8
Virgindade no homem
Logo que Ozéas deixara a sombria cela do convento de S. Francisco de Paula e a porta se
fechara sobre ele silenciosamente, Ângelo, em obediência às suas ordens, ajoelhara-se defronte do oratório
e começara a rezar.
Na sua alma inocente não passava a idéia da responsabilidade que o esperava. Sem nunca ter
saído à rua, sem conhecer Paris e os parisienses, não podia desconfiar sequer do que era nesse tempo um
sermão pregado na capela real, defronte do rei e da corte.
Não sabia que nesse tempo, piedoso e devasso, fazia-se da religião um prazer requintado, e que o
púlpito era, como o palco, ou como o livro, ou como o salão e o álbum, um meio de exibições de talento
esquisito e complicações de arte. Não sabia, o pobre Ângelo, que o pregador do que menos precisava,
nesse bom tempo do estilo equilibrado em cinco palitos, era de ser sincero e convicto, mas sim de ter
originalidade na maneira, graça na exposição da frase, elegância nos gestos e naturalidade galante nos
soluços e nos gemidos de pecador.
Essa mistura do sagrado áspero com o profano macio, do prazer aveludado com a devoção
capitosa, produziu as célebres festas híbridas, que então se organizavam em uma das salas das Tulherias
durante a Quaresma, e às quais deram, gamenhamente, o nome de Concertos espirituais.
Luís XV gostava de presenciá-las, sentado a um canto entre algumas formosas mulheres, e
bebendo vinho da Síria, que era o seu vinho predileto. Pestanejava e sorria para todos os lados. Liam-se
versos ternos e religiosos, cantava-se o Miserere, o De profundis, o Stabat, e outras coisas tristes, mas
tudo com muita graça e requebros faceiros.
Era o amor temperado com óleo cheiroso de Santa Luzia.
Havia sempre para estrear, no púlpito desses concertos, um ou mais jovens eclesiásticos, sempre
moços bonitos, aos quais, durante o sermão, serviam água rosada e licor de violetas. E o que deles se
exigia, era apenas voz doce, olhar meigo, dentes bem claros, lábios vermelhos, rendas alvíssimas na
camisa, e mãos brancas de unhas limpas. Às vezes criava-se uma bela reputação e fazia-se uma bonita
carreira, só com uma palavra feliz ou com um gemido suspirado com chiste em ocasião oportuna. O caso
era que as gentis devotas se impressionassem. E só se falava à meia voz, só se namorava a meio sorriso e
só se andava lentamente e aos pulinhos, abafando os passos nos arminhosos tapetes a que Pompadour deu
o seu nome.
Ângelo, coitado, nada conhecia disso nem por notícia sequer; como igualmente não conhecia o
outro gênero de pregadores, não menos comum nesse tempo, o do pregador terrível, de pulso forte e
cabeça dura, que ia para o púlpito de cacete escondido debaixo do capote, e cujos sermões eram por via de
regra uma descarga política e uma tremenda descompostura, contra o partido dos Jansenistas ou contra o
partido dos Molinistas, conforme a filiação do orador, e que, em geral, acabavam também por soluços e
gemidos, mas estes agora bem sinceros e bem reais, e grossa pancadaria no átrio da igreja.
Até certa idade, Ângelo chegou a acreditar que o mundo se resumia no seu convento, e que a
humanidade se compunha apenas daquela meia dúzia de frades, ingênuos e quase santos, que ele conhecia.
Ozéas, com um cuidado enorme, um zelo de guarda do Paraíso, isolava-o dos seminaristas e dos
empregados do seminário, e lhe não deixava cair nas mãos a mais inofensiva página de qualquer livro que
não fosse religioso.
E, no entanto, Ângelo era dotado de um poderoso talento de assimilação e devorava
sofregamente tudo, bom ou mau, que lhe davam para ler. As matérias religiosas que plantaram no seu