venturado lar abençoado. Mas, os dois pareciam separados pela teia de aranha de
melindres fúteis ou amarrados ao poste de caprichos injustificáveis. Seria mais nobre,
mais humano, se estreitarem em decisivo amplexo, como faria ela, sem ponderar
conveniências, escrúpulos, circunstâncias, num arroubo de paixão vitoriosa.
As reservas de Luzia irritavam-na como estulta resistência. E murmurava,
caminhando a esmo, injúrias contra ela, recriminações a Alexandre, um mazanza, que
ficava no armazém embiocado de fadiga, quando a liberdade e o amor deveriam
restituir-lhe as forças, dar-lhe asas para voar, como um passarinho evadido para junto da
criatura querida.
– Arre lá! – exclamava indignada. – Que se arranjem, que se separem, cada um
para o seu lado. Que me importa!... Bem-querer não é obrigado, nem eu tenho nada com
isso. Eu me intrometi demais em negócios alheios... Chega a meter-me raiva tamanha
cerimônia entre pobres diabos, que não têm onde caírem mortos, quanto mais vivos...
Considerava depois, que não mudaria o seu destino se eles fossem felizes. Ela
seria esquecida, porque o dia do benefício é véspera da ingratidão. Na embriaguez de
gozos divinos, não se lembrariam dela que havia sofrido por eles; não teriam uma
palavra de dó da pobre Teresinha, mulher à-toa, desprezada como vil trapo humano,
atirado ao monturo dos resíduos sociais, vagabunda sem rumo, sem triste vintém para
comprar um bocado, carecendo de tudo e não sabendo onde buscar cinco patacas do
aluguel do quarto, abandonado, havia mais de mês.
À recordação dessa dívida, surgia a horrível idéia de ser forçada a volver ao
poste da infâmia, onde passara noites acocorada à soleira da porta, fumando cigarros,
mutuando gracejos torpes com as vizinhas; ou, solitária, bocejando, a lutar com o sono,
aguardando o inesperado amante, que a provesse de alimento para o dia seguinte
deixando-lhe o imundo bafio hírcico de homem luxurioso, impregnado na sua pele.
Vinha-lhe, então, invencível nojo à passividade abjeta de coisa que se vende, tábua de
lavar roupa, como dissera Crapiúna; assaltava-a o terror de volver àquele lamaçal
infecto, como se o contágio da pureza, o exemplo da honestidade impoluta e forte, em
combate com a miséria, lhe houvessem infundido no coração, fechado aos afetos sãos e
benfazejos, um nobre impulso de amor-próprio. Faltava-lhe, porém, coragem para
resistir ao pendor criminoso, volver a trabalhar como as outras desgraçadas, nas obras
da Comissão, carregar água, tijolos, areia. Que poderia fazer para ganhar, além da ração,
algum dinheiro, uma criatura franzina, desacostumada a esforços musculares, e, por
cúmulo de males, aberta dos peitos?...
– Como há de ser, Deus do céu? – exclamava, aflita. – Como hei de viver agora,
sozinha, sem parentes e aderentes nessa desgraceira!...
E seguia, lentamente, na direção da casa de Luzia, contornando os quintais e as
casas extremas da cidade, para evitar o trajeto nas ruas cheias de gente, mendigos,
enfermos e a praga de meninos esfomeados.
Na várzea, varada de trilhos claros que riscavam o chão negro, ela encontrou,
àquela triste hora da tarde, magotes de retirantes, cobertos de pó, marchando em filas
tortuosas, das quais, como de um rastilho de suplício marcado pelas vítimas, se
destacavam indivíduos ou famílias, que paravam emaciados, rendidos de cansaço e se
sentavam para repousarem, recobrarem alento e comporem os andrajos, antes de
penetrarem na cidade.
Esse espetáculo de todos os dias, na sua monotonia sinistra, não a impressionava
mais, porque se habituara à vizinhança da miséria nas formas mais lúgubres e vis. Vira
crianças, a sugarem os seios murchos das mães mortas; cadáveres desses entezinhos
abandonados sobre a estrada, devorados por urubus e cães vorazes: criaturas, ainda
vivas e exangues, torturadas pelas bicadas de carcarás a lhes arrancarem, aos pedaços,
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