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entre os espinhos! Que injustiça, meu Deus, que quadro horrível! O coração humano é
um globo de cristal, um monumento de vidro que estala e despedaça-se ao sopro de um
menino. Se as mágoas, se a dor profunda que me punge o coração não encontrasse o
poderio de minha alma, essa força celeste que me suspende no meio deste infernal
precipício, já eu tinha sucumbido... É muito, meu Deus, dai-me força, porque o ânimo
me falece. O tempo, diz o velho Montaigne, é médico tardio, mas cura radicalmente
todas as moléstias. Se estes incômodos domésticos, se estes quadros parciais não são
proveitosos à humanidade, se não pertencem à moral eterna estas medonhas lições... o
mundo é uma caverna escura de sonhos atropeladores, artefatos efêmeros, germinados
pela vaidade, traçados por uma esperança horária, que surge para se enublar por entre
trevas e rolar o homem no caos da desesperação! Para que serve uma reabilitação,
depois que o ferro do carrasco separa o coração da mente? Do que serve a restituição
dos bens quando a mortalha já envolveu seu dono e o alistou no mundo da morte? Do
que serve o ouro ao moribundo?... Que importa à vítima, ao cadáver ou ao verme que
habita o seu crânio, que se nutre de seu cérebro e se aviventa na sede, no sacrário onde
outrora tantas harmonias a alma desprendia, onde a harpa celeste da poesia desferia
esses concertos de pensamentos angélicos, esses hinos de adoração, esses êxtases, essas
maravilhas que atestam a imortalidade?! Que importa à alma, que está nos céus, se uma
mãe piedosa decepa os cardos, arranca o timbó venenoso que lhe encobria a campa e os
substitui por flores e por louros e ciprestes?!... Acaso a boca do mundo, essa manivela
que roda a esmo, que poda a virtude, que adorna o crime, que os alia, que os separa e,
como um eco estulto, uma larva cega, caminha de rastros carcomendo as flores,
envenenando a terra, poderá, em seus turbilhões desencontrados, em suas
inconseqüências, reparar tantos danos, acrisolar sua memória, aliviar sua purificação no
mundo da eternidade?!... Não, a voz do mundo é o grito da matéria, a celeuma de uma
orgia continuada, onde a mão da verdade, à força de séculos, pode apenas imprimir
algumas de suas máximas sagradas. A glória, a história e a posteridade são a tríplice
aliança de fantasmas, de mentiras e de ingratidões. A espada que se converte em rasoura
de povos, de cidades, e que marcha como um raio destruidor à frente de bandidos
disciplinados; a ponta do manto que apaga da ardósia da humanidade o nome de
milhões de homens, não merecem minha veneração. A mentira repetida, os fastos do
crime, o desdenhoso silêncio da modéstia e da virtude, esse catálogo de infâmias, esse
foro de parcialidades, é como um espelho quebrado que fraciona todos os objetos que
reflete! E o que é a posteridade, esse gigante consolador das almas fracas e sonhadoras?
Quais são as suas recompensas? Uma pedra que o escultor mutila, um canhão de bronze,
um instrumento de morte que se transforma em uma estátua muda, que avulta numa
praça e causa a admiração dos passantes, enquanto os filhos e netos do herói, da vítima
dos contemporâneos, cobertos de andrajos, fogem envergonhados desse simulacro que
parece aumentar sua decadência e miséria. Deus está nos céus, Satanás está na terra! A
civilização, essa ladra da liberdade, é obra do inferno, é um parto do egoísmo! O que
seria este cárcere de angústias, esta tortura perpétua das almas inocentes, esta prisão dos
corações expansivos, este círculo de ferro que prende a verdade em sua órbita sagrada
se a palavra de Cristo não tivesse erguido o Capitólio da virtude e o prêmio da
inocência?!!... Se a virgem que nascera no Calvário, de um suspiro exalado do alto da
cruz, nos lábios desse Homem Deus, não viesse acobertar debaixo de seu manto sagrado
tantos desgraçados, curar-lhes com seus gemidos o hino da esperança e recompensar
seus trabalhos com esse triunfo de um descanso eterno?! Há vinte horas que a minha
vida parecia um astro no meio dos céus, imperturbável numa órbita de harmonias, cheia
de votos patrióticos, sem outros sonhos que não fosse a pátria... essa pátria muda.... Ah,
que tenho dito?! Delirei! Perdoa-me, gigantesco Amazonas, perdoa-me, formosíssimo