O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais — a não
ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de
explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com
uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma
noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus.
Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio
mulher — a beleza dos braços das Oréadas
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pintadas por Botticeli, misto de castidade mística e de
alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de
mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beija-los, de acaricia-los, mas principalmente de
faze-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo
era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, aperta-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem
negras, feri-los... Porque? Não sei, nem eu mesmo sei — uma nevrose! Essa noite passei-a numa
agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que
poderia acontecer. O desejo, porém ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No
primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade
era de espeta-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de coze-los devagarinho, a picadas. E junto de
Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira
noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção
quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele
susto de carne que havia de sentir.
— Que horror 1
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauteríe
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da viscondessa de Lages, com um vestido
em que as mangas eram de gaze. Os seus braços — oh! que braços, Justino, que braços ! —
estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando
em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me — “ Rodolfo, que olhar o seu. Está
zangado? “ Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. — “ Oh!
não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço. “ Sabes como é pura a
Clotilde. A pobresita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: —“Se não quer que eu
mostre os braços porque não me disse a mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado? “ —
“ É , é isso, Clotilde. “ E rindo — como esse riso devia parecer idiota! — continuei “ É preciso
pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete. “ —~ Está louco, Rodolfo? “
— “ Que tem? “ — “ Vai fazer-me doer. “ — “Não dói. “ — “ E o sangue? ” —“Beberei essa gota
de sangue como a ambrosia do esquecimento. “ E dei por mim, quase de joelhos, implorando, supli-
cando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde
por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! meu caro,
as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente
tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro
“Bem, Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto! “ E os seus dois braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela
primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse
uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus
sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente — “ Mau!”
Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sen-
sação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que
prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que
dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer
nunca mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de
novo o supremo prazer ! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror...
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Ninfas dos bosques e montanhas na mitologia greco-romana.
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Reunião dançante, de natureza íntima. Em francês no texto.