Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas
alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia
beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado.
Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho,
pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.
— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.
— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava
com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o
menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem
cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre
Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de
música; nenhuma dele...
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas
sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as
últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um
modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da
música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e
originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de
mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo:
doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da
melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que
sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas
tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da
vizinhança, e não tentava mais nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício,
começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos,
e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática,
e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si
alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo;
mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por
transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração
do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas
chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia
seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu,
ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar
no papel a sensação de felicidade extinta.
— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...