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Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe; canto, mesmo acima
da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados, apreciava muito; e um grande discurso,
cujos primeiros períodos ele não seria capaz de lê-los até ao fim, entusiasmava-o, fosse qual fosse o
assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de visão e o funcionamento do seu aparelho
visual era limitado às necessidades rudimentares da vida.
Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não tocava em bandas nem
em orquestras; mas tirava partes, instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum
dinheiro com isso. Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos militantes,
bebericavam, conversavam, falavam sobre a "Arte", as orquestras de cinemas, a música de tal peça
ou daquela outra, relembravam colegas mortos; e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para
a casa, sempre com um rolo de papel de música.
Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias
quentes, ou com um paletó velho, nos frios, e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos
acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia
respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria piano. Flauta não era próprio, para
uma moça; violino era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros que o
tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não tinha posses para comprar um.
Podia alugar, mas tinha que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia
arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado
no vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc.
Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de convivência e
tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor
musical, nem de repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua
natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia
fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma
personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do
pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas da
vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que, adquirida
uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria seus pais e seu marido, quando
casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo de Dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem
ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em
progresso, fazendo tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida.
A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira em ajudá-la nos
bordados, trabalhados para fora, com o que ia ganhando algum dinheiro. Não que ela fosse vadia,
ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a
uma moça ou a uma mulher.
Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e
fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o
fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do
tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes,
entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O
mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.
Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que
seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar,
durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o
tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a
representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente,
nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser
leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante
sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação
que recebera tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua