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– É muito grande, e só mesmo a pátria poderia exigir tanto de mim. A ação de governar vai se
tornando cada vez mais perigosa nesta terra... Nós temos maus auxiliares e o povo tem má fé... A
oposição agora serve-se de todos os meios para impedir-nos os passos, usando das armas mais
pérfidas, que são as do ridículo e as da calúnia...
– Essa senhora é velha como Sócrates... não faça caso... – disse o conselheiro.
– Não faço caso, mas no fundo, francamente, desgosta-me. Trabalho sem interrupção e afinal...
– Não faz nada! – disse o conselheiro, rindo.
– Não seja perverso, amigo! ou declare-se já contra mim! Quem sabe se é você o autor daqueles
versinhos que andam por aí carpindo a minha falta de eloqüência e de desinteresse, que julgam as
qualidades primordiais para um homem de Estado!
– E são...
– Nego. Um político, do que precisa, sobretudo, é de tenacidade, sangue frio, patriotismo, sinceridade
e um grande domínio sobre as suas paixões... além das qualidades superiores, que lhe são
indispensáveis, de inteligência e de ilustração...
– É por isso que o seu colega Marcondes está fazendo tão bonita figura!... – disse ainda o
conselheiro, com um fundo suspiro. Riram-se todos, que bem conheciam os dotes fraquíssimos do
Marcondes.
Pedrosa continuou, com um sorrizinho magnânimo:
– Ele é bem intencionado, e trabalha! Há dias em que nem tenho tempo de beijar minha filha... O
homem público é um galé, principalmente neste nosso país, em que os mais puros devotamentos são
sempre interpretados às avessas!
– Muito bem! Apoiado! – exclamou o conselheiro, levantando-se.
– Eu sei que você é um homem corajoso, desde aquela célebre caçada que fizemos juntos em
Teresópolis... lembra-se? – perguntou, sorrindo, o dr. Sebrão ao Pedrosa.
– E com bastantes saudades!
– Quem tem idade e competência para arcar com o peso de uma pasta é ali o amigo Argemiro... –
disse o conselheiro Isaías.
Argemiro protestou; era um homem sem maleabilidade; não podia servir bem à política. Ao mesmo
tempo o dr. Sebrão, voltado para Adolfo Caldas, começou a descrever a caçada feita com o Pedrosa e
outro amigo nas florestas da serra.
– Tinham-nos falado em javalis. Uma madrugada partimos da Várzea, montados nuns velhos cavalos
de aluguel, nós e mais um velho de Teresópolis, que se inculcara como excelente guia. Levávamos
boas armas, bom farnel para o almoço, estando combinado voltarmos a jantar com a família. Trotamos
para o alto, o velhote na frente; nós, muito esperançosos, atrás. Chegados a um certo ponto, amarramos
os animais e metemo-nos a pé pelo mato. Imaginem que entrar nas florestas da serra é como entrar na
treva. Ali, para se ser bom caçador é preciso ter afeito a vista à escuridão do ervaçal e ter criado sobre a
epiderme uma segunda pele, ou melhormente uma espécie de couro, onde os espinhos se quebrem sem
lograr ferir. Cada vez que os nossos pés se afundavam no colchão de folhas mortas, a idéia de ser
mordido pelas cobras juntava-se ao prazer de conseguir matar algum porco do mato. O guia assegurava
ter encontrado sinais; galhos quebrados, rastro de animais em fuga. Seguimo-lo com fé. Era prudente
almoçar cedo. Comemos à beira do Paquequer, entre touceiras cheirosas de lírios. As águas
convidavam. Quis banhar-me, mas o Pedrosa ponderou que a fresquidão da linfa aplacaria o meu humor
sanguinário, que antes deveria ser exacerbado por um golinho de parati... Tropeçando em troncos,
enrodilhando-nos em cipós, alagando-nos até o queixo em valas, passamos o dia inteiro à espera da
porcada glorificadora! Mas os diabos dos porcos, zombando dos caçadores sem cães, deram-nos ao
desprezo. Escureceu. Quer dizer: o negrume ainda se fez mais negro. O guia, desnorteado, levava-nos
para um lado, para outro, sem achar saída...
Tiritando de frio, rodeados pelo fragor da água e do vento, ali passamos uma noite pavorosa; eu,
gemendo com dores nas articulações, Pedrosa febril e impressionado com a idéia do susto que havia de
estar curtindo a nossa boa d. Petronilha... Só no outro dia, às dez horas, esfomeados, lanhados e rotos,
conseguimos sair da mata. Correu todo o mundo a ver-nos. As famílias choravam. Tinham andado pelas
estradas, à noite, com archotes, gritando por nós... Tivemos de passar cabisbaixos e
envergonhadíssimos por entre os curiosos... explicar aventuras... imaginárias... E querem vocês saber?
Passáramos a noite a pequena distância de um hotel! O barulho da água e do vento abafou os outros
rumores que nos denunciariam essa salvação. Foi uma tragédia cômica!
– A evocação não foi das mais felizes para consolar o amigo Pedrosa das suas atribulações! – disse
ainda o murcho conselheiro Isaías, levantando-se do seu canto. E depois, para o Argemiro: