O DOUTOR - Tua presença assusta-me! Será possível que, afrontando tudo, penetrasses no paço
real, para dar-me de viva voz novas edições de teus queixumes?
VIRGÍNIA (Em tom dramático.) - Pérfido! Há três anos eras um pobre estudante, que não tinhas
onde cair morto. Onde cair morto! Que digo eu? Onde cair vivo!
O DOUTOR - Filha, olha que tenha mais que fazer. Adeus!
VIRGÍNIA (Agarrando-o pelo fato.) - Espera! vais livrar o pai da forca?
O DOUTOR - Vou me livrar a mim mesmo, o que é mais sério!
VIRGÍNIA - Nesse caso, fica. — Meu pais, honrado velho, vendo que tu nem casa tinhas para morar,
e dormias ao relento como um cão sem dono, ofereceu-te uma alcova em nossa casa e um talher à nossa mesa.
Aceitaste a generosa oferta. Daí por diante, as tuas olheiras, que as levaras fundas como as de um condenado,
começaram a desfazer-se. As cores rosadas da infância voltaram-te às faces, cuja palidez cadavérica
dissiparam. É que às horas que te sobravam de orgias torpes, sucederam as noites bem dormidas no côncavo
tépido de um colchão honesto.
O DOUTOR (À parte.) Esta rapariga tem muita leitura; foi o que a perdeu.
VIRGÍNIA - Ao cabo de três meses, disseste-me uma dia...
O DOUTOR - Disse-te...
VIRGÍNIA - Disseste-me: — Amo-te. E o teu amor, mentido num olhar estudado, encontrou uma
porta escancarada onde deverá encontrar um baluarte inacessível: amei-te. O resto, tremo de repeti-lo... Meu
pai observou-nos e murmurou: — Aqui há coisa... Chamou-me de parte...
O DOUTOR - E disse-te...
VIRGÍNIA - E disse-me: — Filha, os teus requebros e medeixas pelo Escorrega que, ente parêntesis,
é um farroupilha, podem passar despercebidos a outros olhos que não sejam os de teu pai. Lembra-te de que já
não tens mãe, e és o único penhor de minha felicidade nesta vida. Esquece-te dele e casa com teu primo
Bernardino, para quem te destinei de pequena.
O DOUTOR - Estás a perder tempo; sei disso tão bem como tu .
VIRGÍNIA - Eu quisera que uma voz misteriosa te repetisse a todo momento essa história de
lágrimas. — Quando sai do quarto do meu pai...
O DOUTOR - Eu disse-te...
VIRGÍNIA - Disseste-me: — Espera-me no jardim. (Com exagerado lirismo.) E foi lá, ao ciciar da
brisa, ao brilho trêmulo da lua, que te repeti as palavras de meu pai...
O DOUTOR (À parte.) - Estou aqui, estou enforcado...
VIRGÍNIA - Nesse instante, parece que o demônio te inspirou estas palavras: — Amo-te! Virgínia!
Lutar contra a vontade de teu pai, será malhar em ferro frio! Fujamos! Arranjarei um emprego qualquer!
Casar-nos-emos! Uma dia voltaremos à casa de teu e pedir-lhe-emos a sua benção!
O DOUTOR - Que noite aquela!
VIRGÍNIA - Fugimos!... Não conseguiste... não procuraste o emprego e eu achei quem me desse
roupa para lavar e engomar. Era daí que eu tirava a subsistência de nós ambos. Todos os dias eu te falava no
nosso casamento, e esta palavra - Veremos - vinha morrer aos meus ouvidos como uma condenação. Um dia,
poucos meses antes da tua formatura, saíste de casa e não apareceste mais; mas, ó desgraçado! o que não
sabes é que me deixavas no seio o fruto da tua paixão maldita!
O DOUTOR - O que ouço!... Essa criança... (Corre para a criança.)
VIRGÍNIA (Interpondo-se.) - É tua filha!...
O DOUTOR - Minha filha!... (Querendo tomar a criança.) A que sexo pertence? É menina? Deixa-a
ver!
VIRGÍNIA (Interpondo-se ainda.) - Ouve o resto: há um mês que veio ao mundo essa pobre
criança...
O DOUTOR - Oh! não calculas o interesse...
VIRGÍNIA - Mentes tu!
O DOUTOR - E onde estavas tu?
VIRGÍNIA - Em casa da Rosa... uma pobre mulher, que se compadeceu do meu estado. — Dois dias
depois do nascimento dessa pobre criaturinha, meu pai me apareceu em companhia do meu primo
Bernardino...
O DOUTOR - E disse-te...
VIRGÍNIA - E disse-me: — Minha filha, eu sei o que são as mulheres e sei o que são os homens... O
Escorrega seduziu-te, e tu, com a fraqueza própria do teu sexo e da tua índole romanesca, escorregaste... Eu te
perdôo... Aqui te trago o primo Bernardino, que já de muito te perdoou também.