José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe
a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte
do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez que
batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de
movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor
aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada.
Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: — carros e carroças que desciam,
quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se
finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos:
— Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a
aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva,
D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no
tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É
filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-
lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um
ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que
me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres...
— Sim, senhor.
— Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos
livres, gostamos um do outro, e não nos casamos: tal é a situação tenebrosa que venho
expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se
puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão
empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a freqüentar a casa, em
Matacavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases,
e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro
beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão.
Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem
de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planeando
uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês.
Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de
participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as
mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.
— Não alcanço...
— Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa;
tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: — podia ficar o
fastio. Concluí a toilette de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o
costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois adverti que as duas índoles
podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas,
enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado,
com uma linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez;
algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria,
doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica...