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A Nova Califórnia, Lima Barreto - A nova Califórnia
Fonte:
BARRETO, Lima. A Nova Califórnia - Contos. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
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A Nova Califórnia
Lima Barreto
A NOVA CALIFÓRNIA
Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que
acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era
grande. Quase diariamente, o carteiro ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido,
sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas
arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda
perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante
construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de
vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia —um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas
mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para
outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado
do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um
"credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco
à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluirá que o
desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar
avante os seus trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo
não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou
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tranqüilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração
a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando
perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespúsculo,
todos se- descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o
coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as
contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele
afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro
moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia
dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda
a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia
alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao
partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um
caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra
um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio,
era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e
mesmo quando se falava em algum homem notável no Rio, ele não deixava de dizer: "Não
dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de resto'..." E contraía os lábios como se
tivesse engolido alguma cousa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava
as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Candido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e
de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa,
muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dous
dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se
tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem,
intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o mestre-escola
intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é
garanto."
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por
essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus
deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da
sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão
inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloqüência: não Raimundo Flamel pagava em dia as
suas contas, como era generoso—pai da pobreza—e o farmacêutico vira numa revista de específicos
seu nome citado como químico de valor.
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II
Havia anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu
entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até visitar
fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma
esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e
atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita
demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
—Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico,
nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos
e respondeu:
— Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome
corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um
atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o
olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava
uma tisana qualquer.
Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais
detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não
tardou a expor:
Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no
mundo sábio...
— Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
— Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária. . .
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
— Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?
— Perfeitamente.
Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma
experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção...
O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
— Certamente! Não há dúvida!
— Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
— Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.
— Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.
— Como?
O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que
devem assistir à experiência, não acha?
— Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
— Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de
indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim
de uns três minutos, perguntou:
— O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
— Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
— Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
E religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com
ossos de defunto e só estes servem...
— Qual! E quase ateu...
— Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória...
Por fim, falou:
— Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
— Como já lhe disse...
— E verdade. E homem de confiança, sério, mas...
— Que é que tem?
— E maçom.
— Melhor.
— E quando é?
Domingo. Domingo, os três irão em casa assistir à experiência e espero que não me
recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
— Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de
Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu
desaparecimento.
III
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja
estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. cinco anos não se registrava nela
um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições
municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o
acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as
suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos
repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não
era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de
todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu
campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou
senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os
ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis
mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte
precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a prolanação, clamaram os
seis presbiterianos do lugar—os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau,
antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja
Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro,
antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro
residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos
apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la—, a linda e
desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em
todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia
interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles
perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas
do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia
escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério.
Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e
num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando,
bramindo, gritando: "Na estória do crime, dizia ele, bastante rica de fatos repugnantes, como sejam:
o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o
seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'. "
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados;
os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam
ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu
fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram
cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, não
havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e
os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar
durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os
vigias se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra
dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até
sopitadas no animo deles, não se contiveram mais e
deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a
identidade dos dous malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor
Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a
perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e 0 companheiro
que fugira era 0 farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele
homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos
de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la.
Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a
pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante
Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do
Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e
felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos,
como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na
praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a
uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu
graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos sabê-lo," gritaram.
Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho
longo que poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a
gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para
casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de
defunto que pudesse.
O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou
em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto
era alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal.
Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se
petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha que a cousa era
possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em
direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à
colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e
foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a mulher,
julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados—toda a população, sob a luz das
estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o
mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major
Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie
das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu
regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase
transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a
fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e
mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram
juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou
ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de
existencia. Uma única pessoa não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo
Belmiro.
Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de
parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas
águas sobre o áspero leito de granito—ambos, ele e o rio, indiferentes ao que viram, mesmo à fuga
do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.
10-11-1910
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