se; passou a usar das atitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indiferença
ou despreocupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres.
Elas, aliás, não gostavam de sair de carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a
toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecer-lhe; e, na rua,
era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo
cocheiro, toda a gente dizia logo: — Aí vem a família de Fulano Beltrão. E isto mesmo,
sem que ele talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.
No ano de 1868 deu entrada na política. Sei do ano porque coincidiu com a queda
dos liberais e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que ele declarou
aderir à situação, não à socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco
da vida do meu amigo. Não tinha idéias políticas; quando muito, dispunha de um desses
temperamentos que substituem as idéias, e fazem crer que um homem pensa, quando
simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma alucinação de momento. Viu-se na câmara
vibrando um aparte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do
conselho, que sorria para ele, numa intimidade grave de governo. E aí é que a galeria, na
exata acepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que pôde para entrar na câmara;
a meio caminho caiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao
Itaboraí o contrário do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas perdeu a
eleição, e deu de mão à política. Muito mais acertado andou, metendo-se na questão da
maçonaria com os prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio; por um lado, era maçom;
por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflito tomou tais
proporções que ele não podia ficar calado; entrou nele com o ardor, a expansão, a
publicidade que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou muito da liberdade de
consciência e do direito que assistia ao maçom de enfiar uma opa; assinou protestos,
representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.
Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que a enterrasse sem aparato, e ele
assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua última vontade como um decreto do céu.
Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dor
com o público; e, se enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na
Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na rua do Ouvidor, durante
perto de um mês. A filha ainda veio assistir à inauguração. Deixei de os ver uns quatro
anos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dois meses o levou desta
para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força d'alma.
Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar às que
chegavam, as que acabavam de sair; coisa inútil, porque uma folha amiga publicava-as
todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu ler os jornais, e num deles uma
pequena comunicação relativamente à sua moléstia, o que de algum modo pareceu reanimá-
lo. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; à noite expirou.
Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são eles. São;
entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não
era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das práticas tabelioas; mas isto mesmo de
contar a família desde o quarto avô prova o espírito exato e paciente do meu amigo. Não
esquecia nada. O cerimonial do saimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora
a lista dos legados. São todos pios; alguns industriais. Vá vendo a alma do meu amigo.