ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem se não
gorou nenhum namoro. O silêncio não era completo; ouviase o rodar de carros que passavam
fora; no aposento, porém, o único rumor era dos botins de Estêvão na palhinha do chão.
Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e
Estêvão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam
sê-lo dois espíritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estêvão, dotado de extrema
sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela bondade varonil, que
é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas
as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos
cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara.
Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se não era incapaz de afeições,
sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens
travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os
naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e,
ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
Estêvão referira ao amigo, desde tempos, toda a história do amor, agora malogrado, suas
esperanças, desalentos e glórias, e, enfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o
capítulo mais delicioso do romance — no sentir dele — caiu de toda a altura das ilusões na mais
dura, prosaica e miserável realidade.
A namorada de Estêvão, — é tempo de dizer alguma coisa dela, — era uma moça de
dezessete anos, e, por ora, simples aluna-professora no colégio de uma tia do nosso estudante, à
rua dos Inválidos. Estêvão tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiu-
se preso por ela, "até à morte", disse ele ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de
tão estirado prazo. Qualquer que ele fosse, porém, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade é
que Estêvão no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida
— amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela? Estêvão dizia que sim, e
devia crê-lo; alguns olhares ternos, meia dúzia de apertos de mão significativos, embora a largos
intervalos, davam a entender que o coração de Guiomar — chamava-se Guiomar — não era
surdo à paixão do acadêmico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.
O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha
e sem cheiro, e não dada, senão pedida.
— Faz-me um favor? disse um dia Estêvão apontando para a flor que ela trazia nos
cabelos; esta flor está murcha, e, naturalmente, vai deitá-la fora ao despentear-se; eu desejava que
ma desse.
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e deu-lha; Estêvão recebeu-a com igual
contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do céu. Além da flor, e para suprir
as cartas, que não havia, nada mais obtivera Estêvão durante aqueles seis compridos meses, a não
serem os tais olhares, que afinal são olhares, e vão-se com os olhos donde vieram. Era aquilo
amor, capricho, passatempo ou que outra coisa era?