povo a viver, a lutar pela vida em comunhão. De modo que, um povo rico de bons costumes, é um povo
habilitado a progredir, a se engrandecer na paz ou na guerra, pela indústria, pelas artes e ofícios; um povo de
maus costumes é um povo realmente pobre, posto que atualmente cheio de riqueza acumulada sem escolha de
meios. Creio que me entende, não?
- Perfeitamente, senhor Bensabath. Dito assim, parece que é verdade; mas eu lhe digo que não.
- Oh! exclamou o velho Bensabath, voltado para o Moitinho, conservando os olhos arregalados de
espanto e a boca na expressão da exclamativa.
- Sim; continuou o velhote português, cujos olhos vivos dançavam nas órbitas protegidas por
supercílios espessos; eu lhe digo que não, e aqui está por que o digo. Quando vim para o Mucujê, em 1846...
- E eu, em 45... interrompeu o Bensabath.
- ... vi cousas que hoje não vejo, porque os costumes mudaram, concluiu o Moitinho.
- É porque hoje o governo contém melhor essa gente, observou o judeu.
- Nesse ano, por exemplo, continuou o português, em casa do Tonico, ali abaixo, um garimpeiro
comprou uma lazarina, carregou-a, na loja mesmo, e, para os lados onde é hoje a Cadeia alvejou um pobre
diabo, por entre gargalhadas dos circunstantes. Matou-o e foi verificar tranqüilamente a roda de chumbo no
peito; e se não fosse o Antônio Boca Murcha, que, nesse tempo, como vosmincê sabe, andava acima e abaixo,
com seus grandes tamancos, se arvorando em inspetor, por humanidade, tornando-se o pacificador do Mucujê,
o sujeito teria também tranqüilamente desaparecido. E, como esse, outros muitos fatos, que hoje não vemos.
Quero dizer que, desta ou daquela forma, com o correr do tempo, o povo endireita seus modos de viver. Ande
lá, meu amigo, ande lá; o senhor é muito lido e corrido, mas nesse ponto não tem razão.
E, assim concluindo, o português, conforme seu hábito, deu duas palmas, esfregando as mãos, em
seguida, uma na outra.
O judeu apertou com o polegar e o indicador o nariz adunco e vermelho, como para verificar sua
inteireza; abanou a cabeça, ironicamente, em sinal afirmativo, e conservou-se mudo, olhando ao longe. Sabia,
por experiência, que o Moitinho dava a camisa por teimar e pairar. Ele, Bensabath, ao contrário, não gostava
de teimas. Prático em seu Antigo Testamento, repetia, mentalmente, as palavras do cap. XII, v. 23 dos
Provérbios: “O homem sagaz encobre a ciência, e o coração dos insipientes apressa-se a manifestar a sua
estultícia”.
O português intrigava-se com o silêncio do judeu, que parecia menos um indício de convicção do que
menosprezo ao seu modo de pensar. Queria prosa, e não hesitou em se fingir dócil a melhor aviso. Além disto,
o esplendor da tarde convidava à boa prosa. A sombra da gameleira frondosa, sob a qual conversavam,
sentados em bancos de madeira, entre a Rua das Pedras e a Rua Direita, protegia-os do calor que irradiava do
calçamento e das paredes expostas ao poente. Em meio de semana, os fregueses lhes davam tempo, até
porque, sendo muito careiros, mesmo em dia de feira, raros entravam em suas lojas, verdadeiros bazares,
fronteiros à gameleira. Afora isso, apenas tinham fama de abastados cauilentos.
O português não pôde suportar muito tempo o silêncio do judeu, e, por isso, perguntou:
- Então, senhor Bensabath, estou errado?
- Não, senhor! São modos de ver! exclamou polidamente o judeu.
- Tenha paciência, insistiu o português, diga-me com franqueza. Assim não serve. Gosto de ouvir as
pessoas que sabem mais dos livros, porque da vida... da vida... (o português tossiu, concluindo): tenho sofrido
e aprendido.
- Visto que o senhor Moitinho quer, vá; ou não me entendeu, ou está errado; mas acredito que não
me entendeu. Quando eu falo em costumes, refiro-me principalmente aos costumes particulares, domésticos.
É no seio da família que se aparelha o bem-estar do indivíduo e do povo a que ele pertence. Os costumes
domésticos é que permanecem, porque ninguém pode extirpá-los. Se são bons, o povo será forte; se são maus,
o povo será fraco, ainda que forte em aparência. Eu me explico em poucas palavras para não as gastar
superfluamente.
Fora das Lavras o senhor encontrará, em geral, pessoas e famílias de costumes simples, modestos
(ainda que ricos), tementes a Deus, a Quem adoram a seu modo, e, pelo que, prezam a honra acima das
riquezas. Em chegando, porém, aqui, no meio dessa democracia sui generis, indisciplinada, e ambiciosa de
figurar, essas pessoas simples, essas famílias, com raras exceções, transformam os seus costumes, porque
aprendem somente a adorar o Deus da terra – o Diamante. De pacatas e alegres, se fazem tunantes e
folgazonas, vaidosas e fúteis, tomando como civilidade certa desenvoltura que as perde, em bom conceito da
gente moralmente sadia, antes de as perder para todos, em realidade irremediável. O gosto do luxo de tal
modo as enfraquece, que, quando lhes falta o dinheiro para esperdícios, esmorecem... e... será beijada a
pústula em que brilhe um diamante. Uma prova: não vemos famílias honestas receberem em seu seio, com