os
três-
setes
. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de
Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava
cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.
— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à
campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no
chão, acabrunhado. Sinha Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
— Ande jantar, deixe-se de melancolias.
— A senhora crê que ele alcance alguma coisa?
— Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve
menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho.
Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa, ouviu um
rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
— Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes
tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a
todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram
ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e
esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo
acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra,
tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a
Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês
vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam
a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente
de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça
metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa,
antes da noite . Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e
voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo
calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à
força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos
fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria
modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o
favor de o receber. O pior era a batina; se Shlhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma
sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou
esquecimento de João Carneiro.
— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses
sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita.
O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que
não, senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na
presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo,
qne dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão
rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a
tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía
dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação,
pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta
escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos".
Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a
reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação.
Disse-lhe que sossegasse, que aquele negóclo era agora dela.
— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham
concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver;
Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a
por uma orelha.
— Ah! malandra!
— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi
atrás e agarrou-a.
— Anda cá!
— Minha senhora, me perdoe!
— Não perdôo, não.
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra
dizendo que não, que a havia de castigar.
— Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo
soltar a pequena, bradou ao seminarista.
— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio. . . Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado
apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...
— Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o
que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor.. .
— Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a
negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele
precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá
Rita.
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