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Fomos. Na tribuna estavam quatro senhoras, duas idosas e duas moças. Cumprimentei-as de longe,
e, sem mais encará-las, percebi que tratavam de mim, falando umas às outras. Felizmente o padre
entrou daí a três minutos, ajoelhamo-nos todos, e seguiu-se a missa, que, por fortuna do coronel, foi
engrolada. Quando acabou, Félix foi beijar a mão à mãe e à outra senhora idosa, tia dele; levou-me
a apresentar-me ali mesmo a ambas. Não falamos do meu projeto; tão-somente a dona da casa
disse-me delicadamente:
- Está entendido que V. Rev.ma faz-nos a honra de almoçar conosco?
Inclinei-me afirmativamente. Não me lembrou sequer acrescentar que a honra era toda minha.
A verdade é que me sentia tolhido. Casa, hábitos, pessoas davam-me ares de outro tempo,
exalavam um cheiro de vida clássica. Não era raro o uso da capela particular; o que me pareceu
único foi a disposição daquela, a tribuna de família, a sepultura do chefe, ali mesmo, ao pé dos
seus, fazendo lembrar as primitivas sociedades em que florescia a religião doméstica e o culto
privado dos mortos. Logo que as senhoras saíram da tribuna, por uma porta interior, voltamos à
sacristia, onde o padre Mascarenhas esperava com o coronel e outros. Da porta da sacristia,
passando por um saguão, descemos dois degraus para um pátio, vasto, calçado de cantaria, com
uma cisterna no meio. De um lado e outro corria um avarandado, ficando à esquerda alguns
quartos, e à direita a cozinha e a copa. Pretas e moleques espiavam-me, curiosos, e creio que sem
espanto, porque naturalmente a minha visita era desde alguns dias a preocupação de todos. Com
efeito, a casa era uma espécie de vila ou fazenda, onde os dias, ao contrário de um rifão peregrino,
pareciam-se uns com os outros; as pessoas eram as mesmas, nada quebrava a uniformidade das
coisas, tudo quieto e patriarcal.
D. Antônia governava esse pequeno mundo com muita discrição, brandura e justiça. Nascera dona
de casa; no próprio tempo em que a vida política do marido e a entrada deste nos conselhos de
Pedro I podiam tirá-la do recesso e da obscuridade, só a custo e raramente os deixou. Assim é que,
em todo o ministério do marido, apenas duas vezes foi ao paço. Era filha de Minas Gerais, mas foi
criada no Rio de Janeiro, naquela mesma Casa Velha, onde casou, onde perdeu o marido e onde lhe
nasceram os filhos, - Félix, e uma menina que morreu com três anos. A casa fora construída pelo
avô, em 1780, voltando da Europa, donde trouxe idéias de solar e costumes fidalgos; e foi ele, e
parece que também a filha, mãe de D. Antônia, quem deu a esta a pontazinha de orgulho, que se
lhe podia notar, e quebrava a unidade da índole desta senhora, essencialmente chã. Inferi isso de
algumas anedotas que ela me contou de ambos, no tempo do rei. D. Antônia era antes baixa que
alta, magra, muito bem composta, vestida com singeleza e austeridade; devia ter quarenta e seis a
quarenta e oito anos.
Poucos minutos depois estávamos almoçando. O coronel, que afirmava, rindo, ter um buraco de
palmo no estômago, nem por isso comeu muito, e durante os primeiros minutos, não disse nada;
olhava para mim, obliquamente, e, se dizia alguma coisa, era baixinho, às duas moças, filhas dele;
mas desforrou-se para o fim, e não conversava mal. Félix, eu e o padre Mascarenhas falávamos de
política, do ministério e dos sucessos do Sul. Notei desde logo, no filho do ministro, a qualidade de
saber escutar, e de dissentir parecendo aceitar o conceito alheio, de tal modo que, às vezes, a gente
recebia a opinião desenvolvida por ele, e supunha ser a mesma que emitira. Outra coisa que me
chamou a atenção foi que a mãe, percebendo o prazer com que eu falava ao filho, parecia encantada
e orgulhosa. Compreendi que ele herdara as naturais esperanças do pai, e redobrei de atenção com o
filho. Fi-lo sem esforço; mas pode ser também que entrasse por alguma coisa, naquilo, a
necessidade de captar toda a afeição da casa, por motivo do meu projeto.