escrita, desaparecera aquela confusão de instrumentozinhos, de que eu perdera já a memória; e só a Mecânica
suntuosa, pôr sobre peanhas e pedestais, recentemente espanejada, reluzia, com as suas engrenagens, tubos, rodas,
rigidezes de metais, numa frieza inerte, na inatividade definitiva das coisas desusadas, como já dispostas num Museu,
para exemplificar a instrumentação caduca dum mundo passado. Tentei mover o telefone, que se não moveu; a mola
da eletricidade não acendeu nenhum lume: todas as forças universais tinham abandonado o serviço do 202, como
servos despedidos. E então, passeando através das salas, realmente me pareceu que percorria um museu de
antigüidades; e que mais tarde outros homens, com uma compreensão mais pura e exata da vida e da Felicidade,
percorreriam, como eu, longas salas, atulhadas com os instrumentos da supercivilização, e, como eu, encolheriam
desdenhosamente os ombros ante a grande Ilusão que findara, agora para sempre inútil, arrumada como um lixo
histórico, guardado debaixo da lona.
Quando saí do 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apenas rolara momentos pela Avenida das
Acácias, no silêncio decoroso, unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia,
comecei a reconhecer as velhas figuras, sempre com o mesmo sorriso, o mesmo pó-de-arroz, as mesmas pálpebras
amortecidas, os mesmos olhos farejantes, a mesma imobilidade de cera! O romancista da Couraça passou numa
vitória, fixou em mim o monóculo defumado, mas permaneceu indiferente. Os bandós negros de Madame Verghane,
tapando-lhe as orelhas, pareciam ainda mais furiosamente negros entre a harmonia de todo o branco que a vestia,
chapéu, plumas, flores, rendas e corpete, onde o seu peito imenso se empolava como uma onda. No passeio, sob as
Acácias, espapado em duas cadeiras, o diretor do Boulevard mamava o resto de seu charuto. E num landau, Madame
de Trèves continuava o seu sorriso de há cinco anos, com duas pregazinhas mais moles aos cantos dos lábios secos.
Abalei para o Grand-Hotel, bocejando – como outrora Jacinto. E findei o meu dia de Paris, no Teatro das
Variedades, estonteado com uma comédia muito fina, muito aclamada, toda faiscante do mais vivo parisianismo, em
que todo o enredo se enrodilhava à volta duma Cama, onde alternadamente se espojavam mulheres em camisa,
sujeitos gordos em ceroulas, um coronel com papas de linhaça nas nádegas, cozinheiras de meias de seda bordadas, e
ainda mais gente, ruidosa e saltitante, a esfuziar de cio e de pilhéria. Tomei um chá melancólico no Julien, no meio de
um áspero e lúgubre namoro de prostitutas, fariscando a presa. Em duas delas, de pele oleosa e cobreada, olhos
oblíquos, cabelos duros e negros como crinas, senti o Oriente, a sua provocação felina... Interroguei o criado, um
medonho ser, duma obesidade balofa e lívida, de eunuco. O monstro explicou numa voz roufenha e surda:
-Mulheres de Madagáscar... Foram importadas quando a França ocupou a ilha!
Arrastei então pôr Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já me
enfartara havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um
livro, folheava centenas de volumes amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno
de alcova, e de pós-de-arroz, entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique, como rendas de camisas. Ao jantar,
em qualquer restaurante, encontrava, ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo molho, de cores e sabores
de pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado e dourejado, me enjoara no peixe e nos legumes. Paguei
pôr grossos preços garrafas do nosso adstringente e rústico vinho de Torres, enobrecido com o título de Château isto,
Château aquilo, e pó postiço no gargalo. À noite, nos teatros, encontrava a Cama, a costumada cama, como centro e
único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de gentes
estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da Planície me levou a procurar melhor
aragem de espírito nas alturas da Colina, em Montmartre; e aí, no meio duma multidão elegante de Senhoras, de
Duquesas, de Generais, de todo o alto pessoal da Cidade, eu recebia, do alto do palco, grossos jorros de obscenidades,
que faziam estremecer de gozo as orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpetes de Worms
e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E recolhia enjoado com tanto relento de alcova, vagamente
dispéptico com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente comigo, pôr me não divertir, não
compreender a Cidade, e errar através dela e da sua Civilização Superior, com a reserva ridícula dum Censor, dum
Catão austero. Ó senhores! – pensava – pois eu não me divertirei nesta deliciosa cidade? Entrará comigo o bolor da
velhice?
Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual, mergulhei no meu doce bairro Latino,
evoquei, diante de certos cafés, a memória da minha Nini; e, como outrora, preguiçosamente, subi as escadas da
Sorbona. Num anfiteatro, onde sentira um grosso sussurro, um homem magro, com uma testa muito branca e larga,
como talhada para alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da Cidade Antiga. Mas, mal eu
entrara, o seu dizer elegante e límpido foi sufocado pôr gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial,
que saía da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das Escolas, Primavera sagrada, em que eu fora flor murcha.
O Professor parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo as suas notas. Quando o grosso grunhido se
moderou em sussurro desconfiado, ele recomeçou com alta serenidade. Todas as suas idéias eram frias e substanciais,
expressas numa língua pura e forte, mas, imediatamente, rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos,
cacarejos de galo, pôr entre magras mãos, que se estendiam levantadas para estrangular as idéias. Ao meu lado um
velho, encolhido na alta gola dum macfarlane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia, pingando
endefluxado. Perguntei ao velho:
-Que querem eles? É embirração com o professor... é política?