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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL
Capistrano de Abreu
I
ANTECEDENTES INDÍGENAS
A quase totalidade do Brasil demora no hemisfério meridional, e entre o Equador e
o trópico de Capricórnio alcança o país as maiores dimensões.
Cercam-no ao Sul, a Sudoeste, Oeste e Noroeste as nações castelhanas do
continente, exceto o Chile, por se interpor a Bolívia, e o Panamá por se interpor a
Colômbia. Se confrontará algum dia com o Equador hão de decidir negociações ainda
ilíquidas. Desde o alto rio Branco até beira-mar seguem-se colônias de Inglaterra, Holanda
e França, ao Norte.
Banha-o ao Oriente o oceano Atlântico, numa extensão pouco mais ou menos de
oito mil quilômetros. Como o cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista 37
graus do Chuí, limite com o Uruguai, salta logo aos olhos a insignificância da periferia
marítima; repete-se o espetáculo observado na África e na Austrália: nem o mar invade,
nem a terra avança; faltam mediterrâneos, penínsulas, golfos, ilhas consideráveis; os dois
elementos coexistem quase sem transições e sem penetração; com recursos próprios o
homem não pôde ir além da pescaria em jangadas.
A borda litorânea dispõe-se em dois rumos principais: Noroeste–Sueste do Pará a
Pernambuco, Nordeste–Sudoeste de Pernambuco ao extremo Sul.
A costa de NO–SE, corre baixa, quase retilínea, intermeada de dunas e lençóis de
areia, aquém do Amazonas, baixa, lamacenta, de contornos variáveis, entre o Amazonas e
o Oiapoque. Os materiais marinhos, os sedimentos fluviais dão-lhe o aspecto das costas
compensadas; os portos rareiam, as barras dos rios são as verdadeiras entradas, em geral
precárias. O desenvolvimento econômico ou as exigências administrativas mais que as
condições naturais levam a navegação de longo curso para Belém, São Luís, Amarração,
Fortaleza, Natal, Paraíba e Recife. Outros portos servem apenas à cabotagem. Tutóia
franqueia o Parnaíba a embarcações de maior porte.
A costa de Sudoeste desde Pernambuco até Santa Catarina arrima-se à Serra do
Mar, varia de aspecto, aqui extensões arenosas, além barreiras vermelhas, encostas
cobertas de matas, ou montanhas que arcam com as ondas. Nela existem as maiores baías
do Brasil: Todos os Santos, Camamu, Rio, Angra dos Reis, Paranaguá. A navegação de alto
bordo procura as capitais dos estados, exceto as de Sergipe e Paraná, mais os portos de
Santos, Paranaguá e S. Francisco do Sul. Também neste trecho se encontram as maiores e
mais numerosas ilhas, em geral dentro de baías, todas de procedência continental.
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A partir de Santa Catarina a costa se abaixa novamente; no Rio Grande do Sul
dominam lagunas, cujo extenso litoral interno só poderá verdadeiramente prosperar quando
a arte der a saída franca que a natureza lhes negou para o oceano.
As ilhas de procedência vulcânica, Fernão de Noronha, fronteira ao Rio Grande do
Norte, Trindade, fronteira a Espírito Santo, pouco representam agora. Trindade parece
imprópria à ocupação permanente: a Inglaterra só a disputou nos últimos anos por se prestar
ao amarradio de cabos transatlânticos.
A faixa marítima apresenta largura variável: em geral avantaja-se mais de
Pernambuco para o Pará, e no Rio Grande do Sul; no restante sua expansão subordina-se
aos caprichos da serra do Mar: temos aqui as chamadas costas concordantes.
Ao Norte liga-se com a baixada do Amazonas, muito ampla à saída, relativamente
estreita entre Xingu e Nhamundá, amplíssima a Oeste do Madeira e do Negro até o sopé
dos Andes. As cachoeiras mais setentrionais do Tocantins, do Xingu, do Tapajós e do
Madeira balizam a baixada pela banda do Sul. Pela banda do Norte, a Este do Negro, logo a
algumas dezenas de quilômetros da foz, começa o trecho encachoeirado nos rios que
descem da Guiana. De Este a Oeste apresenta declive insensível: mais desce o S. Francisco
na cachoeira de Paulo Afonso do que o Amazonas nos três mil quilômetros que vão de
Tabatinga ao mar.
A baixada marítima liga-se ainda ao Sul com a do Paraguai que começa no
estatuário do Prata e prossegue até Mato Grosso. Cuiabá, na gema do continente, pouco
mais de duzentos metros terá de altitude. As margens do rio principal, bastante altas no
curso inferior, vão se abaixando à medida que se marcha para o Norte, até uma região
anualmente alagada por espaços de muitas léguas, o chamado lago Xarais dos primeiros
exploradores. Abundam aliás os lagos marginais, conhecidos pela denominação de baías;
por uma série de baías passa a linha lindeira com a Bolívia.
As baixadas amazônica e paraguaia, contínuas com a do oceano, aproximam-se
muito a Oeste: entre o Aguapeí, afluente do Jauru, tributário do Paraguai, e o Alegre,
afluente do Guaporé, um dos formadores do Madeira, inserem-se apenas poucos
quilômetros de distância. O governo português pensou em cortar este varadouro por um
canal que levaria do Prata ao Amazonas, e deste, aproveitando o Cassiquiare, ao Orenoco, à
ilha da Trinidad, ao mar das Antilhas.
A obra começada parou logo e parece inexeqüível, porque uma língua de terras
bastante altas aparece e se estende até Chiquitos, na Bolívia, produzindo um
desnivelamento pouco favorável.
As bacias do Amazonas e do Paraguai com os rios que as cortam, as ilhas
numerosas, os lagos consideráveis e os canais sem conta compensam até certo ponto a
pobreza do desenvolvimento marítimo, e são os verdadeiros mediterrâneos brasileiros. A
depressão do Paraguai reunida à do alto Amazonas separa dos Andes as terras altas do
Brasil, que a baixada amazônica ao Norte aparta do planalto da Guiana, e a baixada
marítima precede pelos outros lados. A partir do Jauru, o Paraguai não recebe afluentes
consideráveis em território brasileiro, à direita.
Desde o rio Uruguai o planalto brasileiro é limitado pela serra do Mar, áspera e
coberta de matas na falda voltada para o oceano, mais suave na parte interior, de largura
entre vinte e oitenta quilômetros, com picos que raramente passam de dois mil metros.
Serve de divisora das águas entre os rios que procuram diretamente o Atlântico — em geral
de pequeno curso, pois apenas dois, o Iguape e o Paraíba, rompem a serra, e os outros são
rios transversais ou de meia água — e os rios que se destinam ao Prata, de muito maior
extensão e cabedal: o Uruguai pertencente ao Brasil pelos dois lados até Peperi-guaçu,
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limite com a Argentina, e pelo lado esquerdo até Quaraím, limite com o Uruguai; o Iguaçu,
com saltos de maravilhosa beleza, no trecho em que a esquerda pertence à Argentina e a
direita ao Brasil; o Ivaí, próximo ao salto de Guairá; o Paranapanema, o Tietê, de tamanha
significação histórica, e outros afluentes orientais do Paraná.
Da serra do Mar desprende-se a da Mantiqueira, que mais pelo interior vai desde o
Estado do Paraná até Minas Gerais. Nela fica o pico mais alto do Brasil, o do Itatiaia, com
cerca de três mil metros de altitude. Vem depois a serra do Espinhaço, que acompanha o rio
S. Francisco pelo lado direito até ser cortada na grande curva traçada a Nordeste por ele
antes de se lançar no oceano. Ambas representam papel somenos como divisoras das águas:
a da Mantiqueira entre o Paraíba do Sul e o alto Paraná, a do Espinhaço entre o S.
Francisco, de que estreita a bacia ao Oriente, logo depois de formado o rio das Velhas, e os
rios de meia-água que se dirigem ao mar: Doce, Jequitinhonha, Pardo, Contas, Paraguaçu.
Das alturas de Barbacena arranca uma lombada transversal no rumo aproximado
Este-Oeste que, com várias denominações, a trechos rigorosamente montanhosos, alhures
meramente denudada, é o maior divisor das águas dentro do planalto. Chamou-a Serra das
Vertentes o benemérito Eschwege, denominação excelente se, deixada de parte a estrutura,
se atender somente ao papel representado na América do Sul. A um lado as águas vertem
para o Paraná e para o Paraguai, ambos nascidos nesta zona e, como o Uruguai, terminando
o curso em território estrangeiro; ao outro lado da vertente, correm os tributários do
Madeira, objeto de longas disputas desde que Manuel Félix de Lima, em 1742, foi pela
primeira vez das minas de Mato Grosso até a sua foz; o Tapajós, antigo caminho dos
Cuiabanos para a compra do guaraná entre os Maués; o Xingu, cujas más condições de
navegabilidade desviaram as explorações por muito tempo e deixaram viver até poucos
anos numerosas tribos indígenas em pura idade da pedra, cujo estudo impulsionou
poderosamente a etnografia sul-americana; o Araguaia-Tocantins, o Parnaíba, o S.
Francisco.
O S. Francisco, de grande importância histórica, é formado pelo rio que com este nome desce da
serra da Canastra, e pelo rio das Velhas. No trecho superior, os afluentes mais consideráveis correm entre
estas duas cabeceiras até sua confluência; transposto já o salto de Pirapora, a divisora das águas com o
Tocantins afasta-se e deixa que se desenvolvam o Paracatu, o Urucuia, o Carinhanha, o Corrente, o Grande,
ao passo que a serra do Espinhaço se aproxima. Desde a barra do rio Grande para o mar, nem de uma, nem de
outra margem concorre afluente algum considerável; os embaraços encontrados pela navegação acumulam-se,
e tolheram as comunicações até ser transposto por uma via-férrea o trecho encachoeirado.
O S. Francisco é, por assim dizer, a imagem de quase todos os rios do Brasil: no
planalto, apenas o volume de água o permite uma extensão de centenas de léguas, às vezes,
perenemente navegável por embarcações de maior ou menor capacidade; em seguida, a
descida do planalto com saltos e corredeiras, como os do Madeira, o Augusto no Tapajós, o
Itaboca no Tocantins, o Paulo Afonso no S. Francisco, e tantos outros; finalmente, as águas
se acalmam e aprofundam, e os embaraços de todo desaparecem quando lhes sobra força
suficiente para impedir a formação de baixios na barra.
Deste tipo se apartam o Amazonas, cuja região tormentosa é vencida logo nas
cabeceiras, muito antes de entrar no Brasil, e seus afluentes situados a Oeste do Madeira e
do Negro, no chamado Solimões, nascidos todos em regiões pouco elevadas e logo
difundidos por grandes baixadas, quase niveladas. Em menores dimensões reproduz-se o
fato com o rio Paraguai e alguns de seus afluentes. O Parnaíba e os rios do Maranhão,
descendo suavemente por um declive graduado ao longo do seu curso, apresentam uma
forma de transição entre o tipo dos rios das baixadas e dos chapadões.
As montanhas preparam e os rios esculpem no planalto brasileiro quatro divisões
bem distintas: o chapadão amazônico desde o Guaporé ao Tocantins; o do Parnaíba,
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inserido entre o primeiro e o do S. Francisco, mais vasto, que alcança sua maior expansão à
margem esquerda desta bacia; finalmente o do Paraná-Uruguai, entre a serra do Mar e as
montanhas de Guaiás. As relações existentes entre estes chapadões atuaram sobre o
povoamento do território.
O planalto das Guianas apresenta outro chapadão elevado, com alguns picos
graníticos, poucos de mais de mil metros.
A Oeste alguns afluentes amazônicos nascidos fora do Brasil, o Içá, Japurá, Negro,
em seu trecho inferior correm por algum espaço paralelamente ao rio principal. Pouco
extensas, pouco navegáveis correntes de meia-água desembocam a Este do Negro,
descendo da borda meridional do chapadão das Guianas.
O rio das Amazonas vaza uma bacia de sete milhões de quilômetros quadrados, a
maior do globo, tamanha, quase, como o Brasil inteiro. Sangram para ela grandes partes dos
planaltos brasileiro, guianês e andino; como a quadra das chuvas não cai em todos eles ao
mesmo tempo, sucede que quando começam a baixar os afluentes de um enchem os do
outro lado, e a vazante nunca se dá completa. Às vezes tanto se avoluma o rio-mar que
represa os tributários e por seus furos manda-lhes água a muitos quilômetros da foz. Os
lagos marginais, as ilhas numerosas, os furos, os paranamirins permitiram navegar desde o
oceano até os confins do país sem nunca penetrar na madre. Suas inundações alcançam
quase vinte metros acima do nível ordinário; por cima das florestas podem então passar
embarcações, das quais algumas semanas antes mal se avistava o topo do arvoredo. O
Amazonas corre de Oeste para Este, acompanhando a equinocial, e seu clima pode dizer-se
proximamente o mesmo em toda esta extensão: genuinamente tropical, pouco variável, sem
diferenças sensíveis de temperatura, de atmosfera úmida, abundantemente chuvosa,
máxime junto do mar e perto dos Andes. A maior ou menor freqüência relativa de chuvas
se designa pelos nomes de verão e inverno; de inverno só pode dar idéia aproximada, pelo
lado da temperatura, o ligeiro refrigério sentido à noite.
Ao Sul do Amazonas, entre os rios Parnaíba e São Francisco, estende-se uma zona
periodicamente flagelada por secas. Quando as estações correm regularmente há leves
chuveiros, chamados de caju, à passagem do sol para o Sul; chuvas maiores caem antes ou
depois do equinócio de março; São João é já fins d’água. No caso contrário secam os rios,
exceto em alguns poços e depressões, murcham os pastos, permanecem nuas as árvores,
sucumbe o gado à sede ou à inanição, e a gente morre à fome quando só dispõe dos
recursos locais. A necessidade de lutar contra a calamidade inspirou a construção de
açudes, a cultura das vazantes, a retirada do gado, a distribuição de ramas para alimentá-lo,
as grandes levas de retirantes.
À beira-mar entre o Oiapoque e o Parnaíba, e do S. Francisco para o Sul domina
igualmente o clima tropical até Santa Catarina: em alguns trechos quase todos os meses do
ano chove, em outros intervêm estiadas maiores, em geral subordinadas à marcha solar.
A distância do equador avulta as diferenças termométricas, aliás contidas em
extremos pouco apartados. Com o solstício de junho, pouco antes ou pouco depois,
coincidem o maior abaixamento termométrico e a diminuição nos precipitados
atmosféricos.
No Rio Grande do Sul as estações fria e quente já aparecem melhor delimitadas, as
variações de temperatura tornam-se mais notáveis, e a estação das águas tende a
emparelhar-se com a do frio.
Isto se refere ao litoral. No interior do país, reina também o clima tropical,
modificado mais ou menos por fatores locais e revestindo certa feição continental.
Geralmente chove no sertão menos que à beira-mar; as estações seca e úmida andam mais
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nitidamente discriminadas; o ar do planalto, facilmente aquecível durante o dia em
conseqüência de sua pouca densidade, rapidamente esfria à noite pelo mesmo motivo,
produzindo às vezes variações bruscas no decurso de vinte e quatro horas.
Também aqui as chuvas compassam-se pelo sol: em vários pontos há uma estação
úmida menor e anterior, outra maior e posterior ao solstício de dezembro.
Na depressão amazônica associam-se o calor e a umidade, a vegetação atinge o
máximo desenvolvimento, alardeia-se grande mata terreal.
A luta pelo ar e pela luz arremessa as plantas para cima, repelem-se nas alturas as
copas do arvoredo, árvores possantes viram trepadeiras, cruzam-se lianas em todos os
sentidos. Plantas sociais como a imbaúba e a monguba constituem exceção; em regra numa
superfície dada cresce o maior número possível de espécies diferentes.
Pouco influi sobre a fisionomia do conjunto a distância do oceano; muito mais atua
o apartamento do rio: no caa-igapó, sujeito à inundação ânua, avultam palmeiras, muitas
delas espinhosas, reduz-se o porte das árvores; no caa-eté, sobranceiro a ela, culminam
gigantes vegetais triunfam dicotiledôneas e epífitos; mais adiante começam os xerófitos.
A região flagelada pela seca possui também matas, porém solteiras, nas serras
capazes de condensarem vapores atmosféricos, nas margens dos rios, em lugares
favorecidos pela umidade do subsolo. De dimensões restritas, sustentam a outros respeitos
o confronto com as das regiões mais felizes; não representam, entretanto, fielmente a feição
dominante.
Desde a Bahia começa a mata virgem contínua, e com os mesmos caracteres orla a
borda oriental da serra do Mar: troncos eretos, ramificação muita acima do solo, folhagem
sempre verdejante, variedade de espécies dentro de pequenas áreas, abundância de epífitos.
Os acidentes topográficos introduzem aqui na paisagem uma variedade golpeante,
desconhecida na monotonia intérmina da Amazônia.
Além da serra do Mar abrem-se os campos, vastas extensões ocupadas por
gramíneas e ervas mais ou menos rasteiras.
Onde a altitude o permite surgem araucárias; em certos pontos adensam-se capões,
cujo nome indígena está indicando a forma circular. Os campos do Sul explicam alguns
pela baixa temperatura durante o período germinativo. Ao Norte existem igualmente
campos, cuja explicação parece outra: o solo, muito quente e pouco úmido, requeimando as
sementes das árvores, rouba-lhes a vitalidade.
Catinga, carrasco, cerrado, agreste designam todos várias formas de vegetação
xerófila, caracterizada pelas raízes às vezes muito profundas, munidas muitas de bulbo que
prende a água, pelo tronco áspero, gretado, exíguo, esgalhado, como se procurasse para os
lados o desenvolvimento que lhe foge na vertical, pelas folhas mais ou menos miúdas, que
caem numa parte do ano para melhor resistir à seca, limitando a evaporação.
Na região das secas esta forma de vegetação chega quase à beira-mar; em quase
todos os estados existe, mais ou menos, testemunho e efeito do clima continental. O povo
brasileiro, começando pelo Oriente a ocupação do território, concentrou-se principalmente
na zona da mata, que lhe fornecia pau-brasil, madeira de construção, terrenos próprios para
cana, para fumo, e, afinal, para café. A mata amazônica forneceu também o cravo, o cacau,
a salsaparrilha, a castanha e, mais importante que todos os outros produtos florestais, a
borracha. Os campos do Sul produzem mate. Nos do Norte, em geral, e nas zonas de
vegetação xerófila, plantam-se cereais ou algodão e pasta o gado. A obra do homem chama-
se capoeira: terreno privado da vegetação primitiva, ocupado depois por vegetais
adventícios cuja fisionomia ainda não assumiu feição bem caracterizada. Os capoeirões
podem dar a ilusão de verdadeiras matas.
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A fauna do Brasil é muita rica em insetos, reptis, aves, peixes, e pequenos
quadrúpedes. São formas características as emas, os papagaios, os beija-flores, os
desdentados, os marsúpios, os macacos platirrínios.
Na baixada litorânea, muitas formas de moluscos, peixes e aves há comuns ao
Atlântico do Sul; o colorido de alguns por tal modo se assemelha à areia que custa
descobri-los em repouso.
A fauna da mata apresenta, ao contrário, o colorido mais vistoso, principalmente nas
borboletas, que às vezes atingem tamanho enorme, e nas aves. A maior parte das espécies
adaptou-se à vida arbórea, e algumas, como a arcaica preguiça, vão desaparecendo com as
derrubadas.
“Mais pálida em colorido e fraca em força numérica é a fauna do sertão” lembra
Goeldi. Suntuoso uniforme de gala nos descampados não seria desejável nem proveitoso.
Para os animais sertanejos é demais vantagem a sua roupa branco-amarelada e monótona
que no meio do capim se conserva neutra entre a cor do solo e o colorido da macega torrada
pelo sol.
Se por um lado, no litoral, é aparelho útil a asa comprida, apropriada ao vôo
persistente, e, por outro lado, o pé trepador, para o morador da mata, torna-se precioso dote
para formas animais que vivem correndo pelo solo uma perna comprida e capaz de
corresponder a fortes exigências. Aí estão para atestá-lo a seriema de alto coturno e a
gigantesca ema. O próprio lobo brasileiro muniu-se, além de umas orelhas grandes, a modo
de chacal do deserto, de longas pernas a feitio de galgo.
Entre estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para colaborar na evolução
social, dando leite, fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte; apenas domesticou
um ou outro, os mimbabas da língua geral, — em maioria aves, principalmente papagaios,
só para recreio. De caça e principalmente de pesca era composta sua alimentação animal.
Possuía agricultura incipiente, de mandioca, de milho, de várias frutas. Como eram-lhe
desconhecidos os metais, o fogo, produzido pelo atrito, fazia quase todos os ofícios do
ferro. A plantação e colheita, a cozinha, a louça, as bebidas fermentadas competiam às
mulheres; encarregavam-se os homens das derrubadas, das pescarias, das caçadas e da
guerra.
As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois
vigorava a idéia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente com a da terra no processo
vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A
antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada: algumas
tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.
Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender
folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em contínuas
mudanças, já necessitadas pela escassez dos animais próprios à alimentação.
De rixas minúsculas surgiam separações definitivas; grassava uma fissiparidade
constante. Tradição muito vulgarizada explicava grandes migrações por disputas a
propósito de um papagaio.
O chefe apenas possuía autoridade nominal. Maior força cabia ao poder espiritual.
Acreditavam em seres luminosos, bons e inertes, que não exigiam culto, e poderes
tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar para apartar sua cólera e angariar-lhes
o favor contra os perigos: eram as almas dos avós. Entre eles contava-se o curador, pagé ou
caraíba, senhor da vida e da morte, que ressuscitara depois de finado, e não podia mais
tornar a morrer.
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Tinham os sentidos mais apurados, e intensidade de observação da natureza
inconcebível para o homem civilizado. Não lhes faltava talento artístico, revelado em
produtos cerâmicos, trançados, pinturas de cuia, máscaras, adornos, danças e músicas.
Das suas lendas, que às vezes os conservavam noites inteiras acordados e atentos,
muito pouco sabemos: um dos primeiros cuidados dos missionários consistia e consiste
ainda em apagá-las e substituí-las.
Falavam línguas diversas, quanto ao léxico, mas obedecendo ao mesmo tipo: o
nome substantivo tinha passado e futuro como o verbo; o verbo intransitivo fazia de
verdadeiro substantivo; o verbo transitivo pedia dois pronomes, um agente e outro paciente:
a primeira pessoa do plural apresentava às vezes uma flexão inclusiva e outra exclusiva; no
falar comum a parataxe dominava. A abundância e flexibilidade dos supinos facilitaram a
tradução de certas idéias européias.
Fundada no exame lingüístico a etnografia moderna conseguiu agregar em grupos
certas tribos mais ou menos estreitamente conexas entre si. No primeiro entram os que
falavam a língua geral, assim chamada por sua área de distribuição. Predominavam
próximo de beira-mar, vindos do sertão, e formavam três migrações diversas: a dos Carijós
ou Guaranis, desde Cananéia e Paranapanema para o Sul e Oeste; os Tupiniquins, no Tietê,
no Jequitinhonha, na costa e sertão da Bahia, na serra da Ibiapaba; os Tupinambás no Rio
de Janeiro, a um e outro lado baixo S. Francisco até o Rio Grande do Norte, e do Maranhão
até o Pará. O centro de irradiação das três migrações deve procurar-se entre o rio Paraná e o
Paraguai.
Nos outros grupos falavam-se as línguas travadas: os Gés, representados pelos
Aimorés ou Botocudos próximo do mar, e ainda hoje numerosos no interior; os cariris
disseminados do Paraguaçu até Itapecuru e talvez Mearim, em geral pelo sertão, conquanto
os Tremembés habitassem as praias do Ceará; os Caraíbas, cujos representantes mais
orientais são os Pimenteiras, no Piauí, ainda hoje encontrados no chapadão e na bacia do
Amazonas; os Maipure ou Nu-Aruaque, que desde a Guiana penetraram até o rio Paraguai e
ainda aparecem nas cercanias de sua antiga pátria, e até no alto Purus; os Panos, os
Guaicurus, etc., etc.
Se abstrairmos do Amazonas, onde havia muitos Maipure e não poucos Caraíbas,
os Tupis e os Cariris foram incorporados em grande proporção à atual população do Brasil.
Os Cariris, pelo menos na Bahia e na antiga capitania de Pernambuco, já ocupavam
a beira-mar quando chegaram os portadores da língua geral. Repelidos por estes para o
interior, resistiram bravamente à invasão dos colonos europeus, mas os missionários
conseguiram aldear muitos e a criação de gado ajudou a conciliar outros. Talvez provenha
dos Cariris a cabeça chata, comum nos sertanejos de certas zonas.
Se agora examinarmos a influência do meio sobre estes povos naturais, não se
afigura a indolência o seu principal característico. Indolente o indígena era sem dúvida, mas
também capaz de grandes esforços, podia dar e deu muito de si. O principal efeito dos
fatores antropogeográficos foi dispensar a cooperação.
Que medidas conjuntas e preventivas se podem tomar contra o calor? qual o
incentivo para condensar as associações? como progredir com a comunidade reduzida a
meia dúzia de famílias?
A mesma ausência de cooperação, a mesma incapacidade de ação incorporada e
inteligente, limitada apenas pela divisão do trabalho e suas conseqüências, parece terem os
indígenas legado aos seus sucessores.
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8
II
FATORES EXÓTICOS
Ao começar o século XVI, Portugal labutava na transição da idade média para a era moderna.
Coexistiam em seu seio duas sociedades completas, com sua hierarquia, sua legislação e seus tribunais; mas a
sociedade civil não professava mais a superioridade transcendente nem se sujeitava à dependência absoluta da
Igreja, despida agora de muitas de suas históricas prerrogativas, obrigada a reduzir muitas de suas pretensões.
O Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças de seus
tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios debatidos entre clérigos, só
punia um eclesiástico se, depois de degradado, era-lhe entregue por seus superiores
ordinários, respeitava o direito de asilo nos templos e mosteiros para os criminosos cujas
penas eram de sangue, abstinha-se de cobrar impostos do clero.
A Igreja dominava soberana pelo batismo, tão necessário à vida civil como à
salvação da alma; pelo casamento, que podia permitir, sustar ou anular com impedimentos
dirimentes; pelos sacramentos, distribuídos através da existência inteira; pela excomunhão,
que incapacitava para todos eles; pelo interdito, que separava comunidades inteiras da
comunicação dos santos; pela morte, permitindo ou negando sufrágios, deixando que o
cadáver descansasse em lugar sagrado junto aos irmãos ou apodrecesse nos monturos em
companhia dos bichos; dominava pelo ensino, limitando e definindo as crenças,
extremando o que se podia do que não era lícito aprender ou ensinar.
Contra ela, na esfera estreita ainda em que firmara sua competência, depois de lutas
com o papado e com o clero indígena, o Estado empregava o placet para os documentos
emanados do sólio pontifício, os juízes da coroa para resguardar certos órgãos essenciais ao
exercício normal da soberania plena, as leis de amortização para limitar as aquisições
prediais, as temporaridades para abolir certas resistências. Em compensação, repartia sua
jurisdição com o outro poder em casos por isso chamados mixti fori, prestava o braço
secular para executar, até com morte violenta, os condenados pelo juízo eclesiástico,
duramente castigava certos atos só porque a Igreja os considerava pecaminosos; em suma, o
mesmo que hoje os interesses econômicos ou fiscais, pesavam então inspirações religiosas
e considerações eclesiásticas.
Apesar de tudo ocorriam freqüentes atritos entre a Igreja e o Estado, aquela disposta
a abrir o menos possível mão de suas atribuições antigas, este conquistando ou assumindo
sempre novas faculdades, para arcar com os problemas crescentes, legados onerosos do
regime medieval, exigências inadiáveis de uma situação transformada pelo comércio
fortalecido, pelas comunicações amiudadas, pela indústria renascente, pela renovação
intelectual, pela circulação metálica em luta contra a economia naturista, rasgando
horizontes mundiais.
Como o papa, cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se o sujeito jurídico da
sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus poderes não admitiam fronteiras
definíveis, invocados como um princípio de eqüidade superior, como remédio a casos
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excepcionais, graves e imprevistos. De outros poderes suscetíveis de definição, podia fazer
uso mais ou menos completo, e aliená-los em parte.
Era direito real bater moeda, criar capitães na terra e no mar, fazer oficiais de
justiça, do ínfimo ao pino da carreira, declarar guerra, chamando o povo às armas com os
mantimentos necessários. Para seu serviço el-rei tomava carros, bestas e navios dos súditos;
pertenciam-lhe as estradas e as vias públicas, os rios navegáveis, os direitos de passagens
de rios, os portos de mar com as portagens neles pagas, as ilhas adjacentes ao Reino, as
rendas das pescarias, das marinhas, do sal, as minas de ouro, prata e quaisquer outros
metais, os bens sem dono, os dos malfeitores de certos crimes. Nele se concentrava toda a
faculdade legislativa: os votos das Cortes só valiam com o seu assenso e enquanto lhe
aprazia, pois as disposições mais precisas podia dispensar, especificando-as; juízes e
tribunais eram delegações do trono.
Abaixo do rei estava a nobreza, numerosa em famílias como nas distinções que
separavam umas de outras, compreendendo desde os senhores donatários, com honras,
coutos e jurisdição, e os grão-mestres das ordens militares, cujo mestrado o rei houve por
bem afinal assumir, até simples cavaleiros e escudeiros. Seu poderio fora grande; agora
contentava-se com o monopólio dos cargos públicos, com o papel saliente nos tempos de
guerra ou nos conselhos da coroa, com a situação privilegiada nas questões penais, em que
o título de nobre defendia dos tormentos ou acarretava diminuição de pena. A nobreza não
era uma casta exclusiva; davam para ela várias portas, entre as quais a das letras.
Abaixo da nobreza acampava o povo, a grande massa da nação, sem direitos
pessoais, apenas defendidos seus filhos por pessoas morais a que se acostavam, lavradores,
mecânicos, mercadores; os de mor qualidade chamavam-se homens bons, e reuniam-se em
câmaras municipais, órgãos de administração local, cuja importância, então e sempre
somenos, nunca pesou decisivamente em lances momentosos, nem no Reino, nem aqui,
apesar dos esforços de escritores nossos contemporâneos, iludidos pelas aparências fugazes
ou cegados por idéias preconcebidas.
Abundavam pessoas morais a que o povo se podia filiar — corporações limitadas
como as de moedeiros e bombardeiros, coletividades maiores como os cidadãos do Porto.
Os privilégios inerentes a estes foram outorgados a várias cidades do Brasil, Maranhão,
Bahia, Rio e São Paulo, pelo menos; pelo que encerram, dão bem a idéia de direitos
regateados a quem tinha apenas para socorrer-se a mera qualidade de ser humano.
A estes felizes cidadãos do Porto concedeu dom João II:
que não fossem metidos a tormentos por nenhuns malefícios que tivessem feito,
cometido e cometessem e fizessem daí por diante, salvos nos feitos e daquelas qualidades e
nos modos em que o devem ser e são os fidalgos do reino e senhores;
que não pudessem ser presos por nenhum crime, somente sobre suas menagens e
assim como o são e devem ser os fidalgos;
que pudessem trazer e trouxessem por todos os seu reinos e senhorios quais e
quantas armas lhes aprouvesse de noite e de dia, assim ofensivas como defensivas;
que não pousassem com eles nem lhes tomassem suas casas de moradas, adegas,
nem cavalariças, nem suas bestas de sela, nem outra nenhuma coisa de seu contra suas
vontades e lhes catassem e guardassem muito inteiramente suas casas, e houvessem com
elas e fora delas todas as liberdades que antigamente haviam os infanções e ricos homens;
que os serviçais agrícolas só fossem à guerra com os patrões.
Abaixo do terceiro estado havia ainda os servos, escravos, etc., etc., cujo direito
único cifrava-se em poderem, dadas circunstâncias favoráveis, passar à classe
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imediatamente superior, pois, conquanto rentes as separações, as classes nunca se
transformaram em castas.
Os três braços do clero, da nobreza e do povo, convocados em ocasiões solenes e a
intervalos arbitrários, constituiram as Cortes. Meramente consultivas, ou por igual
deliberativas? Liquidem entre si este ponto os eruditos de além-mar; fora de dúvida só
valeram enquanto os reis consideraram reinar como um ofício e precisaram de recursos
pecuniários para os quais não eram suficientes os copiosos direitos reais.
A prosperidade e o povoamento do Brasil provaram fatais a esta venerável
instituição. Por uma coincidência nada fortuita, reuniram-se as últimas cortes em 1697,
quando o ouro das Gerais começava a deslumbrar o mundo, e só reviveram com a
revolução francesa, as guerras napoleônicas e a independência real do Brasil, depois de
trasladada para aqui a sede da monarquia portuguesa.
Em 1527 a soma total dos fogos em todo o Reino andava por duzentos e oitenta mil
quinhentos e vinte e oito; dando a cada um destes números de quatro indivíduos, a
população do Reino seria naquele ano de um milhão e cento e vinte dois mil cento e doze
almas. Com este pessoal exíguo, que não bastava para enchê-lo, ia Portugal povoar o
mundo. Como consegui-lo sem atirar-se à mestiçagem?
A agricultura estava atrasada no Reino; Damião Góis, explicando em 1541 à opinião
letrada da Europa a razão dos seus atrasos em Portugal e Espanha, afirma ser a fertilidade
espontânea do solo tamanha que a maior parte do ano os escravos e os homens pobres se
podem sustentar lautamente de frutos silvestres, mel e ervas, o que os faz pouco propensos
ao trabalho agrícola.
Alguns traços tomados ao livro de Costa Lobo mostrarão o caráter dominante do
povo ao começar a era dos descobrimentos.
O português do século XV era fragueiro, abstêmio, de imaginação ardente, propenso
ao misticismo, caráter independente, não constrangido pela disciplina ou contrafeito pela
convenção; o seu falar era livre, não conhecia rebuços nem eufemismos de linguagem.
A têmpera era rija, o coração duro. As cominações penais não conheciam piedade.
A morte expiava crimes tais como o furto do valor de um marco de prata. Ao falsificador de
moeda infligia-se a morte pelo fogo, e o confisco de todos os bens.
Com a rudeza de costumes que assinala aqueles tempos, a segurança da própria
pessoa, família e haveres, dependia em grande parte da força e energia individual; daí
freqüentes homizios, agressões, feridos e mortes que habituavam à contemplação da
violência e da dor, infligida ou recebida. O espetáculo de penar não repugnava, porque
ninguém tinha em muita conta o padecimento físico. Cruezas que hoje denotariam a vileza
de um caráter perverso não tinham nesses tempos semelhante significação. O mal que elas
causavam não se reputava demasia, todos estavam sujeitos a padecê-lo. Mas se a dor física
ou moral alcançava molificar a rigeza da índole inacostumada à paciência e à reflexão ou se
a paixão a inflamava, então o sentimento irrompia em clamores, prantos e contorsões,
semelhando os meneios da demência furiosa.
À dureza da têmpera correspondia extensamente um aspecto agreste, a força
muscular era tida em grande apreço. Cercear com um revés de montante uma perna de boi
por meia coxa ou decepar-lhe quase todo o pescoço eram feitos dignos de recordação
histórica.
Ao português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena.
A importação começou desde o estabelecimento das capitanias e avultou nos séculos
seguintes, primeiro por causa da cultura da cana, mais tarde por causa do fumo, das minas,
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do algodão e do café. Depois da supressão do tráfico em 1850, o café provocou deslocações
consideráveis na distribuição interna; o mesmo efeito produziu a abolição.
Os primeiros negros vieram da costa ocidental, e pertencem geralmente ao grupo
banto; mais tarde vieram de Moçambique. Sua organização robusta, sua resistência ao
trabalho indicaram-nos para as rudes labutas que o indígena não tolerava. Destinados para a
lavoura, penetraram na vida doméstica dos senhores pela ama de leite e pela mucama, e
tornaram-se indispensáveis pela sua índole carinhosa. A mestiçagem com o elemento
africano, ao contrário da mestiçagem com o americano, era vista com certa aversão, e
inabilitava para certos postos. Os mulatos não podiam receber as ordens sacras, por
exemplo: daí o desejo comum de ter um padre na família, para provar limpeza de sangue.
Com o tempo os mulatos souberam melhorar de posição e por fim impor-se à sociedade.
Quando reuniam a audácia ao talento e à fortuna alcançaram altas posições.
O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio
sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição
nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas
encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno
dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o benemérito
Antonil.
————
12
III
OS DESCOBRIDORES
A posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima, e data da dominação
romana o conhecimento de ilhas alongadas ao Ocidente. Tradições árabes memoram os
Mogharriun, partidos de Lisboa à cata de aventuras. A restauração cristã produziu uma
marinha nacional, que alentaram e tornaram próspera a escolha da barra do Tejo para escala
da carreira de Flandres, e a vinda de catalães e italianos chamados a ensinar a náutica e a
técnica. A expedição contra Ceuta em 1415 reuniu já centenas de embarcações e milhares
de marinheiros.
Depois de tomada esta cidade à mourisma infiel, atiraram-se os conquistadores para
terras africanas. Navios mandados do Algarve perlongaram o litoral marroquino,
conjuraram os terrores do cabo Não, iluminaram o Saara nos bulcões do mar Tenebroso,
descobriram rios caudalosos, tratos povoados, e as ilhas de Cabo Verde, verdes dentro na
zona tórrida, inabitável pelo calor como o seu nome apregoava, inabitável por sentença
unânime dos filósofos antigos, apanhados agora pela primeira vez em falsidade flagrante.
Culmina nesta fase heróica o infante d. Henrique, filho de d. João I, e grão-mestre da
Ordem de Cristo. Dominava-o de um lado o desejo de alargar as fronteiras do mundo
conhecido, de outro a esperança de alcançar um ponto onde fenecesse o poderio do
Crescente. Talvez aí reinasse Preste João, o lendário imperador-sacerdote; de mãos dadas
realizariam a cruzada suprema contra os inimigos hereditários da Cristandade, já expulsos
de quase toda a Espanha, mais poderosos que nunca nas terras e mares orientais.
O decurso dos descobrimentos precisou as aspirações confusas do princípio. Nos
últimos anos do infante desenhou-se o problema da Índia, vaga expressão geogfica
aplicada a todos os países distribuídos da saída do mar Vermelho ao reino de Catai e à ilha
de Cipango. Os rios possantes do continente agora conhecido, como a franquearem vias de
penetração indefinida, a direção meridional da costa, como a encurtar as distâncias, os
numerosos dizeres de prestigiosas cartas geográficas como a balisarem o percurso a fazer-
se, sugeriam a possibilidade de lá chegar por novo caminho; e novo caminho era urgente,
pois se na Europa germano-latina continuava forte a procura de especiarias, estofos, pérolas
finas, pedras preciosas, madeiras raras, de produtos indianos, em uma palavra, as potências
muçulmanas, assentes nas estradas histórias que vinham dar no Mediterrâneo, cada dia
aumentavam as exigências e requintavam de insolência, espoliando os intermediários do
comércio do Levante, e atormentando os consumidores ocidentais.
A idéia de chegar à Índia atravessando a África, depois de ligeiras tentativas, foi
abandonada. Pensou-se lograr o mesmo resultado circunavegando o continente negro.
Contra este plano insurgia-se o veto de Ptolomeu, afirmando a ligação da Ásia e África ao
Sul, como no istmo de Suez ao Norte, fechando por aquela parte o mar das Índias e
transformando-o em mediterrâneo. Mas ainda em dias de d. Henrique um cartógrafo
italiano protestou contra as afirmações categóricas do astrônomo alexandrino, e o
descobrimento de Cabo Verde, o contacto direto com a zona tórrida tinham começado a
emancipar os espíritos, patenteando que o simples fato de proceder da antigüidade não
consagra inviolável e intangível qualquer proposição.
Enquanto se concatenavam estas noções incertas formulou-se outra solução do
problema, já mencionada em escritores gregos e latinos, e apoiada em autoridades sagradas
e pagãs. E idêntico, postulava, o oceano ocidental da Europa e o oceano oriental da Ásia;
segundo as escrituras o espaço ocupado pelos mares representa apenas uma fração mínima
13
comparado à terra firme, e como o nosso planeta é esférico, o caminho lógico e mais breve
para a Índia consiste em lançar-se impavidamente ao oceano, amarar-se tanto para o poente
até chegar ao nascente. Tal viagem, além de mais breve, seria mais cômoda, pois ilhas
esparsas pontuavam a derrota, algumas delas tamanhas como a Antilha, representada nos
portulanos mais fidedignos.
Cristóvão Colombo apresentou tal plano como novo aos portugueses, que não o
aceitaram; menos experientes, os espanhóis acolheram o nauta genovês e deram-lhe os
meios de executá-lo.
Partindo em 1492, descobriu algumas ilhas e anos mais tarde o continente cobiçado,
o reino do grão Khan, segundo supunha.
Entre a morte de d. Henrique e o reinado de d. Afonso V (1460-1481) se não
arrefeceu o movimento descobridor, prosseguiu com muito menor brilho: a elevação de d.
João II ao trono deu-lhe vida e calor. Terminava a terra conhecida no cabo de Santa
Catarina; 2º S.; com poucos anos avançou-se vitoriosamente para o trópico; em 1487
Bartolomeu Dias tornou com a notícia de ter alcançado o fim do continente africano. Já de
volta, no extremo Sul, quase perdera-se junto a um cabo e por isso chamou-o das
Tormentas. Das Tormentas, não! protestou o rei de Portugal; da Boa Esperança.
Mais que esperança, sentia certeza agora de gozar breve do resultado de tantos
esforços. E tanta confiança nutria d. João II de estar afinal achado o caminho da Índia que
não procedeu as novas verificações. Preparou-se com toda a calma, construindo navios
aptos para os mares agitados do Oriente; fundiu artilharia capaz de lutar contra os
potentados indianos e os navios árabes; emissários seus visitaram o mar Vermelho, o golfo
Pérsico, a costa oriental da África, a costa de Malabar, inquirindo, observando, reunindo
notícias frescas e fidedignas sobre o comércio, a navegação. Um deles, Pero de Covilhã,
esteve no reino de Preste João, originariamente procurado na Ásia central, encarnado agora
no dinasta da Abissínia.
d. João II nada confiou do acaso. A volta triunfal de Colombo em 1493 pouco
influiu sobre os planos do rei. Se protestou contra a divisão do mundo promulgada por
Alexandre VI, julgando postergados seus direitos; se mandou alguma expedição clandestina
ao Ocidente, como parece verificado; bastaram o aspecto dos naturais e sua barbárie
visível, os produtos recolhidos e os países descobertos, tão diferentes de tudo o que os seus
emissários vinham de apurar, para não lhe deixarem dúvidas de que a Índia procurada pelos
portugueses não se confundia com a Índia achada pelos espanhóis. Ao falecer em 1495, o
Príncipe Perfeito deixou ao seu sucessor, d. Manuel, o simples trabalho de saborear o fruto
sazonado. Do mesmo modo Vasco da Gama apenas continuou a senda dez anos antes
aberta por Bartolomeu Dias (1497-1499).
A chegada de Vasco da Gama com as embarcações carregadas de lídimos produtos
indianos mostrou a sabedoria e a previdência de d. João II, preferindo a qualquer outro o
caminho indicado pelo cabo de Boa Esperança; sobre os espanhóis não parece ter exercido
igual impressão, pois continuaram no mesmo empenho primitivo de chegar ao Oriente
navegando sempre para o Ocidente.
Temos, pois, duas correntes históricas bem definidas, originárias ambas da
península ibérica: uma ocidental, outra meridional. Desembocaram ambas no Brasil.
Seguindo a corrente ocidental, apenas procuraram baixas latitudes os espanhóis cortaram a
linha, e alcançaram o hemisfério do Sul com Vicente Yañez Pinzon. Seguindo a corrente do
Sul, os portugueses, induzidos a amarar-se à procura de ventos mais francos para dobrar o
cabo, encontraram a zona dos alísios e vieram dar no hemisfério ocidental com Pedro
Álvares Cabral. Ambos os casos ocorreram no mesmo ano.
14
Interessa-nos apenas Pedr’Álvares.
Comandando uma armada de treze navios partiu de Belém segunda-feira, 9 de
março de 1500. O domingo passara-se em festas populares. O rei tivera a seu lado na
tribuna o capitão-mor, pusera-lhe na cabeça um barrete bento mandado pelo papa,
entregara-lhe uma bandeira com as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo, a Ordem de d.
Henrique, o descobridor. Sentia-se bem a importância desta frota, a maior saída até então
para terras alongadas.
Mil e quinhentos soldados, negociantes aventurosos, aventureiros mercadorias
variadas, dinheiro amoedado, revelavam o duplo caráter da expedição: pacífica, se na Índia
preferissem a lisura e o comércio honesto, belicosa, se quisessem recorrer às armas. Alguns
franciscanos, tendo por guardião frei Henrique de Coimbra, comunicavam ao conjunto a
sagração religiosa.
A 14 foram avistadas as Canárias, a 22 as ilhas de Cabo Verde. Um mês mais tarde,
a 21 de abril, boiaram ervas marinhas muito compridas, sinais de proximidade de terra, no
dia seguinte confirmados por aves, e realizados à tarde. “Neste dia, a horas de véspera,
houvemos vista de terra: primeiramente dum grande monte mui alto e redondo e doutras
serras mais baixas do Sul delle, e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o
capitão poz nome monte Paschoal”, escreve Pero Vaz de Caminha, testemunha de vista,
escrivão da feitoria a fundar em Calecut. Ao sol posto surgiram em 23 braças, ancoragem
limpa. O monte Pascoal, no Estado da Bahia, é visível a mais de sessenta milhas do mar.
Na quinta-feira continuou a derrota lenta e cuidadosamente, indo os navios menores
adiante, sondando.
A distância de meia légua, em direito à boca de um rio, fundearam. Nicolau Coelho,
companheiro de Vasco da Gama, desembarcou e pôde observar alguns naturais, atraídos
pela curiosidade, dar e receber presentes.
Um sudoeste acompanhado de chuvaceiros mostrou a conveniência de procurar
situação mais abrigada. Sexta-feira velejaram para o Norte, os navios maiores mais
afastados, os navios menores mais chegados à terra; ao pôr do sol, em distância de dez
léguas, encontraram um recife, abrigando um porto de larga entrada. “Ao sabbado pela
manhã mandou o capitão fazer vella, e fomos demandar a entrada, a qual era muito larga e
alta, 6 e 7 braças, e entraram todalas naus dentro e ancoraram-se em 5 e 6 braças, a qual
ancoragem dentro é tão grande e tão fremosa e tão segura que podem jazer dentro mais de
duzentos navios e naus”. O nome de Porto-Seguro, dado pelo capitão-mor, resume bem
suas impressões; ainda o conserva uma localidade vizinha.
Em um ilhéu da baía, construído um altar, cantou-se missa domingo da Pascoela,
26. Frei Henrique pregou sobre o evangelho do dia. A ressurreição do Salvador, as
aparições misteriosas aos discípulos, a incredulidade de Tomé, o apóstolo das Índias,
diziam bem com sua situação estranha. No fim da pregação o frade “tratou da nossa vinda,
e do achamento desta terra, conformando-se com o signal da cruz, sob cuja obediência
viemos”. A bandeira de Cristo com que o capitão-mor saiu de Belém esteve sempre alta à
parte do Evangelho.
Reuniram-se a bordo da capitânea os comandantes dos outros navios, e o capitão-
mor perguntou se conviria mandar a el-rei a nova do achamento da terra pelo navio de
mantimentos, para S. A. a mandar descobrir. Concordaram que sim. Os dias seguintes
passaram-se na baldeação dos gêneros e na lavrança de uma cruz para assinalar a posse
tomada em nome da coroa de Portugal.
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A cruz foi chantada a 1 de maio: a 2, partiram o navio mandado ao Reino e a
poderosa frota para a Índia, deixando lacrimosos dois degradados incumbidos de inquirirem
da terra e irem aprendendo a língua; alguns marujos desertaram, segundo parece.
As seguintes palavras de Caminha representam as reflexões de um espírito superior
ante esses dias e espetáculos extraordinários:
“N’ella [terra] até agora não podemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma
cousa de metal, nem de ferro lho vimos; pero a terra em si é de muitos boos ares assi frios e
temperados como os d’antre Doiro e Minho, porque n’este tempo de agora assi os
achavamos como os de lá; águas são muitas infindas e em tal maneira é graciosa que
querendo a aproveitar dar-se-á n’ella tudo por bem das aguas que tem; pero o melhor fruito
que n’nella se pode fazer me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza em ella deve lançar, e que hi non houvesse mais ca ter aqui esta
pousada pera esta navegação de Calecut abastaria, quanto mais disposição para se n’ella
cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, s. o acrescentamento de nossa santa fé.
A vantagem da situação geográfica da nova terra para as navegações da Índia, o
modo de aproveitá-la trazendo sementes do Reino, o problema do indígena, sua
incorporação pelo cristianismo, aí ficam definidos com toda a precisão.
A armada do capitão-mor fêz-se rumo do cabo de Boa Esperança, acompanhando a
costa da terra nova por largo espaço, duas mil milhas, calculou um companheiro de
expedição.
O navio de mantimento seguiu para o Nordeste, naturalmente sem perder de vista a
terra e talvez realizando desembarques.
E’ possível mesmo haja encontrado Diego de Lepe ou algum outro viajante
espanhol. O descobrimento dos portugueses já figura no mapa de Juan de la Cosa,
terminado em outubro de 1500.
Em meados do ano seguinte, partiu de Portugal uma armada de três navios a
explorar a nova ilha da Cruz ou Vera Cruz e encontrou-se em Beseguiche com
Pedr’Álvares Cabral, já de volta da Índia. Se o descobridor e os futuros exploradores
permutaram impressões, deviam ter reconhecido a existência não de ilha, mas de
continente. Diferente dos outros? As respostas não podiam sair claras, pois o oceano
Pacífico estava por descobrir. Duarte Pacheco, o herói de Cambalão, companheiro de
Cabral, alguns anos mais tarde ainda guardava a imagem tradicional do mundo: vastas
massas de terra, interrompidas por mediterrâneos, abertos em rumos diversos, semelhando
lagoas enormes.
A expedição exploradora depois de travessia tormentosa aportou ao litoral do Rio
Grande do Norte e procurou regiões mais temperadas, dando nomes aos lugares
descobertos, tirados uns do calendário — S. Roque, S. Jerônimo, S. Francisco, baía de
Todos-os-Santos, cabo de S. Tomé, angra dos Reis; tirados outros de impressões e
acidentes de viagem — rio Real, cabo Frio, baía Formosa, etc. Os exploradores, segundo
parece, nunca perderam de vista a serra do Mar. Durante muitos anos figurou nos mapas
como último ponto conhecido Cananor, que bem pode ser a atual Cananéia, em S. Paulo;
calculou-se a extensão percorrida em duas mil e quinhentas milhas. Esta exploração mais
demorada confirmou em quase tudo as palavras de Caminha. Apenas os naturais
apareceram à nova luz, selvagens, rancorosos, sanguinários e antropófagos, material mais
próprio para escravatura do que para a conversão.
Depois de voltar esta armada a coroa resolveu arrendar a terra por um triênio; os
arrendatários comprometeram-se a mandar anualmente seis navios a descobrir trezentas
léguas e a fazer e sustentar uma fortaleza. Fundavam seus cálculos no lucro produzido por
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escravos, por animais curiosos e pelo pau-brasil, de que os primeiros exploradores levariam
algum carregamento, e também na vaga esperança de poderem chegar à Índia por este
caminho.
Em 1503 veio de fato uma frota de seis embarcações, reduzidas logo à metade pelo
naufrágio da capitânea, junto à ilha depois chamada Fernão de Noronha, e pela defecção de
Vespucci, de quem o continente deveria tomar o nome. Talvez algum dos navios restantes
iniciasse a exploração do cabo de S. Roque à procura do Equador. De certo nada se sabe;
no mencionado trecho da costa escaparam ao esquecimento apenas alguns nomes, como o
de João de Lisboa, João Coelho e Corso, desacompanhados de qualquer informação. A falta
de portos, a dificuldade de navegação devida ao regime dos ventos, e a impressão de
esterilidade colhida de bordo não provocavam a amiudar visitas naquela direção; os dizeres
dos mapas contemporâneos ou rareiam ou apenas indicam passagens de largo.
Em 1506 a terra do Brasil, arrendada a Fernão de Noronha e outros cristãos novos,
produzia vinte mil quintais de madeira vermelha, vendida a 2 1/3 e 3 ducados o quintal;
cada quintal custava ½ ducado posto em Lisboa. Os arrendatários pagavam quatro mil
ducados à coroa.
Anos mais tarde, pensou-se em dar liberdade aos que quisessem vir tentar fortuna,
pagando apenas um quinto dos gêneros levados. A este regime já obedeceu, talvez, a nau
Bretoa, armada por Bartolomeu Marchioni, Benedito Morelli, Fernão de Noronha e
Francisco Martins, mandada a Cabo Frio em começo de 1511. Sobre ela existem
documentos.
Tinha a nau capitão, escrivão, mestre e piloto, responsáveis solidariamente pela
execução do regimento; treze marinheiros, quatorze grumetes, quatro pagens, um
dispenseiro. Nem à ida nem à volta podia tocar em qualquer porto intermediário, salvo caso
de falta de vitualhas, temporais ou desarranjo. Era permitido à companha resgatar com
facas, tesouras e outras ferramentas depois de estar completa a carga dos armadores da nau.
Podia resgatar papagaios, gatos e, com licença dos armadores, também escravos; vedado
era o comércio de armas de guerra.
À chegada em terra a carga ficava entregue ao feitor; qualquer resgate dependia da autorização deste.
Recomendava-se o maior cuidado em não fazerem mal ou dano aos indígenas; não levarem mais naturais
livres para o Reino, porque falecendo em viagem cuidavam os parentes terem sido comidos, como era seu
costume; não deixarem que da gente da nau alguém se lançasse na terra ou nela ficasse, como alguns já
fizeram, coisa muito odiosa ao trato e serviço reais.
A nau Bretoa partiu do Tejo a 22 de fevereiro; fundeou de 17 de abril a 12 de maio
na baía de Todos-os-Santos; em 26 de maio chegou a Cabo Frio, donde a 28 de julho partiu
para Portugal. Levou cinco mil toros de pau-brasil; vinte e dois tuins, dezasseis sagüis,
dezasseis gatos, quinze papagaios, três macacos, tudo avaliado em 24$220 réis; quarenta
peças de escravos, na maioria mulheres, avaliados ao preço médio de 40$: sobre todos estes
semoventes arbitrou-se o quinto, ainda no Brasil.
O nome do Brasil já era bem conhecido e figurava em portulanos anteriores às
descobertas dos portugueses; havia um nome à procura de aplicação, exatamente como o de
Antilha, e isto explicaria a rapidez com que se introduziu e vulgarizou, suplantando outras
denominações, como terra dos Papagaios, de Vera Cruz, ou Santa Cruz, se a abundância de
uma apreciada madeira de tinturaria até então recebida por via do Levante, e o comércio,
sobre ele fundado desde o comêço, não colaborassem na propaganda, e talvez com maior
eficácia.
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O pau-brasil reconheceu-se logo no litoral de Paraíba e Pernambuco, nas cercanias
do rio Real, do Cabo Frio ao Rio de Janeiro; naturalmente seriam logo estes os trechos mais
freqüentados destes primeiros portugueses; em outros lugares só mais tarde se descobriu.
Para facilitar os carregamentos, estabeleceram-se feitorias, de preferência em ilhas;
deviam ser caiçaras ou cercas, próprias apenas para guardarem os gêneros de resgates;
algumas sementes de além-mar podiam ser plantadas à roda, e soltos alguns animais
domésticos de fácil reprodução. Uma feitoria conservou-se no Rio durante alguns anos até
ser destruída pelos naturais, indignados com o proceder do feitor e companheiros; entre as
plantações abandonadas entraria a cana de açúcar, encontrada por Fernão de Magalhães em
1519.
No ano de 1513 uma armada de dois navios estendeu muito o horizonte geográfico
pela zona temperada. Devassou, segundo um contemporâneo, seiscentas e setecentas léguas
de terras novas; encontrou na boca de um caudaloso rio diversos objetos metálicos; teve
notícia de serras nevadas ao Ocidente; julgou ter achado um estreito e o extremo meridional
do continente. O capitão, talvez João de Lisboa, levou para o reino um machado de prata, e
este nome, apegado ao soberbo rio, ainda hoje proclama a primazia dos portugueses ao Sul,
como o das Amazonas perpetua a passagem dos espanhóis ao Norte.
Com a viagem destes navios, armados por d. Nuno Manuel e Cristóbal de Haro,
coincidiu o descobrimento do mar do Sul ou Pacífico, por Vasco Nunes de Balboa.
Os espanhóis apanharam a importância destes sucessos, mandaram em 1515
procurar o estreito anunciado pelos portugueses, e incumbiram João Dias de Solis de ir pelo
novo caminho às espaldas das terras de Castela de Ouro. Solis foi morto apenas
desembarcou no rio da Prata; seus companheiros voltaram sem detença para o Reino. Em
1520 Fernão de Magalhães explorou o grande estuário meridional à procura do estreito
cobiçado afinal descoberto mais para o Sul, e navegou pelo oceano Pacífico até alcançar as
famosas Molucas, as ilhas das especiarias por excelência.
Assim se cumpriu o plano de Colombo: chegar ao Levante navegando sempre para
o Ocidente. Acompanharam Magalhães em sua expedição incomparável João Lopes de
Carvalho, piloto da nau Bretoa, e um mamaluco, filho seu, havido de uma índia do Rio de
Janeiro.
Pau-brasil, papagaios, escravos, mestiços, condensam a obra das primeiras décadas.
Da parte das índias a mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos
pertencentes a raça superior, pois segundo as idéias entre elas ocorrentes só valia o
parentesco pelo lado paterno. Além disso pouca resistência deviam encontrar os milionários
que possuíam preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas, tesouras, espelhos. Da
parte dos alienígenas devia influir sobretudo a escassez, se não ausência de mulheres de seu
sangue. É fato observado em todas as migrações marítimas, e sobrevive ainda depois do
vapor, da rapidez e da segurança das travessias.
Estes primeiros colonos que ficaram no Brasil, degradados, desertores, náufragos,
subordinam-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram ao meio, ao ponto de furar lábios e
orelhas, matar os prisioneiros segundos os ritos, e cevar-se em sua carne; outros
insurgiram-se contra ele e impuseram sua vontade, como o bacharel de Cananéia, que se
obrigou a fornecer quatrocentos escravos a Diogo Garcia, companheiro de Solis, um dos
descobridores do Prata.
Tipo intermédio apresenta-nos Diogo Álvares, o Caramuru, que habitou na Bahia de
1510 a 1557, data de seu falecimento.
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18
IV
PRIMEIROS CONFLITOS
Com a chegada dos portugueses coincidiu quase, a dos franceses, que começaram
logo o mesmo comércio de resgate. Na vastidão do litoral podiam ter passado anos sem se
encontrar, mas o encontro era fatal, e não havia de ser amigável.
Portugal considerava a nova terra propriedade direta e exclusiva da coroa, pelas
concessões papais, pelo tratado de limites concluído com a Espanha e pela prioridade do
descobrimento. O rei tirava porcentagem dos gêneros levados para além-mar; os armadores
queriam auferir lucros de seus esforços e capitais.
A presença dos intrusos prejudicava-os a todos os respeitos: nos mercados europeus,
oferecendo os gêneros a preços mais vantajosos, pois não tinham quintos a deduzir, e
levando-os diretamente aos mercados consumidores, pois não eram obrigados a parar em
Lisboa; nas terras brasílicas, conciliando as simpatias dos naturais, que os agasalhariam
com maior carinho, poupar-lhes-iam traições e aleives, dariam preferência nos
carregamentos e se habituariam às mercadorias francesas. Ainda por cima havia a questão
de princípio: Portugal não admitia que os filhos de outra nação pusessem o pé em terras
suas no além-mar.
Desde a Paraíba ao Norte até S. Vicente ao Sul, o litoral estava ocupado por povos
falando a mesma língua, procedentes da mesma origem, tendo os mesmos costumes, porém
profundamente divididos por ódios inconciliáveis em dois grupos; a si próprio um chamava
Tupiniquim, e outro Tupinambá. A migração dos Tupiniquins fora a mais antiga; em
diversos pontos os Tupinambás já os tinham repelido para o sertão, como no Rio de
Janeiro, na baía de Todos-os-Santos, ao Norte de Pernambuco; em parte de S. Paulo, em
Porto Seguro e Ilhéus, nas proximidades de Olinda; na serra de Ibiapaba havia, entretanto,
Tupiniquins habitadores do litoral.
Porque os Tupinambás se aliaram constantemente aos franceses e os portugueses
tiveram a seu favor os Tupiniquins, não consta da história, mas o fato é incontestável e foi
importante; durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos Peró
(portugueses) ou aos Maïr (franceses).
Ainda nos últimos tempos de d. Manuel, começaram os protestos contra a presença
dos Maïr; com a acessão de d. João III a situação agravou-se. Reconhecida a inutilidade de
embaixadas à corte de França, e de promessas compradas a peso de ouro e jamais
cumpridas, o rei de Portugal resolveu desforçar-se. Uma armada de guarda-costa veio em
1527 ao Brasil comandada por Cristóvão Jaques, que já estivera antes na terra e deixara
uma feitoria junto a Itamaracá, de volta de uma expedição ao Prata. Desde Pernambuco até
a Bahia e talvez Rio de Janeiro, Cristóvão Jaques deu caça aos entrelopos; segundo
testemunhos interessados, não conhecia limites sua selvageria, não lhe bastava a morte
simples, precisava de torturas e entregava os prisioneiros aos antropófagos para os
devorarem. Mesmo assim ainda levou trezentos prisioneiros para o Reino. Devia ter
causado um mal enorme aos franceses.
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As armadas de guarda-costa eram simples paliativos; só povoando a terra, cortar-se-
ia o mal pela raiz. Cristóvão Jaques ofereceu-se a trazer mil povoadores; oferecimento
semelhante fez João de Melo da Câmara, irmão do capitão-mor da ilha de S. Miguel.
Indignava-se este vendo que até então a gente que vinha ao Brasil limitava-se a comer os
alimentos da terra e tomar as índias por mancebas, e propôs trazer numerosas famílias, bois,
cavalos, sementes, etc.
Preferiu-se a estas propostas práticas e razoáveis aparelhar nova e mais poderosa
armada às ordens de Martim Afonso de Sousa, meio-termo entre armada de guarda-costa e
expedição povoadora. Apenas alcançou a costa de Pernambuco, em janeiro de 31, começou
a faina de guarda-costa; em poucos dias foram tomadas três naus francesas.
Diogo Leite com duas caravelas foi mandado de Pernambuco para a costa de Este-
Oeste, mais desconhecida então que trinta anos antes, quando por elas passara Vicente
Yañez Pinzon. Com os outros navios, o capitão-mor seguiu para o Sul. Demorou na baía de
Todos-os-Santos, na de Guanabara, em Cananéia; continuava para o rio da Prata, e devia
entrar em seus planos acompanhar-lhe o curso, pois desde a Europa trazia desarmados
bergantins próprios para a exploração, quando a perda da capitânea fê-lo arrepiar caminho
para o porto de S. Vicente. Aqui esperou o irmão, Pero Lopes, que em seu lugar mandara às
águas platinas.
Desde 1514 chegaram à Europa, levados pela armada de d. Nuno Manuel, os
primeiros espécimes de metais preciosos, encontrados nas águas do grande rio. Alguns
companheiros de Solis, escapos à sanha dos índios, e depois tolerados, confirmaram estes
indícios vagos. Na Costa dos Patos alguns deles falavam com entusiasmo em tais riquezas.
Tais notícias nos Patos ou no próprio rio, colheu-as Cristóvão Jaques, cerca de
1522, e levou-as ao Reino. Na feitoria de Itamaracá então fundada, cursavam com tamanha
insistência que, em 1526, Sebastião Cabot, ouvindo-as ao aportar em Pernambuco, decidiu
logo navegar para Santa Catarina a ir tomar os náufragos de Solis e realizar o
descobrimento dos metais anunciados com tanta certeza e insistência. Viera mandado para
as Molucas, mas sabia que se triunfasse ninguém lhe lançaria em rosto o desvio, e tanto se
capacitou da realidade das minas que não hesitou em transgredir as instruções mais
restritas.
Apesar do insucesso final de Cabot, persistiu inabalável a crença nos tesouros
platinos; por isso quando, em Cananéia, Francisco de Chaves, grande língua do gentio,
pediu gente para fazer uma entrada e prometeu voltar no fim de dez meses com
quatrocentos escravos carregados de prata, Martim Afonso não conheceu hesitações.
A idéia parecia prática, pois dispensava de acompanhar o litoral até a foz do Prata e
subir por este além da fortaleza fundada por Cabot para procurar o Ocidente, onde tais
tesouros existiam. O capitão-mor deu quarenta besteiros e quarenta espingardeiros, que sob
as ordens de Pero Lobo partiram a 1 de setembro de 1531. Morreram às mãos dos índios,
sabe-se vagamente. Pelo mesmo tempo, navegando o oceano Pacífico, Francisco Pizarro
alcançou por caminho mais direto as terras dos Incas, procuradas até então pelo lado
cisandino.
Depois da perda da capitânea passou Martim Afonso a tratar da segunda parte da
sua missão: o povoamento da terra. Em S. Vicente fundou a primeira vila, à beira-mar;
algumas léguas para o interior, depois de transposta a serra do Mar, fundou segunda vila, na
borda do campo de Piratininga, à margem de um rio cujas águas fluíam para o Ocidente.
“Repartiu a gente nestas duas vilas”, escreveu Pero Lopes, “e fez nelas oficiais, e pôs tudo
em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolação, com verem povoar
vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios e viverem em comunicação das artes, e
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ser cada um senhor do seu e vestir as injúrias particulares, e ter todos os outros bens da vida
segura e conversável”.
A situação geográfica destas vilas explica-se pela proximidade das famosas riquezas
cobiçadas, pela facilidade de fazer as entradas, dez meses apenas para ir e voltar, garantia
Francisco de Chaves. Deslumbrado por tais vantagens, Martim Afonso esqueceu-se dos
franceses ou julgou arredados os motivos para temê-los depois da campanha energicamente
conduzida por Cristóvão Jaques e por ele continuada com tanto êxito e vigor.
Diogo de Gouveia, português residente em França, seguia desde muito o movimento
dos negócios naquele Reino e pensava de modo diverso. Em cartas e el-rei dava-lhe
notícias pouco tranqüilizadoras, e instava por uma solução real. A solução era não uma vila
afastada da zona freqüentada, mas diversos povoados na região apetecida do pau-brasil.
“Quando lá houver sete ou oito povoações, concluía, estas serão bastantes para defenderem
aos da terra que não vendam o brasil a ninguém e não o vendendo as naus não hão de
querer lá ir para vir de vazio”.
Dir-se-ia que os franceses leram estas palavras previdentes. Até então contentavam-
se com o simples resgate, quando muito alguma feitoria. Trataram agora de fundar uma
fortaleza, artilhada e com guarnição numerosa. Só assim considerou a corte lusitana “com
quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentado na terra e
ter nela feitas algumas forças, como já em Pernambuco começava a fazer”.
Estes fatos foram conhecidos no Reino graças à nau La Pèlerine, de Marselha, que,
procedendo de Pernambuco aonde deixara gente e artilharia, arribou a Málaga. Achava-se
no porto uma armada de Portugal, de 10 navios, destinados a Roma; d. Martinho,
embaixador, informado da falta de mantimentos que obrigava a arribada, forneceu trinta
quintais de biscoutos aos franceses, e convidou-os a navegarem de conserva até Marselha.
A cinco milhas de Málaga sobreveio calmaria; a pretexto de concertar a derrota a seguir
foram convidados o capitão e o piloto de La Pèlerine para vir a bordo da capitânea
portuguesa e, logo, presos, tomado o navio e remetido para Lisboa.
Não foi mais feliz a fortaleza galo-pernambucana. Pero Lopes, terminada a exploração do Prata, e já
de viagem para a Europa, bombardeou-a durante dezoito dias, e obrigou-a a render-se. Da guarnição parte foi
enforcada; outra, transferida ao Reino, passou longos meses de cativeiro nos calabouços do Algarve.
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V
CAPITANIAS HEREDITÁRIAS
A tomadia de La Pèlerine, a feitoria francesa fundada em Pernambuco, notícias de
preparativos para fundarem-se outras, espancaram finalmente a inércia real. Escrevendo a
Martim Afonso de Sousa a 28 de setembro de 32, anuncia-lhe el-rei a resolução de
demarcar a costa, de Pernambuco ao rio da Prata, e doá-la em capitanias de cinqüenta
léguas: a de Martim teria cem; seu irmão Pero Lopes seria um dos donatários.
A chegada do jovem guerreiro vitorioso em Pernambuco mostrou mais uma vez a
iminência do perigo. Talvez a isto se devam certas medidas desde logo tomadas ou pelo
menos discutidas: liberdade ampla de emigrar para o Brasil, preparo de uma armada de três
caravelas, cada uma com dez a doze condenados à morte, “per farli desmontar in terra, azió
habiano a domestigar quel paese, rispetto per non metter boni homini dabene a pericolo”,
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assegurava, a 16 de julho de 33, o veneziano Pietro Caroldo, a quem devemos esta notícia.
Tal armada veio efetivamente?
Sua vinda explicaria uma porção de pontos obscuros.
Os documentos mais antigos da doação das capitanias datam de 1534.
A demora entre o projeto e a execução pode explicar-se pela vontade régia de
esperar a volta de Martim Afonso, ou pela dificuldade de redigir as complicadas cartas de
doações e os forais que as acompanham ou, finalmente, pela falta de pretendentes à posse
de terras incultas, impróprias para o comércio desde o começo. Admira, até, como houve
doze homens capazes de empresa tão aleatória. A nenhum dos membros da alta fidalguia
tentou a perspectiva de semear povos.
Os donatários sairam em geral da pequena nobreza, dentre pessoas práticas da Índia,
afeitas ao viver largo da conquista, porventura coactas na malhas acochadas da pragmática
metropolitana. Muitos nunca vieram ao Brasil, ou desanimaram com o primeiro revés. el-
rei cedeu às pessoas a quem doou capitanias alguns dos direitos reais, levado pelo desejo de
dar vigor ao regime agora organizado; muitas concessões fez também como administrador e
grão-mestre da Ordem de Cristo.
Em tudo agiu “considerando quanto serviço de Deus e meu e proveito dos meus
reinos e senhorios, e dos naturais e súditos deles é ser a minha terra e costa do Brasil mais
povoada do que até agora foi, assim para se nela haver de celebrar o culto e ofícios divinos,
e se exaltar a nossa santa fé católica, com trazer e provocar a ela os naturais da dita terra
infiéis e idólatras, como por o muito proveito que se seguirá a meus reinos e senhorios, e
aos naturais e súditos deles de se a dita terra povoar e aproveitar”.
Os donatários seriam de juro e herdade senhores de suas terras; teriam jurisdição
civil e criminal, com alçada até cem mil réis na primeira, com alçada no crime até morte
natural para escravos, índios, peões e homens livres, para pessoas de mor qualidade até dez
anos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia (se o herege fosse entregue pelo
eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até morte natural, qualquer que fosse a
qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo somente se a pena não fosse capital.
Os donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insígnias, ao longo das
costas e rios navegáveis; seriam senhores das ilhas adjacentes até distância de dez léguas da
costa; os ouvidores, os tabeliães do público e judicial seriam nomeados pelos respectivos
donatários, que poderiam livremente dar terras de sesmarias, exceto à própria mulher ou ao
filho herdeiro.
Para os donatários poderem sustentar seu estado e a lei de nobreza, eram-lhe
concedidas dez léguas de terra ao longo da costa, de um a outro extremo da capitania, livres
e isentas de qualquer direito ou tributo exceto o dízimo, distribuídas em quatro ou cinco
lotes, de modo a intercalar-se entre um e outro pelo menos a distância de duas léguas; a
redízima (1/10 da dízima) das rendas pertencentes à coroa e ao mestrado; a vintena do pau-
brasil (declarado monopólio real, como as especiarias), depois de forro de todas as
despesas; a dízima do quinto pago à coroa por qualquer sorte de pedraria, pérolas, aljôfares,
ouro, prata, coral, cobre, estanho, chumbo ou outra qualquer espécie de metal; todas as
moendas dágua, marinhas de sal e quaisquer outros engenhos de qualquer qualidade, que na
capitania e governança se viessem a fazer; as pensões pagas pelos tabeliães; o preço das
passagens dos barcos nos rios que os pedissem; certo número de escravos, que poderiam ser
vendidos no reino, livres de todos os direitos; a redízima dos direitos pagos pelos gêneros
exportados, etc.
Os forais asseguravam aos solarengos: sesmarias com a imposição única do dízimo
pago ao mestrado de Cristo; permissão de explorar as minas, salvo o quinto real;
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aproveitamento do pau-brasil dentro do próprio país; liberdade de exportação para o reino,
exceto de escravos, limitados a número certo, e certas drogas defesas (pau-brasil,
especiarias, etc.); direitos diferenciais que os protegeriam da concorrência estrangeira;
entrada livre de mantimentos, armas, artilharia, pólvora, salitre, enxofre, chumbo e
quaisquer cousas de munições de guerra; liberdade de comunicação entre umas e outras
capitanias do Brasil.
Representantes do poder real só havia feitores, almoxarifes e escrivães, incumbidos
de arrecadar as rendas da coroa. Para várias capitanias existem nomeações de um vigário e
vários capelães: sempre el-rei ao lado do grão-mestre de Cristo.
Nas terras dos donatários não poderiam entrar em tempo algum corregedor, alçada ou
outras algumas justiças reais para exercer jurisdição, nem haveria direitos de siza, nem
imposições, nem saboarias, nem imposto de sal.
Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, d. João III tratou
menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com poderes
bastantes para arrostarem usurpações possíveis dos solarengos vindouros, análogas às
ocorridas na história portuguesa da média idade. Ao ouvidor da capitania, com ação nova a
dez léguas de sua assistência e agravo e apelação em toda ela, caberia o mesmo papel
histórico dos juízes de fora no além-mar.
Para evitar lutas como as que grassaram entre a coroa ainda enfraquecida e os
vassalos prepotentes, proibiu-se de modo absoluto “partir [a capitania e governança], nem
escaimbar, espedaçar, nem em outro modo alhear, nem em casamento a filho ou filha, nem
a outra pessoa dar, nem para tirar pai ou filho ou outra alguma pessoa de cativo, nem por
outra cousa ainda que seja mais piadosa porque minha tenção e vontade é que a dita
capitania e governança e cousas ao dito capitão e governador nesta doação dadas hão de ser
sempre juntas e se não partam nem alienem em tempo algum”. As dez ou mais léguas de
terras dadas aos donatários, espaçadas entre si e alienáveis em fatiotas, corresponderiam aos
reguengos lusitanos.
As capitanias foram doze, embora divididas em maior número de lotes. Começavam
todas à beira-mar, e prosseguiram com a mesma largura inicial para o ocidente, até a linha
divisória das possessões portuguesas e espanholas acordada em Tordesilhas, linha não
demarcada então, nem demarcável com os conhecimentos do tempo. Tàcitamente fixou-se
o limite na costa de Santa Catarina ao Sul, e na costa do Maranhão ao Norte. A testada
litorânea agora dividida estendia-se assim por 735 léguas.
No plano primitivo a demarcação devia ir de Pernambuco ao rio da Prata, meta de
que afinal ficou cerca de 12 graus afastada; nele não entrava a costa de Este-Oeste que,
entretanto, foi demarcada. Para a última decisão é possível afluíssem as notícias de Diogo
Leite, incumbido de explorar aquela zona. Só por considerações internacionais se poderia
explicar a fixação tácita dos limites do Brasil em 28º 1/3. O rio da Prata fora descoberta
portuguesa; mas os espanhóis já aí tinham estado bastante tempo, derramado sangue e
arriscado empresas: a eles competia por todos os direitos, a começar pelo tratado de
Tordesilhas.
A divisão das donatárias ainda não foi descrita tão concisa e geogràficamente como
nos seguintes termos de D’Avezac, o único que conseguiu dar certa forma a esta matéria
essencialmente refratária:
“O limite extremo da mais meridional destas capitanias, concedida a Pero Lopes de
Sousa, é determinado nas próprias cartas de doação por uma latitude expressa de 28º 1/3;
confrontava, um pouco ao Norte de Paranaguá, com a de S. Vicente, reservada a Martim
Afonso de Sousa, e que se estendia do lado oposto até Macaé, ao Norte de Cabo Frio,
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desenvolvendo assim mais de cem léguas de costa, mas em duas partes que encravavam,
desde São Vicente até a embocadura do Juquiriquerê, a de Santo Amaro, de dez léguas,
adjudicada a Pero Lopes, o irmão de Martim Afonso.
Ao Norte dos domínios deste estava a capitania de S. Tomé, cujas trinta léguas iam
expirar junto de Itapemirim; era o lote de Pero de Góis, irmão do célebre historiador
Damião de Góis.
Em seguida vinha a capitania do Espírito Santo, outorgada a Vasco Fernandes
Coutinho, cujo linde ulterior era marcado pelo Mucuri, que a separava da capitania de Porto
Seguro, atribuída a Pero do Campo Tourinho; esta prosseguia pelo espaço de cinqüenta
léguas até a dos Ilhéus, obtida por Jorge de Figueiredo Correia, igualmente de cinqüenta
léguas, cujo termo chegava rente à Bahia.
A capitania da Bahia, doada a Francisco Pereira Coutinho, se estendia até o grande
rio de S. Francisco; além estava a de Pernambuco, adjudicada a Duarte Coelho, e que
contava sessenta léguas até o rio Iguaraçu, junto ao qual Pero Lopes possuía terceiro lote de
trinta léguas, formando sua capitania de Itamaracá até a baía da Traição.
Neste lugar começava, para se estender sobre um litoral de cem léguas até angra dos Negros, a
capitania do Rio Grande, dada em comum ao grande historiador João de Barros e a seu associado Aires da
Cunha; da angra dos Negros ao rio da Cruz quarenta léguas de costas constituíam o lote concedido a Antônio
Cardoso de Barros: o rio da Cruz ao cabo de Todos-os-Santos, vizinho do Marano, eram adjucadas setenta e
cinco léguas ao vedor da fazenda Fernand’Alvares de Andrade: e além vinha enfim a capitania do Maranhão,
formando segundo lote para a associação de João de Barros e Aires da Cunha, com cinqüenta léguas de
extensão sobre o litoral, até a abra de Diogo Leite, isto é, até cerca da embocadura do Turiaçu”.
Das setecentas e trinta e cinco léguas de litoral demarcado para as capitanias
podemos desde já apartar as duzentas e sessenta e cinco doadas a João de Barros,
Fernand’Álvares, Aires da Cunhas e Antônio Cardoso de Barros. Os esforços para ocupá-
las mangraram; o povoamento fêz-se mais tarde, com gente nascida ou estabelecidas em
outros pontos do Brasil: representam uma formação secundária na história pátria. Convém
também apartar as duzentas e trinta e cinco léguas demarcadas entre o extremo da capitania
dos Ilhéus na baía de Todos-os-Santos e o rio Curupacé, e mais quarenta léguas de
Cananéia para a terra de Sant’Ana. Aqui houve logo tentativas de povoamento: ainda hoje
existem vilas fundadas na quarta década do século XVI; mas os colonos tiveram pela frente
a mata virgem, os rios encachoeirados, as serranias ínvias, não souberam vencê-los e só
impulsionaram a história do Brasil quando os venceram. A primeira vitória decisiva foi
ganha no rio de Janeiro, já no século XVIII, com o auxílio dos paulistas; desde então o Rio
figura como fator cada vez mais importante. Outros pontos, como Vitória, Porto Seguro,
Ilhéus, esperaram ou estão esperando as vias férreas.
Restam as cento e quarenta léguas estendidas da baía da Traição à de Todos-os-
Santos, as cinqüenta e cinco léguas inseridas entre o Curupacé e Cananéia, em outros
termos: a capitania de Duarte Coelho, parte da de Martim Afonso de Sousa, os troços da
capitania
*
da Bahia depois da morte do primitivo donatário.
A história do Brasil no século XVI elaborou-se em trechos exíguos de Itamaracá,
Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e S. Vicente, situados nestas cento e noventa e cinco
léguas de litoral.
Martim Afonso conservara-se na vila de S. Vicente à espera da gente mandada às
minas que, segundo a tradição, trucidaram os Carijós do Iguaçu, quando tornava da sua
arriscada expedição. Uma carta régia trazida por João de Sousa informou-o dos novos
planos de colonizar, deixando-lhe ao arbítrio permanecer ou tornar para o Reino. Em
*
de Pero Lopes de Souza, que acompanharam a de Duarte Coelho ou a de Martim Afonso e a capitania.
24
começo de 33 partiu para Portugal. Desde então seus feitos pertencerem a outras partes do
mundo.
Em seu lugar ficou governando no civil, concedendo sesmarias, provendo ofícios, o
padre Gonçalo Monteiro, também vigário. O governo das armas exerceram-no Pero de Góis
e Rui Pinto. O primeiro quis expulsar do Iguape alguns espanhóis que ali se refugiaram,
vindo do Paraguai. Surtiu-lhe mal o lance. Os espanhóis derrotaram a força, aprisionaram o
comandante, invadiram e saquearam S. Vicente. Ou achasse meio de fugir, ou aos inimigos
bastasse o escarmento, já estava no velho mundo em 1536, como se concluiu do foral de
sua capitania datado de 26 de fevereiro.
Desde Bertioga até o Cabo Frio continuavam implacáveis os Tupinambás,
combatendo e atacando por terra e por mar contra os Peró, e a favor dos Maïr. Num dos
combates sucumbiu Rui Pinto. Cunhambebe, truculento maioral tamoio, guardava entre os
outros troféus o hábito e a cruz de Cristo deste cavaleiro.
Aparece-nos entre os primeiros povoadores Brás Cubas, jovem criado de Martim
Afonso, que aportou a S. Vicente em 1540, governou mais de uma vez a terra, guerreou
contra os Tamoios, fortificou Bertioga, entrada preferida por estes inimigos, e fundou a vila
de Santos, que possuía melhor porto e facilmente superou a primogênita de Martim Afonso.
Mais tarde empenhou-se na cata de minas, e consta haver achado algum ouro.
À roda destas vilas fundaram engenhos, além dos portugueses, os flamengos Schetz
ou Esquertes, como o pronunciava o povo, e os Dorias, genoveses. Diz-se até, porém não
deve ser exato, que desta procedem as canas plantadas em outras capitanias. Tais engenhos,
com as distâncias e a raridade de comunicações, deviam ter desenvolvimento medíocre.
Da vila fundada em Piratininga conhecemos a mera existência ou pouco mais. A
situação no descampado dificultava surpresas inimigas. O trânsito do Paraguai dava-lhe
algum movimento. As cabanas de João Ramalho e dos mamalucos seus filhos e parentes,
no outro lado da serra donde as águas já corriam para o Prata, apregoavam a vitória
alcançada sobre a mata virgem do litoral, vitória obtida aqui mais cedo que em qualquer
outra parte do Brasil, porque os colonos apenas continuaram a obra dos indígenas, já
achando aberto por cima de Paranapiacaba e aproveitando a trilha dos Tupiniquins.
Na capitania de Pernambuco, depois de estabelecido Igaraçu, Duarte Coelho passou
algumas léguas mais ao Sul, e assentou a capital de seus domínios em Olinda. O porto de
somenos capacidade bastava às pequenas embarcações. A vizinhança dos Tabajaras
(Tupiniquins) compensava as investidas constantes dos Petiguares (Tupinambás). A energia
do donatário continha a turbulência dos colonos. Nas várzeas surgiam canaviais e
engenhos; a lavoura de mantimentos aproveitou os altos: pau-brasil existia no litoral e no
sertão; e estando esta capitania, de todas a mais oriental, a menor distância do Reino, aqui
mais que alhures freqüentavam os navios de além-mar, e prosperava o comércio. Os mares
piscosos traziam a fartura, e alentavam a costeagem; caravelões espantavam os franceses,
que desde então começaram a evitar aquelas paragens. O nome de Nova Lusitânia dado
pelo donatário à sua colônia, se por um lado figura esperanças de futuro, simbolizava por
outro o orgulho da própria obra. Nas armas concedidas por d. João III em 6 de junho de
1545 cinco castelos representavam os cinco centros de povoações criadas por Duarte
Coelho. Infelizmente conhecemos só Igaraçu, Olinda e, quiçá, Paratibe.
Da capitania de Itamaracá foram recursos para a de Pernambuco, quando os
Petiguares puseram cerco em Igaraçu e levaram-no aos últimos apuros. Mais tarde as
relações estremeceram. Queixa-se Duarte Coelho de desrespeitos constantes à sua
autoridade; de Itamaracá teve de retirar-se um capitão, por Duarte Coelho haver mandado
dar-lhe uma cutilada: a pequena distância gerou dissensões. Contudo, os colonos de Pero
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Lopes tiveram a habilidade de conciliar os Tupinambás da serra, e como não avançaram
pelo litoral para as terras do Paraíba, centro dos Petiguares amigos dos franceses, seu
desenvolvimento correu pacífico e contínuo por algum tempo.
Largos recursos naturais facilitavam a obra de Francisco Pereira Coutinho: baía
vasta como um mediterrâneo, esteiros numerosos franqueando entrada a cada passo,
correntes numerosas para moverem engenhos, matas virgens ao lado de terrenos mal
vestidos; onde o gado podia medrar à lei da natureza, situação vantajosa no centro das
outras capitanias.
Faltava pau-brasil na vizinhança, mas o afastamento dos franceses, daí resultante,
compensava bem a pobreza e, não instigados pelos franceses, os Tupinambás mostrariam
disposições menos malévolas. Por que não foi avante, com tudo isso, Francisco Pereira
Coutinho?
Não soube dominar os elementos que importou, nem se impôs à indiada das
adjacências. Tais apuros sofreu quem pereceria sem os socorros mandados dos Ilhéus.
Mais tarde recolheu-se a Porto Seguro, cansado e velho, pouco disposto a continuar;
mas os ânimos serenaram na Bahia, e tornava esperançado, quando foi morto ao
desembarcar. Nas lutas com os índios mandara matar um dos cabecilhas: prisioneiro agora,
foi ritualmente sacrificado por um irmão do finado, de cinco anos, tão pequeno que foi
preciso segurarem-lhe a massa do sacrifício, segundo tradição conservada num escrito
jesuítico.
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26
VI
CAPITANIAS DA COROA
A morte de Francisco Pereira apenas se divulgou no Reino devia convidar os políticos a meditar
sobre o sistema de colonização vigente.
Sem dúvida satisfazia a alguns dos primitivos intuitos que o inspiraram. As
fortalezas espalhadas pelo litoral estorvavam, se não suprimiam de todo, o trato entre os
indígenas e os entrepolos. Os franceses, expulsos de Pernambuco, procuravam outros
pontos, e deles seria possível excluí-los com o tempo. Iam nascendo filhos de portugueses,
a população crescia com a mestiçagem, regularizava-se a produção e o comércio.
Mas um vício constitucional minava o organismo. Os donatários entravam para a
empresa com recursos próprios ou emprestados: se os primeiros tempos corriam bem, a
remuneração natural permitia-lhes continuarem com mais eficácia; no caso contrário
perdia-se todo o esforço, como sucedera a Pero de Góis, a Francisco Pereira, a Antônio
Cardoso, a João de Barros, a Aires da Cunha, a Fernand’Álvares; ou as capitanias
vegetavam mofinas, como a dos Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Santo Amaro e São
Vicente.
Acrescia que, sendo iguais os poderes dos donatários, estando as capitanias na
condição de estados estrangeiros umas relativamente às outras, impossibilitava-se qualquer
ação coletiva: os crimes proliferavam na impunidade, a pirataria surgia como função
normal. As cartas de Duarte Coelho ilustraram de modo pungente esta anarquia lastimosa.
E a anarquia intercapitanial conjugava-se com a anarquia intestina. Autoridades e mais
autoridades, leis claras, prescrições restritivas havia: qual o meio de pô-las em atividade e
dar-lhes força? Como imobilizariam os donatários em funções de governo recursos que não
sobejavam para misteres econômicos?
O remédio preferido por d. João III consistiu em tomar posse da capitania deixada
devoluta pela morte de Coutinho, com os recursos da coroa estabelecer uma organização
mais vigorosa, criar um governo geral, forte bastante para garantir a ordem interna e
estabelecer a concórdia entre os diversos centros de população.
Rasgaram-se assim doações e forais, onde só estavam previstos conflitos entre
solarengos e senhores hereditários, e só se fitava equiparar a situação destes à do rei contra
os poderosos vassalos medievais. Os poucos protestos dos interessados passaram
desatendidos, e em 1549, sem abolir de todo o sistema feudal, instituiu-se novo regime.
Constava de um capitão-mor, incumbido da administração civil e militar, de um
provedor-mor, encarregado dos negócios da fazenda, de um ouvidor-mor, chefe da justiça.
Exerciam a autoridade primariamente na Bahia; nas outras capitanias tinham delegados;
quando iam a qualquer delas, competia-lhes conhecer de ação nova; na ausência agiam só
por meio de recursos. Numerosos, excessivos oficiais distribuíam-se por estes três
ministérios ou desfrutavam magras sinecuras.
Acompanhado por quatrocentos soldados, seiscentos degradados, muitos mecânicos
pagos pelo erário, partiu de Lisboa em fevereiro o primeiro governador, Tomé de Sousa,
com Pero Borges, ouvidor-geral, Antônio Cardoso de Barros, procurador-mor da fazenda, e
aportou à baía de Todos-os-Santos em fins de março de 1549.
Saltando em terra tratou logo de escolher local apropriado para a cidade que vinha
fundar, de fortalecê-la contra os ataques da gente de terra e construir os edifícios mais
urgentes.
27
A gente ia desembarcando à medida que se preparavam as acomodações. Caravelões
mandados a diversos pontos da costa, em constante escambo com os naturais, traziam
algum mantimento. O peixe abundante variava os gêneros conservados ou, mais
provavelmente, avariados, procedentes de Portugal. De Cabo Verde veio algum gado, para
cuja propagação o terreno provou admiravelmente. Os pagamentos faziam-se em gêneros,
principalmente ferramentas e avelórios, que depois os interessados permutavam entre si ou
com os indígenas.
Com estes elementos o governador impediu a desordem na capital. O provedor-mor
e o ouvidor-geral em viagens continuadas pelas capitanias reprimiram muitos abusos.
Em companhia do capitão-mor vieram seis jesuítas, os primeiros mandados a este
continente, sobre cujos destinos tanto deveriam mais tarde pesar. Completaram
harmonicamente a administração, pois tanto como Tomé de Sousa ou Pero Borges, o padre
Manuel da Nóbrega obedecia ao sentimento coletivo, trabalhava pela unidade da colônia, e
no ardor de seus trinta e dois anos achava ainda pequeno o cenário em que se iniciava uma
obra sem exemplo na história.
Seus esforços perdiam-se na indiferença ou hostilidade dos outros eclesiásticos. Por
isto, com insistência e franqueza apostólicas lembrava a el-rei a conveniência de mandar
um bispo, único meio de trazer ao aprisco as ovelhas e conter os lobos. Criou-se um
bispado; em junho de 52 chegou à diocese d. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro bispo do
Salvador.
Com o segundo governador, d. Duarte da Costa (1553-1557), esteve em luta
constante o velho prelado, das lutas comuns em mais vasto, e inevitáveis em tão acanhado
teatro, dadas as relações vigentes entre o poder civil e o poder eclesiástico. A sociedade de
Salvador cindiu-se ao meio, acirravam paixões e cavavam ódios as pessoas de maior
responsabilidade, e a multidão ignara atirou-se na refega, como se meras questiúnculas de
poderio representassem interesses vitais. Variando apenas de forma, tais conflitos
repetiram-se durante os séculos seguintes. Só perderam importância depois que as
constituições modernas eliminaram os resíduos da concepção medieval das duas sociedades
perfeitas.
Os jesuítas, superiores e alheios a este debate, concentraram seus esforços na
capitania de S. Vicente.
Transpondo a serra do Mar, estabeleceram na ribeira do Tietê uma primeira missão
que tomou o nome do apóstolo das gentes (25 de janeiro de 54).
Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no planalto, a presença
de tribos próprias à conversão por uma índole mansa e, além do afastamento dos
portugueses, certas idéias vagas de penetração entre os índios de Paraná e Paraguai. O
nome de S. Paulo, agora ouvido pela primeira vez, devia ecoar poderosamente no futuro.
Os franceses repelidos de Pernambuco por Duarte Coelho, contidos ao centro pela
cidade do Salvador e mais vilas de baixo, afastaram-se dos lugares até ali mais
freqüentados e passaram à capitania de Pero de Góis e terras vizinhas pertencentes a
Martim Afonso, onde por muitas léguas dominavam os fiéis Tamoios, e existia pau-brasil
em abundância.
Navios avulsos, aventureiros conhecedores da língua geral, identificados com os
índios a ponto de lhes não repugnar a iguaria da carne humana, estabeleceram relações que,
se não impediram o progresso dos portugueses, criaram-lhe sérios embaraços, e durante 23
[anos] trouxeram indecisa a vitória, e talvez a decidissem contra Portugal se mais
persistentes foram seus adversários.
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Cumpria coordenar estes elementos. Lembraram-se os franceses de um regime
híbrido, com parte dos capitais adiantada por particulares, parte fornecida pelo rei que,
entretanto, não se responsabilizaria pela empresa e só a perfilharia em caso de bom êxito.
À frente da expedição colocou-se Nicolas Durand de Villegaignon, notável pela
valentia e pelo saber. Partindo de Brest, chegou em novembro de 55 ao Rio de Janeiro, seu
destino. Estabeleceu-se numa ilha da baía, posição esplêndida contra os índios com cuja
amizade contava, imprópria pela falta de água a resistir aos portugueses, cujos ataques
poderiam tardar mas não faltariam; com duas fortalezas formidáveis armou-a; fez amado e
querido dos indígenas circunvizinhos o nome de Pay Colas; por mais de uma vez recebeu
imigrantes da Europa.
Da assistência na ilha, pequena, rochosa, sem água nativa, sugiram inconvenientes
graves para o sustento da guarnição, sujeita assim aos caprichos dos Tamoios. A severidade
puritana do chefe descontentou a soldadesca. Os imigrantes trouxeram questões religiosas
para a comunidade. O chefe teve de mostrar-se severo, talvez cruel. Chegaram más notícias
e sérias queixas ao velho mundo, tolhendo as correntes simpáticas. Afinal, desiludido do
futuro imediato da colônia, ou convencido de que sua presença excitaria a tibieza e
despertaria a confiança dos armadores da metrópole, ou desejoso de entrar nos conflitos
muito mais brilhantes e gloriosos que se feriam além-mar, Villegaignon retirou-se em 59 da
França Antártica.
Sucedeu-lhe seu sobrinho Bois le Comte, que manteve a situação sem melhorá-la.
Como poderia fazê-lo? Para ser bem sucedidos os franceses deviam ter vindo uns vinte
anos antes, quando os portugueses não tinham ainda criado raízes. Era tarde agora. Mem de
Sá, à frente de uma armada, penetrando na baía, precisou apenas de três dias de fogo
nutrido para desvanecer todos os castelos, em março de 60.
A vitória portuguesa foi realçada por dois sucessos logo ocorridos nas capitanias de
Martim Afonso e Pero Lopes.
Mem de Sá mudou a antiga vila de Santo André, reunindo-a à missão jesuítica de
Piratininga. Por este ou outro motivo, os Tupiniquins se insurgiram e puseram em cerco o
povoado. Os catecúmenos dos jesuítas declararam-se contra seus próprios parentes, que
foram repelidos, e não tornaram mais. A favor dos portugueses bateu-se heroicamente
Martim Afonso Tibiriçá (julho de 62).
No ano seguinte Nóbrega pôde realizar o plano longamente amadurecido de
entabular pazes com os Tamoios, que navegando pela Bertioga traziam em contínuo
sobressalto os moradores de Santo Amaro e de S. Vicente. Em companhia de José de
Anchieta, jovem jesuíta vindo com d. Duarte da Costa, e já muito conhecedor da língua
geral, embarcou para Iperoig, nas cercanias da hodierna Ubatuba, e depois de alguns meses
de assistência dramática, em que mais de uma vez a vida de ambos correu perigo, lograram
o almejado escopo (setembro de 63).
Desafrontado o sertão, desoprimida a marinha do Norte, o povo da capitania pôde
auxiliar Estácio de Sá, mandado em 64 à conquista do Rio, dominado ainda pelos inimigos
de aquém e além-mar, sem embargo da vitória recente.
Com os navios e gente levados da Bahia, com índios tomados no Espírito Santo,
canoas e auxiliares colhidos em S. Vicente, Estácio começou a fundar a cidade de São
Sebastião em 1 de março de 65.
Ao contrário de Villegaignon, estabeleceu-se em terra firme, logo à entrada da
barra, com a frente para o levante. Juntamente com a cerca artilhada, começou as
plantações, sem se fiar nos mantimentos que poderiam vir das capitanias. Mesmo assim
curtiu bravas fomes. Multiplicaram ciladas e surpresas os índios do recôncavo; duas vezes o
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atacaram naus francesas reunidas aos Tamoios de Cabo Frio. O jovem herói resistiu durante
dois anos; se não consumou avanços consideráveis, enfraqueceu bastante as forças dos
aliados, de modo que à chegada do seu tio Mem de Sá, com fortes socorros, dois combates,
um em Ibiraguaçu-mirim (morro da Glória?), outro na ilha de Paranapecu, mais tarde
chamada do Governador, bastaram para tornar definitivo o domínio dos portugueses.
Tendo Estácio de Sá sucumbido às conseqüências de ferimentos recebidos em
combate, o governador seu tio demorou mais de um ano na cidade, transferiu-a mais para
dentro da baía, para o morro agora chamado do Castelo, que muniu de fossos, cercou de
muros, enriqueceu de edifícios, como cumpria a uma cidade real (1567-1568). Ficou esta
sendo a segunda capitania da coroa, conquanto pelos termos da carta de doação devesse
pertencer a Martim Afonso.
Outras guerras houve por este tempo no Espírito Santo, em Porto Seguro, nos
Ilhéus, na Bahia, cujos índios ficaram sujeitos desde Camamu até Itapecuru, distância de
quarenta léguas.
Com a derrota dos naturais de Paraguaçu e Ilhéus destruiu-se o que poderíamos
chamar uma marca da língua geral, e irromperam os Tapuias, até então sopeados. Ninguém
lucrou com a substituição: “os Aimorés, homens robustos e feros, andam sempre pelo mato,
no qual bastam quatro para destruir um grande exército”, geme um contemporâneo. Só no
século seguinte se remediou o mal.
Estes feitos bélicos não constituem todo o governo de Mem de Sá, homem da toga,
desembargador da casa da Suplicação. Entre todos seus serviços sobreleva o auxílio
prestado a Nóbrega para realizar a obra das missões.
Esgotaria todos os préstimos dos Brasis fornecerem matéria prima para a
mestiçagem e para os trabalhos servis, meras máquinas de prazer bastardo e de labuta
incomportável? Se não com palavras, isto afirmavam os colonos de modo menos ambíguo
por atos repetidos em pertinácia invariável. Ora, os jesuítas representavam outra concepção
da natureza humana. Racional como os outros homens, o indígena aparecia-lhes educável.
Na tábua rasa das inteligências infantis podia-se imprimir todo o bem; aos adultos e velhos
seria difícil acepilhar, poderiam, porém, aparar-se arestas, afastando as bebedeiras, causa de
tantas desordens, proibindo-lhes comerem carne humana, de significação ritual repugnante
aos ocidentais, impondo quanto possível a monoginia, começo de família menos lábil. Para
tanto cumpria amparar a pobre gente das violências dos colonos, acenar-lhe com
compensações reais pela cerceadura de maus hábitos inveterados, fazer-se respeitar e
obedecer, tratar da alimentação, do vestuário, da saúde, do corpo enfim, para dar tempo a
formar-se um ponto de cristalização no amorfo da alma selvagem. Tal a idéia de Nóbrega,
representada essencialmente pela Companhia de Jesus nos séculos de sua fecunda e
tormentosa existência no Brasil. Já o tentara em Piratininga; podia agir com mais eficácia
agora, escudado pelo governador-geral.
As primeiras missões estabelecidas à roda da baía de Todos-os-Santos ficavam em
ponto cuidadosamente escolhido, perto do mar para os índios se poderem manter com suas
pescarias, e perto das matas para poderem fazer seus mantimentos; reuniam-se numa várias
aldeias, sujeitas a um só chefe ou meirinho, reconhecido pelos padres como o mais capaz
de colaborar nesta obra de depuramento, e nela residiam um padre e um irmão, que a tudo
superintendiam. A vida nas missões resume-a assim um jesuíta contemporâneo: “Ensinam-
lhes os padres todos os dias pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa, para os
que a quiserem ouvir antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos na
escola, onde aprendem a ler e escrever, contar e outros bons costumes, pertencentes à
polícia cristã; à tarde tem outra doutrina particular a gente que toma a Santíssimo
30
Sacramento. Cada dia vão os padres visitar os enfermos com alguns índios deputados para
isso; e se têm algumas necessidades particulares lhes acodem a elas; sempre lhe ministram
os sacramentos necessários... O castigo que os índios têm é dado por seus meirinhos feitos
pelos governadores e não há mais que quando fazem alguns delitos, o meirinho os manda
meter em um tronco um dia ou dois, como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da
justiça... Os padres incitam sempre aos índios que façam sempre suas roças e mais
mantimentos, para que, se for necessário, ajudem com eles aos portugueses por seu resgate,
como é verdade que muitos portugueses comem das aldeias, por onde se pode dizer que os
padres da Companhia são pais dos índios, assim das almas como dos corpos”.
Começada em 58, a obra das missões tomou um desenvolvimento rápido nos anos
seguintes, principalmente no provincialato de Luís da Grã. Com a mesma rapidez decaíu,
sobretudo em conseqüência do fato, misterioso e até agora inexplicável, que condena ao
desaparecimento os povos naturais postos em contacto com os povos civilizados. Nem por
isso foi abandonada a empresa que com vário sucesso aturou a meados do século XVIII.
Em Pernambuco acelerava-se por esse tempo o movimento para a fronteira
meridional no rio S. Francisco. Durante a menoridade de Duarte de Albuquerque Coelho
(1554-1560), seu tio Jerônimo de Albuquerque franqueou a vargem do Capibaribe. O
jovem donatário e Jorge, seu irmão, vindo de Portugal para o Brasil, conquistaram as terras
do cabo de Santo Agostinho e as de Serinhaém. Nas do cabo fundou oito engenhos João
Pais Barreto, tronco de família numerosa ainda existente. Seguiram-se guerras pelo interior
a pretexto de minas, mas realmente inspiradas pelo desejo de cativar escravos. Nelas
figurou Antônio de Gouveia, clérigo epiléptico, sujeito a visões, que pretendia conversar
familiarmente com o diabo, em nem um lugar podia estar sossegado, a ponto de fugir até
das prisões do Santo Ofício, e era tido e tinha-se por nigromántico. Dava-se por entendido
em minas esta sinistra ave de arribação, lembrada na imaginação popular com o nome de
Padre do Ouro. Por sua causa diz-se que Duarte de Albuquerque Coelho foi preso para o
Reino. Antônio de Salema veio a Pernambuco abrir devassa com alçada sobre este e outros
negócios.
Com a morte de Mem de Sá, em março de 72, pareceu conveniente dividir o Brasil
em dois governos, sujeitos às cidades reais do Salvador e de S. Sebastião.
Luís de Brito de Almeida pretendeu passar além do rio Real e incorporar Sergipe. Já
os Jesuítas tinham preparado o terreno para a penetração pacífica por meio de missões, mas
a cobiça dos colonos e as manhas de alguns mamalucos tudo arruinaram.
No Rio, Antônio Salema, auxiliado pelo capitão-mor de S. Vicente, deu guerra aos
índios de Cabo Frio e pacificou o território entre a cidade de S. Sebastião e Macaé,
distância de trinta léguas na estima do tempo. Foram mortos muitos dos Tamoios,
escravizados não poucos, e alguns incorporados aos aldeamentos jesuíticos. Quem pôde
emigrou para o sertão. Os franceses desta feita receberam um golpe de que não puderam
mais recobrar inteiramente.
Apareceram várias tentativas de procurar pedras preciosas, principalmente na Bahia
ao Espírito Santo. Sebastião Tourinho e outros varam a serra do Espinhaço, em busca de
esmeraldas. Em S. Vicente ocupa-se Brás Cubas na pesquisa de minas. Nada produziram de
sólido tais esforços. Mais importante que eles é o desaparecimento dos índios, trazendo
como conseqüência o aumento da importação africana.
“A gente que de vinte anos a esta parte[1583] é gastada nesta Bahia, parece cousa
que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca,
quanto mais em tão pouco tempo”, escreve um jesuíta. “Porque nas quatorze aldeias que os
padres tiveram se juntaram 40.000 almas, estas por conta e ainda passaram delas, com a
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gente com que depois se forneceram, das quais se agora as três igrejas que ha tiveram 3.500
almas será muita.
“Há seis anos que um homem honrado desta cidade e de boa consciência e oficial da
câmara que então era, disse que eram descidos do sertão de Arabó naqueles dois anos atrás
20.000 almas por conta, e estes todos vieram para a fazenda dos portugueses. Estas 20.000
com as 40.000 das igrejas fazem 60.000. De seis anos a esta parte sempre os portugueses
desceram gente para suas fazendas, quem trazia 2.000 almas, quem 3.000, outros mais,
outros menos. Veja-se de dois anos a esta parte o que isto podia somar, se chegam ou
passam de 80.000 almas.
“Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros de
Guiné e mui poucos da terra, e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu. Donde
bem se mostra o grande castigo de Deus dado por tantos insultos como são feitos e se
fazem a estes índios, porque os portugueses vão ao sertão e enganam a esta gente, dizendo-
lhes que se venham com eles para o mar e que estarão em suas aldeias como lá estão em
sua terra e que seriam seus vizinhos. Os índios crendo que é verdade vêm-se com eles e os
portugueses por se os índios não arrependerem lhes desmancham logo todas as suas roças e
assim os trazem, e chegando ao mar os repartem entre si, uns levam as mulheres, outros os
maridos, outros os filhos e os vendem”.
Por que insistiam os colonos em apossar-se de uma fazenda, cuja pouca valia a cada
passo se devia patentear de modo menos inequívoco?
Já sofriam de um achaque ainda hoje observado a todos os momentos entre seus
descendentes: a incapacidade de formar convicção firme sobre um assunto e por ela pautar
seus atos. Acresce que os escravos indígenas com todos esses percalços, auxiliavam
extraordinariamente aos que começaram a vida nestas terras... E a primeira coisa que
pretendem adquirir são escravos, para neles lhes fazerem suas fazendas, informa Gandavo;
e se uma pessoa chega na terra a alcançar dois pares, ou meia dúzia deles (ainda que outra
cousa não tenha de seu) logo tem remédio para poder honradamente sustentar sua família:
porque um lhe pesca, e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e grangeiam suas roças e
desta maneira não fazem os homens despesa em mantimentos nem com eles, nem com suas
pessoas.
———
VII
FRANCESES E ESPANIS
Em 1580 extinguiu-se a dinastia de Avis. Filipe II da Espanha, neto de d. Manuel, apoiando suas
pretensões pelas armas, sucedeu a d. Henrique, e incorporou à casa de Habsburgo o trono português. Com
Portugal cairam todas suas possessões sob o domínio espanhol.
Para o Brasil as primeiras conseqüências deste estado de cousas foram favoráveis.
Os limites naturais da colônia indicaram-nos o Amazonas e o Prata. De ambos separavam o
povoado distâncias sempre enormes. Agora, se as distâncias persistiam as mesmas, podia-se
em compensação concentrar os esforços num só sentido, em vez de dissipá-los por ambos.
Esperaria o Prata, já ocupado em parte; urgia senhorear o Amazonas, ainda não investido,
mas já cobiçado por diversas nações. Assim, caminho do Prata o trabalho reduziu-se a mera
consolidação, ao estreitamento de malhas; para o Amazonas a expansão colonizadora
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moveu-se acelerada. Por isso, preferindo a ordem cronológica para a expansão amazônica,
seguiremos a ordem geográfica no outro extremo.
Vindo do sul, encontrava-se a Cananéia habitada por gente ida da capitania de São
Vicente, que também procurava recôncavo de angra dos Reis, e já se comunicava com a
cidade de São Sebastião, pela baixada de Santa Cruz, onde os jesuítas começavam uma
fazenda famosa. Nas terras do Cabo Frio os franceses continuavam a freqüentar,
naturalmente menos a miúdo e com menor proveito.
Por fim, Constantino Menelau, depois de vencê-los, obstruiu o porto, e Estevão
Gomes estabeleceu uma pequena fortaleza. Flagelados pelas bexigas, os Guaitacás
aproximaram-se dos brancos que os poderiam socorrer. Para a conciliação muito contribuiu
o jesuíta Domingos Rodrigues.
Este mesmo Domingos Rodrigues, mais tarde egresso da Companhia de Jesus, em
Ilheus, Álvaro Rodrigues Adôrno, na Cachoeira, levaram a bom termo a pacificação dos
Aimorés. Por este modo desde o Rio até a cidade do Salvador cessaram temporariamente
suas devastações os tão temidos Tapuias do litoral, que só reaparecem pelos meados do
século.
Ao Norte da Bahia apresenta-se como mais notável o fato da conquista de Sergipe.
Desde os últimos tempos de Mem de Sá a empresa afigurara-se fácil, pois não cessavam
mensagens pedindo aos padres da Companhia que fossem até lá levar a boa nova. Com os
dois jesuítas mandados a este fim partiram os soldados e mamalucos, ávidos de escravos,
que plantaram a sizania entre os Tupinambás, e alienaram sua confiança. Todas as
desconfianças confirmou o governador Luís de Brito de Almeida no ano de 74, fazendo
guerra implacável aos índios, aprisionando uns, afugentando outros, devastando aquelas
comarcas, por simples desfastio destruidor, poderia crer-se; pois durante cerca de dois
decênios quedou estacionária a obra colonizadora.
Em fins de 89, Cristóvão de Barros, governador interino por morte de Manuel Teles
Barreto, repetiu de novo a tentativa, com melhor êxito. Parte da força seguiu por mar, parte
por terra, e reunidos deram em várias cercas dos naturais, que foram derrotados.
Acossando estes, penetraram alguns aventureiros até o rio S. Francisco. No
território devoluto Cristóvão de Barros separou uma enorme sesmaria para o filho; esta
serviu de craveira para outras, e dentro em pouco não havia mais o que distribuir. Com esta
campanha os franceses perderam as antigas ligações no rio Real.
Na capitania de Duarte Coelho continuou o movimento para o rio S. Francisco.
Fazendas de gado ou canaviais avançaram pelo território das Alagoas. Entre os povoadores
desta região avulta o alemão Lins, que deixou larga descendência, e João Pais, de quem já
se falou. Também daqui os franceses tiveram de retirar-se.
Nos primeiros anos do século 17, podia-se viajar e viajava-se efetivamente por terra
da Bahia até Pernambuco sem encontrar resistência séria por parte dos naturais, vencidos
ou afugentados da marinha. O único obstáculo ao livre trânsito apresentava a passagem dos
rios maiores, direito real, como já vimos. Os rios menores eram passados nos vaus, e assim
continuaram nos séculos seguintes; pelos vaus pode-se traçar a borda da primitiva ocupação
litorânea.
Vejamos agora a marcha para o Amazonas.
Longo tempo estacionara o povoamento na ilha de Itamaracá e no continente
fronteiro. Os Petiguares da serra entretinham boas relações com os colonos, que visitavam
pacificamente as aldeias; os da praia, sempre amigos dos franceses, faziam com estes bons
negócios na Paraíba, onde não os perturbavam os portugueses, contentes com breves
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excursões à procura de âmbar, abundante por aquelas plagas até o Ceará, e com o pau-brasil
trazido do interior pelos próprios índios.
Em 74, por causa de uma cunhã do sertão, desaveio-se a gente deste com a da
Goiana, e começam as hostilidades. Foram assaltados e queimados dois engenhos, e com
esta fácil vitória mais se assanharam as paixões dos assaltantes. A guerra levianamente
provocada havia de durar vinte e cinco anos.
A mandado de Luís de Brito, o ouvidor-geral, Fernão da Silva, partiu para a Paraíba,
afugentou a indiana com simples presença, lavrou autos que ficaram só no papel. Frutuoso
Barbosa, homem de fortunas, ofereceu-se à metrópole para ultimar a conquista se lhe
concedessem certas mercês. Com elas chegou em 80 a Pernambuco, mas nada logrou fazer,
porque um temporal atirou-o para as Antilhas e de lá à Europa. Da segunda vez não se
animou a tentar estabelecimento algum; limitou-se a queimar navios franceses.
Em 83 aportou à Bahia Diogo Flores Valdez, vindo de uma viagem malograda ao
estreito de Magalhães. Ao governador insinuou-se como capaz desta conquista, e na
monção seguinte partiu com uma armada espanhola e algumas embarcações portuguesas
para Pernambuco. Organizou-se ao Recife uma expedição marítima e outra terrestre. Por
mar, Diogo Flores chegou sem embaraço a seu destino, queimou alguns navios franceses
carregados de pau-brasil, fundou um forte, nele deixou uma guarnição de compatriotas
seus; a gente ida por terra saiu vitoriosa de vários reencontros e fundou um povoado, a
cidade Filipéia, como a chamou Frutuoso Barbosa, em honra do dinasta reinante. O
castelhano Castejón ficou por alcaide do forte, e Frutuoso Barbosa tomou conta da cidade.
Amassaram-se mal o chefe civil e o chefe militar; a discórdia lavrou entre
castelhanos e portugueses. Os Petiguares, aterrados pelos primeiros embates, voltaram logo
em chusmas densas e mais arrogantes. Guiavam-nos franceses dos diversos navios
queimados, sedentos de vingança, cônscios da importância capital desta partida, em que se
disputavam terrenos de seu domínio exclusivo durante tantos anos.
Castejón portou-se com bravura; socorros de Pernambuco expedidos por Martim
Leitão, ouvidor-geral, nunca lhe faltaram. O próprio ouvidor-geral lá foi, em março de 86,
com quinhentos homens brancos e muitos índios em sua companhia. Mas os índios e os
franceses continuavam cada vez mais afoitos e mais ardentes. Desanimado, Frutuoso
Barbosa desistiu de seus direitos e retirou-se para Olinda. Castejón resistiu até junho; ao
retirar-se tocou fogo no forte, quebrou o sino, meteu a pique um navio, lançou a artilharia
ao mar. Ficava aniquilado todo o trabalho.
Anos antes, aventureiros pernambucanos, guerreando no rio S. Francisco,
houveram-se tão aleivosamente com os Tabajaras, os antigos e fiéis aliados desde o tempo
de Duarte Coelho, que estes o mataram a todos, fugiram dos lugares nefastos, e por uma
das gargantas da Borborema procuraram a terra da Paraíba para combater os brancos,
aliando-se embora aos Petiguares, seus inimigos hereditários e irreconciliáveis da língua
geral. Martim Leitão, quando saiu de Olinda em auxílio de Castejón, reconheceu-os e
entabulou negociações, esperando trazê-los à antiga amizade. Os Tabajaras não se deixaram
requestar e prepararam-se para o combate: traiu-os a sorte, apesar da valentia de Braço de
Peixe e Assento de Pássaro, os dois chefes tupiniquins.
Esta derrota despertou o ódio avito dos Tupinambás que se tornaram contra os
novos aliados, malsinando-os de covardes, tratando-os de traidores, obrigando-os a
tornarem às terras donde vieram. Soube-o Martim Leitão, e mandou emissários a Piragibá,
prometeu o esquecimento das injúrias recentes, anunciou auxílios prontos, instou por sua
permanência, renovando as antigas pazes. Cedeu o Braço de Peixe; com a intervenção de
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João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, passaram os Tabajaras a combater ao lados dos
portugueses.
Em agosto 5, dia de Nossa Senhora das Neves, João Tavares recomeçou a obra aniquilada pela
defecção de Castejón, auxiliada agora pela gente de Braço de Peixe e Assento de Pássaro, mas perturbada
sempre pelos Petiguares e pelos franceses. Mais duas vezes tornou Martim Leitão à Paraíba. Sua ação sempre
fecunda e prestigiosa pode resumir-se em poucas palavras: queimou navios, queimou pau-brasil já cortado,
queimou aldeias, arrancou plantações, inutilizou mantimentos na baía da Traição, na serra de Copaoba, no
Tijucopapo.
Em maio de 87, Martim Leitão considerou terminada sua missão, e voltou para
Pernambuco, depois de lançar os alicerces para um engenho real. Enganava-se, porém;
prosseguiram constantes as guerras durante mais de dez anos, no sertão, no litoral com as
naus francesas, que chegaram a cercar a fortaleza do Cabedelo, com os Petiguares, a quem
a presença dos franceses, privados de ir para sua terra pela queima das naus que os deviam
conduzir, comunicaram uma audácia e uma persistência bem alheias à índole indígena.
Destes incidentes ignoramos a história; a crônica apenas guarda os nomes de Pero Lopes,
Feliciano Coelho, Pero Coelho, talvez Ambrósio Fernandes Brandão, o autor possível dos
Diálogos das Grandezas do Brasil. Do lado dos franceses a tradição lembra Rifault, cujos
feitos não podem aliás ser precisados á falta de documentos.
Tantos anos agitados e tão desesperada resistência patentearam a urgência de ocupar
o rio Grande onde os inimigos perenemente se refaziam. De lá sairam uma vez treze navios
para tomar Cabedelo e o combate durara de uma sexta a uma segunda-feira. Em suas águas
chegaram a se reunir vinte navios procedentes de França. Muitos franceses mestiçaram com
as mulheres indígenas, muitos filhos de cunhãs se encontravam já de cabelo louro: ainda
hoje resta um vestígio da ascendência e da persistência dos antigos rivais dos portugueses
na cabeleira de gente encontrada naquela e nos vizinhos sertões de Paraíba e Ceará.
A expedição ao rio Grande, concebida no governo de d. Francisco de Sousa,
aparelhada de recursos abundantes, dirigida desde Pernambuco por Manuel de Mascaranhas
Homem, lugar-tenente do donatário, e Alexandre de Moura, que devia suceder no mando,
repartiu-se por terra e por mar. A divisão marítima, comandada por Manuel de
Mascaranhas, a quem se agregou Jerônimo de Albuquerque, chegou felizmente a seu
destino em janeiro de 98. Parte da divisão terrestre, encabeçada por Feliciano Coelho,
capitão-mor da Paraíba, venceu a resistência dos inimigos, mas dissolveu-se ante uma
epidemia de bexigas. A praga passou também ao inimigo, e serviu para dar folgas a Manuel
de Mascaranhas, aliás acometido mais de uma vez no forte que começara.
Em março, Feliciano Coelho outra vez marchou para o rio Grande, depois de reunir as suas forças,
reduzidas agora à metade pela doença e pela retirada do contigente de Pernambuco. Com este reforço, Manuel
de Mascaranhas concluiu o forte dos Reis Magos, e entregou-o a Jerônimo de Albuquerque, nomeado para
comandá-lo. À sua sombra medrou o que é hoje a cidade de Natal. Na volta, Mascaranhas e Coelho
afastaram-se da costa e fizeram novas devastações entre a indiada do sertão.
Nas veias de Jerônimo de Albuquerque circulava sangue petiguar de sua mãe, Maria
do Arco-Verde, e disto não se envergonhava, antes o vemos em mais de uma conjuntura
proclamando a sua extração. Assim devia sorrir-lhe a idéia de conciliar os parentes,
reduzidos aos últimos apuros por tantos trabalhos e tão continuada perseguição, e agora
forçosamente abandonados pelo franceses. A um índio aprisionado, principal e feiticeiro,
incumbiu esta missão, depois de bem instruí-lo no que devia dizer. O pensamento
humanitário foi coroado do melhor êxito, graças sobretudo às mulheres que, informa um
contemporâneo, enfadadas de andarem com o fato continuamente às costas, fugindo pelos
matos sem poder gozar de suas casas, nem dos legumes que plantavam, traziam os maridos
ameaçados que se haviam de ir para os brancos, porque antes queriam ser suas cativas que
35
viver em tantos receios de contínuas guerras e rebates. Por ordem de d. Francisco de Sousa
as pazes foram juradas solenemente na Paraíba, a 15 de junho de 99. Serviu de intérprete
frei Bernardino das Neves, filho de João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, já nosso
conhecido. Deste ato resultou nascer e criar-se na amizade dos portugueses, Antônio
Camarão, um dos heróis da luta contra Holanda.
A conquista do rio Grande tinha logrado afastar os franceses e desenganar os índios
numa grande extensão de terreno; mas significava, mais que isto, o encurtamento da
distância ao Maranhão e Amazonas. Desde os primeiros tempos do governador Diogo
Botelho surge com força a idéia de consumar a obra, e trata-se de chegar às regiões onde a
mão da natureza assentara os limites do país.
Obrigou-se a incorporar o Maranhão Pedro Coelho de Sousa, cunhado de Frutuoso
Barbosa, que com séquito numeroso partiu da Paraíba e chegou ao Jaguaribe em 1603. Os
índios daquela ribeira, a princípio esquivos, deixaram-se enlear pelas promessas dos
intérpretes e todo o sáfio litoral cearense foi percorrido em paz. Só na serra de Ibiapaba,
aliás seminário dos amigos Tabajaras, apareceu resistência, promovida por franceses.
Venceu-a Pedro Coelho e desceu a serra em busca do rio Punará, ou Parnaíba, como é
chamado hoje. Como sua gente não quisesse ir mais adiante teve que retroceder.
Tudo correra bem até aí, tudo começou logo a se danar. Pedro Coelho, na volta para
o povoado, capturou os índios que pôde, indiferentemente, Tabajaras, velhos amigos, e
Petiguares, aliados recentes. Quando, depois de os ter distribuído pela Paraíba e
Pernambuco, novamente tornou ao Ceará, achou a situação insustentável e foi obrigado a
retirar-se. Sua retirada lastimável balizaram cadáveres, vítimas dos areais candentes, da
fome e da sede.
No provincialado de Fernão Cardim, governando d. Diogo de Menezes, dois
jesuítas, Francisco Pinto e Luís Figueira, foram incumbidos de chegar ao Maranhão.
Levaram em sua companhia para restituí-los à liberdade alguns dos índios capturados por
Pedro Coelho e sua gente; com algum esforço venceram as desconfianças do gentio,
atravessaram a serra do Uruburetama, e chegaram a Ibiapaba, bem acolhidos, apesar de
tudo. Preparavam-se para prosseguir, quando uns Tapuaias assaltaram a aldeia em que
assistiam, e mataram Francisco Pinto. Luís Figueira escapou e tornou para Pernambuco,
onde anos mais tarde escreveu esta trágica odisséia em carta felizmente hoje salva da
voragem do tempo.
Nem a expedição numerosa, aparelhada para a guerra, de Pedro Coelho, nem a
missão pacífica dos jesuítas adiantara um passo à questão de avanço para a costa Leste-
Oeste, destinada talvez a adiamento indefinido, se não interviesse Martim Soares Moreno.
Chegara de Portugal em 1602, e Diogo de Campos, seu tio, sargento-mor de estado, o
incorporou à primeira expedição de Pedro Coelho, para aprender a língua da terra e
familiarizar-se com os costumes. Contava apenas dezoito anos. Realizou os desejos do tio
de modo superior, e tão bem se houve entre os indígenas que Jacaúna, chefe petiguar,
distinguiu-o da turba malfeitora e votou-lhe amor de pai. Nomeado tenente da fortaleza dos
Reis-Magos, cultivou estas relações, mais de uma vez visitou o fiel amigo, sempre
esperançado de dissipar as prevenções e rancores. Afinal o índio permitiu-lhe levar um
filho à Bahia, apresentá-lo ao governador, d. Diogo de Meneses, e consentiu-lhe viesse
estabelecer-se com dois soldados. Pôde assim lançar, junto ao minúsculo rio Ceará, os
fundamentos de um forte, onde resistiu aos ataques da gente não sujeita a Jacaúna; com o
auxílio deste tomou duas naus estrangeiras, nu e pintado de genipapo, à maneira de seus
auxiliares. Aquele ponto, até ali conhecido como excelente aguada dos franceses, passou
desde então a ser evitado.
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No governo de Gaspar de Sousa projetou-se avançar mais para o Norte. Por sua
ordem Jerônimo de Albuquerque partiu de Pernambuco com quatro barcos, em meados de
1613, nomeado capitão-mor da conquista do Maranhão, comandando cem homens brancos
e muitos índios. Na passagem pelo Ceará levou consigo Martim Soares Moreno, como lhe
fora permitido, e navegou até o Camocim, onde pretendeu fundar um forte. Por parecer
pouco próprio este lugar, preferiu a enseada das Tartarugas, em Jererecuacara, onde deixou
quarenta soldados num presídio; com o restante voltou por terra; os barcos mandou que
costeassem como melhor pudessem e tornassem a Pernambuco.
Do Camocim expediu Martim Soares com vinte soldados ao Maranhão, a colher
notícias que pudessem guiar no prosseguimento da conquista. Graças ao pequeno calado da
lancha, Martim navegou muito pegado à terra, pôde entrar pela boca do Preá, e alcançou
por águas interiores a baía hoje chamada de S. José.
O nome e a amizade de Jacaúna serviram-lhe neste lance arriscado. Os Tupinambás
receberam-no com aparente afabilidade, mas preparavam-se para traí-lo, quando um deles
descobriu-lhe a verdadeira situação. Havia um ano estavam aí franceses, com uma fortaleza
artilhada de vinte peças, soldados, gente trazida em embarcações, sob o comando de Daniel
de Latouche, senhor de la Ravardière. Ao mesmo tempo eram os franceses informados da
presença do explorador português, e começavam a dar-lhe caça. Martim Soares escapou
incólume com os seus e o índio amigo; o tempo, menos propício, atirou-o às costas da
Venezuela, donde, por São Domingos, chegou a Sevilha em abril do ano seguinte, e tratou
logo de mandar notícias para Pernambuco. Na mesma ocasião enviou com igual destino o
piloto Sebastião Martins, mestre da lancha, que o acompanhara na peregrinação. Chegou no
momento oportuno; Gaspar de Sousa tratava justamente de segunda e mais poderosa
expedição para a nova conquista, e suas informações puderam ainda ser aproveitadas.
Ainda esta vez Jerônimo de Albuquerque serviu de capitão-mor. Diogo de Campos,
sargento-mor, ia por colateral. Recomendou-lhes o governador as maiores cautelas,
lembrava a fortificação de algum ponto além do fortim deixado no ano anterior, a plantação
de legumes de rápido crescimento, e indicou a conveniência de, desde Tutóia, ir parte da
força por terra, parte por mar.
Depois de receber alguns reforços na fortaleza do Ceará, os expedicionários
prosseguiram viagem a 29 de setembro de 614, para o forte do Rosário, que meses antes
provara forças com a gente de uma nau francesa destinada ao Maranhão. Feito o alarde da
gente, apuraram-se 220 soldados portugueses, 60 marítimos e 300 índios frecheiros.
Deviam acampar em Tutóia? Confessaram-se os pilotos ignorantes daquele trecho da costa:
Bastião Martins só conhecia a barra do Preá; para lá se encaminharam a 12 de outubro, e na
noite de 13 se abalançaram por ela na maior confusão: “houve navios que iam tocando e
dando grandes pancadas nos bancos ao entrar da barra, e, por não atemorizarem os que
vinham de trás, calavam e paravam sem se ouvir uma palavra de rumor”.
Iam a bordo moços impacientes e pouco disciplinados, ansiosos de medir-se com os
franceses. Conseguiram do capitão-mor se prosseguisse levianamente pelo Preá a dentro,
até avistar o inimigo. Era o melhor plano a executar, provou-o o resultado. Antes da viagem
de Martim Soares Moreno, aquela entrada era desconhecida dos franceses; depois dela
assentaram um forte ligeiro em Itapari; todo o esforço de Ravardière aplicara-se, porém, à
defesa da baía de S. Marcos; nas suas fortificações depositavam-se a maior confiança.
Claude ‘Abbeville, missionário capuchinho, escrevia orgulhosamente: “C’est donc niaizerie
de penser que l’on puisse desloger les François de ce lieu, lors qu’ils y seront bien establis:
& le vouloir faire croire, outre que c’est trop raualler leur courage & faire trop peu d’estime
de leur valeur & generosité, Si ce n’est une pure malice n’est-ce pas temerité? & que l’on
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en parle comme les aueugles des couleurs? Ceux qui ont veu la situation de cette Isle & qui
connoissent par experience les difficultez de ses advenuës, n’aduoueront iamais telle
proposition qui ne procede que d’vn esprit timide”. O ataque pela baía de S. José, devido
mais à casual fraqueza da lancha de Martim Soares, deitava por terra todos estes
arreganhos.
A 26 de outubro chegaram os expedicionários ao porto, depois chamado de
Guaxenduba; a 28, começaram no continente o forte de Santa Maria. Na ilha fronteira, logo
muitos fogos pareceram indicar a transmissão de notícias. Vieram à fala alguns índios,
esquivos apesar de todas atenções e carinhos de Jerônimo de Albuquerque; negavam em
geral a assistência dos franceses; um, porém, natural de Pernambuco, denunciou ataque
próximo. De fato, a 12 de novembro, no quarto da lua, deu o inimigo nas embarcações e
tomou três.
A este seguiu-se outro de maior monta a 19. Os franceses desembarcaram duzentos
infantes, mais de dois mil índios; como reserva ficou La Ravardière a bordo, acompanhado
de cem soldados. Transportaram esta força cinqüenta e sete embarcações, das quais as três
tomadas alguns dias antes, e cinqüenta canoas. Trataram de se entrincheirar e, para ganhar
tempo, La Ravardière dirigiu uma carta ameaçadora a Jerônimo de Albuquerque. Sem dar-
lhe resposta começaram os portugueses uma ofensiva desesperada, indo pela praia Diogo
de Campos, Antônio e Albuquerque, filho do capitão-mor, e Jerônimo Fragoso; pelo monte
Jerônimo de Albuquerque, Francisco de Frias e Manuel de Sousa de Sá.
Dos franceses, escreve este, morreram a espada e a arcabuzaços noventa e tantos,
que logo ali ficaram, além dos que se afogaram fugindo para as embarcações, ao todo cento
e sessenta; foram capturados nove; queimaram-se-lhes quarenta e seis canoas; tomaram-se
ao todo duzentas armas de fogo, mosquetes e arcabuzes; dos selvagens averiguou-se depois
que faltavam quatrocentos, a maior parte mortos afogados. De parte dos portugueses as
perdas foram insignificantes.
A derrota quebrantou o ânimo de La Ravardière. Em vez de procurar desforrar-se
logo, entabulou a 21 uma correspondência com Jerônimo de Albuquerque, concebida em
termos duros, que foi abrandando gradualmente. Os portugueses achavam-se em situação
difícil: o inimigo dominava as entradas com sua frota; socorros só poderiam vir pelo Preá, e
o Preá só admitia vasos de pequeno calado. Apesar de tudo sua confiança mantinha-se
inalterável: “somos homens que um punhado de farinha e um pedaço de cobra quando o há
nos sustenta”, escrevia Jerônimo de Albuquerque; “somos gente que não podemos nadar
tanto mar quanto há daqui à Espanha; pelo que ainda que hoje tendes a barra, nós temos a
terra que pisamos, a qual sempre será de nossos corpos até que Sua Majestade d’el-rei da
Espanha, nosso senhor, cujo tudo é, outra coisa ordene”, segundava mais difuso Diogo de
Campos.
Da correspondência e das práticas nasceu a idéia de tréguas. As duas metrópoles
estavam amigas e aliadas no velho mundo, por que se degladiariam neste? A 27,
convencionou-se a suspensão das hostilidades até fim de dezembro de 615; nem os
franceses iriam ao continente, nem os portugueses à ilha, e evitariam ambos entrar em
contacto com os índios de uma e outra jurisdição; seriam permutados sem resgate os
prisioneiros; ficaria o mar franco aos portugueses; socorro de gente de guerra não
suspenderia o armistício; a nação obrigada a retirar-se teria três meses para os aprestos; dois
representantes de cada beligerante iriam à corte de Madrid e à de Paris, saber de Suas
Majestades Católica e Cristianíssima suas vontades sobre quem deveria ficar no Maranhão
Depois disso o capitão-mor da conquista mandou Manuel de Sousa de Sá, num
caravelão, a Pernambuco levar a notícia do sucedido ao governador geral. A nau Regente,
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que já se batera com a guarnição do Rosário, em Jererecuacara, partiu a 16 de dezembro,
levando os emissário Du Prat e Gregório Fragoso para França. A 4 de janeiro de 1615 saiu
para Portugal Diogo de Campos com Mathieu Maillart, numa caravela comprada a este por
500 cruzados; a 3 de março apresentava-se ao vice-rei d. Aleixo de Menezes. O sargento-
mor aproveitou a travessia para escrever a Jornada de Maranhão.
Na corte foi acolhido com frieza o resultado da expedição, e a má vontade aumentou
quando inesperadamente chegou Manuel de Sousa de Sá, enviado a Pernambuco mas
levado pelos ventos e correntes às Indias ocidentais, donde lhe deram condução para a
Europa. Conhecida a versão de Manuel de Sousa, diferente em pontos essenciais da de
Diogo de Campos, aprestou-se para o Maranhão um patacho com munições, pólvoras e
mais coisas necessárias, que em começos de junho passou pelo Ceará. Nele parece ter
voltado Martim Soares, com o posto de sargento-mor, na ausência do tio. Falou-se em
castigar este, mas prevaleceu o alvitre de mandá-lo com Sousa de Sá a Gaspar de Sousa, a
quem com maior empenho se ordenou a ultimação da empresa.
Não se descuidara o governador. Em junho mandara Francisco Caldeira de Castelo
Branco, antigo capitão-mor do Rio Grande, comandando uma armada composta de um
patacho, duas caravelas e um caravelão grande, que chegou a Santa Maria de Guaxenduba
em 1 de julho, fazendo a viagem por fora do Preá. La Ravardière foi, apesar da trégua,
intimado a abandonar a terra, e, depois de relutar, cedeu em promessa; mas, porque
rebentassem discórdias entre os dois chefes portugueses, foi-se deixando ficar, Jerônimo de
Albuquerque transferiu-se para a ilha, onde fundou uma cerca e um forte, chamado de S.
José. Provavelmente vem daí o nome atual desta baía.
Manuel de Sousa encontrou o governador geral em Pernambuco, e deu-lhe cartas e
ordens. Sem demora Gaspar de Sousa aprestou nove navios, cinco dos quais grandes, com
mais de novecentos homens, muito armamento e dinheiro, plantas e gado para povoarem a
terra.
Conferiu o comando a Alexandre de Moura que, partindo a 5 de outubro do Recife,
a 17 chegava ao Preá, onde breve se convenceu de não serem para aquele canal as suas
embarcações. Cumpria navegar por fora, fazer sondagens, arrostar a baía de S. Marcos, as
terríveis fortificações, inexpugnáveis no sentir de Abbeville. E não havia tempo a perder,
pois a fortaleza de S. José se incendiara, e Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor antes de
nome que de fato, porque os portugueses achavam-se divididos em dois partidos dominados
por ódios violentos, estava reduzido a pouca pólvora e às armas salvas do incêndio.
A 1 de novembro decidiu-se a investir a entrada de São Marcos; um patacho menor
foi adiante, mostrando o caminho, e a armada surgiu fora do alcance da artilharia inimiga.
Jerônimo de Albuquerque marchou por terra com forças; um posto foi guarnecido com oito
peças de artilharia, cento e cinqüenta soldados, duzentos frecheiros; cem homens com seis
peças guardariam a entrada da barra. A 3 foi intimado La Ravardière a entregar a colônia e
a fortaleza, com toda a artilharia e munições existentes dentro e fora dela, com todos os
navios grandes e pequenos, sem por tudo receber indenização alguma. Obrigava-se
Alexandre de Moura a dar condução para a França; os franceses se obrigariam a partir
apenas recebessem os navios e deixassem reféns. E este favor se lhe faz, concluía, pelas
alianças que hoje há entre os senhores reis Católico e Cristianíssimo.
A fortaleza foi entregue; em duas naus sem artilharia, mandadas separadamente,
partiram os franceses para a pátria; La Ravardière teve de acompanhar o vencedor a
Pernambuco. Anos mais tarde andava em Lisboa, requerendo mercês e alegando serviços,
por haver largado o Maranhão com a sua fortaleza e artilharia. Assim, o mesmo ano de
1615 assistiu à derrocada final dos franceses depois de quase um século de resistência: em
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Cabo Frio, por mão de Constantino Menelau, no Maranhão pelo antigo capitão-mor de
Pernambuco.
Trazia Alexandre de Moura instruções para expulsar os franceses do Pará e ir até o
Amazonas. Como no Pará não existisse estabelecimento francês e o Amazonas estivesse
desocupado, mandou em seu lugar Francisco Caldeira de Castelo Branco com cento e
cinqüenta homens, dez peças de artilharia e três embarcações. Além de colher outras
vantagens, afastava do Maranhão um elemento perturbador. Em companhia de Castelo
Branco seguiu um piloto francês, e o famoso Charles Desvaux “de quem ele, dito capitão-
mor, deve fazer uma conta, com a cautela devida”. Antônio Vicente Cochado foi como
piloto.
Partiram no dia de Natal, correndo a costa, fazendo sondagens, dando fundo todas
as noites, tomando as conhecenças da terra, numa extensão de cento e cinqüenta léguas.
Entraram na barra pela ponta de Saparará, e seguiram por entre ilhas, bem acolhidos pelo
gentio disposto em seu favor, graças à derrota dos franceses; muitos dos naturais usavam
cabelo comprido e de longe pareciam mulheres; encontraram notícias imprecisas de
flamengos e ingleses que freqüentavam aquelas regiões.
A 35 léguas do mar, na margem direita do Pará, Francisco Caldeira de Castelo
Branco fundou a fortaleza, e chamou-a Presepe.
Estava dado o primeiro passo para a ocupação do Amazonas.
Agora um rápido lancear do país, aí pelos anos de 1618, quando escrevia autor do
Diálogo das Grandezas do Brasil, e Fr. Vicente do Salvador preparava-se para redigir sua
história.
Os estabelecimentos fundados por portugueses começavam no Pará quase sob o
Equador e terminavam em Cananéia além do trópico. Entre uma e outra capitania havia
longos espaços desertos, de dezenas de léguas de extensão. A população de língua européia
cabia folgadamente em cinco algarismos.
A camada ínfima da população era formada por escravos, filhos da terra, africanos
ou seus descendentes. Aqueles aparecem menos numerosos pela pouca densidade originária
da população indígena, pelos grandes êxodos que os afastaram da costa, pelas constantes
epidemias que os dizimaram, pelos embaraços, nem sempre inúteis, opostas ao seu
escravizamento.
Acima deste rebanho sem terra e sem liberdade, seguiram-se os portugueses de
nascimento ou de origem, sem terra, porém livres: feitores, mestres de açúcar, oficiais
mecânicos, vivendo do seus salários ou do feitio de obras encomendadas; em geral o
mecânico sabia vários ofícios, pois um só não garantia a subsistência, e ia trabalhar pelas
fazendas quando a simplicidade das ferramentas o permitia ou os proprietários possuiam a
ferramenta em casa.
Entre os proprietários rurais ocupavam lugar modesto os lavradores de mantimento
e os criadores de gado: a criação avultava somente a uma e outra margem do baixo São
Francisco: seu grande desenvolvimento se operou mais tarde, quando se separou da lavoura
e invadiu os campos e as catingas do interior.
Coroava esta hierarquia o senhor de engenho. Havia engenhos movidos por água e
por bois; servidos por carros ou por barcos; situados à beira-mar ou mais apartados, não
muito, porque as dificuldades de comunicações apenas permitiam arcos de limitados raios.
O engenho real devia possuir grandes canaviais, lenha abundante, boiada capaz ou barcos e
barqueiros suficientes, escravatura, aparelhos diversos, moendas, cobres, fôrmas, casas de
purgar, pessoal adestrado para o preparo do açúcar, pois a matéria prima passava por
diversos processos antes de ser entregue ao consumo: alguns possuiam igreja, capelão
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melhor remunerado que os vigários, e às vezes incumbido de ensinar rudimentos de leitura
à meninada. O senhor de engenho opulento remetia a safra diretamente para o Reino, e
recebia o pagamento do além-mar em fazendas finas, vinhos, farinha de trigo, em suma,
coisas de gozo ou de luxo.
A casa da gente rica representava uma economia autônoma: o nec est quod putes
illum quidquam emere, omnia domi nascuntur, de Petrônio, não podia ser praticado ao pé
da letra, mas correspondia até certo ponto à realidade. Para os escravos fiava-se e tecia-se a
roupa; a roupa da família era feita no meio dela; da alimentação, fornecida por peixe de
água doce ou salgada, mariscos apanhados nos mangues ou caça, estavam encarregados os
escravos; a criação miúda de voláteis, ovelhas, cabritos e porcos evitava as surpresas de
hóspedes da última hora: não havia açougues ou mercados: “as casas dos ricos (ainda que
seja á custa alheia, pois muitos devem o que têm) andam providas de todo o necessário,
pois têm escravos pescadores e caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho
e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vezes se não acha isto de venda”.
A mercatura representava-se por embarcadiços vindos do Reino com carregamentos
que tratavam de liquidar, de modo a voltar no mesmo navio, ou de mascates que iam pelos
lugares mais afastados, a vender miudezas. Nas transações dominava a permuta ou
empréstimos de gêneros; transações a dinheiro não se conheciam ou eram raríssimas, e
como ninguém sabia aproximadamente de suas posses, o endividamento era geral.
Na economia naturista, já foi observado, por um economista recente, nunca se
produzem demais os gêneros consumidos em casa; se há superabundância de algum,
guarda-se, dá-se ou deixa-se estragar; daí, a hospitalidade, as festas pantagruélicas e
também o jogo. Talvez nas paradas achasse seu melhor emprego o pouco dinheiro girante;
o resto ia em festas eclesiásticas ou profanas.
A ausência de capitais restringia muito as satisfações da vida coletiva: não havia
fontes, nem pontes, nem estradas; se por alguma circunstância favorável, construía-se
alguma, à falta de conservação estragava-se ou ficava de todo arruinada. Como não havia
dinheiro, os impostos eram levados à praça, e o contratador pagava-se em gêneros. Só as
casas de misericórdia eram até certo ponto devidas à ação incorporada. As sedes das
capitanias, mesmo as mais prósperas, reduziam-se a meros lugarejos; a gente abastada
possuía prédios nas vilas, mas só os ocupava no tempo das festas; a população permanente
constava de funcionários, mecânicos, regulares ou gente de vida pouco edificante.
Ajunte-se a isto a natural desafeição pela terra, fácil de compreender se nos
transportamos às condições dos primeiros colonos, abafados pela mata virgem, picados por
insetos, envenenados por ofídios, expostos às feras, ameaçados pelos índios, indefesos
contra os piratas, que começaram a surgir apenas souberam de alguma coisa digna de
roubar. Mesmo se sobejassem meios, não havia pendor a meter mãos a obras destinadas aos
vindouros; tratava-se de ganhar fortuna o mais depressa possível para ir desfrutá-la no além
mar. Informa-nos Gandavo que os velhos acostumados ao país não queriam sair mais.
Seriam estes seus primeiros entusiastas.
Desafeição igual à sentida pela terra nutriam entre si os diversos componentes da
população.
Examinando superficialmente o povo, discriminaram-se logo três raças irredutíveis,
oriunda cada qual de continente diverso, cuja aproximação nada favorecia. Tão pouco
próprios a despertar simpatia e benevolência, antolhavam-se os mestiços, mesclados em
proporção instável quanto à receita da pele e dosagem do sangue, medidas naqueles
tempos, quando o fenômeno estranho e novo, em toda a energia do estado nascente, tendia
a observação ao requinte e superexcitava os sentidos, medidas e pesadas com uma precisão
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de que não podemos mais formar idéia remota, nós afeitos ao fato consumado desde o
berço, indiferentes às peles de qualquer aviação e às dinamizações do sangue em qualquer
ordinal.
A desafeição entre as três raças e respectivos mestiços lavrava dentro de cada raça.
O negro ladino e crioulo olhava com desprezo o parceiro boçal, alheio à língua dos
senhores. O índio catequizado, reduzido e vestido, e o índio selvagem ainda livre e nu,
mesmo quando pertencentes à mesma tribo, deviam sentir-se profundamente separados. O
português vindo da terra, o reinol, julgava-se muito superior ao português nascido nestas
paragens alongadas e bárbaras; o português nascido no Brasil, o mazombo, sentia e
reconhecia sua inferioridade.
Em suma, dominavam forças dissolventes, centrífugas, no organismo social; apenas
se percebiam as diferenças; não havia consciência de unidade, mas de multiplicidade. Só
muito devagar foi cedendo esta dispersão geral, pelos meados do século XVII. Reinóis e
mazombos, negros boçais e negros ladinos, mamalucos, mulatos, caboclos, caribocas, todas
as denominações, enfim, sentiram-se mais próximos uns de outros, apesar de todas as
diferenças flagrantes e irredutíveis, do que do invasor holandês: daí uma guerra começada
em 1624, e levada ao fim, sem desfalecimentos, durante trinta anos. Em São Vicente, no
Rio, na Bahia, e em outros lugares, por meios diferentes, chegou-se ao mesmo resultado.
Sobre o modo de administração de toda esta gente informa-nos a folha geral do
estado, organizada em 1617.
Subiam todas as despesas públicas a cinqüenta e quatro contos, cento e trinta e oito
mil, duzentos e noventa e oito réis, repartidos pelas quatro rubricas de igreja, justiça,
milícia e fazenda.
Constituía todo o país uma só diocese; o Bispo assistia na Bahia com o Cabido; dois
administradores, um para as capitanias do Norte e estabelecido na Paraíba, outra para as
capitanias do Sul e residindo no Espírito Santo, seguiam-se em hierarquia; cada capitania
formava uma freguesia, com seu vigário e coadjuntor, exceto a de S. Vicente, que contava
as vigararias de Itanhaém, São Vicente, Santos e São Paulo; a de Espírito Santo, com as de
Vitória e E. Santo; a da Bahia com as de Vila-Velha, Santo Amaro, S. Iago, Peruaçu,
Paripe, Matoim, N. S. do Socorro, Sergipe do Conde, Taparica, Passé, Pirajá, Cotegipe,
Tamari e Sergipe del Rei; a de Pernambuco com as de Olinda, São Pedro, Recife, S.
Lourenço, Igaraçu, S. Antônio, Várzea, Moribeca, S. Amaro, Pojuca, Serinhaém e Porto
Calvo; a de Itamaracá, com a da ilha e a da Goiana. A todo este pessoal o governo pagava
ordenado e ordinária para a celebração do culto; para isso o rei arrecadava o dízimo, como
grão-mestre da Ordem de Cristo.
Havia colégio de jesuítas, conventos Capuchos, Carmelitas ou Beneditinos na
Bahia, Rio, Espírito Santo, Pernambuco, e todos recebiam auxílios sob diversas formas, em
gêneros ou dinheiro. Quase todas as capitanias sustentavam casas de misericórdia, que o
governo socorria.
À frente da justiça estava a Relação instalada na Bahia com um numeroso pessoal
de desembargadores, ouvidor-geral, etc.; nas capitanias reais parece que a jurisdição de
primeira instância cabia aos juízes ordinários, renovados anualmente; as dos donatários
possuíam ouvidores que muitas vezes eram os próprios capitães-mores: pouco informa a
este respeito a folha geral.
Encabeçava o corpo da fazenda o provedor-mor, estabelecido na capital, a quem
estavam subordinados em cada capitania o provedor e escrivão da fazenda, o almoxarife e o
porteiro das alfândegas.
42
Ao lado das capitanias de donatários, São Vicente, S. Amaro, Espírito Santo, Porto
Seguro, Ilhéus, Pernambuco e Itamaracá, havia as capitanias reais do Rio, Bahia, Sergipe,
Paraíba, Rio Grande, Ceará, Maranhão, Pará.
Chefe da milícia e em geral da administração era o Governador Geral com assento
na Bahia. A milícia era representada pela tropa paga, e pelas ordenanças, espécie de guarda
nacional.
E agora vistas as vantagens do domínio espanhol na eliminação completa dos
franceses e na rapidez da marcha para o Amazonas, vejamos o reverso da medalha, nas
guerras flamengas dele originadas.
————
VIII
GUERRAS FLAMENGAS
As relações entre Portugal e Flandres, iniciadas desde a idade média, continuaram ainda depois de
descoberto o caminho marítimo das Índias e achado e colonizado o Brasil. Iam os flamengos a Lisboa adquirir
as drogas e gêneros exóticos, apenas desembarcados, e retalhavam-nos pela vasta clientela do Norte e
Ocidente da Europa, poupando canseiras e garantindo lucros imediatos aos portugueses; estes, além do
dinheiro de contado, proviam-se, graças aos seus fiéis fregueses, de cereais, peixe salgado, objetos de metal,
aparelhos náuticos, fazendas finas.
Modificou-se esta situação vantajosa para ambas as partes quando a monarquia
espanhola abarcou a península inteira e os inimigos de Castela passaram a ser os de
Portugal. Em 85, Filipe II mandou confiscar os navios flamengos ancorados em seus
portos, aprisionando-lhes as tripulações. O mesmo se fez em 90, 95 e 99.
Dificilmente se conceberia mais terrível golpe contra um povo que do comércio
marítimo auferia o melhor de suas riquezas, base de uma independência comprada a poder
de sangue. Depois de tanto heroísmo teria de sujeitar-se ao domínio do Meio-Dia? Para
escapar a estes apuros brotaram os mais desencontrados alvitres: procurar pelo Norte da
Ásia outro caminho marítimo para a China e Índia; transferir a atividade comercial para o
Mediterrâneo; apossar-se do estreito de Magalhães. Tudo isto se tentou, de tudo se tirou
resultado negativo. Por que não se afrontaria o cabo da Boa Esperança, a buscar os gêneros
do Oriente nos próprios lugares de sua procedência?
Em 95, mercadores de Amsterdam arriscaram a primeira viagem ao oceano Índico,
viagem demorada, de pouco proveito imediato, mas fecundíssima em conseqüências, pois
logrou a certeza da fragilidade do domínio peninsular naquelas regiões alongadas. Da
mesma cidade partiram outros navios em maio de 98, terceira expedição em abril, quarta
em dezembro de 99. Em várias províncias surgem negociantes arrojados, improvisam-se
companhias opulentas, ávidas de despojos e aventuras no amplo teatro que agora se abria.
A emulação salutar ameaçava degenerar em rivalidade perniciosa. Homens sagazes
anteviram o perigo; intervieram os Estados Gerais, e por meio de concessões e privilégios
conciliaram as pretensões divergentes, fundando a Companhia das Índias Orientais no
começo de 1602.
A trégua de doze anos, assentada em 1609 entre os Países Baixos e a Espanha, em
nada interrompeu a carreira aventurosa da Companhia, que com poucos anos de existência
se impôs aos príncipes indígenas, repeliu os ingleses, derrocou a aparatosa fábrica luso-
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hispânica, monopolizou o trato das especiarias, distribuiu dividendos enormes, prestou
serviços inestimáveis ao governo das Províncias Unidas.
Na constância do armistício sazonou a idéia de uma companhia das Índias
ocidentais, análoga à outra nos intuitos e na organização, que obteve foral a 3 de junho de
1621. Seu capital seria de sete milhões, cento e tantos mil florins; o privilégio duraria vinte
e quatro anos; constaria de cinco câmaras, representando os acionistas de Amsterdam,
Zelândia, cidades do Maas, o distrito do Norte e a Frísia; os diretores, em número de
dezenove, funcionariam alternadamente em Amsterdam e Middelburg. A esfera
privilegiada seria, na África, do trópico de Câncer ao cabo da Boa Esperança; ao Ocidente,
desde Terra-Nova, no Atlântico, até o estreito de Anian no Pacífico.
Os Estados Gerais concederam-lhe faculdade de construir fortes na região
outorgada, contrair tratados com os príncipes e povos indígenas, nomear autoridades e
funcionários; obrigaram-se a subvencioná-la, para ficar com direito a certa parte dos
dividendos; forneceriam soldados e naus de guerra em condições especificadas. Em suma,
deixando de parte diferenças patentes, a Companhia das Índias Ocidentais filiou-se ao
sistema dos donatários iniciados por d. João III.
A Companhia deixou sinais de sua passagem no território africano, nas costas dos
Estados Unidos, nas Antilhas, no Brasil, no Chile. A nós só importam os feitos ocorridos
em nossa terra.
Sua criação foi acolhida com frieza na Holanda; ainda em 622 não estava subscrito
um quinto sequer do capital que só ficou integralizado depois de obtidas vantagens
suplementares, entre outras, o monopólio de exportação do sal brasileiro, em 1624.
Desde 623 começou a preparar uma expedição contra a Bahia. Vinte e três navios e
três iates com quinhentas bocas de fogo, tripulados por mil e seiscentos marinheiros, foram
aos poucos se reunindo em S. Vicente do Cabo-Verde nos fins deste e no começo do
seguinte ano. A 26 de março partiram rumo de SW, a 4 de maio descobriram costa do
Brasil, a 8 surgiram diante da baía de Todos-os-Santos e foram vistos de terra.
Governava a cidade do Salvador e o Brasil em geral Diogo de Mendonça Furtado.
Tinham-lhe chegado notícias do perigo iminente e procurara prevenir-se.
Sobejavam-lhe coragem e boa vontade, faltava-lhe tudo o mais: as fortalezas já
arruinadas umas, outras por acabar, a barra larga e franca, acessível sem prático às maiores
embarcações a qualquer hora do dia e da noite, a guarnição reduzida e imbele, a população
trépida, prestes a fugir mal avistava qualquer vela suspeita, não encerravam elementos de
resistência eficaz. Acresciam dissenções entre o governador e o bispo e, como de costume,
entre uma e outra metade do povo, sempre ávido de questões entre os potentados.
A 9 de maio a armada enfiou a barra e dirigiu o ataque por terra e por mar. Na ponta
de S. Antônio, à entrada, desembarcaram mil e duzentos soldados e duzentos marinheiros: e
à sua aproximação a força dos colonos postada retirou-se às carreiras, semeando o pânico.
Dos fortes houve alguns disparos, alguns navios pareceram dispostos a resistir; quando o
inimigo se aproximou, recorreu-se ao incêndio para evitar fossem cair-lhe às mãos os ricos
carregamentos de açúcar, pau-brasil, fumo e peles. Mesmo assim, muitos foram salvos.
À noite, bispo, eclesiástico, os moradores que puderam abandonaram a cidade. Ao
amanhecer, além de escravos e gente baixa sem nada a perder, encontravam-se apenas o
governador e alguns fiéis na cidade deserta. Com facilidade os invasores prenderam-nos e
mais tarde mandaram-nos para a Holanda. Os fugitivos acomodaram-se como puderam em
engenhos próximos, aldeias de índios, debaixo de árvores, ao céu aberto. Quantas privações
passaram e como foi difícil sustentar e conter esta multidão, pode-se bem imaginar. Ainda
depois de reunidos em arraial e estabelecida certa ordem, a empresa nada tinha de fácil.
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As vias de sucessão, então abertas, nomeavam para substituto do governador a
Matias de Albuquerque Coelho. Estava em Pernambuco, capitania hereditária de seu irmão,
em cujo nome governava, a mais de cem léguas de distância. Antes que recebesse a notícia
e tomasse qualquer providência, perder-se-ia tempo, um tempo precioso. Elegeu-se, pois,
capitão-mor interino o desembargador Antão de Mesquita; dentro em pouco, por motivos
pouco conhecidos ainda, ficou sendo governador de fato o bispo dom Marcos Teixeira.
Uma só coisa havia a fazer com os recursos da terra: cercar o invasor dentro da
cidade, impedindo que penetrasse pelas cercanias para renovar provisões, impossibilitando
as adesões das classes baixas, indiferentes à mudança do senhor, pois o cativeiro
prosseguiria invariável. A falta de armamentos apropriados, a escassez e por fim a carência
completa de pólvora limitaram as operações à arma branca; à flecha, ao combate singular, à
tocaia; as companhias de emboscadas, em número de trinta, composta cada uma de poucas
dezenas de combatentes, pelo subitâneo da aparição nos lugares mais diversos, mantiveram
o inimigo sobressaltado; a multiplicidade dos assaltos, quase sempre coroados de êxito,
alimentava a coragem e fortaleceu o espírito patriótico.
Entretanto chegava a Pernambuco a notícia de ser tomada a cidade. Matias de
Albuquerque, informa um contemporâneo, nem de dia, nem de noite, se poupava ao
trabalho. Não quis nunca andar em rede, como no Brasil se costuma, senão a cavalo ou em
barcos, e quando nestes entrava não se assentava, mas em pé ia ele próprio governando.
Tinha grande memória e conhecimento dos homens, ainda que uma só vez os visse, e ainda
dos navios que uma vez vinham àquele porto. Esta atividade fervorosa, unida a uma energia
indomável, ver-se-á melhor no decurso da narrativa.
Por sua ordem partiu logo Francisco Nunes Marinho em dois caravelões, com
pólvora, munições de fogo e de boca e trinta soldados. Trataram-no mal as tormentas; de
vergas e mastros quebrados, arribou a Sergipe; mas já em começos de setembro juntava-se
à gente do arraial. Sob o seu governo as guerrilhas avançaram para o interior da Bahia até
Itapagipe, para o lado da barra até a ponta de Santo Antônio; novas e mais fortes trincheiras
foram levantadas. Dois barcos, um no Itapoã, e outro no morro de S. Paulo, vigiavam o
mar, avisando os navios portugueses que evitassem o porto, para não serem aprisionados
como já o haviam sido outros.
Pequenos socorros do Reino iam chegando a Pernambuco e Matias de Albuquerque
reforçava-os, e encaminhava-os sem perda de tempo. Graças a ele, d. Francisco de Moura,
vindo com o título de capitão-mor do recôncavo, conduzindo três caravelas, partiu de
Recife depois de demora de oito dias, levando seis caravelões, oitenta mil cruzados de
provimentos novos. A 3 de dezembro troava a artilharia no acampamento, e os holandeses,
curiosos da novidade, só então souberam como ao bispo, poucos dias antes de falecer,
sucedera Francisco de Moura, antigo governador do Cabo Verde.
Na cidade conquistada as coisas corriam mal para o inimigo. Johannes van Dorth,
governador pela Companhia, foi morto numa emboscada. Albert Schout, seu sucessor,
tratou das fortificações, mas em festas e banquetes apanhou uma enfermidade, que em
poucos dias o levou. Willem Schout, seu irmão, mostrou-se alheio às responsabilidades do
cargo.
Contudo a situação poderia manter-se indefinidamente, máxime dominando o
oceano a armada da Companhia; tratava-se de saber quem receberia primeiros socorros de
além-mar. Por uma felicidade nunca mais repetida foram os nossos. A corte espanhola,
geralmente desatenta e inerte, desta vez sentiu a gravidade do golpe; o rei, ou antes
Olivares, seu ministro onipotente, percebeu a ameaça implícita contra o México e o Peru;
cartas régias do próprio punho, procissões, novenas, excitaram o espírito público; a nobreza
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da Espanha e a de Portugal alistaram-se com entusiasmo na cruzada contra o hereje rebelde;
fidalgos e prelados fizeram largos donativos, fretaram navios, custearam companhias; as
armadas de Portugal, do Oceano, do Estreito, de Biscaia, das Quatro-Vilas, de Nápoles,
somaram cinqüenta e dois navios de guerra; mais de doze mil homens d’armas embarcaram
para o Novo Mundo. Comandante geral de todas as forças era d. Fadrique de Toledo.
A armada chegou à Bahia sábado da aleluia, 29 de março de 1625, no mesmo dia
que aí aportara Tomé de Sousa, o fundador da cidade, setenta e seis anos antes. Formou em
meia-lua, da ponta de Santo Antônio à de Itapagipe, fechando a saída aos navios holandeses
ancorados.
A tropa desembarcou em Santo Antônio e tomou logo posição em São Bento,
Palmeiras, Carmo e outros morros. A 2 de abril travou-se o primeiro combate, seguido de
outros. O cerco apertou-se por terra e por mar. Os sitiados foram obrigados a render-se. A
30 de abril assinava-se a capitulação. A 1 de maio abriram-se as portas e entrou o exército
vencedor. A 26 apareceu na barra o socorro holandês, trinta e quatro naus, comandadas por
Boudewiyn Hendrikszoon. Ambas as armadas evitaram porém travar novos combates e os
holandeses foram piratear em outras regiões mais indefesas.
Nos anos seguintes a Companhia mandou diversos navios que estiveram no Brasil e
em outras partes da África e da América, devastando e saqueando. Seu triunfo mais
completo foi a tomada da frota espanhola, junto à costa de Cuba, por Pieter Heyn, em
setembro de 1628. De uma só vez entraram-lhe para os cofres mais de quatorze milhões, o
duplo do capital inicial; os dividendos subiram a 50%. Com as finanças restauradas,
preparou nova expedição ao Brasil; agora preferiu Pernambuco para ponto de investida.
A 26 de dezembro de 629 zarpou de S. Vicente uma armada de cinqüenta e dois
navios e iates, e treze chalupas, poderosamente artilhados, com três mil setecentos e oitenta
marinheiros, três mil e quinhentos soldados; a 3 de fevereiro de 630 avistou o Brasil; a 13
chegou em frente a Olinda; no dia seguinte abriu o ataque.
Comandava a capitania Matias de Albuquerque, neto do velho Duarte Coelho, irmão
do quarto donatário. Com as notícias da próxima invasão, partira de Lisboa a 12 de agosto
de 629, trazendo vinte e sete soldados e alguma munição em uma caravela. Chegou ao
Recife a 18 de outubro, e entregou-se com todo o devotamento à obra desesperada.
As fortalezas estavam arruinadas como na Bahia. Se a barra do Recife não oferecia
as comodidades da baía de Todos-os-Santos e não custaria cegá-la, em compensação dava
fácil desembarque desde Pau-Amarelo ao Norte, até Candelária ao Sul, na extensão de sete
léguas. Poder-se-ia ao menos contar com o sangue frio da população?
O inimigo dividiu a ofensiva por três pontos. O grosso da armada, comandada pelo
almirante Loncq, investiu a barra, e estacou por achá-la obstruída. Outro troço dirigiu-se
diretamente para Olinda. Com três mil homens o coronel Diedrich van Weerdenburgh
aproou primeiro para o rio Tapado, depois para o Pau-Amarelo, mais ao Norte, onde
desembarcou na tarde de 15 de fevereiro. Na manhã seguinte, formado em três colunas,
marchou para o Sul; as pequenas resistências esporádicas da nossa gente cederam à tropa
numerosa e às embarcações de que saltara, que navegavam a pequena distância, apoiando-
lhes os movimentos.
À entrada da vila alguns militares sacrificaram-se nobremente. O troço da armada
mandado de véspera contra ela apossou-se das trincheiras da praia. Quando anoiteceu, o
pavilhão batavo flutuava sobre a antiga Marim.
A população abandonou a vila e procurou abrigo nos matos e nos engenhos. A
soldadesca invasora entregou-se ao saque e à embriaguez. Matias de Albuquerque mandou
tocar fogo nos navios e nos armazéns para ao menos arrancar das garras da Companhia o
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fruto do trabalho amargamente suado. A povoação de Recife, iluminada pelos clarões de
incêndio, converteu-se um montão de ruínas. Defendiam-na ainda dois fortes: um no istmo
que vai para Olinda, outro no próprio recife. Reforçou-os o general com gente e munições,
e mais de um ataque foi repelido com vantagem; mas a 2 de março o de S. Jorge, velho,
capaz só de resistir a ataques de índios, capitulou, e o de São Francisco da barra seguiu-lhe
o exemplo. Só então a armada holandesa entrou no porto.
Durante este tempo Matias de Albuquerque trazia sempre inquieto o inimigo.
Entregue aos próprios recursos não lograria desalojá-lo, mas tirava-lhe o sossego, diminuia-
lhe a confiança, reduzia-lhe o número, impedia-lhe as comunicações com a gente da terra e
nesta substituía o soçobro do primeiro momento pelo desejo de lutar e desprezo de morrer:
a dominação holandesa era um fato; não era, nunca seria um fato consumado.
A 4 de março o general escolheu uma eminência quase a uma légua do Recife e de
Olinda, próximo do rio Capibaribe e ainda mais do riacho Parnamirim, ponto de boa água e
lenha. Com vinte pessoas começou a fortificação, plantando quatro peças. Deu à obra o
nome de arraial do Bom-Jesus. Pouco a pouco foram chegando aderentes: aventureiros,
senhores de engenho sós ou seguidos de escravos, índios aldeados. Entre estes entra logo a
aparecer com um brilho que irá sempre crescendo Antônio Camarão, chefe petiguar de
vinte e oito anos de idade, o mais fiel e preciso dos auxiliares. Dez dias mais tarde o arraial
já repelia com grandes perdas um assalto do inimigo. Será esta a sua história perene durante
os cinco anos seguintes.
Como contar os sucessos desta guerra sem precedentes? Os conflitos feriam-se
diários, houve dias de mais de um. Holandeses que procuravam faxina ou frutos,
destacamentos que pelo istmo saíam de um para outro ponto, caíam em emboscadas que
surdiam a cada passo. Trincheiras tomadas a peito descoberto, socorros mandados por terra
aos pontos mais afastados, em concorrência com os navios e não raro vencendo-os na
rapidez; passagens de rios no momento da maré, para atacar o centro das fortificações
inimigas; fome, nudez, falta de pólvora, de médicos e botica, tudo isso de tão comum
passava despercebido. Estando, havia quase dois anos, assente na vila de Olinda e povoação
do Recife, ainda o invasor não podia, nem o deixava nosso general por si e seus capitães,
colher uma só vaca, informa Duarte de Albuquerque. E acrescenta: “Solamente comian de
lo que les embiava Olanda; com que bien licitamente se puede decir que sobre estar de
tanto tiempo em tierra, aun navegavan, pues no tenian otros bastimentos mas de los
salados”.
As notícias transmitidas à península não provocaram o alvoroço da tomada da
Bahia. Vieram socorros em pequena quantidade, a grandes intervalos e nem sempre
aproveitáveis, porque a Companhia dominava no mar, e ora se apossava das caravelas
mandadas para Pernambuco, ora as obrigava a vararem em terra, perdendo os
carregamentos ou deixando-os a grande distância dos lugares onde faziam falta. Encapava-
se esta desídia na corte sob um profundo maquiavelismo: a melhor guerra contra a
Companhia das Índias Ocidentais, alegavam estes calculistas insondáveis, consistiam
obrigá-la a despesas que com o tempo arrastariam seu descalabro econômico!
Só em 631 partiu de Lisboa o famoso d. Antônio de Oquendo com uma armada de
vinte navios, a 5 de maio. Trazia socorros para Paraíba, Pernambuco e Bahia, e na volta
deveria comboiar as embarcações carregadas de açúcar para o Reino. Procurou
primeiramente a Bahia, como se quisesse dar tempo de prepararem-se aos holandeses.
Estes, apenas souberam da sua vinda, despediram com o mesmo destino uma armada
mandada por Adrian Pater.
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Deu-se o encontro nas alturas dos Ilhéus, quando Oquendo demandava
Pernambuco, a 12 de setembro; atos de heroísmo houve de parte a parte; o almirante batavo
sepultou-se nas ondas com a capitânea; o resultado ficou indeciso, isto é, a Companhia das
Índias continuou dominando o mar. Com Oquendo vieram e continuaram no Brasil Duarte
de Albuquerque, donatário de Pernambuco, admirável historiador desta guerra, desde o
desembarque do Pau-Amarelo até o assalto da Bahia por Nassau (1630-1638), e João
Vicente de San Felice, conde de Bagnoli, que já aqui estivera com d. Fadrique de Toledo.
Depois do combate dos Ilhéus, o inimigo incendiou Olinda, desesperado de fortificá-la
eficazmente, e concentrou-se no Recife.
Até aqui sairam frustrados todos os esforços da Companhia para romper o círculo de
ferro em que a envolvera Matias de Albuquerque; apenas fundara na ilha de Itamaracá o
forte de Orange. Começa agora a sorrir-lhe a sorte. A 20 de abril de 32 passou para seu lado
Domingos Fernandes Calabar, mulato natural de Porto Calvo, aonde tinha mãe e alguns
parentes. Segundo se pode concluir das poucas e suspeitas notícias encontradas a seu
respeito nos escritos contemporâneos, Calabar exercia a profissão de contrabandista, nem
de outro modo se podem explicar os roubos feitos à fazenda real de que o acusam os
nossos, pois não deviam ter andado dinheiros públicos por suas mãos; para professar o
contrabando assinalavam-no a audácia, a presença de espírito, a fertilidade de invenções, o
profundo conhecimento das localidades. Era o único homem capaz de se medir com Matias
de Albuquerque, e como tinha sobre este a vantagem de dispor do mar, desfechou-lhe os
golpes mais certeiros. Qual móvel o levou a abandonar os compatriotas, nunca se saberá;
talvez a ambição, ou a esperança de fazer mais rápida carreira entre estranhos, tornando-se
pela singularidade de seus talentos indispensável aos novos patrões ou, talvez, o desânimo,
a convicção da vitória certa e fácil do invasor.
Entre os feitos mais notáveis inspirados por Calabar contam-se o ataque ao Igaraçu,
várias incursões ao rio Formoso, a ocupação de Afogados, séria ameaça ao arraial de Bom-
Jesus, entradas por Alagoas, a tomada de Itamaracá e Rio Grande. Estes últimos sucessos
deixavam bem iniciada a conquista da Paraíba, agora mera questão de tempo. Em fins de
fevereiro de 34, uma armada para lá se dirigiu, e durante dois dias não cessaram combates;
tratava-se, porém, de simples diversão: a verdadeira mira era, como se verificou logo no
começo de março, o cabo de Santo Agostinho. Neste porto desembarcavam os socorros
vindos da Bahia; ali embarcavam os frutos da terra destinados ao comércio; apossar-se dele
era senão impossibilitar de todo, pelo menos paralizar qualquer resistência ulterior.
O inimigo dividiu o ataque em três armadas, uma de treze, outra de onze navios,
outra composta de lanchas com mil homens encabeçados por Calabar.
Graças a seu conhecimento da localidade, os holandeses entraram no porto e
fortificaram-se no pontal. Um ataque violento dirigido contra eles, e começado sob os
melhores auspícios, fracassou devido ao pânico. O arraial passava agora ao segundo plano:
heroísmo sobraria sempre ali; o cabo de Santo Agostinho reclamava a efervescência do
general.
Com os auxílios recebidos de fresco, o inimigo dirigiu-se depois para a Paraíba, sob
o comando de Sigismundo von Schkoppe. Governava a praça Antônio de Albuquerque,
filho do conquistador do Maranhão, que bem mostrou não desmerecera o sangue paterno.
Foi-lhe, porém, impossível impedir o desembarque do inimigo a 4 de dezembro. Os
socorros, idos por terra, de Pernambuco, chegaram tarde. Os fortes foram capitulando;
véspera de Natal a cidade estava em poder da Companhia. Antônio de Albuquerque ainda
tentou fundar um arraial à semelhança do de Bom-Jesus; não encontrou companheiros; os
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que não se quiseram sujeitar ao domínio estrangeiro emigraram com ele para Pernambuco,
e foram batalhar com Matias.
No fim de cinco anos o invasor mandava desde o Rio Grande até o Recife; agora
resistiam-lhe apenas o arraial e o forte de Nazaré, no cabo de S. Agostinho. Arciszewski
desde Paraíba marchou por terra a apertar o cerco do arraial; Sigismundo von Schkoppe
seguiu do Recife para Guararapes a apertar o cerco de Nazaré. Matias de Albuquerque,
deixando-o entregue a soldados de confiança, transferiu-se a Serinhaém, para de lá
organizar e mandar os socorros. Por terra, por mar, em caravelas, em jangadas, pelos
caminhos mais defesos socorreu os companheiros enquanto pôde; mas a resistência tem
limites. “Afinal faltou o que tudo rende, que é o sustento, e não já de rocins, que isto seria
regalo, mas de couros, cachorros e gatos e ratos”, escreve Duarte de Albuquerque. “E
quando disto houvesse o necessário, já não havia pólvora nem outra munição. Não é de
admirar, pois, que se perdesse, não por certo; o admirável é que em tal estado o sustentasse
o governador André Marin com seus capitais três meses e três dias”. À rendição do arraial
em 3 de junho seguiu-se a do forte de Nazaré a 2 de julho de 635. “Al salir nuestra gente
cayeron algunos soldados muertos de que parece los sustentava vivos el no moverse”.
Bagnoli tinha-se retirado antes para Alagoas, e Matias de Albuquerque foi reunir-se
a ele com duzentos soldados de linha, menos de cem de emboscada e alguns índios. A 3
abalou de Serinhaém este êxodo dos que não desesperavam.
“Iam sessenta índios com seus capitães Antônio Cardoso e João de Almeida, ambos
bem valentes, descobrindo adiante os caminhos e bosques, por serem nisto tão práticos,
como quem havia nascido neles. Seguiam-nos os capitães d. Fernando de la Riba Agüero,
Afonso de Albuquerque, d. Pedro Taveira Souto Mayor, Francisco Rabelo, Luiz de
Magalhães, Leonardo de Albuquerque.
“Logo sucediam os moradores que se iam retirando, e levavam duzentos carros.
Atrás destes os capitães Martim Ferreira, João de Magalhães, d. Pedro Marinho, Manuel de
Sousa e Abreu, Rodrigo Fernandes, d. Gaspar de Valcáçar e Paulo Vernola. Era retaguarda
o capitão-mor dos índios Antônio Filipe Camarão, com oitenta dos seus, armados de
mosquetes e arcabuzes”. Confiavam-se a índios os postos de maior perigo! Precisam de
outra justificativa os esforços de Nóbrega?
O caminho mais praticável passava em Porto Calvo, ocupado pelo inimigo. Matias
de Albuquerque, para facilitar a passagem, teria de atacá-lo; sua resolução tornou-se
inflexível quando soube da chegada de Calabar com um reforço de duzentos soldados.
Mandou adiante a gente imbele. O combate começou a 12 de julho e continuou nos dias
seguintes. A 19 o inimigo propôs capitular. Os sitiantes, sem os índios, eram apenas cento e
quarenta; o inimigo, além de Picard, chefe holandês, e numerosos oficiais, contava
trezentos e sessenta homens. Foram desarmados e logo mandados aos pequenos troços para
Alagoas, a fim de não conhecerem a insignificância da força atacante e romperem o pacto à
última hora. De todos Matias de Albuquerque reservou para a justiça real o Domingos
Fernandes Calabar. No dia 22, “strangulatusque, jugulo defectionem expiavit, et dissectos
artus infidelitatis ac miseriae suae testes ad spectaculum reliquit”.
Desde muito anunciava-se a chegada de nova e mais forte frota espanhola com
socorros. Matias de Albuquerque deixara em diversos pontos do litoral pessoas fiéis
incumbidas de darem notícias da terra aos navegantes e fornecerem-lhes indicações sobre o
ponto mais convenientes para o desembarque. Devia partir em março, depois em maio, só
partiu em 7 de setembro. Reunidos em Cabo Verde os navios espanhóis e portugueses,
comandados aqueles por d. Lope de Hoces y Córdoba, estes por d. Rodrigo Lobo,
decidiram aproar a Pernambuco.
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A 26 de novembro avistaram Olinda, e logo em frente ao Recife surtas nove naus do
inimigo, carregadas de açúcar, pau-brasil, tabaco, algodão e gengibre, de partida para a
Holanda, cada uma com cinco ou seis homens apenas a bordo. Resolveu-se atacá-las mas o
almirante espanhol, a pretexto de suas naus serem maior calado, deu contra-ordem. Nem ao
menos se deteve um pouco à espera de algum mensageiro de terra.
Sigismundo ante o aparelho bélico julgou-se perdido, mas a viração soprava de
Nordeste, as águas corriam para o Sul, e era agradável entregar-se às seduções da corrente.
No cabo de S. Agostinho um jangadeiro desfraldando a vela pôde comunicar o recado:
deitassem a gente no rio Serinhaém, mandassem um navio buscar Matias de Albuquerque!
As duas armadas entregaram a solução ao vento e às águas; ao anoitecer de 28 ancoravam
em Alagoas.
Vinham a bordo Pedro da Silva, nomeado sucessor de Diogo Luís de Oliveira no
governo geral do Brasil, Luis de Rojas y Borja, sucessor de Matias de Albuquerque. Devia
este recolher-se ao Reino; Duarte de Albuquerque continuaria no governo político da sua
capitania; a Diogo Luís de Oliveira cometia-se a reconquista de Curaçau, antes de voltar
para o Reino.
Matias informou largamente a Rojas y Borja do estado de cousas. Em suma, a
situação não era desesperada; urgia desandar o caminho percorrido, voltar para o Norte,
inquietar, expulsar o inimigo. Calaram estes conselhos: d. Luis pôs-se a caminho de
Pernambuco e apossou-se de Porto Calvo, ocupado pelo inimigo apenas os nosso
prosseguiram para o Sul, depois da execução de Calabar. Teria forças para continuar as
tradições e estaria à altura do seu heróico antecessor? Na batalha de Mata Redonda (18 de
janeiro), um mosquetaço na perna derrubou-o do cavalo, outro no peito levou-lhe a vida,
aos cinqüenta anos de idade. Pelas vias de sucessão assumiu o comando supremo o conde
de Bagnoli, velho militar muito difícil de se julgar com justiça. Nossos escritores tratam-no
sempre com menosprezo, cobrem-no de apodos, negam-lhe até a virtude elementar da
coragem individual. Constitui uma exceção apenas Duarte de Albuquerque, sempre discreto
e circunspecto, mas sente-se que não expõe todo o seu pensamento. De Bagnoli, se alguma
linha já foi publicada relativa ao período holandês, anda perdida em alguma coleção escura:
não sabemos como se defenderia dos acusadores. Em todo caso uma honra lhe cabe: nunca
desesperou.
Bagnoli assinalou seu comando pelo emprego de companhistas, aventureiros,
destemidos, que iam até as barbas do inimigo, aprisionando, degolando gente, jarreteando
gado, se não podiam conduzi-lo, queimando os canaviais, os açúcares, o pau-brasil, os
engenhos. Alguns avançaram até as fronteiras da Paraíba. Era sempre o pensamento de
Matias de Albuquerque: a conquista nunca seria fato consumado. Algum tempo Bagnoli
pensou em mover-se para o Norte e fortificou ligeiramente o passo do rio Una, seis léguas
ao Sul de Serinhaém. Talvez contribuísse a animá-lo nesta iniciativa tão estranha à sua
maneira habitual a presença de Duarte de Albuquerque. Com este avanço os holandeses
abandonaram Paripuera e Barra Grande.
Tomado o arraial de Bom-Jesus, ocupada a fortaleza de Nazaré, a Companhia das
Índias Ocidentais achou a ocasião própria para nomear um governador geral, como lhe
permitia seu regimento.
Escolheu João Maurício, conde de Nassau- Siegen, membro da família de Orange, e
confiou-lhe interinamente o cargo por cinco anos. A 27 de janeiro de 637 aportou Nassau a
Pernambuco, onde deveria permanecer um octênio. Em sua companhia ou logo depois
vieram consideráveis reforços. Tratou sem demora de retomar Porto Calvo. Do Recife
partiram ao mesmo tempo trinta navios com dois mil infantes mandados por Arciszewski,
50
que a 12 de fevereiro fundearam em Barra Grande, e o próprio Nassau com Sigismundo,
levando três mil soldados e quinhentos índios, que incólumes passaram o rio Una,
desguarnecido por Bagnoli.
Reunidos apresentaram-se a 17 diante do povoado; a 18 travaram um combate de
que a nossa gente não saiu com o melhor partido; a 20 subiram lanchas pelo rio das Pedras,
conduzindo artilharia e material; com o canhoneio, respondido sempre galhardamente,
baquearam os parapeitos do forte de Porto Calvo, misturando terra nos mantimentos; a 5 de
março a falta de víveres obrigou Miguel Giberton, comandante da praça, a render-se.
Na noite de 18 de fevereiro, depois de mandar Alonso Ximénez com parte da força
pelo caminho da praia, escoltando a gente que se queria retirar para Alagoas, Bagnoli
tomou o mesmo destino pelo interior. A 25 chegava à vila de Madalena, onde não julgou
prudente demorar. A 10 de março continuou a marcha e a 17 chegava à vila de S.
Francisco, recentemente erigida pelo donatário na margem esquerda do rio, a meia distância
entre a barra e a região encachoeirada. Duarte de Albuquerque aconselhou-lhe fortificar-se
no rio Piaguí, para resistir ao inimigo, caso avançasse por terra; tão pouca atenção prestou a
este como antes ao conselho de fortificar eficazmente o passo da Una. Em ambos os casos o
inimigo não deparou tropeços.
A 18 Bagnoli fez os terços napolitano e castelhano atravessarem o rio para a
capitania de Sergipe; a 19 passou parte do terço de Portugal, a 26 passou o resto; a 27
chegaram os holandeses à vila e acharam-na vazia. Com a confusão, muitos dos retirantes
ficaram prisioneiros, salvaram-se outros perdendo todos os haveres. No local abandonado
por Bagnoli resolveu Nassau construir um forte chamado Maurício: lá existe hoje a cidade
de Penedo. Sigismundo foi incumbido da construção e do comando. Nassau voltou para
Pernambuco.
A 31 de mao Bagnoli chegou a S. Cristóvão. Por sua ordem diversos
companhistas avançaram para Alagoas, ora acima, ora abaixo do forte, fazendo suas
costumadas façanhas. Trouxeram também a notícia de uma invasão planejada no forte
Maurício contra Sergipe, no intento de arrebanhar as numerosas manadas de gado, e vingar-
se dos audazes que não deixaram os holandeses sossegados em suas novas conquistas. De
fato, a 17 de novembro Sigismundo chegou a S. Cristóvão, já deserta, a 25 de dezembro
queimou a cidade e retirou-se para o outro lado do rio.
A 14 de novembro, sabendo da entrada do inimigo pelo território sergipano, Bagnoli
prosseguiu para a Bahia, com grande pesar e indignação dos emigrados de Paraíba e
Pernambuco, que haviam começado suas roças; a 24 alcançou a Torre de Garcia d’Ávilla,
onde recebeu ordem do governador geral para se deter. Com alguns companheiros
encaminhou-se a 15 de dezembro para a cidade do Salvador a avistar-se com Pedro da
Silva, governador geral do Estado. Receoso de próximo ataque dos holandeses contra a
capital do Brasil, vinha lembrar a conveniência de estabelecer-se com sua gente na antiga
povoação de Pereira, onde poderia com suas forças auxiliar a resistência.
Nem Pedro da Silva, nem o povo acreditaram na iminência de tal perigo, ninguém
queria a soldadesca na vizinhança. Concordou-se que permaneceriam na Torre e,
contrariado embora, Bagnoli submeteu-se. Em breve, porém, seus companhistas trouxeram
notícia que Nassau preparava uma expedição destinada a tomar a Bahia e, apesar de
pactuado, marchou para Vila-Velha a 14 de março de 38.
Prisioneiros feitos por Sebastião do Souto, chegados ao acampamento em 8 de abril,
dissiparam as últimas dúvidas. A 16 numa forte armada Nassau entrava de fato pela baía de
Todos-os-Santos, com três mil e quatrocentos soldados europeus e mil índios, e
desembarcou em Itapagipe.
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Nos dias seguintes apossou-se de alguns fortes, construiu trincheiras e baluartes,
despejou artilharia contra partes da cidade. A continuação correspondeu mal a tão brilhante
estréia: as tropas de Bagnoli e a guarnição, deixadas de parte rivalidades mesquinhas,
bateram-se com entusiasmo; a população, a princípio tumultuária e desconfiada, acreditou
por fim na bravura e capacidade dos defensores; embarcações veleiras traziam sem cessar
farinha de Camamu; entrou abundante gado de Itapicuru e do Real; emboscadas repetidas
faziam prisioneiros pelos quais se ficava a par de todos os passos do inimigo; realizaram-se
sortidas felizes. Na noite de 25 para 26 de maio Maurício de Nassau encerrou as seis
semanas de carnificina, embarcando furtivamente para o Recife, não com tanta festa como
se prometia, nem com tanto contentamento como desejava.
A vitória foi conhecida na península quando se preparava uma forte armada
restauradora, composta de trinta e três navios, comandada por d. Fernando Mascarenhas,
conde da Torre. Partiu de Lisboa a 7 de setembro; depois de danosa demora no pestilencial
clima do Cabo Verde, passou à vista de Recife em 23 de janeiro de 39, sem, tão pouco
como as duas que a precederam, ousar atacá-lo, e seguiu para a Bahia. Nassau aproveitou o
aviso, e no prazo de quase um ano pelo almirante português proporcionado, melhorou as
fortificações, organizou um serviço de informações rápidas e aparelhou uma esquadra.
Só a 19 de novembro a armada restauradora partiu da Bahia em demanda do Norte,
já então elevada a oitenta e seis embarcações com onze a doze mil homens. A situação de
Nassau era aproximadamente a de Matias de Albuquerque dez anos antes, com a grande
vantagem de possuir a força naval que faltava àquele.
O conde da Torre poderia desembarcar nas proximidades de Santo Agostinho ou
Serinhaém; preferiu abordar o Pau-Amarelo. Não lho permitiu a vigilância do inimigo.
Apareceu depois a armada holandesa; entre a ponta de Pedras, o ponto mais oriental do
continente americano, e Canhaú, na costa do Rio Grande, renhiram-se combates a 12, 13,
14 e 17 de janeiro de 40. Apenas cerca de mil soldados nossos lograram tomar terra na
ponta do Touro, donde Luiz Barbalho, por entre inimigos e pelo sertão, novo Xenofonte,
levou-os heròicamente à Bahia. Já o precedera por via marítima com os destroços que pôde
salvar o conde da Torre, acompanhado do velho Bagnoli, que não tardou a falecer. O resto
da esquadra dispersara-se em várias direções.
Os flamengos sofreram grandes perdas; alguns de seus oficiais portaram-se
covardemente e foram executados; mas a vitória coube às suas armas e sua posição
consolidou-a mais do que nunca.
Podemos deixar em silêncio vários feitos navais dos holandeses e numerosas
incursões dos companhistas ocorridos em seguida; outro sucesso reclama de preferência a
atenção. A 1 de dezembro de 640 Portugal declarou-se independente da Espanha, aclamou
rei o duque de Bragança, tratou pactos de amizade com os adversários da monarquia
espanhola. A 12 de junho de 41 concluiu com a Holanda um tratado de aliança ofensiva e
defensiva na Europa, e nas colônias uma trégua de dez anos, que devia vigorar para os
domínios da Companhia das Índias Orientais um ano depois da ratificação do tratado, e nos
da companhia das Indias Ocidentais apenas a notícia de haver sido ratificado fosse
transmitida oficialmente. Esta cláusula pouco lisa deve ter sido lembrada pelos portugueses,
na esperança de melhorarem a situação durante o interstício; de outro modo não se explica
terem demorado a ratificação até 18 de novembro. Em fevereiro de 42 os Estados Gerais
ordenaram às duas companhias cumprissem fielmente o pactuado.
Governava na Bahia, como primeiro vice-rei do Brasil, d. Jorge de Mascarenhas,
marquês de Montalvão, quando chegou a notícia dos sucessos de Portugal. Suas medidas
previdentes inutilizaram a pequena guarnição espanhola; todos os magnatas aderiram à
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independência de Portugal e à aclamação do Bragança, e o resto do país acompanhou-os,
mesmo a capitania de S. Vicente, onde havia muitas famílias de estirpe castelhana.
O vice-rei comunicou a novidade a Maurício de Nassau, que a recebeu contente e
celebrou-a com festas. O inimigo tradicional era o espanhol; tudo de contrário a este
resultava em proveito das Províncias Unidas. As relações melhoraram ainda com a notícia
do tratado de 12 de junho; como, porém, a ratificação se demorasse, Maurício ampliou os
domínios da Companhia no Maranhão e na África.
Os últimos anos do seu governo cabem em poucas palavras. Da obra do
administrador nada sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se na voragem de fogo e
sangue dos anos seguintes; suas coleções artísticas enriqueceram vários estabelecimentos
da Europa e estão estudando-as os americanistas; os livros de Barlaeus, Piso, Markgraf,
devidos a seu mecenato, atingiram uma altura a que nenhuma obra portuguesa ou brasileira
se pode comparar, nos tempos coloniais; parece mesmo terem sido pouco lidos no Brasil
apesar de escritos em latim, na língua universal da época, tão insignificantes vestígios
encontramos deles.
A cidade Mauricéia não guardou seu nome, mas prosperou e conserva sua memória.
Com o título de desforra, legado, vingança ou coisa semelhante, de Maurício de Nassau,
poderia um amante de fantasias históricas interpretar a guerra dos Mascates adiante
narrada, e não precisaria de esforço maior do que o empregado para transformar Domingos
Fernandes Calabar em patriota e vidente. A origem principesca de Maurício lisonjeou os
colonos e tornou-lhes mais repugnantes os outros governadores, simples burgueses, meros
dependentes da Companhia. Ele próprio preveniu disto os sucessores, ao entregar-lhes o
mando.
Frei Manuel Calado, que o conheceu e freqüentou, apresenta-o como fidalgo de
raça, capaz de sentir uma injustiça e repará-la, amante de festas e esplendores, inclinado a
farsas nem sempre do gosto mais delicado, admirador das belezas tropicais, isento da
preocupação de voltar as terras mais civilizadas. Em limpeza de mãos ficou infinitamente
abaixo de Matias de Albuquerque: está provado o seu conluio em contrabandos com Gaspar
Dias Ferreira que, como era natural, logrou-o no ajuste das contas, feito em Holanda
quando o príncipe já não governava.
À partida de Maurício de Nassau, em maio de 644, seguem-se dez anos
profundamente agitados.
Dos emigrados com Matias de Albuquerque alguns tinham voltado para as antigas
propriedades e procuravam reconstituir sua antiga abastança. O regime holandês era duro,
as extorsões contínuas; mesmo se Nassau fosse o justiceiro, em que pretendem transfigurá-
lo, não tinha braço bastante longo e bastante forte para amparar todas as vítimas.
Os invasores desarmaram a população rural, preferindo deixá-la entregue às
devastações inclementes de companhistas a ter de se preocupar algum dia com qualquer
tentativa de insurreição.
Como poderia reagir?
O foco do irredentismo, entretanto, lavrava na Bahia.
Norteiros emigrados e reduzidos à miséria, baianos, cujos engenhos devastaram
tantas vezes as expedições marítimas dos flamengos, alimentavam profundo rancor contra
os seus malfeitores; padres e frades espoliados e expulsos irritavam a consciência religiosa.
O sucessor de Montalvão, Antônio Teles da Silva, tão abrasado católico que quis fundar e
dotar à sua custa um Santo Ofício para o Brasil, a exemplo de Goa, onde estivera, não podia
suportar herejes na vizinhança.
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Ainda no tempo de Nassau a religião católica gozava de tolerância embora limitada
e instável. Com sua partida, protestantes e judeus ultrajavam a toda hora as crenças da
população indígena. Por isso o primeiro título assumido pelos chefes dos insurgentes foi o
de governadores da liberdade divina: em linguagem moderna tanto valeria dizer da
liberdade de consciência.
Da Bahia devia partir a iniciativa contra o flamengo, pois só de lá podiam sair o
armamento, os oficiais, a gente de guerra, em torno da qual se adensassem os
pernambucanos bisonhos; precisava-se, entretanto, de um chefe em Pernambuco, para o
esforço não ficar perdido nos primórdios.
Um só homem havia ali capaz de assumir esta responsabilidade, se quisesse: João
Fernandes Vieira. Natural da ilha da Madeira, passara aos onze anos para aquela capitania,
batera-se ao lado de Matias de Albuquerque, e foi um dos prisioneiros do arraial de Bom-
Jesus, em junho de 635. Preferiu ficar com os holandeses, depois da rendição, e a sorte
protegeu-o. Adquiriu a maior fortuna da terra. Os compatriotas respeitavam-no, e ele os
ajudava e protegia liberal e generosamente. Conciliou igualmente as graças dos invasores.
Por que artes explica-o no seu testamento: “Também me são devedores [os flamengos]de
mais de cem mil cruzados, que no decurso de oito ou nove anos lhes dei por remir minha
vexação e por segurar a vida de suas tiranias, de peitas e dádivas a todos os governadores e
seus ministros e com grandiosos banquetes que ordinàriamente lhes dava pelos trazer
contentes”.
À primeira vista ninguém menos próprio para o papel de herói e libertador.
Entretanto Vidal de Negreiros, paraibano que começou a se distinguir com Matias de
Albuquerque, e oficial da guarnição da Bahia, sondou o espírito de Vieira e achou-o
disposto à empresa. Notou, porém, a falta de munições, de armamento, de gente entendida
em guerra para o levante não degenerar em manifestação estéril; para suprir todas estas
faltas precisava-se de tempo e de socorros estranhos. De fato foi-se fazendo tudo com as
maiores precauções possíveis. Apesar de todas as cautelas, os holandeses tiveram notícias
vagas dos preparativos, admira até, que as tivessem tão tarde, quando o segredo andava por
tantas bocas, e mandaram duas embaixadas a Antônio Teles, queixando-se dos baianos que
fomentavam a revolução nas possessões dos recém-aliados.
Um dos embaixadores, d. von Hoogstraten, comprometeu-se a trair os patrões,
entregando o forte de Nazaré de seu comando quando lhe fosse exigido.
Por ocasião da segunda embaixada, Camarão e seus índios, Henrique Dias e seus
negros, de acordo com o governador da Bahia, a convite de Vieira tinham passado para o
lado de Pernambuco. Peguem-nos e castiguem-nos como merecem, intimava Antônio Teles
aos agentes da Companhia das Índias Ocidentais, desde que não pôde mais negar a sua
ausência. E quando a gente de Vieira começou a se agitar, mandou embarcados dois terços
da força paga sob o mando do velho Martim Soares Moreno e do ardente Vidal de
Negreiros, a pretexto de conterem os rebeldes. Os dois mestres de campo a 28 de julho de
45 desembarcaram próximo de Serinhaém; logo a 4 de agosto rendeu-se-lhes o forte
holandês ali situado; a 3 de setembro Hoogstraten entregou-lhes o forte de Pontal, como
tratara.
Para se ajuizar da importância deste ponto basta lembrar que Matias de
Albuquerque nunca mais assistiu no arraial de Bom Jesus depois de tomado o Pontal.
Assim a restauração começava por onde findara a conquista. O êxito dos terços baianos
seria maior se o flamengo não destruísse a esquadrilha de Serrão de Paiva em que tinham
vindo até Serinhaém e se Salvador Correia colaborasse com sua armada, como lhe foi
mandado, para fechar o ataque do Recife por terra e por mar.
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Desde junho, antes de chegado o reforço da Bahia, a insurreição rebentara em
Pernambuco. Com pouca gente, sem armamentos, sem munição, Vieira devia empenhar-se
sobretudo em não se encontrar com o inimigo. Isto conseguiu graças às medidas cautelosas
anteriormente tomadas, ao requintado serviço de espionagem, apoiado no conhecimento das
localidades. Só a 3 de agosto houve o primeiro combate no Monte das Tabocas, e a vitória
ficou de nosso lado. Aos que censuram as hesitações de Vieira, suas delongas à espera de
Camarão e Henrique Dias, sua insistência por socorros da Bahia, basta lembrar um fato: na
batalha das Tabocas muita gente combateu ainda de pau tostado e foice por falta de
espingarda.
Uma das vantagens da vitória foi proporcionar armas de fogo e munições tiradas aos
inimigos mortos. A tomada da Casa-Forte em 16 de agosto propagou o incêndio. Com a
rendição de Serinhaém e do Pontal a Martim Soares e André Vidal, insurgiu-se o Sul até o
rio de S. Francisco e a situação voltou ao que era em começos de 35. As forças baianas,
mandadas a pretexto de pacificá-los, reuniam-se sem rebuço aos insurgentes.
Formou-se logo um arraial à margem direita do Capibaribe, e deram-lhe o nome de
arraial Novo do Bom Jesus. Daqui partiram ataques incessantes contra a gente do Recife.
Uma fortaleza no continente, a força do Asseca, sobretudo, causava-lhe grandes estragos.
Lembrou-se Sigismundo de repetir a tática pela qual isolara o antigo arraial do forte de
Nazaré e obrigara os dois a se renderem. Desta vez o plano mangrou: a batalha dos
Guararapes (19 de abril de 48) terminou em derrota completa dos invasores, que deixaram
o campo juncado de mortos e despojos. Uma compensação tiveram valiosa: a devastadora
força de Asseca passou para seu poder e em seu poder persistiu até o fim da guerra.
Poucos dias antes da batalha dos Guararapes assumira o comando supremo dos
pernambucanos o general Francisco Barreto de Menezes, mandado do Reino a este fim. O
estado em que achou as cousas descreve assim um historiador destes feitos, arauto enfático
de Vieira: “Sem armas e soldados venceu [Vieira] o inimigo que o buscava com soldados e
armas na batalha das Tabocas. Depois unido com o mestre de campo André Vidal de
Negreiros ganharam a vitória ao flamengo no engenho de d. Ana Pais, e nove fortalezas,
com outros redutos e casas fortes; perto de oitenta peças de artilharia de diversos calibres, a
maior parte de bronze; armas, munições e petrechos de guerra em tanta quantidade quanta
bastou para sustentar a guerra viva em cinco anos contínuos”.
À primeira seguiu-se a segunda batalha dos Guararapes, em 19 de fevereiro de 49,
com o mesmo resultado contrário aos flamengos. Depois dela não houve mais combates
notáveis por terra nem por mar. A Companhia estava exausta, apesar dos largos subsídios
dados pelos Estados Gerais. Dentro em pouco estes não puderam mais auxiliá-la,
envolvidos em guerra contra a Inglaterra. Em compensação Portugal organizara uma
companhia de comércio que apareceu na costa pernambucana por dezembro de 53. Os
patriotas puseram-se de acordo com ela, como outrora a gente da Bahia com a armada de d.
Fadrique de Toledo; o almirante português desembarcou no rio Tapado, o primeiro ponto
em que Weerdenburgh tentara o desembarque, e em Olinda combinou com os chefes
pernambucanos a marcha a seguir.
Um a um foram caindo os fortes holandeses; a 26 de janeiro de 54 assinava-se a
capitulação da Taborda, e terminava esta guerra, levada quase sem interrupções durante
trinta anos.
O desfecho fora previsto e publicado anos antes por Pierre Moreau, natural de
Charolais, na Borgonha, que passara algum tempo entre os holandeses, em Pernambuco.
Suas palavras patenteiam algumas das mais profundas causas do insucesso final da
Companhia das Índias Ocidentais.
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“Não há aparência”, publicava em 1651, “de que os holandeses possam nunca se
restabelecer e restaurar no Brasil como eram antes, mesmo se sua frota derrotasse a dos
portugueses; mesmo se lhes enviassem outro socorro semelhante ao último, apenas
perderiam homens e esgotariam seus tesouros, sem nada adiantar; porque o território que
lhes resta desde o Ceará até a cidade de Olinda está inteiramente perdido e sem habitantes,
as casas, povoados, aldeias ou vilas, as próprias fruteiras queimadas e arruinadas, portanto
seu estado inútil e sem proveito; e embora sejam senhores das fortalezas do Rio Grande e
Paraíba, as únicas que resistem com o Recife, para pouco prestam e delas não podem tirar
socorros; os que se animam a reconstruir tijupás para cultivar a terra ou se aventuram a
alguma distância são surpreendidos e mortos quando menos pensam pelos corsos ordinários
dos portugueses, dos Tapuias e dos brasis bravos (desunis) que não têm dó de ninguém.
Os portugueses têm bloqueado o Recife, por terra, de todos os lados, por meio da
cidade de Olinda, do cabo de S. Agostinho, das fortalezas construídas em redor; são
absolutos por toda a campanha fértil e abundante, e de todas as praças fortes, portos, abras e
passagens desde o Recife até a outra extremidade do Brasil além do Rio de Janeiro. Todo o
país que possuem é muito bem povoado, com gente de guerra numerosa, sabem subsistir e
vivem do que a terra produz com abundância, dispensam facilmente as produções da
Europa, coisa impossível aos holandeses, que aliás têm apenas soldados arrebanhados de
diversas nações, comprados antes que escolhidos, de cuja fidelidade não podem estar
seguros, impróprios aos costumes e ao ar estranho do país, ignorantes dos desvios e das
emboscadas dos lugares. Ao passo que os portugueses em sua maioria ali nasceram, dele
são originários desde a quarta geração, são robustos, um mesmo povo, dos mesmos
costumes e complexões, que se sustentam entre si, não deixam de valorizar e tirar proveito
da terra, sabem-lhe até os mínimos recantos, e basta-lhes esperarem os inimigos nas
passagens para derrotá-los”.
Em outros termos, Holanda e Olinda representavam o mercantilismo e o
nacionalismo. Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como
Vieira, masombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como Henrique Dias,
mamalucos, mulatos, caribocas, mestiços de todos os matizes combaterem unânimes pela
liberdade divina.
Sob a pressão externa operou-se uma solda, superficial, imperfeita, mas um
princípio de solda, entre os diversos elementos étnicos.
Vencedores dos flamengos, que tinham vencido os espanhóis, algum tempo
senhores de Portugal, os combatentes de Pernambuco sentiam-se um povo, e um povo de
heróis. Nesta convicção os confirmaram os testemunhos do reconhecimento oficial, os
encarecimentos dos historiadores, como Manuel Calado e Rafael de Jesus, cujas obras
foram logo publicadas, Diogo Lopes de Santiago, inédito até nossos dias, os sobreviventes
das lutas, os herdeiros das tradições ligeiramente alteradas com o tempo. Um documento de
1703 resume tais sentimentos nos seguintes termos:
“Entre todas as nações do orbe são os portugueses os que se têm empenhado nas
empresas mais árduas e conseguido os maiores triunfos, tendo pelo mais heróico brasão a
fidelidade e íntimo afeto com que não só veneram mas adoram aos seus príncipes naturais:
e sendo isto assim parece que em Pernambuco se souberam sinalar com maior ventagem,
pois quando mais oprimidos, mais sujeitos e mais desamparados, sem favor e sem humana
ajuda, desprezando aquele trato que a continuação de tantos anos pudera por familiar ter
facilitado, e mais sabendo grangear os ânimos com liberal mão os holandeses, desprezando
tudo com soberano impulso, intentaram e conseguiram a mais ilustre ação e digna de
imortal fama, não só porque com invicto sofrimento suportaram o duro peso de toda a
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guerra, até se extinguir de todo a hostilidade, mas ostentando-se ainda mais generosos, nem
um privilégio procuraram impetrar por serviço tão relevante, havendo despendido por
consegui-lo todos os seus bens e ficando pobres; e assim sem mais prêmio que o interesse
do glorioso nome de leais vassalos, fidelíssimos ao seu rei e amantíssimos de sua pátria,
recuperada e isenta de alheio domínio lha restituiram como usurpada, sendo uma tão nobre
parte da sua real coroa, a custa do caro preço de tantas vidas e de tanto sangue vertido,
recuperando, o que é o mais, o culto ao sagrado que tão profanamente viram da heresia
infestado tantos anos.”
Passado o primeiro momento de entusiasmo, os reinóis quiseram reassumir a sua
atitude de superioridade e proteção. Data daí a irreparável e irreprimível separação entre
pernambucanos e portugueses.
————
IX
O SERTÃO
A invasão flamenga constitui mero episódio da ocupação da costa. Deixa-a na sombra a todos os
respeitos o povoamento do sertão, iniciado em épocas diversas, de pontos apartados, até formar-se uma
corrente interior, mais volumosa e mais fertilizante que o tênue fio litorâneo.
* * *
Podemos começar pela capitania de São Vicente. O estabelecimento de Piratininga, desde a era de
530, na borda do campo, significa uma vitória ganha sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o
esforço de várias gerações. Deste avanço procede o desenvolvimento peculiar de São Paulo.
O Tietê corria perto; bastava seguir-lhe o curso para alcançar a bacia do Prata.
Transpunha-se uma garganta fácil e encontrava-se o Paraíba, encaixado entre a serra do
Mar e a da Mantiqueira, apontando o caminho do Norte. Para o Sul estendiam-se vastos
descampados, interrompidos por capões e até manchas de florestas, consideráveis às vezes,
mais incapazes de sustarem o movimento expansivo por sua descontinuidade. A Este
apenas uma vereda quase intransitável levava à beira-mar, vereda fácil de obstruir,
obstruída mais de uma vez, tornando a população sertaneja independente das autoridades da
marinha, pois um punhado de homens bastava para arrostar um exército, e abrir novas
picadas, domando as asperezas da serra, rompendo as massas de vegetação, arrostando a
hostilidade dos habitantes, pediria esforços quase sobre-humanos.
Sob aquela latitude, naquela altitude, fora possível uma lavoura semi-européia, de
alguns, senão todos os cereais e frutos da península. Ao contrário o meio agiu como
evaporador: os paulistas lançaram-se a bandeirantes.
Bandeiras eram partidas de homens empregados em prender e escravizar o gentio
indígena. O nome provém talvez do costume tupiniquim, referido por Anchieta, de
levantar-se uma bandeira em sinal de guerra. Dirigia a expedição um chefe supremo, com
os mais amplos poderes, senhor da vida e morte de seus subordinados. Abaixo dele com
certa graduação marchavam pessoas que concorriam para as despesas ou davam gente.
Figura obrigada era o capelão. “Meu capelão saiu para fora estando eu para sair para
a campanha”, escrevia Domingos Jorge Velho em novembro de 692, “mandei-o buscar; não
quis vir; de necessidade busquei o inimigo; sem ele morreram-me três homens brancos sem
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confissão, cousa que mais tenho sentido nesta vida; peço-lhe pelo amor de Deus me mande
um clérigo em falta de um frade, pois se não pode andar na campanha e sendo com tanto
risco de vida sem capelão”. Montoya fala nestes “lobos vestidos de pieles de ovejas, unos
hipocritones, los cuales tienen por oficio mientras los demás andan robando y despojando
las iglesias y atando indios, matando y despedazando niños, ellos, mostrando largos
rosarios que traen al cuello, lléganse á los padres [jesuítas espanhóis] pidenles confesion...
y mientras están hablando de estas cosas van pasando las cuentas del Rosario muy aprisa”.
Escravos serviam de carregadores. Compunha-se a carga de pólvora, bala,
machados e outras ferramentas, cordas para amarrar os cativos, às vezes sementes, às vezes
sal e mantimentos. Poucos mantimentos. Costumavam partir de madrugada, pousavam
antes de entardecer, o resto do dia passavam caçando, pescando, procurando mel silvestre,
extraindo palmito, colhendo frutos; as pobres roças dos índios forneciam-lhes os
suplementos necessários, e destruí-las era um dos meios mais próprios para sujeitar os
donos.
Se encontravam algum rio e prestava para a navegação, improvisavam canoas
ligeiras, fáceis de varar nos saltos, aliviar nos baixios ou conduzir à sirga. Por terra
aproveitavam as trilhas dos índios; em falta delas seguiam córregos e riachos, passando de
uma para outra banda conforme lhes convinha, e ainda hoje lembram as denominações de
Passa-Dois, Passa-Dez, Passa-Vinte, Passa-Trinta; balizavam-se pelas alturas, em busca de
gargantas, evitavam naturalmente as matas, e de preferência caminhavam pelos espigões.
Alguns ficaram tanto tempo no sertão que “volviendo a sus casas hallaron hijos nuevos, de
los que teniendolos ya a ellos por muertos, se habian casado com sus mujeres, llevando
tambien ellos los hijos que habian engedrado en los montes”, informa-nos Montoya. Os
jesuítas chamam à gente de S. Paulo mamalucos, isto é, filhos de cunhãs índias,
denominação evidentemente exata, pois mulheres brancas não chegavam para aquelas
brenhas.
Faltaram documentos para escrever a história das bandeiras, aliás sempre a mesma:
homens munidos de armas de fogo atacam selvagens que se defendem com arco e frecha; à
primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo desmaia-lhes a coragem; os
restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e distribuídos segundo as condições em
que se organizou a bandeira. Nesta monotonia trágica os Caiapós introduziram mais tarde
uma novidade: “a de nos cercar de fogo quando nos acham nos campos, a fim de que
impedida a fuga nos abrasemos: este risco evitam já alguns lançando-lhe contrafogo, ou
arrancando o capim para que não se lhe comuniquem as suas chamas; outros se untam com
mel de pau, embrulhados em folhas ou cobertos de carvão, por troncos verdes ou paus
queimados”.
À parte geográfica das expedições corresponde mais ou menos o seguinte esquema:
Os bandeirantes deixando o Tietê alcançaram o Paraíba do Sul pela garganta de São
Miguel, desceram-no até Guapacaré, atual Lorena, e dali passaram a Mantiqueira,
aproximadamente por onde hoje transpõe a E. F. Rio e Minas. Viajando em rumo de
Jundiaí e Mogi, deixaram à esquerda o salto do Urupungá, chegaram pelo Paranaíba a
Goiás. De Sorocaba partia a linha de penetração que levava ao trecho superior dos afluentes
orientais do Paraná e do Uruguai. Pelos rios que desembocam entre os saltos do
Urubupungá e Guaiará, transferiram-se da bacia do Paraná para a do Paraguai, chegaram a
Cuiabá e a Mato-Grosso. Com o tempo a linha do Paraíba ligou o planalto do Paraná ao do
S. Francisco e do Parnaíba, as de Goiás e Mato-Grosso ligaram o planalto amazônico ao
rio-mar pelo Madeira, pelo Tapajós e pelo Tocantins.
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As bandeiras no século XVI devastaram sobretudo o Tietê, cujos numerosos
Tupiniquins depressa desapareceram, e o alto Paraíba, chamado rio dos Surubis em
Piratininga, segundo informa Glimmer; com o tempo foram-se alongando os raios do
despovoamento e depredação, característico essencial e inseparável das bandeiras.
O movimento paulista para o sertão ocidental chocou-se com o movimento
paraguaio à procura do mar: Ciudad Real, no Piqueri, próximo do salto das Sete Quedas,
Vila Rica, no Ivaí, datam da segunda metade do século XVI, antes do Brasil cair sob o
domínio da Espanha. Com estes colonos a gente de São Paulo cultivou a princípio boas
relações; nas caçadas humanas foram às vezes sócios aliados. Além disso a viagem por
terra do Paraguai para a costa fazia-se mais facilmente procurando Piratininga, do que
repetindo a incômoda travessia de Cabeza de Vaca. A harmonia entrava assim no interesse
de ambas as partes. Só mais tarde houve conflitos e as duas povoações desapareceram.
Por 1610, jesuítas castelhanos partidos de Asunción começaram a missionar na
margem oriental do Paraná. Fundaram Loreto e San Ignacio, no Paranapanema, e em
compasso acelerado mais onze reduções no Tibagi, no Ivaí, no Corumbataí, no Iguaçu.
Transposto o Uruguai, assentaram outras dez entre o Ijuí e o Ibicuí, outras seis nas terras
dos Tape, em diversos tributários da lagoa dos Patos. De San Cristóbal e Jesús María, no
rio Pardo, poucas léguas os separavam agora do mar.
Esta catequese grandiosa não consistia simplesmente em verter as orações da
cartilha para a língua geral, fazê-las repetir pela multidão ignara, submetendo-a à
observância maquinal do culto externo. “Reduções, escreve um dos jesuítas
contemporâneos que mais concorreram para avultarem, chamamos aos povoados dos
índios, que vivendo à sua antiga usança, em matos, serras e vales, em escondidos arroios,
em três, quatro ou seis casas apenas, separados, uma, duas, três e mais léguas uns de outros,
os reduziu a diligência dos padres a povoações grandes e a vida política e humana, a
beneficiar algodão com que se vistam, porque comumente viviam em nudez, ainda sem
cobrir o que a natureza ocultava”.
Não se imagina presa mais tentadora para caçadores de escravos. Por que aventurar-
se a terras desvairadas, entre gente boçal e rara, falando línguas travadas e
incompreensíveis, se perto demoravam aldeamentos numerosos, iniciados na arte da paz,
afeitos ao jugo da autoridade, doutrinados no abanheen?
Houve alguns salteios contra as reduções desde o seu começo, mas a energia e o
sangue frio dos jesuítas contiveram os arreganhos dos mamalucos, que se retiraram
proferindo ameaças. Para pô-las em prática precisavam, porém, da convivência da gente de
Asunción. Isto conseguiram em fins de 628, e muito concorreu para assegurá-la Luís
Cespedes Xeria, governador do Paraguai, casado em família fluminense, senhor de engenho
no Rio. Fez por terra a viagem para seu governo; esteve em Loreto do Pirapó e Santo
Ignacio de Ipãumbuçu, admirou as igrejas, “hermosísimas iglesias, que no las he visto
mejores en las Indias que he corrido del Perú y Chile”, e fez sinal aos bandeirantes para
avançarem.
A primeira das reduções invadidas, a de S. Antônio, demorava na margem direita do
Ivaí; invadiram depois San Miguel, Jesús María, San Pablo, San Francisco Xavier, no
Tibagi; as outras, ainda mais depressa do que as agremiara uma inspiração ideal, foram
sucessivamente destruídas pela fúria devastadora. Restavam apenas as de Loreto e San
Ignacio, na Paranapanema; os jesuítas resolveram transplantá-las para abaixo do salto das
Sete Quedas, entre o Paraná e o Uruguai, doloroso êxodo cuja narrativa ainda hoje penaliza.
Depois de devastadas as missões de Guairá, os mamalucos passaram às do Uruguai e dos
Tape.
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A entrada em Jesús María, no rio Pardo, já em águas da lagoa dos Patos, qual a
descreve Montoya, dará idéia resumida dos processos empregados nestas expedições.
No dia de São Francisco Xavier (3 de dezembro de 637), estando celebrando a festa
com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com cento e cinqüenta tupis, todos muito
bem armados de escopetas, vestido de escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de
algodão, com que vestido o soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a som de caixa,
bandeira tendida e ordem militar, entraram pelo povoado, e sem aguardar razões,
acometendo a igreja, disparando seus mosquetes. Pelejaram seis horas, desde as oito da
manhã até as duas da tarde.
Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos,
determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente. Por três vezes tocaram-lhe fogo
que foi apagado, mas à quarta começou a palha a arder, e os refugiados viram-se obrigados
a sair. Abriram um postigo e saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral
para o pasto, com espadas, machetes e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam braços,
desjarretavam pernas, atravessaram corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em rachar os
meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros.
Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos bandeirantes
pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?
Apenas vagamente se conhece o caminho seguido nas bandeiras contra Guairá,
Uruguai e Tape. Certamente Sorocaba, último povoado, representava papel importante. Em
canoas ou balsas feitas no planalto desciam os rios, e uma ou outra que garrava servia de
aviso do perigo iminente às reduções; eram, pois, viagens mistas. À volta, as jornadas
deviam ser inteiramente por terra; de outro modo não poderiam trazer as chusmas de
prisioneiros de coleira, amarrados uns aos outros.
Que destino davam a esta gente? Diz-nos Montoya que eram empregados em
transportar nas costas para a marinha carne de vaca e porco; naturalmente carregariam sal
na volta; outros passavam para o Rio, onde havia interessados nestas piratarias; outros
finalmente juntavam-se nas fazendas dos administradores. Em campanha “las mujeres que
en este, y otros pueblos (que destruyeron) de buen parecer, casadas, solteras o gentiles, el
dueño las encerraba consigo en un aposento, com quien pasaba las noches al modo que un
cabron en un curral de cabras”.
O número considerável dos escravizados nas reduções jesuíticas manifesta-se na
freqüência de Carijós, chamavam em São Paulo aos Guaranis. Estes índios, devidamente
amestrados, serviam também para as conquistas de outros; eram o grosso das forças dos
bandeirantes, cujo papel se limitava ao de oficiais.
Os sucessos dos Tape provaram mais uma vez não haver remédio em Asunción, Rio
ou Bahia. Os missionários esperavam ser mais felizes no além-mar e embarcaram Antonio
Ruiz de Montoya para Madrid, Francisco Dias Taño para Roma. Conseguiu este bulas e
censuras fulminantes, trouxe aquele as ordens mais precisas e encarecidas para as
autoridades coloniais. Tudo perdido. Conhecidas as letras pontifícias no Rio, alborotou-se a
população, e a bula ficou suspensa. A irritação propagou-se pela marinha e intensificou-se
em serra acima. Defendidos por seu caminho inexpugnável, os paulistas expulsaram os
jesuítas que só voltaram anos depois, à força de negociações e concessões. Implantou-se,
portanto, o sistema seguido nas terras espanholas de encomendas ou administração dos
índios; algumas encomendas por testamento couberam finalmente à Companhia de Jesus.
Imagina-se mal neste figurino oportunista a consciência heróica de Manuel da Nóbrega.
Montoya conseguiu licença para aparelhar os índios com armas de fogo e adestrá-
los na arte militar. Em breve os bandeirantes perderam a superioridade: derrotados,
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procuraram conquistas mais fáceis, na serra de Maracaju, no alto Paraguai, entre os
Chiquitos, e por fim entre o gentio de corso, de língua travada. Esta caçada não rendia
tanto, as bandeiras foram perdendo parte dos primeiros atrativos e decairam. Das reduções
destruídas nunca mais se restabeleceram novamente fundados sete povos, mais tarde
incorporados ao Brasil, como veremos.
Melhores serviços prestaram os paulistas na Bahia e ao Norte do rio S. Francisco.
Em torno do Paraguaçu reuniram-se tribos ousadas e valentes, aparentadas aos Aimorés
convertidos no princípio do século, que invadiram o distrito de Capanema, trucidaram os
moradores e vaqueiros do Aporá, e avançaram até Itapororocas. Pouco fizeram expedições
baianas mandadas contra eles, e houve a idéia de chamar gente de São Paulo. Acudindo ao
convite Domingos Barbosa Calheiros embarcou em Santos; na Bahia se dirigiu para
Jacobinas, mas deixou-se iludir por Paiaiás domesticados, e nada fez de útil.
Acompanhando-o na jornada mais de duzentos homens brancos, raros tornaram do sertão.
Com este malogro não admira se repetissem as incursões de Tapuias, a ponto de a 4
de março de 1669 ser-lhes declarada guerra e outra vez convidados paulistas para fazê-la.
em agosto de 71 chegou a gente embarcada, com cuja condução a câmara do Salvador
despendeu mais de dez contos de réis. Eram dois os chefes principais, Brás Rodrigues de
Arzão e Estêvão Ribeiro Baião Parente. Fizeram de Cachoeira base das operações que
duraram anos. Brás Rodrigues retirou-se depois de tomar, na margem esquerda do
Paraguaçu, a aldeia do Camisão. Estêvão Ribeiro guerreou sobretudo na margem direita,
onde conquistou a aldeia de Massacará. Em paga dos serviços foi-lhe dado o senhorio de
uma vila chamada de João Amaro, nome de seu filho. A vila, depois de vendida com as
suas terras a um ricaço da Bahia, extinguiu-se; o epônimo ainda é lembrado nos catingais
baianos.
A estas expedições marítimas sucederam outras por via terrestre. Talvez a mais
antiga fosse a de Domingos de Freitas de Azevedo, de quem apenas consta haver sido
derrotado no rio S. Francisco. Facilitaram estas entradas a abundância de matas no trecho
superior do rio, as suas condições de navegabilidade dentro do planalto, o emprego de
canoas. Paulistas houve que fizeram canoas e desceram para vendê-las próximo do trecho
encachoeirado, onde a escassez da vegetação tornava preciosa a mercadoria. Das
expedições feitas pelo interior conhecemos a de Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso de
Almeida, Morais Navarro, todos empregados em combater os Paiacus, Janduís, Icós, nas
ribeiras do Açu e do Jaguaribe. Domingos Jorge auxiliou a debelação dos Palmares,
mocambo de negros localizado nos sertões de Pernambuco e Alagoas, que já existia antes
da invasão flamenga e zombara de numerosas e repetidas tropas contra ele mandadas. Ficou
assim livre todo o território entre as matas do cabo de Santo Agostinho e Porto Calvo.
Muitos dos paulistas empregados nas guerras do Norte não tornaram mais a S.
Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários nas terras adquiridas por suas armas: de
bandeirantes, isto é despovoadores, passaram a conquistadores, formando estabelecimentos
fixos. Ainda antes do descobrimento das minas sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas
e do S. Francisco havia mais de cem famílias paulistas, entregues à criação de gado.
Conhecemos mal, para ajuizar dela, a vida levada em São Paulo pelos bandeirantes
recolhidos aos lares, pela gente rica e poderosa. O seguinte trecho de Pedro Taques só em
parte supre a lacuna, pois refere-se a época posterior às minas, o que altera em muito a
situação:
“Na casa de Guilherme Pompeu de Almeida, celebrava-se anualmente a festa de 8
de dezembro com um oitavário de festa de missas cantadas, sacramento exposto e sermão a
vários santos de sua especial devoção e se concluía o oitavário com um aniversário pelas
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almas do purgatório, com ofício de nove lições, missa cantada e sermão para excitar a
devoção dos fiéis ouvintes. De São Paulo concorria a maior parte da nobreza com os
religiosos de maior autoridade das quatro comunidades, Companhia de Jesus, Carmo, São
Bento e São Francisco, e os clérigos de maior graduação. Era a casa do Dr. Guilherme
Pompeu naqueles dias uma populosa vila ou corte pela assistência e concurso dos hóspedes.
Para a grandeza do tratamento da casa deste herói paulista, basta saber-se que fazia
paramentar cem camas, cada uma com cortinado próprio, lençóis finos de bretanha,
guarnecidos de rendas, e com uma bacia de prata debaixo de cada uma das ditas cem
camas, sem pedir-se nada emprestado. Tinha, na entrada de sua fazenda da Araçariguama,
um pórtico, do qual até as casas mediava um plano de 500 passos, todo murado, cujo
terreno servia de pátio à igreja ou capela da Conceição.
Neste portão ficavam todos os criados dos hóspedes, que ali se apeavam, largando
esporas e outros trastes com que vinham de cavalo, e tudo ficava entregue a criados,
escravos, que para este político ministério os tinha bem disciplinados.
Entrava o hóspede, ou fosse um, ou muitos em número, e nunca mais nos dias que
se demoravam, ainda que fossem de uma semana ou de um mês, não tinham nenhum dos
hóspedes notícia alguma dos seus escravos, cavalos e trastes. Quando porém qualquer dos
hóspedes se despedia, ou fosse um, quinze ou muitos ao mesmo tempo, chegando ao portão
cada um achava o seu cavalo com os mesmo jaezes, em que tinha vindo montado, as
mesmas esporas, e os seus trastes todos, sem que a multidão da gente produzisse a menor
confusão na advertência daqueles criados, que para isto estavam destinados. Os cavalos
recolhiam-se às cavalariças, onde tinham todo o bom penso de herva e milho, que é o que
se dá diariamente no Brasil aos cavalos, principalmente na capitania de São Paulo... Esta
advertência era uma das ações de que os hóspedes se aturdiam, por observarem que nunca
jamais, entre a multidão de várias pessoas que diàriamente concorriam a visitar e obsequiar
dias e dias ao Dr. Guilherme Pompeu de Almeida, se experimentava a menor falta, nem
ainda uma só troca de trastes a trastes. Foi tão profusa a mesa do Dr. Guilherme Pompeu,
que nela as iguarias de várias viandas se praticava com tal advertência, que se acabada a
mesa, passadas algumas horas, chegassem hóspedes não houvesse para banqueteá-los a
menor falta.
Por esta razão estava a ucharia sempre pronta. A abundância de trigo nesta casa foi
tanta que todos os dias se fazia pão, de sorte que para o seguinte já não servia o que tinha
sobrado do antecedente; o vinho era primoroso de uma grande vinha que com acerto se
cultivava e suposto o consumo era sem miséria, sempre o vinho sobrava de ano a ano”.
A vida do povo comum dizia mal com estes esplendores: a canjica, alimento da
maioria da população, dispensava sal, porque este ingrediente não chegava para todos.
Os paulistas não se limitaram a passar de bandeirantes a conquistadores. Houve
sempre alguma mineração em Iguape e Paranaguá: em maior número ainda, entregaram-se
a pesquisas minerais a partir da era de 670, depois que o monarca português apelou para
seu brios. Antes da grande dispersão provocada pelos descobertos auríferos, a população
grupava-se nas margens do Tietê e nas do Paraíba. Na ribeira do Tietê, Mogi das Cruzes,
Parnaíba, Itu, Sorocaba; na do Paraíba, Jacareí, Taubaté, Guaratinguetá precedem os
descobertos. A maior densidade provàvelmente notava-se no Paraíba, cujo vale estreitado à
direita pela serra do Mar, à esquerda pela da Mantiqueira, produzia o efeito de
condensador. Entretanto, a abundância de vilas não importa forçosamente população
considerável. Em terras de donatários deviam facilitar as fundações o orgulho de poder
juntar ao próprio nome o título de senhor de tais e tais vilas e o interesse de nomear
tabeliães, etc.
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Já neste tempo, Piratininga não se impunha como entrada única do planalto:
formaram-se grupos conjugados do sertão e da marinha: Parati e Taubaté; S. Vicente,
Santos, São Paulo, Mogi e quiçá Jacareí que, pelo menos mais tarde, possuiu ligação direta
com o litoral; Iguape, Paranaguá, São Francisco e Curitiba: esta última, aparentemente
destinada a situação preponderante, atraiu pouca população, e medrou precàriamente
enquanto não lhe deu vida o comércio de trânsito, principalmente de muares, procedentes
do Sul.
Um escritor anônimo dizia a respeito dos paulistas pouco depois de 1690: “Sua
Majestade podia se valer dos homens de São Paulo, fazendo-lhes honras e mercês, que as
honras e os interesses facilitam os homens a todo o perigo, porque são homens capazes para
penetrar todos os sertões, por onde andam continuamente sem mais sustento que caças do
mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e raízes de vários paus, e não lhes é molesto
andarem pelos sertões anos e anos, pelo hábito que têm feito daquela vida. E suposto que
estes paulistas, por alguns casos sucedidos de uns para com outros, sejam tidos por
insolentes, ninguém lhes pode negar que o sertão todo que temos povoado neste Brasil eles
o conquistaram do gentio bravo que tinha destruído e assolado as vilas de Cairu, Boipeba,
Camamu, Jaguaripe, Maragogipe e Peruaçu no tempo do governador Afonso Furtado de
Mendonça, o que não puderam fazer os mais governadores antecedentes por mais
diligências que fizeram para isso.
Também se lhes não pode negar que foram os conquistadores dos Palmares de
Pernambuco, e também se podem desenganar que sem os paulistas com seu gentio nunca se
há de conquistar o gentio bravo que se tem levantado no Ceará, no Rio Grande e no sertão
da Paraíba e Pernambuco, porque o gentio bravo por serras, por penhas, por matos, por
catinga só com o gentio manso se há de conquistar e não com algum outro poder, e dos
paulistas se deve valer Sua Majestade para a conquista de suas terras”.
* * *
Alexandre de Moura deixou Jerônimo de Albuquerque por capitão-mor do Maranhão; da capitania
subordinada de Cumá encarregou Martim Soares Moreno; a do Pará, confiada a Francisco Caldeira de Castelo
Branco, ficaria independente, para evitar novos atritos entre os recentes rivais. Capitão de entradas elegeu
Bento Maciel Parente, reinol criado em Pernambuco, que estivera nas guerras da Paraíba e Rio Grande,
andara na jornada de salitre na Bahia, acompanhara d. Francisco de Sousa a São Vicente, e lá assistira um
triênio empenhado em minas e bandeiras, outro de sargento-mor em cinco vilas do Sul.
Faltavam a Jerônimo de Albuquerque alguns requisitos para governar bem, na
opinião insuspeita de Gaspar de Sousa; acusações lhe fizeram, bem graves se forem
verdadeiras; algumas das recomendações de Alexandre de Moura parece ter descurado;
mostrou-se mais próprio aos rompantes da guerra que às artes da paz. Faleceu em fevereiro
de 618 legando o cargo a seu filho Antônio de Albuquerque, assessorado por Bento Maciel
e Diogo da Costa Machado. O jovem de vinte e dois anos desprezou os limites postos pelo
pai à sua autoridade; quando, havendo preso aquele, o governador geral impôs-lhe a
assistência do segundo, preferiu retirar-se para o reino. Substituiu-o no mando desde abril
de 619 Diogo Machado; de suas mãos recebeu-o Antônio Muniz Barreiros em maio de 622,
e ocupou-o até agosto de 626.
Durante esta primeira década, Bento Maciel fez diversas entradas aos rios Mearim e
Pindaré, seguindo os exemplos e processos dos bandeirantes e construiu um forte no
Itapicuru, bastante acima da barra. Outras entradas fez Francisco de Azevedo, o primeiro a
penetrar nos sertões de Turi e Gurupi. O gentio de Cumá insurgiu-se apenas Martim Soares
saiu para o Reino, urgido por antigas enfermidades. Sob seu sucessor Matias, irmão de
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Antônio de Albuquerque, a guarnição portuguesa foi quase toda trucidada, e o levante
estendeu-se quase à ponta de Saparará. A devastação nos índios foi enorme; os jesuítas
Manuel Gomes e Diogo Nunes, convictos da inutilidade de seus esforços em favor dos
indígenas, procuraram as Índias Ocidentais; Fr. Cristóvão de Lisboa, chefe dos capuchos,
viu desrespeitadas as leis mais explícitas e até as censuras.
No governo de Diogo da Costa Machado chegaram a São Luís algumas centenas de
açorianos, engajados para povoadores. Nada encontraram feito para recebê-los, e
padeceram as maiores privações e misérias. A imigração, iniciada sob fagueiras esperanças,
não recobrou o alento originário com o livro de propaganda de Simão Estaço da Silveira.
No empenho de criar engenhos, o governo geral contratou a construção de dois ou
três com Antônio Barreiros; a nomeação do filho para capitão-mor do Maranhão visava
facilitar a execução do trato. Um engenho construiu Bento Maciel. A terra prestava-se bem
à cultura da cana; braços podiam fornecer os índios sujeitos às administrações usadas nas
colônias espanholas e transplantadas por Bento Maciel; a dificuldade grande pendia dos
transportes. Ficava próximo Pernambuco, o maior mercado do país, mas só se navegava
para lá durante certa parte do ano, nas monções; a viagem terrestre pela costa, feita na
estação das águas, para escapar aos tormentos sofridos por Pedro Coelho quando tentou
colonizar o Ceará, apenas poderia servir à passagem de escravos. Parece ter servido
efetivamente: fala um contemporâneo na “grande quantidade de patacões que os moradores
do Maranhão houveram pelo comércio com os de Pernambuco, enviando-lhes de quando
em quando escravos.”
Além da cana plantava-se algodão e fumo; o fio e o pano de algodão correram como
moeda. Os navios partiam para o reino em agosto ou setembro.
As dificuldades de comunicações marítimas entre o Maranhão e o resto do Brasil
sugeriram a idéia de criar ali um estado independente. Isto se ordenou em 621. Começava
no Ceará, próximo do cabo de São Roque, e ia à fronteira setentrional, ainda indefinida, do
Pará. Francisco Coelho de Carvalho, primeiro governador, aportou a Pernambuco ao tempo
da invasão holandesa na Bahia. Deteve-o ali Matias de Albuquerque; depois, sob vários
pretextos, foi se deixando ficar; só em agosto de 26 chegou a seu destino, levando Manuel
de Sousa de Sá, capitão-mor do Pará, declarado agora dependente do Estado do Maranhão.
Na capitania do Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco, recebido
amigavelmente pelo gentio, apanhara o primeiro pretexto para guerreá-lo. A imensidade
das águas inspirou-lhe a adaptação de um suplício mediável, que devia parecer novo e
terrível aos rudes filhos da natureza: amarrava o condenado a diversas canoas, mandava
remar em sentidos opostos, até os membros despregarem do tronco. Seu gênio rixento, já
revelado em presença dos franceses, malquistou-o com os compatriotas; cansados de aturá-
lo, depuseram-no, meteram-no a ferros, e substituiram-no por Baltasar Rodrigues em
novembro de 618. Nem assim arrefeceu a sanha dos índios; o movimento de Cumá soldou-
se ao do Pará. Teve-se de reclamar auxílio de Pernambuco; vieram socorros sob as ordens
de Jerônimo Fragoso, nomeado capitão-mor por d. Luís de Sousa, governador geral, com
ordem, logo cumprida, de mandar presos Castelo Branco, Rodrigues e outros cabecilhas.
Castelo Branco morreu na prisão do Limoeiro, em Lisboa.
Bento Maciel, que fora a Pernambuco depois das questões com Antônio de
Albuquerque, voltou com gente nova recrutada nas duas capitanias vizinhas, e repetiu com
maior fúria suas costumadas façanhas. De Tapuitapera até dentro do Amazonas tamanhas
foram suas devastações que Jerônimo Fragoso intimou-lhe cessasse as hostilidades; ele,
porém, desrespeitou a intimação porque, sendo o comandante da guerra por investidura do
governador geral, não estava subordinado ao capitão-mor do Pará. Fragoso faleceu logo;
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houve diversos pretendentes à sucessão; por fim saiu nomeado Bento Maciel, que abriu um
caminho terrestre para o Maranhão, ligando talvez o rio Capim ao Pindaré, como se tentou
mais tarde, e governou quatro anos, até chegar Manuel de Sousa de Sá, em 1627.
Francisco Caldeira fora logo à chegada informado de viagens e fortalezas de
ingleses e flamengos nas plagas amazônicas. No próprio ano da fundação de Belém, Pedro
Teixeira aprisionou uma nau holandesa, cuja artilharia serviu a reforçar a do Presepe. Os
ingleses preferiam a foz do rio e seu estabelecimento mais ocidental assentava no Cajari; os
flamengos avançaram até o Xingu. Diversas expedições, em que se distinguiram Pedro
Teixeira, Pedro da Costa Favela, Feliciano Coelho, Jácome Raimundo de Noronha tomaram
navios, fizeram muitos prisioneiros e arrasaram um a um todos os fortes. No assalto ao
forte inglês de Filipe, gaba-se Noronha de haver tomado quatro peças de artilharia grossas e
roqueiras e muitas armas, com a morte de oitenta e três estrangeiros, o aprisionamento de
treze, a destruição de todos os gentios confederados, “com que ficaram tão aterrorizados
que nunca mais tiveram pazes com os estrangeiros”.
A falta de índios amigos, fornecedores de fumo, algodão, urucu (anoto, em língua
cariba) e outras drogas, bastaria a dissuadir os entrepolos de novos cometimentos. Veio
ainda mais dificultá-los a fortaleza de Gurupá, estabelecida no local de um antigo forte
holandês, no começo do delta amazônico, excelente posto de observação para todos os
movimentos da margem esquerda, obra avançada e complemento precioso do forte de
Presepe na margem direita. O último estabelecimento holandês de que temos notícia
tomou-o Sebastião de Lucena em 1646, no Maiacaré, junto ao cabo do Norte; os ingleses já
havia anos não apareciam. Ficou assim firmada a soberania de Portugal desde o cabo do
Norte até a ponta de Saparará, e desassombrado de inimigos todo o baixo Amazonas.
No tempo de Francisco Coelho, foi dividido o Estado do Maranhão em várias
capitanias hereditárias: as de Tapuitapera e Cametá couberam a um irmão e ao filho do
governador, a de Caeté ou Gurupi a Álvaro de Sousa, filho de Gaspar de Sousa, que tantos
serviços prestara à conquista; para si a metrópole reservou no Maranhão o território entre o
Parnaíba e o Pindaré, no Pará as terras de Maracanã ao Tocantins. Mais tarde Bento Maciel
obteve a capitania do cabo do Norte limitada pelos rios Vicente Pinzon ou Oiapoque,
Amazonas e Paru, e Antônio de Sousa de Macedo a da ilha Marajó.
A penetração no Amazonas prosseguia lentamente: pela margem setentrional
tratara-se apenas de eliminar os entrelopos; ao Sul a aldeia Maturu, na margem direita do
Xingu, também chamado Parnaíba, durante algum tempo permaneceu o posto mais
ocidental; ante as flechas envenenadas do gentio do Tapajós estacaram as entradas. A
marcha precipitou-se a partir de 1637 com a chegada de dois leigos franciscanos vindos do
pé dos Andes. Jácome de Noronha, que com certo atropelo de formas sucedera no governo
por falecimento de Francisco Coelho de Carvalho, resolveu abrir relações com as
dependências cisandinas de Castela. Pedro Teixeira, incumbido desta missão, partiu a 17 de
outubro águas a riba do rio-mar, em 15 de agosto de 38 alcançou o Paiamino, afluente do
Napo, e seguiu para Quito. Depois de receber as ordens do vice-rei do Peru, regressou e
chegou ao Pará em 12 de dezembro do ano seguinte. Já de volta, a 16 de março de 39, na
barra do Aguarico, tomou posse em nome da coroa de Portugal das terras que para o
Oriente se estendiam até beira-mar. Bento Maciel, então governador do estado,
recompensou estes e outros serviços durante mais de quatro lustros prestados por seu
companheiro de armas, concedendo-lhe por três vidas a encomendação de trezentos casais
de índios.
Mal suspeitava então o velho capitão de entradas os perigos que se avizinhavam.
Desde de 1637, Gedeon Morris, flamengo preso em combate no Amazonas e lá conservado
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prisioneiro durante oito anos, lograra repatriar-se e chamava a atenção da câmara de
Zelândia para a conquista do Maranhão. Tal conquista, alegava, traria a aquisição de mais
de quatrocentas léguas de costa, ocupadas apenas por mil e quatrocentos a mil e quinhentos
portugueses, e quarenta mil índios; os índios estavam sujeitos mais por medo que por
afeição, os portugueses com as forças disseminadas, os soldados descontentes e rebeldes
pelo desgoverno e falta de pagamento, os fortes pouco defensáveis; os índios considerariam
os flamengos como libertadores. A Companhia das Índias Ocidentais se apossaria de belos
açúcares, fumos, algodão, laranjas, anil, tintas, óleos e bálsamos, gengibres, gomas e várias
sortes de excelentes madeiras. Poderia vender escravos para Pernambuco “como os
portugueses faziam outrora, antes de começar a guerra naquela capitania, e este era o seu
maior negócio”.
Quando Morris expunha estas idéias em Middelburg, ocorria na colônia um fato
próprio a facilitar-lhes a execução. Atendendo a repetidos chamados do gentio cearense, a
Companhia mandou uma expedição que desembarcou no Mocuripe, e após brava mas inútil
resistência da guarnição apossou-se do forte fundado por Martim Soares Moreno. Havia
agora um ponto de apoio para as operações apregoadas como tão proveitosas: Gedeon
Morris foi nomeado comandante do Ceará, onde descobriu as salinas do Ipanema, como
que a preparar a avançada.
A notícia da viagem de Pedro Teixeira, apenas divulgada, ainda mais confirmou-o
em suas traças e aspirações. A todas as vantagens apresentadas, a conquista do Maranhão
juntava ainda a da contigüidade com as terras do Peru, e seria portanto o mais terrível golpe
contra as possessões espanholas, insistia novamente Gedeon. Não foi compreendido.
Nassau e as autoridades superiores preocupavam-se antes com a conquista de Buenos Aires
e do Chile, procurando longe o que lhes acenava de tão perto. Só mais tarde atenderam a
suas incitações; em novembro de 641 apresentou-se uma esquadra holandesa na baía de São
Marcos.
Vigorava o estado esquisito criado pela política hesitante de d. João IV. Não havia
guerra, pois fora decidida na Europa uma aliança ofensiva e defensiva entre Portugal e
Holanda; não havia paz nas colônias, porque faltava a ratificação do tratado. Iludido ou
decrépito ou aterrado, Bento Maciel entregou-se sem combater e a Companhia das Índias
mais uma vez alargou seus domínios. Morris, que tomou parte na operação, ficou
descontente com o modo de proceder de Nassau. Por que depois de tomada a ilha não
passavam logo ao Pará? Por que não expulsavam os portugueses ricos deixando apenas os
mais pobres como feitores? Onde se viu em todo o Brasil um português, quatro meses
apenas depois de tomada a terra, embarcar por sua conta cem caixas de açúcar, como fez o
provedor-mor Inácio do Rêgo, que se passou para as Índias? Que valia a posse do
Maranhão sem a incorporação do Amazonas?
Enquanto dominaram, os flamengos houveram-se com a cobiça e a venalidade já
correntes em Pernambuco. Entretanto, a população calava-se e parecia mesmo disposta a
não reagir, se não fossem Antônio Muniz Barreiros, o antigo capitão-mor, e os jesuítas
Benedito Amadeu e Lopo do Couto, este chegado em companhia de um coadjutor desde
1624. Impeliram a estes chefes insurgentes sobretudo considerações religiosas: o holandês
era o herege e a fé católica perigava. O movimento começou no Itapicuru, libertado em
poucos dias, e passou à ilha. Aqui a resistência foi maior: vieram socorros de Pernambuco
para o flamengo, também os nossos receberam-nos do Pará, mas a falta de armas e
munições obrigou-os a passarem para a capitania de Tapuitapera, no continente. Mais tarde,
chegados recursos da Bahia, acometeram novamente a obra libertadora. A Teixeira de
Melo, sucessor de Barreiros, morto em conseqüência de ferimentos, coube a glória de
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restaurar S. Luís em 1643. O exemplo do Maranhão propagou-se a Ceará, onde os índios
trucidaram os holandeses, que entretanto voltaram mais tarde e se mantiveram até 1654.
Também produziu impressão em Pernambuco, e alentou os anhelos patrióticos ainda
desconexos, apontando um exemplo a seguir.
Nos anos seguintes o fato mais notável foi a introdução dos jesuítas. A Alexandre de
Moura acompanharam dois, mas retiraram-se, reconhecendo a inutilidade de seus esforços
na defesa dos índios. Luís Figueira, vindo com Antônio Barreiros, logrou apagar as
prevenções dos colonos, limitando e encobrindo a sua ação, e depois de algum tempo
recolheu-se à Europa. Lopo do Couto, além de isolado e portanto impotente, soube
conquistar as simpatias no ardor da reconquista, de que foi a alma. Figueira, que desde 638
preparava uma missão no além mar, afinal com muitos sócios partiu do reino mais Pedro de
Albuquerque, nomeado sucessor de Bento Maciel. Por estarem ainda os holandeses
senhores de S. Luís, passaram ao Pará; junto à baía do Sol, Figueira e a maior parte dos
companheiros afogaram-se ou foram mortos pelos índios, em junho de 643. Os
sobreviventes pouco puderam fazer no Maranhão para onde se transportaram apenas as
condições o permitiram; logo trucidaram-nos selvagens de Itapecuru. Em 1649 não havia
mais um só padre da Companhia de Jesus em todo o Estado.
Entretanto, na Europa movia-se o padre Antônio Vieira, grande valido de dom João
IV e um dos maiores escritores da língua. Pupilo de Fernão Cardim, colhera dos lábios
deste amigo de Anchieta a história das primeiras missões, e a carreira de missionário
formara uma das primeiras aspirações de sua alma ambiciosa. Mandado para o Reino
quando se divulgou na Bahia a notícia da independência de Portugal, passara dez anos em
terras européias por vontade da Companhia ou insistência do rei, triunfando na tribuna
sagrada, ajudando as mais espinhosas negociações diplomáticas, engenhando combinações
financeiras como a da Companhia do Comércio, tão útil na guerra pela libertação de
Pernambuco, influindo nos conselhos da coroa, dando idéias e defendendo as próprias ou
alheias, estas principalmente, com uma abundância de expressões, uma sutileza de
raciocínios, um bisantinismo de argumentos, uma fertilidade de distinções verdadeiramente
admiráveis. Um dia apareceu-lhe o vácuo de todas estas pompas, invadiu-o a saudade da
primeira infância e da segunda pátria e aspirou missionar no Maranhão.
Em setembro de 652 partiram adiante nove missionários, trazendo por superior o
padre Francisco Veloso: dois destes continuaram a viagem para o Pará, onde fundaram
casa. Em seguida à primeira leva embarcou no Tejo o padre Vieira acompanhado de outros
três jesuítas, que a 16 de janeiro de 53, véspera de S. Antão, fundearam diante da capital do
estado. Afinal chegavam defensores aos índios. Para que narrar esta história? Com os
índios só havia duas políticas racionais: ou deixá-los aprisionar à vontade como então se
fazia, ou proibir expressamente toda e qualquer escravidão. Nem uma das duas observaram
quer o governo, quer os próprios jesuítas. Daí lutas contra os colonos cubiçosos, contra os
governadores venais, contra padres e frades simoníacos, contra os legisladores incoerentes
e a legislação instável, viagens pelo sertão e rios, travessias do oceano, sermões cáusticos,
papéis sediciosos, expulsões e exprobrações, em suma uma série de tumultos trágicos ou
burlescos. Mais interessa que tais historietas apresentar o organismo do estado cerca de
1662, tal qual o desseca o valente escritor em uma página memorável, ainda palpitante no
pálido resumo aqui feito.
Os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o
edifício e as pedras se desfazem, separam e arruínam. As terras se esterilizam; as plantações
de mandioca não bastam para garantir o sustento; tem-se de buscar longe as madeiras e as
terras de tabaco; minguaram a caça e a pesca; as povoações são muito distantes uma das
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outras e o trabalho de remar consome as forças da indiada. Não há açougue, nem ribeira,
nem horta, nem tenda para vender as cousas usuais para o comer ordinário, nem ainda um
arratel de açúcar, com se fazer na terra. No Pará, onde todos os caminhos são por água, não
há uma canoa de aluguel. Para um homem ter o pão da terra há de ter roça, e para comer
carne há de ter caçador, e para comer peixe pescador e para vestir roupa lavada lavadeira, e
para ir à missa ou qualquer parte canoas e remeiros: os moradores de tal cabedal têm a mais
de tudo isto costureiras, fiandeiras, rendeiras, teares e outros instrumentos e ofícios de mais
fábrica, com que cada família vem a ser uma república.
Os povoadores primeiros foram gente pobre: soldados idos de Pernambuco, mal
pagos a ponto de raros poderem calçar sapatos e meias; ilhéus nobres, mas gente
necessitada, impelida à emigração pela procura de meios não existentes no arquipélago;
soldados rotos e despedidos tomados na guerra e abandonados nas costas pelos holandeses;
finalmente degradados.
Não guarda proporção com a população o número de frades: o Pará, com oitenta
moradores, tem quatro conventos e sai dos moradores a paga de missas, ofícios e enterros,
servem grande número de confrarias com grandes e involuntários gastos nas suas festas,
porque em serem perguntados, se ouvem apregoar dos púlpitos e não basta o que grangeiam
num ano para satisfazer os empenhos desta forçada devoção. Apenas a Companhia de Jesus
não pesa sobre a gente, porque a renda concedida pela fazenda real a põe a coberto das
necessidades.
As drogas do estado baixaram de preço, e mal bastam para pagar os fretes, em
compensação os gêneros vindos da Europa vendem-se por preços excessivos. Dominam a
ociosidade, a preguiça e o luxo: grassa o alcoolismo; só na cidade do Pará gastam
anualmente quinze mil cruzados em aguardente da terra, sem falar na que vai do reino. Os
governadores e oficiais de fazenda pagam-se em primeiro lugar, pouco deixando para os
vigários e soldados; confiam os melhores ofícios aos criados; prendem, processam,
recrutam, atravessam os gêneros.
Finalmente os índios, por sua natural fraqueza e pelo ócio, descanso e liberdade em
que se criam, não são capazes de aturar por muito tempo o trabalho em que os portugueses
os fazem servir, principalmente das canas, engenhos e tabacos, sendo muitos os que por
esta causa continuamente estão morrendo; e como nas suas vidas consiste toda a riqueza e
remédios dos moradores, é mui ordinário virem a cair em pouco tempo em grande pobreza
os que se tinham por mais ricos e afazendados, porque a fazenda não consiste nas terras que
são comuns senão nos frutos da indústria com que cada um as fabrica e de que são os
únicos instrumentos os braços dos índios. — Até aqui Antônio Vieira, com esta vívida
descrição da economia naturista.
Excetuando a de Bartolomeu Barreiros de Ataíde ao rio de Ouro, isto é, às terras de
que Pedro Teixeira tomara posse em nome da coroa de Portugal, e a de João Betencourt
Muniz contra os Anibás do Jari, as expedições tinham de preferência procurado a margem
direita do Amazonas. Em 1663 Antônio Arnau Vilela dirigiu-se à outra margem e foi pouco
feliz numa entrada do rio Urubu; a vingá-lo saiu Pedro da Costa Favela, que matou
setecentos, aprisionou quatrocentos índios dos Guaneenas e Caboquenas, queimou trezentas
aldeias. Atrás destes vieram outros, atraídos pela densidade da indiada. Logo em seguida
começou a ser freqüentado o rio Negro e finalmente o Branco. A fortaleza da barra do rio
Negro, nas proximidades da atual cidade de Manaus, ponto de partida para este movimento
de penetração, foi fundada logo depois.
No ano de 1693 foram determinados os territórios em que cada uma das ordens
poderia estabelecer missões: aos jesuítas concedeu-se a margem meridional do Amazonas;
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aos franciscanos as terras do cabo do Norte até o rio Urubu; aos carmelitas coube o rio
Negro.
Entrementes os jesuítas espanhóis no seu ardor de catequizar foram descendo o
Solimões, como os do Paraguai procuraram o Paranapanema, Ivaí, Igyaçu e Uruguai.
Samuel Fritz, natural da Boêmia, atraiu ao grêmio da igreja diversas tribos de línguas
travadas, e os Cambebas ou Omagoas da língua geral, missionando até o Juruá ou talvez
mais a Este. Motivos de saúde levaram-no ao Pará em setembro de 1689, onde sob vários
pretextos o detiveram cerca de dois anos. Na volta, apesar de suas excusas, deram-lhe uma
escolta para acompanhá-lo às reduções e, lá chegado, o oficial comandante protestou
pertencerem a Portugal as terras que se estendiam até o rio Napo. Enquanto o apóstolo dos
Mainas se dirigia a Lima, no intuito de avisar da próxima usurpação ao vice-rei do Peru,
que não quis tomar providências, desde 1695 se discutia no Pará e em Lisboa a idéia de
aumentar o domínio português por aqueles lados. Forneceu ensejo próprio o caso da
sucessão da Espanha. Inácio Corrêa de Oliveira expulsou os jesuítas castelhanos do
Solimões. Assim a guerra entre as duas coroas produziu ao Norte os mesmos efeitos que de
sua união resultaram em Guairá, Uruguai e Tape. A estas invasões e às seguintes uniram-se
os frades do Carmo, dignos confrades dos capuchos das bandeiras meridionais. Nestas
missões aprenderam os invasores o emprego do caucho.
As entradas pelos afluentes da margem direita iam também continuando: em 1669
Gonçalo Pires e Manuel Brandão descobrem cravo, canela e castanha no Tocantins; em
1716 João de Barros Guerra derrota os Torás no Madeira; em 1720 marcha uma expedição
contra os Juínas do Juruá; em 1724 Francisco de Melo Palheta sobe o Madeira até as
aldeias espanholas. Com o descobrimento das minas, procura-se chegar a elas pelos
afluentes meridionais. Mais de uma das tentativas foi bem sucedida e o Maranhão reclamou
como pertencentes a seu distrito as minas de S. Félix e da Natividade, ribeirinhas do
Tocantins. Desde a terceira década do século XVIII descem ao Amazonas mineiros de
Goiás e Mato Grosso. Destas descidas a mais fértil em conseqüências foi a de Manuel Félix
de Lima, que em 1742 navegou o Sararé, Guaporé, Mamoré, Madeira e alcançou o
Maranhão. Quando o governador de Mato Grosso assentou a capital na margem do
Guaporé apenas tirou a conseqüência do achamento deste caminho, que com o tempo se
tornou o mais freqüentado.
Lentamente a população ia crescendo, embora epidemias freqüentes inutilizassem
em poucos meses o progresso de anos. Como sinais evidentes de melhores condições, basta
citar a fundação de um pesqueiro real em 1692 na ilha de Marajó, por Antônio de
Albuquerque Coelho, e o desenvolvimento assumido pela criação de gado na mesma ilha, a
partir dos primeiros anos do século seguinte. Na Páscoa de 1726 começou a funcionar um
açougue em Belém. Quando La Condamine passou por Belém em 743 a única moeda
corrente eram grãos de cacau; desde maio de 1749 principiou a correr dinheiro amoedado
de ouro, prata e cobre.
Em 1751, o Pará, a que agora estava subordinado o Maranhão, contava 9 freguesias
e seis ermidas paroquiais, sete fortalezas, vinte e quatro engenhos de açúcar, quarenta e
duas engenhocas de aguardente, sessenta e três aldeias de índios missionados. Muitas
medidas concertou o governo para desenvolver a agricultura, mas só o conseguiu nas
cercanias de Belém. O café, levado de Caiena por Francisco de Melo Palheta, pareceu
despertar o torpor da população. Pouco tempo durou a experiência; preferiu-se a apanha de
produtos florestais, cravo, canela, cacau, salsa, mais rendosos e criados à lei da natureza.
Os anos seguintes à partida de Antônio Vieira para a Europa em 1661 assinalam-se
pela legislação caótica a respeito de aldeias, jurisdição espiritual e temporal, descimentos,
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salários e escravidão dos índios. Em 1680 uma lei proibiu que os índios fossem
escravizados, única solução lógica e justa, se houvesse gente bastante honesta e bastante
enérgica para fazê-la respeitada.
Para mitigar as queixas dos colonos criou-se uma companhia de comércio com o
privilégio de vender certos gêneros de primeira necessidade, que compraria toda a produção
do estado e forneceria escravos africanos, mais fortes e mais próprios para a pesada labuta
agrícola.
Pouca repugnância provocou no Pará, cujos interesses, em partes divergentes, a
distância resguardava; no Maranhão produziu grande alborôto. Foram expulsos os jesuítas,
deposto e preso o capitão-mor, mandados procuradores à Corte para apresentar as queixas
do povo e impetrar o perdão régio. Manuel Bequimão, reinol de origem teutônica, primeira
figura da assuada, pôs-se à frente da governança. O movimento iniciado com tamanha
valentia ficou estacionário; nem a fronteira capitania de Tapuitapera aderiu; dos aderentes
da primeira hora, muitos foram-se esgueirando.
Nota-se agora o caso repetido tantas vezes em nossa história: depois do triunfo,
obtido antes por desídia ou pusilanimidade do atacado que por habilidade ou fortaleza do
atacante, e só depois do triunfo comprado tão barato, compreende-se que o fato importa
conseqüências, e começa-se a indagação de quais poderão ser. Desta mandrice intelectual
ou miopia política não se eximiu Bequimão. Quando apareceu na barra Gomes Freire de
Andrada, nomeado governador do Estado e acompanhado de força armada para se fazer
obedecido, veio-lhe a veleidade de opor-se ao desembarque. Nada previra, nada preparara,
agora era tarde. O governador empossou-se do poder sem oposição.
Restava a esperança de ter trazido o perdão régio; mesmo este não veio. Prestes
instaurou-se o processo, e sairam condenados à morte Manuel Bequimão, Jorge de Sampaio
e Deiró. Este padeceu o suplício em efígie; os outros subiram ao patíbulo. Com os
figurantes o governador mostrou benevolência: de bondoso e benévolo deixou tradição
entre os governados. Por seu conselho aboliram-se a companhia e o estanco; a questão índia
prosseguiu com os avanços, recuos e sobressaltos do costume.
Durante seu governo preocupou-o a questão máxima do Estado: achar
comunicações com o Brasil, independente do capricho das monções, sobranceira à linha
dos vaus à beira-mar.
Poucos anos antes Vital Maciel Parente, filho do velho prisioneiro dos flamengos,
depois de derrotar ao Tremembés, desafrontando o caminho da praia para o Ceará,
navegara muitas léguas pelo Parnaíba e reconhecera a direção meridional de seu curso.
Deve manar daí a idéia da proximidade senão identidade entre o Parnaíba ou Paraguaçu e o
São Francisco. Assim a questão apresentava-se com certa nitidez: a Bahia representava o
objetivo e o Parnaíba o rumo a seguir.
João Velho do Vale incumbido de resolver o problema levou-o a bom termo;
escreveu a mesma narrativa do descobrimento, entregue mais tarde a Gomes Freire, no
Reino, livro hoje extraviado ou perdido, e muito importante para a etnografia e história
pátria, a julgar pelas indicações ligeiras, fornecidas por Fr. Domingos Teixeira, biógrafo do
governador:
“Depois de dar em larga relação notícia exata dos sertões que penetrou, rios, e
nações várias que os habitam, sinalando pelos graus as alturas do polo, mais gasto do
trabalho, que dos anos, veio a acabar [João Velho do Vale] em benefício da pátria, com
serviços maiores que a gratidão. Descansam suas cinzas em jazigo humilde na cidade de
São Salvador, onde veio consumar com último termo seus trabalhos com mais honra que
interesse”.
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Vale fez duas viagens. Na primeira chegou à serra de Ibiapaba, onde deixou três
estradas; da segunda alcançou a Bahia, naturalmente partindo da mesma serra, o que indica
traçado bastante oriental, talvez pelas ribeiras do Poti e contravertentes do rio São
Francisco, Cabrobó, Ibó e Jeremoabo.
E’ impossível decidir se a esta ou a outra estrada se refere uma carta de Antônio
Albuquerque, sucessor de Gomes Freire, escrita em julho de 1694 e entregue na Bahia a d.
João de Lencastro, governador geral, em 19 de abril do ano seguinte. Dois dias depois
chegava à mesma cidade o sargento-mor Francisco dos Santos com quatro soldados e vinte
índios, que tinham acabado de descobrir o caminho, trazendo uma carta de Antônio de
Albuquerque datada de 15 de dezembro. Para retribuir a fineza e ver se podia encurtar o
caminho, o governador geral mandou o capitão André Lopes ao Maranhão, com carta para
Antônio de Albuquerque datada de 21 de maio. André Lopes alcançou a capital do Estado
em novembro mas teve de esperar pela volta de Antônio de Albuquerque, ido ao Pará. Com
resposta de 15 de março de 1696 estava na Bahia em 22 de setembro.
O trecho mais difícil a vencer ficava no Maranhão pròpriamente dito: nos rios Piauí
e Canindé, nas ribeiras do Ceará, a uma e outra margem do São Francisco já abundavam
fazendas de gado e deviam existir numerosas vias de comunicação. Com o gado desta
procedência povoaram-se os sertões de Pastos Bons, cujas transações durante algum tempo
se fizeram só com a Bahia, exatamente como as de Pernambuco a montante de Paulo
Afonso.
Mais tarde o padre Malagrida levou a catequese até o rio Codó; seu sucessor João
Ferreira fundou as Aldeias Altas, hoje Caxias. Conhecida a pequena distância neste trecho
entre o Itapecuru e o Parnaíba começou a ser preferida esta passagem. Já em 1747 dela se
servia d. Manuel da Cruz, trasladado do sólio do Maranhão para o de Mariana.
Maranhão começou a decair desde ou antes do governo de Gomes Freire, e explica-
se o fato pelo abandono da agricultura, devido a produtos florestais semelhantes aos do
Pará. Ao cravo, à canela, à castanha sucumbiram os engenhos.
“Erigiram cerca de cinqüenta engenhos”, escrevia um contemporâneo em 1703,
“que fabricaram enquanto se não descobriu o cravo e cacau , total ruína daqueles homens,
como causa de ócio com que todos deixaram perder a fábrica de tabaco e açúcar em que se
iam aumentando... Terrível é a dificuldade que têm os senhores de engenho em acomodar a
conveniência de seus lavradores, em quem também é impraticável o querer lavrar canas;
uns e outros confessam esta pela melhor conveniência, clamando que por falta dela estão
miseráveis e que quando dela usavam viviam prósperos; porém, não há remédio em
ajustarem-se; os lavradores com justa causa queixosos e teimosos com notável sem-razão;
os senhores de engenho tiranos de suas próprias consciências: esta desunião é capaz de
impedir as fábrica dos engenhos e não é o menos outro erro a que aqueles homens estão
amarrados, querendo fabricar tudo o que gastam, como são lenhas, cinzas, azeites, farinhas,
tabuados e canoas, em cuja fábrica divertindo a gente dos engenhos lhes não fica lugar de
fabricar açúcar”.
Informando este papel, acrescentava Antônio de Albuquerque: como estejam só
com o sentido no sertão, feitos hidrópicos do gentio que só apetecem e procuram por único
remédio, não tratam de se disporem a outro algum meneio.
Em 1751 a capitania contava oito freguesias, cinco engenhos de açúcar, duzentas e
três fazendas a criar gado, das quais quarenta e quatro em Pastos Bons e trinta e cinco em
Aldeias Altas.
As questões de limites com a Espanha, não menos que a importância crescente do Pará, foram causa
da metrópole declarar-lhe subordinado o Maranhão e transferir para a bacia do Amazonas a capital do Estado.
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Breve, porém, graças à cultura do algodão e do arroz, à introdução de escravos africanos e à intervenção de
nova companhia de comércio, abriu-se uma era de prosperidade relativa, muito inferior entretanto a seus
imensos recursos naturais.
* * *
Os engenhos de açúcar, as roças de fumo e mantimentos cabiam dentro de uma área
traçada pelo custo de transporte dos produtos. Além de certo raio vegetava-se
indefinitivamente, a prosperidade real nunca bafejaria o proprietário. Com a economia
naturista, o equívoco podia prolongar-se por muito tempo, mas por fim patenteava-se que
só próximo do mar ou no pequeno trecho dos rios navegáveis graças à ausência de
corredeiras e saltos, a labuta agrícola encontrava remuneração satisfatória. Queixam-se os
primeiros cronistas de andarem os contemporâneos arranhando a areia das costas como
caranguejos, em vez de atirarem-se ao interior. Fazê-lo seria fácil em São Paulo, onde a
caçada humana e desumana atraía e ocupava a atividade geral, na Amazônia toda cortada
de rios caudalosos e desimpedidos, com preciosos produtos vegetais, extraídos sem cultura.
Na outras zonas interiores o problema pedia solução diversa.
A solução foi o gado vacum.
O gado vacum dispensava a proximidade da praia, pois como as vítimas dos
bandeirantes a si próprio transportava das maiores distâncias, e ainda com mais
comodidade; dava-se bem nas regiões impróprias ao cultivo da cana, quer pela ingratidão
do solo, quer pela pobreza das matas sem as quais as fornalhas não podiam laborar; pedia
pessoal diminuto, sem traquejamento especial, consideração de alta valia num país de
população rala; quase abolia capitais, capital fixo e circulante a um tempo, multiplicando-se
sem interstício, fornecia alimentação constante, superior aos mariscos, aos peixes e outros
bichos de terra e água, usados na marinha. De tudo pagava-se apenas em sal; forneciam
suficiente sal os numerosos barreiros dos sertões.
A criação de gado primeiro se desenvolveu nas cercanias das cidade do Salvador; a
conquista de Sergipe estendeu-se à margem direita do São Francisco. Na outra margem
veio dar menos forte e menos acelerado o movimento idêntico partido de Pernambuco. Ao
romper a guerra holandesa estavam inçadas de gado as duas bandas do rio em seu curso
inferior. Nem por outro motivo as incorporou Maurício de Nassau ao território da
Companhia das Índias Ocidentais, e os patriotas da liberdade divina com tanto afinco as
defenderam.
Foi o gado acompanhando o curso do São Francisco. O povoado maior, a Bahia,
atraiu todo o da margem meridional, que para lá ia por um caminho paralelo à praia,
limitado pela linha dos vaus.
Mais tarde, à medida que a criação se afastou do litoral, outros caminhos se
tornaram necessários. Um dos mais antigos passava por Pombal no Itapecuru, Jeremoabo
no Vasabarris, e atingindo o São Francisco acima da região encachoeirada, chamou o gado
da outra margem. Esta, pertencente a Pernambuco por todos os títulos, ficou de fato baiana,
foi povoado por baianos, e como o chapadão do São Francisco se estreita depois da grande
volta, onde ao contrário atinge sua maior expansão o do Parnaíba, consumou-se aqui a
passagem de um para o outro, e encontraram-se os baianos com a gente vinda do
Maranhão. O riacho do Terra Nova e o do Brígida facilitaram a marcha para o Ceará. Pelo
do Pontal e pela serra dos Dois Irmãos passaram os caminhos do Piauí. Nem o Parnaíba
teve poder para conter a onda invasora: Pastos Bons foi povoado por baianos, e até meados
doculo XVIII teve comunicões exclusivamente com a Bahia.
72
Na margem pernambucana do rio S. Francisco possuía duzentas e sessenta léguas de
testada a casa da Torre, fundada por Garcia d’Ávilla, protegido de Tomé de Sousa, a qual
entre o S. Francisco e o Parnaíba senhoreava mais oitenta léguas. Para adquirir estas
propriedades imensas, gastou apenas papel e tinta em requerimentos de sesmarias. Como
seus gados não davam para encher tamanhas extensões, arrendava sítios, geralmente de
uma légua, à razão de 10$ por ano, no princípio do século XVIII. Um de tais rendeiros,
Domingos Afonso, por alcunha o Sertão, partindo de um dos muitos sobrados existentes no
São Francisco, aos quais se dá este nome por causa de vagamente semelharem um edifício,
fundou numerosas e importantes fazendas nos rios Piauí e Canindé, legadas por sua morte à
Companhia de Jesus, a quem a coroa as confiscou em proveito próprio, por ocasião de
suprimir a Ordem.
Por esta margem do São Francisco existiam numerosas tribos indígenas, a maioria
pertencente ao tronco cariri, algumas caribas como os Pimenteiras, e até tupis como os
Amoipiras. Com elas houve guerras, ou por não quererem ceder pacificamente as suas
terras, ou por pretenderem desfrutar os gados contra a vontade dos donos. Estes conflitos
foram menos sanguinolentos que os antigos: a criação de gado não precisava de tantos
braços como a lavoura, nem reclamava o mesmo esforço, nem provocava a mesma
repugnância; além disso abundavam terras devolutas para onde os índios podiam emigrar.
Entretanto, muitos foram escravizados, refugiaram-se outros em aldeias dirigidas por
missionários, acostaram-se outros à sombra de homens poderosos, cujas lutas esposaram e
cujos ódios serviram.
Resistiram bastante os índios do Pajeú, mas em tempo de d. João de Lencastro e por
sua ordem Manuel de Araujo de Carvalho atacou-os. Simultaneamente penetrava da
Paraíba Teodósio de Oliveira Ledo. Graças aos esforços dos dois, ficaram pacificados os
sertões de Pajeú, Piancó e Piranhas. Parte deles abriu comunicações com Pernambuco, para
onde mandava seus gados. Pajeú, apesar da proximidade, só fez isto em começos do século
XIX; até então gravitava para a Bahia.
Ao compasso do afastamento do gado, novas passagens e novos caminhos iam
sendo trilhados. Basta citar o de Jacobinas e a passagem do Juazeiro, pelo qual pautou-se
uma estrada de ferro. Com o crescimento de Cachoeira e o impulso do plantio de fumo,
abriu-se um ramal importante em busca do baixo Paraguaçu.
A margem baiana do São Francisco criou gado em não menor quantidade, embora
no terreno cortado de serras e nas matas litorâneas ou ribeirinhas se conservasse numerosa
população indígena, sempre disposta a salteios. As bandeiras de Arzão e Estêvão Parente e
outras enfraqueceram, mas não extinguiram a resistência do gentio, e anos depois
guerreavam-se ainda nas cabeceiras do rio de Contas, Pardo, etc. O grande proprietário
desta banda chamava-se Antônio Guedes de Brito, com cento e sessenta léguas, contadas
do morro do Chapéu até águas do rio das Velhas. Merecem também ser mencionados João
Peixoto Viegas, que incorporou as terras do alto do Paraguaçu; Matias Cardoso e Fiqueira,
conquistadores paulistas, estabelecidos em situações muito próprias a favorecerem o
tráfego com S. Paulo. Os caminhos destes lados entroncaram primeiramente nos que pela
margem esquerda do S. Francisco demandavam o chapadão do Parnaíba; só mais tarde o
Paraguaçu foi procurado desde o curso superior e seguido até Cacheira, perto da barra.
Os primeiros ocupadores do sertão passaram vida bem apertada; não eram os donos
das sesmarias, mas escravos ou prepostos. Carne e leite havia em abundância, mas isto
apenas. A farinha, único alimento em que o povo tem confiança, faltou-lhes a princípio por
julgarem imprópria a terra à plantação da mandioca, não por defeito do solo, pela falta de
chuva durante a maior parte do ano. O milho, a não ser verde, afugentava pelo penoso do
73
preparo naqueles distritos estranhos ao uso do monjolo. As frutas mais silvestres, as
qualidades de mel menos saborosas eram devoradas com avidez. Pode-se apanhar muitos
fatos da vida daqueles sertanejos dizendo que atravessaram a época do couro. De couro era
a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos;
de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforge para levar
comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em
viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para
cortume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros
puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco
para o nariz.
Adquirida a terra para uma fazenda, o trabalho primeiro era acostumar o gado ao
novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante gente; depois ficava tudo entregue ao
vaqueiro. A este cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os
campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças, cobras e morcegos,
conhecer as malhadas escolhidas pelo gado para ruminar gregàriamente, abrir cacimbas e
bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício vaqueiral, escreve um observador, deixa
poucas noites de dormir nos campos, ou a menos as madrugadas não o acham em casa,
especialmente de inverno, sem atender às maiores trovoadas, porque nesta ocasião costuma
nascer a maior parte de bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de espalhar-se
ao romper do dia, como costumam, marcar as vacas que estão próximas a ser mães e trazê-
las quase como à vista, para que parindo não escondam os filhos de forma que fiquem
bravos ou morram de varejeiras.
Depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de
quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por sua conta. Desde começos do
século XVIII, as sesmarias tinham sido limitadas ao máximo de três léguas separadas por
uma devoluta. A gente dos sertões da Bahia, Pernambuco, Ceará, informa o autor anônimo
do admirável Roteiro do Maranhão a Goiás, tem pelo exercício nas fazendas de gado tal
inclinação que procura com empenhos ser nela ocupada, consistindo toda a sua maior
felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de
fazenda, são títulos honoríficos entre eles.
As boiadas procuravam os maiores centros de população, isto é, as capitais da Bahia
e Pernambuco.
Sobre as que iam para a Bahia escreve o seguinte André João Antonil, anagrama do
benemérito jesuíta João Antônio Andreoni:
“Constam as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia, de cem, cento e
cinqüenta, duzentas e trezentas cabeças de gado; e desta quase cada semana chegam
algumas a Capoame, lugar distante da cidade oito léguas, aonde tem pasto e aonde os
marchantes as compram: e em alguns tempos do ano há semanas em que cada dia chegam
boiadas. Os que as trazem são brancos, mulatos e pretos, e também índios que com este
trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta
sorte seguidos do gado; e outros vêm atrás das reses tangendo-as e tendo cuidado que não
saiam do caminho e se amontem. As jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a
comodidade dos pastos aonde hão de parar. Porém, aonde há falta de água, seguem o
caminho de quinze, e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até
que achem paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam
a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça e nadando, mostra às reses o vau por onde
hão de passar”.
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Por maior cuidado na condução das boiadas, transviavam-se algumas reses, outras
por fracas ficavam incapazes de continuar a marcha. Contando com isso, alguns moradores
se estabeleceram nos caminhos e por pouco preço compravam este gado depreciado que
mais tarde cediam em boas condições. Além disso, faziam uma pequena lavoura, cujas
sobras vendiam aos transeuntes; alguns, graças aos conhecimentos locais, melhoraram e
encurtaram as estradas; fizeram açudes, plantaram canas, proporcionaram ao sertanejo uma
de suas alegrias, a rapadura. No rio S. Francisco, desde a barra do Salitre até São Romão,
descobriram-se jazidas de sal na detenção de três graus geográficos, que preparado com
algum trabalho provou excelente. Graças a estas circunstâncias, formou-se no trajeto do
gado uma população relativamente densa, tão densa como só houve igual depois de
descobertas as minas, nas cercanias do Rio.
Perdeu assim os terrores a viagem do sertão, e cerca de 1690 havia antes motivos a
aconselhá-la. Um contemporâneo muito bem informado fala no preço altíssimo dos gêneros
estrangeiros, na depreciação dos frutos da terra, na menor feracidade do solo em
conseqüência do cansaço, nas limitações impostas à cultura do tabaco, “gênero fabricado
por pretos, por brancos, por forros, por cativos, por ricos, por pobres, de que todos em sua
qualidade se alimentavam e vestiam”, nos excessos do contrato do sal, na prepotência da
magistratura, na dificuldade de cobrar dívidas, no desenvolvimento anormal da mão-morta.
“Das fazendas, terras, lavouras e propriedades possuídas das religiões nem Sua Majestade
tem tributos, nem subsídios, nem ainda dízimos, nem as misericórdias, nem os hospitais,
nem as sés, matrizes e mais igrejas, nem as confrarias e irmandades, nem as pobres órfãs e
viúvas têm esmola alguma; só são úteis às religiões que as possuem e não a outra pessoa
alguma... Anualmente vão indo às religiões muitas propriedades, terras e fazendas, ou por
compra, ou por deixa, ou por herança, ou por demanda de pretensões de sessenta, setenta,
oitenta, noventa e cem anos, as quais em poder dos vassalos seculares eram sujeitas a
dízimos, tributos e mais pensões e incorporadas em religiões logo ficam isentas, e o pior é
que aquele tanto ou quanto que pagavam de fintas, tributos subsídios e outros impostos,
tornam a cair sobre os miseráveis seculares”.
Desvanecidos os terrores da viagem ao sertão, alguns homens mais resolutos
levaram família para as fazendas, temporária ou definitivamente e as condições de vida
melhoraram; casas sólidas, espaçosas, de alpendre hospitaleiro, currais de mourões por
cima dos quais se podia passear, bolandeiras para o preparo da farinha, teares modestos
para o fabrico de redes ou pano grosseiro, açudes, engenhocas para preparar a rapadura,
capelas e até capelães, cavalos de estimação, negros africanos, não como fator econômico,
mas como elemento de magnificência e fausto, apresentaram-se gradualmente como sinais
de abastança.
Se a Bahia ocupava os sertões de dentro, escoavam-se para Pernambuco os sertões
de fora, começando de Borborema e alcançando o Ceará, onde confluíam a corrente baiana
e pernambucana. A estrada que partia da ribeira do Acaracu atravessava a do Jaguaribe,
procurava o alto Piranhas e por Pombal, Patos, Campina Grande, bifurcava-se para o
Paraíba e Capibaribe, avantajava-se a todas nesta região. Também no alto Piranhas
confluiram o movimento baiano e o movimento pernambucano, como já fica indicado.
Sobre a extensão de terras ocupada pelo gado vacum oferece-nos dados positivos o
maravilhoso Antonil-Andreoni: “Estende-se o sertão da Bahia até a barra do rio de S.
Francisco, oitenta léguas por costa; e indo para o rio acima até a barra que chamam de
Água-Grande, fica distante a Bahia da dita barra cento e quinze léguas; de Santunse cento e
trinta léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta léguas; das Jacobinas, noventa, e do Tucano
cinqüenta... Os currais da parte da Bahia estão postos na borda do rio de São Francisco, na
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do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio Paramirim, na do rio
Jacuípe, na do rio Ipojuca, na do rio Inhambupe, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do
rio Vasabarris, na do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por informação tomada de
vários, que correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais...
“E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia chegam a muito maior
número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa, desde a cidade de Olinda até o
rio São Francisco, oitenta léguas; e continuando da barra do rio de São Francisco até a barra
do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para Oeste até o Piagui, freguesia de
Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela parte do Norte estende-se de
Olinda até o Ceará-mirim, oitenta léguas, e daí até o Açu trinta e cinco, e até o Ceará
Grande, oitenta; e por todas vem estender-se desde Olinda até esta parte, quase duzentas
léguas...
Os currais desta parte hão de passar de oitocentos; e de todos estes vão boiadas para
o Recife e Olinda e suas vilas e para o fornecimento das fábricas dos engenhos desde o rio
de São Francisco até o rio Grande: tirando os que acima estão nomeados desde o Piagui, até
a barra de Iguaçu e de Paranaguá e rio Preto; porque as boiadas destes rios vão quase todas
para a Bahia, por lhes ficar melhor caminho pelas Jacobinas, por onde passam e
descansam...
As [cabeças de gado] da parte da Bahia se tem por certo que passam de meio
milhão, e mais de oitocentas mil hão de ser as da parte de Pernambuco, ainda que destas se
aproveitam mais os da Bahia, para onde vão muitas boiadas, que os pernambucanos”.
Muito tempo viveu esta gente entregue a si mesmo, sem figura de ordem nem de
organização. Como eram católicos e a igreja à freqüência dos sacramentos, naturalmente
qualquer vigário ou algum mais animoso, mais zeloso ou mais cúpido saía de tempos em
tempos a desobrigar as ovelhas remotas. Depois da instalação do arcebispado da Bahia,
criaram-se freguesias no sertão, enormes, de oitenta, cem léguas e mais. Ali era cobrado o
imposto meio civil meio eclesiástico do dízimo. Os dizimeiros que o arrematavam, depois
de ter feito a experiência, preferiram deixar a outros o trabalho da arrecadação: um dos
fazendeiros ou qualquer pessoa capaz do interior em seu nome ia pelos vizinhos recolher os
bezerros dizimados, pois a paga realizava-se em gênero; depois de alguns anos, três ou
quatro conforme a convenção, prestava contas: cabia-lhe pelo trabalho um quarto do gado,
exatamente como aos vaqueiros.
A carta régia de 20 de janeiro de 1699, primeiro esforço para introduzir alguma
ordem naquela massa amorfa, mandou criar nas freguesias do sertão juízes à semelhança
dos de vintena, que saíam dos mais poderosos da terra, e em cada freguesia um capitão-mor
e cabos de milícia obrigados a socorrer e ajudar os juízes. A resistência contra estes se
equiparava à resistência contra os juízes de fora, e ficariam seqüestrados os bens do réu até
sentença final; as penas pecuniárias deveriam ser preferidas por não se poder facilmente
executar as corporais. Ouvidores, corregedores eram obrigados a uma visita trienal. Se tais
ordens foram cumpridas e nos arquivos de além-mar existirem relatórios das correções,
nem um documento poderá nos ajudar tanto no estudo e conhecimento da vida sertaneja.
Os capitães-mores deixaram fama de violentos, arbitrários e cruéis; não eram,
porém, incontratáveis e maior ou menor sempre encontraram oposição. Reinava respeito
natural pela propriedade; ladrão era e ainda é hoje o mais afrontoso dos epítetos; a vida
humana não inspirava o mesmo acatamento. Questões de terra, melindres de família, uma
descortesia mesmo involuntária, coisas às vezes de insignificância inapreciável
desfechavam em sangue. Por desgraça não se dava o encontro em campo aberto: por trás de
um pau, por uma porta ou janela aberta descuidosamente, na passagem de algum lugar
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ermo ou sombrio lascava o tiro assassino, às vezes marcando o começo de longa série de
assassinatos e vendetas. Com a economia naturista dominante, custava pouco ajuntar
valentões e facinorosos, desafiando as autoridades e as leis. Para apossar-se destes régulos
só havia dois recursos: a astúcia ou o auxílio de vizinhos.
Além do sentimento de orgulho inspirado pela riqueza, pelo afastamento de
autoridades eficazes, pela impunidade, a criação de gado teve um efeito, que repercutiu
longamente. Graças a ela foi possível descobrir mina. Desde 1618 o autor dos Diálogos das
Grandezas do Brasil dizia que o problema da mineração não consistia em encontrar metais,
— estes existiam não restava dúvida, pois o Oriente é mais nobre que o Ocidente e portanto
o Brasil mais opulento que o Peru; o problema verdadeiro consistia na dificuldade de
alimentar os mineiros. E expunha um plano: “O primeiro que se devia fazer antes de bulir
nelas, depois de estarem certos que eram de proveito, houvera de plantarem-se muitos
mantimentos ao redor do sítio onde elas estão e como os houvesse em abundância tratar-se-
ia da lavoura das minas; mas isto se faz pelo contrário, porque sem terem mantimento
entenderam em tirar o ouro e como as minas estão muito pelo sertão os que vão levam de
carreto o mantimento necessário e como se lhe acaba tornam-se e deixam a lavoura que
tinham começado. E esta cuido que é a verdadeira causa de darem as ditas minas pouco de
si”.
O plano decorria da natureza das coisas e Fernão Dias Pais, sem nunca ter lido os
Diálogos das Grandezas do Brasil, conservados inéditos até muito poucos anos, obedeceu-
lhe na famosa jornadas das esmeraldas; seria suficiente enquanto os mineiros se limitassem
a bandos mais ou menos numerosos, e a alimentação vegetal pudesse ser suprida com a
caça e a pesca; depois do alborôto provocado pelos descobertos era indispensável recurso
menos aleatório, e impunha-se a necessidade de gado vacum e de muito gado.
Não podia ir de S. Paulo: em março de 1700 o capitão-mor Pedro Taques de
Almeida confessava a d. João de Lencastro, governador geral: “destas vilas não é possível
fazer-se [a remessa das boiadas], porque sendo vinte já perecem os povos, nem se vende
peso de carne, e valendo uma rês dois mil réis prometem os mineiros oito, pelo que
interessam nas minas, porque o preço geral até o presente foi cinqüenta oitavas e em
alguma necessidade cem”.
O recurso só podia partir da bacia do rio S. Francisco. “Pelo dito rio ou pelo seu
caminho, expõe um documento pouco posterior a 1705, lhe entram os gados de que se
sustenta o grande povo que está nas minas, de tal sorte que de nem uma outra parte lhe vão
nem lhe podem ir os ditos gados, porque não os há nos sertões de São Paulo nem nos do
Rio de Janeiro. Da mesma sorte se provêm pelo dito caminho de cavalos para suas viagens,
de sal feito de terra no rio S. Francisco, de farinhas e outras cousas, todas precisas para o
trato e sustento da vida.
O rio S. Francisco, acrescenta, desde a sua barra que faz no mar junto à vila de
Penedo, em igual distância de oitenta léguas da Bahia e Pernambuco, de uma e outra parte,
assim do que pertence à jurisdição de Pernambuco como à da Bahia (para os quais serve de
divisão o dito rio) tem às suas beiras várias povoações, umas mais chegadas, outras mais
distantes do dito rio; e na mesma forma se vão continuando por ele acima, por espaço de
mais de seiscentas léguas, até se ajuntarem na barra que nele faz o rio das Velhas, em cuja
altura se acham hoje as últimas fazendas de gados de uma e outra banda do dito rio de S.
Francisco, sem ter da dita barra até esta altura parte despovoada nem deserta em a qual seja
necessário dormir ou alvergarem no campo os viandantes, querendo recolher-se na casa dos
vaqueiros, como ordinàriamente fazem, pelo bom acolhimento que nelas acham”.
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Assim, como o alto Paraíba do Sul, mas em proporções muito mais grandiosas,
também o rio de S. Francisco serviu de condensador da população.
À vista disto poder-se-ia esperar muitas vilas nestas regiões tão povoadas. Puro
engano: só foram criadas no século XVIII, mais uma prova da diferença entre as capitanias
del-rei e as de donatários na aprecião das municipalidades.
As câmaras do sertão não divergiam das do litoral, isto é, possuíam direito de
petição, podiam taxar os gêneros de produção local, davam os juízes ordinários, mas eram
antes de tudo corporações meramente administrativas.
Dos assentos da câmara do Icó no Ceará, instalada em 1738, constam posturas
relativas ao plantio de mandioca para farinha e de carrapateira para o fabrico de azeite, à
proibição de exportar farinha por causa da carestia, aos salários que deviam cobrar
alfaiates, sapateiros e outros oficiais, à morte de periquitos, etc.
Nada confirma a onipotência das câmaras municipais descoberta por João Francisco
Lisboa, e repetida à porfia por quem não se deu ao trabalho de recorrer às fontes.
* * *
À preocupação de minas cederam já Cristóvão Jaques e Martim Afonso. Nas suas
capitanias esperavam encontrá-las João de Barros e sócios. Duarte Coelho contava
descobri-las no rio de S. Francisco, e só deixou de ir pesquisá-las pessoalmente por
circunstâncias alheias à sua vontade. Em Porto Seguro correram notícias de ouro uns
quarenta anos depois da viagem de Pedr’Álvares. Luís de Melo da Silva embarcou-se à sua
procura para as terras do Amazonas.
Tomé de Sousa dispôs uma expedição que transpôs a serra do Espinhaço. Sob seus
sucessores volveram outros com pedras preciosas, especialmente esmeraldas. Pareceram
por fim tais e tantos os vestígios de haveres a uma inteligência perspícua como a de Gabriel
Soares, que abandonou o próspero engenho de Jeriquiriçá e perdeu anos com requerimentos
junto às cortes de Lisboa e de Madrid para prestar à pátria o serviço de revelar-lhe as
riquezas ocultas.
“Dos metais de que o mundo faz mais conta, que é ouro e prata, — escreve no
último capítulo de seu monumental Tratado, — fazemos aqui tão pouca que os guardamos
para o remate e fim desta história, havendo-se de dizer deles primeiro, pois esta terra da
Bahia tem dele tanto quanto se pode imaginar; do que pode vir a Espanha cada ano maiores
carregações do que nunca vieram das Índias Ocidentais, se Sua Majestade for disso
servido”.
A tentativa em que se meteu não provou a verdade destes assertos, mas perpetuou-lhe o nome. A ele
prende-se a tradição de grandes viagens ao interior e de inexauríveis minas de prata. Melchior Dias, seu
parente, ofereceu mostrar o metal branco em quantidade igual à do ferro em Biscaia. Após muitas negaças,
intimado a cumprir a promessa, levou o governador geral do Brasil com alguns mineiros às serras de
Itabaiana. As experiências feitas com azougue deram nada, com fogo deram fumo, informa testemunha de
vista. Apesar de tudo continuou inabalável a crença nos tesouros ocultos de Melchior e na riqueza argentífera.
Ainda no último quartel do século XVII procurava-se, esperava-se prata.
Partilhando das crenças de Gabriel Soares, d. Francisco de Sousa mandou do
Espírito Santo às esmeraldas e de S. Vicente a Sabarabuçu. Quando veio-lhe substituto
dirigiu-se para Madrid, onde conseguiu a separação do Estado em dois governos, em 1608;
coube-lhe o do Sul com a superintendência exclusiva das minas em toda a colônia. Nestes
trabalhos perdeu a vida em São Paulo; a esperança conservou sempre e soube comunicá-la
a outros.
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A incumbência dada a d. Francisco passou por sua morte a Salvador Correia e a
alguns de seus descendentes, que durante quatro gerações pesquisaram ouro, prata,
esmeraldas nos pontos mais diversos. Salvador neto adquiriu por fim certo cepticismo a
propósito de metais; antes de qualquer outro convenceu-se da não existência de prata: “em
sua consciência o declara que de Itabaiana para o Sul, quarenta léguas do mar, não há minas
de prata, porquanto nestas partes andou ele conselheiro e fez todas as experiências para a
descobrir, e é diferente terreno do de Potosi”, concluía no Conselho Ultramarino em 3 de
maio de 1677. De Potosi podia falar com pertinência, pois fora até os Andes.
Por que se generalizou e persistiu esta crença com tanta pertinácia? Porque se
acreditava na identidade estrutural do Ocidente e do Oriente da América; porque tomaram a
malacacheta por prata, como Salvador afirma de Melchior Dias; porque nas idéias do tempo
o Oriente era mais nobre que o Ocidente, e não podia faltar aqui o que abundava lá: “por
boa razão de filosofia esta região deve ter mais e melhores minas que a do Peru”, lê-se em
documento escrito cerca de 1610, “por ficar mais oriental que ela e mais disposta para a
criação de metais”. Talvez influíssem também o nome do rio da Prata legado pelos
primeiros navegadores e os informes confusos dos indígenas.
O ouro, não procurado ou procurado com menor afinco, aparecia entretanto às
pequenas quantidades na capitania de S. Vicente. Desde o tempo de Mem de Sá
encontraram alguns grãos Brás Cubas, provedor da fazenda, e Luís Martins, mineiro ido de
Portugal.
Foram igualmente felizes outros. A crer na tradição houve descobertos riquíssimos;
Afonso Sardinha, dizia-se, deixara oitenta mil cruzados de ouro em pó. Há de entrar
exagero nesta conta, ou pelo menos muito ogó haveria no monte. Se tanto abundasse o
metal, a população teria afluído aos bandos e os paulistas não levariam tanto tempo vida de
bandeirantes.
Antonil-Andreoni parece mais próximo da verdade, quando diz a respeito destas
primitivas lavras “que de um outeiro alto distante três léguas da vila de S. Paulo, a que
chamam Jaraguá, se tirou quantidade de ouro que passava de oitavas a libras. Em Parnaíba,
também junto da mesma vila no serro Ibituruna, se achou ouro e tirou-se por oitavas. Muito
mais e por muitos anos se continuou a tirar em Parnaguá e Curitiba, primeiro por oitavas,
depois por libras, que chegaram a alguma arroba posto que com muito trabalho para o
ajuntar, sendo o rendimento no catar limitado”.
Mais que as libras e oitavas, importam porém o gosto pelas pesquisas auríferas
assim mantido e a prática do ouro de lavagem. Esta familiaridade influiu de maneira
benéfica sobre o desenvolvimento ulterior da mineração.
D. Pedro II, depois de ver frustradas ou mal correspondidas todas as esperanças
concentradas nas minas, resolveu dar um grande passo: dirigiu as mais lisonjeiras cartas à
gente principal de São Paulo, confiando-lhe por assim dizer a questão.
Este apelo aos brios paulistas provocou o maior entusiasmo: um rei ainda se
reputava então semideus, e uma carta régia honra quase sobre-humana. De chofre
aparelharam-se e partiram nos rumos mais opostos numerosas bandeiras, e desde logo se
evidenciou que, se o Brasil contivesse haveres minerais, não poderia conservá-los
encobertos por mais tempo.
O mais famoso destes bandeirantes, transformado agora em mineiro pelo pedido do
rei, chamava-se Fernão Dias Pais. Administrava algumas aldeias de índios Guanãan,
desfrutava a casa grande característica da economia naturista e transmontara já o pino da
vida. Alistou-se na cruzada do metal, apesar de tudo isto. Dez anos consumiu na porfia, e
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ao falecer nas matas do rio Doce levou a certeza de haver descoberto as célebres
esmeraldas, secularmente esquivas.
Sua morte precedeu de pouco o despontar dos descobertos fenomenais. Garcia
Rodrigues Pais era seu filho, uma filha sua esposara Manuel da Borba Gato, ambos astros
de primeira grandeza nestes cometimentos.
De Minas Gerais o nome indica a fartura, a onipresença dos haveres. Quem os
descobriu primitivamente é impossível apurar, tanto se contradizem as versões; o fato
ocorreu pouco depois de 1690. Segundo Antonil-Andreoni, um mulato de Curitiba
encontrou no riacho chamado Tripuí uns granitos cor de aço, que vendeu em Taubaté a
Miguel de Sousa por meia pataca a oitava; levados ao Rio reconheceu-se neles ouro
finíssimo. Foi este o primeiro descoberto.
Seguiram-se o de Antônio Dias, a meia légua de Ouro Preto, o de João de Faria, o
de Bueno e de Bento Rodrigues pouco mais distantes, os do ribeirão do Carmo e do
Ibupiranga, todos nas cercanias de Ouro Preto e Mariana; parte da bacia do alto rio Doce
foi escavada, justificando o nome de minas gerais primeiramente aplicado a este distrito.
Outros centros foram o rio das Mortes nas proximidades de São João e São José de
El-Rei, caminho de São Paulo; o rio das Velhas, revelado por Manuel da Borba Gato,
caminho da Bahia; Caeté e, ainda e sempre no alto rio Doce e na cordilheira do Espinhaço,
o serro do Frio. Novas minas foram descobertas em Pitangui, Paracatu e alhures; já
pertencem à segunda corrente e dispensam enumeração especial.
Dos caminhos primitivos um partia de S. Paulo, acompanhava o Paraíba, transpunha
a Mantiqueira, cortava as águas do rio Grande e além bifurcava para o rio das Velhas ou o
Doce, conforme o destino; outro ou saía de Cachoeira na Bahia e subia o rio Paraguaçu, ou
tomando outras direções, passava a divisória do São Francisco, margeava-o a maior ou
menor distância até o rio das Velhas que perlongava; o caminho do Rio seguia por terra ou
por mar até Parati, pela antiga picada dos Guaianá galgava a serra do Facão nas cercanias
da atual cidade do Cunha e em Taubaté entroncava na estrada geral de São Paulo. Mais
tarde o entroncamento fez-se em Pindamonhangaba.
Artur de Sá, primeira autoridade que visitou os descobertos, tratou com Garcia
Rodrigues Pais a abertura de uma linha mais direta de comunicações com a cidade de São
Sebastião, a verdadeira capital do Sul. O filho de Fernão Dias deu conta cabal da
incumbência. Nas proximidades da hodierna Barbacena reuniam-se os caminhos do rio das
Mortes, o do rio das Velhas, e o do rio Doce; começou daí, venceu a Mantiqueira, procurou
o Paraibuna, seguiu-o até sua barra no Paraíba e pela serra dos Órgãos chegou à baía do
Rio, passando em Cabaru, Marcos da Costa, Couto e Pilar. O trecho entre o Paraíba e a baía
já estava ligado em 1725 por outro caminho, devido a Bernardo Soares de Proença,
correspondendo em parte ao traçado de E. de F. de Petrópolis a Entre-Rios, em parte
acompanhando o rio Inhomirim.
Ainda uma década depois dos primeiros descobertos, custava um boi cem oitavas, a
mão de sessenta espigas de milho trinta oitavas, um alqueire de farinha de mandioca
quarenta oitavas, uma galinha três ou quatro oitavas, um barrilote de aguardente, carga de
um escravo, cem oitavas, um barrilote de vinho, carga de um escravo, duzentas oitavas, um
barrilote de azeite duas libras (libra = 128 oitavas).
“Não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineiros por falta de
mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão sem terem
outro sustento”, informa Antonil-Andreoni. “Porém tanto que se viu a abundância do ouro
que se tirava e a largueza com que se pagava tudo o que lá ia, logo se fizeram estalagens e
logo começaram os mercadores a mandar às minas o melhor que chega nos navios do Reino
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e de outras partes, assim de mantimentos como de regalo e de pomposo para se vestirem,
além de mil bugiarias de França, que lá também foram dar... E não havendo nas minas outra
moeda mais que ouro em pó, o menos que se pedia e dava por qualquer coisa eram oitavas.
Com vender coisas comestíveis, aguardente e garapas muitos em breve tempo
acumularam quantidade considerável de ouro, — continua o mesmo autor. Porque como os
negros e os índios escondem bastantes oitavas quando catam nos ribeiros e nos dias santos
e nas últimas horas do dia tiram ouro para si, a maior parte deste ouro se gasta em comer e
beber, e insensìvelmente dá aos vendedores grande lucro, como costuma dar a chuva miúda
aos campos, a qual continuando a regá-los sem estrondo, os faz muito férteis. E por isso até
os homens de maior cabedal não deixaram de se aproveitar por este caminho dessa mina à
flor da terra, tendo negras cozinheiras, mulatas doceiras e crioulos taverneiros ocupados
nesta redosíssima lavra, e mandando vir dos portos de mar tudo o que a gula costuma
apetecer e buscar”.
Sem serem procuradas apareceram as minas de Cuiabá. Pascoal Moreira Cabral e
seus companheiros andavam à cata de índios quando encontraram os primeiros grãos de
ouro em 1719, em tamanha abundância que extraía-se com as mãos e paus pontudos; tirava-
se ouro da terra como nata de leite, na expressão pitoresca de Eschwege. Os bandeirantes
viraram mineiros sem pensar e sem querer. A experiência das desordens das minas gerais
foi aproveitada, e não houve aqui as terríveis desordens que fizeram tristemente célebre o
rio das Mortes.
As notícias desta facilidade única de minerar, levadas ao povoado, agitaram a
população, e levianamente se lançou à terrível jornada que começava no Tietê próximo do
Itu, prosseguia pelo Paraná até junto das Sete Quedas, varava para as águas do Mbotetéu
até sua barra no Paraguai e subindo por este procurava o São Lourenço e o Cuiabá. Muitos
naufragaram; morreram outros de inanição ou devorados pelas feras; dos escapos à morte
muitos perderam nos saltos e corredeiras as fazendas com que pretendiam negociar; as
fazendas salvas chegavam podres a seu destino, porque não toldavam as canoas. E depois
de tantos perigos encontravam a mais negra miséria em Cuiabá.
Alguns fatos narrados por Barbosa de Sá, testemunha e cronista desse período,
mostram o horror da situação.
Só em 1721 chegou a primeira ferramenta para a mineração. Não havia pescadores e
um dourado colhido acaso vendia-se por sete e oito oitavas. Muitos andavam opilados e
hidrópicos, todos em geral com pernas e barrigas inchadas, com cores de defuntos;
apetecia-se comer terra e muitos o faziam. Em 1723 apareceram os primeiros porcos e
galinhas. Em 1725 chegou-se a dar por um frasco de sal meia libra de ouro (256$, a câmbio
de 27). O milho, antes de brotado, era comido pelos ratos; depois de nascido caíam-lhe em
cima os gafanhotos; se espigava, o sabugo saía sem grãos; o que granava tinha de ser
colhido verde para os pássaros o não comerem. As ratazanas eram tantas que um casal de
gatos foi vendido por uma libra de ouro, e os filhotes a vinte e trinta oitavas. Em 1729, por
falta de fazendas, venderam-se camisas de alguns lençóis que se desfaziam a doze oitavas
de ouro; a vara de algodão da terra a três e a quatro oitavas; sal não havia nem para
batizado.
A situação melhorou muito lentamente. Em 1725 começou-se a navegação pelo
Pardo, Coxim e Taquari, o que facilitava bastante a viagem, principalmente depois de se
fazerem roças, criação de gado e até carros para transportar canoas no varadouro de
Camapuã, entre o Paraguai e o Paraná.
Em 1728 plantou-se cana: “logo começaram a moer nas moendinhas que chamamos
escaroçador e a estilar em lambiques que formavam de tachos, apareceram logo águas
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ardentes de cana que vendiam a cinco e seis oitavas de ouro e as frasqueiras a quarenta
oitavas. Com isto foi que se começou a lograr saúde, a cessarem enfermidades e terem os
homens boas cores que até então tinham-nas de defuntos, foram a menos as hidropisias e
inflamações de barrigas e pernas e a mortandade de escravos que té aí se experimentava
enterrando-se cada dia aos montões”.
Até então a gente se concentrava nas cercanias de Cuiabá. Em 1734 transpuseram a
serra e na região dos Parecis afloraram novas minas. Grandes florestas encontradas ali são a
origem do nome de Mato Grosso. Em 1736 descobriu-se caminho por terra de Cuiabá ao
Paraguai, e pelas águas do Guaporé a mineração foi se estendendo. Aquele ponto mais
remoto ainda do que Cuiabá sofreu iguais misérias; despertou, porém, risonhas esperanças
conhecer-se a existência de aldeias de jesuítas espanhóis a distâncias relativamente
pequenas. Os primeiros que foram às reduções encontraram bom acolhimento e obtiveram
algum gado. Brotou a idéia entabular comércio e logo outros aventureiros realizaram mais
de uma expedição sem o fruto apetecido, porque ordens restritas vedaram quaisquer
transações com os portugueses. Nas reduções encontraram notícia de estarem na bacia do
Madeira.
Poucos anos antes Francisco de Melo Palheta chegara às aldeias do Mamoré,
partindo do Pará. Animado por este exemplo, Manuel Félix de Lima em 1742 atirou-se ao
rio Guaporé e foi sair em Belém. Mais tarde João de Sousa de Azevedo embarcou no
Arinos, foi dar no Tapajós e voltou pelo Madeira. Apesar das dificuldades de navegação
ainda hoje não vencidas, a viagem de um e outro rio foi repetida e aqueles sertões de
Noroeste ficaram ligados à baixada do Amazonas.
Outra ligação se estabelecera antes com S. Paulo por via terrestre para evitar os
índios brabos. Desde a barra do São Lourenço começaram os Paiaguás e Guaicurus a
perseguir as pessoas que iam para Cuiabá ou de lá tornavam. Apareciam de súbito em
inúmeras canoas, e conhecendo os mínimos acidentes dos pantanais escolhiam os pontos de
ataque e sabiam furtar-se aos que perseguiam. Diz-se que obravam incitados pelos
castelhanos de Asunción e é muito possível, porque mineiros e bandeirantes não eram
vizinhos para se desejar. Em todo o caso o ouro que tomavam encontrava a saída no
Paraguai e tanto bastava para estimulá-los em seus salteios.
O primeiro destes sucessos ocorreu em 1725. Diogo de Sousa com muita gente
entrava no Xané, no delta do S. Lourenço, quando apareceu o gentio. Foram mortas
seiscentas pessoas: salvaram-se apenas um branco e um preto: como troféu e despojo, os
Paiaguás levaram vinte canoas. Repetiram-se os ataques nos anos seguintes, ora mais perto,
ora mais longe do Taquari, ponto obrigado depois das plantações do Camape da
navegação do Pardo. No meio de expedições para tomar vingança dos Bárbaros, surgiu a
idéia de abrir caminho para Goiás e o povo concorreu com três mil oitavas para a obra.
Realizou-se Antônio Pinto de Azevedo, que já estava de volta a Cuiabá em setembro de
1737, com cavalarias e gados, os primeiros ali introduzidos.
Os descobertos de Cuiabá lembraram a Bartolomeu Bueno da Silva que, uns
quarenta anos antes, percorrendo os sertões em companhia de seu pai, o primeiro
Anhangüera, vira entre os índios Guaiá pepitas de ouro servindo-lhes de ornatos. Deviam
ser muito auríferas aquelas regiões, pois o metal chegara a atrair a atenção do aborígene.
Sentiu-se capaz de achá-las outra vez, ofereceu-se a tentá-lo e seu oferecimento aceito,
partiu de São Paulo em janeiro de 722.
Fiara demais de sua retentiva: durante mais de três anos andou a esmo em todos os
sentidos, até as cabeceiras do Araguaia; parte de sua gente desceu o Tocantins e chegou ao
Pará; parte caiu em encontro com os índios, parte morreu de fome; depois de comidos os
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cachorros e alguns cavalos, “fiz trinta e cinco sermões sem mudar de tema”, conta um
companheiro do segundo Anhangüera, “animando a todos que não esmorecessem,
certificando-lhes para diante rios de muitos peixes, campos de muitos veados, matos de
muita caça, mel e guarirobas. Perguntavam os miseráveis: quando? Respondia-lhes: nestes
dias, e nestes permitia Deus que chegássemos e tudo se achava certo. Com isto cessaram as
mortes e não morreu mais ninguém, e mal de muitos se não fora o pregador”.
Afinal, em 21 de outubro de 725, Bartolomeu Bueno chegou triunfante a S. Paulo,
assegurando iguais grandezas às de Cuiabá, com a vantagem dos ares não serem tão
contagiosos. Os rios, cujas passagens lhe foram concedidas e a seu sócio Bartolomeu Pais
de Abreu, pai do benemérito historiador paulista Pedro Taques, dão idéia aproximada do
seu itinerário, a trechos seguido no traçado da E. F. Mogiana: Atibaia, Jaguari, Mogi,
Sapucaí, Pardo Grande, Velhas, Paranaíba, Corumbá, Meia-Ponte e Pasmados.
A primeira mineração condensou-se no rio Vermelho, afluente do Araguaia; mas
também aqui apareceram minas generalizadas e os mineiros se dispersaram.
Em 733 Domingos Rodrigues do Prado descobriu as de Crixás, Manuel Dias da
Silva as de Santa Cruz e Calhamare as de Antas; no mesmo ano Manuel Rodrigues Tomar
descobriu as de Água-Quente e nos seguintes as de S. José e Traíras; em 734 Carlos
Marinho descobriu as de S. Félix, em 736 descobriu as de Cachoeira, Santa Rita e
Moquém; em 737 Francisco de Albuquerque Cavalcante descobriu as que guardam seu
nome; datam de 739 o descoberto de Amaro Leite, de 740 o de Arraias, devido a Francisco
Lopes, de 740 o de Pilar, devido a João de Godói Pinto da Silveira, de 746 o de Santa
Luzia, devido a Antônio Bueno de Azeredo. Estas datas são aproximadas, e variam com os
cronistas.
A situação geográfica de Goiás permitia-lhe fàcilmente comunicar-se com a baixada
amazônica e com os chapadões de Parnaíba, de S. Francisco e do Paraná; sua aparição
tardia na história e relativa proximidade
*
caminho de São Paulo pouco tempo conservou-se
único; apesar das proibições repetidas e arbitrárias abriram-se mais outras picadas, e gados
e aventureiros afluiram de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão. Já se viu
que poucos anos depois daqui partiram recursos para os cuiabanos.
Várias expedições se organizaram à procura de jazidas particularmente abundantes,
sibilinamente anunciadas em roteiros misteriosos: — Martírios, assim chamados da
semelhança entre as formas das rochas vizinhas e os instrumentos da Paixão, Araez, rio
Rico, etc. Nos roteiros, observa Eschwege, que ainda alcançou alguns, guardados
ciosamente nas famílias, três irmãos ou três irmãs podem ser três serras ou três rios;
juntamente com a trindade, anda em geral a alavanca encostada à gameleira, ou a corrente
pregada ao cedro, ou o prato de estanho largado numa loca, designados como conhecenças
inequívocas do tesouro e nunca vistos. Os Martírios, se de fato existem, aguardam ainda
descobridor.
A estas três capitanias auríferas cumpre agregar a da Bahia, não menos rica.
Jacobinas e rio de Contas, este sobretudo, justificaram todas as esperanças do velho Gabriel
Soares; mas a metrópole julgou estes descobertos demasiado próximos do litoral, expostos
portanto a assaltos de piratas, e proibiu fossem minerados. O veto respeitou-se o menos
possível, embora se guardassem as aparências; daí certo ar de clandestinidade de
especificá-la. Mais tarde a proibição foi levantada; contudo Bahia continuou antes agrícola
e pastoril que mineira, e Goiás afogou-a com o seu esplendor.
*
do povoado pouparam-lhe muitas da privações sofridas por Minas Gerais e Mato Grosso. O primitivo.
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As Ordenações do Reino enumeravam as minas entre os direitos reais. Como a
experiência de quase um século patenteasse a dificuldade de desfrutá-las, triunfou a idéia,
sugerida talvez por d. Francisco de Sousa e incorporada no regimento de 1603, de permitir
a lavrança, com a ressalva do quinto para a Coroa. Enquanto o ouro andou por oitavas e
libras, a porcentagem foi por assim dizer deixada aos escrúpulos de cada mineiro, mera
afirmação de um princípio teórico; com os descobertos gerais de Cataguases transformou-
se em propulsor de todo o mecanismo colonial.
No caos inicial a única autoridade, o guarda-mor, demarcava os lotes e apartava
para o rei uma data, adjudicada em licitação a quem mais desse. O quinto cobravam
provedores ad hoc ou arrecadavam registos colocados em pontos de passagem forçada:
Taubaté, para quem procurava São Paulo, ou Parati, no caminho do Rio. Nas ribeiras do
São Francisco a coleta ficava mais difícil, porque a partir do arraial de Matias Cardoso,
perto da atual Januária, abriram-se muitos caminhos para o Norte e nascente; pelo rio
desciam canoas e muitos preferiam este veículo, mais seguro e mais econômico. A
dificuldade de arrecadação ainda avultou quando Garcia Pais estabeleceu comunicação
direta com a baía do Rio de Janeiro. Mesmo assim o rendimento foi considerável.
Nova era começa em 1711, com a chegada de Antônio de Albuquerque, a criação de
vilas e a instalação das municipalidades. Albuquerque reuniu as câmaras e pessoas mais
notáveis, para assentarem o melhor meio de garantir os interesses da Coroa. Parecia
racional uma capitação paga por cada bateia empregada na lavra; as câmaras preferiram
impostos de entrada sobre fazendas secas, molhados e escravos. A invasão de Duguay-
Trouin chamou o governador ao Rio; o ponto ficou suspenso; continuaram os registros e o
sistema antigo.
Brás Baltásar da Silveira, novo governador, aceitou o oferecimento feito pelas
câmaras de Vila-Rica, Sabará e Carmo, de darem anualmente, em paga do quinto, trinta
arrobas de ouro (1 arroba = 16:834$000, ao câmbio de 27); para auxílio da cobrança,
concedeu-lhes d. Brás uma quota no direito das entradas. Durou esta avença um
quinqüênio, sem que o governo da metrópole jamais parecesse satisfeito.
De 1718 a 722, as câmaras abriram mão da quota de importação e obrigaram-se a
pagar anualmente vinte e cinco arrobas. A corte encheu-se, porém, de escrúpulos com a
injustiça da capitação até ali vigente; preferiu casas de fundição, a que seria recolhido todo
o ouro em pó, reduzido a barras e desde logo quintado. Avessas a este sistema, as
municipalidades propuseram pagar trinta e sete arrobas e assim se fez até 1725.
De então até 1750 vigorou, ora o sistema de capitação, ora o de casas de fundição.
Estas foram definitivamente estabelecidas desde o começo do reinado de José I; afiançaram
as câmaras o rendimento anual de cem arrobas; havendo sobra, poderia servir para cobrir de
déficit do ano seguinte; se este apresentasse também sobra, a do ano anterior ficava
pertencendo definitivamente à Coroa; se houvesse déficit e não pudesse ser suprido pelo
modo indicado, proceder-se-ia à derrama, isto é, cada municipalidade concorreria
proporcionalmente, de modo a completar-se a centena de arrobas. A câmara mais opulenta,
a de Vila-Rica, tinha, como recursos exclusivos, os aferimentos de pesos e medidas, os
foros das casas, a renda dos açougues e a da cadeia; somado tudo não chegava a cinco
contos ânuos. Quer isto dizer que a escrupulosa metrópole passava adiante a
responsabilidade na odiada capitação.
Levariam longe os pormenores do regime fiscal, imposto a Minas Gerais e, até onde
o permitiam as distâncias e a população esparsa, à Bahia, Goiás e Mato Grosso; a proibição
de abrir novas picadas, a proibição de fundar novos engenhos, a proibição de andar com
ouro em pó, a proibição de andar com ouro amoedado, a proibição de exercer o ofício de
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ourives, os impostos múltiplos, os donativos implorados por prazo certo e curto e depois
exigidos imperiosamente por prazo muito maior, estranhando-se a ousadia de suspendê-los
nos termos do acordo inicial, mostrariam até onde pode chegar uma administração sem
melindres e sem inteligência e uma gente sem energia, se não fosse o distrito adiamantino.
Apenas uma amostra. Divulgada em 1730 a existência de diamantes no Tijuco, logo
d. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais, estabeleceu a capitação de 5$ por
cada escravo empregado nas lavras; no ano seguinte mandou despejar as minas, expulsar da
comarca do Serro negros, mulatas e mulatos forros, limitar a mineração a certa zona,
pagando-se pelo menos 60$ anualmente, afinal por muito favor reduzidos a 20$, proibiu
vendas fora do povoado e só as permitiu na povoação com o sol de fora; em 1734 a
capitação foi elevada a 40$, e logo em seguida vedada a mineração e mandado que nem um
dos habitantes do distrito pudesse ter bateia, almocrafe, alavanca ou qualquer outro
instrumento de minerar. Com o tempo foi-se tornando mais tirânico o regime, de modo a
permitir que a Coroa portuguesa ficasse senhora do mercado de diamantes do mundo
inteiro.
O ouro produzido no Brasil escapa a qualquer avaliação exata. Levando em conta
uma porção de dados, Calógeras calcula que Goiás e Mato Grosso, desde o começo da
mineração até 1770, deram uma produção total de nove mil arrobas; daquela data a 1822
mais umas duas mil e quinhentas: ao todo cento e noventa mil quilogramas. Entre São
Paulo, Bahia e Ceará haveria mais setenta e cinco a oitenta mil. Chega-se assim ao total de
duzentos e setenta mil quilos para a produção destas partes do Brasil, durante o período
colonial até 1822.
Para Minas Gerais avalia-se em sete mil e quinhentas arrobas do princípio até 1725;
em seis mil e quinhentas arrobas a produção dos onze anos seguintes; em doze mil arrobas
de 1736 a 1751; em dezoito mil arrobas de 1752 a 1787; em três mil e quinhentas a quatro
mil arrobas de 1788 a 1801; em três mil e quinhentas arrobas de 1801 a 1820. Até 1820 a
extração total em Minas devia andar por 51.500 arrobas, digamos 772.500 quilogramas.
Os quintos representam apenas uma parte do regime fiscal: havia mais os dízimos,
os direitos das entradas, as passagens dos rios.
Os dízimos, estabelecidos em 1704, rendiam no tempo de Teixeira Coelho mais de
sessenta contos anuais: para os seis anos e cinco meses decorrentes do primeiro de agosto
de 1777 ao último de dezembro de 1783 o contrato foi arrematado por 388 contos.
Os direitos de entrada cobravam-se nos registros do caminho novo, da Mantiqueira,
do Itajubá, do Jaguara, do Ouro-fino, do Jacuí, de Sete Lagoas, do Jequitibá, do Zabelê, do
ribeirão da Areia, de Nazaré, de Olhos d’Água, de S. Luís, de Santo Antônio, de Santa
Isabel, do Pé do morro, do Rebelo, do Inhacica, do Caeté-mirim, do Galheiro, do Bom-
Jardim, de Simão Vieira, de Jequitinhonha, de Itacambira, do rio Pardo. Pagavam entrada
os escravos introduzidos pela primeira vez, cabeças de gado vacum, muar ou cavalar, e as
cargas de fazenda seca ou molhada. Por molhados entendiam-se os comestíveis, ferro, aço,
pólvora e tudo o mais impróprio para se vestir. O rendimento das entradas em 1776 foi de
mais de cento e quarenta e sete contos.
Pagava-se passagem nos rios Sapucaí, Verde, Mortes, Grande, Paraupeba, Velhas,
Urucuia, Baependi, Pará, São Francisco, Jequitinhonha. Ofícios de justiça e fazenda
pagavam também donativos, terças e novos direitos.
Na constância da derrama surgiram os primeiros fenômenos da decadência da
mineração. Explicaram-na pelos extravios cada vez mais numerosos, graças à
multiplicidade de vias de comunicação. Teixeira Coelho, que passou onze anos em Minas,
ocupando altos empregos, e deixou escrito precioso sobre a capitania, indica outras causas:
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a pobreza dos mineiros; falta de negros, monopólios deles e direitos excessivos que
pagavam; abusos nas concessões dos guardas-mores; demandas sobre terras e águas
minerais; mau método de minerar; demandas sobre os privilégios dos mineiros a que
chamam da trintada, divisão das fábricas por heranças, etc.
Todos estes males influem sensivelmente na decadência das minas, observa
Eschwege, mas todos eles procedem de duas únicas causas, e são terem se franqueado ao
povo as minas sem limitação e sem inspeção sobre seus trabalhos e a falta de leis
montanísticas adequadas a este país... Os mineiros do país aproveitam só o que podem
separar mecânicamente e de uma maneira muito imperfeita. Assim, contando todas as
perdas que sofrem, causadas pela sua ignorância, desde que tiram o ouro do seu leito
natural até que sai fundido da casa de fundição e da moeda, não será por certo exagerado
quem avaliar estas perdas em a metade do mesmo ouro...
Desenganada de ouro, a população procurou outros meios de subsistência: a criação
do gado, a agricultura de cereais, a plantação de cana, de fumo, de algodão; com o tempo
avultou a produção ao ponto de criar-se uma indústria especial de transportes, confiada aos
históricos e honrados tropeiros.
Diversas tentativas se fizeram para atravessar a mata e comunicar diretamente com
o mar. A mais feliz consistiu na passagem do alto rio Doce para o Pomba, iniciada por
1766. A presença de poaia facilitou o comércio com os índios daquelas regiões. Coroados,
Coropotos, extratores da erva medicinal, cujo emprego, segundo uma tradição encontrada
por Martius, lhes ensinou a irara: “asseguraram-nos”, escreve ele, “que estes filhos da
natureza aprenderam o uso da raiz hemética com a irara, espécie de marta, que costuma,
quando bebeu demais água impura ou salgada de muitos riachos e tanques, mastigar a raiz e
a erva para provocar vômito. Contudo isto pode muito bem ser uma das muitas histórias
infundadas que sem exame os portugueses receberam dos índios”.
Assim, a penetração ou melhor a exteriorização fez-se rápida através da zona de
ipecacuanha. Já na era de 780 Miguel Henrique, o Mão de Luva, chegava por este caminho
às minas de Cantagalo. Mais tarde plantou-se café naquela comarca, que desceu o Paraíba
ou procurou o porto de Magé (por Aparecida, Serra do Capim, Paquequer, estrada
construída pelo barão de Aiuruoca), enquanto não pôde servir-se da Estrada de Ferro de
Pedro II e da Estrada de Ferro da Leopoldina.
* * *
Os triunfos colhidos em guerras contra os estrangeiros, as proezas dos bandeirantes dentro e fora do
país, a abundância de gados animando a imensidade dos sertões, as copiosas somas remetidas para o governo
da metrópole, as numerosas fortunas, o acréscimo da população, influiram consideravelmente sobre a
psicologia dos colonos. Os descobertos auríferos vieram completar a obra. Não queriam, não podiam mais se
reputar inferiores aos nascidos no além-mar, os humildes e envergonhados mazombos do começo do século
XVII. Por seus serviços, por suas riquezas, pelas magnificências da terra nata, contavam-se entre os maiores
beneméritos da coroa portuguesa.
Tal transfiguração não se deram pressa em reconhecer os filhos do além-mar. Daí
atritos freqüentes. Gregório de Matos, baiano que se formara em Coimbra e aliás não revela
simpatia particular pelos patrícios, já na segunda metade do século XVII manejava o látego
da sátira contra o reinol: vem degradado por crimes ou fugido ao pai, ou por não ter o que
comer, salta no cais descalço, despido, roto, trazendo por cabedal único piolhos e assobios,
curte a vida de misérias, amiúda roubos, ajunta dinheiro, casa rico e ocupa os cargos da
república! De outra parte não faltariam respostas mordazes e remoques equivalentes.
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Destes atritos e malquerenças a primeira manifestação pública explodiu nas terras
do ouro com a chamada guerra dos Emboabas, uma das designações dos reinóis na língua
geral. Para o caso de que vamos agora tratar a designação era pouco rigorosa. Naquelas
brenhas tão alongadas do litoral devia haver poucos portugueses; é provável, quase certo,
estivessem em minoria nos combates: mas a alcunha, além de afrontosa, resolvia uma
questão difícil: como chamar os adversários, em sua maioria gente da ribeira do São
Francisco, se muitos vieram de São Paulo ou procediam de paulistas, e eram baianos os de
uma, pernambucanos os de outra margem? Chamavam emboabas a todos os que não sairam
de sua região, explica Rocha Pita.
Os paulistas afetavam profundo desprezo pelo emboaba, tratavam-no por vós, como
se fora escravo, informa o cronista destes sucessos. Durante o prazo de sua prepotência
entre a serra da Mantiqueira e a do Espinhaço, nas primeiras décadas da anarquia
incompreensível, entregaram-se aos maiores excessos e só a força deu leis. Um dia, ante a
violência praticada à sua vista contra um pobre diabo, protestou Manuel Nunes Viana,
emboaba poderoso, afazendado nas margens do Carinhanha, prático em guerras contra o
gentio do S. Francisco, nas quais conquistara o posto de mestre de campo. Tanto bastou
para promoverem-no a chefe dos oprimidos. Os paulistas por sua vez sentiam-se espoliados
com a presença de tantos forasteiros. Conservam ódio aos reinóis, lembrava Antônio
Rodrigues da Costa, no Conselho Ultramarino de que era membro, porque os reputam por
usurpadores daquelas riquíssimas minas, que eles entendiam firmemente serem patrimônio
seu, que lhes havia dado ou a sua fortuna ou a sua indústria. Entre espoliados e oprimidos o
conflito era fatal.
A morte da gente miúda não se levava em conta, mas um dia os forasteiros mataram
José Pardo, paulista poderoso, e seus patrícios começaram a se armar, para em janeiro do
seguinte ano de 1709 dar cabo dos emboabas. Estes, fogosos agora com o prestígio do
chefe eleito, anteciparam a ameaça e sairam à procura do inimigo para dar-lhe combate. A
força de São Paulo, que descuidosa acampava junto ao rio das Mortes, recolheu-se a um
capão quando chegou a multidão arrebanhada no rio das Velhas e alto rio Doce. De cima
das árvores os paulistas disparam tiros certeiros, mas sua resistência não podia aturar muito,
por estar cercado o mato de modo a não permitir saída e além disso falecerem víveres.
Espalhou-se que os emboabas se contentariam com desarmar os contrários, e estes, fiados
na promessa vaga, pediram bom quartel, prometendo entregar as armas. Concedeu-lho
Bento do Amaral Gurgel, cabo da força atacante, fluminense de instintos sanguinários;
apenas, porém, os viu indefesos “fez um tal estrago naqueles miseráveis que, deixando o
campo coberto de mortos e feridos, foi causa de que ainda hoje se conserve a memória de
tanta tirania, impondo àquele lugar o infame título de capão da Traição”.
Ensoberbecidos com esta vitória, os emboabas proclamaram Manuel Nunes Viana
governador daquelas minas. O aclamado, alheio às malfeitorias e crueldades de Bento do
Amaral, praticadas longe de suas vistas e sem seu assentimento, mostrou-se capaz do cargo;
elevou-se de chefe de partido a cabeça de governo, criou juízes, distribuiu postos, ofícios e
patentes, regularizou a concessão das minas, cobrou os quintos devidos ao régio erário,
arrecadou direitos sobre os gados e fazendas importadas, sopeou a anarquia reinante.
Excessos praticou necessariamente, nem com a facilidade poderia evitá-los, mas sua obra
foi benéfica e depois dela percebe-se o arrefecimento da barbárie universal. Era aliás um
espírito de certa cultura; gostava de ler a Cidade de Deus e obras congêneres; a suas
expensas se imprimiu o Peregrino da América de Nuno Marques Pereira, um dos mais
apreciados livros para nossos avós do culo XVIII, como provam suas numerosas edições.
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A notícia dos sucessos do rio das Mortes atraiu às minas Fernando de Lencastro,
governador do Rio. Os espíritos estavam ainda muito excitados para reconhecer-lhe a
autoridade, mesmo se admitissem sua imparcialidade e desta com razão ou sem ela
duvidavam. Em Congonhas, próximo de Ouro Preto, Nunes Viana saiu-lhe ao encontro,
rodeado de cavalaria e infantaria, e o governador intimidado fez-se de volta para sua
capital. Diz-se que secretamente procurou-o o chefe dos emboabas, assegurando-lhe sua
lealdade, prometendo sujeitar-se à ordem legal apenas serenasse a efervescência de sua
gente. Parece exata a história, pois quando mais tarde acudiu Antônio de Albuquerque,
sucessor de d. Fernando, acompanhado apenas de dois capitães, dois ajudantes e dez
soldados, Nunes Viana entregou-lhe voluntàriamente o mando e recolheu-se a suas
fazendas na margem pernambucana do São Francisco.
Donde menos se esperava anunciou-se nova procela. Os paulistas, sobreviventes ao
morticínio do capão da Traição, foram recebidos em sua terra com desprezo até das
próprias mulheres, que “blasonando de Pantasiléas, Semiramis e Zenobias, os injuriavam
por se haverem ausentado das minas fugitivos, e sem tomarem vingança dos seus agravos,
estimulando-os a voltar na satisfação deles com o estrago dos forasteiros”. Estas palavras
ardentes encontraram eco; Piratininga tornou-se praça de guerra; numerosos voluntários,
sedentos de vingança, gruparam-se à roda de Amador Bueno da Veiga e se encaminharam
para além da Mantiqueira. Sua marcha foi bastante vagarosa. Saiu-lhes ao encontro Antônio
de Albuquerque, esperançado em ser tão bem sucedido com eles como fora com os
emboabas. Enganou-se, porém; a marcha vagarosa dos paulistas não provinha de hesitações
ou receios e por tal modo receberam o governador que dali mesmo seguiu para o Rio pelo
velho caminho de Parati, receioso de ser preso por aqueles súditos turbulentos. Da cidade,
pelo caminho novo de Garcia Pais, mandou avisar os emboabas do perigo que os ameaçava.
Assim tiveram tempo de se aparelhar e fortalecer até chegar Amador Bueno com
seus mil e trezentos soldados. Feriu-se logo o combate e durou vários dias; alguns paulistas,
desanimados com a resistência, falaram em levantar o cerco; alguns emboabas, à vista da
mortandade nas próprias fileiras, pensaram em se render. O ódio era demasiado forte de
parte a parte para prevalecer qualquer solução mais humana. Afinal, quando os emboabas
não podiam se manter e dispunham uma sortida desesperada, misteriosamente retiraram-se
os paulistas, talvez com o boato de marcharem do rio das Velhas e de Ouro Preto forças
consideráveis. Não deram com isso a partida por perdida e trataram de preparar ou fingiram
preparar outra expedição mais forte para recomeçar a luta; interveio, porém, d. João V, com
o prestígio semi-divino da realeza naquelas inteligências rudimentares: “entendendo o
soberano que ânimos generosos se deixam vencer com qualquer afago, lhes enviou pelo
novo governador um retrato seu... para que entendessem que visitando-os daquele modo, já
que pessoalmente o não podia fazer, tomava aos paulistas debaixo de sua real proteção”.
Com este singular presente se satisfizeram, e esquecidos dos agravos passados depuseram
as armas.
Depois da guerra dos emboabas, houve ainda desordens em Minas Gerais, uma
delas, em 1720, sufocada enèrgicamente; não mais inspirou-as o espírito de nativismo, isto
é, a queixa de espoliação e sua importância é meramente provinciana.
Mal estavam pacificadas as terras do ouro e já rebentava a manifestação análoga na
capitania de Pernambuco.
Depois da expulsão dos flamengos, o governador fixou residência em Olinda, e nela
o primeira bispo estabeleceu a sede da diocese em 1688. A nobreza antiga reedificou a
casaria destruída, que ocupava só por ocasião das festas, pois a maior parte do ano passava
nos engenhos. O Recife, graças à superioridade do porto, continuou a prosperar e adquiriu
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população numerosa e permanente; preferiam-no para morada os negociantes, gente que em
geral procurava enriquecer depressa, para ir desfrutar a fortuna no além-mar. Os olindenses
olhavam para eles com toda a soberania, de sua prosápia e de seus postos, desdenhosamente
chamavam-nos mascates, e andavam sempre em rusgas por causa de contas queixando-se
uns de usura e extorsão, outros de mau pagamento e má fé.
Depois de enriquecer, alguns recifenses procuravam ter também parte no governo,
obter hábitos e ganhar postos de milícia. Conseguiram-no com grande indignação da
nobreza, acostumada ao privilégio destas honrarias. Em 1703 fizeram não só eleitores como
um vereador. Com isto tanto mais se exacerbaram as paixões. Olinda aproveitou sua dupla
superioridade de capital civil e eclesiástica para a todo propósito amesquinhar a rival.
Desde então empenharam-se os mascates em obter para o Recife o título de vila, condição
de autonomia dos negócios municipais. Enquanto reinou d. Pedro II, lembrado ainda da
guerra dos vinte e quatro anos, valeu a oposição da nobreza; d. João V cedeu à influência
contrária poucos anos depois de haver subido ao trono.
A solução ofendeu os brios olindenses, mas talvez não provocasse violências se a
outro coubesse executar a ordem régia. Governava a capitania Sebastião de Castro Caldas,
ex-governador do Rio e da Paraíba, português leviano, sarcástico, desdenhoso dos
subordinados, adito dos reinóis. A 15 de fevereiro de 1710 levantou o pelourinho da vila
nova, em honra sua chamada de S. Sebastião; a 3 de março levantou outro com maior
solenidade, por não ser bastante o primeiro. A delimitação do termo de Recife, a jurisdição
dos juízes ordinários, a serventia dos diversos ofícios malquistaram o ouvidor, o juiz de
fora e o juiz ordinário com o governador. Correu que se pretendia depô-lo, como em 1666
se fizera a Jerônimo de Mendonça Furtado. Sob este pretexto, verdadeiro ou falso, começou
ele a prender pessoas importantes, e ameaçava ainda outras quando a 17 de outubro
desfecharam-lhe um tiro às 4 horas da tarde, no meio da rua. Já tardava este desfecho: “em
Pernambuco se acha que mais gente se tem morto a espingarda depois de sua restauração
do que matara a mesma guerra”, escrevera-se alguns anos antes.
Não foram pegados os três mandatários nem se descobriu mandante. Caldas,
ligeiramente ferido, proibiu que a dez léguas do Recife andasse alguém armado e mandou
prender mais gente. O fato de superintender a tudo sem se recolher ao leito deu azo aos
agitadores para espalharem ser fingido o ferimento e o tiro mandado dar por ele próprio; a
proibição de andar-se armado apontaram como prova de estar disposto a entregar a terra aos
franceses, que acabavam de atacar o Rio. Com isto cresceu a fermentação; perdendo a
calma, o governador expediu vários destacamentos às freguesias da mata, a efetuar novas
prisões. Levantou-se o povo; parte da tropa foi cercada, parte capitulou, parte fraternizou, e
levas numerosas de populares puseram-se em marcha para o Recife.
A 5 de novembro chegou à praça a notícia do levante; a 6, Caldas tentou negociar
com os levantados, que a nada quiseram atender; a 7 de madrugada embarcou numa sumaca
para a Bahia, levando consigo alguns dos mais odiados de seus partidários.
Dos populares, recrutados pela maior parte em Santo Antão, S. Lourenço, Jaboatão,
Varge, Muribeca, alguns eram movidos sobretudo pela pretensa traição do governador; a
outros instigava ódio aos mascates, e formava artigos de seu programa o saque do Recife.
Tê-los dissuadido deste projeto deveu-se principalmente aos religiosos regulares e
seculares. Na entrada da nova vila houve algumas violências, mas de pequeno vulto e a
tempestade desfez-se sem os estragos temidos. O pelourinho foi derribado, anulada a
eleição, inutilizados os pelouros, privados de insígnias os oficiais mascates; um ou outro
devedor menos consciencioso liquidou as contas sumàriamente; contudo houve mais farsas
e desfeitas que violências e desforços.
89
Com retirada de Sebastião de Castro vagara o lugar de governador; abertas as vias
de sucessão para saber o nome do substituto, saiu o do bispo da diocese. Alguns insurgentes
opuseram-se à posse. Bernardo Vieira de Melo, sargento-mor, um dos cabos na guerra dos
Palmares, propôs se proclamasse umas república à moda de Veneza ou se procurasse a
proteção de alguma potência cristã. Hoje é festa estadual em Pernambuco o dia 10 de
novembro, em honra deste gesto peregrino. Que idéia formava da república e da
adaptabilidade a terras tão atrasadas, a povo tão alheio às práticas políticas e
administrativas, de organismo complexo e delicado qual a constituição veneziana,
provàvelmente se ignorará até a consumação dos séculos. Ouvira, talvez, falar no seu
caráter aristocrático e ingenuamente equiparava a nobreza de Olinda aos cultos patrícios
das lagunas. Do protetorado de qualquer nação cristã que se poderia seguir? Esperava-o fim
idêntico ao da invasão flamenga, — bem o provava o atual movimento, triunfante graças
principalmente à crença que se divulgou da convivência do governador expulso com os
franceses. De resto podem ser falsas estas alegações, transmitidas só por adversários
rancorosos, empenhados em agravar as culpas dos vencidos. Acabou-se reconhecendo
legítimo o sucessor indicado pelas vias de sucessão, Sua Ilustríssima o Senhor d. Manuel.
D. Manuel Álvares da Costa, chegado de Portugal no começo do ano, mantivera
com o representante do poder civil as relações antes frias que cordiais de praxe entre os
cabeças das duas sociedades perfeitas. Ao ser informado do tiro, foi visitar o ferido de
quem na mesma ocasião se despediu por ter de partir para a Paraíba. Em caminho agregou-
se à comitiva, como dias antes convencionara, José Inácio Arouche, o ex-ouvidor
malquistado com o governador a propósito da divisão do termo do Recife, e objeto de ódio
muito particular seu e dos mascates, apesar de português. Sebastião de Castro implicou-o
entre os mandantes do crime a fautores da conspiração, deu ordem de capturá-lo e, não
sendo achado em casa, mandou segui-lo até onde fosse encontrado: era fácil a diligência,
pois Arouche não andara com mistérios.
A 20 de outubro amanheceu cercada a igreja de Tapirema, onde pernoitara o bispo,
por uma tropa de soldado encarregada de realizar a prisão. D. Manuel escreveu a Sebastião
de Castro protestando contra a desatenção à sua pessoa e descomposição imerecida e
obrigando-se a dar conta do perseguido. A resposta foi remessa de força mais numerosa,
acusações odiosas contra o ex-ouvidor, ordem de trazê-lo vivo ou morto: “se o dito doutor
está inocente, tenho bens com que satisfazer-lhe a injúria e cabeça com que pague quando
por este respeito mereça castigo... Este doutor ficou em Pernambuco ou por pecado da terra
ou pelo meus, pois não só embaraçou o meu governo, mas pôs a V. S.ª em ódio com as sua
ovelhas, como é público e notório, pois todos reconhecem as letras e virtudes de V. S.ª e
atribuem aos seus conselhos e vinganças tudo quanto se tem visto e experimentado”.
Arouche escapou à prisão porque sacerdotes do lugar deram-lhe escapula e por caminhos
desviados levaram-no à Paraíba.
d. Manuel voltou para Olinda no dia 10 de novembro, a 15 tomou posse do governo
e logo, para aquietar os povos sublevados desde São Francisco até Paraíba, perdoou-lhes a
revolução e o tiro, “confiado na grandeza de el-rei nosso senhor que Deus guarde, o haja de
confirmar”.
Seguem-se alguns meses de calma aparente. A nobreza desfrutava ruidosamente a
vitória, dando tudo terminado; apenas em junho do ano seguinte falou-se de tirar proveito
das fortalezas para impedir o desembarque do novo governador, se não trouxesse o perdão
esperado, ou permiti-lo sòmente sob certas condições.
Entretanto a inércia dos mascates encobria um trabalho de mina muito ativo. Com
habilidade foram separadas da causa de Olinda as freguesias situadas entre o cabo de Santo
90
Agostinho e o rio S. Francisco, obtida a cooperação do capitão-mor da Paraíba, do mestre
de campo dos Henriques, do governador dos índios, do comandante da fortaleza de
Tamandaré; aos poucos, para não despertar atenção, reunidos víveres em quantidade
suficiente para resistir a um cerco; aliciado o terço do Recife com seus oficiais, fiéis a
Sebastião de Castro até a última hora. Esta pelo menos é a versão olindense. Como nada
transpirou até o momento decisivo dificilmente se compreende; não se sabe o que mais
admirar, se a manha da gente mascatal, se a cegueira da nobreza, e ganha foros de
verossímil a história depois contada pelos mascates de que nada se previra, nada se
preparara, tudo surgira de momento. Até hoje só têm triunfado no Brasil movimentos
improvisados, que dispensam longas combinações e prodigalidades cerebrais.
Soldados do terço do Recife e os de Bernardo Vieira de Melo entraram em rusga por
causa de mulheres à toa; o sargento-mor tomou o partido dos seus e exigiu o castigo dos
outros; estes imploraram-lhe perdão, mas encontrando-o mal disposto e implacável, sairam
para a rua disparando tiros, dando vivas ao rei e morras aos traidores, prenderam o cabo dos
Palmares e levaram-no para a cadeia. O bispo e Valenzuela Ortiz, antigo juiz de fora que
interinamente substituía a Arouche na ouvidoria, assistiram à prisão e aprovaram-na. Como
por encanto ocupou as fortalezas a gente recifense; tudo isto a 18 de junho de 1711. No
outro dia o bispo assinou comunicações às freguesias rurais aquietando-as. Se houvera de
fato plano, a execução correu magistral: de um só golpe ficavam guarnecidas as fortalezas
com pessoal amigo, imobilizado o mais resoluto cabecilha do grupo adverso e a legalidade
de tudo atestada pela presença e aprovação explícita do chefe religioso e civil da capitania e
de seu primeiro magistrado. Depois de três dias o bispo e o ouvidor sairam de Recife para
Olinda, onde o inesperado dos sucessos provocara a maior agitação.
D. Manuel era varão virtuoso e letrado, mas facilmente sugestionável, timorato e
violento a um tempo, impelido numa direção pelos ditames da consciência e logo atirado
em sentido oposto pelas intrigas dos conselheiros. Sem grande custo convenceu-se na
cidade de que os mascates quiseram prendê-lo, que a guarnição das fortalezas embuçava os
mais negregados horrores e não podia, nem devia permitir desrespeito à majestade real
depositada em suas mãos. Mandou diversas intimações aos do Recife para abandonarem as
fortalezas, desvanecerem as fortificações feitas para terra, reconhecerem a fidelidade dos
olindenses. Depois da quarta, tão inútil como as outras, a 27 de junho demitiu de si parte do
poder temporal em favor de Valenzuela Ortiz, do mestre de campo Cristóvão de Mendonça
Arrais, e oficiais do senado, “contanto que não haja efusão de sangue e assim o protesto
uma e mil vezes, como já protestado tenho, e que para esta restauração e negócio e tudo o
mais que dele se pode seguir, não concorro direta nem indiretamente, porque só quero a paz
e sossego nos vassalos de Sua Majestade que Deus guarde”.
Se quisesse tornar inevitável a efusão de sangue, o pobre prelado não teria achado
melhor caminho. Escudada em sua cumplicidade, a nobreza cercou o Recife e as
hostilidades abriram-se com violência de parte a parte. Bombardeios, sortidas,
recriminações, folhas avulsas mostrando a sem-razão dos adversários compõem este pouco
interessante episódio. Comandava os mascates João da Mota, natural de Alagoas, elevado a
capitão mandante por ser o oficial mais antigo. Era-lhe fácil manter a resistência, pois os
sitiados sabiam que desta vez, se se rendessem, seria fatal o saque da vila. Dispunha a mais
de sangue frio, bravura, entusiasmo, bom humor e presença de espírito. A exemplo do
bispo, constituiu uma espécie de governo eclesiástico de frades, principalmente recoletos e
carmelitas, letrados e canonistas, para contrabalançar as censuras e excomunhões
episcopais. Nunca os mensageiros do prelado puderam fazer as intimações necessárias, e
portanto ninguém se considerou nunca excomungado. A terrível arma mentiu fogo.
91
Na campanha houve dois combates: no primeiro venceram os mascates, no segundo
os cidadãos. Apesar de seu furor partidário, o cronista olindense reconhece um quê de
providencial no resultado dos dois encontros: “Mistérios foram ambas estas ocasiões da
Divina Providência, que não permitiu o conseguir-se de outra sorte, livrando-nos sempre do
maior mal, que por cegos o não víamos; pois é certo que se os nossos na primeira vez
vencessem, como desejavam, escandalizados do seu atrevimento e sem o seu amparo os do
Recife, entrariam de fora os moradores a abrasar quantos dentro nele achassem. E se nesta
segunda batalha nos vencessem, vinham do mesmo modo sobre nós a acabar-nos”.
A notícia dos primeiros sucessos chegou a Lisboa em fevereiro de 711. Com eles
ocupou-se o Conselho Ultramarino na consulta de 26. A impressão produzida foi veemente:
“este caso não só é gravíssimo, mas o maior que até agora aconteceu na nação portuguesa”,
e a variedade nos alvitres, a virulência nas propostas, chegando um membro a fixar o
mínimo dos que deveriam ser condenados à pena última, patentearam o soçobro dos
conselheiros. Quase tanta indignação como o tiro e o levante suscitou a fuga de Sebastião
de Castro, largando um governo de que prestara menagem nas mãos do soberano; o perigo
da vida, mesmo se houvesse, não era o motivo para desculpá-lo.
Chegaram depois notícias mais tranqüilizadoras: a posse do bispo, o perdão
concedido aos revoltosos, a paz e a obediência sucedendo ao motim. A consulta de 8 de
abril já revela mais calma. Só a 1 de junho, porém, o governo metropolitano resolveu
confirmar o perdão, prender Sebastião de Castro por abandono do cargo , enviar novo
governador, acompanhado de ouvidor, juiz de fora e alguma tropa.
Félix José Machado, nomeado governador, apareceu ao longe sobre Pau Amarelo
em 6 de outubro, e logo os dois partidos mandaram a bordo expondo a seu modo o estado
das cousas. Só então devia ter sabido do cerco do Recife e mais sucessos dele decorrentes.
Exigiu que João da Mota entregasse as fortalezas, fez levantar o cerco e restituir toda a
autoridade política a d. Manuel, de cujas mãos ùnicamente as receberia.
Estes atos revelaram espírito bem orientado, disposto a colocar-se sobranceiro às
facções que se degladiavam. E’ bem possível mantivesse esta atitude até o fim se houvesse
maneira de chegar a qualquer conciliação entre os combatentes, ou de arredar a questão
fundamental: quem eram os verdadeiros criminosos? os de Olinda que atentaram contra a
vida de Sebastião de Castro, derribaram o pelourinho, queimaram as pautas eleitorais? os
do Recife que negaram obediência ao bispo-governador, guarneceram as fortalezas por
autoridade própria, abocaram a artilharia contra a terra? Os cidadãos haviam sido anistiados
pelo rei; o governador geral desde a Bahia anistiara os mascates, mas estes, desvanecidos e
orgulhosos, diziam não precisar de perdão, antes reclamavam recompensas e
agradecimentos.
A resposta seria fácil havendo terceiro levante, e logo um partido denunciou o outro
de o estar tramando. A acusação era absurda, como o ato inexeqüível. Os de Olinda não
tinham encontrado apoio ao Norte de Itamaracá ou ao Sul de Santo Agostinho; menos o
encontrariam agora, com tropas vindas de Portugal e navios de guerra fundeados no porto.
A gente mascatal obtivera a restauração da vila, o reerguimento do pelourinho, novas
eleições: que mais poderia aspirar?
Entretanto, convenceu-se o governador de que os olindenses conspiravam, e logo
começaram prisões, perseguições e processos. Ouvidores e desembargadores chamados a
devassar o caso mostraram não só a parcialidade odienta a favor dos reinóis, como às vezes
ordenaram prisões pelo simples desenfado de desfeitear o adversário e de se divertir com a
gente de sua roda. O bispo teve ordem de sair de Olinda para o S. Francisco e como, por ser
tempo das águas, viajasse devagar, intimou-lhe um desembargador que andasse mais
92
depressa. Se a primeira dignidade eclesiástica não escapava destas afrontas, pode-se
imaginar o que passariam pessoas sem imunidades. Foram anos bem calamitosos os de 712
e 713.
No fim deste, Antônio de Albuquerque, depois de ter governado Maranhão, Rio, S.
Paulo e Minas, aportando a Pernambuco de passagem para a Europa, pôde observar o
estado de miséria e atribulação daquela pobre gente, e na corte expôs a verdadeira situação.
Os serviços prestados durante anos em cargos tão importante davam peso a suas
palavras e a ele se atribuiu a disposição mais benévola desde logo mostrada. Cartas régias
datadas de 7 de abril de 714 lembraram que estavam perdoados tanto o levante de 710
como o de 711; não havia mais devassar e prender por causa deles; só constituía crime o de
713.
Por implicados neste foram conservados presos Bernardo Vieira de Melo e um filho,
Leonardo Bezerra e dois filhos, e Leão Falcão, o estouvado e leviano que, ainda depois da
chegada de Félix José Machado, teve a veleidade de tentar resistir e insurgir-se, nos limites
de Goiana, poderoso centro mascatal.
Leonardo Bezerra, depois de desterrado para a Índia, conseguiu fugir para a Bahia,
onde terminou a vida. Segunda a tradição escrevia aos amigos: “não corteis um só quiri das
matas; tratai de poupá-los para em tempo oportuno quebrarem-se nas costas dos
marinheiros”. Marinheiro era uma das designações dos portugueses na capitania de
Pernambuco, quiri o nome de madeira tão rija como ferro. Se as palavras são autênticas,
devia possuir otimismo incurável o velho insurgente que fiava a república ou a
independência de sua pátria de costas e cacetes quebrados.
Entre estas agitações publicou-se na metrópole um livro intitulado Cultura e
opulência do Brasil por suas drogas e minas, obra de André João Antonil, lê-se na primeira
página da edição impressa com as licenças necessárias pela oficina real Deslanderina em
1711. Hoje sabemos que se tratava de anagrama e deve-se ler João Ant. Andreoni L.
(luquense). Filho de Luca em Toscana, Andreoni veio ao Brasil em 1689 como visitador da
Companhia de Jesus e terminada a comissão ficara na província. Ocupava o cargo de reitor
da Bahia quando expirou Antônio Vieira, em 1697. Era provincial ao rebentar a guerra dos
Mascates; há queixas, provàvelmente fideindignas, de haver manifestado simpatias a favor
da nobreza de Olinda.
A obra de Andreoni, dividida em cinco partes, trata de engenhos e açúcar, de fumo,
minas e gado. Sem amplificações, em forma tersa e severa, adunava algarismos e mostrava
o Brasil tal qual se apresentava à visão de um espírito investigador e penetrante. Ficava-se
agora sabendo da existência de cento e quarenta e seis engenhos, moentes e correntes na
Bahia com a produção ânua de quatorze mil e quinhentas caixas de açúcar; de duzentos e
quarenta e seis engenhos em Pernambuco;produzindo doze mil e trezentas caixas; de cento
e trinta e seis engenhos no Rio, produzindo dez mil duzentas e vinte. Somava tudo trinta e
sete mil e vinte caixas, de trinta e cinco arrobas cada uma, apurando 2.535:142$800.
A Bahia produzia vinte e cinco mil rolos de fumo, Pernambuco e Alagoas dois mil e
quinhentos, rendendo anualmente 334:650$000.
No decênio anterior, a extração de ouro importaria mil arrobas; oficialmente andava
agora por cem cada ano, mas a realidade importaria trezentas, uma por dia, descontados
domingos e dias santos.
Para avaliar o gado bastava lembrar que os milhares de rolos de fumo iam
encourados para bordo; além disso Bahia exportava anualmente cinqüenta mil meios de
sola, Pernambuco quarenta mil e Rio, com os que iam da colônia do Sacramento, vinte mil,
— ao todo cento e dez mil meios de sola, na importância de 201:800$000.
93
E não são tudo estes 3.743:992$800 da opulência do Brasil em favor de Portugal.
Cumpre acrescentar “o que rende o contrato das baleias que por seis anos se
arrematou ultimamente na Bahia por 110 mil cruzados,
*
o contrato anual dos dízimos reais,
que na Bahia, nestes últimos anos, fora as propinas, chegou a perto de 200.00 cruzados; no
Rio de Janeiro, por três anos, por 190.000 cruzados; em São Paulo por 60.000 cruzados,
fora os das outras capitanias menores, que em todas notàvelmente cresceram; o contrato dos
vinhos, que na Bahia se arrematou por seis anos 195.000 cruzados, em Pernambuco por três
anos em 46.000 cruzados, e no Rio de Janeiro por quatro anos por mais de 50.000 cruzados;
o contrato de sal na Bahia arrematado por doze anos a 28.000 cruzados cada ano; o contrato
das águas ardentes da terra e de fora, avaliado por junto em trinta mil cruzados; o
rendimento da Casa da Moeda do Rio de Janeiro, que, fazendo em dois anos três milhões de
moeda de ouro, deu de lucro a el-rei, que o compra a doze tostões a oitava, mais de
seiscentos mil cruzados; além das arrobas dos quinto que cada ano lhe vão; os direitos que
se pagam nas alfândegas dos negros que vêm cada ano de Angola, S. Tomé e Mina em tão
grande número aos portos da Bahia, Recife e Rio de Janeiro, a 3.500 réis por cabeça; e os
dez por cento das fazendas no Rio de Janeiro, que importam um ano por outro oitenta mil
cruzados”.
A conclusão tirada destes algarismos escrupulosamente dispostos não podia ser
mais modesta. Devem ser multiplicadas as igrejas, pois tanto cresce a população,
amoestava o sagaz jesuíta; devem ser propostas pessoas idôneas nos concursos e
provimentos das igrejas vacantes, pois tanto avultam os dízimos; deve-se pagar com
pontualidade a soldadesca das praças e fortalezas marítimas e adiantá-la nos postos em
igualdade de serviços; deve-se deferir as petições dos moradores, e aceitar os meios que
para seu alívio e conveniência as câmaras tão humildemente propõem. “Se os senhores de
engenhos e os lavradores do açúcar e do tabaco são os que mais promovem um lucro tão
estimável, parece que merecem mais que os outros preferir no favor e achar em todos os
tribunais aquela pronta expedição que atalha as dilações dos requerimentos, e o enfado e os
gastos de prolongadas demandas”.
O governo metropolitano deu ao livro uma resposta fulminante: confiscou-o, e com
tamanho rigor que ainda hoje raríssimos exemplares se encontram da edição princeps.
Pretextou para esta violência, estar divulgado nele o segredo do Brasil aos estrangeiros.
Não se vê bem como podia fazê-lo: cultiva-se cana e fabricava-se açúcar em colônias de
outras nações; plantava-se também fumo, criava-se gado, trafegavam-se minas. Que lhes
poderia ensinar de novo a Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas? A
verdade é outra: o livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostrando toda a sua
possança, justificando todas as suas pretensões, esclarecendo toda a sua grandeza.
Sob a arquitetônica severa dos algarismos colhidos pelo benemérito jesuíta
conservou-se inviolado o segredo do Brasil aos brasileiros; transpirou, porém, sob outras
formas, em adumbrações significativas.
Surdiu em ditirambos, exaltando a riqueza sem par do país. Apareceu em vastas
compilações dedicadas à nobiliarquia, como a de Borges da Fonseca para Pernambuco, a de
Jaboatão para a Bahia, e sobretudo a de Pedro Taques para S. Paulo, entroncando as
famílias do Brasil na primeira nobreza de Espanha, Itália e Flandres. Como falecia-lhe
senso histórico, Loreto Couto apanhou centenas de nomes para mostrar Pernambuco
ilustrado com virtudes, com as letras, pelas armas, pelo sexo feminino.
*
e no Rio de Janeiro por três anos por 45.000 cruzados;
94
No mesmo Loreto Couto, beneditino pernambucano que escrevia por 1757, encontramos
manifestação ainda mais característica: o exalçamento, a glorificação do indígena, em confronto com a antiga
gente de Portugal e até com povos mais adiantados do velho mundo.
Para provar suas virtudes morais, cita o nome de índios notáveis pelo valor e pela
fidelidade, um Tabira, os Camarões e tanto outros auxiliares nas guerras flamengas e na
conquista do país. Entre as manifestações de suas virtudes intelectuais aponta os conselhos
em que os velhos da tribo discutiam as questões pendentes, o conhecimento das
enfermidades e mezinhas, os ardis de caça e pesca.
Ignoravam a verdadeira religião? Não adoravam como os gentios antigos moradores
da Beira e marinha de Setúbal uma baleia arrojada à praia, nem lhe ofereciam em sacrifício
anualmente uma donzela e um moço. “Se os erros mui repugnantes aos princípios naturais
provam barbaridade, é preciso declarar por bárbaros aos ingleses, dinamarqueses, suevos e
muitos alemães, pois em todas estas nações está muito dominante o erro de que não
pecamos por eleição, senão por necessidade, que Deus nos obriga a pecar e nos é
impossível evitar o pecado”.
Se tivessem cultura, desenvolveriam a inteligência. “No nosso reino de Portugal
entre Celorico e Trancoso habitavam povos tão brutos e silvestres como animais indômitos,
tão rudos que uma família não entendia a língua de outra com menos de duas léguas de
distância, pelo que eram julgados pelos povos confinantes como bestas mais feras que as
mesmas feras”.
Entregavam-se à antropofagia? “Nem nos deve admirar a barbaridade destes povos,
quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações políticas com que se
povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descendentes a tanta brutalidade que
matavam e comiam aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em guerra ou em ciladas”.
Servindo-se dos mesmos raciocínios, trata da língua geral cujas excelências celebra,
da cor dos primitivos habitantes, etc. Suas idéias, discursivamente expostas e
fundamentadas, aparecem sob forma sintética nos poetas contemporâneos; de modo ainda
mais intuitivo revelam-nas os apelidos tomados na época da independência: Araripe,
Braúna, Canguçu, Guaicuru, Jucá, Montezuma, Mororó, Sucupira, Tupinambá e muitos
outros. Por toda parte transparece o segredo do brasileiro: a diferenciação paulatina do
reinol, inconsciente e tímida ao princípio, consciente, resoluta e irresistível mais tarde, pela
integração com a natureza, com suas árvores, seus bichos e o próprio indígena.
Com ar triunfante, o escritor beneditino agita o decreto real de 4 de abril de 1755,
declarando “que os meus vassalos deste reino e da América que casarem com as índias dela
não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos de minha real atenção e que nas terras
em que se estabelecerem serão preferidos para aqueles lugares e ocupações, que couberem
na graduação de suas pessoas, e que seus filhos e descendentes serão hábeis e capazes de
qualquer emprego, honra ou dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma”, etc.
Este decreto constitui episódio de longa história que se pode resumir em poucas
palavras.
Apenas aportou à Bahia em 1549, Manuel da Nóbrega interessou-se pelos
indígenas, por seu bem-estar físico, por sua formação espiritual e incorporação ao
catolicismo. A experiência convenceu-o da necessidade, para colher resultado útil e
duradouro, de isolar o indígena do colono, para afeiçoá-lo ao trabalho moderado,
resguardar-lhe a segurança pessoal e garantir-lhe economia independente. Que fosse
permitido escravizar índios, nunca contestou ele nem qualquer de seus sucessores: exigiram
apenas o preenchimento de certas condições para a escravidão ser lícita. Cometeram um
erro capital, mas inevitável: como poderiam negar o direito de cativar brasis, se os
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contemporâneos e as gerações seguintes durante mais de dois séculos reconheceram a
escravatura africana?
Apesar de todos os embaraços criados pelas hesitações da metrópole e pelas paixões
da colônia, a obra de Nóbrega prosseguiu e, na região amazônica sobretudo, prosperou. Aos
missionários foi entregue a administração temporal das aldeias, cuja abastança e fartura
excediam às das vilas dos brancos. Não se falava senão das riquezas dos jesuítas, e de fato
sua parcimônia, gerência metódica e desapego pessoal figuravam uma magnificência de
que levaram o segredo, como depois se verificou.
Com o tempo as aldeias tornaram-se não só um estado no estado como uma igreja
na igreja. O primeiro bispo do Pará quis chamar à sua jurisdição os missionários, mas estes,
escudados em numerosos privilégios pontifícios e mercês régias, recusaram submeter-se.
Suas razões deviam pesar alguma cousa, pois a decisão final exigiu largos anos.
Aos 24 de setembro de 1751 tomou posse do cargo em Belém Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, nomeado Governador Geral do Estado. Recomendavam-lhe suas
instruções velasse pela liberdade dos índios e coibisse os excessos dos missionários. Uma
excursão começada em Fevereiro do ano seguinte permitiu-lhe visitar as aldeias
distribuídas entre a ilha de Marajó e o estreito de Pauxis. Em Caiá, ouvindo o discurso de
um cacique, satisfeito com os melhores tempos que se anunciavam, exclamou: “E estes são
os homens de quem se diz não têm juízo nem são capazes de nada! Deles se pode fazer uma
nação como qualquer outra de que se pode tirar grande interesse”.
Sua correspondência oficial neste e nos anos imediatos insiste na liberdade dos
indígenas, nos abusos dos missionários, nos bens de raiz possuídos contra lei expressa, etc.
Em fevereiro de 54, escrevendo a Diogo de Mendonça Corte-Real, mostra-se convencido
da impossibilidade de civilizar os índios com o auxílio dos regulares. Suas palavras eram
genéricas, sem referência alguma especial à Companhia de Jesus. De suas reclamações
resultaram duas leis, datadas de 6 e 7 de junho do ano seguinte, uma abolindo a
administração temporal dos missionários nas aldeias, proclamando a outra mais uma vez a
liberdade absoluta dos indígenas. Deixou-se ao arbítrio do governador geral o modo e a
ocasião de publicá-las.
Incumbido de dirigir a demarcação das fronteiras do Norte, Mendonça Furtado
reclamou das aldeias as centenas de remeiros necessários ao progresso da comissão, os
milhares de alqueires de farinha e outros gêneros necessários à manutenção de toda esta
gente durante anos. O Pará moderno, servido por navios a vapor, comerciando com os dois
mundos, estaria à altura de tamanhas exigências; não estava a Amazônia antiga, ocupada na
extração do cravo, da salsa-parrilha, do cacau, sustentada quase exclusivamente pela pesca,
muito feliz quando a pequena produção agrícola bastava para o consumo ordinário.
Mendonça parece não ter tido idéia clara desta situação, e todos os embaraços fatais,
decorrentes da natureza das coisas, atribuiu às intrigas, à malevolência e perfídia dos
jesuítas, criminosos obstinados e relapsos de uma monstruosidade sem nome: não terem
domesticado as leis demográficas e econômicas às impaciências do irmão de Pombal. Para
castigar tão nefando crime, reuniram-se as duas sociedades perfeitas; só uma expiação
bastaria: extinguir a igreja na igreja, o estado no estado, que realmente era e não podia
deixar de ser o regime dos aldeamentos.
Em 5 de fevereiro de 57, Mendonça publicou a lei retirando aos missionários a
administração temporal das aldeias, que deviam ter daí por diante uma organização
puramente civil. Os missionários continuariam como párocos sujeitos à jurisdição do
prelado. Todos sujeitaram-se a isto exceto os jesuítas por não lho permitirem suas
96
constituições. Ofereceram-se para coadjutores, mas isto não aceitaram o governador nem o
bispo.
Mendonça formulou um diretório em cerca de noventa e cinco artigos, datado de 3
de maio, para reger provisòriamente. Neste código da nova ordem de cousas, o missionário
era substituído pelo diretor. A 14 do mesmo mês explicava esta criação do seguinte modo:
“E não sendo possível que passassem [os índios] de um extremo a outro sem se buscar
algum meio por que se pudesse chegar àquele importante fim, me não ocorreu outro mais
proporcionado do que pôr em cada povoação um homem com o título de diretor, ao qual,
sem ter jurisdição alguma coativa, lhe pertencesse só a diretiva para lhe ir ensinando não a
forma de se governarem civilmente, mas a comerciarem de a cultivarem as suas terras, e
tirarem destes frutuosos e interessantissímos trabalhos os lucros que eles sem dúvida
alguma hão de dar de si e fazerem-se estes até agora desgraçados homens por esta forma
cristãos, civis e ricos, que é o que sem dúvida alguma lhe há de suceder, se os diretores
fizerem a sua obrigação”.
Em seguida passou a elevar as aldeias maiores a vilas e as menores a lugares. Um
contemporâneo, suspeito por ser jesuíta e não ter presenciado os sucessos, dá interessante
descrição destas novidades; também sua cronologia não parece rigorosamente exata.
“Veio-lhe pois ao pensamento dar o nome e os privilégios de vilas à semelhança das
que há em Portugal a muitas aldeias que os índios habitavam, não obstante constarem todas
de pobres, e rústicas choupanas, a exceção da igreja e casas dos párrocos. Para isto
mandando levantar um grande pau no meio de um terreiro, dava a este sítio o nome de
pelourinho; depois escolhendo entre todos aqueles selvagens alguns, que lhe pareceram ou
pela fisionomia do rosto ou pela mole do corpo, mais hábeis para os empregos, a que os
queria elevar, os constituiu como vereadores ou juízes dos mais, dizendo-lhes que eles eram
tão bons, como os portugueses: que se governassem a si, sem dependência, ou sojeição
alguma dos missionários. Além disto mandou vestir e calçar estas suas novas criaturas,
assentá-las á sua mesa, fazendo-lhes nela muitos brindes, e ensinado-lhes inter pocula, por
meio de um língua ou intérprete, o modo como se haviam de portar dali em diante,
administrando a todos Justiça, etc. etc. Os Índios porém, acabada a comida, e a companhia
desfeita, esquecendo-se de quanto lhes tinha dito o senhor Mendonça, apenas sairam da sua
presença tiraram os sapatos e vestidos e se emborracharam com os seus vinhos a que
chamam mocòroròs, e em sinal de alegria e contentamento pelos cargos, a que tinham sido
elevados, gritavam todos dizendo: Vinha del-rei, vinha del-rei, querendo dizer viva el-rei,
viva el-rei. Mas passada a bebedice e tornando em si, se fizeram insolentes não só com os
Missionários, perdendo-lhes o respeito e desobedecendo-lhes ainda nas cousas espirituais,
senão também com os outros Índios; e isto com tal excesso, que saindo os Jesuítas e o mais
Religiosos, que até ali foram párrocos nas Aldeias, além dos clérigos, que os substituíram,
se viu o senhor Mendonça obrigado a mandar alguns portugueses com o título de diretores
para os governar, e meter em sojeição: e ainda muitos destes portugueses repugnaram a ir
para as novas vilas sem terem sempre consigo alguns soldados, que os defendessem dos
insultos daqueles bárbaros”.
Mendonça tratou em seguida da lei relativa à liberdade dos índios. Havia uma bula
de Benedito XIV, passada em 20 de dezembro de 1741 a instâncias de d. João V,
cominando excomunhão latae sententiae a quem por qualquer motivo cativasse indígenas
do Brasil. No panfleto pombalino intitulado Relação abreviada da república, etc., lê-se que
o bispo do Pará d. Miguel de Bulhões ao tratar de executar a mesma bula se concitou
contra ele uma sublevação que impediu por então aquela providência apostólica. A
alegação é absolutamente caluniosa. Em data de 11 de junho de 1757 escrevia Mendonça
97
Furtado: “cuja bula foi dada a este prelado por ordem de S. Majestade para publicar e fazer
observar na sua diocese, o que pretendendo executar quando veio para esta cidade foi
embaraçada pelos mesmos fundamentos com que eu suspendi a publicação da liberdade”,
etc. Os fundamentos para a suspensão da lei da liberdade foram meras considerações de
oportunidade, como se verifica em toda a correspondência do governador geral; nunca
houve sublevação. E tanta consciência tinha o escriba de estar caluniando, que acrescenta:
“ao mesmo prelado não pareceu participar à corte uma tão estranha desordem, em tempo no
qual a notícia de um tão escandaloso fato, temeu que alterasse a tranqüilidade do ânimo do
dito monarca, que já se achava com a grave enfermidade de que veio a falecer em 31 de
julho de 1750”. Assim se escreve a leitura.
A 25 de maio foi publicada a bula de Benedito XIV pelo bispo. A 28 Mendonça
publicou a lei da liberdade dos índios. Não despertaram protestos, e diga-se a verdade, não
foram respeitadas, apesar das aparências.
O diretório, aprovado pelo rei, vigorou de 1757 a 1798. As misérias provocadas por
ele, direta ou indiretamente, são nefandas. Por fim d. Francisco de Sousa Coutinho teve
compaixão dos índios e conseguiu a revogação. Chegava tarde a medida salvadora: o mal
estava feito. Em 1850 o Pará e o Amazonas eram menos povoados e menos prósperos que
um século antes; as devastações da cabanagem, os sofrimentos passados por aquelas
comarcas remotas de 1820 a 1836 contam entre as raízes a malfadada criação de Francisco
Xavier de Mendonça Furtado.
As leis retirando aos missionários a administração das aldeias e libertando os índios,
ditadas só para o Estado do Maranhão, foram feitas extensivas ao resto do Brasil por alva
de 8 de maio de 1758. Também aqui miraculosamente pulularam as vilas, todas com
legítimos nomes portugueses. Nestas partes a questão do indígena já perdera a importância,
e as violências não foram tamanhas. Um escritor pernambucano das primeiras décadas do
século passado mostra a situação antes ridícula que tétrica:
“Os Índios têm vilas, e câmeras; e são nelas juízes, sem saberem nem ler, nem
escrever, nem discorrer! tudo supre o escrivão; o qual, não passando muitas vezes de um
mulato sapateiro, ou alfaiate, dirige a seu arbítrio aquelas câmeras de irracionais quase, pelo
formulário seguinte:
“Na véspera do dia, em que há de haver na aldeia vereação, parte o escrivão da sua
moradia, se é longe; e neste caso sempre a cavalo; e vem dormir, nessa noite, em casa do
senhor juiz, o qual imediatamente se encarrega do cavalo do senhor escrivão, leva-o a beber
água; e por fim vai peá-lo aonde possa cômodamente pastar.
Fica entretanto o escrivão descansando, senhor aliás da casa, mulher, e filhas do
oficioso juiz, que na volta lhe cede o melhor lugar da choupana, para dormir e passar a
noite. Logo em amanhecendo começa o juiz a ornar-se com os velhos e emprestados arreios
da sua dignidade, e a horas competentes marcha para um pardieiro, com alcunha de casa da
câmera, aonde lidas as petições, que o escrivão fez na véspera, são despachadas pelo
mesmo escrivão em nome do senhor juiz ordinário; e pouco depois se desfaz o venerando
senado, e aparecem os senadores de camisa, e ceroulas, e de caminho para as suas tarefas”.
A declaração da liberdade e o diretório dos índios foram seguidos de outras medidas
em que igualmente colaboraram a igreja e o Estado. A Santa Sé nomeou visitador e
reformador geral apostólico da Companhia de Jesus o cardeal F. de Saldanha, que contra os
jesuítas vibrou um tremendo mandamento, subscrito a 15 de maio de 1758. A 7 de junho o
patriarca de Lisboa suspendeu-os do exercício de confessarem e pregarem na sua diocese.
Aproveitando uns tiros dados no rei, Pombal fez assinar pelo régio manequim uma lei
declarando-os rebeldes, traidores, e havendo-os por desnaturalizados e proscritos.
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No correr do ano seguinte foram embarcados para o Reino as centenas de sucessores
de Nóbrega encontrados no Brasil. Durou duzentos e dez anos a sua atividade em nossa
terra, e sua influência deve ter sido considerável. Deve ter sido, porque no atual estado de
nossos conhecimentos é impossível determiná-la com precisão. No tempo de sua
prosperidade publicaram apenas a redundante, deficiente e nem sempre fidedigna crônica
de Simão de Vasconcelos, que vai só de 1549 a 1570. O que se encontra nas crônicas
gerais, ânuas e outras publicações reduz-se às poucas páginas reunidas por A. H. Leal na
Rev. Trim. do Inst. Hist. Biografias como as de Anchieta, Almeida, Vieira, Correia, pouco
adiantam. Uma história dos jesuítas é obra urgente; enquanto não a possuirmos será
presunçoso quem quiser escrever a do Brasil.
Nas suas diferentes casas devem ter ficado numerosos e importantes documentos,
que o desleixo ou propósito aniquilou; salvaram-se apenas os títulos de suas propriedades.
A julgar por algumas publicações e documentos fornecidos a Eduardo Prado e a Studart os
arquivos europeus devem ser ricos.
Enquanto não se fizer a luz sobre tão obscuros assuntos, um juízo definitivo a
respeito da famosa ordem pecará pela base. Em todo caso pouca, muito pouca inteligência
revelam os ataques dirigidos contra ela. Instintivamente a simpatia volta-se para os
discípulos e companheiros de Nóbrega, Anchieta, Cardim, Vieira, Andreoni, os educadores
da mocidade, os fundadores da linguística americana.
————
X
FORMAÇÃO DOS LIMITES
Os papas Nicolau V, Calixto III, Xisto IV concederam à coroa portuguesa as terras e
ilhas novamente descobertas sob o influxo do infante d. Henrique e dos seus sucessores
imediatos. Com surpresa de Portugal obtiveram os reis católicos uma concessão do mesmo
gênero depois de Cristóvão Colombo tornar de sua primeira viagem: em maio de 1493
atribuiu-lhes Alexandre VI todas as terras e ilhas descobertas e por descobrir, situadas cem
léguas a Oeste de qualquer das ilhas do Açores e do Cabo Verde.
Protestou contra o ato pontifício d. João II, julgando-o lesivo de seus direitos;
depois do protesto entabulou negociações com os monarcas vizinhos; afinal concluiram um
acordo em Tordesilhas. O convênio, aí assinado em 7 de junho de 1494, manteve o
princípio enunciado pelo Papa: a divisão do mundo em dois hemisférios, pertencentes um a
Portugal, outro à Espanha; modificou, porém, o número de léguas, elevando-as de cem a
trezentas e setenta, e o ponto de partida para a contagem, que seria uma ilha, não
especificada então nem depois, do arquipélago do Cabo Verde. O arreglo foi meramente
formal e teórico: ninguém sabia o que dava ou recebia, e se ganhava ou perderia com ele no
ajuste das contas.
O descobrimento do Brasil, realizado alguns anos depois por Pedr’Álvares Cabral,
foi precedido pela expedição de Vicente Yañez Pinzon; mas os espanhóis não alegaram
prioridade nem duvidaram coubesse a terra dos Papagaios dentro na raia portuguesa. Seus
interesses estavam ao Norte, não ao Sul da equinocial, que só começou a ter valor com a
expedição de d. Nuno Manuel.
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As primeiras dúvidas sobre a linha divisória surgiram no mediterrâneo austral-
asiático. Segundo o parecer de Fernão de Magalhães compreendiam-se nos domínios da
Espanha as Molucas, tão cobiçadas por suas especiarias. Para prová-lo empreendeu a
viagem em que descobriu o estreito ainda hoje conhecido por seu nome, atravessou o
oceano Pacífico, chegou pelo Poente ao Levante como nebulosamente concebera e nunca
realizou Colombo. Depois de sua morte Sebastian d’Elcano concluiu o périplo
incomparável e na volta à pátria, em setembro de 1522, manifestou a mesma crença nos
direitos de sua nação e a urgência de reivindicá-los. A corte espanhola deixou-se
convencer. Entre ela e a de Portugal estabeleceu-se uma discussão enfadonha, alegando-se
ora a prioridade do descobrimento, ora a legitimidade do domínio no arquipélago
prestigioso. Do debate resultou a capitulação de Saragoça, em abril de 529. Admitindo que
as Molucas pertenciam legitimamente à coroa espanhola, João III comprou os direitos de
Carlos V, por trezentos e cinqüenta mil ducados; se mais tarde verificassem a não
existência de tais direitos, o imperador restituiria a soma recebida; a linha divisória passaria
naquele hemisfério duzentas e noventa e sete e meia léguas ao oriente das Molucas; e a
légua seria das de dezessete e meia o grau no equador.
O machado de metal levado em 1514, as expedições de Solis, Cristóvão Jaques,
Cabot e Garcia deram importância às terras platinas e levantaram a questão de limites no
continente americano. Surgiram e arrastaram-se os debates a propósito da expedição de
Martim Afonso de Sousa (1530-1533), sempre sob a dupla face de prioridade proclamada
por Portugal e legitimidade de domínio, alegada por Castela. Em setembro de 32, exprimia
d. João III a idéia de distribuir em capitanias hereditárias o território situado entre
Pernambuco e rio da Prata; nas doações feitas mais tarde, avançou apenas até 28º 1/3, à
vista das reclamações espanholas, ou, segundo parece, de observações astronômicas de
Martim Afonso, assim reconhecendo que seus domínios não iam mais longe. Os espanhóis
estendiam, porém, suas pretensões mais para o Norte. Em 534, Rui Mosquera estabeleceu-
se no Iguape, repeliu com vantagem um ataque de Pero de Góis e saqueou S. Vicente;
diversos documentos oficiais contemporâneos traçam a linha divisória desde Cananéia e até
de S. Vicente para o Sul.
Com a união das duas coroas decresceu a importância dos limites meridionais e a
atenção concentrou-se na Amazônia. Ante as incursões de flamengos e ingleses, conhecidas
apenas no Pará se estabeleceu Castelo Branco, pareceu acertado confiar as novas conquistas
à guarda dos portugueses mais próximos e melhor preparados para defendê-las; a criação
do governo separado do Maranhão representou um primeiro passo neste sentido. Ainda
mais decisiva foi a criação de duas capitanias hereditárias, sujeitas ambas à coroa
portuguesa, em terreno indiscutivelmente espanhol pelo espírito e pela letra de Tordesilhas:
a de Cametá, concedida a Feliciano Coelho de Carvalho, limitada a Oeste pelo Xingu na
margem direita, a do cabo do Norte na margem esquerda do Amazonas, concedida a Bento
Maciel Parente, limitada a Oeste pelo Paru. Em 1639, Pedro Teixeira, voltando de Quito,
tomou posse em nome del rei de Portugal das terras situadas entre o rio Aguarico, afluente
do Napo, e o mar; faltava-lhe autoridade para tanto; mas este ato foi mais tarde e muitas
vezes invocado e aceito como título de posse.
No Sul, o movimento de ocupação se operou com muita lentidão por parte de
Portugal, acompanhando o litoral do Paraná e Santa Catarina, e continuou do mesmo modo
ainda depois de 1640. Por sua parte os espanhóis não curaram de ocupar a margem
esquerda do Prata, descuido verdadeiramente inexplicável, se não duvidavam de seus
direitos, a menos que se não explique pela certeza de sua intangibilidade.
100
Se persistissem as reduções dos Tapes e de Guairá, avançariam naturalmente para o
Oriente, chegariam à marinha. Se outros elementos os reforçassem, o conflito poderia ser
evitado ou talvez a vitória lhes coubesse. Mas os jesuítas só reergueram as missões do
Uruguai, e as relações destas gravitavam para Buenos Aires e Asunción, como estas
capitais para os Andes e o Pacífico.
Autores portugueses discutiam entretanto o meridiano de Tordesilhas, traçando-o
uns pela foz do Prata, outros pelo golfo de São Matias, na Patagônia. Tais idéias tornaram-
se correntes. Depois de assinada a paz que reconheceu sua independência, o monarca de
Portugal outorgou uma capitania a um dos netos de Salvador Correia, balisando-a pelo
estatuário platino. Em 1680 mandou fundar na margem setentrional do Prata, a dez léguas
de Buenos Aires, a colônia do Sacramento.
Apenas certificou-se de sua existência, o governador espanhol atacou-a e tomou-a.
A notícia transmitida à Europa quase desencadeou nova guerra. Procurou-se ainda uma vez,
e agora com mais veras, apurar o verdadeiro alcance da linha de Tordesilhas. Não se
conseguiu. A Espanha condescendeu em reconstruir a fortaleza e restituir provisionalmente
o território, para afastar qualquer motivo de irritação do debate, que deveria continuar no
terreno científico.
Ao rebentar a guerra da sucessão da Espanha, el-rei de Portugal esposou a causa do
duque de Anjou, que por isso lhe cedeu o território disputado no Prata. Mais tarde mudou
de partido e aliou-se à Inglaterra a favor do pretendente austríaco. Daí resultou novo ataque
e nova tomada da colônia do Sacramento, que permaneceu em mãos do inimigo de 1706 a
1715. Levara até então vida bem singular. “A nova colônia do Sacramento por mercê de
Deus se conserva”, escrevia alguém pouco depois de 1690, “por meterem nela um presídio
fechado sem mulherio que é o que conserva os homens, porque se não tem visto em parte
alguma do mundo fazerem-se novas povoações sem casais”. Este ninho, antes de
contrabandistas que de soldados, foi talvez o berço de uma prole sinistra, os gaúchos os
gaudérios, originários da margem esquerda do Prata, famosos durante largas décadas e
ainda não assimilados de todo à civilização. A quantidade de meios de sola exportados do
Rio no começo do século XVIII não se explica pela simples produção indígena nem por
contrabando de Buenos Aires: implica o processo sumário dos gaúchos na matança das
reses, resultante da abundância e depreciação do gado vacum, do pululamento da cavalhada
e do espaço indefinido e livre para as correrias.
O tratado de Utrecht mandou restituir a colônia a Portugal e foi restituída com seu
território. Qual era o seu território? Toda a margem esquerda do Prata, pretenderam os
portugueses; o espaço alcançado por um canhão da fortaleza, entendiam os espanhóis.
Triunfaram estes. Aqueles tentaram estabelecer-se em Montevidéu, mas seus esforços
foram perdidos. Também os espanhóis em 1735 tentaram apossar-se da colônia e
sujeitaram-na a um assédio aspérrimo de vinte e dois meses. Antônio Pedro de
Vasconcelos, comandante da praça, resistiu heròicamente e obrigou o inimigo a retirar-se.
A fundação da colônia do Sacramento devia servir de ponto de partida para um
povoamento que, partindo do Prata, iria ter à beira-mar. Este plano falhara; restava o plano
contrário: estabelecer-se na marinha, estender-se pelo interior até chegar às águas platinas,
em outros termos, povoar o rio de S. Pedro, mais tarde chamado Rio Grande do Sul.
Em fevereiro de 1737 entrou José da Silva Pais pelo canal que sangra a lagoa dos
Patos e a Mirim. No local que lhe pareceu mais apropriado desembarcou, fortificou-se. À
sombra da fortaleza foi-se adensando a população. Dos Açores vieram várias famílias e
agregaram-se a este núcleo primitivo; as capitanias do Norte por força ou por vontade
forneceram não poucos colonos.
101
A rápida expansão do Brasil pelo Amazonas até o Javari, no Mato Grosso até o
Guaporé e agora no Sul, urgiu a necessidade de atacar de frente a questão de limites entre
possessões portuguesas e espanholas, no velho e no novo mundo, sempre adiada, sempre
renascente, interpretando autenticamente o convênio de 1494. Com este fim, os dois
monarcas da península assinaram um tratado em Madrid a 13 de janeiro de 1750.
Ambas as partes contratantes reconheceram neste documento ter violado a linha de
Tordesilhas, uma na Ásia, outra na América. Começaram, portanto, abolindo “a
demarcação acordada em Tordesilhas, assim porque se não declarou de qual das ilhas do
Cabo Verde se havia de começar a conta das trezentas e setenta léguas, como pela
dificuldade de assinalar nas costas da América Meridional os dois pontos ao Sul e ao Norte
donde havia de principiar a linha, como também pela impossibilidade moral de estabelecer
com certeza pelo meio da mesma América uma linha meridiana”. Na mesma ocasião
aboliram quaisquer outras convenções referentes a limites, que exclusivamente seriam
regidos pelo tratado agora assinado:
A linha meridiana, até então vigente pelo menos nos instrumentos públicos, seria substituída por
limites naturais, tomando por balisas as passagens mais conhecidas para que em tempo nem um se
confundam, nem dêem ocasiões a disputas, como são a origem e curso dos rios e os montes mais notáveis.
Salvo mútuas concessões inspiradas por conveniências comuns para os confins ficarem menos sujeitos a
controvérsia, ficaria cada parte com o que atualmente possuísse.
Maior importância que às terras prestou-se ao aproveitamento dos rios. Estabeleceu-
se que a navegação seria comum quando cada um dos reinos tivesse estabelecimentos
ribeirinhos; se pertencessem à mesma nação ambas as margens, só ela poderia navegar pelo
canal. Para ficar com a navegação exclusiva do Prata, a Espanha trocou a colônia do
Sacramento pelas missões do Uruguai. Encarregadas de assentar os limites iriam duas
tropas de comissários, uma pelo Amazonas, outra pelo Prata.
Da comissão do Amazonas foi plenipotenciário e principal comissário português
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do marquês de Pombal. Como vimos,
exercia o cargo de governador do Pará, quando foi nomeado para o trabalho das
demarcações. A 2 de outubro de 1754 saiu para o rio Negro, levando em sua companhia
setecentas e noventa e seis pessoas, distribuídas em vinte e cinco barcos. Escolheu para
residência a aldeia de Mariuá, chamada mais tarde Barcelos, e nela mandou construir
aposentos para acomodar a partida espanhola. À frente desta, de estado-maior ainda mais
numeroso, partiu de Cádiz d. José de Iturriaga, a 13 de janeiro do mesmo ano, e chegou ao
Orinoco aos fins de julho. Em 1756 fundou São Fernando de Atabapo, para escala da
grande peregrinação e caixa de víveres. Daí por diante, arcando com o áspero sertão
despovoado, tais embaraços encontrou, apesar das ordens mais expressas e das facilidades
extraordinárias proporcionadas por seu governo, que gastou anos no caminho.
A partida de Mendonça tinha de se ocupar de três questões principais: a do rio
Negro, a do Japurá e a do Madeira e Javari; a cada uma caberia uma tropa. Tomou as
providências necessárias para organizá-las e como Iturriaga continuasse ausente, voltou em
756 para Belém com os engenheiros da demarcação, onde absorveram-no outras
preocupações mais instantes.
Em janeiro de 758, recebendo aviso da próxima chegada dos comissários espanhóis,
dirigiu-se novamente para Barcelos. Com efeito, no ano seguinte ali se apresentaram d. José
de Iturriaga e seu grandioso séquito de comissários, matemáticos, engenheiros, desenhistas.
Quase ao mesmo tempo chegou a notícia da substituição de Mendonça na capitania do Pa
e no trabalho dos limites, que daí em diante seria dirigido da parte de Portugal por Antônio
Rolim de Moura, governador de Mato Grosso, mais tarde vice-rei do Brasil e conde de
102
Azambuja. No mesmo dia e hora da partida de Mendonça Furtado para a capital os
comissários espanhóis volveram ao Orinoco. Tal é pelo menos a versão referida por Baena.
Os escritores venezuelanos e colombianos contestam o encontro dos dois comissários e,
parece, com melhores fundamentos.
Depois de tantos anos e de tantas canseiras nem um passo se dera para realizar o
ideal afagado pelo tratado de Madrid. Para os interesses de Portugal a solução não foi
desvantajosa: estribado no uti possidetis, dando-lhe uma extensão inconciliável com o
tratado de Madrid, pôde agora satisfazer a sua avidez de terras.
No tempo de Mendonça instalou-se a capitania de S. José de Javari. Mandara-lhe a
coroa assentar a capital no Solimões próximos dos limites ocidentais; ele achou mais
conveniente situá-la no rio Negro, donde os espanhóis estavam muito afastados, como o
provara a lenta marcha de Iturriaga. Aí, portanto, a expansão se faria sem tropeços. Além
disso, a proximidade relativa de Belém e de Portugal garantia uma superioridade
esmagadora. Em seu tempo foram fundados o forte de Marabitanas no rio Negro, o de S.
Joaquim na confluência de Uraricoera e Tacutu, cabeceiras do Branco.
Pelas instruções, a tropa de comissários destinados à demarcação do Sul devia
subdividir-se em três troços: um reconheceria o terreno desde Castilhos Grandes até a barra
do Ibicuí, no Uruguai; outra o Uruguai desde o Ibicuí até o Pepiri-guaçu e, passada sua
contravertente, desceria o Iguaçu até marcar a barra do Igureí, aquele afluente oriental, este
ocidental do Paraná; a terceira deveria demarcar o Igureí em todo o curso, por seu
concabeçante descer para o Paraguai e subir por este até a barra do Jauru.
As duas últimas tropas deram conta de sua comissão pacìficamente; a primeira
andou com menos fortuna. Em troca da colônia do Sacramento e navegação exclusiva do
Prata, a Espanha cedera a Portugal a navegação do Uruguai com os sete povos das missões
jesuíticas: São Nicolau, São Miguel, São Luís Gonzaga, São Borja, São Lourenço, São João
e Santo Ângelo, fundados entre 1687 e 1707, alguns com os restos de reduções que
escaparam à sanha dos mamalucos. Ceder terras com habitantes é amputação dolorosa,
ainda hoje praticada; entregar as terras, deixando os bens de raiz, levando os moradores
apenas os móveis e semoventes reporta à crueza dos Assírios. Entretanto as duas cortes
julgaram consumar facilmente este ultraje à humanidade se os jesuítas as ajudassem,
pesando sobre o espírito dos índios. Os jesuítas acreditaram-se poderosos para tanto e bem
caro pagaram este acesso de fraqueza ou de vaidade: quando os índios se levantaram,
desmentindo ou antes engrandecendo seus padres, mostrando que a catequese não fora
mera domesticação e a vida anterior vibrava-lhes na consciência, aos jesuítas foi atribuída a
responsabilidade exclusiva em um movimento natural, humano e por isso mesmo
irresistível.
Os chefes da missão demarcadora do Sul, Gomes Freire de Andrada por parte de
Portugal, o marquês de Valdelirios pela de Espanha, encontraram-se na fronteira marítima
do Rio Grande do Sul em começo de setembro de 1752, e no mês seguinte iniciaram os
trabalhos. Em janeiro, assentado o terceiro marco, Gomes Freire ausentou-se para a colônia
do Sacramento e o marquês para Montevidéu. A primeira partida luso-espanhola continuou
na tarefa, que deveria se estender até a barra do Ibicuí; mas ao chegar a Santa Tecla,
dependência do povo de São Miguel, situado um pouco ao Norte da atual cidade de Bagé,
defrontou índios armados que se opuseram a seu avanço. Fora prevista a hipótese e havia
ordem dos dois governos para domar a resistência pelas armas, pois os jesuítas já se haviam
felizmente convencido de sua impotência.
Reunidos Gomes Freire e Valdelirios na ilha de Martim Garcia, resolveram mandar
emissários às missões a ver se ainda era possível conciliar os índios. Se eles continuassem
103
teimosos, marchariam Andonaegui, governador de Buenos Aires, pelo Uruguai até São
Borja, e Gomes Freire pelo rio Pardo até Santo Ângelo. Depois de tomadas estas duas
reduções, prosseguiriam até se encontrar. Em março de 54 Andonaegui pôs-se em
movimento, mas o mau estado da cavalhada e outras causas não menos fortes obrigaram-no
a recuar até Daiman, junto à presente cidade do Salto. Aí os índios atacaram os espanhóis e
perderam trezentos homens, dos quais duzentos e trinta mortos, canhões, armas brancas e
cavalhada. Menos feliz foi Gomes Freire, obrigado a assinar um armistício com os
levantados a 18 de novembro.
Viu-se que melhor andariam unidos os dois exércitos. Partiu Gomes Freire do rio
Pardo e em Sarandi, no rio Negro, juntou-se às forças de Andonaegui. A 21 de janeiro de
56 marcharam para as missões. Quase só encontraram os obstáculos criados pela natureza.
Os índios, embora numerosos, mal armados, mal ou antes não dirigidos, pouca resistência
podiam oferecer; de todos os reencontros saíram derrotados. A 17 de maio entregou-se São
Miguel sem resistência, e os outros povos foram seguindo-lhe o exemplo. Podia-se agora
operar a permuta, Gomes Freire empossar-se das sete missões e entregar a colônia do
Sacramento. Não se fez isto; dir-se-ia que, como os primitivos, estes mamalucos póstumos
tinham por móvel único a destruição. Em janeiro de 59 Gomes Freire embarcou para o Rio,
donde não mais voltou.
Entretanto, falecia Fernando VI, subia ao trono Carlos III, inimigo do tratado de
1750 desde o tempo de seu reinado em Nápoles. Um dos primeiros cuidados do novo rei foi
anulá-lo pelo pacto firmado no Pardo, a 12 de fevereiro de 1761. Ficaram outra vez de
todos os atos reguladores de limites, a principiar pelo de Tordesilhas, tantas vezes
desrespeitado por ambas as partes, como de público haviam reconhecido poucos anos antes.
O tratado de Madrid, exatamente porque resolvia uma questão secular, fora atacado com
violência em ambas as cortes e a cordialidade dos dois monarcas que o assinaram não teve
eco nos respectivos povos. Agora com razão condenavam-no os representantes dos dois
governos à vista de seus resultados, fáceis de evitar, a não ser a cláusula bárbara relativa
aos sete povos do Uruguai: “estipulado substancial e positivamente para estabelecer uma
perfeita harmonia entre as duas Coroas e uma inalterável união entre os vassalos delas, se
viu pelo contrário que desde o ano de 1752 tem dado e daria no futuro muitos e muito
frequentes motivos de controvérsias e contestações opostas a tão louváveis fins”.
A insistência de Portugal em não aderir ao famoso pacto de família, dirigidos pelos
Bourbons contra a Inglaterra, desencadeou as hostilidades na península e nos domínios da
América do Sul. Pedro Cevallos, sucessor de Andonaegui no governo de Buenos Aires, pôs
cerco à colônia do Sacramento em outubro de 62 e tomou-a sem grande esforço. Dirigiu-se
depois às plagas rio-grandenses, num passeio militar apossou-se do forte de Santa Teresa
próximo ao Chuí, da vila capital, da margem setentrional da lagoa dos Patos. Um convênio
assinado no povo de São Pedro em 6 de agosto de 1763 declarou o porto privativo do
domínio da Espanha, fechado, portanto, ao comércio de qualquer outra nação.
O tratado concluído em Paris a 10 de fevereiro 763 mandou voltarem as cousas ao
estado anterior à guerra. Cevallos restituiu a colônia do Sacramento, guardou o Rio Grande,
deixando os portugueses reduzidos à fortaleza do rio Pardo e às cercanias de Viamão.
Mesmo estas nesgas procurou retirar-lhes Vertiz y Salcedo, novo governador de Buenos
Aires, atacando o rio Pardo em 773, não com tanta felicidade como esperava.
Portugal fingiu aceitar a situação criada por Cevallos, mas foi se preparando
manhosamente para modificá-la em seu proveito. Readquiriu, sem combate, S. José do
Norte à entrada da barra; a pouco e pouco mandou forças por terra; uma esquadra entrou
pelo canal apesar das fortalezas inimigas; em março de 76, combinadas as forças de terra e
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mar atacaram e tomaram as fortificações dos castelhanos; em abril a vila de São Pedro foi
evacuada. O domínio espanhol durava treze anos: data dele a fortuna do porto dos Casais,
hoje Porto Alegre.
Muitos dos colonos portugueses transplantados para além do Chuí não tornaram
mais para as antigas estâncias.
Apenas chegou ao velho mundo a notícia da reconquista do rio de S. Pedro,
preparou-se em Espanha uma forte armada para tirar a desforra. Comandava-a Cevallos,
nomeado para assumir o vice-reinado do Prata, então criado. Deveria tomar Santa Catarina,
Rio Grande e Sacramento. Santa Catarina entregou-se logo sem resistência; na colônia
propuseram a entrega apenas se apresentou o inimigo. O Rio Grande ficou livre de ser
acometido por via marítima graças aos ventos contrários; quando ia ser atacado por via
terrestre, chegou ordem de suspender as hostilidades. Cevallos, como se votasse ódio
pessoal à Colônia do Sacramento, secular pomo de discórdia entre os dois povos, não quis
deixar pedra sobre pedra. A 8 de junho de 77 começou a demolição pela fortaleza; foram
depois destruídas as casas, o porto obstruído; as famílias que não quiseram recolher-se ao
Brasil, transportadas para Buenos Aires, distribuíram-se pelo caminho do Peru.
Expirava a este tempo José I, extinguia-se o poderio do truculento Pombal, pela
primeira vez uma rainha ascendia ao trono português; todos estes motivos devem ter
influído certa brandura no tratado de limites firmado em Santo Ildefonso a 1 de outubro de
1777, em quase tudo semelhante ao de Madrid, e mais humano e generoso que este, pois
não impunha êxodos cruentos.
O uti possidetis, reconhecido em 1750, anulado em 761, veio outra vez a prevalecer.
Se não se explicasse pela superioridade relativa das posições portuguesas nas zonas
litigiosas, seria uma das ironias da história averiguar que do mero apego à posse das
Filipinas procederam todas as concessões por parte da Espanha.
As modificações mais notáveis apanharam a fronteira meridional. Espanha não
concordou mais que Portugal tivesse direito a navegar no Uruguai e por isso impôs uma
fronteira tal que as possessões portuguesas só abeirassem o rio ao Oriente do Pepiri-guaçu.
Desenvolvendo um princípio já formulado no tratado de Madrid, cujo artigo 22 não
permitia fortificações nem povoações nos cumes das raias, a partir das lagoas Mirim e da
Mangueira, o tratado de Santo Ildefonso estabeleceu no artigo 6 “um espaço suficiente
entre os limites de ambas as nações, ainda que não seja de igual largura à das referidas
lagoas, no qual não possam edificar-se povoações, por nenhuma das duas partes, nem
construir-se fortalezas, guardas ou postos e tropas, de modo que os tais espaços sejam
neutros, pondo-se marcos e sinais seguros, quer façam constar aos vassalos de cada nação o
sítio, de que não deverão passar; a cujo fim se buscarão os lagos e rios, que possam servir
de limite fixo e inalterável, e em sua falta o cume dos montes mais sinalados, ficando estes
e as suas faldas por termo natural e divisório, em que se não possa entrar, povoar, edificar
nem fortificar por alguma das duas nações”.
Para o trabalho de demarcar a fronteira foram criadas quatro divisões: operaria a
primeira do Chuí ao Iguaçu; a segunda de Igureí ao Jauru; a terceira do Jauru ao Japurá; a
quarta daí ao rio Negro. Pela parte de Portugal ficaram dependentes do vice-rei no Rio, dos
governadores de S. Paulo, Mato Grosso e Pará. O trabalho efetuado limitou-se à fronteira
do Chuí ao Iguaçu, e do Javari ao Japurá, isto durante anos de argúcias, dilações, inação, de
que cada nação lançava à outra a culpa exclusiva. As divisões confiadas aos governadores
de S. Paulo e Mato Grosso nunca se encontraram com as divisões espanholas. Poder-se-ia
dizer que com isso ganhou a geografia das respectivas regiões, pois os cientistas
exploraram rios, descreveram plantas e animais, enviaram curiosos espécimes dos três
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reinos para os estabelecimentos de além-mar... poder-se-ia dizê-lo, se tais trabalhos,
ciosamente guardados, fossem dados então à publicidade.
Dois episódios mostrarão como as cousas passaram.
O tratado de Madrid nos artigos 5.º e 6.º, repetidos pelo Santo Ildefonso nos artigos
8.º e 9.º, dispunha que a fronteira desde a barra do Iguaçu prosseguiria pelo álveo do Paraná
acima, até onde pela parte ocidental se lhe ajuntasse o Igureí, acompanharia este até descer
o concabeçante mais próximo, afluente do Paraguai, chamado talvez Corrientes.
Próximo do Iguaçu não desemboca pela margem ocidental do Paraná rio chamado
Igureí, próprio a servir de fronteiras, alegou Sá e Faria, português passado agora para o
serviço de Castela; rio Corrientes tão pouco se conhece no Paraguai. Convencionou-se,
pois, que a fronteira partiria do Iguatemi, primeiro afluente oriental do Paraná, acima das
Sete Quedas. Mais tarde, o vice-rei do Brasil escreveu ao do Prata que a convenção fora
condicional, para a hipótese de não existir o Igureí; ora, Igureí existia abaixo das Sete
Quedas. Cândido Xavier o descobriu e o seu correspondente no Paraguai é o Jejuí. Pelo
Igureí e pelo Jejuí devia passar portanto a linha divisória.
Tem a razão o vice-rei do Brasil, respondia Félix de Azara, comissário espanhol; a
convenção foi condicional e desaparece apurada a existência do Igureí; mas o Igureí existe:
é o Iaguareí, Monici ou Ivinheima, e corresponde-lhe pelo Paraguai outro rio caudaloso,
que desemboca aos 22º. Isto, acrescentava, nos dará as únicas terras não inundadas
daquelas regiões; teremos ervais, barreiros, salinas, pastos, aguadas, madeiras; as frotas de
Cuiabá e Mato Grosso cairão em nossas mãos na boca do Taquari, ou mais acima; podemos
na paz chupar suas riquezas por um comércio que há de ser-nos vantajoso sem prejuízo; os
famosos estabelecimentos de Mato Grosso, Cuiabá e serra do Paraguai serão precários a
seus ilegítimos donos e alfim cairão em nossas mãos com o tempo. “No es posible que no
tengamos las minas de Cuyabá y Mato groso, cuando las podemos atacar com fuerzas
competentes, llevadas por el mejor rio del mundo, sin que los portugueses puedan
sostenerlas ni llegar á ellas, sino por el embudo obstruido del rio Tacuari, en canoas y con
los trabajos que nadie ignora”.
Seriam melhores os portugueses? O caso Chermont-Requena, narrado brevemente,
responderá de modo satisfatório.
Tinham os comissários de demarcar a fronteira do Javari à boca mais ocidental do
Japurá e seguir por este acima até um rio que resguardasse os estabelecimentos portugueses
do rio Negro. A boca mais ocidental do Japurá originou graves discussões, por um chamar
boca o que o outro considerava furo, isto é, um canal que levava as águas do Solimões ao
Japurá em vez de trazê-las. O rio que devia resguardar as possessões portuguesas do rio
Negro seria o Apaporis, o Comiari ou dos Enganos, ou qualquer outro? Nunca se decidiu, à
vista dos múltiplos varadouros, imaginários ou verdadeiros, alegados por parte de Portugal.
Em todo caso, Tabatinga demorava a Oeste da mais ocidental das bocas do Japurá,
demorava mesmo a Oeste do Içá, não compreendido nas pretensões portuguesas mais
exageradas; quando, porém, Requena reclamou a posse de Tabatinga, Chermont negou-se a
assumir responsabilidade tão grave e declinou da sua para a competência de João Pereira
Caldas, chefe daquela divisão. Este declarou-se prestes a fazer a entrega de Tabatinga se os
espanhóis lhe entregassem São Carlos, forte do alto rio Negro, fundado na expedição de D.
José de Iturriaga, malogrado comissário da primeira demarcação.
Nestes dares e tomares consumiu Requena um decênio. Afinal conseguiu de seu rei
licença de voltar para a Europa, e o de Portugal permitiu-lhe que descesse até o Pará. “De
ordem do governador do Rio Negro o acompanhou o tenente-coronel engenheiro José
Simões de Carvalho com a recomendação secreta de dirigir a viagem de maneira que ele
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não visse povoação alguma, nem pudesse tomar nota topográfica de qualquer ponto do
Amazonas. Destina-lhe o governador [do Pará] para sua morada a fazenda de Val de Cães.
Ali o teve como em custódia até prosseguir a viagem, permitindo-lhe vir à cidade [de
Belém] só de noite, e acompanhado de um oficial de tropa regular quando intentava fazer-
lhe visitação, na qual também era recebido pelos cidadãos mais qualificados que segundo a
disposição do governador o esperavam em grande cerimônia”.
Em suma, valiam-se bem os comissários das duas altas partes contratantes. Teria
razão ou talvez não tenha quem afirmasse sua má fé; entretanto, uma o outra opinião seria
superficial. Os termos dos tratados prestavam-se às vezes a mais de uma interpretação; os
mapas trazidos do reino aplicavam-se mal aos terrenos; nem destes nem daqueles resultava
uma hermenêutica forçada; cada funcionário procurava ostentar zelo, isto é, adiantar sua
carreira. E em nome destes seres heterônomos ainda hoje nossos vizinhos propagam e
herdam o ódio ao Brasil desde os bancos escolares! Felizmente no Brasil já não somos
prisioneiros destas paixões inferiores de colonos fossilizados.
Portugal saiu mais favorecido da sorte por ter criado a capitania independente de
Mato Grosso logo depois do tratado de 1750 e a capitania subordinada do Rio Negro em
seguida. De Vila Bela via-se bem claro que o problema decompunha-se em duas partes:
absorver a navegação do Madeira, paralizando as hostilidades das vizinhas aldeias dos
Moxos e dos Chiquitos, — e isto fez principalmente o conde de Azambuja; passar além dos
Xarais, até onde o Paraguai não transborda do leito, limitando assim as possibilidades dos
ataques e surpresas, garantindo ao mesmo tempo a navegação de S. Paulo, — isto fizeram
Luís de Albuquerque, com a fundação de Corumbá e Coimbra, e Caetano Pinto com a de
Miranda. Na capitania subalterna Mendonça Furtado sentiu a importância capital do rio
Negro e do rio Branco; escolhendo Barcelos para capital, assinalou nitidamente o rumo a
seguir pelos sucessores. Tanto em Mato Grosso como no rio Negro houve pequenos
conflitos sem importância, de que os espanhóis não tiraram o melhor partido e os
portugueses puderam continuar na sua maneira original de entender e aplicar o uti
possidetis.
Os debates inanes das demarcações ainda continuavam em 1801 ao rebentar a
guerra entre Portugal e Espanha. Ipso facto, caducaram os tratados. José Borges do Canto,
desertor do regimento dos dragões, e Manuel dos Santos Pedroso, sem ordem de ninguém,
congregaram um troço de aventureiros, e atiraram-se contra os sete povos do Uruguai.
Foram, viram, venceram; voltou novamente a ser lindeiro o rio Ibicuí.
Depois disto não houve mais questões sobre limites americanos entre as duas
metrópoles peninsulares.
O histórico dos limites com a França e Holanda, desde o rio Branco a Oeste até o
cabo de Orange a Este, conta-se em poucas palavras.
A capitania do cabo do Norte, doada a Bento Maciel Parente, foi limitada a beira-
mar pelo rio Vicente Pinzon, cuja denominação indígena é Oiapoque. Apenas se fixaram
em Caiena, os franceses lançaram olhos cobiçosos sobre o Amazonas, e reclamaram-no
como limite.
Para afirmar seus direitos, em 1697 tomaram os fortes portugueses de Araguari,
Toeré e Macapá, logo retomados. Um tratado provisional assinado em 1701 neutralizou o
território, mas o de Utrecht restituiu-o aos portugueses. Pelo inequívoco artigo 8, Sua
Majestade Cristianíssima desistiu “pelos termos mais fortes e mais autênticos e com todas
as cláusulas que se requerem, assim em seu nome como de seus descendentes, sucessores e
herdeiros de todo e qualquer direito e pretensão que pode ou poderá ter sobre a propriedade
das terras chamadas do cabo Norte, e situadas sobre o rio dos Amazonas e o de Japoc ou de
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Vicente Pinsão, sem reservar ou reter porção alguma das ditas terras, para que elas sejam
possuídas daqui em diante por Sua Majestade Portuguesa”, etc.
A disposição por sua clareza não permitia dúvidas; os franceses acharam meio de
perpetuá-las, descobrindo mais de um Vicente Pinzon e mais de um Oiapoque, de modo a
aproximarem-se o mais possível do Amazonas, seu verdadeiro e constante objetivo. Isto
lograram durante a revolução francesa e o império. O tratado de Paris, de 23 Thermidor V,
traçou o limite pelo Calçoene até as cabeceiras e destas por uma reta até o rio Branco. O de
Badajoz de 6 de junho de 1801 transportou-o para o Araguari, desde a foz mais apartada do
cabo do Norte até a cabeceira e daí até o rio Branco. O de Madrid de 29 de setembro do
mesmo ano fixou-o no Carapanatuba desde a foz até as cabeceiras, donde acompanharia as
inflexões da serrania divisora das águas até o ponto mais próximo do rio Branco, cerca de
2º 1/3 N. O de Amiens de 27 de março de 1802 trouxe-o novamente para o Araguari. Todos
estes tratados caducaram com o de Fontainebleau, que desmembrou Portugal e produziu a
trasladação da corte portuguesa para o Brasil.
Depois de na era de 1750 terem passado do rio Branco para o Rupununi, os
portugueses aproximaram-se das possessões holandesas. Nunca entretiveram, porém,
contacto, ou travaram conflitos com elas, nem convenção alguma interveio entre as duas
metrópoles.
————
XI
TRÊS SÉCULOS DEPOIS
Três séculos depois do descobrimento os habitantes do Brasil exprimiam-se por sete algarismos.
Repartidos na superfície reclamada como sua pela metrópole, tocavam dois ou três quilômetros quadrados a
cada indivíduo.
A população ocupava a marinha desde Marajó até o Chuí, e uma e outra margem do
Amazonas desde a foz de Tabatinga ao Javari. Nos tributários desta bacia os povoados, de
preferência estabelecidos nos caudais de água preta, paravam a pouca distância da barra,
exceto no rio Negro, onde preocupações de limites tinham requintado a expansão natural,
no Madeira, Tapajós e Tocantins, ligados a Mato Grosso e Goiás. Desde o Piauí à linha
singela do litoral correspondiam uma ou mais linhas interiores de povoamento nas beiras
dos rios e nos chapadões do Parnaíba, do S. Francisco, do Paraná e regiões intermédias.
Estas linhas, interrompidas a cada instante, melhor se diriam pontos indicando um traçado a
realizar.
Observando a distribuição geográfica dos povoadores notavam-se duas correntes
fáceis de distinguir. A corrente espontânea do povoamento tendia à continuidade e
procurava a periferia a Oeste, ao Norte e ao Sul. A corrente voluntária, determinada por
ação governativa, ambição de territórios ou vantagens estratégicas, aparecia salteada e
desconexa, e começando da periferia procurava rumos opostos. Nas terras auríferas a
ocorrência irregular dos minérios trouxe primitivamente a desconexão dos núcleos, mais
tarde corrigida onde foi possível.
A maioria constava de mestiços; a mestiçagem variava de composição conforme as
localidades. Na Amazônia prevalecia o elemento indígena, abundavam mamalucos,
rareavam os mulatos. Na zona pastoril existiam poucos negros e foram assimilados muitos
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índios. À beira-mar e nas comarcas dos metais sobressaía o negro, com todos os derivados
deste radical. Ao Sul dos trópicos elevava-se a porcentagem dos brancos. Das três raças
irredutíveis, oriunda cada qual de um continente e compelidas à convivência forçada, eram
os africanos a que maior número de representantes puros possuía, em conseqüência das
levas anualmente fornecidas pelo tráfico dos negreiros.
Na baixada amazônica o predomínio da água e da mata restringiam as ocupações
agrícola e pastoril. Lavoura existia apenas nas proximidades dos povoados maiores,
limitada à cana, ao café, a poucos cereais e à mandioca: esta desfazia-se em farinha d’água,
mais resistente à umidade; o tucupi ou manipuera dava um molho apreciado; cru servia
também para apanhar aves. O gado vacum criado na ilha do Marajó, perto do Paru, em
Óbidos, no Tapajós, nos campos do rio Branco, não chegava para o consumo interno. De
gado cavalar ainda menos se curava: as embarcações, desde a montaria, verdadeira
sucedânea do cavalo, como o nome está indicando, até as grandes canoas, arqueando
centenas de arrobas, e durante parte do ano impelidas rio arriba pelos ventos gerais, eram o
quase exclusivo meio de transporte.
O povo alimentava-se de peixe fresco, pegado diàriamente pelos múltiplos e
engenhosos processos recebidos dos indígenas, ou salgado, como o pirarucu, a tainha e o
peixe-boi; de tartaruga, mais abundante à medida que se caminhava para Oeste, ou porque
assim estivesse distribuída originariamente, ou por se não ter adiantado tanto por aquelas
bandas a obra de devastação. Verdadeira vaca amazônica, gado do rio como a chamavam,
podia-se guardar às centenas em currais, e fornecia manteiga; a gema do ovo de uma
espécie tomava-se com café, como leite. Sua manteiga, além, de condimento usual, fornecia
iluminação; o casco, sem brilho e por isso imprestável para obras delicadas, empregava-se
como vasilha.
A extração de produtos florestais, cacau, salsa, piaçaba, cravo, ocupava a maioria da
população masculina em certas quadras do ano, marcadas pelas enchentes e vasantes do rio-
mar, durante as quais as aldeias ficavam reduzidas a velhos, meninos e mulheres. Estas
fabricavam louça, pintavam coités, não raro reveladoras de talento artístico, fiavam e
teciam. A seringueira, já conhecida e utilizada, entrava apenas no fabrico de objetos
caseiros, como o que lhe deu o nome, ou no tornar impermeáveis botas e tecidos. Nem de
longe se poderia ainda prever a importância que lhe adveio depois de descobertos os
modernos processos de manipulação.
“Nenhuns [cuidados] parecem ter comumente no estado”, escrevia Fr. João de São
José em tempo de Pombal, e continuava a ser verdade: “havendo rede, farinha e cachimbo,
está em termos. A frugalidade da mesa pode passar se fosse coerente a de beber; e quanto
ao mais é expressão vulgar a da seguinte endecha ou trova:
Vida do Pará,
Vida de descanso;
Comer de arremesso,
Dormir de balanço.”
Da bacia amazônica passando à zona pastoril, notava-se logo a falta de mata e a escassez de água. A
mata aparece apenas às margens das correntes mais caudalosas, em algumas baixadas úmidas, em serras
elevadas de mil metros mais ou menos de altitude. A água, excetuando alguns rios permanentes, limitava-se a
ipueiras, olhos d’água, poços naturais, mais ou menos grandes e constantes; fora destes casos tem-se de
procurá-lo no seio da terra, operação fácil nos álveos secos, em outros casos empresa árdua e até frustânea.
Em geral não prima quanto ao gosto, em conseqüência da salinidade dos terrenos que a filtram. O caráter
salino do solo, a abundância de pastos suculentos, os campos mimosos e agrestes, determinaram a
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multiplicação do gado vacum. Vivia solto o maior tempo. Na época da parição, as vacas eram recolhidas ao
curral, por causa dos cuidados exigidos pelo bezerro, e também do leite, e mais tarde do queijo e do requeijão;
pouco valia a manteiga, se merece este nome o esquisito produto guardado em botijas, que se aquecia para
extrair o conteúdo.
O gado não se prendia ao descampado; internava-se pelas catingas e amontava. O
vaqueiro corria-lhe ao encalço, e com uma vara de ferrão em alguns pontos, em outros pela
simples apreensão do rabo, deitava a rês em terra e subjugava-a. “Quando o vaqueiro se
aproxima o boi foge para o mato mais próximo”, informa Koster; “segue-o o homem tão de
perto quanto possível, a fim de aproveitar a aberta que o animal faz apartando os galhos, os
quais se aproximam logo depois e retomam a sua posição antiga. Algumas vezes o boi
passa sob o grosso e baixo galho de uma árvore grande; o cavaleiro passa igualmente por
baixo do galho; para consegui-lo inclina-se tanto à direita que pode agarrar a silha com a
mão esquerda; ao mesmo tempo prende-se com o calcanhar esquerdo à aba da sela; nesta
posição, roçando quase em terra, de aguilhada em punho segue sem diminuir a andadura,
endireitando-se novamente no assento desde que transpôs o obstáculo. Se pode alcançar o
boi, mete-lhe o aguilhão na anca, e fazendo-o com jeito, derriba-o. Apeia então, liga as
pernas do animal, ou passa-lhe uma das mãos por cima dos chifres, o que o segura do modo
mais eficaz. Estes homens recebem muitas vezes ferimentos, mas raro é que ocasionem
mortes”. A tradição popular celebrou alguns dos barbatões mais famosos, como o boi
Espaço (espaço, isto é, de chifres espaçados, não espácio, como José de Alencar escreveu e
outros têm repetido), o Surubim, o Rabicho da Geralda.
Na boca deste uma poesia publicada por Sílvio Romero põe as seguintes quadras:
Foi uma carreira feia
Para a serra da Chapada,
Quando eu cuidei era tarde,
Tinha o cabra na rabada.
Tinha adiante um pau caído,
Na descida de um riacho,
O cabra passou por riba.
O russo passou por baixo.
Apertei mais a carreira
Fui passar no boqueirão,
O russo rolou no fundo,
O cabra pulou no chão.
O gado cavalar dava bem no sertão, mas nunca se multiplicou tanto como o outro, por falta de
forragem apropriada. Talvez isto, mais que a falta de cruzamento, explique a diminuição da estatura; em todo
caso sua resistência ao trabalho é incomparável, a exigüidade do porte apropriava-o às corridas pelo cantigal.
As viagens eram sempre interrompidas nas horas de maior calor; não se ferravam os cavalos, cujo casco rijo
resistia às pederneiras sem estropeio. O gado muar quase, senão de todo, se desconhecia no começo. Havia
poucas ovelhas e cabras: o desenvolvimento destas data dos últimos trinta anos, depois de reconhecida a
superioridade de sua pele.
Na alimentação entrava naturalmente a carne, mas em quantidade menor do que se
poderia supor. Uma rês tinha grande valor relativo, porque ficavam próximos consideráveis
centros de consumo, como Bahia e Pernambuco. Além disso dos sertões do Parnaíba e São
Francisco e das ribeiras concabeçantes partiu o gado que abasteceu e inçou Minas Gerais,
Goiás e indiretamente Mato Grosso; tal abastecimento encareceu ainda mais a mercadoria,
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desfalcando-a. Cumpre não esquecer a calamidade das secas. Assim consumia-se
principalmente carne secada ao sol, ou a do gado miúdo, de preferência à de ovelha.
No começo nada se plantava, julgando o terreno estéril; mais tarde introduziu-se o
feijão, o milho, a mandioca e até a cana. São ainda hoje três épocas alegres do ano
sertanejo: a do milho verde, a da farinha e a da moagem. Do milho seco, quase
exclusivamente reservado para os cavalos, só se utilizavam torrado ou feito pipoca,
transformado no raro cuscus ou no insípido aluá. O milho verde, cozido ou assado, feito
pamonha ou canjica (no sentido do Norte, muito diverso do Sul), o milho verde durante
semanas tirava o gosto das outras comidas. A farinhada com a farinha mole, os beijus de
coco ou de folha, as tapiocas, os grudes, etc., as cenas joviais da rapagem de mandioca,
representavam dias de convivência e cordialidade. A moagem era a cana assada, a garapa, o
alfenim, a rapadura, o mel de engenho.
Estas festas, exceto a do milho, provavelmente herdada dos indígenas,
pressupunham a casa grande, isto é, proprietários abastados que residiam em suas terras e
escravos que as cultivavam. Nas proximidades moravam agregados, livres e dedicados.
Muitas vezes por motivos fúteis entre os donos de duas casas grandes irrompiam questões
que podiam pôr em armas populações inteiras. São características as lutas de Montes e
Feitosas no Ceará. Os inventos mecânicos, que no século dezoito revolucionaram a
indústria dos tecidos, aumentando o consumo do algodão, levaram o plantio aos terrenos
mais afastados, por onde difundiram o bem-estar.
O dono da casa grande, como toda a população masculina, exceto quando viajava,
andava de ceroula e camisa, geralmente com rosários, relíquias, orações cuidadosamente
cosidas e escapulários ao pescoço. Nas ocasiões solenes, recebendo visitas, revestia-se de
quimão, timão ou chambre. “Quando um brasileiro põe-se a usar um desses hábitos talares
começa a se considerar personagem importante (gentleman) e com título portanto a muita
consideração”, informa Koster. A roupa caseira das mulheres constava de camisa e saia; o
casebeque só apareceu mais tarde. As moças solteiras dormiam juntas num gineceu
chamado camarinha. Não apareciam aos estranhos. Era comum verem-se os noivos pela
primeira vez no dia do casamento. Entre as jóias prezava-se sobretudo o colar: o número de
varas de cordão possuído pela mulher indicava até certo ponto sua hierarquia. Até as
alongadas brenhas penetravam os bufarinheiros levando ouros, fazendas, utensílios
domésticos. Quando os objetos se permutavam em gado, alugavam gente para arrebanhá-lo,
e podiam voltar com grande número de cabeças. O mesmo sucedia aos dizimeiros, e até a
eclesiásticos ambulantes. Um fenômeno daquelas regiões, ainda hoje existentes, eram as
feiras de gado ou de outros gêneros. Algumas feiras deram origem a povoados.
A zona criadeira começava um pouco acima da foz do São Francisco,
acompanhava-lhe as margens a entestar com a fronteira de Minas Gerais, transpunha as
vertentes do Tocantins e do Parnaíba, alcançava já enfraquecida o alto Itapicuru,
compreendia as ribeiras de todos os rios de meia-água metidos entre a baía de Todos-os-
Santos e a de Tutóia. A trechos se aproximava muito da beira-mar, de que em Ilhéus e
Porto Seguro separavam-na a serra do Espinhaço e suas matas litorâneas. Em Pernambuco
ocorria fato semelhante, porque como as ligações beiravam o rio de São Francisco, a maior
ou menor distância, grande número de sertanejos achavam mais fácil e mais vantajoso
comunicar-se com a Bahia, deixando deserta uma região intermédia, variável em
comprimento e largura; o caminho entre Pajeú e Capibaribe, que regulou esta anomalia,
data dos primeiros anos do século XIX.
Como vimos, pode-se chamar pernambucanos os sertões de fora, desde Paraíba até
o Acaracu no Ceará; baianos os sertões de dentro, desde o rio S. Francisco até o sudoeste
111
do Maranhão. Entre os sertanejos de um e outro grupo deve ter havido diferenças mais ou
menos sensíveis. Talvez se venha a determiná-las um dia, quando forem divulgadas as
relações dos missionários, corregedores, etc.; em todo caso as semelhanças entre os
moradores de ambos os sertões avultam mais que entre quaisquer outros habitantes do
Brasil.
Nas margens do rio S. Francisco encontraram-se baianos e pernambucanos com os
paulistas. Ao Sul e ao ocidente pode-se determinar até certo ponto os limites das duas
correntes opostas, marcando os lugares em que os altos deixam de ser preferidos para a
habitação, mesmo quando não há perigo de ser inundado o terreno, e entram a funcionar os
monjolos.
Predileção pelas baixas para as casas de vivenda, freqüência de monjolo para pilar o
milho seco, milho como alimentação habitual, sob as formas de canjica (no sentido do Sul),
fubá e farinha fermentada antes da torrefação definitiva, carne de porco preferida à de boi
indicam a presença de paulistas ou de seus descendentes. Como raiz de todas estas
vergônteas aparece a falta de sal, que impedia o desenvolvimento rápido do gado vacum e
ainda hoje não tempera o angu nem a canjica. O porco, apesar de enorme consumo interno,
tornou-se mais tarde gênero de exportação, em toucinho e em pé.
Para o terreno acidentado provavam melhor os muares, mais sóbrios, mais resistentes, de passo mais
seguro, importados de além Uruguai. A viagem, não partida como ao Norte, arrastava-se vagarosamente
quase de sol a sol. As cavalgaduras eram ferradas; nos caminhos mais freqüentados, junto às vendas que
forneciam milho, havia ferradores, e seus serviços reclamavam a cada instante os terríveis caldeirões.
O ouro, passado o alborôto primitivo, quase só ocupava faiscadores. A mineração de
ferro, aprendida de africanos, segundo informa Eschwege pouco deu de si pelo atraso dos
processos e sobretudo pela ausência de lenha, devastada cruelmente. A agricultura, além de
cereais comuns, encontrou a aplicação rendosa no algodão: o de Minas-Novas procurava-se
muito pela excelente qualidade. A cultura do café começou relativamente tarde, depois de
verificada a superioridade das regiões serranas sobre as de beira-mar, nas proximidades do
Rio, e desde o começo revestiu os caracteres que conservou até o fim.
Perguntou Augusto de Saint-Hilaire a um seu compatriota, conhecedor da
localidade, em que os fazendeiros gastavam o dinheiro: “Como vê, respondeu-lhe, não é
em construir belas casas nem em mobiliá-las. Comem arroz e feijão; muito pouco lhes custa
também o vestuário, tão pouco dispendem na educação de seus filhos, que se rebolcam na
ignorância; são de todo estranhos aos prazeres da sociedade; mas é o café que lhes dá
dinheiro, não se pode apanhar café senão com negros; é pois em comprar negros que
gastam todos os seus rendimentos, e o aumento de sua fortuna serve muito mais para
satisfazer-lhes a vaidade que para aumentar-lhes os gozos. Não têm luxos de habitação,
nada apregoa sua riqueza. Mas é impossível que se ignore nas cercanias que têm tantos
escravos, tantos pés de café; empertigam-se, comprazem-se consigo mesmo e vivem
satisfeitos, não se distinguindo realmente dos pobres senão por uma vã nomeada que se
estende a alguns tiros de espingarda de sua casa”.
Esta instalação sumária e pobre apareceria nos lugares recentemente desbravados;
nos de ocupação mais antiga notava-se espetáculo bem diferente. “Às fazendas apartadas
falece todo o auxílio da grande sociedade, escreve Martius, entre Vila-Rica e a demarcação
diamantina; cada fazendeiro rico é por isso obrigado a preparar os escravos para todas as
necessidades da sua casa. Assim comumente acham-se numa casa todos os oficiais e a
aviação para eles, como sapateiros, alfaiates, tecelões, serralheiros, ferreiros, pedreiros,
oleiros, caçadores, mineiros, agricultores... À frente dos negócios está um feitor, mulato ou
negro de confiança, e determina-se a ordem do dia como num convento. O dono faz ao
112
mesmo tempo de regedor, juiz e médico em sua propriedade. Muitas vezes é um
eclesiástico ou vem um clérigo da vizinhança celebrar em sua capela particular”.
Como alguns frades figuraram nas primeiras desordens, a metrópole proibiu
severamente a fundação de conventos nas três capitanias auríferas e, caso raro, nunca
variou a tal respeito. Em tanto maior número apareceram os clérigos dos hábito de S. Pedro,
a princípio importados, ordenados mais tarde no ribeirão do Carmo, depois de criada a
diocese de Mariana sob d. João V, por Benedito XIV. “Desde a nomeação do bispo de
Mariana, d. Joaquim Borges de Figueiroa (1782), se tem conferido ordem a um sem
número de sujeitos, sem necessidade e sem escolha. Tem-se visto alguns que, tendo
aprendido ofícios mecânicos e servido de soldados pedestres, se acham hoje feitos
sacerdotes. Tendo o doutor Francisco Xavier da Rua, governador que foi do bispado com
procuração do dito bispo, ordenado os sacerdotes que eram precisos, não foi bastante para
que o Dr. José Justino de Oliveira Gondim, que lhe sucedeu, deixasse de ordenar em menos
de três anos cento e um pretendentes, dispensando sem necessidade em mulatismos e
ilegitimidades. O Dr. Inácio Correia de Sá, que sucedeu a este José Justino no governo do
bispado, ordenou oitenta e quatro pretendentes em menos de sete meses e entre eles um que
era devedor à fazenda real”. Estas facilidades só começaram a desaparecer no correr do
século XIX.
Junte-se a tal fartura de sacerdotes a abundância de irmandades, o gosto geral pela
música, a proximidade dos povoados nos distritos em que primeiro se extraiu o metal
amarelo, os numerosos vadios sustentados pela hospitalidade e indiferença indígenas, a
falta de divertimentos públicos e se compreenderá a freqüência das festas religiosas.
Sobressaíam principalmente as procissões pelo grande luxo, pelo número de figuras
simbólicas, por um certo aparato teatral e jogralesco. No extremo Goiás, em Traíras, Pohl
assistiu a uma festa de Santa Efigênia, padroeira dos negros, feita com todas estas
visualidades: imperador, imperatriz, tiros de roqueira, dutos aos imperantes, cavalhadas,
lanças, leilão, etc.
O mineiro e o paulista diferiam bastante de aspecto. “O mineiro em geral é esbelto e
magro, de peito estreito, pescoço comprido, rosto um tanto alongado, olhos negros e vivos,
cabelo preto na cabeça e no peito; tem por natureza um nobre orgulho e no exterior um
modo brando, afável e inteligente, é sóbrio e parece gostar de uma vida cavalheiresca,
assegura Martius. Em todas estas feições assemelha-se mais ao árdego pernambucano que
ao paulista pesadão... Seu vestuário nacional difere do paulista. Em geral usa jaqueta curta,
de algodão ou de manchéster preto, colete branco de botões de ouro, calça de veludo ou de
manchéster, longas botas de couro branco, presas acima do joelho por fivelas; um chapéu
de feltro de abas largas abriga-o do sol; a espada e não raro a espingarda são com o guarda-
chuva seus companheiros inseparáveis, desde que sai de casa. As viagens, mesmo as mais
breves, são feitas em mulas. Os estribos e as rédeas são de prata e do mesmo metal o cabo
do facão que enfia na bota abaixo do joelho. Nestas jornadas as mulheres são carregadas em
liteiras por negros ou bestas, ou sentam-se, vestidas de longa montaria azul com chapéu
redondo, em uma cadeirinha presa à mula”.
A pequena estatura do paulista, o cabelo corrido, a face pálida, os olhinhos
penetrantes revelavam a procedência americana, no entender de Eschwege, que acrescenta
em desacordo com Martius: “Sua coragem, sua impavidez no perigo, sua agilidade e
espírito de iniciativa, sua repugnância a canseiras, sua sede de vingança, patenteiam a
procedência selvagem pelo lado materno, assim como sua finura e a vivacidade de seu
espírito denunciam a ascendência portuguesa pelo lado paterno”.
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De resto, chamando pesadão ao paulista, Martius parece referir-se apenas ao aspecto
físico, pois antes escrevera: “O paulista goza em todo o Brasil da fama de grande
franqueza, impavidez e amor romanesco às aventuras e perigos. Associa a isto um
temperamento apaixonado, que o leva à cólera e à vingança, e seu orgulho e inflexibilidade
são temidos pelos vizinhos... Muitos paulistas se conservaram sem mescla com os índios;
os mamelucos, conforme os graus da mescla, têm a pele quase cor de café, amarela ou
quase branca. Traem a mistura indiana antes de tudo a cara larga, com maçãs salientes,
olhos pretos e não grandes e certa incerteza de olhar. A estatura elevada e ao mesmo tempo
larga, feições fortes, sentimento de liberdade e desassombro, olhos brunos, ou raramente
azuis, cheios de fogo e afoiteza, cabelo cheio, preto e liso, musculatura reforçada, decisão e
rapidez no movimentos são, aliás, os principais característicos na fisionomia dos paulistas.
Em geral pode-se atribuir-lhes um caráter melancólico, misturado com alguma coisa de
colérico... Em parte alguma do Brasil há tantos coléricos e histéricos como aqui”.
Escreve ainda o mesmo viajante:
“Em S. Paulo, homens e mulheres viajam sempre a cavalo ou em mulas; muitas
vezes o homem leva uma mulher na garupa. Os cavaleiros usam de um chapéu de feltro
pardo de abas largas, um poncho azul, comprido e muito largo, em cujo meio há uma
abertura para a cabeça; jaqueta e calças de algodão escuro, botas compridas por tingir,
apertadas no joelho por uma correia e um fivelão; uma longa faca de cabo de prata, metida
na bota ou presa à cinta, serve para a comida e outros misteres. As mulheres usam longos
sobretudos e chapéus redondos. Segundo um provérbio corrente eram dignos de apreço na
Bahia eles não elas, em Pernambuco elas não eles, em S. Paulo elas e elas. Não raro ouve-
se dizer nesta província: se não fôssemos os primeiros que descobriram as minas de ouro,
seríamos ainda beneméritos da pátria graças à canjica e à rede, que primeiros imitamos dos
índios”.
A canjica paulista, preparada pelo monjolo, preguiça ou negro velho, dominava nos
lugares de águas correntes, que dispensavam os pilões: nos sertões do Norte, onde tal
abundância de água não era comum, o mungusá que lhe corresponde só se usava nas casas
grandes, com escravos para a pilação.
Aos paulistas atribui Martius a descoberta das propriedades medicinais das plantas
indígenas, que não podiam ter aprendido com os índios. Desde Pindamonhangaba notavam-
se papudos, e em geral os paulistas levaram o papo aos lugares onde foram. “Muitas vezes
o pescoço é todo ocupado pela grande intumescência; entretanto, parecem considerar esta
disformidade como beleza particular, pois não raro vêem-se mulheres com enorme papeira
à mostra, ornada de ouros e pratas, sentadas em frente as suas casas, de cachimbo no queixo
ou fiando algodão”.
No princípio do século, começavam a despertar da hibernação devida às minas e aos
grandes êxodos por elas provocados em S. Paulo. A agricultura aos poucos se reanimava;
existiam engenhos de açúcar e de aguardente; duvidava-se ainda que o clima permitisse a
grande cultura do algodão e do café. A mais importante fonte de receita consistia no
comércio de trânsito, de Mato Grosso, de Goiás, de parte de Minas e dos sertões do Sul.
funcionava a famosa feira anual de Sorocaba.
Um paulista sem vivacidade poderia se chamar o goiano, ainda notável pela aversão
à vida de casado.
Segundo uma estatística de 1804, extratada na obra de Pohl, existiam 7.273 brancos,
15.585 mulatos, 7.992 pretos, 19.285 escravos, ao todo 50.135 habitantes. Descontando das
24.371 pessoas do sexo feminino 7.868 escravas, sobre as quais não apresenta informações,
havia casadas 809 brancas, 1.668 mulatas, 575 pretas, ao todo 3.052, e solteiras 2.663
114
brancas, 6.639 mulatas, 4.179 pretas, ao todo 13.481. Por esta sinopse vê-se também como
o elemento africano era numeroso.
A gente de Cuiabá tinha certa semelhança com os mineiros no aspecto; dormitava,
porém, nela um gênio sanguinário, talvez aprendido com os Guaicurus, que se revelou
estrepitosamente na era regencial, e com mais freqüência se tem manifestado depois de
proclamada a república. A gente do Paraguai e Guaporé era fraca e doentia.
Nos campos gerais do Paraná viviam bastantes criadores, mas a verdadeira zona
pastoril do Sul ostentava-se nas terras rio-grandenses.
Exceto as faldas da serra geral ainda desertas, capões salteados e alguns trechos
ribeirinhos, o território era ocupado por pastagens suculentas, tão propícias à propagação de
bois como de cavalos, que dispensavam rações de sal. Abundava a água perene; nunca
passavam anos sem chuva; não havia as enredadas catingas de outras regiões menos
favorecidas. A proporção entre o gado cavalar e vacum era muito maior do que ao Norte:
basta dizer que havia lotes de baguais, cavalos bravios e sem dono; os donos só conheciam
os cavalos pela marca, e matavam éguas para extrair o couro. Para viagens mais longas não
chegava uma cavalgadura; era preciso levar uma cavalhada.
Como difere isto dos sertões nortistas, com poucos cavalos, todos bem conhecidos e
estudados, e o cavalo da sela, ensinado no passo, na estrada, na baralha, no esquipado, e
várias outras marchas de que há mestres habilidosos, promovido quase a parente da família!
Quando começou o povoamento já pululava esta criação, procedente das destruídas
missões jesuíticas; apossava-se cada um do que lhe convinha, e o uso da bola e do laço,
conhecido dos Charruas, dispensava as corridas violentas pelo mato do sertão baiano-
pernambucano. O valor do gado era até certo ponto negativo; sobejava para a população e
não havia para onde exportá-lo; consumi-lo sem parcimônia parecia ato de prudência, pois
mais facilmente se amansava e os pastos não se esgotariam; os trabalhos de rodeio, únicos
reclamados quando a situação se regularizou, eram antes um divertimento que uma
canseira.
“Toda a guerra era contra as vitelas”, informa Aires de Casal, “e de ordinário uma
não chegava para o jantar de dois camaradas, porque acontecendo quererem ambos a
língua, tinham por mais acertado matar segunda do que repartir a da primeira. Havia
homem que matava uma rês pela manhã para lhe comer o rim assado; e para não ter o
incômodo de carregar uma posta de carne para jantar, onde quer que pousava fazia o
mesmo àquela que melhor lhe enchia o olho. Não havia banquete em que não aparecesse
um prato de vitelinha recém-nascida”.
Aos poucos, a gente se desacostumou do sal, da farinha (comer do arremesso no
Pará) e de qualquer conduto. A escassez de lenha obrigava a comer a carne quase crua,
apenas sapecada no lume produzido por dejeções animais ou gravetos, e comida quase
sempre sem mastigar. Ao mate, beberagem primeiro descoberta nos sertões de Guairá e
depois propagada pelos jesuítas, atribui-se a atenuação dos males que deviam resultar desta
dieta.
A superfície ligeiramente ondulada, o descampado quase onipresente, a facilidade
de alimentação, a abundância de cavalgaduras convidavam à locomoção. Viajava-se
principalmente no verão, quando raras vezes chovia, os rios levavam pouca água e
aumentava o número de vaus; a importância destes em capitania onde não havia pontes
manifesta-se nos passos sem conta que a cada instante se encontram designando
localidades. Serviam-se às vezes de pelotas, canoas frágeis feitas de pele. De passagem
fique notado que também aqui houve uma época do couro.
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Dormia-se ao relento: os aperos do animal serviam de leito. Estendiam por terra
grande peça chamada carona, o lombilho substituía o travesseiro, sobre a carona punham o
pelego e por cima de tudo deitavam-se embrulhados no poncho e de cabeça descoberta.
Avigorou-se a tendência ao nomadismo com a circunstância de passar por ali a
fronteira, uma fronteira disputadíssima, que qualquer dos confinantes ambicionava
estender, e de entre ambos meterem-se os campos neutrais, em que nenhum tinha direito de
penetrar, por isso mesmo violados a cada instante, máxime da parte do Rio Grande. Os
combates regulareso subiram a muitos, mas as surpresas, as arreatas, os encontros
singulares, as incursões de contrabandistas constituíam fato quotidiano. Forçosamente os
rio-grandenses tornaram-se aventureiros e soldados; só por militares tinham atenção; a
Saint-Hilaire deram o título de coronel. A quem não montava bem ou não sabia laçar de
cavalo xingavam de baiano ou maturango.
Este desbarato semibárbaro modificou-se graças ao aumento da população em parte,
em parte graças às secas do Norte. O Ceará não pôde mais fornecer a carne a que
acostumara parte da gente do litoral e experimentou-se o charque do Rio Grande; diz-se que
cearenses concorreram para a fundação de S. Francisco de Paula, mais tarde Pelotas. Abriu-
se assim uma fonte de riqueza, o gado cresceu de valor e as estâncias, também aqui
estabelecidas geralmente nas eminências, começaram a ter alguma organização. Com as
charqueadas foram introduzidos os negros, que chegaram a muitas dezenas de mil.
Algumas estâncias rendiam milhares de cruzados, esbanjados no jogo e nas apostas.
Na Bahia, por 1803, cerca de quarenta navios, de duzentas e cinqüenta toneladas
cada um, empregavam-se no comércio do charque do Rio Grande, que mal completavam a
viagem dentro de dois anos. Levavam da Bahia aguardente, açúcar, louça, mercadorias
européias, principalmente inglesas e alemãs, que passavam por prata de contrabando em
Maldonado e Montevidéu. Durante este tempo as tripulações empregavam-se em carregar
couro e carne seca. Os navios chegando à Bahia vendiam o charque e retalho, a dois vinténs
a libra. Dispondo da carga por este modo em vez de desembarcá-la, detinham-se no porto
cinco meses e até mais, de modo que, observa Lindley, no tempo consumido por uma
viagem podiam ser feitas três.
A agricultura nunca ficou de todo descurada. A produção do trigo atingiu a milhares
de alqueires; cultivaram outros cereais, a própria mandioca. Aos inconvenientes da
proximidade do gado solto obviava-se abrindo valados, fazendo sebes vivas de sabugueiro
e cactos, levantando cercas de cabeças com chifres. Entretanto, a faixa agrícola ocupava
uma área insignificante, que só se dilatou depois da chegada de imigrantes alemães. A
decadência na lavoura do trigo, atribuída a certas medidas anti-econômicas tomados pelo
governo central e à deterioração das sementes em conseqüência da ferrugem, deve ter
causas mais profundas, pois não foi ainda possível reerguê-la.
Saint-Hilaire, que percorreu a região, pinta-nos o rio-grandense da campanha como
vivo, corado, em geral de cor branca, de estatura avantajada, sem curiosidade intelectual, de
maneiras agrestes, incrivelmente voraz e pouco sensível, senão cruel... Falando de alvoroço
todas as vezes que se carneava alguma rês, repara: “A idéia de em pouco poder se fartar de
carne é um dos motivos do prazer, mas não é o único; o maior é matar e vaca e espedaçá-la,
independente de toda a esperança de poder satisfazer logo a sua gula. Entretanto, cumpre
confessá-lo, esta paixão é uma das que dominam os habitantes da capitania do Rio Grande.
Ao mesmo autor deve-se uma observação que explica uma porção de fatos
decorridos desde a regência. Os mineiros, afirma, não se apegam ao seu país. Com efeito,
nem um hábito particular ali os retém, e não lhes custa acharem outro melhor. Acresce que
a inteligência, que lhes é natural, garante-lhes por toda a parte meios fáceis de subsistirem.
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Os habitantes desta capitania, ao contrário, nunca saem de sua terra, porque sabem que
alhures seriam obrigados a renunciar a andarem sempre a cavalo e em parte alguma
achariam carne em tamanha abundância.
Na formação do rio-grandense entraram sobretudo açorianos, nortistas,
principalmente de S. Paulo, e não poucos espanhóis imigrados ou incorporados. Sobretudo
na fronteira meridional deu-se a penetração das duas línguas. Havia poucos mulatos.
Notava-se a certos respeitos um quê de mocidade fogosa ausente das outras capitanias. O
combate contra seres animados difere muito nos efeitos da luta travada contra as massas da
vegetação ou contra as inclementes forças cósmicas, como ao Norte.
À beira-mar pobres pescadores arrastavam existência miserável; as armações de
baleias davam trabalho durante uma estação apenas e apenas em poucos pontos; a pescaria
feita em maior escala, como em Porto Seguro e alhures, não dispensava a importação
*
entre
as espécies de maior consumo. O contrabando universalizado zombava de todas as medidas
de repressão.
Os proprietários rurais, possuindo melhores aviamentos, casas mais espaçosas e
mobílias menos sumárias, prosseguiam na lavoura aleatória de drogas de luxo para o
estrangeiro, esbanjando as riquezas naturais, indiferentes às culturas dos gêneros de
primeira necessidade e à formação de mercados internos. Vítima desta latronicultura, a
escravidão africana condenava-a por sua vez à imobilidade e ao recuo. As crises agcolas
repetiam-se; as valorizações disfarçavam sem extinguir o vício congênito.
Os antigos povoados, assentes, como Igaraçu e Porto Calvo, nos limites da
cabotagem fluvial, definharam à medida que as embarcações cresceram de calado. A
prosperidade mercantil pedia o contacto do oceano. Os centros de maior movimento eram
São Luís do Maranhão, Recife, Bahia e Rio.
Nas cidades costeiras o pobre índio sumia-se ante o europeu e o negro com seus
descendentes puros ou mesclados. o preconceito de cor agonizava no exclusivismo dos
corpos armados, como o dos Henriques, composto só de pretos, nas confrarias, de que
algumas só admitiam pretos, pardos ou brancos, na especialização de certos padroeiros,
como a Senhora do Rosário, São Benedito, São Gonçalo Garcia. A impedir ou sequer
minorar a mestiçagem não chegava seu alento; era antes uma tradição meio delida do que
uma força viva.
O serviço doméstico tocava aos escravos, sempre em número excessivo, pois vivia-
se com pouco, e graças à criação miúda, aos mariscos abundantes, ao peixe barato, aos
engenhosos e múltiplos quitutes, grassavam a prodigalidade e a imprevidência da economia
naturista. Alguns deles empregavam-se na faina dos transportes por terra e por água; alguns
aprendiam ofícios; outros, pagando jornais convencionados com os donos, procuravam
ocupações a seu gosto. Conversavam às vezes em língua africana, constituíam grêmios
secretos e praticavam feitiçarias. Sua alegria nativa, seu otimismo persistente, sua
sensualidade animal sofriam bem o cativeiro.
Nunca ameaçaram a ordem de modo sério, e os carregadores davam certa animação às ruas. “São
mandados com cestos vazios e longas varas a procurar emprego em benefícios de seus senhores, escreve John
Luccok. Mercadorias pesadas transportam-se ao ombro entre dois parceiros por meio destas varas, às quais se
passam umas alças, que levantam o fardo um pouco acima do solo. Se a carga for muito grande para um
parelha, forma-se um bando de quatro, de seis e até mais, de que um, em geral o mais inteligente, é escolhido
para dirigir o trabalho. Este para promover a regularidade dos esforços, e especialmente uniformizar o passo,
entoa sempre um canto africano, de música breve e simples; no fim respondem todos em coro estridente. O
coro continua enquanto dura o trabalho, e parece aliviar o peso e alegrar o coração”.
*
de peixe sêco; o bacalhau contava-se
117
Os mulatos, gente indócil, e rixenta, podiam ser contidos a intervalos por atos de
prepotência, mas reassumiam logo a rebeldia originária. Suas festas, menos cordiais que as
dos negros, não raro terminavam em desaguisados; dentre eles saíam os assassinos e os
capangas profissionais. Crescendo em número, desconheceram, e afinal extinguiram as
distinções de raça e foram bastantes fortes para romper com as formas do
convencionalismo vigente e viver como lhes pedia a índole irrequieta. Para o nivelamento
concorreu sobretudo a parte feminina, com seus dengues e requebros lascivos. Spix e
Martius ouviram cantar na Bahia:
Uma mulata bonita
Não carece de rezar,
Abasta o mimo que tem
Para sua alma se salvar.
O convencionalismo oprimia a gente branca: funcionários pretensiosos vindos da
metrópole e abrangendo no mesmo desdém soberano a terra e os moradores, negociantes
grosseiros e pouco lisos nas transações, meros consignatários de seus patrícios, que por sua
vez não passavam de consignatários de ingleses, capitalistas desconfiados, descendentes
empobrecidos de pais ricos e perdulários, irmãos das almas, os próprios mulatos, quando a
multiplicidade dos cruzamentos disfarçava-lhes a casta, em público moviam-se
sorumbaticamente, como autômatos.
Toda a população parecia de língua atada, informa ainda Luccock; não havia
brinquedo de meninada, vivacidade de rapazes, gritaria ruidosa de gente mais entrada em
anos. “O primeiro grito geral que ouvi no Rio foi no aniversário da rainha em 1810. Seguiu-
se a um fogo queimado nesta ocasião e foi um viva abafado, não frio, porém tímido; parecia
perguntar se podia ser repetido”.
De sua residência, no cruzamento da rua do Ouvidor com a da Quitanda, assistia a
uma cena, que descreve do seguinte modo: “Precisamente neste lugar, todos os dias não
santificados pela manhã, reuniam-se os solicitadores com os meirinhos para tratar de
negócios. A generalidade deles usava de velhos casacos pretos surrados, alguns com
bastantes remendos, e tão mal adaptados à altura e à forma dos donos, que excitavam a
suspeita de não terem sido estes os primeiros que os possuiram; os coletes eram de cores
mais alegres, com longos peitos bordados, grandes golas e profundas algibeiras; os calções
eram pretos e tão curtos que mal chegavam aos lombos ou aos joelhos, onde se prendiam
com fivelas quadradas de diamantes falsos, as meias de algodão fiado em casa e enormes as
fivelas dos sapatos. As cabeças eram cobertas de cabeleiras empoadas e punham por cima
chapéus de bico, grandes e sebosos, em que usualmente colocavam um tope preto. À
esquerda traziam um espadagão muito velho e estragado. Era divertido observar com que
cerimônias minuciosas estes cavalheiros e seus subalternos dirigiam-se uns a outros; com
que ordem exata se curvavam e tiravam os sujos chapéus; com que formas perversas e fria
deliberação combinavam-se para esvaziar o bolso de seus clientes”.
A educação reduzia-se a expungir a vivacidade e a espontaneidade dos pupilos.
Meninos e meninas andavam nus em casa até a idade de cinco anos; nos cinco anos
seguintes usavam apenas de camisas. Se porém iam à igreja ou a alguma visita, vestiam
com todo o rigor da gente grande, com a diferença apenas das dimensões. Poucos
aprendiam as ler. Com a raridade dos livros exercitava-se a leitura em manuscritos, o que
explica a perda de tantos documentos preciosos.
118
Só os frades, a exemplo da gente de cor, obedeciam aos ditames do temperamento,
sem medo de escândalo e até procurando-o. “Um dos motivos da relaxação é haverem
muitos conventos e poucos religiosos, escrevia Fr. Caetano, bispo do Pará; a causa para não
poderem satisfazer a todas as observâncias brevemente degenera em pretexto frívolo para
se eximirem até das mais fáceis e ei-los aí ociosos, inúteis absolutamente à igreja e ao
estado”. A tanto subiu sua desenvoltura que dificilmente encontravam noviços nos últimos
tempos. Das freiras e recolhidas não se contavam iguais excessos.
Gozavam de prestígio os padres, os genuínos representantes da mentalidade até o
começo do segundo império, quando os substituiram no cenário bacharéis formados pelas
academias de S. Paulo e Olinda. As virtudes da sua vocação raros possuíam, mas o caso de
tão comum não causava estranheza. Alguns, rompendo com o exclusivismo do latim,
aprenderam francês e até inglês, cultivavam as ciências naturais, esposavam as idéias dos
enciclopedistas, entusiasmaram-se pelas tragédias da revolução francesa, conheciam as
teorias de Adam Smith.
Entre eles contavam-se pedreiros livres, que já existiam em pequeno número,
oficiais portugueses e brasileiros viajados no estrangeiro, e não se reuniam ainda em lojas.
A população, que aliás não podia conhecê-los, pois ninguém se animava a apregoar-se
como tal, votava-lhes um terror louco; circulavam notícias pavorosas de suas abominações
sacrílegas, entre elas e a de se aprazerem em apunhalar crucifixos. Apesar de sua
exiguidade ou por causa desta, dispunham de certa influência e conseguiram dar escapula
ao inglês Thomas Lindley, preso na Bahia por contrabandista.
“Os principais divertimentos dos pracianos (citizens) são as festas dos diferentes
santos, profissões de freiras, funerais suntuosos, a semana santa, etc., celebrados
rotativamente, com grandes cerimônias, músicas e procissões freqüentes, informa este
viajante. Mal passa um dia em que não ocorra uma ou outra destas festas, e assim se
apresenta um círculo de oportunidade para unir a devoção e o prazer, que é vivamente
abraçado, em particular pela mulher.
“Em grandes ocasiões destas, depois de virem da igreja, visitam-se uns a outros e
saboreiam um jantar mais farto que de costume, durante e passado o qual bebem
quantidades desmedidas de vinho. Quando alcançam uma temperatura extraordinária
introduz-se o violino ou a guitarra, começa o canto, logo seguido da excitante dança negra,
mistura de danças da África e dos fandangos de Espanha e Portugal, que consiste em um
indivíduo de cada sexo dançar ao toque monótono do instrumento, sempre no mesmo
compasso, quase sem mover as pernas, mas com todos os movimentos licenciosos do
corpo, juntado-se durante a dança em contacto estranhamente imodesto. Os espectadores,
acompanhando a música de um coro improvisado e dando palmas, saboreiam a cena com
um gozo indescritível”.
As mulheres poucas vezes saíam a público e iam às missas de madrugada; algumas
serviam-se de cadeirinhas, carregadas por negros de bela estampa e rica libré; carruagens
pode-se dizer não havia. A maior parte do tempo levavam em seus aposentos, quase em
mangas de camisas, sem meias e até sem tamancos, ouvindo das mucamas histórias de
carochinha ou bisbilhotices frescas, penteando o cabelo, embevecidas nos cafunés.
Bordavam, faziam rendas ou doces, cantarolavam modinhas sentimentais, comunicavam
com as vizinhas pelos quintais; entretinham-se com quitandeiras e beatas, ou abrigadas por
uma rótula discreta procuravam saber o que havia na rua. As moças solteiras engordavam,
quando se fazia esperar muito o dia do casamento, felizes as que encontravam “casa de
Gonçalo, em que a galinha canta mais que o galo”.
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Das fluminenses, diz Luccock que seus ornatos produziam um efeito agradável, e
molduravam os encantos de uma face redonda, de feições regulares, olhos negros, vivos e
curiosos, fronte lisa e aberta, boca expressiva de simplicidade e bom gênio, ocupada por
uma fieira de dentes brancos e iguais, unidos a um rosto sofrivelmente bonito, um ar
risonho e um modo alegre, franco e sem malícias.
Tal, acrescenta, é a aparência comum de uma moça de cerca de treze ou quatorze
anos. Aos dezoitos a natureza atingiu a maturidade completa na brasileira. Alguns anos
mais tarde torna-se corpulenta e até pesadona; adquire uma grande giba nas espáduas, e
anda com um passo desgracioso e cambaleante. Começa a decair, perde o bom humor da
fisionomia, e substitui-o por uma carranca; olhar e boca exprimem ambos que se acostumou
a exprimir paixões vingativas e violentas, as faces ficam privadas de frescura e de cor, e aos
vinte e cinco anos ou trinta transforma-se numa velha perfeitamente enrugada.
Os homens jogavam, freqüentavam cafés, iam às casas de pasto, palestravam sobre
assuntos muito limitados, quase sempre vida alheia. Os acontecimentos mais comezinhos
deformavam-se em intermináveis comentários maliciosos. Abundavam as alcunhas. Mesmo
a morte se desrespeitava. Se morria alguém com fama de santo, se aparecia algum cadáver
incorrupto, estabelecia-se um reboliço na população e a procura de relíquias assumia as
mais indiscretas formas. Se ao contrário corria que a alma se perdera, corriam logo boatos
prodigiosos, assombravam-se as casas e sentia-se a proximidade das trevas exteriores onde
há choro e ranger de dentes. Ainda hoje se nota isto no interior.
No Rio, e o mesmo se deveria com pouca diferença notar nas outras cidades
marítimas, a maioria das casas era térrea. Na frente havia uma sala assoalhada de bom
tamanho; atrás ficavam as alcovas, a cozinha, o quintal. Embaixo dos poucos sobrados
existiam geralmente vendas. A família se reunia na varanda no fundo, as mulheres sentadas
em esteiras, os homens encostados a qualquer coisa, ou andando de uma parte para outra.
Aí jantavam numa mesa velha estendida sobre dois cavaletes, cercada de bancos de pau e às
vezes uma ou duas cadeiras. A principal refeição era ao meio-dia, e então o dono, a dona da
casa, os filhos sentavam-se todos a roda; mais comumente, porém, acocoravam-se no chão.
Os alimentos molhados vinham em terrinas ou cuias; os alimentos secos em cestas; comia-
se em pratinhos de Lisboa. Só os homens serviam-se de faca; mulheres e meninos comiam
com a mão.
Quando um cavalheiro fazia qualquer visita, se não era íntimo da casa, ia de ponto
em branco, chapéu armado, fivela nos sapatos e nos joelhos, espada à cinta, segundo
Luccock. Ao chegar batia palmas para chamar a atenção, e soltava um espécie de som
sibilante, emitido entre os dentes e a ponta da língua. Acudia uma criada que de modo
áspero e tom fanhoso perguntava quem era e ia levar o recado ao patrão. Se o visitante era
algum amigo ou não reclamava cerimônias, aparecia logo o dono da casa, levava-o para a
sala, protestando alto o prazer com que o recebia, fazendo-lhe discursos cheios de
cumprimentos, acompanhado de reverências, e antes de entrar em negócio, se disto se
tratava, pedia-lhe muitas desculpas pela sem-cerimônia da recepção. Se o visitante era de
cerimônia, uma criada levava-o para a sala, donde ao entrar via muitas pessoas que
estavam sairem por outra porta. Aqui esperava só, talvez meia hora, até o cavalheiro
aparecer numa espécie de trajo de meio rigor. Ambos se inclinam profundamente a
distância; depois de haver mostrado suficiente perícia nesta ciência, ganhando tempo para
apurar a posição e as pretensões do outro, aproximavam-se, com dignidade e respeito
correspondente se desiguais; com familiaridade se supostos proximamente iguais. Tratava-
se e despachava-se o negócio sem demora. Pede-se ao estranho que considere a casa como
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sua, nota Pohl; se mostra agradar-se de qualquer coisa, exige o costume que lhe seja
oferecida, pedindo-se que leve aquela insignificância.
As ruas eram estreitas, sem calçamento, sem iluminação ou iluminadas a azeite de
peixe. A água e os esgotos ficavam entregues à iniciativa particular. Enterravam-se os
cadáveres nas igrejas. Só a pouca população explica a ausência de epidemias. Da higiene
pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios do sol e os diligentes urubus.
Constituíam exceção notória o passeio público e o aqueduto do Rio.
Depois de brutalmente extintas as primeiras tentativas industriais, ficaram nas cidades apenas
mecânicos que trabalhavam por encomenda e a quem se pagava só o feitio. “Quando um oficial ganhava
algumas patacas folgava até acabar de comê-las, observa Saint-Hilaire. Apenas possuía a ferramenta mais
necessária, e quase nunca andava provido das matérias que devia feitiar. Assim tinha-se de fornecer couro ao
sapateiro, linha ao alfaiate, madeira ao marceneiro; adiantava-se dinheiro para comprarem tais objetos, mas
quase sempre gastavam o dinheiro e a obra não se fazia ou se fazia só passado um tempo considerável. Quem
tinha alguma coisa a encomendar precisava de fazê-lo com larga antecedência. Suponhamos por exemplo que
fosse uma obra de marcenaria, era necessário primeiro empregar amigos para arranjarem no campo a madeira
precisa; tinha-se depois de mandar cem vezes à casa do oficial, ameaçá-lo, e às vezes em definitivo nada
conseguir. Perguntava a um homem honrado de S. Paulo como fazia quando precisava de um par de sapatos.
Encomendo-o, disse-me, a vários sapateiros ao mesmo tempo e entre eles acha-se ordinariamente um que,
premido pela falta de dinheiro, se resigna a fazê-lo”.
Os oficiais do Rio tinham a pretensão de possuir grandes segredos, mas ignoravam
as coisas mais simples, narra Luccock. Tendo perdido uma chave, foi à procura e afinal
encontrou um operário que o tirasse do aperto. “Deteve-me longo tempo, mas em
compensação apareceu-me de ponto em branco, chapéu armado, de fivelas nos sapatos e
nos joelhos e correspondentes parafernais. À saída remanchou ainda à espera de algum
negro que lhe carregasse o martelo, o escopro e outro instrumento pequeno. Sugeri-lhe que
eram leves, e propus eu próprio carregar parte ou todos; mas isto teria sido solecismo
prático tamanho como usar ele das próprias mãos. O cavalheiro esperou pacientemente até
aparecer um negro, fez então seu trato e marchou com a devida solenidade acompanhado de
seu servo temporário. Despachou-se depressa, arrombando a fechadura em vez de arrancá-
la; então o figurão, fazendo-me uma profunda mesura, partiu com seu acólito”.
Os mecânicos nunca formaram grêmios profissionais à maneira da Europa: eram
para isso muito poucos, e se nas cidades podiam viver de um só ofício, em lugares de
população menos densa precisavam de sete instrumentos para ganhar a subsistência.
Mesmo nas cidades faziam-lhes concorrência os oficiais escravos.
A falta de grêmios notava-se nas outras classes. Continuavam as históricas pessoas
morais, mas sua ação, já enfraquecida pela vastidão do território, acabara de definhar desde
que o absolutismo nivelador desatendeu a seus privilégios. Se excetuarmos algumas
irmandades e associações de beneficência como as casas de misericórdia, sempre
beneméritas e sempre vivazes, as manifestações coletivas eram sempre passageiras:
mutirão, pescarias, vaquejadas, feiras, novenas. Entre o estado e a família não se
interpunham coordenadores de energia, formadores de tradição, e não havia progressos
definitivos. Um indivíduo podia tentar uma empresa e levá-la a bom êxito; com a sua
ausência ou com a sua morte perdia-se todo o trabalho, até vir outro continuá-lo passados
anos, para afinal colher o mesmo resultado efêmero.
Vida social não existia, porque não havia sociedade; questões públicas tão pouco
interessavam e mesmo não se conheciam: quando muito sabem se há paz ou guerra,
assegura Lindley. E’ mesmo duvidoso se sentiam, não uma consciência nacional, mas ao
menos capitanial, embora usassem tratar-se de patrício e paisano. Um ou outro leitor de
livro estrangeiro podia falar na possibilidade da independência futura, principalmente
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depois de fundada a república dos Estado Unidos da América do Norte e divulgada a
fraqueza lastimável de Portugal.
Não se inquiria, porém, o meio de conseguir tal independência vagamente
conhecida, tão avessa a índole do povo a questões práticas e concretas. Preferiam divagar
sobre o que se faria depois de conquistá-la por um modo qualquer, por uma série de
sucessos imprevistos, como afinal sucedeu. Sempre a mesma mandriice intelectual de
Bequimão e dos Mascates!
Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da
religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo pelas
riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentindo pelo português aversão ou
desprezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular — eis em suma ao
que se reduziu a obra de três séculos.
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