um sorriso afectuoso através da máscara, um aperto convulsivo de mão, uma promessa, ao menos, de se
mostrar um, dois, três anos depois. E essa mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais literata, cada vez
mais radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instâncias, declarando-se muito feia, indecentíssima
de nariz, horrível até, e, como tal, pesa-lhe na consciência matar as tuas cândidas ilusões, levantando a
máscara. Tu que a não crês, instas, suplicas, abrasas-te num ideal que toca as extremas do ridículo, e estás
capaz de lhe dizer que te abolas o crânio com um tiro de pistola, se ela não levanta a cortina daquele
mistério que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz, Laura, Fornarina,
Natércia, e ela diz-te que se chama Custódia, ou Genoveva para te aguar a poesia desses nomes, que, na
minha humilde opinião, são completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe
deixas um passo livre, nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar de olhos para as máscaras, que a
fixam como quem sabe que está ali uma rainha, envolta naquele manto negro. Por fim, a tua perseguição é
tal que a desconhecida Desdémona finge assustar-se, e sai contigo ao salão do teatro para levantar a
máscara. Arfa-te o coração na ansiedade de uma esperança : sentes o júbilo do cego de nascimento, que vai
ver o sol ; estremeces como a criança a quem vão dar um bonito, que ela não viu ainda, mas imagina ser
quanto o seu coração infantil ambiciona neste mundo… Ergue-se a máscara !… Horror !… Vês um nariz…
Um nariz-pleonasmo, um nariz homérico, um nariz maio que o do duque de Choiseul, onde cabiam três
jesuítas a cavalo !… Recuas !… Sentes despregar-se-te o coração das entranhas, coras de vergonha e foges
desabridamente… »
- « Tudo isso é muito natural. »
- « pois não há nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o resto, que é o mais interessante para o
mancebo que faz do nariz de uma mulher o termómetro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina,
meu jovem Carlos, que saíste do teatro depois, e entraste na Águia de Ouro a comer ostras, segundo o
costume dos elegantes do Porto. E quando pensavas, ainda aterrado, na aventura do nariz, te aparecia o
fatídico dominó, e se assentava ao teu lado, silencioso e imóvel, como a larva das tuas asneiras, cuja
memória procuravas delir na imaginação com os vapores do vinho… Perturba-se-te a digestão, e sentes
contracções no estômago, que te ameaçam com o vómito. A massa enorme daquele nariz figura-se-te no
prato em que tens a ostra, e já não podes levar à boca um bocado do teu apetitoso manjar sem um
fragmento daquele fatal nariz à mistura. Queres transigir com o silêncio do dominó ; mas não podes. A
inexorável mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente sarcástico, pedes-lhe que te não
entorne com o nariz o copo de vinho. Achas isto natural, Carlos ?”
- “Há aí crueldade de mais… O poeta devia ser mais generoso com a desgraça, porque a missão do poeta é a
indulgência não só para as grandes afrontas, mas até para os grandes narizes.”
- “Será ; mais o poeta, que transgrediu a sublime missão de generosidade para com as mulheres feias, vai
ser punido. Imagina que aquela mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a máscara. O poeta ergue-se, e vai
fugir com grande escândalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte do boticário de Nicolau
Tolentino. Mas… Vingança do céu !… aquela mulher ao levantar a máscara arranca do rosto um nariz
postiço, e deixa ver a mais famosa cara que o céu alumia há seis mil anos ! O espanhol que ajoelhar àquela
dulcíssima visão de um sonho, mas a nobre andaluza repele-o com um gesto, onde o desprezo está
associado à dignidade mais senhoril.
II
Carlos cismava na aplicação da anedota, quando o dominó lhe disse, adivinhando-lhe o pensamento :
- “Não creias que eu seja mulher de nariz de cera, nem me suponhas capaz de assombrar-te com a minha
fealdade. A minha modéstia não vai tão longe… Mas, meu pacientíssimo amigo, há em mim um defeito pior
que um nariz enorme : não é físico nem moral ; é um defeito repulsivo e repelente : é uma coisa que eu não
sei exprimir-te com a linguagem do inferno, que é a única e mais eloquente que eu sei falar, quando me
lembro que sou assim defeituosa !”
- “És uma enigma !…” ─ atalhou Carlos, embaraçado, e convencido de que encontrara um tipo maior que os
moldes tacanhos da vida romanesca em Portugal.
- “Sou, sou !…” ─ acudiu ela com rapidez ─ “sou aos meus próprios olhos um dominó, um continuado
carnaval de lágrimas… Está bom ! Não quero tristezas… Se me tocas na tecla do sentimentalismo, deixo-te.
Eu não vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas aqui, procurei-te, esperei-te mesmo com
ansiedade, porque sei que és espirituoso, e podias, sem prejuízo da tua dignidade, ajudar-me a passar
algumas horas de ilusão. Fora daqui, tu ficas sendo Carlos, e eu serei sempre uma incógnita muito grata ao
seu companheiro. Agora acompanha-me : vamos ao camarote 10 da segunda ordem. Conheces aquela
família ?”
- “Não.”
- “É uma gente da província. Não digas tu nada ; deixa-me falar a mim, e verás que não passas mal… É
muito orgulho, não achas ?”
- “Não acho, não, minha querida ; mas eu antes queria não desperdiçar estas horas porque fogem. Tu vais
falar, mas não é comigo. Sabes que tenho ciúmes de ti ?”