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A Mão e a Luva, de Machado de Assis
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A Mão e a Luva
Machado de Assis
I - O FIM DA CARTA.
— Mas que pretendes fazer agora?
— Morrer.
— Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco...
Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi profundo, e o meu coração é
pusilânime; por mais aborrecível que pareça a idéia da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah!
tu não sabes o que isto é?
— Sei: um namoro gorado...
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— Luís!
... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha diminuído
muito o gênero humano, e Malthus perderia o latim.
Anda, sobe.
Estêvão meteu a mão nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves sacudiu a
cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís Alves, à rua da Constituição, —
que então se chamava dos Ciganos; então, isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que
vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste,
crua e desconsolada experiência.
Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justamente na ocasião em
que Estêvão o ia procurar; encontraram-se à porta.
Ali mesmo lhe confiou Estêvão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco,
caso não aborreça estas historias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu. Os dois
amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que
subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os
vencer, se a Luís não ocorresse uma transação.
Pois sim, disse ele, convenho em que deves morrer, mas de ser amanhã. Cede da
tua parte, e vem passar a noite comigo. Nestas últimas horas que tens de viver na terra dar-me-ás
uma lição de amor, que eu te pagarei com outra de filosofia.
Dizendo isto, Luís Alves travou do braço de Estêvão, que não resistiu dessa vez, ou
porque a idéia da morte não se lhe houvesse entranhado deveras no cérebro, ou porque cedesse
ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que é mais provável, por esses dois motivos
juntos.
Vamos nós com eles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luís foi beijar a mão de
sua mãe.
Mamãe, disse ele, de fazer-me o favor de mandar o chá ao meu quarto; o Estêvão
passa a noite comigo.
Estêvão murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram
fúnebres como um cipreste. Luís viu-lhe então, à luz das estearinas, alguma vermelhidão nos
olhos, e adivinhou, não era difícil, que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou ele
mentalmente. Dali foram os dois para o quarto, que era uma vasta sala, com três camas, cadeiras
de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretária, vindo a ser ao mesmo tempo,
alcova e gabinete de estudo.
O chá subiu daí a pouco. Estêvão, a muito rogo do hóspede, bebeu dois goles; acendeu
um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, enquanto Luís Alves, preferindo um charuto
e um sofá, acendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre o
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ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem se não
gorou nenhum namoro. O silêncio não era completo; ouviase o rodar de carros que passavam
fora; no aposento, porém, o único rumor era dos botins de Estêvão na palhinha do chão.
Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e
Estêvão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam
sê-lo dois espíritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estêvão, dotado de extrema
sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela bondade varonil, que
é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas
as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos
cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara.
Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se não era incapaz de afeições,
sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens
travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os
naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e,
ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
Estêvão referira ao amigo, desde tempos, toda a história do amor, agora malogrado, suas
esperanças, desalentos e glórias, e, enfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o
capítulo mais delicioso do romance no sentir dele caiu de toda a altura das ilusões na mais
dura, prosaica e miserável realidade.
A namorada de Estêvão, é tempo de dizer alguma coisa dela, era uma moça de
dezessete anos, e, por ora, simples aluna-professora no colégio de uma tia do nosso estudante, à
rua dos Inválidos. Estêvão tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiu-
se preso por ela, "até à morte", disse ele ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de
tão estirado prazo. Qualquer que ele fosse, porém, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade é
que Estêvão no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida
amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela? Estêvão dizia que sim, e
devia crê-lo; alguns olhares ternos, meia dúzia de apertos de mão significativos, embora a largos
intervalos, davam a entender que o coração de Guiomar chamava-se Guiomar não era
surdo à paixão do acadêmico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.
O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha
e sem cheiro, e não dada, senão pedida.
Faz-me um favor? disse um dia Estêvão apontando para a flor que ela trazia nos
cabelos; esta flor está murcha, e, naturalmente, vai deitá-la fora ao despentear-se; eu desejava que
ma desse.
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e deu-lha; Estêvão recebeu-a com igual
contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do céu. Além da flor, e para suprir
as cartas, que não havia, nada mais obtivera Estêvão durante aqueles seis compridos meses, a não
serem os tais olhares, que afinal são olhares, e vão-se com os olhos donde vieram. Era aquilo
amor, capricho, passatempo ou que outra coisa era?
Naquela tarde, a tarde fatal, estando ambos a sós, o que era raro e difícil, disse-lhe ele
que em breve ia voltar para S. Paulo, levando consigo a imagem dela, e pedindo-lhe em câmbio,
que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nele o seu magnífico par de
olhos castanhos, com tanta irritação e dignidade, que o pobre rapaz ficou atônito e perplexo.
Imagina-se a angústia dele diante do silêncio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que
se não imagina é a dor que o prostrou, a dor e o espanto, quando ela, erguendo-se da
cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo:
— Esqueça-se disso.
Pois quanto a mim, disse Luís Alves ouvindo pela terceira vez a narração de tão
cru desenlace; quanto a mim, obedecia-lhe pontualmente; esquecia-me disso e ia curar-me em
cima dos compêndios; Direito Romano e Filosofia, não conheço remédio melhor para tais
achaques.
Estêvão não ouvia as palavras do amigo; estava então assentado na cama, com os
cotovelos fincados nas pernas, e a cabeça metida nas mãos, parecendo que chorava. A principio
chorou em silêncio; mas não tardou que Luís Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se
convulsivamente, a soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saíam do peito, a puxar os
cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d'alma tudo aquilo, tão
lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e não houve remédio senão dizer-lhe algumas
palavras de conforto. A consolação veio a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a
pouco, e as lágrimas estancaram, ao menos por algum tempo.
Sei que tudo isto há de parecer-te ridículo, disse Estêvão sentandose na cama; mas
que queres tu? Eu vivia na persuasão de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo não
entendo o que se passou hoje, Ou o que eu supunha ser amor, não passava talvez de passatempo
ou zombaria...
Talvez, talvez, interrompeu Luís Alves, compreendendo que o melhor meio de o
curar do amor era meter-lhe em brios o amor-próprio.
Estêvão ficou alguns instantes pensativo.
Não, não é possível, contestou ele. Tu não a conheces. É uma grave e nobre criatura,
incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel.
— As mulheres...
— Já pensei se aquilo de hoje não seria uma maneira de experimentar-me, de ver até que
ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Luís; eu nada afirmo; digo que pode ser. Não admira que
ela fizesse esse cálculo, - um bom cálculo, nesse caso, todo filho do coração...
A imaginação de Estêvão desceu por este declívio de floridas conjecturas, e Luís Alves
entendeu que era de bom aviso não espantar-lhe os cavalos.
Ela foi, foi, foi por ali abaixo, rédea frouxa e riso nos lábios. Boa viagem!
exclamou mentalmente o colega voltando a estirar-se no sofá. A viagem não foi longa,
mas produziu efeito salutar no ânimo do namorado, adoçando-lhe as penas, circunstância que
Luís Alves aproveitou para lhe falar de cem coisas alheias ao coração e diverti-lo do pensamento
que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, porque fez com
que o colega risse, a princípio de um riso amargo e dúbio, depois de um riso jovial e franco
incompatível com intuitos trágicos. Mas, ai triste! a dor dele era uma espécie de tosse moral, que
aplacava e reaparecia, intensa às vezes, às vezes mais fraca, mas sempre infalível. O rapaz
acertara de abrir uma página de Werther, leu meia zia de linhas, e o acesso voltou mais forte
que nunca.
Luís Alves acudiu-lhe com as pastilhas da consolação; o acesso passou; nova palestra,
novo riso, novo desespero, e assim se foram escoando as horas da noite, que o relógio da sala de
jantar batia seca e regularmente, como a lembrar aos dois amigos que as nossas paixões não
aceleram nem moderam o passo do tempo.
A aurora para os dois acadêmicos coincidiu com as badaladas do meio-dia, o que não
admira, pois adormeceram quando ela começava a apagar as estrelas. Estêvão passou a noite,
a manhã, quero dizer, muito sossegada e livre de sonhos maus. Quando abriu os olhos
estranhou o aposento e os objetos que o rodeavam. Logo que os reconheceu, despertou-se-lhe,
com a memória, o coração, onde já não havia aquela dor aguda da véspera. Os sucessos, embora
recentes, começavam a envolver-se na sombra crepuscular do passado.
A natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive não só do que ama,
mas também (força é dizê-lo) do que come. Sirva isto de escusa ao nosso estudante, que almoçou
nesse dia, como nos anteriores, bastando dizer em seu abono que, se o não fez com lágrimas,
também o não fez alegre. Mas o certo é que a tempestade serenara; o que havia era uma ressaca,
ainda forte, mas que diminuiria com o tempo. Luís Alves evitou falar-lhe de Guiomar; Estêvão
foi o primeiro a recordar-se dela.
tempo ao tempo, respondeu Luís Alves, e ainda te hás de rir dos teus planos de
ontem. Sobretudo, agradece ao destino o haveres escapado tão depressa. E queres um conselho?
— Dize.
O amor é uma carta, mais ou menos longa, escrita em papel velino, corte dourado,
muito cheiroso e catita; carta de parabéns quando se lê, carta de pêsames quando se acabou de
ler. Tu que chegaste ao fim, põe a epístola no fundo da gaveta, e não te lembres de ir ver se ela
tem um post-scriptum...
Estêvão aplaudiu a metáfora com um sorriso de bom agouro.
Duas vezes viu ele a formosa Guiomar, antes de seguir para S. Paulo.
Da primeira sentiu-se ainda abalado, porque a ferida não cicatrizara de todo; da segunda,
pôde encará-la sem perturbação. Era melhor, mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a
caminho da academia, com o desespero no coração, lavado em lágrimas, ou a bebê-las em
silêncio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei de eu fazer? Ele foi daqui
com os olhos enxutos, distraindo-se dos tédios da viagem com alguma pilhéria de rapaz, — rapaz
outra vez, como dantes.
II - UM ROUPÃO
Um mês depois de chegar Estêvão a S. Paulo, achava-se a sua paixão definitivamente
morta e enterrada, cantando ele mesmo um responso, a vozes alternadas, com duas ou três moças
da capital, todas elas, por passatempo. Claro é que dois anos depois, quando tomou o grau de
bacharel, nenhuma idéia lhe restava do namoro da rua dos Inválidos. Demais, a bela Guiomar
desde muito tempo deixara o colégio e fora morar com a madrinha. Já ele a não vira da primeira
vez que veio à corte. Agora voltava graduado em ciências jurídicas e sociais, como fica dito,
mais desejoso de devassar o futuro que de reler o passado.
A corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os que
transpuseram a linha dos cinqüenta divertia-se mais do que hoje, eterno reparo dos que já não dão
à vida toda a flor dos seus primeiros anos. Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como
no tempo deles, o que é natural dizer, porque cada homem vê as coisas com os olhos da sua
idade. Os recreios da juventude não são decerto igualmente nobres, nem igualmente frívolos, em
todos os tempos; mas a culpa ou o merecimento não é dela, a pobre juventude, é sim do
tempo que lhe cai em sorte.
A corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cólera -; bailava-se, cantava-se,
passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os seus salões, como os abria o Clube, como os
abria o Congresso, todos três fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do
teatro lírico, a quadra memorável daquelas lutas e rivalidades renovadas em cada semestre, talvez
por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo diminuiu, ou transferiu, — Deus lhe perdoe,
— a coisas de menor tomo. Quem se não lembra, — ou quem não ouviu falar das batalhas feridas
naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião casalônica e a falange
chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas
frescas, — e maduras também, apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de estalinhos.
Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo chartonista, com tal violência, que
parecia uma página da Ilíada. Desta vez, a Vênus da situação saiu ferida do combate; um estalo
rebentara no rosto da Charton. O furor, o delírio, a confusão foram indescritíveis; o aplauso e a
pateada deram-se as mãos, e os pés. A peleja passou aos jornais. "Vergonha terna (dizia um
aos cavalheiros que cuspiram na face de uma dama!" — "Se for mister (replicava outro) daremos
os nomes dos aristarcos que no saguão do teatro juraram desfeitear Mlle. Lagrua." "Patuléia
desenfreada!”
- "Fidalguice balofa!”
Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir hoje, após
dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em coisas que pediam repouso de espirito e
lição de gosto.
Estêvão é uma das relíquias daquela Troia, e foi um dos mais fervorosos lagruístas,
antes e depois do grau. A causa principal das suas preferências, era decerto o talento da cantora;
mas a que ele costumava dar, nas horas de bom humor, que eram todas as vinte e quatro do dia,
tirantes as do sono, essa causa que mais que tudo o ligava aos "arraiais do bom gosto" dizia ele,
era, imaginem lá, era o buço de Mlle. Lagrua. Talvez não fosse ele o único amador do
buço; mas outro mais férvido duvido que houvesse nesta boa cidade. Um chartonista
maquiavélico, aliás escritor elegante, elevava o tal buço à categoria de bigode, compreendendo
sagazmente que, se o buço era graça, o bigode era excrescência; e ele nem ao lábio da Lagrua
queria perdoar.
Oh! aquele buço! exclamava Estêvão nos intervalos de uma ópera, aquele delicioso
buço há de ser a perdição da gente de bem! Quem me dera ir encaracolado por ali acima, até ficar
mais próximo do céu, quero dizer dos seus olhos, e ser visto por ela, que me não descobre na
turba inumerável dos seus adoradores! Querem saber uma coisa? Ali é que ela há de ter a alma, e
eu quisera entreter-me com a alma dela, e dizer-lhe muita coisinha que tenho dentro à espera
de um buço que as queira ouvir.
Estêvão era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes.
Vinha cheirando ainda aos cueiros da academia, meio estudante e meio doutor, aliando
em si, como em idade de transição, o estouvamento de um com a dignidade do outro. As mesmas
quimeras tinha, e a mesma simpleza de coração; só não as mostrara nos versos que imprimiu em
jornais acadêmicos, os quais eram todos repassados do mais puro byronismo, moda muito do
tempo. Neles confessava o rapaz à cidade e ao mundo a profurida incredulidade do seu espírito, e
o seu fastio puramente literário.
A colação de grau interrompeu, ou talvez acabou, aquela vocação poética; o último
suspiro desse gênero que lhe saiu do peito foram umas sextilhas à sua juventude perdida.
Felizmente, que só a perdeu em verso; na prosa e na realidade era rapaz como poucos.
Posto fizesse boa figura na academia, mais prezava do que amava a ciência do Direito.
Suas preferências intelectuais dividiam-se, ou antes abrangiam a Política e a Literatura, e ainda
assim, a Política lhe acenava com o que podia haver literário nela. Tinha leitura de uma e
outra coisa, mas leitura veloz e à flor das páginas. Estêvão não compreenderia nunca este axioma
de lorde Macaulay que mais aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria
nada; e daí vinha o seu nenhum apego às ciências que estudara. Venceu a repugnância por amor-
próprio; mas, uma vez dobrado o Cabo das Tormentas disciplinares, deixou a outros o cuidado de
aproar à Índia.
Suas aspirações políticas deviam naturalmente morrer em gérmen, não porque lhe
minguava o apoio necessário para as arvorecer e frutificar, mas ainda porque ele não tinha em si
a força indispensável a todo o homem que põe a mira acima do estado em que nasceu. Eram
aspirações vagas, intermitentes, vaporosas, umas visões legislativas e ministeriais, que tão
depressa lhe namoravam a imaginação, como logo se esvaeciam, ao resvalar dos primeiros olhos
bonitos, que esses, sim, amava-os ele deveras.
Opiniões não as tinha; alguns escritos que publicara durante a quadra acadêmica eram
um complexo de doutrinas de toda casta, que lhe flutuavam no espírito, sem se fixarem nunca,
indo e vindo, alçando-se ou descendo, conforme a recente leitura ou a atual disposição de
espírito.
Por agora militava nas fileiras do lagruísmo, com ardor, dedicação e fidelidade de bom
apóstolo. Não era abastado para pagar o luxo de uma opinião lírica; nascera pobre e não tinha
parente em boa posição. Alguns poucos recursos possuía, provenientes do seu ofício de
advogado, que exer-cia com o amigo Luís Alves.
Uma noite assistira à representação de 0telo, palmeando até romper as luvas, aclamando
até cansar-lhe a voz, mas acabando a noite satisfeito dos seus e de si. Terminado o espetáculo, foi
ele, segundo costumava, assistir à saída das senhoras, uma procissão de rendas, e sedas, e leques,
e véus, e diamantes, e olhos de todas as cores e linguagens. Estêvão era pontual nessas ocasiões
de espera, e raro deixava de ser o último que saía.
Tinha agora os olhos pregados em outros olhos, não pardos como os dele, mas azuis, de
um azul-ferrete, infelizmente uns olhos casados, quando sentiu alguém bater-lhe no ombro, e
dizer-lhe baixinho estas palavras:
— Larga o pinto, que é das almas.
Estêvão voltou-se.
— Ah! és tu! disse ele vendo Luís Alves. Quando chegaste?
Hoje mesmo, respondeu o colega; venho sequioso de música. Vassouras não tem
Lagrua nem Otelo...
— Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estêvão que, ainda falando em prosa,
cultivava as suas metáforas poéticas. Fizeste bem; não te perdoaria se preferisses a outra, a
lambisgóia, que aqui nos querem impingir por grande coisa, e que não chega aos calcanhares do
buço...
Interrompeu-se. Luís Alves acabava de cumprimentar cerimoniosamente alguém que
passava; Estêvão volveu a cabeça para ver quem era.
Era uma moça, que ele não chegou a ver, porque já descia as escadas; mas tão elegante e
gentil que os olhos lhe fuzilaram de admiração.
— Algum namoro? perguntou ao amigo.
— Não; uma vizinha.
A desfilada acabou; saíram os dois e foram dali cear a um hotel, seguindo depois para
Botafogo, onde morava Luís Alves, desde que perdera a mãe, alguns meses antes.
A casa de Luís Alves ficava quase no fim da Praia de Botafogo, tendo ao lado direito
outra casa, muito maior e de aparência rica. A noite estava bela, como as mais belas noites
daquele arrabalde. Havia luar, céu límpido, infinidade de estrelas e a vaga a bater molemente na
praia, todo o material, em suma, de uma boa composição poética, em vinte estrofes pelo menos,
obrigada a rima rica, com alguns esdrúxulos rebuscados nos dicionários.
Estêvão poetou, mas poetou em prosa, com um entusiasmo legitimo e sincero. Luís
Alves, menos propenso às coisas belas, preferia a mais útil de todas naquela ocasião, que era ir
dormir. Não o conseguiu sem ouvir ao hóspede tudo quanto ele pensava acerca daquele "pinto,
que era das almas", aqueles olhos azuis, "profundos como o céu", exclamava Estêvão.
Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os tais olhos o perseguissem, ainda em
sonhos, ou porque estranhasse a carna, ou porque o destino assim o resolvera, a verdade é que
Estêvão dormiu pouco, e, coisa rara, acordou logo depois de aparecer a arraiada.
A manhã estava fresca e serena; era tudo silêncio, mal quebrado pelo bater do mar e
pelo chilrear dos passarinhos nas chácaras da vizinhança.
Estêvão, amuado por não poder conciliar o sono, resolvera-se a ir ver a manhã, de mais
perto. Ergueu-se de manso, lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem café ao jardim, para
onde foi sobraçando um livro que acaso topou ao pé da cama.
O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chácara vizinha por uma cerca.
Relanceando os olhos pela chácara, viu Estêvão que era plantada com esmero e arte, assaz vasta,
recortada por muitas ruas curvas e duas grandes ruas retas. Uma destas começava das escadas de
pedra da casa e ia até o fim da chácara; a outra ia da cerca de Luís Alves até à extremidade
oposta, cortando a primeira no centro. Do lugar em que ficava Estêvão só a segunda rua podia ser
vista de ponta a ponta.
Sentou-se o bacharel em um banco que ali achou, recebeu a xícara de café, que o
escravo lhe trouxe daí a pouco, acendeu um charuto e abriu o livro. O livro era uma Prática
forense. Demos-lhe razão ao despeito com o que o fechou e atirou ao chão, contentando-se com o
canto dos pássaros e o cheiro das flores, e a sua imaginação também, que valia as flores e os
pássaros.
Deus sabe até onde iria ela, com as asas fáceis que tinha, se um incidente lhas não
colhera e fizera descer à terra. Da casa vizinha saíra um roupão, ele não viu mais que um
roupão, — e seguira pela rua que enfrentava com a casa, a passo lento e meditativo. Estêvão, que
adorava todos os roupões, fossem ou não meditativos, deu as graças à Providência, pela boa
fortuna que lhe deparava, e afiou os olhos para contemplar aquela graciosa madrugadora.
Graciosa, ainda ele não sabia se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava
que o fosse.
A deliciosa paisagem ia ter enfim uma alma; o elemento humano vinha coroar a
natureza.
Ergueu-se Estêvão, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver melhor, e ser
visto, digamos a verdade toda, aquela desconhecida vizinha, que devia ser por força a que
Luís Alves cumprimentara no teatro, Acteon cristão e modesto, não surpreendia Diana no banho,
mas ao sair dele; todavia, não palpitava menos de comoção e curiosidade.
O roupão ia andando.
III - AO PÉ DA CERCA
A primeira coisa que Estêvão pôde descobrir é que a vizinha era moça. Via-lhe o perfil,
em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via-
lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez,
mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as
mulheres belas. O roupão, — de musselina branca, — finamente bordado, não deixava ver toda a
graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegância que nasce com a criatura ou se apura
com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco à tesoura da costureira. Todo o colo ia
coberto até o pescoço, onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão, do
mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de
renda.
Estêvão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas estas minúcias
que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias. O que ele viu,
além do perfil, dos cabelos, e da tez branca, foi a estatura da moça, que era alta, talvez um pouco
menos do que parecia com o vestido roçagante que levava. Pôde ver-lhe também um livrinho,
aberto nas mãos, sobre o qual pousava os olhos, levantando-os de espaço a espaço, quando lhe
era mister voltar a folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura.
Ia assim andando, sem cuidar que a visse alguém, tão serena e grave, como se
atravessara um salão. Estêvão, que não tirava os olhos dela, mentalmente pedia ao céu a fortuna
de a ter mais próxima, e ansiava por vêla chegar à rua que lhe ficava diante. Contudo, era difícil
que lhe parecesse mais formosa do que era, vista assim de perfil, a escapar por entre as árvores.
O jovem bacharel, por não perder o sestro dos primeiros tempos, avocava todas as suas
reminiscências literárias; a desconhecida foi sucessivamente comparada a um serafim de
Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memória dele havia mais aéreo,
transparente, ideal.
Enquanto ele trabalhava o espírito nestas comparações poéticas, não descabidas, se
quiserem, em tal lugar, e ao de tão graciosa criatura, ela seguia lentamente e chegara à
encruzilhada das duas grandes ruas da chácara. Estêvão esperava que voltasse à direita, isto é,
que viesse para o lado dele, mas sobretudo receava que seguisse pela mesma rua adiante e se
perdesse no fundo da chácara. A moça escolheu um meio-termo, voltou à esquerda, dando as
costas ao seu curioso admirador e continuando no mesmo passo vagaroso e regular.
A chácara não era em demasia grande; e por mais lento que fosse o passo da
madrugadora, não gastaria ela imenso tempo em percorrer até o fim aquela porção da rua em que
entrara. Mas ali, ao daquele coração juvenil e impaciente, cada minuto parecia, não direi um
século, seria abusar dos direitos do estilo, mas uma hora, uma hora lhe parecia, com
certeza.
A moça entretanto, chegando ao fim, parou alguns instantes, pousou a mão nas costas de
um banco rústico que ali havia e enfrentava com outro, colocado na extremidade oposta. A outra
mão descaíra-lhe, e os olhos também, o que magoou o seu curioso observador. Seriam saudades
de alguém?
Estêvão sentiu uma coisa, a que chamarei ciúme antecipado, mas que na realidade eram
invejas da alheia fortuna. A inveja é um sentimento mau; mas nele, que nascera para amar, e que,
além disso, tinha em si o contraste do nascimento com o instinto, um berço obscuro e umas
aspirações à vida elegante, — nele a inveja era quase um sentimento desculpável.
A moça voltou e veio pela rua adiante. Enfim, disse consigo Estêvão, vou contemplá-la
de mais perto. Ao mesmo tempo, receoso de que, descobrindo ali um estranho, guiasse os passos
para casa, Estêvão afastou-se do lugar em que ficara, resoluto a aparecer, quando ela estivesse
próxima à cerca do jardim. A moça vinha andando com o livro fechado, e os olhos ora no chão,
ora nas andorinhas e camaxilras que esvoaçavam na chácara.
Se trazia saudades, não se lhe podiam ler no rosto, que era quieto e pensativo, sim, mas
sem a menor sobra de pena ou de tristeza.
Estêvão do lugar onde estava podia examinar-lhe as feições, sem ser visto por ela; mas
foi justamente do que não cuidou, desde que lhas pôde distinguir. Valia a pena, entretanto,
contemplar aqueles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas,
não maviosos nem quebrados, como ele os cuidara ver, mas de uma beleza severa, casta e fria.
Valia a pena admirar como eles comunicavam a todo o rosto e a toda a figura um ar de
majestade tranqüila e senhora de si. Não era ela uma dessas belezas que, ao mesmo tempo que
subjugam o coração, acendem os sentidos; falava à inteligência primeiro do que ao coração, tanto
a arte parecia haver colaborado com a natureza naquela criatura, meia estátua e meia mulher.
Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, porém, é que a nenhuma
destas coisas atendeu. Desde que distinguira as feições da moça, ficou como tomado de
assombro, com os olhos parados, a boca entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o
coração.
A moça chegara à cerca; esteve de pé algum tempo, olhou em derredor e por fim sentou-
se no banco que ali havia, dando as costas para o jardim de Luís Alves. Abriu novamente o livro,
e continuou a leitura do ponto em que a deixara tão consigo, tão embebida no livro que tinha
diante, que não a despertou o rumor, aliás sumido, dos passos de Estêvão nas folhas secas do
chão. Teria percorrido meia página, quando Estêvão, reclinando-se sobre a cerca, e procurando
abafar a voz para que só chegasse aos ouvidos dela, proferiu este simples nome:
— Guiomar!
A moça soltou um grito de surpresa e de susto, e voltou-se sobressaltada para o lado
donde partira a voz. Ao mesmo tempo levantara-se. A impressão que lhe produzira, e não sei se
também algum ar de cólera que lhe notasse no rosto; e além de tudo, o remorso de não haver
sufocado aquele grito de seu coração, fez com que Estêvão, quase no mesmo instante,
murmurasse em tom de súplica:
Perdoe-me; foi uma centelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de
todo.
Guiomar, sabemos agora que era este o seu nome, olhou séria e quieta para o seu
mal-aventurado interruptor, dois longos e mortais minutos. Estêvão, confuso e vexado, tinha os
olhos em terra; o coração palpitava-lhe com força, como a despedir-se da vida. A situação era em
demasia aflitiva e embaraçosa para que se pudesse prolongar mais. Estêvão ia cortejá-la e
despedir-se; mas a moça, com um sorriso de mais piedade que afeto, murmurou:
— Está perdoado.
Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mão, que ele apertou, - apertou não é bem dito,
— em que ele tocou apenas, o mais cerimoniosamente que podia e devia naquela situação.
E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dali,
a verem ambos o espectro do passado, aquele tão amargo passado para um deles. Guiomar foi a
primeira que rompeu o silêncio, fazendo a Estêvão uma pergunta natural, como não podia deixar
de ser naquelas circunstâncias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que ele podia
ouvir:
— Há dois anos que nos não vemos, creio eu?
— Há dois anos, murmurou Estêvão abafando um suspiro.
— Já está formado, não? Lembra-me ter lido o seu nome...
— Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tia...
— Não a vejo há muito tempo, interrompeu Guiomar; eu saí do colégio, logo depois que
o senhor seguiu para S. Paulo. Saí a convite da baronesa, minha madrinha, que foi buscar-me
um dia, alegando que eu já não tinha que aprender, e que me não convinha ensinar.
Decerto, assentiu Estêvão. Minha tia é que não deixou nem podia deixar de
ensinar; acabou no ofício.
— Acabou?
— Morreu.
— Ah!
— Morreu há cerca de um ano.
Era uma boa criatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silêncio,
muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi... Está admirando esta flor?
Estêvão, apanhado em flagrante delito de admiração, não da flor mas da mão que a
sustinha, uma deliciosa mão, que devia ser por força a que se perdeu da Vênus de Milo,
Estêvão balbuciou:
— Com efeito, é linda!
— Há muita flor bonita aqui na chácara. A baronesa tem imenso gosto a estas coisas, e o
nosso jardineiro é homem que sabe do seu ofício.
Aquele natural acanhamento da primeira ocasião foi desaparecendo aos poucos, e a
conversa veio a ser, não tão familiar, como outrora, mas em todo o caso menos fria do que a
princípio estivera. Havia, contudo, uma diferença entre os dois: ele, sem embargo do
desembaraço, sentia-se abalado e comovido; ela, porém, vencido o sobressalto do princípio,
mostrava-se tranqüila e fria, sempre polida e grave, risonha às vezes, mas de um risonho à flor do
rosto, que não lhe alterava a serenidade e compostura.
O sítio e a hora eram mais próprios de um idílio, que de uma fria e descolorida prática.
Um céu claro e límpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e
tépida, a vegetação em derredor, todo aquele reviver das coisas parecia estar pedindo uma igual
aurora nas almas. Estas é que deviam falar ali a sua língua delas, amorosa e cândida, em vez da
outra, cortês, elegante e rígida, que a nenhum deles desprazia, decerto, mas que era muito menos
voluntária nos lábios de Estêvão.
Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor.
Estêvão, que a maior parte do tempo ficara a ouvi-la, observava entre si que as maneiras
da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação. A Guiomar
que ele conhecera e amara era o embrião da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito;
faltava-lhe outrora o colorido, mas já se lhe viam as linhas do desenho.
A conversa durou cerca de três quartos de hora, uma migalha de tempo para ele, que
desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ela foi a primeira a dizer-lho.
— O senhor fez-me perder muito tempo. Há talvez uma hora que estamos aqui a
conversar. Era natural, depois de dois anos. Dois anos!
Mas o que não era natural, continuou ela mudando de tom, era atreverme a falar com um
estranho neste deshabillé tão pouco elegante...
— Elegantíssimo, pelo contrário.
O senhor tem sempre um cumprimento de reserva: vejo que não perdeu o tempo na
academia, Vou-me embora. São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara.
— Será aquela senhora que ali está no alto da escada? perguntou Estêvão.
— É ela mesma, respondeu Guiomar. Está à espera que lhe vá dar o braço.
E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mão a Estêvão, dizendo:
— Passe bem, senhor doutor, estimei vê-lo.
Estêvão tocou-lhe levemente na mão, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A moça
caminhou para casa. Ele acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ela, desta
vez a passo acelerado, resvalava por entre as árvores até subir as escadas da casa. Viu-a dar o
braço à madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar
seguira da primeira vez.
Estêvão ainda ficou algum tempo encostado à cerca, na esperança de que ela olhasse ou
dirigisse os passos para aquele lado; ela porém, passou indiferente, como se nem da existência
dele soubera. Estêvão retirouse dali cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos, cheio de
uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o eco vago e
surdo desta interrogação:
— Entro num drama ou saio de uma comédia?
IV - LATET ANGUIS
O passeio da baronesa durou pouco mais de meia hora. O sol começava a aquecer, e
apesar de ser bastante sombreada a chácara, o calor aconselhava à boa senhora que se recolhesse.
Guiomar deu-lhe o braço, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa.
— Parece muito tarde, Guiomar, disse a baronesa ao cabo de alguns segundos.
E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro
que tive aqui na chácara.
— Um encontro?
— Um homem.
— Algum ladrão? perguntou a madrinha parando.
— Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha mestra de
colégio... sabe que morreu?
— Quem disse isso?
— O sobrinho, o tal sujeito que encontrei aqui hoje.
— Você está zombando comigo! Um homem na chácara?
— Não era bem na chácara, mas no jardim do Dr. Luís Alves. Estava encostado à cerca;
trocamos algumas palavras.
A baronesa olhou para ela alguns segundos.
Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada,
porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu. Mas as aparências... Que
qualidade de homem é esse sobrinho?
Interrompeu-as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco anos, alta e magra,
cabelo entre louro e branco, olhos azuis, asseadamente vestida, a Sra. Oswald, ou mais
britanicamente, Mrs. Oswald, — dama de companhia da baronesa, desde alguns anos. Mrs.
Oswald conhecera a baronesa em 1846; viúva e sem família, aceitou as propostas que esta lhe
fez. Era mulher inteligente e sagaz, dotada de boa índole e serviçal. Antes da ida de Guiomar
para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presença de Guiomar, que a
baronesa amava extremosamente, alterou um pouco a situação.
São nove horas! disse de longe a inglesa; pensei que hoje não queriam voltar para
casa. O calor está forte; e a senhora baronesa sabe que não é conveniente expor-se aos ardores do
sol, sobretudo neste tempo de epidemias.
Tem razão, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o
passeio começou tarde.
— Por que me não mandou chamar?
— Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott...
— Milton, emendou gravemente a inglesa; esta manhã foi dedicada a Milton. Que
imenso poeta, D. Guiomar!
Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e
dentro a ouviremos com melhor disposição.
Foram as três andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com
seis janelas para a chácara. Dali seguiram para uma saleta, onde a baronesa sentou-se na sua
poltrona, a escapar a hora do almoço. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baronesa que
desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs.
Oswald, sem dizer palavra.
Era ela uma senhora de cinqüenta anos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da
velhice, que é um resto da elegância da mocidade. Os cabelos, cor de prata fosca, emolduravam-
lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, não por desgostos, que os não tivera, mas pelos anos.
Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto.
Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser igualmente feliz desde o dia do
noivado até o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas já lá iam alguns anos, e da crua dor que
tivera ficara-lhe agora a consolação da saudade.
Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a sós, disse ela à inglesa, que se achava a
alguns passos de distância.
Mrs. Oswald foi até a porta espreitar se viria alguém e voltou a sentar-se ao pé da
baronesa. A baronesa estava outra vez pensativa, com as mãos cruzadas no regaço e os olhos no
chão.
Estiveram as duas ali silenciosas alguns dois ou três minutos. A baronesa despertou
enfim das reflexões, e voltou-se para a inglesa:
— Mrs. Oswald, disse ela, parece estar escrito que não serei completamente feliz.
Nenhum sonho me falhou nunca; este, porém, não passará de sonho, e era o mais belo de minha
velhice.
Mas por que desespera? disse a inglesa. Tenha ânimo, e tudo se de arranjar. Pela
minha parte, oxalá pudesse contribuir para a completa felicidade desta família, a quem devo
tantos e tamanhos benefícios.
— Benefícios!
— E que outra coisa são os seus carinhos, a proteção que me tem dado, a confiança...
— Está bom, está bom, interrompeu afetuosamente a baronesa; falemos de outra coisa.
Dela, não é? Diz-me o coração que com alguma paciência tudo se alcançará. Todos
os meios se hão de tentar; e todos eles são bons se se trata de fazer a felicidade sua e dela. Bem
está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juízo. Por enquanto só vejo um
obstáculo: a pouca disposição...
— Só esse?
— Que outro mais?
— Talvez outro, disse a baronesa abaixando a voz; pode ser que não, mas tão infeliz sou
neste meu desejo, que há de vir a ser obstáculo, talvez.
— Mas que é?
Um homem, um moço, não sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ela
mesma contou-me tudo há pouco.
— Tudo o quê?
Não sei se tudo; mas enfim disse-me que, estando a passear na chácara, vira o tal
sobrinho da mestra, junto à cerca do Dr. Luís Alves, e ficara a conversar com ele. Que será isto,
Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomeça agora, — agora, que ela já não é a simples
herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu coração.
A comoção da baronesa ao proferir estas palavras era tal, que Mrs.
Oswald pegou-lhe afetuosamente das mãos e procurou confortá-la com outras palavras
de esperança e confiança. Disse-lhe, além disso, que o simples conversar com esse homem, que
aliás nenhuma delas conhecia, não era razão para supor uma paixão anterior.
Enfim, concluiu a inglesa, custa-me crer que ela ame a alguém neste mundo. Por
enquanto estou que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra senão essa. Sua
afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo à frieza, e da confiança ao
retraimento. de vir a amar, mas não creio que tenha grandes paixões, ao menos duradouras.
Em todo o caso, posso responder-lhe atualmente pelo seu coração, como se tivesse a chave na
minha algibeira.
A baronesa abanou a cabeça.
— Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem é ele, e que relações
de afeto houve no passado.
— Parece-lhe possível?
— Naturalmente!
A inglesa proferiu esta única palavra com a segurança necessária para serenar o ânimo
da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasnada para ela, como quem refletia.
ocasiões, disse enfim a baronesa ao cabo de alguns segundos de silêncio,
ocasiões em que eu quase chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ela veio
preencher na minha vida o vácuo deixado por aquela pobre Henriqueta, a filha das minhas
entranhas, que a morte levou consigo, para mal de sua mãe. Se havia de ser infeliz, melhor é que
a chore morta, com a esperança de a ir encontrar no céu. Mas não lhe quis mais, nem talvez tanto,
como a esta criança, que levei à pia, e de quem Deus me fez mãe...
A baronesa calou-se; ouvira passos no corredor.
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com tão singelos meios o fizera,
que não desdizia daquele matinal desalinho em que o leitor a viu no capítulo anterior. O penteado
era um capricho seu, expressamente inventado para realçar a um tempo a abundância dos cabelos
e a senhoril beleza da testa. As pontas bordadas de um colarinho de cambraia dobravam-se
faceiramente sobre o azul do vestido de glacê, talhado e ornado com uma simplicidade artística.
Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel, um dos mais belos painéis que havia por
aqueles tempos em toda a Praia de Botafogo.
Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar à
porta da saleta.
E Guiomar sorriu com tanta satisfação e gozo ao ouvir-lhe esta saudação familiar, que
um observador atento hesitaria em dizer se era aquilo simples vaidade de moça, ou se alguma
coisa mais.
A baronesa pôs os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a moça
reparou, e que a tornaram séria durante alguns rápidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando
das mãos da madrinha deu-lhe dois beijos no rosto, com tanta ternura e tão sincera, que a boa
senhora sorriu de contentamento.
Não precisa falar, disse Guiomar, já sei que me acha bonita. É o que me diz todos os
dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encomendas, ninguém
mais poderá comigo.
Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar de rir, e
a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós também,
amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era
esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald.
V - MENINICE
Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno não sei de
que repartição do Estado, homem probo, que morreu quando ela contava apenas sete anos,
legando à viúva o cuidado de a educar e manter. A viúva era mulher enérgica e resoluta, enxugou
as lágrimas com a manga do modesto vestido, olhou de frente para a situação e determinou-se à
luta e à vitória.
A madrinha de Guiomar não lhe faltou naquele duro transe, e olhou por elas, como
entendia que era seu dever. A solicitude, porém, não foi tão constante a princípio como veio a ser
depois; outros cuidados de família lhe chamavam a atenção.
Guiomar anunciava desde pequena as graças que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era
uma criaturinha galante e delicada, assaz inteligente e viva, um pouco travessa, decerto, mas
muito menos do que é usual na infância. Sua mãe, depois que lhe morrera o marido, não tinha
outro cuidado na terra, nem outra ambição mais, que a de vê-la prendada e feliz.
Ela mesma lhe ensinou a ler mal, como ela sabia, e a coser e bordar, e o pouco mais
que possuía de seu ofício de mulher. Guiomar não tinha dificuldade nenhuma em reter o que a
mãe lhe ensinava, e com tal afinco lidava por aprender, que a viúva, ao menos nessa parte,
sentia-se venturosa. Hás de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples expressão de
ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo à aplicação.
A casa em que moravam era naturalmente modesta. Ali correu a infância, mas
solitária, o que é um pouco mais grave. A mãe, quando a via embebida nos jogos próprios da
idade, infantilmente alegre, mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de mãe, tão fundo
lhe doía aquele viver, - a mãe sentia às vezes pularem-lhe as lágrimas dos olhos fora. A filha não
as via, porque ela sabia escondê-las; mas adivinhava-as através da tristeza que lhe ficava no
rosto. não adivinhava o motivo, mas bastava que fossem mágoas de sua mãe, para lhe descair
também a alegria.
Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viúva, ainda mais dolorosa
que a primeira. Na idade apenas de dez anos, tinha Guiomar uns desmaios de espirito, uns dias de
concentração e mudez, uma seriedade, a princípio intermitente e rara, depois freqüente e
prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer à mãe que eram prenúncios de que Deus a
chamava para si. Hoje sabemos que não eram. Seria acaso efeito daquela vida solitária e austera,
que já lhe ia afeiçoando a alma e como que apurando as forças para as pugnas da vida?
A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde,
em que ela estivera a brincar no quintal da casa.
O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a
uma casa da vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os
olhos, já sérios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a
cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente aparecer-
lhe diante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que
arrastavam por entre as árvores os seus vestidos, e faziam luzir aos últimos raios do sol poente as
jóias que as enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou
talvez algum afago; mas foram-se, e com elas os olhos da interessante pequena, que ali ficou
largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memória o quadro que passara.
A noite veio, a menina recolheu-se pensativa e melancólica, sem nada explicar à solícita
curiosidade da mãe. Que explicaria ela, se mal podia compreender a impressão que as coisas lhe
deixavam? Mas, como a mãe entristecesse com aquilo, Guiomar domou o próprio espírito e fez-
se tão jovial como nos melhores dias.
Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade superior aos seus
anos. Com ela, e a viveza intelectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a mãe lhe
ensinara, e melhor ainda do que ela o sabia, desde que o tempo lhe permitiu desenvolver os
primeiros elementos.
Aos treze anos ficou órfã; este fundo golpe em seu coração, foi o primeiro que ela
verdadeiramente pôde sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. então a madrinha a fizera
entrar para um colégio, onde aperfeiçoava o que sabia e onde lhe ensinavam muita coisa mais.
Vivia ainda então a filha da baronesa, uma interessante criança de treze anos, que era
toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava a casa da madrinha; a idade quase igual das
duas meninas, a afeição que as ligava, a beleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de
seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laços puramente espirituais que as
uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia talvez em seu
afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O afeto era espontâneo; o
encarecimento é que seria voluntário.
Tinha a moça dezesseis anos quando passou para o colégio da tia de Estêvão, onde
pareceu à baronesa se lhe poderia dar mais apurada educação. Guiomar manifestara então o
desejo de ser professora.
— Não há outro recurso, disse ela à baronesa quando lhe confiou esta aspiração.
— Como assim? perguntou a madrinha.
Não há, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que a senhora me
tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve cumprir. A minha é... é ganhar o pão.
Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força.
O rubor subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha.
— Guiomar! exclamou a baronesa.
— Peço-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade.
A madrinha sorriu e aprovou-a com um beijo, assentimento de boca, a que o
coração não respondia, e que o destino devia mudar.
Pouco tempo depois padeceu a baronesa o golpe quase mortal a que aludiu no capítulo
anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quase levou a mãe à sepultura.
A afeição de Guiomar não se desmentiu nessa dolorosa situação. Ninguém mostrou
sentir mais do que ela a morte de Henriqueta, ninguém consolou tão dedicadamente a infeliz que
lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus anos; todavia revelou ela a posse de uma alma
igualmente terna e enérgica, afetuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira
dona da casa; a catástrofe abatera a própria Mrs. Oswald.
O coração da pobre mãe ficara tão vazio, e a vida lhe pareceu tão agra e deserta sem a
filha, que ela morreria talvez de saudade, se não fora a presença de Guiomar. Nenhuma outra
criatura poderia preencher, como esta, o lugar de Henriqueta. Guiomar era meia filha da
baronesa; as circunstâncias, não menos que o coração, tinham-nas destinado uma para a outra.
Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para
sua casa.
Você será a filha que eu perdi; ela não me amou mais, nem eu agora teria outra
consolação.
— Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mãos.
A baronesa estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos pés e pôs-lhe a cabeça no
regaço. A boa mãe curvou-se e beijou-lha ternamente, com os olhos naquela filha que os
sucessos lhe haviam dado, e o pensamento no céu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e
levou para si.
Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha, onde a
alegria reviveu, gradualmente, graças à nova moradora, em quem havia um tino e sagacidade
raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e não breve, o modo de viver entre a madrinha e
Henriqueta, Guiomar pôs todo o seu esforço em reproduzir pelo mesmo teor os hábitos de outro
tempo, de maneira que a baronesa mal pudesse sentir a ausência da filha. Nenhum dos cuidados
da outra lhe esqueceu, e se em algum ponto os alterou foi para aumentar-lhe novos. Esta intenção
não escapou ao espírito da baronesa, e é supérfluo dizer que deste modo os vínculos do afeto
mais se apertaram entre ambas.
Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava a moça, não
menos, a plena harmonia de seus instintos com a sociedade em que entrara. A educação, que nos
últimos tempos recebera, fez muito, mas não fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a
obra, - melhor diremos, começá-la. Ninguém adivinharia nas maneiras finamente elegantes
daquela moça, a origem mediana que ela tivera; a borboleta fazia esquecer a crisálida.
VI - O POST-SCRIPTUM
Aquele conselho de Luís Alves, na fatal noite de dois anos antes, não dúvida que era
judicioso e devera ter ficado no espírito de Estêvão.
Não convinha reler a carta, sob pena de lhe achar um post-scriptum. Estêvão era curioso
de epístolas; não pôde ter-se que não abrisse aquela. O post-scriptum la estava no fim.
Vindo à linguagem natural, Estêvão saiu do jardim de Luís Alves com o coração meio
inclinado a amar de novo a mulher que tanto o fizera padecer um dia. Daqui concluirá alguém
que ele verdadeiramente não deixara de a amar. Pode ser; havia talvez debaixo da cinza uma
faísca, uma , e essa bastava a repetir o incêndio. Mas fosse de um ou de outro modo, o certo é
que Estêvão saiu dali com o princípio do amor no coração.
Todo aquele dia foi de alvoroço e agitação para ele, que não se resignou logo, antes
buscou reagir contra a entrada da paixão nova. A tentativa era sincera; as forças é que eram
escassas. Ele desviava de si a imagem da moça; ela, porém, perseguia-o, tenaz, como se fora um
remorso, fatal como a voz de seu destino, Estêvão nada disse a Luís Alves do encontro e da
conversa que tivera com a moça no jardim; e não lho escondeu por desconfiança, mas por
vergonha, Que lhe diria porém ele que o não tivesse visto e percebido Luís Alves? Da janela de
seu quarto, que dava para o jardim, enfiando os olhos pela fresta das cortinas pôde observá-los
durante aqueles três quartos de hora de inocente palestra. O espetáculo não o divertiu muito; Luís
Alves achou um pouco atrevida a escolha do lugar.
A circunstância de os ver juntos chamou-lhe a atenção para a coincidência do nome da
vizinha com o da antiga namorada do colega; era naturalmente a mesma pessoa.
Vai contar-me tudo, pensou Luís Alves quando viu o colega afastar-se da cerca e
dirigir os passos para casa.
Estêvão, como disse, foi discreto. Vinha preocupado, muito outro do que entrara na
véspera, a ler-se-lhe no rosto alguma coisa mais séria do que ele próprio costumava ser.
Tinha Estêvão contra si o passado e o futuro. O presente, sim, defendia-o; ele sentia que
alguma coisa o distanciava de Guiomar. Mas o passado falava-lhe de todas as doces recordações,
as menos amargas, e a memória quase não sabe de outras quando relembra o que foi. O
futuro acenava-lhe com as suas esperanças todas, e basta dizer que eram infinitas.
Além disso, a Guiomar que ele via agora, surgia-lhe no meio de outra atmosfera, a
mesma que o seu espírito almejava respirar; e aparecia-lhe para fugir logo. Sobre tudo isto o
obstáculo, aquela porta fechada, que bem podia ser a da città dolente, mas que em todo o caso ele
quisera ver franqueada às suas ambições.
Os dias correram alternados de confiança e desânimo, tecidos de ouro e fio negro, um
lutar de todas as horas, que acabou como era de prever e devia acabar. O coração levou Estêvão
atrás de si.
Nenhum meio, dos que tinha à mão, lhe esqueceu para ver Guiomar.
As janelas da casa estavam quase sempre desertas. Duas ou três vezes aconteceu vê-la
de longe; ao aproximar-se-lhe, sumira-se o vulto na sombra do salão. Não perdia teatro; mas
duas vezes teve o gosto de a ver: uma no Lírico, onde se cantava Sonâmbula, outra no Ginásio,
onde se representavam os Parisienses, sem que ele ouvisse uma nota da ópera, nem uma palavra
da comédia. Todo ele, olhos e pensamento, estava no camarote de Guiomar. No Lírico foi
baldada essa contemplação; a moça não deu por ele. No Ginásio, sim; o teatro era pequeno;
contudo, antes não fora visto, tão tenazmente desviou ela os olhos do lugar em que ele ficara.
Nem por isso deixou Estêvão de ir esperá-la à saída, colocar-se francamente no seu
caminho, solicitar-lhe audazmente os olhos e atenção. A família desceu da segunda ordem pela
escada do lado de S. Francisco; a estreiteza do lugar era excelente. Dava o braço à baronesa um
moço de vinte e cinco anos, figura elegante, ainda que um tanto afetada. Desceram todos três e
ficaram à espera do carro alguns minutos. Na meia sombra que ali havia destacava-se o rosto
marmóreo de Guiomar e a gentileza de seu talhe. Seus grandes olhos vagavam pela multidão,
mas não fitavam ninguém. Ela possuía, como nenhuma outra, a arte de gozar, sem as ver, as
homenagens da admiração pública.
Irritado com a indiferença da moça, vagou Estêvão toda aquela noite, a sós com o seu
despeito e o seu amor, tecendo e destecendo mil planos, todos mais absurdos uns que outros. A
taça enchera de todo; era mister entorná-la no seio de um amigo, de um amigo que houvesse nas
suas mãos o único remédio que ele nessa ocasião pedia; — a chave daquela porta.
Luís Alves era esse homem.
Outra vez caído! exclamou ele rindo quando Estêvão lhe contou tudo. Eu o havia
percebido. Isto de mulheres... Queres então que te leve lá?
— Quero.
Luís Alves refletiu alguns instantes.
E uma viagem, não te seria bom fazer uma viagem? sei o que me vais dizer; mas
também não te proponho uma viagem de recreio, à Europa. Olha, arranjo-te, se queres, um lugar
de juiz municipal...
A proposta era sincera; Estêvão cuidou ver-lhe uma ponta de zombaria e ergueu os
ombros com enfado. A proposta, entretanto, merecia ser examinada; era uma carreira, e vinha de
um homem que estava a entrar na vida política, que esperava da algumas semanas o resultado
de uma eleição, com a certeza, ou quase, de haver triunfado. Era influência que nascia, e de força
viria a crescer. Mas para Estêvão, naquela ocasião, toda a carreira pública, influência, futuro, leis,
tudo estava nos olhos castanhos de Guiomar.
Eu amo-a, disse ele enfim, isto para mim é tudo. Pode bem ser que tenhas razão;
talvez me espere algum grande desgosto; mas são reflexões, e eu não reflito agora, eu sinto...
Em todo o caso, acudiu Luís Alves, desempenho o meu dever de amigo; digo-te que
vocês não nasceram um para outro; que, se ela te não amou naquele tempo, muito menos te
amará hoje, e que enfim...
Luís Alves estacou, — Enfim? perguntou Estêvão.
Enfim pedes-me um sacrifício, concluiu rindo o advogado, porque também eu a
namorisquei... Não é preciso carregares o sobrolho; foi namoro de vizinho, tentativa que durou
pouco mais de vinte e quatro horas. Com vergonha o digo, ela não me prestou uma migalha de
atenção sequer, e eu voltei aos meus autos.
— Então... gostas dela? perguntou Estêvão.
— Acho-a bonita e nada mais. Aquilo foi um lançar barro à parede; se aceitasse, casava-
me; não aceitou...
— Já vês que somos diferentes.
— Queres, então?...
— Um serviço de amigo.
— Bem, disse por fim Luís Alves, faça-se a tua vontade. A baronesa vai cuidar agora de
um processo e mandou-me falar. Eu passo-te a prebenda; entraras ali, como advogado, o que de
alguma maneira me tira um peso da consciência.
Estêvão, que só pedia um pretexto, aceitou a oferta com ambas as mãos, e agradeceu-lha
com tão expansiva ternura, que fez sorrir o outro.
A promessa cumpriu-se pontualmente. Luís Alves apresentou Estêvão à baronesa, na
seguinte noite, como seu companheiro e amigo, como advogado capaz de zelar os interesses da
ilustre cliente. A recepção foi geralmente boa, salvo por parte de Guiomar, que pareceu
aborrecida de o ver naquela casa. Quando Estêvão a saudou, como quem a conhecia de longo
tempo, ela mal pôde retribuir-lhe o cumprimento; em todo o resto da noite não lhe deu palavra.
Daquela parte o acolhimento não podia ser pior; mas Estêvão sentia-se feliz, desde que podia vê-
la, respirar o mesmo ar, nada mais pedindo por ora, e deixando o resto à fortuna.
De todas as pessoas da casa da baronesa, a primeira que reparou na indiferença com que
Guiomar tratara Estêvão, foi Mrs. Oswald. A sagaz inglesa afivelou a máscara mais impassível
que trouxera das ilhas britânicas e não os perdeu de vista. Nem da primeira nem da segunda vez
viu nada mais que os olhos dele, que solicitavam os dela, e os dela que pareciam surdos. Havia
decerto uma paixão, solitária e desatendida.
— Sabe que descobri um namorado seu? perguntou ela alguns dias depois a Guiomar.
Guiomar fez um gesto de estranheza.
Entendamo-nos, observou a inglesa; não digo que a senhora o namore também; digo
que é ele quem anda apaixonado. Não adivinha?
— Talvez.
— O Dr. Estêvão.
Guiomar fez um gesto de desdém.
Vejo que tinha adivinhado, disse Mrs. Oswald; também não era difícil. Quem tem
alguma prática destas coisas fareja uma paixão a cem léguas de distância, por mais que ela
busque recatar-se dos olhos estranhos.
Os namorados geralmente supõem que ninguém os vê; é uma lástima. Olhe, da senhora
posso eu jurar que não está namorada de pessoa nenhuma.
Que sabe disso? perguntou Guiomar deitando os olhos para o espelho de seu guarda-
vestidos. Pois estou, mas de mim mesma.
Mrs. Oswald desatou a rir, de um riso grave e pausado. Ela sabia que a moça tinha
orgulho de suas graças; era bom caminho afagar-lhe o sentimento. Disse-lhe muita coisa bonita,
que não vem para aqui, e concluiu pondo-lhe as mãos nos ombros, encarando-a fito a fito, e
enfim rompendo nestas palavras, meias suspiradas:
— A senhora é a flor desta sua terra. Quem a colherá? Alguém sei eu que a merece...
Guiomar ficou séria, e desviou brandamente as mãos da inglesa, murmurando:
— Mrs. Oswald, falemos de outra coisa.
VII - UM RIVAL
Não era a primeira vez que Mrs. Oswald aludia a alguma coisa que desagradava a
Guiomar, nem a primeira que esta lhe respondia com a sequidão que o leitor viu no fim do
capitulo anterior. A boa inglesa ficou séria e calada alguns dois ou três minutos, a olhar para
Guiomar, aparentemente buscando interrogar-lhe o pensamento, mas na realidade sem saber
como sair da situação. A moça rompeu o silêncio:
— Está bom, disse ela sorrindo, não vejo razão para que se zangue comigo.
Não estou zangada, acudiu prontamente Mrs. Oswald. Zangada por quê? Pesa-me,
decerto, que a natureza me não razão, e que uma aliança tão conveniente, para ambos, seja
repelida pela senhora; mas se isto é motivo de desgosto, não pode sê-lo de zanga...
— Desgosto?
— Para mim... e naturalmente para ele.
Guiomar respondeu com um simples sacudir de ombros, seco e rápido, como quem se
lhe não dava do mal ou não acreditava nele. Mrs. Oswald não atinou qual destas impressões
seria, e concluiu que fossem ambas. A moça, entretanto, pareceu arrepender-se daquele
movimento; travou das mãos da inglesa, e com uma voz ainda mais doce e macia que de
costume, lhe disse:
— Veja o que é ser criança! Não parece que ainda em cima me zango com a senhora?
— Parece.
Pois não é exato. Isto são caprichos de menina mal-educada. Dei para não gostar que
me adorem... Minto; disso gosto eu; mas quisera que me adorassem somente, não lhe parece?
E Guiomar acompanhou estas palavras com uma risadinha mimosa e uns gestos de
criança travessa, que destoavam inteiramente da sua gravidade habitual.
sei, gosta de uma adoração como a do Dr. Estêvão, silenciosa e resignada, uma
adoração...
E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escritura na ponta dos dedos,
continuou por este modo, acentuando as palavras:
Uma adoração como a que devia inspirar José, filho de Jacó, que era belo como a
senhora: "por ele as moças andavam por cima da cerca"...
— Da cerca? perguntou Guiomar tornando-se seria.
Do muro, diz a Escritura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei por quê. Não
core! Olhe que se denuncia.
Guiomar corara deveras; mas era a altivez e o pundonor ofendido que lhe falavam no
rosto. Olhou fria e longamente para a inglesa, com um desses olhares, que são, por assim dizer,
um gesto da alma indignada.
O que a irritava não era a alusão, que não valia muito, era a pessoa que a fazia,
inferior e mercenária. Mrs. Oswald percebeu isto mesmo; mordeu a ponta do lábio, mas transigiu
com a moça.
Meu Deus! disse ela. Parece que se zangou por uma brincadeira à-toa. Bem sabe que
eu não podia querer agravá-la; supô-lo é ofender-me a mim, a mim, que também lhe tenho
afeto de mãe...
A última palavra aquietou o ânimo de Guiomar; ela tinha cedido ao impulso do seu
caráter altivo, mas a razão veio depois, e o coração também, que não era mau. A inglesa, que
possuía longa prática da vida e sabia ceder a tempo, uniu o gesto à palavra e chamou-a com os
braços para si.
Guiomar deixou-se ir, um pouco de vontade, e a conversa teria acabado ali, se Mrs.
Oswald não lhe dissesse com a mais doce voz que daquela garganta podia sair:
Convença-se de que eu sou importuna e indiscreta por afeição, e que a felicidade
desta família é toda a ambição da minha alma. Não pode haver intenção melhor do que esta. Um
conselho último, último se me não consentir mais falar-lhe nisto; eu creio que a senhora
sonha talvez demais. Sonhará uns amores de romance, quase impossíveis? digo-lhe que faz mal,
que é melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos,
tem pelo menos a vantagem de existir.
Guiomar cravara desta vez os olhos no chão, com a expressão vaga e morta de quem os
apagou para as coisas externas. As palavras de Mrs.
Oswald responder-lhe-iam acaso a alguma voz íntima? A inglesa prosseguiu na mesma
ordem de idéias, sem que ela a interrompesse ou desse sinal de si. Quando ela acabou, Guiomar
estremeceu, como se acordasse; levantou a cabeça, e lenta, e comovida, proferiu esta única
resposta:
— Talvez tenha razão, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos são tão bons!
Mrs. Oswald abanou a cabeça e saiu; Guiomar acompanhou-a com os olhos, a sorrir,
satisfeita de si mesma, e a murmurar tão baixo que mal a ouvia o seu próprio coração:
— Sonhos não, realidade pura.
Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem
as duas trataram no diálogo que precede, se é que não suspeitou que esse era nem mais nem
menos o sobrinho da baronesa, - aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do
Ginásio.
Era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis anos. Jorge chamava-se ele; não era feio mas
a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o poeta, e
esta máxima não é aplicável à poesia, mas também ao homem. Jorge tinha um lindo bigode
castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais belos,
se ele não os movesse com afetação, às vezes feminina.
O mesmo direi dos modos, que seriam fáceis e naturais, se os não tornasse tão alinhados
e medidos. As palavras saíam-lhe lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificência do
autor. Não as proferia como as demais pessoas; cada sílaba era por assim dizer espremida, sendo
fácil ver ao cabo de alguns minutos, que ele fazia consistir toda a beleza de elocução nesse
alongar do vocábulo. As idéias orçavam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas
traziam uma côdea de gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em coisas
leves e folgazãs.
Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um pecado
mortal, o sétimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influência da tia podiam servir-lhe nas mãos
para fazer carreira em alguma coisa pública; ele, porém, preferia vegetar à toa, vivendo do
pecúlio que dos pais herdara e das esperanças que tinha na afeição da baronesa. Não se lhe
conhecia outra ocupação.
Não obstante os defeitos apontados, havia nele qualidades boas; sabia dedicar-se, era
generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor à velha parenta. A baronesa, pela sua parte,
queria-lhe muito. Guiomar e ele eram as suas duas afeições principais, quase exclusivas.
Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e não
menos de si própria. A baronesa também tinha os seus sonhos, como ela mesma disse, e esses
eram deixar felizes aquelas duas crianças. Jorge pela sua parte estava disposto a estender o colo
ao sacrifício; e, bem examinadas as coisas, talvez amasse sinceramente a moça. A diferença entre
ele e Estêvão é que o seu amor era tão medido como os seus gestos, e tão superficial como as
suas outras impressões.
Do que fica dito, facilmente compreenderá o leitor que, dos dois namorados, um
percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estêvão andava-lhe nos olhos, enchendo-os de
maneira que ele não podia ver nada mais além de Guiomar.
Ao cabo de duas semanas a situação de Estêvão podia dizer-se menos má; na opinião
dele era excelente. A baronesa soube quem ele era; Guiomar contara-lhe tudo; mas a inglesa, não
menos que a observação própria, lhe mostrou que nenhum perigo corria Guiomar, e excluído o
perigo, restavam as boas qualidades do bacharel, que de todo lhe caiu em graça. Mrs.
Oswald navegou nas mesmas águas mansas, O próprio Jorge, naturalmente porque
confiava em si, não temeu do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancelos da sua gravidade.
Que admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez?
Aquele bom rapaz tinha a salutar crendice da esperança, em que muita vez se resumem
todas as bênçãos da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era, mas bem pouco bastava a
contentá-lo. A imaginação multiplicava os zeros; com um grão de areia construiria um mundo. A
afabilidade de uns e a cortesia de outros, tanto bastou para que ele se julgasse quase no termo de
suas aspirações; e posto não lhe desse Guiomar uma das animações de outro tempo, que
aliás tão frágeis eram, ainda assim acreditou ele piamente que o amor nascia, ou renascia,
naquele rebelde coração.
Guiomar, no meio das afeiçoes que a cercavam, sabia manter-se superior às esperanças
de uns e às suspeitas de outros. Igualmente cortês, mas igualmente impassível para todos, movia
os olhos com a serenidade da isenção, não namorados, nem sequer namoradores. Ela teria, se
quisesse, a arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme eles fossem
impacientes ou tíbios; faltava-lhe porém o gosto, ou melhor, sobrava-lhe o sentimento do que
ela achava que era a sua dignidade pessoal.
VIII - GOLPE
Um dia de manhã acordou Estêvão com a resolução feita de dar o golpe decisivo. Os
corações frouxos têm destas energias súbitas, e é próprio da pusilanimidade iludir-se a si mesma.
Ele confessava que nada havia feito, e que a situação exigia alguma coisa mais.
— Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje, pensava o rapaz; Guiomar
trata-me com afabilidade de bom agouro. Demais, há nela espírito elevado; de reconhecer que
um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de
sala.
A resolução estava assentada; restava o meio de a tornar efetiva. Estêvão hesitou largo
tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmitilo por via do papel. Qualquer dos modos
tinha para ele mais perigos que vantagens. Ele receava ser frio na declaração escrita ou
incompleto na confusão oral. Irresoluto e vacilante, ambos os meios adotou e repeliu, a curtos
intervalos; enfim, diferiu a escolha para outra ocasião.
O acaso supriu a resolução, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito.
Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baronesa, foram passear à
chácara. Estêvão que, como Luís Alves, era dos convivas, afastou-se gradualmente dos outros
grupos, e aproximou-se daquela cerca histórica onde, após dois anos de ausência e esquecimento,
vira, transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que ele punha os olhos nesse sítio,
depois da conversa, que tivera com ela. A comoção que sentiu foi naturalmente grande,
ressurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o céu brilhante, o doce alento da manhã, e por fim a
figura da moça, que ali apareceu, como a alma do quadro, trazendo-lhe recordações, que ele
julgava mortas, esperanças que supunha impossíveis.
Estêvão curvou a cabeça ao doce peso daquelas memórias, a alma bebeu, a largos
haustos, a vida toda que a imaginação lhe criava e talvez a noite o tomasse na mesma atitude, se a
voz maviosa de Guiomar, lhe não dissesse a poucos passos de distância:
— Sr. doutor, perdeu alguma coisa?
O rapaz volveu rapidamente a cabeça, e viu a moça, que atravessava uma das calhes
próximas, a olhar e a sorrir para ele. Estêvão sorriu também, e com uma presença de espírito
assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como ele era, prontamente respondeu:
— Não perdi nada, mas achei uma coisa.
— Vejamos o que foi.
E Guiomar aproximou-se, a passo firme e seguro, e Estêvão, sem muito vacilar, ali
mesmo forjou uma reflexão filosófica a respeito de um inseto que casualmente passava por cima
de uma folha seca. A reflexão não valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco forçada e de
acarreto; a moça sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando ele, colhendo as forças
todas, a fez deter com estas palavras:
— E se eu tivesse achado outra coisa?
— Ainda mais! exclamou ela voltando-se risonha.
Estêvão deu dois passos para Guiomar, desta vez comovido e resoluto. A moça fez-se
séria e dispôs-se a ouvi-lo.
— Se eu tivesse achado neste lugar, continuou ele, longos dias de esperança e de
saudade, um passado que eu julgara não reviver mais, uma dor oculta e medrosa, vivida na
solidão, nutrida e consolada de minhas próprias lágrimas? Se eu tivesse achado aqui a página rota
de uma história começada e interrompida, não por culpa de ninguém na terra, mas da estrela
sinistra da minha vida, que um anjo mau acendeu no céu, e que, talvez, talvez ninguém nunca
apagará?
Estêvão calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar.
Aquela declaração repentina e rosto a rosto estava tão longe do temperamento do rapaz,
que ela gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Ele próprio
admirava-se do atrevimento que tivera; e enquanto pendia dos lábios da moça, repassava na
memória, aliás confusamente, o que tão a frouxo lhe saíra do peito naquela hora de abençoada
temeridade.
Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, é natural que preferisse
achar outra coisa menos melancólica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta ocasião
de falar, com a viva imaginação que Deus lhe deu; num ou noutro caso, porém, posso decerto
lastimá-lo ou admirá-lo, mas não me é dado ouvi-lo.
E Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estêvão, receando perder a ocasião que a
fortuna lhe oferecia, disse de longe com voz triste e súplice:
— Atenda-me um só minuto!
Não um, mas dez respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto para ele
— e serão provavelmente os últimos em que falaremos a sós. Cedo à comiseração que me inspira
o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silêncio em que se tem conservado até
hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma só palavra.
A moça falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a impaciência do que
a comiseração a que vinha de aludir. O coração de Estêvão batia-lhe como nunca, como o
coração costuma bater nas crises de uma angústia suprema. Todo aquele castelo de vento,
laboriosamente construído nos seus dias de ilusão, todo ele se esboroava e desfazia, como vento
que era. Estêvão arrependera-se do impulso que o levara a violar ainda uma vez o segredo dos
seus sentimentos íntimos, a abrir mão de tantas esperanças, alimentadas com o melhor do seu
sangue juvenil.
Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam medir-
se, ela serena e quieta, ele trêmulo e gelado.
Uma palavra, repetiu Estêvão, e essa adivinho que será de desengano. Embora!
Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma coisa, força é que lhe diga tudo, feliz, se me restar, ao
menos, a maior fortuna a que já agora posso aspirar, — o seu remorso.
Guiomar ouvira-o tranqüilamente; a última palavra fê-la estremecer.
Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntário e esperou.
A narração foi longa, tanto quanto o permitiam a ocasião, o lugar e a pessoa; durou
apenas dez minutos. Estêvão nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera outrora, nem o que
agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanças que
afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto empreendera para ter a ventura de a contemplar de
perto, de gozar naquele escasso ponto da terra a maior de todas as bem-aventuranças.
Tal é a transcrição, não literal, mas fiel, do que disse Estêvão durante esses dez minutos.
As palavras caíam-lhe trêmulas e a voz saia-lhe sumida, em parte porque ele forcejava em a
abafar, a fim de que o não ouvissem, em parte porque a comoção lhe comprimia a garganta. A
dor era visivelmente sincera; a eloqüência vinha do coração.
Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a princípio um meio riso parecia
desabrochar-lhe os lábios, mas não tardou que pelo rosto abaixo lhe caísse um véu mais
compassivo e humano. Havia nela impaciência e ansiedade de acabar, de sair dali; era, sem
dúvida, o receio de que a ausência se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia
também comiseração e piedade.
Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estêvão
concluindo; sobretudo agora, eu, a minha cabeça é a causa única de tudo. Parecia-me ver o
contrário do que existia; cheguei a supor que havia em seu coração alguma coisa que não era a
total indiferença; vejo que foi tudo ilusão.
O tom em que ele falara era o mesmo das palavras que ficam, todas humildes e
resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche.
Uma submissão assim devia por força comover a uma mulher amada.
Guiomar falou-lhe sem azedume:
— Era ilusão, disse ela. O sentimento que me acaba de revelar inteiro, ninguém o recebe
ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso?
— Nenhuma.
Nem o senhor também, e espero que esta mútua justiça avigore o sentimento de
estima que devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, não pode haver outra coisa, —
da minha parte ao menos. É pouco, decerto...
— Não é pouco, é coisa diferente, interrompeu Estêvão.
— Mas não espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção.
Estêvão abriu a boca para falar, mas não achou palavra que lhe dissesse o que sentia;
levou a mão ao coração, que batia fortemente, e ficou a olhar para ela com os olhos secos e
parados, a voz extinta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquele desengano, que
lhe cumpria não voltar ali mais, pelo menos com a assiduidade da esperança; e assim era que a
única e amarga satisfação de a ver, nem essa já agora se lhe consentia.
— Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja
homem, vença-se a si próprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma criança.
— Talvez, respondeu o moço suspirando.
E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto.
Mas eu não reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras
trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis.
Guiomar estendeu-lhe a mão, em que ele tocou levemente.
A baronesa apareceu, entretanto, a algumas braças de distância; vinha encostada ao
braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ela já não ouvia. Tinha os olhos cravados nos dois
interlocutores de pouco. A moça, apenas vira de longe a madrinha, deu afoitamente o braço a
Estêvão, e seguiram ambos a encontrar-se com ela; o rosto de Guiomar não revelava nada; o de
Estêvão vinha perturbado e abatido. A baronesa franziu a testa:
— Jorge, disse ela em voz baixa, precisamos conversar.
IX - CONSPIRACÃO
A baronesa, quando se lhe aproximaram os dois interlocutores da cerca, mais receosa
ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até gracejadora; mas o abatimento de Estêvão era
tão mal disfarçado, que de duas uma, ou ela acabava de lhe dar o último desengano, ou
aquilo era apenas um arrufo sério, que o moço não podia ou não queria esconder de olhos
estranhos. Isto é o que a baronesa pensou. O que ela concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar
alguma coisa em favor do maior, — do único sonho da sua velhice.
Jorge não percebeu a verdadeira razão por que a tia lhe dissera ser necessário conversar
com ela; imaginou que se trataria de Guiomar e Estevão, mas estava longe de supor todo o
alcance da entrevista.
A entrevista não pôde ser logo nesse dia; as visitas ficaram ali até tarde, e a noite foi a
mais agradável e distraída de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e
interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e refletir-se-lhe no rosto, tantas vezes
pensativo, mas agora tão frio e tão nu.
Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh!
sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir até aqui, e seguir
até o fim, uma história, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dois
caracteres, e de expor alguns sentinentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra
coisa não se animaria a fazer; não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela
jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estêvão. Ele não
podia supô-la abatida; mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia
nele, isto, sim, imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dali mais cedo do
que pensara e quisera sair.
Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada na
poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de
cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem
fora as atitudes interiores do pensamento, ali não ele a adoraria de joelhos, mas até poderia
supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele próprio.
Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar não tinha um coração tão mau, que
lhe não doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma,
ou fossem muitas as causas daquela preocupação, a verdade é que ela durou muito tempo.
Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para contemplar a noite, — o luar que batia
nas águas, o céu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais desconsoladora
lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ânsias, paixões insaciáveis,
dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul
eternidade, impassível e muda como a morte.
Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da vida e
do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe importava, — ou quem
lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do presente e do futuro e,
tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho enchiam, tamanho, que bastava
a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria
saber; provavelmente havia-o esquecido.
A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acordá-la, na
forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo à dedicação
filial de que dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o passeio foi
diferente do dos outros dias.
Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saíram a uma visita. A
baronesa ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou daí a pouco.
A baronesa não perdeu tempo em circunlóquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o
diretamente.
— Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.
Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingênuo que
corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz.
Puxou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singelamente:
— Não me atrevia a falar-lhe destas coisas...
Por que não? interrompeu a baronesa; são assuntos que se podem tratar entre mim e
ti, sem desar para nenhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald?
— É.
— Amas deveras, ou...
Deveras. Recuaria, se visse que uma aliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa
família; mas, posto que ela seja...
— Guiomar é minha filha, apressou-se a dizer a baronesa.
— Justamente; não pode haver melhor título.
Tem ainda outro, continuou a baronesa; é uma alma angélica e pura. Henriqueta não
teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espírito
superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equívoco do nascimento.
Finalmente é de uma beleza pouco comum...
— Rara, titia, pode dizer que é de uma beleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe
luziu nos olhos alguma coisa, que não era a gravidade de costume.
vês, prosseguiu a baronesa, que ela possui todos os direitos ao amor e à mão de
um homem, como tu.
A baronesa tinha um coração ingênuo e liso, sem desvios nem astúcias; contudo,
ocasiões em que o mais reto espírito emprega, como por instinto, finuras diplomáticas. A boa
senhora tinha tanto a peito aquela união do sobrinho com a afilhada, que não confiava do
amor; procurava interessar-lhe também o amor-próprio.
Jorge curvou-se com afetada modéstia.
Um homem, como eu, disse ele vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e
esse é muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam.
uma, Jorge, uma qualidade santíssima: é a de amá-los, a ti e a ela. Por isso foi
imenso o gosto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que
se eu tivesse a fortuna de ver a vocês unidos e felizes, morreria contente.
— Oh! isso! disse Jorge com ar de dúvida.
— Julgas impossível o casamento?
Impossível, não; impossível, nada há. Mas... mas suponho que a vontade dela é
indispensável, tão indispensável como duvidosa.
— Duvidosa! Estás certo disso?
Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, não agitado de todo, mas um pouco fora
da impassibilidade usual. A idéia do casamento aparecia-lhe agora um pouco mais possível e
exeqüível, desde que a tia francamente lhe propusesse aliança.
— Estás certo disso? repetiu a baronesa.
Certo não; mas há toda a razão para a dúvida. Guiomar sabe que eu gosto dela; e
contudo não me dá o menor sinal de corresponder aos meus sentimentos.
Jorge expôs longamente todas as razões que tinha para crer que a vontade de Guiomar
não correspondia à dele; referiu-lhe, com a maior exação e fidelidade, uns três ou quatro
episódios que lhe pareciam boa prova daquilo que dizia. A baronesa não ouvia tudo com igual
atenção. Quando ele acabou:
Guiomar será muito vexada, disse ela e às vezes, e por isso mesmo, tem essas
aparências frias. Nada impede, porém, a que venha a amar-te, se é que te não ama. Há nela
certa altivez natural, que pode explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria penoso
receber o amor de alguém que julgasse levantá-la até si.
— Isso, talvez...
— Mas esse sentimento, que pode ser e é honroso, não é decerto invencível.
Todas estas palavras da baronesa lisonjeavam o sobrinho, em cujos lábios pairava agora
um sorriso de íntima satisfação. De quando em quando não ouvia ele nada do que lhe dizia a tia;
seus ouvidos voltavam-se para dentro; ele escutava-se a si próprio. O amor de Guiomar
começava a parecer-lhe possível; tudo quanto a baronesa lhe dizia era razoável, com a vantagem
de lhe esclarecer as faces obscuras da situação. Demais, até que ponto a baronesa conjecturava ou
revelava? Bem podia ser que ela tivesse lido mais fundo no coração da moça.
Estas reflexões fê-las Jorge, enquanto a baronesa continuava a falar e a desenvolver a
idéia que ultimamente indicara. Até aquele dia havia ele limitado toda a sua ação a alguns
olhares, e raras palavras de cumprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animação; pareceu-lhe
chegado o ensejo de sair daquela paz armada.
Guiomar chegou daí a pouco e achou-os na "saleta de trabalho", eufemismo elegante,
que queria dizer literalmente — saleta de conversação entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha
com ela; ambas riam alegremente de não sei que episódio visto no caminho. Jorge erguera-se,
pausado mas risonho, apertou a mão de Guiomar, apertou-a deveras, mais do que era usual e
cortês. Guiomar não pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saúde, transmitiu à madrinha as
lembranças que lhe mandavam e dispôsse a sair.
Durante esse tempo, Jorge olhava para ela, enlevado deveras na contemplação de toda
aquela nobre figura, agora mais bela que dantes, desde que se lhe tornara possível a aliança
muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns tais ou quais vestígios lúbricos, donde se podia
colher que, se ele fosse poeta, e poeta arcádico, editaria pela milionésima vez a comparação da
Vênus e dos seus infalíveis amorinhos; comparação detestável, sobretudo, porque a casta beleza
de moça, se alguma coisa pagã lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao
Evangelho.
Jorge saiu dali singularmente agitado; a conversa da baronesa deralhe nervo e resolução,
e o quadro do casamento começou a desenhar-se-lhe no espírito, como o relógio que o menino
tem de usar pela primeira vez.
Até ali deixara-se ele ir à feição das águas; agora via a necessidade e a possibilidade de
abicar à riba feliz do matrimônio.
As dúvidas de Jorge não lhe saltearam o espirito; apenas chegou a casa travou da pena, e
lançou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que todavia
refundiu duas ou três vezes, primeiro que a desse por pronta. Acabada a redação final,
transcreveu aquela prosa do coração na mais nítida folha que havia em casa, dobrou o escrito
e meteu-o na algibeira.
De noite foi à casa da tia. Achou as senhoras à volta de uma mesa; Guiomar lia, para a
madrinha ouvir, um romance francês, recentemente publicado em Paris e trazido pelo último
paquete. Mrs. Oswald lia também, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edição
Constable, de Edimburgo.
Jorge veio interrompê-las um pouco, mas interromper, porque a leitura continuou
logo depois, ajudando ele próprio a Guiomar naquela filial tarefa. Veio o chá, veio depois a hora
de recolher, e a baronesa deu por findo o serão, ainda que o livro estava quase findo.
— Um capítulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas mãos.
A baronesa sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lançou aquela dedicação
do sobrinho; recusou contudo, por estar a cair de sono.
— Eu é que não me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro comigo.
— Ah! disse Jorge com um gesto de satisfação.
E enquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha até à porta do quarto, e Mrs.
Oswald marcava a página e fechava o seu livro, Jorge igualmente fechava o outro, mas com tal
demora e cuidado, que deu muito que entender à inglesa. Se ela chegou a entender, vê-lo-emos
depois; o certo é que o livro foi enfim entregue a Guiomar, tendo a página marcada, não com a
fita que lá estava pendente, mas com um pedacinho de papel.
O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centímetros de altura; mas por mais
exíguas que tivesse as dimensões, bem podia ser que levasse ali dentro nada menos que uma
tempestade próxima.
X - A REVELACÃO
Meia hora depois, indo a abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha de
Jorge. Não tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, recendendo a amores. O espírito
de Guiomar estava tão longe daquilo que não suspeitou nada e distraidamente o abriu. A primeira
palavra escrita era o seu nome; a última era o de Jorge.
O primeiro gesto de Guiomar foi de cólera. Se ele pudesse espreitá-la pelo buraco da
fechadura, e ver-lhe a expressão do rosto, e mui provavel que se lhe convertesse em
aborrecimento todo o amor que até agora nutria. Mas ele não estava ali, a moça podia traduzir
fielmente no rosto os movimentos do coração.
— Mais um, pensou ela; este porém...
E desta vez o gesto não foi de cólera, foi de alguma coisa mais, metade fastio, metade
lástima, mescla difícil e rara.
A moça ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer ler, como a hesitar
entre queimá-lo ou restituí-lo intacto a seu autor.
Mas a curiosidade venceu por fim; Guiomar abriu o papel e leu estas linhas:
"GUIOMAR! Perdoe-me se lhe chamo assim; as convenções sociais condenam-me decerto,
mas o coração aprova, que digo? ele mesmo escreve estas letras. Não é a minha pena, não são os meus
lábios que lhe falam deste modo, são todas as forças vivas da minha existência, que em alta voz
proclamam o imenso e profundo amor que lhe tenho.
"Antes de o ler neste papel, já a senhora o há de ter visto, pelo menos adivinhado nos meus
olhos, na doce embriaguez que em mim produz a presença dos seus. Persuado-me de que todo o meu
esforço em recalcar este afeto é vão; por mais que eu sinceramente deseje esquecê-la, não o alcançarei
nunca; não alcançarei mais que uma aflição nova. O remorso de o tentar virá coroar os demais
infortúnios.
"Por que razão rompo hoje o silêncio em que me tenho conservado, medroso e respeitoso
silêncio que, se me não abre o caminho da glória, ao menos conserva-me a palma da esperança? Nem
eu mesmo saberia responder-lhe; falo, porque uma força interior me manda falar, como transborda o
rio, como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse, do mesmo modo que morrerei
de desespero, se além do perdão que lhe peço, me não der uma esperança mais segura do que esta que
me faz viver e consumir. — JORGE.”
Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra de análise e
reflexão, e ao cabo da segunda achava-se tão fria como antes da primeira. Olhou algum tempo
para o papel e mentalmente para o homem que o havia escrito; enfim, pôs a carta de lado, abriu o
livro e continuou o romance.
Mas o espírito, que não ficara tão indiferente como o coração, entrou a fugir-lhe do
romance para a vida, com tal tenacidade que não houve remédio senão irem os olhos atrás dele, e
a moça de novo mergulhou nas reflexões que lhe sugeria o caso da paixão de Jorge.
Paixão não era, não o seria ao menos no sentido inteiro do vocábulo; mas alguma
coisa menos, ou parecida com ela, e ainda assim verdadeira, via bem Guiomar que o poderia ser.
Até que ponto chegaria entretanto,o seu adorador, se ela o desatendesse logo; e, dado o amor que
a baronesa tinha ao sobrinho, até que ponto a recusa iria magoá-la? Guiomar varreu do espírito os
receios que lhe nasciam de tais interrogações; mas sentiu-os primeiro, pesou-os antes de os
arredar de si, o que revelará ao leitor em que proporção estavam nela combinados o sentimento e
a razão, as tendências da alma e os cálculos da vida.
Excluído o receio, voltou-lhe o riso, aquele riso interior, que é o mais involuntário e
cruel, e também o menos arriscado que a gente pode dar às fatuidades humanas. Não podia ser
tão desprezível assim o amor de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades
boas, e que enfim era também distinto, ainda que a sua distinção primasse antes por um estilo
rendilhado e complicado, que não é o melhor. Guiomar via tudo isso, e por outro lado, não podia
obstar que ele a amasse; nem por isso achava menos temerária aquela confissão.
A moça refletia também na posição especial que tinha naquela casa o sobrinho da
baronesa; via-se obrigada à presença dele, e talvez à luta, porque o pretendente não recuaria do
primeiro golpe. Não havia tais receios da parte de Estêvão; ela reconhecia que a paixão deste era
ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas comparava as índoles dos dois
homens, e se ambos lhe pareciam de fraca compleição moral, nem por isso desconhecia que ao
bacharel faltava certa presunção que distinguia o outro, e com a qual teria talvez de pelejar.
Quando ela fez esta comparação entre os dois homens, ficaram-lhe os olhos um pouco
mais moles e quebrados, obra de três minutos apenas, mas três minutos que, se Estêvão soubera
deles, trocaria por eles o resto de toda a vida. E contudo, não era amor nem saudade; alguma
simpatia, sim, ainda que leve e sem conseqüência; mas sobretudo era pena de o não poder amar,
— ou ainda melhor — era lástima de que tal coração não fora casado a outro espirito.
Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também, soltando o
pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos navegamos alguma vez na vida,
quando nos cansa a terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação dela
porém não era doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em regiões
selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. Nada disso era nem fazia; e por mais longe que
velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra.
Volveu enfim e os olhos caíram-lhe na carta. A realidade presente não se lhe podia
mostrar de pior modo. Guiomar ergueu-se irritada, lançou mão do papel e machucou-o
febrilmente; ia talvez rasgá-lo, quando ouviu bater de manso à porta.
— Quem é? perguntou.
— Sou eu, respondeu a voz de Mrs. Oswald.
A moça foi abrir a porta; a inglesa entrou, trajada de dormir, e um vivo espanto nos
olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns segundos. Guiomar assustada perguntou:
— Que é? aconteceu alguma coisa a minha madrinha?
Longe o agouro! exclamou a inglesa. Não lhe aconteceu nada; a senhora baronesa
dorme naturalmente a sono solto. Venho porque do meu quarto pareceu-me ouvir rumor de
passos aqui, e depois vi luz. Pensei que tivesse algum incômodo. Mas, pelo que vejo, continuou a
inglesa deitando os olhos para a mesinha em que pousava o livro aberto, pelo que vejo ainda
não acabou de ler o seu romance...
Não li ainda uma linha, depois que me recolhi, respondeu Guiomar cravando os
olhos no rosto da inglesa, como tomada de um pensamento súbito.
— Deveras!
— Li outra coisa, continuou a moça; li este papel.
Mrs. Oswald inclinou-se para ler também o papel, que aliás adivinhou qual fosse;
Guiomar atirou-o sobre a mesa.
— Não precisa, disse ela; é uma declaração amorosa.
— De quem? perguntou a inglesa abrindo uns olhos espantados e obedientes.
— Leia o nome.
Mrs. Oswald leu a assinatura da carta, que a moça de novo lhe apresentava.
— Naturalmente, continuou Guiomar, há nisto obra sua...
— Minha! interrompeu a outra um pouco mais rispidamente do que costumava falar.
Guiomar tinha ido sentar-se; o pezinho impaciente batia no tapete, com um movimento
rápido e regular; cruzara os braços sobre o peito, fitando a inglesa com uns olhos em que se podia
ler a viva exacerbação do espírito.
Seguiu-se curto silêncio; Mrs. Oswald puxou outra cadeira e sentou-se perto da moça.
— Por que há de ser injusta comigo? disse ela dando à voz um tom melífluo e
suplicante; por que não de ver as coisas, como elas naturalmente são? O que nisto é uma
coincidência curiosa, mas nada mais. Se lhe falei em semelhante coisa algumas vezes, foi porque
eu mesma percebi o amor que lhe tem o Sr. Jorge; é coisa que todos vêem. Imaginei que o
casamento, neste caso, seria agradável à senhora baronesa a quem sou grata.
Posso ter feito mal...
Muito mal, interrompeu Guiomar; são coisas de família em que a senhora nada tem
que ver.
Guiomar levantou-se outra vez, deu alguns passos, e voltou a sentar-se. Com o
movimento desprenderam-se-lhe os cabelos e caíram-lhe sobre os ombros. Mrs. Oswald
aproximou-se dela para os colher e atar, mas a moça secamente a repeliu:
— Deixe, deixe...
E ela mesma os recompôs com as suas mãozinhas finas, e ficou depois a olhar para o
chão, a morder o lábio, a respirar fortemente, como se contivera a palavra que forcejava por sair
impetuosa e colérica. Mrs.
Oswald não disse nada durante alguns minutos; esperou que passasse o período agudo
da irritação. Quando lhe pareceu que ela afrouxava, rompeu enfim o silêncio.
— Fiz mal, fiz não há dúvida, mas a intenção não podia ser melhor.
Talvez não me creia; paciência! O que lhe peço, nem lhe peço, o que eu acredito
piamente é que não me há de atribuir algum interesse de ordem...
Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar, mas Guiomar não
protestou, quero dizer não protestou de viva voz; fez apenas um gesto negativo, bastante a
satisfazer os melindres da inglesa. A moça foi sincera; não atribuía realmente a nenhum interesse
vil, — pecuniário, — a ação de Mrs. Oswald. Nem por isso a absolvia, — não só porque ela viria
concorrer talvez para uma crise penosa, mas também, bom é notá-lo outra vez, porque a
condição da inglesa naquela casa era relativamente inferior.
A inglesa continuou a falar em defesa própria, a justificar miudamente os bons
sentimentos do coração, e a prometer que deixava por mão todo aquele negócio, a seu juízo, o
melhor que a moça podia fazer.
A experiência da vida, concluiu ela, devia ter-me convencido de que o melhor de
todos os sentimentos é um egoísmo quieto e calado.
Enquanto ela falava assim, Guiomar parecia volver à tranqüilidade habitual. A mudança
foi, não súbita, mas um pouco mais rápida do que devera ser, tratando-se de um espírito,
como o dela, em que as impressões não eram superficiais nem momentâneas. Havia até uns
toques de afabilidade no rosto e na voz, quando ela começou a falar, o que revelaria talvez ser
aquela mudança muito voluntária e meditada.
Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as coisas chegassem a este
ponto, e que ele se lembrasse de escrever semelhante carta, confessando uma paixão que acredito
sincera, mas a que o meu coração não pode corresponder. Amores não se encomendam como
vestidos; sobretudo não se fingem, ou não se devem fingir nunca.
— Oh! decerto!
Eu gosto dele, como parente que é de minha madrinha, e também porque ela lhe tem
afeição de mãe, como a mim; somos uma espécie de irmãos, nada mais.
Tem muita razão, assentiu Mrs. Oswald. A senhora pensa e fala como um doutor.
Que se lhe há de fazer? Quem não ama não ama. Dele é que eu tenho pena!
— Gosta muito de mim, não? perguntou Guiomar fitando os olhos na inglesa.
Oh! parece que sim! A senhora deve sabê-lo tanto como eu; eu sei o que tenho visto,
e creio que é muito.
— Eu nunca vi nada, respondeu secamente Guiomar.
A resposta de Mrs. Oswald foi um sorriso de incredulidade, que a outra não viu ou não
quis ver. Houve uma pausa; Guiomar continuou nestes termos:
Mas seja como for, a minha resposta é negativa. Estou que ele não me fará a injúria
de querer casar comigo, sem que eu o ame...
Guiomar parou, como a esperar que a outra lhe dissesse alguma coisa.
Desta vez coube a Mrs. Oswald não responder nada, nem com a voz nem com o gesto.
A moça inclinou o corpo, pôs os braços sobre os joelhos, com os dedos cruzados, e entre um riso
amável e um olhar afetuoso, continuou:
A senhora podia, se acaso ele alguma vez lhe falou nisso ou vier a falar-lhe, podia
dissuadi-lo de tais idéias, dizendo-lhe simplesmente a verdade e dando-lhe conselhos, os
conselhos que a senhora de saber dar, e que ele aceitará decerto, porque é um bom coração,
um caráter estimável...
— Oh! excelente! um moço excelente!
E as duas ficaram a olhar uma para a outra, Guiomar a sorrir, mas de um sorriso, que era
uma contração voluntária dos músculos, e a inglesa a fazer um rosto de piedade, e adoração, e
pena, e muita coisa junta, que a moça só começou a compreender, quando ela rompeu o silêncio
deste modo:
— Estou a duvidar se devo dizer-lhe o resto.
— O resto? perguntou Guiomar admirada. Pois que há mais?
A inglesa aproximou a cadeira. Guiomar endireitou o busto e esperou ansiosa a
revelação, — se revelação era, — que lhe ia fazer Mrs.
Oswald. Esta não falou logo; era razoável hesitar um pouco, lutar consigo mesma, antes
de dizer alguma coisa. Enfim, com um movimento de quem ajunta as forças todas e as emprega
em coisa superior à coragem usual:
D. Guiomar, disse ela, pegando-lhe nas mãos, ninguém pode exigir que se case sem
amar o noivo; seria na verdade uma afronta. Mas o que lhe digo é que o amor que não existe por
ora, pode vir mais tarde, e se vier, e se viesse, seria uma grande fortuna...
— Mas acabe, acabe, interrompeu a moça com impaciência.
Seria uma grande fortuna para a senhora, para ele, ouso dizer que para mim, que os
estimo e adoro, mas sobretudo para a senhora baronesa.
— Como assim? disse Guiomar.
Oh! para ela seria a maior fortuna da vida, porque é hoje o seu mais entranhado e
vivo desejo, o seu desejo verdadeiramente da alma. A senhora...
— Está certa disso?
— Certíssima.
— Não creio, não vejo nada que...
— Creia, deve crer. Se me promete nada dizer desta nossa conversa, nem fazer suspeitar
por nenhum modo o que lhe estou contando...
— Fale.
Pois bem, continuou Mrs. Oswald abaixando a voz, como se alguém pudesse
ouvi-la na solidão daquela alcova, e no silêncio profundo daquela casa, que toda dormia, pois
bem, eu lhe direi que por ela mesma tive notícia deste seu desejo. Quando eu percebi a paixão do
Sr. Jorge, falei nisso a sua madrinha, gracejando na intimidade que ela me permite, e a senhora
baronesa em vez de sorrir, como eu esperava que fizesse, ficou algum tempo pensativa e séria,
até que rompeu nestas palavras: "Oh! se Guiomar gostasse dele e viessem a casar-se, eu seria
completamente feliz.
Não tenho hoje outra ambição na terra. Há de ser a minha campanha.”
— Minha madrinha disse isso? perguntou Guiomar.
Tal qual. A resposta que lhe dei foi que o casamento não era impossível, e que nada
mais natural do que virem a amar-se duas pessoas a princípio indiferentes. O amor nasce muita
vez do costume.
Guiomar mal ouvia o que lhe estava dizendo a inglesa; se ainda olhava para ela, era
com os olhos indecisos e empanados, de quem vai toda absorvida em pensamentos íntimos.
Foi desde esse dia, continuou Mrs. Oswald, que me pareceu conveniente falar-lhe
algumas vezes nisso, sondar-lhe o coração, ver se ele favorecia o sonho de sua madrinha,
tornando feliz toda esta casa... Fiz mal, convenho; mas a intenção era a mais respeitável e santa
deste mundo.
— Decerto, murmurou Guiomar.
Mrs. Oswald pegou-lhe numa das mãos e beijou-a afetuosamente.
Guiomar não a repeliu nem sequer pareceu dar-se-lhe da ternura da inglesa.
As duas olharam-se uns breves minutos, sem dizer nada, como a lerem na alma uma da
outra.
Guiomar não tinha a experiência nem a idade da inglesa, que podia ser sua mãe; mas a
experiência e a idade eram substituídas, como sabe o leitor, por um grande tino e sagacidade
naturais. criaturas que chegam aos cinqüenta anos sem nunca passar dos quinze, tão
símplices, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o crepúsculo é o prolongamento
da aurora. Outras não; amadurecem na sazão das flores; vêm ao mundo com a ruga da reflexão
no espírito, embora, sem prejuízo do sentimento, que nelas vive e influi, mas não domina.
Nestas o coração nasce enfreado; trota largo, vai a passo ou galopa, como coração que é, mas não
dispara nunca, não se perde nem perde o cavaleiro.
O que a afilhada da baronesa buscava ler no rosto de Mrs. Oswald era se efetivamente a
madrinha nutria aquele desejo, ou se tal revelação não era mais do que um embuste. O leitor sabe
que era verdadeira; mas admitirá, sem dúvida, que a moça depois de muito interrogar e
examinar lhe desse fé. Creu enfim; creu, porque era verossímil, creu porque a inglesa não se
arriscaria a qualquer indiscrição da parte dela, que de todo a desmascararia.
Parece-me, disse Mrs. Oswald, que não fiz mal em lhe dizer tudo o que sabia.
Conselhos não lhe dou nenhuns; o melhor deles não vale a voz do próprio coração. O seu é puro
e reto; consulte-o de boa vontade, e verá se há nele indiferença, ou se alguma faísca...
— Eu sei! interrompeu Guiomar. Não me lembrou consultá-lo nunca.
Faz mal, ele é o relógio da vida. Quem o não consulta, anda naturalmente fora do
tempo. Mas que vejo! continuou Mrs. Oswald deitando os olhos para o reloginho de Guiomar.
Naquele outro relógio faltam dez minutos para uma hora! Uma hora! Que diria a senhora
baronesa se soubesse que ainda estamos aqui de conversa! Retiro-me; Deus lhe um sono
sossegado, e sobretudo a faça feliz, como merece. Não lhe recomendo juízo, porque o tem de
sobra. Adeus, até amanhã.
E Mrs. Oswald saiu ante em direção ao seu quarto, Guiomar ficou só, ali sentada
ao da cama, a ouvir o passo surdo e cauteloso da inglesa. Quando o som morreu de todo, e o
silêncio da noite volveu ao que era, profundo e sepulcral, a moça deixou cair os braços na cama,
e a cabeça nas mãos, e um suspiro desentranhou-se-lhe do peito, longo, ruidoso, magoado, o
primeiro que o leitor lhe ouve desde que a conhece — e enfim estas palavras arrancadas da alma,
tão doloridas, — ia dizer tão lacrimosas, — vinham elas:
— Oh! meus sonhos! meus sonhos!
Não chorou; a alma dela era das que não têm lágrimas, enquanto lhe restam forças. Os
olhos estavam secos e firmes quando ela os ergueu das mãos; o rosto tinha vestígios do abalo,
mas não havia nele desânimo, menos ainda desespero.
XI - LUÍS ALVES
Durante uma inteira e comprida semana, deixou Estêvão de aparecer no escritório onde
trabalhava com Luís Alves; não apareceu também em Botafogo. Ninguém o viu em todo esse
tempo nos lugares onde ele era mais ou menos assíduo. Foram seis dias, não digo de reclusão
absoluta, mas de completa solidão, porque ainda nas poucas vezes que saiu, fê-lo sempre a horas
ou em direções que a ninguém via, e de ninguém era visto.
Mas não fora essa crua e malfadada crise, e é quase certo que ele meteria uma lança na
Africa daqueles dias, que era um ponto muito sério e grave, a questão magna da rua do Ouvidor e
da casa do José Tomás, a ponderosa, crespa e complicada questão de saber se a Stephanoni
estrearia no Ernani. Esta questão, de que o leitor se ri hoje, como se o de rir os seus sobrinhos
de outras análogas puerilidades, esta pretensão a que se opunha a Lagrua, alegando que o Ernani
era seu, pretensão que fazia gemer as almas e os prelos daquele tempo, era coisa muito própria a
espertar os brios do nosso Estêvão, tão marechal nas coisas mínimas, como recruta nas coisas
máximas.
Infelizmente ele não aparecia, não sabia sequer do conflito e do debate, ocupado como
estava em travar o áspero e sangrento duelo do homem contra si mesmo, quando lhe falta o
apoio, ou a consolação dos outros homens. Todo ele era Guiomar; Guiomar era o primeiro e
último pensamento de cada dia. A sombra da moça vivia ao dele e dentro dele, no livro em
que lia, na rua solitária onde acaso transitava, nos sonhos da noite, nas estrelas do céu, nas
poucas flores de seu inculto jardim.
Um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor deste livro, dispensa que eu
lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditórios, como é de razão em análogas
situações. Apenas direi por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em fugir à cidade,
quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção em que
apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espírito apenas um
joguete de sensações contínuas e variadas.
A força, a permanência do afeto não lhe bastava a dar seguimento e realidade às
concepções vagas de seu cérebro, — enfermo, ainda quando estava de saúde.
A idéia do suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito, certa tarde em que ele saiu a
espairecer, e viu um enterro que passava, caminho do Caju.
O préstito era triste, — ainda mais triste pela indiferença que se lia no rosto dos que iam
piedosamente acompanhando o morto. Estêvão descobriu-se e sinceramente desejou ir ali dentro,
metido naquelas estreitas tábuas de pinho, com todas as suas dores, paixões e esperanças.
Não tenho outro recurso, pensou ele; é necessário que morra. É uma dor só, e é a
liberdade.
Ao voltar para casa, uma criança que brincava na rua, em camisa, com os pés na água
barrenta da sarjeta, fê-lo parar alguns instantes, invejoso daquela boa fortuna da infância, que ri
com os pés no charco. Mas a inveja da morte e a inveja da inocência foram ainda substituídas
pela inveja da felicidade, quando ao recolher-se viu as janelas abertas de uma casa vizinha, e a
sala iluminada, e uma noiva coroada de flores de laranjeira, a sorrir para o noivo, que sorria
igualmente para ela, ambos com o sorriso indefinível e único da ocasião.
Os cinco dias correram-lhe assim, travados de enojo, de desespero, de lágrimas, de
reflexões amargas, de suspiros inúteis, até que raiou a aurora do sexto dia, e com ela, ou
pouco depois dela, uma carta de Botafogo. Estêvão quando viu o criado da baronesa, à porta da
sala, com uma carta na mão, sentiu tamanho alvoroço, que não ouviu nada do que ele lhe disse.
Suporia que a carta era de Guiomar? Talvez; mas a ilusão durou os poucos instantes que ele
gastou em romper a sobrecarta e desdobrar a folha de papel que vinha dentro.
A carta era da baronesa.
A baronesa perguntava-lhe graciosamente se ele havia morrido, e pedia que fosse falar-
lhe acerca da demanda que ela trazia. Estêvão chegara ao estado de esperar um pretexto
para transigir consigo mesmo; não podia havê-lo melhor. Escreveu rapidamente duas linhas de
resposta, e à uma hora da tarde apeava-se de um tílburi à porta da funesta e deliciosa casa, onde
havia passado as melhores e as piores horas da vida.
Sabe por que razão lhe dei este incômodo, além do prazer que tinha em vê-lo?
perguntou a baronesa logo depois dos primeiros cumprimentos.
— Disse-me que era por causa da demanda...
— Sim, precisamos assentar algumas coisas, antes da nossa partida.
— V. Ex.a sai da corte?
— Vamos para a roça.
Estêvão empalideceu. Na situação dele, aquela viagem era a melhor coisa que lhe podia
acontecer; contudo, fez-lhe mal a notícia. A conversa que se seguiu foi toda sobre o assunto
forense, e durou uma longa hora, sem que aparecesse Guiomar. Ao despedir-se atreveu-se
Estêvão a perguntar por ela.
— Anda passeando, respondeu a baronesa.
Estêvão despediu-se da constituinte, que o acompanhou até à porta da sala, repetindo-
lhe algumas recomendações, que o advogado mal pôde ouvir e absolutamente lhe não ficaram de
memória.
A esperança de ver a moça levara-o, mais que tudo, àquela casa; saía sem ter o gosto de
a contemplar ainda uma vez; mais do que isso, ameaçado de a não ver tão cedo, ou quem sabe se
nunca mais. Ja ele a refletir nisto e a aproximar-se da porta, onde parava ao mesmo tempo um
carro. Estêvão estremeceu naturalmente, antes de ver quem ia apear-se; grudou-se ao portal, com
os olhos fitos na portinhola, que um lacaio abria apressadamente.
A primeira figura que desceu foi a nossa conhecida Mrs. Oswald, que o fez, sem dar
tempo a que Estêvão lhe oferecesse a mão. O bacharel, desde que a vira, aproximara-se
rapidamente da portinhola.
Guiomar desceu logo depois. A mão apertada na luva cor de pérola pousou levemente
na mão de Estêvão que estremeceu todo. A moça fez-lhe um cumprimento risonho, murmurou
um agradecimento e recolheu-se com a inglesa. Era pouco; mas esse pouco alvoroçou o bacharel,
que enfiou dali para a cidade, em direção ao escritório.
Luís Alves admirou-se de o ver; não foi com um espanto de seis dias, como devera ser,
mas de quarenta e oito horas, quando muito. Que admira?
A preocupação de Luís Alves por aqueles dias era a candidatura eleitoral; a boa-nova
devia chegar-lhe na primeira mala do Norte. Ora, em boa razão, um homem que está prestes a ser
inscrito nas tábuas do parlamento, não pode cogitar muito dos amores de um rapaz, ainda que o
rapaz seja amigo e os amores verdadeiros.
Estêvão não perdeu tempo em circunlóquios; foi entrando e entornando a alma toda,
aflita e consolada a um tempo, no seio do velho amigo e companheiro. A cada trecho da
confissão plena que ele ali lhe fez, respondia um comento, ora sério, ora gracioso de Luís Alves.
Quando Estêvão porém lhe deu notícia de que a família da baronesa ia para a roça, Luís Alves
recolheu o meio-riso que lhe pousava nos lábios desde começo, e com a mais súbita e sincera
admiração, exclamou:
— Para a roça!
— Disse-o agora mesmo a baronesa.
— Mas...
Luís Alves não acabou; olhou ainda meio duvidoso para Estêvão, e ficou algum tempo
calado, a coçar o queixo com a faca de marfim e a olhar para uma gravura que pendia na parede
fronteira.
Na situação em que estou, continuou Estêvão, hás de dizer que a viagem é uma
felicidade para mim. Pois não é; não admito a viagem. Se ela sair da corte, eu saio também.
— Tu estás doido!
— Talvez.
Luís Alves saiu daquela natural indiferença com que o ouvia, e lhe falava sempre em tal
assunto. Falou-lhe carinhoso, — talvez pela primeira vez na vida. O que lhe disse foi apenas uma
edição aumentada do que lhe havia dito em anteriores ocasiões, — agora com maior fundamento,
porque depois do formal desengano de Guiomar, não havia outro recurso mais que ir esquecê-la
de todo.
Oh! isso nunca! interrompeu Estêvão. Demais, não sei, não estou certo se ela falava
de coração naquela tarde...
A candidez com que Estêvão disse isto era a fiel tradução de seu espírito, e a razão de
tais palavras, não a procure o leitor em outra parte mais que não seja aquele sorriso de pouco,
ao do carro, sorriso que lhe bailava no cérebro, como raio de sol coado por entre nuvens
negras de tempestade.
Luís Alves sacudiu a cabeça e enfiou os olhos pelas folhas rabiscadas de uns autos que
tinha diante, e que entrou a folhear vagarosamente.
Súbito, bateu uma pancadinha, com a mão espalmada sobre os papéis, e levantou a
cabeça:
um meio talvez de saber tudo, disse ele, de saber se ela verdadeiramente te ama,
ou... Posso tentá-lo, com uma condição.
— Qual?
A condição de eliminares as tuas pretensões. Que diabo ganhas tu em nutrir uma
paixão sem eficácia nem remédio?
Esta promessa era a mais dura que se podia arrancar de um coração, em que as gerações
de esperanças se sucediam quase sem solução de continuidade; fê-la, todavia, Estêvão, talvez
com a secreta resolução de a trair.
Luís Alves ficou só daí a alguns minutos. As últimas palavras que disse ao colega foram
duas ou três pilhérias de rapaz; mas apenas ficou tornou-se sério, e inclinando o corpo para a
frente, com os braços na secretária, e a raspar as unhas com um canivete, ali esteve largo tempo,
como a refletir, longe de Estêvão, que aliás não ia perto, e ainda mais longe dos autos que
tinha diante de si. Mas em que pensava ele, se não era em Estêvão, nem nos autos, nem também,
por agora, nas suas esperanças eleitorais? Paciência, leitor; sabê-lo-ás daqui a nada. Contenta-te
com a notícia de que, ao cabo de vinte minutos daquela abstração, Luís Alves volveu a si,
proferindo em alta voz esta simples palavra:
— Não há dúvida; é uma ambiciosa.
E descativado daquela preocupação, enterrou-se de todo na leitura dos autos.
XII - A VIAGEM
Mal recomeçara Luís Alves a leitura dos autos, entrou no gabinete o criado
apresentando-lhe um bilhete de visita.
— Que entre! disse o advogado lendo o nome do sobrinho da baronesa.
E logo se ouviu no corredor o passo medido e lento do mancebo, que daí a nada
assomava à porta do gabinete, fazendo uma cortesia, sisuda, mas graciosa.
— Venho incomodá-lo, doutor? perguntou Jorge.
Pelo amor de Deus! exclamou o advogado erguendo-se e indo buscá-lo à porta. Não
me incomodaria em caso nenhum; agora, sobretudo, que a leitura de uns papéis me fatigou
sobremaneira, a maior fortuna que eu poderia desejar é a presença de um homem de espírito.
Jorge agradeceu este cumprimento um pouco enfático, e retribuiu-o com outra lisonjaria
muito mais extensa e de maior alcance. Quer dizer que ele vinha pedir alguma coisa.
Efetivamente, passados os minutos de intróito e desfiadas as generalidades, Jorge empertigou-se
mais do que até ali estivera e desfechou esta pergunta abrupta:
— Sabe que venho pedir-lhe uma coisa grave?
Luís Alves inclinou-se.
Grave e simples ao mesmo tempo, continuou o sobrinho da baronesa; mas antes
disso precisava saber se é tão amigo da nossa família, como ela o é do senhor.
— Oh! decerto!
O senhor é o menos assíduo, talvez, das pessoas que vão, apesar de vizinho;
agora o vejo ali mais a miúdo; entretanto é como flor que se trai pelo aroma; minha tia tem a seu
respeito a melhor opinião do mundo; acha-lhe uma gravidade, e eu também a sinto, e nem
compreendo que um homem possa ser outra coisa. Os tais espíritos fúteis...
— São insuportáveis, concluiu Luís Alves ansioso por chegar ao objeto da visita.
O objeto era a viagem da baronesa. Um comendador, amigo do finado barão, e
fazendeiro em Cantagalo, tinha promessa da viúva, havia dois anos, de ir passar algum tempo.
A baronesa esquivara-se sempre a cumprir a palavra dada; agora porém, tal fora a insistência, que
se resolvera a ir. Ora, o que Jorge vinha propor era, expressões dele, uma conjuração de
amigos para dissuadir a tia daquele projeto. Afiançava ao advogado que, ainda descoberta a
conjuração, teria ele a vida sã e salva.
Luís Alves supôs a princípio que aquilo era um simples pretexto; mas, tendo observado
que a bela Guiomar não era indiferente ao rapaz, compreendeu que este tinha na conjuração
proposta, um interesse inteiramente pessoal. Enfim, Jorge chegou a confessar que, se a tia
insistisse em sair da corte, ele não tinha remédio senão acompanhá-la.
O acordo não foi difícil; ficou assentado que fariam todos os esforços para dissuadir a
baronesa. Jorge quis sair logo; reteve-o Luís Alves algum tempo mais, com expressões de louvor
habilmente tecidas e mais habilmente encastoadas na conversação; e também deixando-se ir à
feição do espírito dele, aceitando-lhe as idéias e os preconceitos, e aplaudindo-os discretamente,
sério, quando eles o eram ou pareciam ser, — chocarreiro quando vinham com ar de graça,
respondendo enfim a todos os gestos e meneios do outro, como faz o espelho por ofício e
obrigação: toda a arte em suma de tratar os homens, de os atrair e de os namorar, que ele
aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na vida pública.
De noite foi Luís Alves à casa da baronesa, onde poucas pessoas havia, todas de
intimidade. A dona da casa, sentada na poltrona do costume, tinha ao de si uma senhora da
mesma idade que ela, igualmente viúva, e defronte as suíças brancas e aposentadas de um ex-
funcionário público. Num sofá, viam-se Mrs. Oswald e Jorge a conversarem em voz, ora muito
baixa, ora um pouco mais elevada. Adiante, dois moços contavam a duas senhoras o enredo da
última peça do Ginásio. Mais longe, uma moça da vizinhança gabava a outra a tesoura de Mme.
Bragaldi, que pedia meças, dizia ela, ao pincel do cenógrafo, seu marido. Enfim, junto a uma das
janelas via-se uma mocinha, viva e bonita, a dizer mil ninharias graciosas a outra pessoa, que era
nada menos que a nossa conhecida Guiomar. A conversa, assim dividida, tornava-se às vezes
geral, para recair logo no particularismo anterior; os grupos modificavam-se também de quando
em quando, do mesmo modo que o assunto, e assim se iam matando agradavelmente as horas,
que não resistiam, coitadas, nem apressavam o passo um minuto sequer.
Luís Alves agregara-se ao grupo da baronesa, ao qual não tardou juntar-se Jorge. O
advogado teve a discrição de esperar que o assunto viesse de si, se viesse, ou de o introduzir na
conversa, quando lhe parecesse de feição. Mas Jorge, que estava impaciente, arrastou o assunto
ao debate.
Luís Alves mostrou-se fiel à palavra dada; declarou amavelmente que se opunha à
viagem, como vizinho e amigo, que reclamaria em último caso o auxílio de força pública; que era
um erro e um crime deixar aquela casa viúva da benevolência e da graça e do gosto e de todas as
mais qualidades excelentes que ali iam achar os felizes que a freqüentavam; que, enfim, o mal
era tamanho, que não deixaria de ser pecado, posto não viesse apontado nos catecismos, e como
pecado, seria de força punido, com amargas penas, no outro século, pelo que, e o mais dos autos,
era sua decisão que a baronesa devia ficar.
Todas estas razões foram ditas como deviam de ser, de um modo galante e folgazão, a
que a baronesa respondia igualmente, e que não daria nada mais de si, se Luís Alves, mudando de
estilo, não fosse pôr o assunto em diferente terreno.
Digamos a verdade, senhora baronesa, a viagem de ser-lhe imensamente
incômoda, se for só isso; suas forças não são decerto iguais às de seus primeiros anos; sua saúde
é melindrosa e não poderá sofrer tanta fadiga. Confesso que falo em nome de certo interesse
pessoal de amigo e de vizinho; mas a principal razão não é essa. Se houvesse um motivo urgente,
bem; mas tratando-se apenas de uma promessa feita tanto tempo, seria crueldade da minha
parte não insistir que ficasse.
A baronesa defendia-se, e Luís Alves não tardou em reconhecer de si para si que ela não
se defendia com o vigor de uma resolução original e própria. A conversa, entretanto, tornara-se
mais geral; de todos os lados partiam votos de oposição.
Guiomar havia alguns minutos que não atendia à interlocutora; tinha o ouvido afiado
e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguém a observava; mas é privilégio do romancista e
do leitor ver no rosto de uma personagem aquilo que as outras não em ou não podem ver. No
rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio que lhe causava aquela opinião unânime contra
o projeto da baronesa, mas ainda a expressão de um gênio imperioso e voluntário.
Estamos de acordo, creio eu? perguntou Luís Alves olhando alternadamente para a
baronesa e as outras pessoas.
— Não é possível, doutor, respondia a boa senhora.
Decerto que não é possível, interveio Guiomar do lugar onde estava. A viagem não
oferece risco, nem minha madrinha está inválida.
Demais, é uma promessa feita; não se pode deixar de cumprir.
Esta opinião, dita em tom seco e firme, ainda que a voz nada perdesse do seu natural
aveludado, equivaleu a um pouco de água fria lançada na fervura triunfante dos ânimos.
Guiomar tem razão, disse a baronesa; agora é preciso ir; são apenas três ou quatro
meses.
Luís Alves olhou longamente para Guiomar, como a procurar verlhe no rosto todas as
antecedências da resolução da baronesa. A oposição afrouxara; Jorge chamou em vão o advogado
em seu auxilio. A resolução da tia, se alguma vez fora abalada, tornara-se outra vez firme.
Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha.
Jorge fitou-a com uma expressão de vaidade e cobiça. Luís Alves, que se achava de pé,
recuou um pouco para deixá-la passar. Os olhos com que a contemplou não eram de cobiça nem
de vaidade; a leitora, que ainda lembrará da confissão por ele mesmo feita a Estêvão, suporá
talvez que eram de amor. Talvez, quem sabe?amor um pouco sossegado, não louco e cego
como o de Estêvão, o pueril e lascivo, como o de Jorge, um meio-termo entre um e outro,
como podia havê-lo no coração de um ambicioso.
O Dr. Luís Alves defende causas más, disse Guiomar sorrindo para ele; não se trata
de uma coisa impossível. Quanto a mim, Cantagalo só tem um inconveniente; será menos
divertido que a corte; mas o tempo passa depressa...
Nesse caso, disse Jorge suspirando, eu também dispenso teatros e bailes; sacrifico-
me à família.
— Queres ir conosco? perguntou a baronesa alegremente.
— Que dúvida!
Guiomar mordeu o lábio inferior, com uma expressão de despeito, que pôde conter e
abafar, sem que ninguém a percebesse, ninguém, exceto Luís Alves, Um sorriso tranqüilo e
perspicaz roçou os lábios do advogado, enquanto a moça, para esconder a impressão que lhe
ficara, de novo se dirigiu à janela, onde esteve alguns momentos sozinha, meia voltada para fora
e meia guardada pela sombra que ali fazia a cortina. Um rumor de passos fê-la voltar-se para
dentro. Era Luís Alves.
Ah! disse ela fingindo-se tranqüila; agradeço-lhe não haver insistido mais nos seus
conselhos.
A intenção era boa, respondeu Luís Alves em voz baixa; mas será agora excelente;
nem tudo está perdido: eu me incumbo de salvar o resto.
Guiomar franziu a testa com o mais vivo e natural espanto; tal espanto que parecia havê-
la feito esquecer outro sentimento, igualmente natural:
- o do despeito que lhe causaria aquela singular familiaridade. Mas o assombro dominou
tudo; Guiomar sentiu que ele lera nela a razão da insistência e o desgosto do resultado.
A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os olhos. Havia neles
uma interrogação imperiosa, que a alma não se atrevia a transmitir aos lábios. Se há nos do leitor
alguma interrogação, espere-mos o capítulo seguinte.
XIII - EXPLICAÇÕES
Luís Alves compreendera toda a expressão dos olhos de Guiomar; era, porém, homem
frio, resoluto. Inclinou o busto com toda a graça correta e de bom-tom, e disse-lhe na voz mais
branda que lhe permitia o seu órgão forte e severo:
Parece-lhe que fui um pouco audaz, não é? Fui apenas sincero; e ainda que a sua
delicadeza me condene, estou certo de que há em seu coração misericórdia de sobra...
Guiomar tinha readquirido toda a posse de si mesma.
— Está enganado, disse ela, não o condeno, pela simples razão de que o não entendi.
Tanto melhor, redargüiu Luís Alves sem pestanejar; o meu delito nesse caso não
passou da esfera da intenção.
— Mas... referia-se à viagem?
— Referia-me; perguntava quando iam.
Esta presença de espírito de Luís Alves ia muito com o gênio de Guiomar; era um laço
de simpatia. A moça respondeu que o comendador viria buscá-las dai a quinze ou vinte dias.
— Três meses apenas? perguntou o advogado.
— Três ou quatro.
Quatro meses não é a eternidade, mas Cantagalo, para uma carioca da gema, de
ser um degredo, ou quase... Oxalá, continuou Luís Alves, concluindo mais depressa do que
queria, ao ver que Jorge se aproximava da janela, oxalá não lhe faça esse exílio esquecer o
que solenemente lhe digo neste momento: que a senhora tem uma alma grande e nobre, e que eu
a admiro!
Jorge chegara; a conversa tinha de acabar ou tomar diferente rumo.
As últimas palavras de Luís Alves eram singularmente dispostas para deixar sulco
profundo na memória da moça. Não era uma declaração de amor, nem uma cortesania de sala,
coisas todas que ela ouvira muita vez, que podiam lisonjeá-la, e decerto a lisonjeavam; era mais
que um cumprimento e não chegava a Ser uma declaração. Comoção, não a havia na voz do
advogado; firmeza, sim, e um ar de convicção profunda. Guiomar olhou para ele quase sem dar
pela presença de Jorge; mas Luís Alves voltara-se para o recém-chegado e falava-lhe em tom
jovial, bem diferente daquele que empregara pouco antes.
Se esse contraste era premeditado, não sei se o era, não podia vir mais de feição
ao espírito de Guiomar. De quantos homens a moça tratara até ali, era o primeiro que lhe
inspirava curiosidade, e também, naquela ocasião, a primeira pessoa que se compadecia dela.
Veja o leitor: curiosidade e gratidão; veja se duas asas mais próprias para arrojar uma
alma no seio de outra alma, — ou de um abismo, que é às vezes a mesma coisa.
Eu disse compadecia e esta palavra, desacompanhada de outra coisa, pode
fazer crer ao leitor que, durante aqueles dias em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar
uma criatura desditosa. Nada disso; a situação era a mesma, não a mesma anteriormente à carta
de Jorge, mas a mesma da noite em que ela a recebeu, situação, decerto, assaz sombria e
carregada para um coração que receia ser constrangido, mas não desesperada nem angustiosa.
A baronesa, se soubera dos fatos, ou se pudera ler na alma da moça, seria a primeira a
dar-lhe todas as consolações. Mas não sabia. Seu desejo, - ou antes o sonho da velhice, como ela
dizia num dos anteriores capítulos, era deixar felizes a afilhada e o sobrinho, e entendia que o
melhor meio de os deixar felizes era casá-los um com o outro. A notícia que tinha do coração da
moça, a este respeito, era incompleta ou inexata; pintavam-lhe como frieza o que era
repugnância. Mrs. Oswald dava-lhe sempre esperanças de êxito feliz e próximo, as cóleras da
moça não lhas contava nunca.
Da carta de Jorge não soube, nem da cena havida na alcova. O casamento continuava a
aparecer-lhe com todas as probabilidades de uma esperança realizável.
Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão pertinaz esperança, e terá
razão; mas os olhos da baronesa não são os da leitora; ela lhe via o lado bom, que era
realmente bom, ainda que de uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via riem
podia ver-lhe a frivolidade grave do espírito, nem o gênero de afeto que se lhe gerava no coração.
Jorge era o seu único parente de sangue, — filho de uma irmã que vivera infeliz e mais
infelizmente morrera, não repudiada, mas aborrecida do marido, circunstância que lhe tornava
caro aquele moço, Mais do que a afilhada, não; nem tanto, decerto; o coração não chegaria para
dividir-se igualmente em tão grandes porções; queria-lhe, porém, muito, quanto bastava para
desejá-lo feliz, e trabalhar por fazê-lo. Acrescentemos que o destino da irmã sempre lhe estava
presente ao espírito, e que ela receava igual sorte a Guiomar; em Jorge parecia-lhe ver todos os
dotes necessários para torná-la venturosa.
Infelizmente, Mrs. Oswald, sabedora daqueles secretos desejos e mais ou menos
confidente dos sentimentos de Jorge, achara azada ocasião esta para patentear toda a gratidão de
que estava possuída e a profunda amizade que a ligava à família da baronesa. Interpôs-se para
servir aos outros, e mais ainda a si própria. Viu a dificuldade, mas não desanimou; era preciso
armar ao reconhecimento da baronesa. Por isso não hesitou em confiar a Guiomar o desejo da
madrinha, exagerando-o, entretanto, — porque nunca a baronesa dissera que "tal casamento era a
sua campanha", e Mrs.
Oswald atribuiu-lhe esta frase mortal para todas as esperanças e sonhos da moça. Mas,
se falava demasiado ao pé de uma, era muito mais sóbria de palavras com a outra, e da
exageração ou da atenuação da verdade resultara aquele perene estado de luta abafada, de receios,
de indecisão e de amarguras secretas. Convém dizer, para dar o último traço ao perfil, que esta
Mrs. Oswald não seguia a voz do seu interesse pessoal, mas também o impulso do próprio
gênio, amigo de pôr à prova a natural sagacidade, de tentar e levar a cabo uma destas operações
delicadas e difíceis, de maneira que, se houvesse uma diplomacia doméstica, — ou se se
criassem cargos para ela, Mrs. Oswald podia contar com um lugar de embaixatriz.
Vindo agora à narração dos sucessos da história, cumpre que o leitor saiba que a carta de
Jorge não teve resposta escrita nem verbal. No dia seguinte ao da entrega foi ele jantar a
Botafogo; mas Guiomar não saíra do quarto, a pretexto de uma dor de cabeça; a baronesa passou
o dia com ela; Jorge apenas conseguiu saber, quando de lá saiu, que a moça ia melhor.
Nos subseqüentes dias nenhuma resposta foi às mãos do pretendente, nem ele conseguiu
haver uns cinco minutos de conversa solitária com a moça; Guiomar esquivava-se sempre, com
aquela arte suma da mulher que aborrece, e que é nem mais nem menos igual à da mulher que
ama.
Um dia, porém, não houve meio de fugir; e Jorge, que não tinha nenhuma comoção na
voz, porque não tinha muita no coração, olhou para ela com olhos direitos e francamente lhe
pediu uma palavra de esperança ou de desengano. A moça hesitou alguns segundos; contudo era
preciso responder. Venceu a repugnância dizendo-lhe com um frio sorriso:
— Nem uma nem outra coisa.
— Nem desengano? perguntou Jorge alvoroçado.
Ninguém pode dar nem uma coisa nem outra, disse ela; costumamos aceitá-las do
nosso destino.
Não era responder, como vê o leitor; Jorge ia pedir uma decisão mais transparente, mas
a moça aproveitara-se da primeira impressão e esquivara-se. Quando ele recobrou a voz não viu
mais que a fímbria do vestido, que se perdia na volta de uma porta.
Guiomar encurtou as rédeas à familiaridade que existia entre ela e Jorge; mas, se o
tratava com mais reserva, não o fazia com sequidão nem frieza, nem deixava de ser polida e
afável. A dignidade natural que havia em toda a sua pessoa servia-lhe, além disso, como de uma
torre de marfim, onde ela se acastelava e mantinha em respeito o pretendente.
Dos dois homens que lhe queriam, nenhum lhe falava à alma; ela sentia que Estêvão
pertencia à falange dos tíbios, Jorge à tribo dos incapazes, duas classes de homens que não
tinham com ela nenhuma afinidade eletiva.
Não igualava, decerto, os dois pretendentes; um era simplesmente trivial, outro
sentimental apenas; mas nenhum deles capaz de criar por si só o seu destino. Se os não igualava,
também os não via com os mesmos olhos; Jorge causava-lhe tédio, era um Diógenes de espécie
nova; através da capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Estêvão
inspirava-lhe mais algum respeito; era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para
vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá. O sentimento
de Guiomar em relação a Estêvão não podia nunca chegar ao amor; tinha muito de superioridade
e perdão.
Com outra índole, aspirações diferentes e vivida em diversa esfera, amá-lo-ia com
certeza, do mesmo modo que ele a amava. Mas a natureza e a sociedade deram-se as mãos para a
desviar dos gozos puramente íntimos. Pedia amor, mas não o quisera fruir na vida obscura; a
maior das felicidades da terra seria para ela o máximo dos infortúnios, se lha pusessem num
ermo. Criança, iam-lhe os olhos com as sedas e as jóias das mulheres que via na chácara contígua
ao pobre quintal de sua mãe; moça, iam-lhe do mesmo modo com o espetáculo brilhante das
grandezas sociais. Ela queria um homem que, ao de um coração juvenil e capaz de amar,
sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos.
Voluntariamente, uma vez aceitara a obscuridade e a mediania; foi quando se propôs a seguir
o ofício de ensinar; mas é preciso dizer que ela contava com a ternura da baronesa.
XIV - EX-ABRUPTO
o leitor ficou entendendo que a viagem a Cantagalo era obra quase exclusiva de
Guiomar. A baronesa relutara a princípio, como das outras vezes fizera, e o comendador pouca
esperança tinha de a ver na fazenda. Mas o voto de Guiomar foi decisivo. Ela fortaleceu, com
as suas, as razões do comendador, alegando não a obrigação em que a madrinha estava de
desempenhar a palavra dada, mas ainda a vantagem que lhe podiam trazer aqueles três meses de
vida roceira, longe das agitações da corte; enfim, invocou o seu próprio desejo de ver uma
fazenda e conhecer os hábitos do interior.
Não havia tal desejo, nem coisa que se parecesse com isso; mas Guiomar sabia que na
balança das resoluções da madrinha era de grande peso a satisfação de um gosto seu. O sacrifício
duraria três ou quatro meses; ela afrontaria, porém, dez ou doze se tantos fossem necessários,
para fugir algum tempo às pretensões de Jorge, sem embargo de lhe repugnar todo o viver que
não fosse a vida fastosa e agitada da corte. Eu, que sou o Plutarco desta dama ilustre, não
deixarei de notar que, neste lance, havia nela um pouco de Alcibíades, aquele gamenho e
delicioso homem de Estado, a quem o despeito também deu forças um dia para suportar a
frugalidade espartana.
Infelizmente, Jorge reduziu todos esses cálculos a nada. Ela contava com o seu
demasiado apego aos regalos da corte, não contava com as sugestões de Mrs. Oswald, que
percebera o plano, e torcera a primeira resolução de Jorge, que era ficar e esperar. O sacrifício da
parte dele era compensado pela probabilidade da vitória, a qual não consistia em haver por
esposa uma moça bela e querida, mas ainda em tornar muito mais sumárias as partilhas do que a
baronesa deixaria por sua morte a ambos. Esta consideração, que não era a principal, tinha ainda
assim seu peso no espírito de Jorge, e, sejamos justos, devia tê-lo: possuir era o seu único ofício.
Assim era que não a moça deixava de obter um bem, mas caía de um mal em outro
maior; tê-lo ao de si, onde as distrações seriam menos prontas e variadas, equivalia a adoecer
de fastio e morrer de inanição.
Imagine-se por isso em que estado lhe ficou o espírito depois da declaração de Jorge.
Não havia meio de fugir ao pretendente, era preciso tragá-lo. Esta perspectiva abateu-lhe
totalmente o ânimo. Uma confidente, em tais situações, é um presente do céu; mas Guiomar não
a tinha, e se alguma pessoa lhe merecesse tal confiança, é certo ou quase certo que lhe não diria
nada. Suas dores eram altivas, as tristezas de seu coração tinham pudor.
Espíritos desta casta ignoram a consolação que há, nas horas de crise, em se repartirem
com outro; triste, mas feliz ignorância que lhes poupa muita vez o contato de uma consciência
aleivosa e ruim.
No meio do longo refletir, soaram-lhe na memória as palavras de Luís Alves; ela ouviu-
as de novo, tais quais ele as proferira, desde a frase descortês até à expressão respeitosa. Uma era
o comentário da outra, e ambas podiam explicar-lhe o caráter de Luís Alves, se tivesse alguns
elementos mais para conhecê-lo; em todo caso, era a ponta do véu levantada.
Embora se lhe não pudesse ler no fundo do espírito, via-se desde qual era o seu
método de ação.
Qualquer outro homem, depois do efeito produzido pela primeira declaração, não se
atreveria ou não lhe importaria tentar mais nada para desfazer o projeto da viagem. Mas o
espírito de Luís Alves tinha a obstinação do dogue. Era-lhe necessário que a família da baronesa
não saísse da corte; este objeto havia de alcançá-lo a todo o transe. Ele espreitava as ocasiões,
aproveitava as circunstâncias, tinha a habilidade de intercalar o pedido em qualquer retalho de
conversação, onde menos apropriado pareceria a qualquer outro. Jorge aplaudia-o com as forças
todas de que podia dispor o seu interesse. A baronesa opunha às sugestões do advogado a
resistência mole e atada de quem deseja aquilo mesmo que recusa.
— O doutor é terrível, dizia ela. Em se lhe metendo uma coisa na cabeça, ninguém mais
o tira daí.
Justamente, é uma idéia fixa. Sem idéia fixa não se faz nada bom neste mundo,
Guiomar sustentava a resolução da madrinha, posto não o fizesse a miúdo, nem no mesmo tom
seco e imperioso da primeira noite. Seu impulso era ser coerente; ao mesmo tempo não queria
parecer aos olhos de Luís Alves que lhe aceitava o concurso para obter o que aliás desejava de
todo o coração; seria lavá-lo da primeira culpa.
O argumento que mais influía no ânimo de todos, o que devera ter afastado a idéia de
semelhante viagem, era o perigo de afrontar o cóleramorbo que por aquele tempo percorria
alguns pontos do interior. Um dia de manhã soube-se que em Cantagalo havia aparecido o
terrível inimigo.
Desta vez Luís Alves triunfou sem dizer palavra; a baronesa recuou diante daquele fato
brutal.
A viagem desfez-se pois, a contento de todos, salvo talvez de Mrs.
Oswald, que receava muito da mocidade casadeira da corte, e dos belos olhos castanhos
de Guiomar. Mrs. Oswald temia ver surgir a cada passo um novo inimigo emboscado em algum
teatro ou baile, ou quando menos na rua do Ouvidor, e não via que o inimigo novo podia ser que
estivesse literalmente ao da porta. A sagacidade da inglesa desta vez foi um tanto míope. A
razão é que Luís Alves, em todos aqueles seus preliminares, houve-se com habilidade; longe de
procurar a moça, parecia nada haver alterado nos seus sentimentos, nem desejar mudar a espécie
de relações que até ali mantinha. Guiomar, entretanto, não podia deixar de comparar aquela
espécie de atenciosa indiferença que havia dele para ela, com as palavras que anteriormente lhe
ouvira, e o resultado da comparação não lhe parecia muito claro.
Na noite do mesmo dia em que ficou assentado diferir a viagem para melhores tempos,
achavam-se em casa da baronesa algumas pessoas de fora; Guiomar, sentada ao piano, acabava
de tocar, a pedido da madrinha, um trecho de ópera da moda.
— Muito obrigada, disse ela a Luís Alves que se aproximara para dirigir-lhe um
cumprimento. Está alegre! Parece que é a satisfação de me haver malogrado o maior desejo que
eu tinha nesta ocasião.
— Não fui eu, disse ele, foi a epidemia.
— Sua aliada, parece.
Tudo é aliado do homem que sabe querer, respondeu o advogado dando a esta frase
um tanto enfática o maior tom de simplicidade que lhe podia sair dos lábios.
Guiomar curvou a cabeça e esteve alguns instantes a perpassar os dedos pelas teclas,
enquanto Luís Alves, tirando de cima do piano outra música, dizia-lhe:
— Podia dar-nos este pedaço de Bellini, se quisesse.
Guiomar pegou maquinalmente na música e abriu-a na estante.
Era então vontade sua? perguntou ela continuando o assunto interrompido do
diálogo.
— Vontade certamente, porque era necessidade.
Necessidade, tornou ela começando a tocar, menos por tocar que por encobrir a
voz; mas necessidade por quê?
— Por uma razão muito simples, porque a amo.
A música estacou. Guiomar erguera-se de um salto. Mas nem o gesto da moça, nem a
surpresa das outras pessoas perturbou o advogado; Luís Alves inclinou-se para o mocho, como a
consertá-lo, e voltando-se para Guiomar, disse-lhe graciosamente:
— Pode sentar-se agora; está seguro.
Guiomar sentou-se outra vez muda, despeitada, a bater-lhe o coração como nunca lhe
batera em nenhuma outra ocasião da vida, nem de susto, nem de cólera, nem... de amor, ia eu a
dizer, sem que ela o houvesse sentido jamais. Não se demorou muito tempo ali; com a mão
trêmula folheou a música que estava aberta na estante, deixou-a logo e levantou-se.
Nestes derradeiros movimentos ninguém reparou; e se alguém pudesse reparar em
alguma coisa, a moça tomara a peito desvanecer todas as suspeitas. A primeira impressão fora
profunda, mas Guiomar tinha força bastante para dominar-se e fechar todo o sentimento no
coração.
O que se passou depois, quando, livre de olhos estranhos, pôde entregar-se a si mesma,
isso ninguém soube, a não serem as paredes mudas do quarto, ou o raio de lua coado pelo tecido
raro das cortinas das janelas, como a espreitar aquela alma faminta de luz. Soube-o, talvez, o seu
espelho, quando no dia seguinte lhe refletiu o rosto desfeito e os olhos quebrados. Se foi a
meditação noturna que os amoleceu e apagou, não o perguntou ele, naturalmente porque o sabia;
mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos, pediam outro rosto em que caíssem
melhor. O de Guiomar queria-os como eles eram, severos, firmes e brilhantes.
A baronesa também não deixou de ver que a afilhada não acordara com o mesmo ar do
costume; achou-a taciturna e distraída.
— Eu, madrinha? perguntou Guiomar simulando um sorriso de admiração.
— Será engano de meus olhos.
— Não é outra coisa; estou como sempre, como ontem, como amanhã. Passei a noite um
pouco mal, é verdade; mas o que tive desapareceu inteiramente. A prova...
Guiomar parou neste ponto, chegou-se à madrinha e deu-lhe um beijo.
— A prova, continuou ela, é que ainda hoje me acha bonita, não é?
— Criança! respondeu a baronesa, dando-lhe uma pancadinha na face.
A tranqüilidade da moça era simulada; apenas a madrinha voltou as costas, cobriu-se-lhe
o rosto com o mesmo véu. Ela aprendera desde criança a disfarçar as suas preocupações.
Quanto a Luís Alves, posto houvesse contado com o seu método cru e abrupto, saiu dali
sem plena certeza do resultado. Esta incerteza abalou-o mais do que ele supunha; e foi, sem
dúvida, a primeira ocasião em que sentiu que a amava deveras, ainda que o seu amor fosse como
ele mesmo: plácido e senhor de si. No dia seguinte, Estêvão interrogou-o a respeito de Guiomar.
Creio, disse ele depois de refletir alguns instantes, creio que por ora não deves
perder as esperanças todas.
XV- EMBARGOS DE TERCEIRO
Durante três dias deixou Luís Alves de ir à casa da baronesa, estando aliás a morrer por
isso. Entrava porém no plano esta ausência; era das instruções que ele mesmo dera ao seu
coração; não havia remédio senão observá-las.
No quarto dia recebeu um bilhete da baronesa que o cumprimentava pela eleição. A
mala do Norte chegara, e com ela a notícia da vitória eleitoral. Estava Luís Alves deputado; ia
enfim dar a sua demão no fabrico das leis. Estêvão foi o primeiro que o felicitou; era o antigo
companheiro dos bancos da academia; tanto ou mais do que os outros devia aplaudir aquela boa
fortuna. Não lhe escondeu, entretanto, a inveja que ela lhe metia:
— Deputado! suspirou ele. Oh! eu também podia ser deputado.
Estêvão dizia isto, como a criança deseja o dixe que vê no colo de outra criança, — nada
mais. Eram os seus sonhos de outrora, que renasciam tais quais eram, inconsistentes, vagos,
prestes a dissiparem-se com o primeiro raio da manhã.
Luís Alves apressou-se a ir agradecer à baronesa a felicitação. Guiomar teve um leve
estremecimento quando o viu, mas recebeu-o tranqüila e risonha, quase indiferente. O advogado
era hábil; não a perseguiu com os olhos; sobre acordar a atenção das demais pessoas, era seguir o
método comum. Ele não queria parecer-se com os outros.
Guiomar, entretanto, observava-o a espaços, de revés, como a querer surpreendê-lo; a
pouco e pouco, porém, o seu olhar foi sendo mais direito e firme. O de Luís Alves era natural e
igual como antes era, como era ainda agora com todos.
Ao sair, junto à porta de uma sala, onde acaso a topou, Luís Alves teve ocasião de lhe
dizer esta simples palavra:
— Perdoou-me?
A moça retirou a mão, que ele tinha presa na sua, e furtou o corpo, ao mesmo tempo que
lhe caíam as pálpebras.
— Perdoou-me? repetiu ele.
Guiomar retirou-se sem dizer palavra. Luís Alves esperou que ela desaparecesse e saiu.
A moça, entretanto, ficou irritada por nada lhe ter respondido, sendo verdade que nada achou
nem acharia talvez que lhe responder; mas arrependeu-se e pensou longo tempo naquilo.
Quer dizer que o amava? Quer dizer que estava prestes a isso. A arraiada branqueava o
céu, tingiria depois o cimo dos montes, entornarse-ia enfim pela encosta abaixo, até aparecer o
sol, — o sol contemporâneo de Adão, e do último homem que há de vir.
Dali a dias, entrando Luís Alves em casa da baronesa, teve a boa fortuna de encontrar a
moça sozinha, na sala do trabalho, donde a baronesa se ausentara cinco minutos antes. Mrs.
Oswald achava-se fora. Era a hora da tardinha; o dia estava prestes a afogar-se no seio da noite.
Guiomar, molemente sentada numa cadeira baixa, tinha um livro aberto sobre os joelhos
e os olhos no ar. Luís Alves surpreendeu-a nessa atitude meditativa, mais bela do que nunca,
porque assim, e àquela hora, e com o vestido meio escuro que lhe realçava a cor de leite da face,
tinha um quê de gracioso e severo, ao mesmo tempo, que parecia buscado de propósito para
recebê-lo.
Minha madrinha vem, disse Guiomar logo depois de lhe estender a mão, que ele
apertou e sentiu um pouco trêmula.
Talvez daqui a cinco minutos, disse ele; é bastante para decidir o meu destino. Duas
vezes lhe perguntei se me perdoara; pela terceira lhe peço que me responda; custa pouco uma
única palavra; custa menos ainda, um único gesto.
A moça olhou algum tempo para o livro que tinha diante de si. A manhã, porém, era
alta no coração de Guiomar, a claridade intensa, o sol quente e vivo, porque ela não olhou muito
tempo para o livro, nem hesitou mais do que era natural e exigível naquela ocasião. Dois minutos
depois fez o gesto, um gesto só, mas ainda mais eloqüente do que se ela falasse, estendeu-lhe
a mão.
Luís Alves apertou-lha entre as suas.
A comoção era natural em ambos; ali estiveram alguns instantes calados, ele com os
olhos fitos nela, ela com os seus no chão. As mãos tocavam-se e os corações palpitavam
uníssonos. Decorreram assim cinco breves minutos. Ela foi a primeira que rompeu o silêncio.
Um gesto, um gesto, e é o meu destino que lhe entrego com ele, disse Guiomar
olhando em cheio para o moço.
Ainda não. Se os nossos destinos se ligarem, estou convencido de que o meu amor,
pelo menos, terá a virtude de a tornar feliz. Mas nada está feito ainda, e se eu fui breve e
apressado na confissão, não o desejo ser na consagração que lhe peço.
Luís Alves calara-se; a moça olhava para ele como buscando entendê-lo.
Sim, continuou ele; melhor é que não ceda a um instante de entusiasmo. Minha vida
é sua; todo o meu destino está nas suas mãos... Contudo, não quero surpreender-lhe o coração
neste momento; no dia em que me julgar verdadeiramente digno de ser seu esposo, ouvi-la-ei e
segui-la-ei.
A resposta da moça foi apertar-lhe as mãos, sorrir, e embeber os seus olhos nos dele. O
passo da baronesa interrompeu esta contemplação.
Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele sentimento? Era-o
até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade do coração, de lhe não diminuirmos a
força de suas faculdades afetivas. Até só; dpor diante entrava a fria eleição do espírito. Eu
não a quero dar como uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor
silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava essas flores do
coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sítios agrestes e nus, nem nos ramos do
arbusto modesto plantado em frente de janela rústica. Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso
de Sèvres, posto sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas
flores pelas cortinas de caxemira, que deviam arrastar as pontas na alcatifa do chão.
Podia dar-lhe Luís Alves este gênero de amor? Podia; ela sentiu que podia. As duas
ambições tinham-se adivinhado, desde que a intimidade as reuniu. O proceder de Luís Alves,
sóbrio, direto, resoluto, sem desfalecimentos, nem demasias ociosas, fazia perceber à moça que
ele nascera para vencer, e que a sua ambição tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo que as
tinha ou parecia tê-las o coração. Demais, o primeiro passo do homem público estava dado; ele ia
entrar em cheio na estrada que leva os fortes à glória. Em torno dele ia fazer-se aquela luz, que
era a ambição da moça, a atmosfera que ela almejava respirar. Estêvão dera-lhe a vida
sentimental, Jorge a vida vegetativa; em Luís Alves via ela combinadas as afeições
domésticas com o ruído exterior.
Uma vez entendidos, é difícil que dois corações se encubram, pelo menos aos olhos
mais sagazes. Os de Mrs. Oswald eram dos mais finos.
A inglesa percebeu dentro de pouco tempo que entre eles havia alguma coisa. Interrogar
a moça era inútil, sobre perigoso; seria ir, de coração leve, em busca de ódio, talvez. Todavia se
ainda fosse possível salvar tudo?
Guiomar resistiria dificilmente a um desejo da madrinha; era possível vencê-la por esse
lado.
Mrs. Oswald concebeu então um projeto insensato, que lhe pareceu aliás excelente e de
bom aviso. O desejo de servir a baronesa e levar uma idéia ao fim tapou-lhe os olhos da razão.
Ela foi diretamente a Jorge.
— Sabe o que me está parecendo? disse ela. Parece-me que há mouro na costa.
Mouro na costa! exclamou Jorge com uma tal expressão de desgosto, que era fácil
compreender o fundo de suspeita já existente em seu espírito.
— Nada menos, disse a inglesa; mas um mouro que se pode capturar.
E a inglesa expôs um plano completo que o sobrinho da baronesa ouviu um tanto
perplexo. O plano consistia em ir Jorge pedir a moça à baronesa, em presença dela própria. A
baronesa, que nutria o desejo de os ver casados, não deixaria de fazer pesar o seu voto na
balança, e era muito difícil que a gratidão de Guiomar não decidisse em favor de Jorge.
A gratidão... e o interesse, continuou ela. Devemos contar também com o interesse,
que é um grande conselheiro íntimo. Ela não de querer sacrificar a afeição da madrinha, que
para ela vale...
— Oh! que triste lembrança! interrompeu Jorge, recuando diante da idéia de Mrs.
Oswald.
A inglesa sorriu, — e deixou por mão aquele argumento; firmou-se porém no da
afeição. Guiomar não se oporia a um desejo da madrinha; era urgente dar-lhe o golpe. Jorge não
se atrevia a surpreender por esse meio a aquiescência da moça; mas acreditava na eficácia dele, e
sobretudo receava perder a causa. Uma vez que a vencesse, tudo podia confiar do tempo e do seu
amor.
O conselho foi seguido pontualmente. De noite, em presença da baronesa à hora da
despedida, porque ele hesitara a maior parte do tempo, - praticou Jorge aquele ato insensato
de declarar à moça que a amava e de lhe pedir a mão. A tia sorriu de contentamento, mas teve a
prudência de não proferir nada enquanto Guiomar, empalidecendo, nada dizia, porque nada
achava que dizer.
O silêncio durou cerca de três ou quatro minutos, um silêncio acanhado e vexado, em
que nenhum deles se atrevia a reatar a conversação.
A baronesa, pela sua parte, imaginava que os dois estavam enfim entendidos, e que a
declaração era autorizada pela moça. O enleio de Guiomar não era dos que pudessem dar
cabimento a esta suposição; mas a boa senhora via com os olhos dos seus bons desejos.
Pela minha parte, declarou enfim a baronesa, não me oponho; estimaria muito que
acabassem por aí. Mas é negócio do coração; devo esperar a resposta de Guiomar.
E voltando-se para a afilhada:
— Pensa e resolve, minha filha, disse ela; e se fores feliz, sê-lo-ei ainda mais do que tu.
Duas vezes pairou a negativa nos lábios da moça; mas a língua não se atrevia a repetir a
palavra do coração. No fim de alguns instantes:
Refletirei, respondeu ela beijando a mão à madrinha; e continuou voltando-se para
Jorge: — Boa noite! Até amanhã.
XVI - A CONFISSÃO
Na mesma noite em que Jorge, cedendo às sugestões de Mrs. Oswald, tentava o último
recurso que no entender da inglesa havia, achava-se Luís Alves em casa, comodamente sentado
numa poltrona de couro, defronte da janela com os olhos no mar e o pensamento nas suas duas
candidaturas vencidas. Meia-noite estava a pingar; uma pessoa descia de um tílburi e batia-lhe à
porta.
Era Estêvão.
Luís Alves naturalmente admirou-se de o ver ali àquela hora; mas Estêvão explicou-lhe
tudo.
— Venho passar meia hora contigo, ou a noite toda se quiseres.
Estava em casa aborrecido, a pensar... bem sabes em quê...
— Nela? interrompeu Luís Alves.
— Agora e sempre.
Luís Alves torceu o bigode e olhou três ou quatro vezes para o colega, enquanto este
tirava o chapéu e dispunha-se a ir buscar uma cadeira para sentar-se ao pé do outro.
— Estêvão, disse Luís Alves depois de alguns instantes de reflexão, e voltando a
poltrona para dentro, ouve-me primeiro e resolverás depois se ficas a noite ou se te vais embora
imediatamente. Talvez escolhas este último alvitre.
— Vais falar-me de Guiomar?
— Justamente.
Estêvão sentou-se defronte de Luís Alves. Seu coração batia apressado; dissera-se que
toda a sua vida pendia dos lábios do amigo. Houve um instante de silêncio.
— Nenhuma... nenhuma esperança então? murmurou Estêvão.
— Disseste a fatal palavra! exclamou Luís Alves. Sim, não tens nenhuma esperança.
— Mas... como sabes?
Não me interrogues; eu não poderia dizer-te tudo o que há. Poupa-me, ao menos,
esse triste dever.
Estêvão sentiu arrasarem-se-lhe os olhos d'água. Quis falar, mas as palavras iam-lhe
saindo envoltas em soluços.
Luís Alves fumava tranqüilamente, acompanhando com os olhos os rolinhos de fumo
que lhe fugiam da ponta do charuto. Este silêncio durou cerca de dez minutos. O mar batia
compassadamente na praia. A voz da onda e o latido de um cão ao longe eram os únicos sons que
vinham quebrar a mudez daquela hora solene para um desses dois homens que ia perder até o
repouso da esperança.
Estêvão foi o primeiro que falou:
— Ama a outro, não é? perguntou ele com a voz trêmula.
— Ama, respondeu surdamente Luís Alves.
Estêvão ergueu-se e deu alguns passos na sala, sem dizer palavra, a morder a ponta do
bigode, parando às vezes, outras traduzindo com um gesto desordenado os sentimentos que lhe
tumultuavam no coração. A dor devia ser grande, mas a manifestação não era a mesma que o
leitor lhe viu, dois anos antes, quando ele foi confiar ao amigo o primeiro desengano de Guiomar.
Parece-me que eu adivinhava isto mesmo, disse ele, enfim, parando em frente de
Luís Alves. Este desejo que me acometeu de vir aqui, a esta hora, sem certeza de encontrar-te,
era mais um benefício do meu destino.
Devia esperá-lo. Que vida tem sido a minha, Luís! Agarrei-me, nem sei por quê, à
esperança de ser amado por ela, de a vencer pela piedade, ou pelo remorso, ou por qualquer outro
motivo que fosse, o motivo importava pouco... O essencial é que ela me pagasse em ternura e
amor todas as dores que curti, as lágrimas todas que tenho devorado em silêncio... E era essa
esperança que ainda me dava forças... que me fazia crer feliz, como pode sê-lo um desgraçado,
como podia sê-lo eu, que nasci debaixo de ruim estrela... Oh! se tu souberas... Não, não sabes,
nem ela também, ninguém sabe nem saberá nunca tudo quanto tenho padecido, tudo quanto...
Interrompeu-se. Duas lágrimas, espremidas do fundo do coração, saltaram-lhe dos olhos
e desceram-lhe rápidas a perder-se entre os cabelos raros e finos da barba. Ele sentiu que outras
podiam vir, e foi sentar-se num sofá, meio voltado de costas para Luís Alves. As outras vieram,
porque o coração ainda as tinha para as dores supremas; mas correram-lhe silenciosas, sem um
soluço, sem uma queixa única.
Luís Alves levantara-se e chegara à janela. Seu espírito, apesar de frio e quieto, parecia
agora um pouco alvoroçado. Não era dor; e não sei se lhe podia chamar remorso. Mal-estar
apenas, e comiseração. O coração era capaz de afeições; mas, como ficou dito no primeiro
capítulo, ele sabia regê-las, moderá-las e guiá-las ao seu próprio interesse. o era corrupto nem
perverso; também não se pode dizer que fosse dedicado nem cavalheiresco; era, ao cabo de tudo,
um homem friamente ambicioso.
Estêvão levantara-se outra vez e pegara no chapéu.
— Vem cá, disse Luís Alves entrando e indo ter com ele; vejo que estás mais homem do
que antes. Resta que o sejas completamente; varre da memória e do coração tudo o que possa
referir-se...
Que remédio! interrompeu Estêvão sorrindo amargamente; que remédio tenho eu
senão esquecê-la! Mas quando?
— Mais breve talvez do que supões...
Luís Alves não acabou; Estêvão olhara para ele com um gesto de espanto e fora sentar-
se outra vez.
— Mais breve do que suponho! exclamou ele. Tu não tens coração:
não tens sequer observação nem memória. Não vês, não sentes que esta paixão é o
sangue do meu sangue, a vida da minha vida? Esquecê-la! Era bom se eu a pudesse esquecer;
mas a minha sina até essa esperança me arranca, porque este padecer íntimo, constante, há de
ir comigo até à morte...
Desta vez era Luís Alves que passeava de um lado para outro. Em seu espírito
despontava uma idéia, que ele examinava, a ver se a poria ali mesmo em execução. Era dizer-lhe
tudo. Estêvão viria a sabê-lo mais tarde; melhor era que o soubesse logo e por ele. Ao mesmo
tempo refletia na exaltação dos sentimentos do rapaz; a dor certamente se lhe agravaria, em
sabendo que era ele o preferido de Guiomar. O coração, que perdoaria a um estranho, condenaria
ao amigo.
Estêvão, assentado, com os olhos no teto, parecia entregue às suas reflexões, mas
parecia, porque ele não pensava, evocava antigas memórias, fazia surgir diante de seus olhos a
figura gentil de Guiomar, sentia-lhe o império dos belos olhos castanhos, ouvia-lhe a palavra
doce e aveludada entornar-se-lhe no coração, Não evocava só, criava também, pintava com a
imaginação a felicidade que lhe poderia dar a moça, se entre todos os homens o escolhera, se eles
dois vinculassem os seus destinos. Ele via-a ao pé de si, cingia-lhe o braço em volta da cintura,
enchia-lhe de beijos os cabe-los, tudo isto em meio de uma paisagem única na terra, porque a
abundância da natureza cresceria ao contato daquele sentimento puro, casto e eterno.
Não falo eu, leitor; transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado; fixo
nesta folha de papel os vôos que ele abria por esse espaço fora, única ventura que lhe era
permitida.
No meio dessas visões foi acordá-lo Luís Alves.
Tens razão de sentir, disse este; mas não gastes o coração, que maiores surpresas
na vida... Em todo caso, deixa-me dizer-te que nenhuma razão tens de censura...
— Censuro eu alguém?
— Há no amor um gérmen de ódio que pode vir a desenvolver-se depois. Talvez
chegues a acusá-la de te não querer; nesse dia reflete que os movimentos do coração não estão
nas mãos da vontade. Ela não tem culpa se outro lhe despertou o amor.
— Ah! incumbiu-te da defesa!
Luís Alves sorriu; ele contava com a recriminação.
— Não, não me incumbiu da defesa, disse ele; sou eu que a tomo por minhas mãos. Que
defendo eu aqui senão a natureza, a razão, a lógica dos sentimentos, dura e inflexível como toda
a outra lógica? Há no fundo das tuas palavras um sentimento de egoísmo...
O amor não é outra coisa, respondeu Estêvão sorrindo por sua vez. Queres que inda
em cima lhe agradeça este desespero? Queres que apertar a mão ao homem que a soube
vencer?
Luís Alves mordeu a ponta do lábio e acercou-se da janela. Quando ia a voltar para
dentro ouviu um rumor na janela ao pé, a primeira da casa da baronesa. Luís Alves deu um passo
mais. Não viu ninguém; viu apenas o resto de um vestido que fugia e um objeto que lhe caía aos
pés.
Inclinou-se a apanhá-lo. Era uma grande folha de papel envolvendo, para lhe dar mais
peso, outra folha pequena dobrada em quatro. Luís Alves aproximou-se da luz, e leu rapidamente
o que ali vinha escrito. Leu, meteu o papel na algibeira e encaminhou-se disfarçadamente para a
janela. Ninguém; a casa da baronesa dormia.
Quando voltou para dentro, Estêvão tinha-se levantado. Ele vira cair o papel, apanhá-lo
e lê-lo Luís Alves. Não entendeu nada do que se passara; mas seu olhar como que pedia uma
explicação.
Luís Alves foi direito ao fim.
Estêvão, disse ele, vais saber a verdade toda; não poderia ocultar-te o que se
passado, nem conviria talvez que tu a soubesses por boca de outro. Guiomar podia amar-te, eras
digno dela, e ela digna de ti; mas a natureza não os fez um para o outro. São duas almas
excelentes que seriam infelizes unidas. Quem aqui que censurar? Mas se a natureza explica o
sentimento dela, igualmente explica o de um terceiro, que sou eu. Tu confiaste-me as dores e as
esperanças de teu coração; era conhecer toda a minha amizade e a profunda estima que sempre te
consagrei. Mas nem tu nem eu contávamos comigo; porque também eu tenho coração, e os
prestígios da beleza também falam à minha alma. Não a pude ver a frio.
A paixão obscureceu-me. Nesta minha felicidade de amar e ser amado, acredita que sou
alguma coisa infeliz, porque lágrimas tuas, o teu padecer longo e cruel, que eu imagino e
deploro. A confissão é franca; não te falo em arrependimento, porque são atos do coração e não
da consciência, que essa é pura e honrada. E depois desta exposição fiel, cuido que lastimarás
comigo o encontro em que o acaso ou a sorte nos reuniu a todos três; mas não me acusarás
nem me recusaras a tua velha estima. Falo da estima; a amizade, creio que não poderá ser a
mesma. Mas prezarás o meu caráter. Pela minha parte, nem uma nem outra coisa perece; sei o
que vales. Não sei aonde nos lançará a onda do destino amanhã. Pela última vez, porém, espero
que apertarás a mão do teu amigo.
Luís Alves concluíra estendendo-lhe a mão. Estêvão olhou para ele, mas não disse uma
só palavra, não fez um gesto único: caminhou para a porta e saiu.
— Estêvão! gritou Luís Alves.
Mas lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do tílburi que
rolava surdamente na terra úmida da praia.
Luís Alves levantou secamente os ombros; chegou-se à luz e releu o escrito.
XVII - A CARTA
Não era preciso reler o papel para entendê-lo; mas olhos amantes deliciam-se com letras
namoradas. O papel continha uma palavra única:
- Peça-me, escrita no centro da folha, com uma letra fina, elegante, feminina. Luís
Alves olhou algum tempo para o bilhete, primeiramente como namorado, depois como simples
observador. A letra não era trêmula, mas parecia ter sido lançada ao papel em hora de comoção.
Desta observação passou Luís Alves a uma reflexão muito natural.
Aquele bilhete, pouco conveniente em quaisquer outras circunstâncias, estava
justificado pela declaração que ele próprio fizera à moça alguns dias antes, quando lhe pediu que
o conhecesse primeiro, e que no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, ele a ouviria
e acompanharia.
Mas se isto era assim em relação ao bilhete, não o era em relação à hora.
Que motivo obrigaria a moça a deitar-lhe da janela, à meia-noite, aquele papel decisivo,
eloqüente na mesma sobriedade com que o escrevera?
Luís Alves concluiu que havia alguma razão urgente, e portanto, que era preciso acudir à
situação com os meios da situação. Quanto à razão em si, não a pôde descobrir. Ocorreu-lhe o
fato, aliás patente, da corte que o sobrinho da baronesa fazia a Guiomar, mas ignorava as
circunstâncias que lhe eram relativas, e não pôde passar além.
Não direi que Luís Alves gastasse a noite a cavar fundo no terreno das conjecturas
vagas. Não era homem que perdesse tempo em coisas inúteis; e nada mais inútil naquela ocasião
do que tentar explicar o que nenhuma explicação podia ter para ele. O que resolveu foi obedecer
ao recado da moça; pedi-la sem hesitação nem preâmbulo. Mas se o caso lhe não produziu
insônia, não deixou de lhe estender a vigília, além da hora usual, como era de jeito naquela
ocasião solene, sobretudo, tratando-se de criatura que por aqueles tempos era a inveja e a cobiça
de muitos olhos. Luís Alves não era, como Estêvão, um adorável cismador, não se nutria de
imaginações e devaneios, alimento que funde pouco ou nada, mas cismou algum tempo,
embebeu-se uma hora na contemplação ideal da mulher que ele soubera escolher. O sono chegou,
e o devaneio confundiu-se com o sonho.
Guiomar dormiria tão repousadamente como ele? Dormia; a noite, porém, fora-lhe
muito mais agitada e amarga, como era natural depois da declaração de Jorge e das insinuações
da madrinha.
A moça recolhera-se ao quarto, logo depois da declaração. As pessoas da casa nada
puderam ler-lhe no rosto, salvo a palidez repentina e o rubor que se lhe seguiu; mas, logo que ela
se achou só, deu toda a expansão aos sentimentos que até ali pudera conter.
O primeiro deles era o despeito; Guiomar sentia-se humilhada com aquela declaração,
assim feita, de emboscada e sobressalto, para arrancar-se-lhe um consentimento que o coração e a
índole repeliam. Nenhuma consulta, nenhuma autorização prévia; parecia-lhe que a tratavam
como ente absolutamente passivo, sem vontade nem eleição própria, destinado a satisfazer
caprichos alheios. As palavras da madrinha desmentiam esta suposição; mas, a notícia que ela
tinha da resolução da baronesa, neste negócio, diminuía muito o valor de tais palavras. Se era
uma campanha, como dissera Mrs. Oswald, queriam constrangê-la com aparências de
moderação, e o tempo que lhe deixavam para refletir era-o realmente para considerar, sozinha
consigo, na necessidade de pagar os benefícios que recebera.
Não a acusem de ter feito estas reflexões, logo que entrou no quarto, com os olhos
cintilantes e os lábios frios de cólera. Eram naturais; primeiramente porque supunha que o seu
casamento com Jorge estava deliberado e se realizaria, quaisquer que fossem as circunstâncias;
depois, porque a alma dela era melindrosa; não esquecia os benefícios recebidos, mas quisera que
lhos não lembrassem por meio de uma violência: fazê-lo, era o mesmo que lançar-lhos em rosto.
Não! murmurara enfim a moça, forçar-me, reduzir-me à condição de simples serva,
nunca.
Mas esta cólera apaziguou-se, e o coração venceu o coração. Guiomar recordou a
constante ternura da baronesa para com ela, a solicitude com que lhe satisfazia os seus menores
desejos, que eram ali ordens, e não combinava tamanho amor com a suposta violência que lhe
queria fazer.
Não tardou em arrepender-se das palavras incoerentes que lhe haviam fugido, e dos
sentimentos maus que atribuíra ao coração da baronesa. Cruzou as mãos no peito e ergueu o
pensamento ao céu, corno a pedir-lhe perdão. Guiomar, em meio das seduções da vida, que tantas
eram para ela e de todo lhe levavam os olhos, não perdera o sentimento religioso, nem esquecera
o que Lhe havia ensinado a fé ingênua e pura de sua mãe.
A cólera acabara, mas veio depois a luta entre a gratidão e o amor, - entre o noivo que
lhe propunha a afeição da madrinha e o que o seu próprio coração escolhera. Ela nem ousava tirar
as esperanças à baronesa, nem imolar as suas próprias, e uma de duas coisas era preciso que
fizesse naquela solene ocasião. O que sentiu e pensou foi longo e cruel; mas se tal duelo podia
travar-se-lhe na alma, não era duvidoso o resultado. O resultado devia ser um. A vontade e a
ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas hão de
sempre vencer, porque elas são as armas do forte, e a vitória é dos fortes. Guiomar tinha de
decidir por um dos dois homens que lhe propunha o seu destino; elegeu o que lhe falava ao
coração.
A resposta, porém, não podia a moça demorá-la nem esquivá-la, não convinha, talvez,
prolongar a luta e a dúvida. Quando isto pensou, veiolhe ao espírito uma idéia decisiva, a de
confessar tudo à madrinha. Hesitou, porém, entre fazê-lo ela própria ou por boca de Luís Alves,
cujas palavras, apontadas acima, trazia escritas na memória. Preferia este meio; mas não lhe
bastava preferi-lo, era mister realizá-lo, e para isso só dois modos tinha, escrever-lhe ou falar-lhe.
O segundo podia não ser tão pronto, e talvez falhasse ocasião apropriada; adotou o primeiro, e
recuou logo. A carta seria mandada por um fâmulo, mas o espírito de Guiomar era a tal ponto
sobre si que repeliu semelhante intervenção. A janela estava aberta; dali viu luz na sala de Luís
Alves e a sombra do moço, que passeava de um lado para outro. Ocorreu-lhe então a idéia que
pôs por obra, conforme ficou dito no capítulo anterior.
Tal é a história daquela palavra escrita rapidamente numa folha de papel. Apesar da
declaração de Luís Alves e das circunstâncias em que a moça se achou, o leitor facilmente
compreenderá que ela não a escreveu sem pelejar consigo mesma, sem vacilar muito entre a
repugnância e a necessidade. Afinal foram vencidos os escrúpulos, que é tanta vez o seu destino
deles, e força é dizer que não os vencem nunca de graça, porque eles falam, arrazoam, obstam o
mais que podem, mas é vulgar passarem-lhes por cima.
A moça entretanto, apenas lançara a carta, arrependeu-se; a dignidade teve remorsos; a
consciência quase a acusava de uma ação vil. Era tarde, a carta chegara a seu destino.
Na manhã seguinte, a baronesa acordou mais alegre que de costume. Cuidara ver em
Guiomar, na noite anterior, alguma coisa que lhe pareceu enleio natural da situação. Guiomar
erguera-se tarde; a manhã estava chuvosa e a madrinha não deu o seu passeio. A moça foi beijar-
lhe a mão e a face, como costumava, e receber dela o ósculo materno. O rosto parecia cansado
mas um véu de afetada alegria disfarçava-lhe a expressão natural, à semelhança das posturas de
toucador, de maneira que a baronesa, pouco ledora de fisionomias, o discerniu naquela a
verdade da impostura. Impostura, digo eu, devendo entender-se que é honesta e reta, porque a
intenção da moça não era mais do que não amargurar a madrinha, e tirar-lhe motivo a qualquer
aflição antecipada.
— Dormiu bem a minha rainha de Inglaterra? perguntou Mrs.
Oswald, pondo-lhe familiarmente as mãos nos ombros.
— A sua rainha de Inglaterra não tem coroa, respondeu Guiomar com um sorriso
contrafeito.
Pela volta do meio-dia, recebeu a baronesa uma carta de Luís Alves.
Abriu-a e leu-a. O advogado pedia-lhe a mão de Guiomar. Poucas linhas, corteses,
símplices, naturais, feitas por quem parecia senhor da situação.
Mrs, Oswald, disse a baronesa à sua dama de companhia que se achava na mesma
sala, leia isto.
A inglesa obedeceu.
— Isto não quer dizer nada, observou ela depois de alguns instantes.
É um pretendente mais; devemos crer, porém, que são muitos, e que se os outros não lhe
escrevem cartas destas, é porque são menos afoitos. A senhora baronesa pensa que os olhos de
sua afilhada são inocentes? continuou a inglesa sorrindo. Eu cuido que devem estar carregados de
crimes, e que há mortos...
Mas não vê, Mrs. Oswald, interrompeu a baronesa, que esse homem parece estar
autorizado?
Mrs. Oswald calou-se como quem refletia. Logo depois expôs uma série de argumentos
e considerações, se não graves em substância, pelo menos nas roupas com que ela os vestia, umas
roupas seriamente britânicas, como as não talharia melhor a melhor tesoura da Câmara dos
Comuns", Toda ela dava ares de um argumento vivo e sem réplica. Havia em seus cabelos, entre
louro e branco, toda a rigidez de um silogismo; cada narina parecia uma ponta de um dilema. A
conclusão de tudo é que nada estava perdido, e que a felicidade de Jorge era coisa não
possível, mas até provável, uma vez que a baronesa mostrasse, era o essencial, certa
resolução de ânimo muito útil e até indispensável naquela ocasião. Mrs. Oswald oferecia-se para
ir chamar a moça imediatamente.
— Pois vá, vá, disse a baronesa.
A inglesa saiu dali e foi ter com Guiomar. Quando a viu de longe compôs um sorriso, e
Guiomar, vendo-a sorrir, sentiu como que um movimento interno de repulsa.
Venho buscá-la, disse Mrs. Oswald, para uma coisa que a senhora está longe de
imaginar.
Guiomar interrogou-a com os olhos.
— Para casar! exclamou Guiomar sem compreender a intenção da mensageira.
Nada menos, respondeu esta. Admira-se, o? Também eu; e sua madrinha
igualmente. Mas quem tenha o mau gosto de apaixonar-se por seus belos olhos, e a afronta de
a vir pedir, como se se pedissem as estrelas do céu...
Guiomar compreendeu de que se tratava. Olhou desdenhosamente para a inglesa, e disse
em tom seco e breve:
— Mas, conclua, Mrs. Oswald.
— A senhora baronesa manda chamá-la.
Guiomar dispôs-se a ir ter com a madrinha; Mrs. Oswald fê-la parar um instante, e com
a mais melíflua voz que possuía na escala da garganta, disse:
— Toda a felicidade desta casa está em suas mãos.
XVIII - A ESCOLA
Mrs. Oswald tinha falado demais. A baronesa não a incumbira de dizer à afilhada a
razão por que a mandava chamar. Aconteceu, porém, que aquela indiscrição não foi a única. Mrs.
Oswald, em vez de esquivar-se e deixar que entre Guiomar e a baronesa fosse tratado o assunto
que as ia reunir, cedeu à curiosidade, e acompanhou a moça.
A baronesa estava sentada, entre duas janelas, com a carta aberta nas mãos, tão atenta
em relê-la, que não ouviu o rumor dos pés de Guiomar e de Mrs. Oswald.
— Madrinha chamou-me? perguntou Guiomar parando em frente dela.
A baronesa ergueu a cabeça.
— Ah! É verdade; sim; chamei-te. Senta-te aqui.
Guiomar arrastou a cadeira que ficava mais próxima e sentou-se ao da baronesa.
Esta, entretanto, havia dobrado lentamente a carta, e tinha os olhos no chão, como a procurar por
onde começaria. Quando os levantou deu com a inglesa. Ia já a falar, mas estacou. A afeição que
lhe tinha não impediu que achasse demasiada familiaridade a presença de Mrs.
Oswald em semelhante ocasião. Esperou alguns instantes; mas como a inglesa parecesse
inteiramente distraída:
— Mrs. Oswald, disse a baronesa, vá ver se já deram de comer aos passarinhos.
A inglesa percebeu que estes passarinhos, naquele caso, eram uma pura metáfora, e que
a baronesa nada mais fazia do que pedir-lhe delicadamente que se fosse embora. Todavia, não se
deu por achada.
— Parece-me que não, disse ela; vou já saber disso.
Olhe, disse a baronesa quando ela ia a meio caminho; encoste-me essas portas, e
dê ordem para que ninguém nos interrompa.
A inglesa obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ninguém lha pôde ver, e não se
perdeu nada.
As duas ficaram sós.
Senta-te aqui, Guiomar, disse a baronesa indicando um banquinho que lhe ficava aos
pés.
Guiomar deixou a cadeira e foi sentar-se no banquinho, pousando amorosamente os
braços nos joelhos da madrinha. Esta cingiu-lhe a cabeça com as mãos, e assim esteve longo
tempo sem falar, mas eloqüente naquela mudez, em que a palavra pertencia ao coração. Ambas
estavam comovidas; e Guiomar, de envolta com um suspiro, murmurou este único e doce nome:
— Mamãe!
Era a primeira vez que ela lhe dava este nome, e tão fundo lhe calou na alma à baronesa
que a resposta foi cobri-la de beijos.
Sim, tua mãe, disse a madrinha; a que te deu o ser não te amaria mais do que eu.
Tens a alma e a ternura da filha que o céu me levou, e se todas as mães que perdem filhos
pudessem substituí-los do mesmo modo, desaparecia do mundo a maior e mais cruel dor que
nele...
A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as mãos e beijar-lhas. Seguiu-se uma pausa, em
que a comoção a pouco e pouco desapareceu, e a baronesa olhou para a carta de Luís Alves,
amarrotada pelo gesto de Guiomar.
— Guiomar, disse ela enfim, já refletiste no pedido de ontem à noite?
A moça esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luís Alves; a pergunta da
baronesa desnorteou-a um pouco. Sua inteligência, porém, era clara e sagaz; a resposta foi outra
pergunta:
— Uma noite será bastante para decidir de todo o resto da vida?
disse ela sorrindo.
Tens razão, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer ver
realizado um desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que é um excelente caráter?
— Excelente, respondeu a moça.
Uma boa alma, continuou a baronesa, e um moço distinto. Parece gostar muito de ti,
segundo disse ontem, não? É natural; só me admira que não te amem muitos mais.
A baronesa parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a levantar
os olhos.
Deves saber, continuou a baronesa, que eu estimaria ver que este casamento se
efetuasse; estou convencida de que te faria feliz, e a ele também, pelo menos tanto quanto é
possível julgar das coisas presentes...
Que diz o teu coração?
E como Guiomar não respondesse logo:
— Ah! esquecia-me do que me disseste há pouco. Uma noite não é bastante para decidir
de todo o resto da vida. Bem; ouvir-me-ás mais duas coisas. A primeira é que... Lê tu mesma esta
carta.
A baronesa deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luís Alves fazia de
sua mão. Enquanto ela percorria com os olhos as poucas linhas escritas, a madrinha parecia
observá-la fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a impressão que o pedido lhe fazia, se
espanto, se satisfação. Não houve espanto nem satisfação aparente; Guiomar leu a carta e
entregou-a à madrinha.
Leste? É a primeira coisa que eu queria dizer-te. O Dr. Luís Alves pede-te em
casamento; tens de escolher entre ele e Jorge. A segunda coisa é que dos dois pretendentes Jorge
é o que meu coração prefere; mas não sou eu que me caso, és tu; escolhe com plena liberdade
aquele que te falar ao coração.
Guiomar erigiu o busto e olhou direitamente para a madrinha, com tais sinais de espanto
no rosto, que esta não pôde deixar de lhe perguntar:
— Que tens?
A moça não respondeu; quero dizer não lhe respondeu com os lábios; travou-lhe da mão
e apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ela como a refletir. A expressão de seu rosto
passara do espanto à satisfação e desta a uma coisa que parecia a um tempo indignação e asco.
— Oh! madrinha! exclamou Guiomar, por que se não entenderam logo os nossos
corações? Não havia mister pôr de permeio um espírito importuno e desconsolador. Se eu
adivinhara essas palavras que acabou de dizer, não teria padecido metade do que me fazem
padecer há longos dias...
— Padecer?
Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu coração que falou e o meu que
ouviu; posso agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a afligir.
Não precisava dizer mais nada; a escolha que ela ia fazer estava indicada pelo menos.
Entendeu-o a baronesa, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviu-lhe o suspiro, e percebeu
a tristeza súbita; arrependeu-se de ter ido tão longe.
— Percebo, respondeu a baronesa, queres dizer que dos dois pretendentes escolhes o Dr.
Luís Alves?
A moça conservou-se calada; a madrinha olhava para ela com uma expressão de
ansiedade que a afligiu.
— Fala, repetiu a baronesa.
— Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns instantes.
A baronesa estremeceu.
— Falas sério? Não creio; não e esse o sentimento do teu coração.
Vê-se que não é. Queres iludir-me e a ti também. Percebo que o não amas; não o amaste
nunca. Mas amas ao outro, não é? Que tem isso? Não me o prazer que eu teria se... Que
importa, se fores feliz? A tua felicidade está acima das minhas preferências. Era um sonho meu;
desejava-o com todas as forças; faria o que pudesse para alcançá-lo; mas não se violenta o
coração, — um coração, sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casarás com ele.
o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do coração aos
lábios e querer rompê-los, não foi ela quem a proferiu, foi a madrinha; e se leu atento o que
precede verá que era isso mesmo o que ela desejava. Mas por que o nome de Jorge lhe roçou os
lábios? A moça não queria iludir a baronesa, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu coração,
para que a madrinha conferisse, por si mesma, a tradução com o original. Havia nisto um pouco
de meio indireto, de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia, se não tomassem à
parte o vocábulo. Havia, mas isto mesmo lhes dirá que esta Guiomar, sem perder as excelências
de seu coração, era do barro comum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes
dirá também que, apesar de seus verdes anos, ela compreendia que as aparências de um
sacrifício valem mais, muita vez, do que o próprio sacrifício.
A baronesa acabara de falar. A alegria do rosto de Guiomar confirmou a sua primeira
impressão, e se a escolha era contrária ao que ela desejava, a satisfação da afilhada pagou-lhe
tudo quanto ela ia perder. Era assim aquela alma de mãe; boa, dedicada e generosa.
— Oh! madrinha! obrigada! exclamou a moça. Não me fica odiando?
— Oh! exclamou a baronesa com um tom de repreensão.
E puxou-a para si, e abraçou-a com amor. Guiomar correspondeu ao movimento, e as
duas confundiram as suas alegrias íntimas e afeições sinceras.
Mrs. Oswald viu-as daí a pouco, risonhas e entendidas. Era fácil concluir qual dos dois
pretendentes vencera; Guiomar não receberia de tão boa cara o sobrinho da baronesa. Tudo
estava acabado; e talvez que a sua própria pessoa padecera naquele lance último. A baronesa
pedira a Guiomar que lhe explicasse a que padecimentos aludira, mas a moça preferiu não dizer
nada, não por não afligir a madrinha, como por não dar um aspecto de rivalidade à situação
entre ela e Mrs. Oswald.
A escolha estava feita, o consentimento dado. A baronesa respondeu nessa mesma tarde
ao pretendente feliz. Estêvão teria manifestado ruidosamente toda a alegria que semelhante
resposta lhe causara; sua alma apaixonada e exuberante contaria a Deus e aos homens aquela
imensa fortuna.
Luís Alves encerrou o prazer, aliás grande, dentro de si; pensou na moça e no futuro
alguns instantes, mas não falou deles a ninguém.
A baronesa escreveu nesse mesmo dia ao sobrinho, comunicando-lhe a resposta de
Guiomar. Os leitores não terão dificuldade de admitir que o coração de Jorge não sentiu o golpe
profundamente, mas sentiu alguma coisa. Não foi nessa noite à casa da tia; não foi também na
segunda; na terceira chegou a descer as escadas; na quarta embicou para Botafogo.
— Tudo está acabado, disse-lhe a tia verdadeiramente sentida.
— Acabado! suspirou Jorge.
— Agora, é preciso ânimo; espero que serás homem.
— Oh! serei homem! suspirou outra vez Jorge.
E dois suspiros, arrancados do peito de um homem tão grave, deviam ser por força dois
suspiros gravíssimos, como facilmente acredita o leitor.
Efetivamente a fisionomia do moço não tinha abatimento nem aflição; não a amarrotava
o menor vestígio de noite maldormida, menos ainda de lágrimas enxutas. Alegre não era, mas
grave e austera, como ele a trazia sempre, a contrastar com o retesado do bigode.
A baronesa imaginou contudo que a dor do sobrinho devia tê-lo mortificado muito;
apertou-lhe as mãos com ternura e disse-lhe ainda algumas palavras de animação.
imagine-se o que seria o primeiro encontro de Jorge com Guiomar.
A moça estava serena, talvez risonha e até compassiva. Se tivesse de casar com ele
odiara-o decerto; agora já lhe perdoava o amor. Jorge pela sua parte não deixou de ficar um tanto
abalado, em parte comoção, em parte constrangimento, sendo porém o constrangimento maior do
que a comoção.
Nos lábios pairou-lhe um desses sorrisos em que o olhar penetrante do povo ou a sua
imaginação pinturesca descobriu a cor amarela. Se outro fosse o aspecto, é provável que ela lhe
conservasse, ao menos, o respeito.
Mas aquele sorriso perdeu-o de todo no ânimo de Guiomar.
Na primeira ocasião que se lhe ofereceu, expandiu-se Jorge com Mrs.
Oswald.
— Perdeu-se tudo... murmurou ele, A inglesa não respondeu.
Jorge continuou ainda a falar, e a inglesa a ouvir, mas a ouvir só, e a querer diverti-lo
daquele assunto.
— Tudo se perdeu, disse enfim o sobrinho da baronesa, talvez por culpa sua.
— Minha? perguntou Mrs. Oswald.
— Sua.
— Mas...
Jorge hesitou um instante.
— Não mostrou calor suficiente, disse ele enfim.
Que quer? disse Mrs. Oswald. O coração não se pode dominar, nem ha meio de
impor-lhe um sentimento. D. Guiomar é uma santa criatura, ama deveras ao seu rival; nada
mais justo do que casá-los?
— De maneira que...
De maneira que tudo era lícito fazer na suposição de que ela não amava a outro, mas
uma vez que ama...
Luís Alves, na noite do dia em que recebeu a carta, foi à casa da baronesa, que o recebeu
com o melhor de seus sorrisos. A felicidade de Guiomar fazia-a completamente feliz; nem iras,
nem ressentimentos, como anunciara Mrs. Oswald. Todo o castelo de cartas caíra por terra, desde
que a sinceridade da baronesa interveio.
XIX - CONCLUSÃO
Marcado o casamento para dois meses depois, todo o tempo de intervalo foi despendido
pelos noivos naquele deleitoso viver, que não é o colóquio furtivo do simples namoro, nem é
ainda a intimidade conjugal, mas um estado intermédio e consentido, em que os corações podem
entornar-se livremente um no outro. Aqueles não tinham nada do amor extático e romanesco de
Estêvão, mas amavam sinceramente, ela ainda mais do que ele, e tão feliz um como outro.
A gente que os conhecia comentou de todos os modos e feitios aquele caso inesperado, e
a mais de um roeu a inveja do favor com que o céu tratara a Luís Alves. A gentileza e a elegância
da moça não encontravam objeção no espírito de ninguém; todos as confessavam e aplaudiam,
porque até o silêncio mortificado de algumas belezas rivais, se porventura as havia, - era também
aplauso e do melhor. Quanto ao caráter de Guiomar, divergiam muito as apreciações; e um dia,
em que Luís Alves lhe contava uns trechos de conversa ouvidos a furto, e de que era objeto a
noiva, ela pareceu refletir longo tempo, e enfim respondeu:
Não admira que haja tanta opinião diferente; é natural, porque nunca vulgarizei o
meu espírito. Entretanto, a opinião dos outros importa-me pouco; eu quisera saber a sua.
— A minha é que é um anjo.
Guiomar fez um gesto gracioso de enfado, como quem não esperava aquele
cumprimento velho e comum, aliás eternamente novo, porque não outro mais pronto e
mais belo nas nossas línguas cristãs. O noivo sorriu, mas nada lhe disse, e todavia podia dizer-lhe
alguma coisa, — aquilo, pelo menos, que o leitor lhe ouviu num dos capítulos anteriores.
Se não sabe o que sou, continuou Guiomar, — eu mesma o direi, para que se não
case comigo assim de emboscada, e não lhe aconteça unir-se a um demônio, supondo que é um
anjo...
— Um demônio! exclamou Luís Alves rindo.
Nem mais nem menos, retrucou ela rindo também. Saiba pois que sou muito senhora
da minha vontade, mas pouco amiga de a exprimir; quero que me adivinhem e obedeçam; sou
também um pouco altiva, às vezes caprichosa, e por cima de tudo isto tenho um coração
exigente. Veja se é possível encontrar tanto defeito junto.
Luís Alves respondeu que eram tudo qualidades excelentes, e esteve quase a dizer que
lhe faltava mencionar ainda outra, que era a fundamental de todas; preferiu aludir a ela depois do
casamento.
O casamento efetuou-se, no dia marcado, com as solenidades do estilo. A manhã
daquele dia trajava um manto de neblina cerrada, que o nosso inverno lhe pôs aos ombros, como
para resguardá-la do rigor benigno da temperatura, manto que ela sacudiu dali a nada, a fim de se
mostrar qual era, uma deliciosa e fresca manhã fluminense. Não tardou que o sol batesse de
chapa nas águas tranqüilas e azuis, e nessas colinas onde o verde natural ia alternado com a
alvura das habitações humanas. Vento nenhum; apenas uma aragem, branda e fresca, que parecia
o último respirar da noite já remota, e que só a trechos agitava as folhas do arvoredo.
A chácara naquele dia era a mesma que nos outros, mas Guiomar achou-lhe um aspecto
novo e melhor, uma como expansão divina que animaca as coisas em redor dela. Toda alma feliz
é panteísta; parece-lhe que Deus lhe sorri de dentro da flor que desabrocha, do fundo da água que
serpeia murmurando, e até de envolta com o cipó humilde e rústico, ou no seixo bronco e
desprezado do chão. Era assim a alma de Guiomar naquela manhã. Nunca as árvores, as flores, a
grama rasteira lhe pareceram mais vicejantes; o sentimento interno hauria aquela vida exterior,
do mesmo modo que o pulmão bebia o puro ar matinal.
De envolta com essas sensações comuns a toda a alma, havia ainda as que eram dela, —
dela, que via ali o seu último sol de moça solteira e contemplava por antecipação a aurora nova, o
dia longo e feliz de suas férvidas ambições. Neste ponto despia a sua fantasia as asas de folha
agreste, com que andara a pairar no meio daquela vegetação, para envergar outras de seda e
brocado, e voar sabe Deus a que sítios de grandeza humana.
O acaso quis que naquela manhã vestisse o mesmo roupão com que Estêvão a vira do
outro lado da cerca, e trouxesse no colo e nos pulsos o mesmo broche e os mesmos botões de
safira. Não tinha o livro; mas, em falta desta circunstância, havia outra, que era a mesma daquela
célebre manhã, havia uns olhos que do outro lado da cerca a espreitavam namorados. Não eram,
porém, os mesmos; eram os do noivo, com quem ela foi encontrar os seus; — e o mais doloroso
de tudo é que nem a cerca, nem os demais acessórios, nada lhe lembrou o outro homem que
morria por ela, A felicidade é isto mesmo; raro lhe sobra memória para as dores alheias.
Não menos alegre do que ela parecia a baronesa naquele dia. De longe em longe surgia-
lhe na memória a idéia do sobrinho, mas já não havia tristeza de não ter efetuado o casamento,
como desejara; tão leve foi o golpe em Jorge e tão indiferente andava ele, que a boa senhora
compreendeu que o amor, se existira, não era grande, e sobretudo não perdurou; a idéia de que
isto mesmo podia acontecer-lhe ao cabo de seis semanas de casado, fê-la dar graças a Deus do
nenhum êxito de seus planos.
Mrs. Oswald igualmente se mostrava feliz, talvez ainda mais, porque era-o
aparatosamente, como se quisesse resgatar as passadas culpas.
Guiomar entendia a intenção latente das manifestações ruidosas com que ela andava a
felicitá-la e bajulá-la; mas o dia não era de rancores nem de ressentimentos, e ela recebia sorrindo
as cortesanices da inglesa.
O casamento fez-se, enfim. As lágrimas que a baronesa derramou, quando viu Guiomar
ligada para sempre, foram as mais belas jóias que lhe podia dar. Nenhuma mãe as verteu mais
sinceras; e, seja dito em honra de Guiomar, nenhuma filha as recebeu mais dentro do coração.
Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante dos
grupos de curiosos, atraídos pela festa de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado
sobre uma lájea que acaso topara ali, Quem está afeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o
começo, supõe logo que esse homem podia ser Estêvão. Era ele. Talvez o leitor, em lance
idêntico, fosse refugiar-se em sítio tão remoto, que mal pudesse acompanhá-lo a lembrança do
passado. A alma de Estêvão sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro
na ferida, uma coisa a que chamaremos voluptuosidade da dor, em falta de melhor
denominação. E foi para ali, contemplar com os indiferentes e ociosos aquela casa onde reinava o
gozo e a vida, e naquela hora que lhe afundava o passado e o futuro de que vivera. Não o retinha
a constância do estóico; pela face emagrecida e pálida lhe corriam as lágrimas derradeiras, e o
coração, colhendo as forças que lhe restavam, batia-lhe forte na arca do peito.
Defronte dele refulgia de todas as suas luzes a mansão afortunada; detrás batia a onda
lenta e melancólica, e via-se o fundo da enseada, escuro e triste. Esta disposição do lugar servia
ao plano que ele concebera, e era nada menos do que matar-se ali mesmo, quando já não pudesse
sofrer a dor, espécie de vingança última que queria tomar dos que o faziam padecer tanto,
complicando-lhes a felicidade com um remorso.
Mas este plano não podia realizar-se, pela razão de que era mais um devaneio, que se
lhe dissipou como os outros. A frouxidão do ânimo negou-lhe essa última ambição. Os olhos
podiam fitar a morte, como podiam encarar a fortuna; mas faltavam-lhe os meios de caminhar a
ela.
Esteve ali, pois, até o fim; e em vez de mergulhar na água e no nada, como delineara,
regressou tristemente para casa, trôpego como um ébrio, deixando ali a sua mocidade toda,
porque a que levava era uma coisa descolorida e seca, estéril e morta. Os anos passaram depois, e
à medida que vinham, ia-se Estêvão afundando no mar vasto e escuro da multidão anônima. O
nome, que não passara da lembrança dos amigos, mesmo morreu, quando a fortuna o
distanciou deles. Se ele ainda vegeta em algum recanto da capital, ou se acabou em alguma vila
do interior, ignora-se.
O destino não devia mentir nem mentiu à ambição de Luís Alves.
Guiomar acertara; era aquele o homem forte. Um mês depois de casados, como eles
estivessem a conversar do que conversam os recém-casados, que é de si mesmos, e a relembrar a
curta campanha do namoro, Guiomar confessou ao marido que naquela ocasião lhe conhecera
todo o poder da sua vontade.
Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que, assentado, a
escutava.
Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter percebido que sou
uma e outra coisa.
— A ambição não é defeito.
— Pelo contrario, é virtude; eu sinto que a tenho, e que hei de fazê-la vingar. Não me fio
na mocidade e na força moral; fio-me também em você, que de ser para mim uma força
nova.
— Oh! sim! exclamou Guiomar.
E com um modo gracioso continuou:
— Mas que me dá você em paga? um lugar na câmara? uma pasta de ministro?
— O lustre do meu nome, respondeu ele.
Guiomar, que estava de defronte dele, com as mãos presas nas suas, deixou-se cair lentamente sobre os
joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o ósculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse
sido feita para aquela mão.
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