conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a
primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra, - ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e
em tom seco.
– Estão de arrufo, não há dúvida, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. Ou a
arrufada é só ela, porque ele pareceu-me lépido.
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher,
que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de
ficar a sós com a esposa, para a explicação que reconciliaria os ânimos. Clarinha parecia não desejá-
lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias.
Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em
casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o
bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a
idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
– Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está
alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de
fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.
– Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês tiverem do
mesmo modo, prometo-lhe que nem a sombra me verão.
– Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou
a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido, Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que
aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo na ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do
mesmo modo, nunca mais voltaria a casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou
requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou
atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a
sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante
dela e pegou-lhe numa das mãos.
– Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me
fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que
tu me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé
quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A
moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
– Mas que enigma é este? perguntava a si mesmo Luís Negreiros. Se não era um mimo
de anos, que explicação pode ter o tal relógio?
A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo
naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa
resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o
que se havia passado desde que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os
incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O
gesto de indignação e a repulsa quando ela a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o
movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as
lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da
procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses.
Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou,