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À calmaria equatorial da véspera sucedera, felizmente, uma viração fresca e
reparadora, crispando a larga superfície d’água, enchendo as velas e dando a todas as
fisionomias um aspecto novo de bom humor e jovialidade.
O céu tinha uma cor azul esgazeada, limpo de nuvens, alto e imenso na eterna
glória da luz... Avezinhas de colo branco acompanhavam a corveta, pousando n’água,
trêfegas e alvissareiras, misturando sua alegria ruidosa com o surdo marulhar das vagas,
num rápido espanejamento d’asas.
Agora, sim, todos regozijavam com a esperança de chegar breve, em paz e
salvamento, à Guanabara, lá onde havia sossego e abastança, lá onde a vida corria suave
e cheia de tranqüilidade, porque se estava perto da família, defronte da cidade, sem os
cuidados de quem anda no alto-mar... E depois já era tempo! Vinte dias a bordejar
estupidamente, sem ver um pedaço de terra, uma ilha sequer, passando mal como cão!
Já era tempo...
Só uma pessoa desejaria que a viagem se prolongasse indefinidamente, que a
corveta não chegasse nunca mais, que o mar se alargasse de repente submergindo ilhas e
continentes numa cheia tremenda, e a velha nau, só ela, como uma coisa fantástica,
sobrevivesse ao cataclismo, ela somente, grandiosa e indestrutível, ficasse flutuando,
flutuando por toda a eternidade. Era Bom-Crioulo, o negro Amaro, cujo espírito debatia-
se, como um pássaro agonizante, em torno desta única idéia — o grumete Aleixo, que o
não deixava mais pensar noutra coisa, que o torturava dolorosamente... — Maldita a
hora em que o pequeno pusera os pés a bordo! Até então sua vida ia correndo como
Deus queria, mais ou menos calma, sem preocupações incômodas, ora triste, ora alegre,
é verdade, porque não há nada firme no mundo, mas, enfim, ia-se vivendo... E agora?
Agora... hum, hum!... agora não havia remédio: era deixar o pau correr....
E vinha-lhe à imaginação o pequeno com os seus olhinhos azuis, com o seu
cabelo alourado, com as suas formas rechonchudas, com o seu todo provocador.
Nas horas de folga, no serviço, chovesse ou caísse fogo em brasa do céu,
ninguém lhe tirava da imaginação o petiz: era uma perseguição de todos os instantes,
uma idéia fixa e tenaz, um relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo
desejo de unir-se ao marujo como se ele fora do outro sexo, de possuí-lo, de tê-lo junto a
si, de amá-lo, de gozá-lo!...
Ao pensar nisso Bom-Crioulo transfigurava-se de um modo incrível, sentindo
ferroar-lhe a carne, como a ponta de um aguilhão, como espinhos de urtiga brava, esse
desejo veemente — uma sede tantálica
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de gozo proibido, que parecia queimar-lhe por
dentro as vísceras e os nervos...
Não se lembrava de ter amado nunca ou de haver sequer arriscado uma dessas
aventuras tão comuns na mocidade, em que entram mulheres fáceis, não: pelo contrário,
sempre fora indiferente a certas coisas, preferindo antes a sua pândega entre rapazes a
bordo mesmo, longe de intriguinhas e fingimentos de mulher. Sua memória registrava
dois fatos apenas contra a pureza quase virginal de seus costumes, isso mesmo por uma
eventualidade milagrosa: aos vinte anos, e sem o pensar, fora obrigado a dormir com
uma rapariga em Angra dos Reis, perto das cachoeiras, por sinal dera péssima cópia de
si mesmo como homem; e, mais tarde, completamente embriagado, batera em casa de
uma francesa no largo do Rocio, donde saíra envergonhadíssimo, jurando nunca mais se
importar com “essas coisas” ...
E agora, como é que não tinha forças para resistir aos impulsos do sangue?
Como é que se compreendia o amor, o desejo da posse animal entre duas pessoas do
mesmo sexo, entre dois homens?
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Relativo a Tântalo, personagem da mitologia greco-romana, que, por ter roubado as iguarias dos
deuses, foi condenada para a eternidade a nunca mais satisfazer sua fome e sua sede.