realizável. Quantas vezes, ante aquela sempre admirada e toda perfeita Vênus de Milo, pensei que, se
debaixo da sua testa de Deusa, pudessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e
mudos se soubessem toldar de lágrimas; se os seus lábios, só talhados para o mel e para os beijos,
consentissem em tremer no murmúrio de uma prece submissa; se sob esses seios, que foram o apetite
sublime dos Deuses e Heróis, um dia palpitasse o amor e com ele a Bondade; se o seu mármore sofresse,
e pelo sofrimento se espiritualizasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ela
fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse Senhora da
Dor – então não estaria colocada num museu, mas consagrada num santuário, porque os homens, ao
reconhecer nela a aliança sempre almejada e sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto a teriam
aclamado in aeternum, como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Vênus só oferecia a serena
magnificência da carne. De todo lhe faltava a chama que arde na lama e a consome. E a criatura
incomparável do meu cismar, a Vênus Espiritual, Citeréia e Dolorosa, não existia, nunca existiria!... E
quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu te compreendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou
antes de um sonho que deve ser universal – mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por mim
quiseste ser descoberta!
Vê, pois, se jamais te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo és a minha Divindade – para
sempre e irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração. Os sacerdotes de Cartago
acorrentavam às lajes dos Templos, com cadeias de bronze, as imagens de seus Baals. Assim te quero
também, acorrentada dentro do templo Avaro que te construí, só Divindade minha, sempre no eu altar – e
eu sempre diante dele rojado, recebendo constantemente na alma a tua visitação, abismando-me sem
cessar na tua essência, de modo que nem por um momento se descontinue essa fusão inefável, que é para
ti um ato de Misericórdia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é que fosses invisível
para todos e como não existente – que perpetuamente um estofo informe escondesse o teu corpo, uma
rígida mudez ocultasse a tua inteligência. Assim passarias no mundo como uma aparência
incompreendida. E só para mim, de dentro do invólucro escuro, se revelaria a tua perfeição rutilante. Vê
quanto te amo – que e queria entrouxada num rude, vago vestido de merino, com um ar quedo,
inanimado... Perderia assim o triunfal contentamento de ver resplandecer entre a multidão maravilhada
aquela que em segredo nos ama. Todos murmurariam compassivamente: “Pobre criatura!” E só eu
saberia, da “pobre criatura”, o corpo e a alma adoráveis!
Quanto adoráveis! Nem compreendo que, tendo consciência do teu encanto, não estejas de ti namorada
como aquele Narciso que reme de frio, coberto de musgo, à beira da fonte, em Savran. Mas eu largamente
te amo, e por mim e por ti! A tua beleza, na verdade, atinge a altura de uma virtude – e foram decerto os
modos tão puros da tua alma que fixaram as linhas tão formosas do teu corpo. Por isso há em mim um
incessante desespero de não e saber amar condignamente – ou antes (pois desceste de um Céu superior)
de não saber tratar, como ela merece, a hóspede divina do meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te
toda numa felicidade imaterial, seráfica, calma infinitamente como deve ser a Bem-Aventurança – e
assim deslizarmos enlaçados através do silêncio e da luz, muito brandamente, num sonho cheio de
certeza, saindo da vida à mesma hora e indo continuar no Além o mesmo sonho extático. E outras vezes
desejaria arrebatar-te numa felicidade veemente, tumultuosa, fulgurante, toda de chama, de tal sorte que
nela nos destruíssemos sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de cinza sem memória e sem nome!
Possuo uma velha gravura que é um Satanás, ainda em toda a refulgência da beleza arcangélica,
arrastando nos braços para o Abismo uma freira, uma Santa, cujos derradeiros véus de penitência se vão
esgaçando pelas pontas das rochas negras. E na face da santa, através do horror, brilha, irreprimida e mais
forte que o horror, uma tal alegria e paixão, tão intensas – que eu as apeteceria para ti, oh minha santa
roubada! Mas de nenhum destes modos te sei amar, tão fraco ou inábil é o meu coração, de modo que por
o meu amor não ser perfeito, tenho de me contentar que seja eterno. Tu sorris tristemente desta
Eternidade. Ainda ontem me perguntavas: “No calendário do seu coração, quantos dias dura a
Eternidade? “ Mas considera que eu era um morto – e que tu me ressuscitaste. O sangue novo que me
circula nas veias, o espírito novo que em mim sente e compreende, são o meu amor por ti – e se ele me
fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no meu sepulcro. Só posso deixar de te amar –
quando deixar de ser. E a vida contigo, e por ti, é tão inexprimivelmente bela! É a vida de um deus.
Melhor talvez: - se eu fosse esse pagão que tu afirmas que sou, mas um pagão do Lácio, pastor de gados,
crente ainda em Júpiter e Apolo, a cada instante temeria que um desses deuses invejosos te raptasse, te
elevasse ao Olimpo para completar a sua ventura divina. Assim não receio – toda minha te sei para todo o
sempre, olho o mundo em torno de nós como um paraíso para nós criado, e durmo seguro sobre o teu
peito na plenitude da glória, oh minha três vezes bendita, Rainha da minha graça.
Não penses que estou compondo cânticos em teu louvor. É em plena simplicidade que deixo escapar o
que me está borbulhando na alma... Ao contrário! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou
na sua majestade, seria impotente para exprimir o meu êxtase. Balbucio, como posso, a minha infinita