E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados;
os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam
ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu
fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram
cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não
havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e
os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar
durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os
vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra
dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí
sopitadas no animo deles, não se contiveram mais e
deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a
identidade dos dous malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor
Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a
perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e 0 companheiro
que fugira era 0 farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele
homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos
de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la.
Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a
pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante
Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do
Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e
felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos,
como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na
praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a
uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu
graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo," gritaram.
Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho
longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a
gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.