CARLOS - Como muito bem sabes, Manuel de Souza, eu sou há muito tempo, o amigo... o privado
do Capitão-general. Vim com ele de Lisboa, e até hoje tenho-me conservado sempre ao seu lado. Hoje esse
tirano está viúvo, mas, antes disso, era casado...
MANUEL DE SOUZA - Ah! (Lembrando-se.) Naturalmente, pois se é viúvo...
CARLOS - Muito bem! A mulher do Capitão-general, uma italiana de temperamento de fogo, de
sangue cálido, de alma ardente e vulcânica...
MANUEL DE SOUZA - Como Gertrudes...
CARLOS - Era admiravelmente formosa... eu andava pelo beicinho...
MANUEL DE SOUZA - Como eu...
CARLOS - Era inevitável o escândalo... Um belo dia, ou antes um mau dia, o Capitão-general
surpreendeu-nos em um colóquio que...
MANUEL DE SOUZA - Não deites mais na carta...
CARLOS - Em meu lugar, outro qualquer abriria a janela, e deixar-se-ia escorregar pela goteira. Eu
fui sublime! Fiquei! Coloquei-me entre a mulher e o marido ultrajado, e exclamei: “Perdoai-lhe, senhor! É de
sangue que precisais! Aqui tendes o meu! É vosso!”
MANUEL DE SOUZA - Foste muito nobre, mas um tanto estúpido...
CARLOS - “Um escândalo, respondeu ele, para dar lugar a que, ainda em cima, zombem de mim!
Não! Minha vingança há de ser mais calma. Tranqüiliza-te. Tu és o meu privado; continua a sê-lo, sê-lo-ás
para todo o sempre!”
MANUEL DE SOUZA - Ora ali está um homem comedido!
CARLOS - Ouve o resto. “Era teu amigo; de hoje em diante o serei mais que nunca, porém...”
MANUEL DE SOUZA - Ah! temos um porém...
CARLOS - “Algum dia te hás de casar... Emprazo-te para lá... Nesse dia, meu amigo, ajustaremos
contas, e então, dente por dente, olho por olho. Fizestes das tuas, eu farei das minhas. Entendeste?” “Sim”.
“Muito bem! Vai amanhã jantar comigo. Seremos os mesmos um para o outro”. — Como de fato, desde esse
momento, nem mais uma palavra a respeito... “Diante do mundo, o sorriso das salas; no fundo. o ódio e a
vingança!”
MANUEL DE SOUZA - Tudo isso que me acabas de contar é muito interessante; mas... Adeus. meu
amigo, estou com muita pressa.
CARLOS (Detendo-o.) - Bem sei o que me queres dizer: nesta situação restava-me tomar um
partido muito simples: não casar-me nunca..
MANUEL DE SOUZA - É verdade!
CARLOS - Disso lembrei-me eu... Estava resolvido a ficar solteiro toda a minha vida, ou toda a vida
do Capitão-general, se fechasse o olho primeiro que eu... Infelizmente, porém, o homem é um ser incompleto,
que, por ser incompleto, cedo ou tarde sente a necessidade de completar-se.
MANUEL DE SOUZA - E é hoje que te completas?
CARLOS- Como vês. O meu casamento deve ser efetuado no mais profundo segredo. Para mais
segurança fiz com que alguns médicos de Porto Alegre me recomendassem os ares do campo a um
reumatismo que não tenho. Desde que aqui estou, tenho escrito ao Capitão-general, dizendo-lhe que vou cada
vez pior, a fim de que ele não desconfie de minha prolongada estada em Viamão. Ontem mesmo (vê tu que
excesso e precaução!) mandei-lhe dizer que estava quase a bater a bota. Tal é, Manuel de Souza, a narração
exata e dolorosa que tinha a fazer. Convirás que é absolutamente preciso que me sirvas de padrinho. Ficas,
não é assim?
MANUEL DE SOUZA - Homem... é que... Como já tive ocasião de dizer-te, Gertrudes... Gertrudes
não é nada, mas a chibatinha...
CARLOS - Só uma hora!
MANUEL DE SOUZA - Uma hora! É muito, meu amigo, é muito!
CARLOS - Vamos! Uma hora, Manuel de Souza!
MANUEL DE SOUZA - Pois vá lá! Ora adeus! Diga Gertrudes o que quiser! Fico!
CARLOS - Ah! eu logo vi! Obrigado, muito obrigado! (Aperta-lhe a mão com efusão.)
Cena IX
Os mesmos, Bento, Beatriz, depois Castelo Branco, Gabriela e o mudo
BEATRIZ (Entrando com Bento, a Manuel de Souza.) - Está pronto o cavalo.