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Capítulos de História Colonial
João Capistrano de Abreu
Índice:
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01 - Antecedentes Indígenas
02 - Fatores Exóticos
03 - Os Descobridores
04 - Primeiros Conflitos
05 - Capitanias Hereditárias
06 - Capitanias da Coroa
07 - Franceses e Espanhóis
08 - Guerras Flamengas
09 - O Sertão
10 - Formação dos Limites
11 - Três Séculos Depois
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1 - ANTECEDENTES INDÍGENAS
A quase totalidade do Brasil demora no hemisfério meridional, e entre o Equador e o
trópico de Capricórnio alcança o país as maiores dimensões.
Cercam-no ao Sul, a Sudoeste, Oeste e Noroeste as nações castelhanas do
continente, exceto o Chile, por se interpor a Bolívia, e o Panamá por se interpor a
Colômbia. Se confrontará algum dia com o Equador hão de decidir negociações
ainda ilíquidas. Desde o alto rio Branco até beira-mar seguem-se colônias de
Inglaterra, Holanda e França, ao Norte.
Banha-o ao Oriente o oceano Atlântico, numa extensão pouco mais ou menos de
oito mil quilômetros. Como o cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista
37 graus do Chuí, limite com o Uruguai, salta logo aos olhos a insignificância da
periferia marítima; repete-se o espetáculo observado na África e na Austrália: nem o
mar invade, nem a terra avança; faltam mediterrâneos, penínsulas, golfos, ilhas
consideráveis; os dois elementos coexistem quase sem transições e sem
penetração; com recursos próprios o homem não pôde ir além da pescaria em
jangadas.
A borda litorânea dispõe-se em dois rumos principais: Noroeste-Sueste do Pará a
Pernambuco, Nordeste-Sudoeste de Pernambuco ao extremo Sul.
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A costa de NO-SE, corre baixa, quase retilínea, intermeada de dunas e lençóis de
areia, aquém do Amazonas, baixa, lamacenta, de contornos variáveis, entre o
Amazonas e o Oiapoque. Os materiais marinhos, os sedimentos fluviais dão-lhe o
aspecto das costas compensadas; os portos rareiam, as barras dos rios são as
verdadeiras entradas, em geral precárias. O desenvolvimento econômico ou as
exigências administrativas mais que as condições naturais levam a navegação de
longo curso para Belém, São Luís, Amarração, Fortaleza, Natal, Paraíba e Recife.
Outros portos servem apenas à cabotagem. Tutóia franqueia o Parnaíba a
embarcações de maior porte.
A costa de Sudoeste desde Pernambuco até Santa Catarina arrima-se à Serra do
Mar, varia de aspecto, aqui extensões arenosas, além barreiras vermelhas,
encostas cobertas de matas, ou montanhas que arcam com as ondas. Nela existem
as maiores baías do Brasil: Todos os Santos, Camamu, Rio, Angra dos Reis,
Paranaguá. A navegação de alto bordo procura as capitais dos estados, exceto as
de Sergipe e Paraná, mais os portos de Santos, Paranaguá e S. Francisco do Sul.
Também neste trecho se encontram as maiores e mais numerosas ilhas, em geral
dentro de baías, todas de procedência continental.
A partir de Santa Catarina a costa se abaixa novamente; no Rio Grande do Sul
dominam lagunas, cujo extenso litoral interno poderá verdadeiramente prosperar
quando a arte der a saída franca que a natureza lhes negou para o oceano.
As ilhas de procedência vulcânica, Fernão de Noronha, fronteira ao Rio Grande do
Norte, Trindade, fronteira a Espírito Santo, pouco representam agora. Trindade
parece imprópria à ocupação permanente: a Inglaterra a disputou nos últimos
anos por se prestar ao amarradio de cabos transatlânticos.
A faixa marítima apresenta largura variável: em geral avantaja-se mais de
Pernambuco para o Pará, e no Rio Grande do Sul; no restante sua expansão
subordina-se aos caprichos da serra do Mar: temos aqui as chamadas costas
concordantes.
Ao Norte liga-se com a baixada do Amazonas, muito ampla à saída, relativamente
estreita entre Xingu e Nhamundá, amplíssima a Oeste do Madeira e do Negro até o
sopé dos Andes. As cachoeiras mais setentrionais do Tocantins, do Xingu, do
Tapajós e do Madeira balizam a baixada pela banda do Sul. Pela banda do Norte, a
Este do Negro, logo a algumas dezenas de quilômetros da foz, começa o trecho
encachoeirado nos rios que descem da Guiana. De Este a Oeste apresenta declive
insensível: mais desce o S. Francisco na cachoeira de Paulo Afonso do que o
Amazonas nos três mil quilômetros que vão de Tabatinga ao mar.
A baixada marítima liga-se ainda ao Sul com a do Paraguai que começa no
estatuário do Prata e prossegue até Mato Grosso. Cuiabá, na gema do continente,
pouco mais de duzentos metros terá de altitude. As margens do rio principal,
bastante altas no curso inferior, vão se abaixando à medida que se marcha para o
Norte, até uma região anualmente alagada por espaços de muitas léguas, o
chamado lago Xarais dos primeiros exploradores. Abundam aliás os lagos
marginais, conhecidos pela denominação de baías; por uma série de baías passa a
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linha lindeira com a Bolívia.
As baixadas amazônica e paraguaia, contínuas com a do oceano, aproximam-se
muito a Oeste: entre o Aguapeí, afluente do Jauru, tributário do Paraguai, e o
Alegre, afluente do Guaporé, um dos formadores do Madeira, inserem-se apenas
poucos quilômetros de distância. O governo português pensou em cortar este
varadouro por um canal que levaria do Prata ao Amazonas, e deste, aproveitando o
Cassiquiare, ao Orenoco, à ilha da Trinidad, ao mar das Antilhas.
A obra começada parou logo e parece inexeqüível, porque uma língua de terras
bastante altas aparece e se estende até Chiquitos, na Bolívia, produzindo um
desnivelamento pouco favorável.
As bacias do Amazonas e do Paraguai com os rios que as cortam, as ilhas
numerosas, os lagos consideráveis e os canais sem conta compensam até certo
ponto a pobreza do desenvolvimento marítimo, e são os verdadeiros mediterrâneos
brasileiros. A depressão do Paraguai reunida à do alto Amazonas separa dos Andes
as terras altas do Brasil, que a baixada amazônica ao Norte aparta do planalto da
Guiana, e a baixada marítima precede pelos outros lados. A partir do Jauru, o
Paraguai não recebe afluentes consideráveis em território brasileiro, à direita.
Desde o rio Uruguai o planalto brasileiro é limitado pela serra do Mar, áspera e
coberta de matas na falda voltada para o oceano, mais suave na parte interior, de
largura entre vinte e oitenta quilômetros, com picos que raramente passam de dois
mil metros. Serve de divisora das águas entre os rios que procuram diretamente o
Atlântico -em geral de pequeno curso, pois apenas dois, o Iguape e o Paraíba,
rompem a serra, e os outros são rios transversais ou de meia água- e os rios que se
destinam ao Prata, de muito maior extensão e cabedal: o Uruguai pertencente ao
Brasil pelos dois lados até Peperi-guaçu, limite com a Argentina, e pelo lado
esquerdo até Quaraím, limite com o Uruguai; o Iguaçu, com saltos de maravilhosa
beleza, no trecho em que a esquerda pertence à Argentina e a direita ao Brasil; o
Ivaí, próximo ao salto de Guairá; o Paranapanema, o Tietê, de tamanha significação
histórica, e outros afluentes orientais do Paraná.
Da serra do Mar desprende-se a da Mantiqueira, que mais pelo interior vai desde o
Estado do Paraná até Minas Gerais. Nela fica o pico mais alto do Brasil, o do
Itatiaia, com cerca de três mil metros de altitude. Vem depois a serra do Espinhaço,
que acompanha o rio S. Francisco pelo lado direito até ser cortada na grande curva
traçada a Nordeste por ele antes de se lançar no oceano. Ambas representam papel
somenos como divisoras das águas: a da Mantiqueira entre o Paraíba do Sul e o
alto Paraná, a do Espinhaço entre o S. Francisco, de que estreita a bacia ao
Oriente, logo depois de formado o rio das Velhas, e os rios de meia-água que se
dirigem ao mar: Doce, Jequitinhonha, Pardo, Contas, Paraguaçu.
Das alturas de Barbacena arranca uma lombada transversal no rumo aproximado
Este-Oeste que, com várias denominações, a trechos rigorosamente montanhosos,
alhures meramente denudada, é o maior divisor das águas dentro do planalto.
Chamou-a Serra das Vertentes o benemérito Eschwege, denominação excelente se,
deixada de parte a estrutura, se atender somente ao papel representado na América
do Sul. A um lado as águas vertem para o Paraná e para o Paraguai, ambos
nascidos nesta zona e, como o Uruguai, terminando o curso em território
estrangeiro; ao outro lado da vertente, correm os tributários do Madeira, objeto de
longas disputas desde que Manuel Félix de Lima, em 1742, foi pela primeira vez das
minas de Mato Grosso até a sua foz; o Tapajós, antigo caminho dos Cuiabanos para
a compra do guaraná entre os Maués; o Xingu, cujas más condições de
navegabilidade desviaram as explorações por muito tempo e deixaram viver até
poucos anos numerosas tribos indígenas em pura idade da pedra, cujo estudo
impulsionou poderosamente a etnografia sul-americana; o Araguaia-Tocantins, o
Parnaíba, o S. Francisco.
O S. Francisco, de grande importância histórica, é formado pelo rio que com este
nome desce da serra da Canastra, e pelo rio das Velhas. No trecho superior, os
afluentes mais consideráveis correm entre estas duas cabeceiras até sua
confluência; transposto o salto de Pirapora, a divisora das águas com o Tocantins
afasta-se e deixa que se desenvolvam o Paracatu, o Urucuia, o Carinhanha, o
Corrente, o Grande, ao passo que a serra do Espinhaço se aproxima. Desde a barra
do rio Grande para o mar, nem de uma, nem de outra margem concorre afluente
algum considerável; os embaraços encontrados pela navegação acumulam-se, e
tolheram as comunicações até ser transposto por uma via-férrea o trecho
encachoeirado.
O S. Francisco é, por assim dizer, a imagem de quase todos os rios do Brasil: no
planalto, apenas o volume de água o permite uma extensão de centenas de léguas,
às vezes, perenemente navegável por embarcações de maior ou menor capacidade;
em seguida, a descida do planalto com saltos e corredeiras, como os do Madeira, o
Augusto no Tapajós, o Itaboca no Tocantins, o Paulo Afonso no S. Francisco, e
tantos outros; finalmente, as águas se acalmam e aprofundam, e os embaraços de
todo desaparecem quando lhes sobra força suficiente para impedir a formação de
baixios na barra.
Deste tipo se apartam o Amazonas, cuja região tormentosa é vencida logo nas
cabeceiras, muito antes de entrar no Brasil, e seus afluentes situados a Oeste do
Madeira e do Negro, no chamado Solimões, nascidos todos em regiões pouco
elevadas e logo difundidos por grandes baixadas, quase niveladas. Em menores
dimensões reproduz-se o fato com o rio Paraguai e alguns de seus afluentes. O
Parnaíba e os rios do Maranhão, descendo suavemente por um declive graduado ao
longo do seu curso, apresentam uma forma de transição entre o tipo dos rios das
baixadas e dos chapadões.
As montanhas preparam e os rios esculpem no planalto brasileiro quatro divisões
bem distintas: o chapadão amazônico desde o Guaporé ao Tocantins; o do
Parnaíba, inserido entre o primeiro e o do S. Francisco, mais vasto, que alcança sua
maior expansão à margem esquerda desta bacia; finalmente o do Paraná-Uruguai,
entre a serra do Mar e as montanhas de Guaiás. As relações existentes entre estes
chapadões atuaram sobre o povoamento do território.
O planalto das Guianas apresenta outro chapadão elevado, com alguns picos
graníticos, poucos de mais de mil metros.
A Oeste alguns afluentes amazônicos nascidos fora do Brasil, o Içá, Japurá, Negro,
em seu trecho inferior correm por algum espaço paralelamente ao rio principal.
Pouco extensas, pouco navegáveis correntes de meia-água desembocam a Este do
Negro, descendo da borda meridional do chapadão das Guianas.
O rio das Amazonas vaza uma bacia de sete milhões de quilômetros quadrados, a
maior do globo, tamanha, quase, como o Brasil inteiro. Sangram para ela grandes
partes dos planaltos brasileiro, guianês e andino; como a quadra das chuvas não cai
em todos eles ao mesmo tempo, sucede que quando começam a baixar os
afluentes de um enchem os do outro lado, e a vazante nunca se completa. Às
vezes tanto se avoluma o rio-mar que represa os tributários e por seus furos manda-
lhes água a muitos quilômetros da foz. Os lagos marginais, as ilhas numerosas, os
furos, os paranamirins permitiram navegar desde o oceano até os confins do país
sem nunca penetrar na madre. Suas inundações alcançam quase vinte metros
acima do nível ordinário; por cima das florestas podem então passar embarcações,
das quais algumas semanas antes mal se avistava o topo do arvoredo. O Amazonas
corre de Oeste para Este, acompanhando a equinocial, e seu clima pode dizer-se
proximamente o mesmo em toda esta extensão: genuinamente tropical, pouco
variável, sem diferenças sensíveis de temperatura, de atmosfera úmida,
abundantemente chuvosa, máxime junto do mar e perto dos Andes. A maior ou
menor freqüência relativa de chuvas se designa pelos nomes de verão e inverno; de
inverno pode dar idéia aproximada, pelo lado da temperatura, o ligeiro refrigério
sentido à noite.
Ao Sul do Amazonas, entre os rios Parnaíba e São Francisco, estende-se uma zona
periodicamente flagelada por secas. Quando as estações correm regularmente
leves chuveiros, chamados de caju, à passagem do sol para o Sul; chuvas maiores
caem antes ou depois do equinócio de março; São João é fins d'água. No caso
contrário secam os rios, exceto em alguns poços e depressões, murcham os pastos,
permanecem nuas as árvores, sucumbe o gado à sede ou à inanição, e a gente
morre à fome quando só dispõe dos recursos locais. A necessidade de lutar contra a
calamidade inspirou a construção de açudes, a cultura das vazantes, a retirada do
gado, a distribuição de ramas para alimentá-lo, as grandes levas de retirantes.
À beira-mar entre o Oiapoque e o Parnaíba, e do S. Francisco para o Sul domina
igualmente o clima tropical até Santa Catarina: em alguns trechos quase todos os
meses do ano chove, em outros intervêm estiadas maiores, em geral subordinadas
à marcha solar.
A distância do equador avulta as diferenças termométricas, aliás contidas em
extremos pouco apartados. Com o solstício de junho, pouco antes ou pouco depois,
coincidem o maior abaixamento termométrico e a diminuição nos precipitados
atmosféricos.
No Rio Grande do Sul as estações fria e quente aparecem melhor delimitadas, as
variações de temperatura tornam-se mais notáveis, e a estação das águas tende a
emparelhar-se com a do frio.
Isto se refere ao litoral. No interior do país, reina também o clima tropical,
modificado mais ou menos por fatores locais e revestindo certa feição continental.
Geralmente chove no sertão menos que à beira-mar; as estações seca e úmida
andam mais nitidamente discriminadas; o ar do planalto, facilmente aquecível
durante o dia em conseqüência de sua pouca densidade, rapidamente esfria à noite
pelo mesmo motivo, produzindo às vezes variações bruscas no decurso de vinte e
quatro horas.
Também aqui as chuvas compassam-se pelo sol: em vários pontos uma estação
úmida menor e anterior, outra maior e posterior ao solstício de dezembro.
Na depressão amazônica associam-se o calor e a umidade, a vegetação atinge o
máximo desenvolvimento, alardeia-se grande mata terreal.
A luta pelo ar e pela luz arremessa as plantas para cima, repelem-se nas alturas as
copas do arvoredo, árvores possantes viram trepadeiras, cruzam-se lianas em todos
os sentidos. Plantas sociais como a imbaúba e a monguba constituem exceção; em
regra numa superfície dada cresce o maior número possível de espécies diferentes.
Pouco influi sobre a fisionomia do conjunto a distância do oceano; muito mais atua o
apartamento do rio: no caa-igapó, sujeito à inundação ânua, avultam palmeiras,
muitas delas espinhosas, reduz-se o porte das árvores; no caa-eté, sobranceiro a
ela, culminam gigantes vegetais triunfam dicotiledôneas e epífitos; mais adiante
começam os xerófitos.
A região flagelada pela seca possui também matas, porém solteiras, nas serras
capazes de condensarem vapores atmosféricos, nas margens dos rios, em lugares
favorecidos pela umidade do subsolo. De dimensões restritas, sustentam a outros
respeitos o confronto com as das regiões mais felizes; não representam, entretanto,
fielmente a feição dominante.
Desde a Bahia começa a mata virgem contínua, e com os mesmos caracteres orla a
borda oriental da serra do Mar: troncos eretos, ramificação muita acima do solo,
folhagem sempre verdejante, variedade de espécies dentro de pequenas áreas,
abundância de epífitos. Os acidentes topográficos introduzem aqui na paisagem
uma variedade golpeante, desconhecida na monotonia intérmina da Amazônia.
Além da serra do Mar abrem-se os campos, vastas extensões ocupadas por
gramíneas e ervas mais ou menos rasteiras.
Onde a altitude o permite surgem araucárias; em certos pontos adensam-se capões,
cujo nome indígena está indicando a forma circular. Os campos do Sul explicam
alguns pela baixa temperatura durante o período germinativo. Ao Norte existem
igualmente campos, cuja explicação parece outra: o solo, muito quente e pouco
úmido, requeimando as sementes das árvores, rouba-lhes a vitalidade.
Catinga, carrasco, cerrado, agreste designam todos várias formas de vegetação
xerófila, caracterizada pelas raízes às vezes muito profundas, munidas muitas de
bulbo que prende a água, pelo tronco áspero, gretado, exíguo, esgalhado, como se
procurasse para os lados o desenvolvimento que lhe foge na vertical, pelas folhas
mais ou menos miúdas, que caem numa parte do ano para melhor resistir à seca,
limitando a evaporação.
Na região das secas esta forma de vegetação chega quase à beira-mar; em quase
todos os estados existe, mais ou menos, testemunho e efeito do clima continental. O
povo brasileiro, começando pelo Oriente a ocupação do território, concentrou-se
principalmente na zona da mata, que lhe fornecia pau-brasil, madeira de construção,
terrenos próprios para cana, para fumo, e, afinal, para café. A mata amazônica
forneceu também o cravo, o cacau, a salsaparrilha, a castanha e, mais importante
que todos os outros produtos florestais, a borracha. Os campos do Sul produzem
mate. Nos do Norte, em geral, e nas zonas de vegetação xerófila, plantam-se
cereais ou algodão e pasta o gado. A obra do homem chama-se capoeira: terreno
privado da vegetação primitiva, ocupado depois por vegetais adventícios cuja
fisionomia ainda não assumiu feição bem caracterizada. Os capoeirões podem dar a
ilusão de verdadeiras matas.
A fauna do Brasil é muita rica em insetos, reptis, aves, peixes, e pequenos
quadrúpedes. São formas características as emas, os papagaios, os beija-flores, os
desdentados, os marsúpios, os macacos platirrínios.
Na baixada litorânea, muitas formas de moluscos, peixes e aves comuns ao
Atlântico do Sul; o colorido de alguns por tal modo se assemelha à areia que custa
descobri-los em repouso.
A fauna da mata apresenta, ao contrário, o colorido mais vistoso, principalmente nas
borboletas, que às vezes atingem tamanho enorme, e nas aves. A maior parte das
espécies adaptou-se à vida arbórea, e algumas, como a arcaica preguiça, vão
desaparecendo com as derrubadas.
«Mais pálida em colorido e fraca em força numérica é a fauna do sertão» lembra
Goeldi. Suntuoso uniforme de gala nos descampados não seria desejável nem
proveitoso. Para os animais sertanejos é demais vantagem a sua roupa branco-
amarelada e monótona que no meio do capim se conserva neutra entre a cor do
solo e o colorido da macega torrada pelo sol.
Se por um lado, no litoral, é aparelho útil a asa comprida, apropriada ao vôo
persistente, e, por outro lado, o trepador, para o morador da mata, torna-se
precioso dote para formas animais que vivem correndo pelo solo uma perna
comprida e capaz de corresponder a fortes exigências. estão para atestá-lo a
seriema de alto coturno e a gigantesca ema. O próprio lobo brasileiro muniu-se,
além de umas orelhas grandes, a modo de chacal do deserto, de longas pernas a
feitio de galgo.
Entre estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para colaborar na
evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte;
apenas domesticou um ou outro, os mimbabas da língua geral, -em maioria aves,
principalmente papagaios, para recreio. De caça e principalmente de pesca era
composta sua alimentação animal. Possuía agricultura incipiente, de mandioca, de
milho, de várias frutas. Como eram-lhe desconhecidos os metais, o fogo, produzido
pelo atrito, fazia quase todos os ofícios do ferro. A plantação e colheita, a cozinha, a
louça, as bebidas fermentadas competiam às mulheres; encarregavam-se os
homens das derrubadas, das pescarias, das caçadas e da guerra.
As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois
vigorava a idéia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente com a da terra no
processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas
rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito
vulgarizada: algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos, eis a
diferença.
Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender
folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em
contínuas mudanças, necessitadas pela escassez dos animais próprios à
alimentação.
De rixas minúsculas surgiam separações definitivas; grassava uma fissiparidade
constante. Tradição muito vulgarizada explicava grandes migrações por disputas a
propósito de um papagaio.
O chefe apenas possuía autoridade nominal. Maior força cabia ao poder espiritual.
Acreditavam em seres luminosos, bons e inertes, que não exigiam culto, e poderes
tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar para apartar sua cólera e
angariar-lhes o favor contra os perigos: eram as almas dos avós. Entre eles
contava-se o curador, pagé ou caraíba, senhor da vida e da morte, que ressuscitara
depois de finado, e não podia mais tornar a morrer.
Tinham os sentidos mais apurados, e intensidade de observação da natureza
inconcebível para o homem civilizado. Não lhes faltava talento artístico, revelado em
produtos cerâmicos, trançados, pinturas de cuia, máscaras, adornos, danças e
músicas.
Das suas lendas, que às vezes os conservavam noites inteiras acordados e atentos,
muito pouco sabemos: um dos primeiros cuidados dos missionários consistia e
consiste ainda em apagá-las e substituí-las.
Falavam línguas diversas, quanto ao léxico, mas obedecendo ao mesmo tipo: o
nome substantivo tinha passado e futuro como o verbo; o verbo intransitivo fazia de
verdadeiro substantivo; o verbo transitivo pedia dois pronomes, um agente e outro
paciente: a primeira pessoa do plural apresentava às vezes uma flexão inclusiva e
outra exclusiva; no falar comum a parataxe dominava. A abundância e flexibilidade
dos supinos facilitaram a tradução de certas idéias européias.
Fundada no exame lingüístico a etnografia moderna conseguiu agregar em grupos
certas tribos mais ou menos estreitamente conexas entre si. No primeiro entram os
que falavam a língua geral, assim chamada por sua área de distribuição.
Predominavam próximo de beira-mar, vindos do sertão, e formavam três migrações
diversas: a dos Carijós ou Guaranis, desde Cananéia e Paranapanema para o Sul e
Oeste; os Tupiniquins, no Tietê, no Jequitinhonha, na costa e sertão da Bahia, na
serra da Ibiapaba; os Tupinambás no Rio de Janeiro, a um e outro lado baixo S.
Francisco até o Rio Grande do Norte, e do Maranhão até o Pará. O centro de
irradiação das três migrações deve procurar-se entre o rio Paraná e o Paraguai.
Nos outros grupos falavam-se as línguas travadas: os Gés, representados pelos
Aimorés ou Botocudos próximo do mar, e ainda hoje numerosos no interior; os
cariris disseminados do Paraguaçu até Itapecuru e talvez Mearim, em geral pelo
sertão, conquanto os Tremembés habitassem as praias do Ceará; os Caraíbas,
cujos representantes mais orientais o os Pimenteiras, no Piauí, ainda hoje
encontrados no chapadão e na bacia do Amazonas; os Maipure ou Nu-Aruaque,
que desde a Guiana penetraram até o rio Paraguai e ainda aparecem nas cercanias
de sua antiga pátria, e até no alto Purus; os Panos, os Guaicurus, etc., etc.
Se abstrairmos do Amazonas, onde havia muitos Maipure e não poucos Caraíbas,
os Tupis e os Cariris foram incorporados em grande proporção à atual população
do Brasil.
Os Cariris, pelo menos na Bahia e na antiga capitania de Pernambuco, já ocupavam
a beira-mar quando chegaram os portadores da língua geral. Repelidos por estes
para o interior, resistiram bravamente à invasão dos colonos europeus, mas os
missionários conseguiram aldear muitos e a criação de gado ajudou a conciliar
outros. Talvez provenha dos Cariris a cabeça chata, comum nos sertanejos de
certas zonas.
Se agora examinarmos a influência do meio sobre estes povos naturais, não se
afigura a indolência o seu principal característico. Indolente o indígena era sem
dúvida, mas também capaz de grandes esforços, podia dar e deu muito de si. O
principal efeito dos fatores antropogeográficos foi dispensar a cooperação.
Que medidas conjuntas e preventivas se podem tomar contra o calor? qual o
incentivo para condensar as associações? como progredir com a comunidade
reduzida a meia dúzia de famílias?
A mesma ausência de cooperação, a mesma incapacidade de ação incorporada e
inteligente, limitada apenas pela divisão do trabalho e suas conseqüências, parece
terem os indígenas legado aos seus sucessores.
2 - FATORES EXÓTICOS
Ao começar o século XVI, Portugal labutava na transição da idade média para a era
moderna. Coexistiam em seu seio duas sociedades completas, com sua hierarquia,
sua legislação e seus tribunais; mas a sociedade civil o professava mais a
superioridade transcendente nem se sujeitava à dependência absoluta da Igreja,
despida agora de muitas de suas históricas prerrogativas, obrigada a reduzir muitas
de suas pretensões.
O Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças de seus
tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios debatidos entre clérigos,
punia um eclesiástico se, depois de degradado, era-lhe entregue por seus
superiores ordinários, respeitava o direito de asilo nos templos e mosteiros para os
criminosos cujas penas eram de sangue, abstinha-se de cobrar impostos do clero.
A Igreja dominava soberana pelo batismo, tão necessário à vida civil como à
salvação da alma; pelo casamento, que podia permitir, sustar ou anular com
impedimentos dirimentes; pelos sacramentos, distribuídos através da existência
inteira; pela excomunhão, que incapacitava para todos eles; pelo interdito, que
separava comunidades inteiras da comunicação dos santos; pela morte, permitindo
ou negando sufrágios, deixando que o cadáver descansasse em lugar sagrado junto
aos irmãos ou apodrecesse nos monturos em companhia dos bichos; dominava pelo
ensino, limitando e definindo as crenças, extremando o que se podia do que não era
lícito aprender ou ensinar.
Contra ela, na esfera estreita ainda em que firmara sua competência, depois de
lutas com o papado e com o clero indígena, o Estado empregava o placet para os
documentos emanados do sólio pontifício, os juízes da coroa para resguardar certos
órgãos essenciais ao exercício normal da soberania plena, as leis de amortização
para limitar as aquisições prediais, as temporaridades para abolir certas
resistências. Em compensação, repartia sua jurisdição com o outro poder em casos
por isso chamados mixti fori, prestava o braço secular para executar, até com morte
violenta, os condenados pelo juízo eclesiástico, duramente castigava certos atos
porque a Igreja os considerava pecaminosos; em suma, o mesmo que hoje os
interesses econômicos ou fiscais, pesavam então inspirações religiosas e
considerações eclesiásticas.
Apesar de tudo ocorriam freqüentes atritos entre a Igreja e o Estado, aquela
disposta a abrir o menos possível mão de suas atribuições antigas, este
conquistando ou assumindo sempre novas faculdades, para arcar com os
problemas crescentes, legados onerosos do regime medieval, exigências inadiáveis
de uma situação transformada pelo comércio fortalecido, pelas comunicações
amiudadas, pela indústria renascente, pela renovação intelectual, pela circulação
metálica em luta contra a economia naturista, rasgando horizontes mundiais.
Como o papa, cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se o sujeito jurídico da
sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus poderes não admitiam
fronteiras definíveis, invocados como um princípio de eqüidade superior, como
remédio a casos excepcionais, graves e imprevistos. De outros poderes suscetíveis
de definição, podia fazer uso mais ou menos completo, e aliená-los em parte.
Era direito real bater moeda, criar capitães na terra e no mar, fazer oficiais de
justiça, do ínfimo ao pino da carreira, declarar guerra, chamando o povo às armas
com os mantimentos necessários. Para seu serviço el-rei tomava carros, bestas e
navios dos súditos; pertenciam-lhe as estradas e as vias públicas, os rios
navegáveis, os direitos de passagens de rios, os portos de mar com as portagens
neles pagas, as ilhas adjacentes ao Reino, as rendas das pescarias, das marinhas,
do sal, as minas de ouro, prata e quaisquer outros metais, os bens sem dono, os
dos malfeitores de certos crimes. Nele se concentrava toda a faculdade legislativa:
os votos das Cortes valiam com o seu assenso e enquanto lhe aprazia, pois as
disposições mais precisas podia dispensar, especificando-as; juízes e tribunais eram
delegações do trono.
Abaixo do rei estava a nobreza, numerosa em famílias como nas distinções que
separavam umas de outras, compreendendo desde os senhores donatários, com
honras, coutos e jurisdição, e os grão-mestres das ordens militares, cujo mestrado o
rei houve por bem afinal assumir, até simples cavaleiros e escudeiros. Seu poderio
fora grande; agora contentava-se com o monopólio dos cargos públicos, com o
papel saliente nos tempos de guerra ou nos conselhos da coroa, com a situação
privilegiada nas questões penais, em que o título de nobre defendia dos tormentos
ou acarretava diminuição de pena. A nobreza não era uma casta exclusiva; davam
para ela várias portas, entre as quais a das letras.
Abaixo da nobreza acampava o povo, a grande massa da nação, sem direitos
pessoais, apenas defendidos seus filhos por pessoas morais a que se acostavam,
lavradores, mecânicos, mercadores; os de mor qualidade chamavam-se homens
bons, e reuniam-se em câmaras municipais, órgãos de administração local, cuja
importância, então e sempre somenos, nunca pesou decisivamente em lances
momentosos, nem no Reino, nem aqui, apesar dos esforços de escritores nossos
contemporâneos, iludidos pelas aparências fugazes ou cegados por idéias
preconcebidas.
Abundavam pessoas morais a que o povo se podia filiar -corporações limitadas
como as de moedeiros e bombardeiros, coletividades maiores como os cidadãos do
Porto. Os privilégios inerentes a estes foram outorgados a várias cidades do Brasil,
Maranhão, Bahia, Rio e São Paulo, pelo menos; pelo que encerram, dão bem a
idéia de direitos regateados a quem tinha apenas para socorrer-se a mera qualidade
de ser humano.
A estes felizes cidadãos do Porto concedeu dom João II:
que não fossem metidos a tormentos por nenhuns malefícios que tivessem feito,
cometido e cometessem e fizessem daí por diante, salvos nos feitos e daquelas
qualidades e nos modos em que o devem ser e são os fidalgos do reino e senhores;
que não pudessem ser presos por nenhum crime, somente sobre suas menagens e
assim como o são e devem ser os fidalgos;
que pudessem trazer e trouxessem por todos os seu reinos e senhorios quais e
quantas armas lhes aprouvesse de noite e de dia, assim ofensivas como defensivas;
que não pousassem com eles nem lhes tomassem suas casas de moradas, adegas,
nem cavalariças, nem suas bestas de sela, nem outra nenhuma coisa de seu contra
suas vontades e lhes catassem e guardassem muito inteiramente suas casas, e
houvessem com elas e fora delas todas as liberdades que antigamente haviam os
infanções e ricos homens;
que os serviçais agrícolas só fossem à guerra com os patrões.
Abaixo do terceiro estado havia ainda os servos, escravos, etc., etc., cujo direito
único cifrava-se em poderem, dadas circunstâncias favoráveis, passar à classe
imediatamente superior, pois, conquanto rentes as separações, as classes nunca se
transformaram em castas.
Os três braços do clero, da nobreza e do povo, convocados em ocasiões solenes e
a intervalos arbitrários, constituiram as Cortes. Meramente consultivas, ou por igual
deliberativas? Liquidem entre si este ponto os eruditos de além-mar; fora de dúvida
valeram enquanto os reis consideraram reinar como um ofício e precisaram de
recursos pecuniários para os quais não eram suficientes os copiosos direitos reais.
A prosperidade e o povoamento do Brasil provaram fatais a esta venerável
instituição. Por uma coincidência nada fortuita, reuniram-se as últimas cortes em
1697, quando o ouro das Gerais começava a deslumbrar o mundo, e reviveram
com a revolução francesa, as guerras napoleônicas e a independência real do
Brasil, depois de trasladada para aqui a sede da monarquia portuguesa.
Em 1527 a soma total dos fogos em todo o Reino andava por duzentos e oitenta mil
quinhentos e vinte e oito; dando a cada um destes números de quatro indivíduos, a
população do Reino seria naquele ano de um milhão e cento e vinte dois mil cento e
doze almas. Com este pessoal exíguo, que não bastava para enchê-lo, ia Portugal
povoar o mundo. Como consegui-lo sem atirar-se à mestiçagem?
A agricultura estava atrasada no Reino; Damião Góis, explicando em 1541 à opinião
letrada da Europa a razão dos seus atrasos em Portugal e Espanha, afirma ser a
fertilidade espontânea do solo tamanha que a maior parte do ano os escravos e os
homens pobres se podem sustentar lautamente de frutos silvestres, mel e ervas, o
que os faz pouco propensos ao trabalho agrícola.
Alguns traços tomados ao livro de Costa Lobo mostrarão o caráter dominante do
povo ao começar a era dos descobrimentos.
O português do século XV era fragueiro, abstêmio, de imaginação ardente,
propenso ao misticismo, caráter independente, não constrangido pela disciplina ou
contrafeito pela convenção; o seu falar era livre, não conhecia rebuços nem
eufemismos de linguagem.
A têmpera era rija, o coração duro. As cominações penaiso conheciam piedade.
A morte expiava crimes tais como o furto do valor de um marco de prata. Ao
falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo, e o confisco de todos os bens.
Com a rudeza de costumes que assinala aqueles tempos, a segurança da própria
pessoa, família e haveres, dependia em grande parte da força e energia individual;
daí freqüentes homizios, agressões, feridos e mortes que habituavam à
contemplação da violência e da dor, infligida ou recebida. O espetáculo de penar
não repugnava, porque ninguém tinha em muita conta o padecimento físico.
Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caráter perverso não tinham nesses
tempos semelhante significação. O mal que elas causavam não se reputava
demasia, todos estavam sujeitos a padecê-lo. Mas se a dor física ou moral
alcançava molificar a rigeza da índole inacostumada à paciência e à reflexão ou se a
paixão a inflamava, então o sentimento irrompia em clamores, prantos e contorsões,
semelhando os meneios da demência furiosa.
À dureza da têmpera correspondia extensamente um aspecto agreste, a força
muscular era tida em grande apreço. Cercear com um revés de montante uma
perna de boi por meia coxa ou decepar-lhe quase todo o pescoço eram feitos dignos
de recordação histórica.
Ao português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena.
A importação começou desde o estabelecimento das capitanias e avultou nos
séculos seguintes, primeiro por causa da cultura da cana, mais tarde por causa do
fumo, das minas, do algodão e do café. Depois da supressão do tráfico em 1850, o
café provocou deslocações consideráveis na distribuição interna; o mesmo efeito
produziu a abolição.
Os primeiros negros vieram da costa ocidental, e pertencem geralmente ao grupo
banto; mais tarde vieram de Moçambique. Sua organização robusta, sua resistência
ao trabalho indicaram-nos para as rudes labutas que o indígena não tolerava.
Destinados para a lavoura, penetraram na vida doméstica dos senhores pela ama
de leite e pela mucama, e tornaram-se indispensáveis pela sua índole carinhosa. A
mestiçagem com o elemento africano, ao contrário da mestiçagem com o
americano, era vista com certa aversão, e inabilitava para certos postos. Os mulatos
não podiam receber as ordens sacras, por exemplo: daí o desejo comum de ter um
padre na família, para provar limpeza de sangue. Com o tempo os mulatos
souberam melhorar de posição e por fim impor-se à sociedade. Quando reuniam a
audácia ao talento e à fortuna alcançaram altas posições.
O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e do índio
sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se instituição
nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se fora das senzalas. As mulatas
encontraram apreciadores de seus desgarres e foram verdadeiras rainhas. O Brasil
é inferno dos negros, purgatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em
1711 o benemérito Antonil.
3 - OS DESCOBRIDORES
A posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima, e data da dominação
romana o conhecimento de ilhas alongadas ao Ocidente. Tradições árabes
memoram os Mogharriun, partidos de Lisboa à cata de aventuras. A restauração
cristã produziu uma marinha nacional, que alentaram e tornaram próspera a escolha
da barra do Tejo para escala da carreira de Flandres, e a vinda de catalães e
italianos chamados a ensinar a náutica e a técnica. A expedição contra Ceuta em
1415 reuniu já centenas de embarcações e milhares de marinheiros.
Depois de tomada esta cidade à mourisma infiel, atiraram-se os conquistadores
para terras africanas. Navios mandados do Algarve perlongaram o litoral
marroquino, conjuraram os terrores do cabo Não, iluminaram o Saara nos bulcões
do mar Tenebroso, descobriram rios caudalosos, tratos povoados, e as ilhas de
Cabo Verde, verdes dentro na zona tórrida, inabitável pelo calor como o seu nome
apregoava, inabitável por sentença unânime dos filósofos antigos, apanhados agora
pela primeira vez em falsidade flagrante. Culmina nesta fase heróica o infante d.
Henrique, filho de d. João I, e grão-mestre da Ordem de Cristo. Dominava-o de um
lado o desejo de alargar as fronteiras do mundo conhecido, de outro a esperança de
alcançar um ponto onde fenecesse o poderio do Crescente. Talvez reinasse
Preste João, o lendário imperador-sacerdote; de os dadas realizariam a cruzada
suprema contra os inimigos hereditários da Cristandade, expulsos de quase toda
a Espanha, mais poderosos que nunca nas terras e mares orientais.
O decurso dos descobrimentos precisou as aspirações confusas do princípio. Nos
últimos anos do infante desenhou-se o problema da Índia, vaga expressão
geográfica aplicada a todos os países distribuídos da saída do mar Vermelho ao
reino de Catai e à ilha de Cipango. Os rios possantes do continente agora
conhecido, como a franquearem vias de penetração indefinida, a direção meridional
da costa, como a encurtar as distâncias, os numerosos dizeres de prestigiosas
cartas geográficas como a balisarem o percurso a fazer-se, sugeriam a possibilidade
de chegar por novo caminho; e novo caminho era urgente, pois se na Europa
germano-latina continuava forte a procura de especiarias, estofos, rolas finas,
pedras preciosas, madeiras raras, de produtos indianos, em uma palavra, as
potências muçulmanas, assentes nas estradas histórias que vinham dar no
Mediterrâneo, cada dia aumentavam as exigências e requintavam de insolência,
espoliando os intermediários do comércio do Levante, e atormentando os
consumidores ocidentais.
A idéia de chegar à Índia atravessando a África, depois de ligeiras tentativas, foi
abandonada. Pensou-se lograr o mesmo resultado circunavegando o continente
negro. Contra este plano insurgia-se o veto de Ptolomeu, afirmando a ligação da
Ásia e África ao Sul, como no istmo de Suez ao Norte, fechando por aquela parte o
mar das Índias e transformando-o em mediterrâneo. Mas ainda em dias de d.
Henrique um cartógrafo italiano protestou contra as afirmações categóricas do
astrônomo alexandrino, e o descobrimento de Cabo Verde, o contacto direto com a
zona tórrida tinham começado a emancipar os espíritos, patenteando que o simples
fato de proceder da antigüidade não consagra inviolável e intangível qualquer
proposição.
Enquanto se concatenavam estas noções incertas formulou-se outra solução do
problema, mencionada em escritores gregos e latinos, e apoiada em autoridades
sagradas e pagãs. E idêntico, postulava, o oceano ocidental da Europa e o oceano
oriental da Ásia; segundo as escrituras o espaço ocupado pelos mares representa
apenas uma fração mínima comparado à terra firme, e como o nosso planeta é
esférico, o caminho lógico e mais breve para a Índia consiste em lançar-se
impavidamente ao oceano, amarar-se tanto para o poente até chegar ao nascente.
Tal viagem, além de mais breve, seria mais cômoda, pois ilhas esparsas pontuavam
a derrota, algumas delas tamanhas como a Antilha, representada nos portulanos
mais fidedignos.
Cristóvão Colombo apresentou tal plano como novo aos portugueses, que não o
aceitaram; menos experientes, os espanhóis acolheram o nauta genovês e deram-
lhe os meios de executá-lo.
Partindo em 1492, descobriu algumas ilhas e anos mais tarde o continente
cobiçado, o reino do grão Khan, segundo supunha.
Entre a morte de d. Henrique e o reinado de d. Afonso V (1460-1481) se não
arrefeceu o movimento descobridor, prosseguiu com muito menor brilho: a elevação
de d. João II ao trono deu-lhe vida e calor. Terminava a terra conhecida no cabo de
Santa Catarina; S.; com poucos anos avançou-se vitoriosamente para o trópico;
em 1487 Bartolomeu Dias tornou com a notícia de ter alcançado o fim do continente
africano. de volta, no extremo Sul, quase perdera-se junto a um cabo e por isso
chamou-o das Tormentas. Das Tormentas, não! protestou o rei de Portugal; da Boa
Esperança.
Mais que esperança, sentia certeza agora de gozar breve do resultado de tantos
esforços. E tanta confiança nutria d. João II de estar afinal achado o caminho da
Índia que não procedeu as novas verificações. Preparou-se com toda a calma,
construindo navios aptos para os mares agitados do Oriente; fundiu artilharia capaz
de lutar contra os potentados indianos e os navios árabes; emissários seus visitaram
o mar Vermelho, o golfo Pérsico, a costa oriental da África, a costa de Malabar,
inquirindo, observando, reunindo notícias frescas e fidedignas sobre o comércio, a
navegação. Um deles, Pero de Covilhã, esteve no reino de Preste João,
originariamente procurado na Ásia central, encarnado agora no dinasta da Abissínia.
D. João II nada confiou do acaso. A volta triunfal de Colombo em 1493 pouco influiu
sobre os planos do rei. Se protestou contra a divisão do mundo promulgada por
Alexandre VI, julgando postergados seus direitos; se mandou alguma expedição
clandestina ao Ocidente, como parece verificado; bastaram o aspecto dos naturais e
sua barbárie visível, os produtos recolhidos e os países descobertos, tão diferentes
de tudo o que os seus emissários vinham de apurar, parao lhe deixarem dúvidas
de que a Índia procurada pelos portugueses não se confundia com a Índia achada
pelos espanhóis. Ao falecer em 1495, o Príncipe Perfeito deixou ao seu sucessor, d.
Manuel, o simples trabalho de saborear o fruto sazonado. Do mesmo modo Vasco
da Gama apenas continuou a senda dez anos antes aberta por Bartolomeu Dias
(1497-1499).
A chegada de Vasco da Gama com as embarcações carregadas de lídimos
produtos indianos mostrou a sabedoria e a previdência de d. João II, preferindo a
qualquer outro o caminho indicado pelo cabo de Boa Esperança; sobre os
espanhóis não parece ter exercido igual impressão, pois continuaram no mesmo
empenho primitivo de chegar ao Oriente navegando sempre para o Ocidente.
Temos, pois, duas correntes históricas bem definidas, originárias ambas da
península ibérica: uma ocidental, outra meridional. Desembocaram ambas no Brasil.
Seguindo a corrente ocidental, apenas procuraram baixas latitudes os espanhóis
cortaram a linha, e alcançaram o hemisfério do Sul com Vicente Yañez Pinzon.
Seguindo a corrente do Sul, os portugueses, induzidos a amarar-se à procura de
ventos mais francos para dobrar o cabo, encontraram a zona dos alísios e vieram
dar no hemisfério ocidental com Pedro Álvares Cabral. Ambos os casos ocorreram
no mesmo ano.
Interessa-nos apenas Pedr'Álvares.
Comandando uma armada de treze navios partiu de Belém segunda-feira, 9 de
março de 1500. O domingo passara-se em festas populares. O rei tivera a seu lado
na tribuna o capitão-mor, pusera-lhe na cabeça um barrete bento mandado pelo
papa, entregara-lhe uma bandeira com as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo,
a Ordem de d. Henrique, o descobridor. Sentia-se bem a importância desta frota, a
maior saída até então para terras alongadas.
Mil e quinhentos soldados, negociantes aventurosos, aventureiros mercadorias
variadas, dinheiro amoedado, revelavam o duplo caráter da expedição: pacífica, se
na Índia preferissem a lisura e o comércio honesto, belicosa, se quisessem recorrer
às armas. Alguns franciscanos, tendo por guardião frei Henrique de Coimbra,
comunicavam ao conjunto a sagração religiosa.
A 14 foram avistadas as Canárias, a 22 as ilhas de Cabo Verde. Um mês mais
tarde, a 21 de abril, boiaram ervas marinhas muito compridas, sinais de proximidade
de terra, no dia seguinte confirmados por aves, e realizados à tarde. «Neste dia, a
horas de véspera, houvemos vista de terra: primeiramente dum grande monte mui
alto e redondo e doutras serras mais baixas do Sul delle, e de terra chã com
grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão poz nome monte Paschoal»,
escreve Pero Vaz de Caminha, testemunha de vista, escrivão da feitoria a fundar em
Calecut. Ao sol posto surgiram em 23 braças, ancoragem limpa. O monte Pascoal,
no Estado da Bahia, é visível a mais de sessenta milhas do mar.
Na quinta-feira continuou a derrota lenta e cuidadosamente, indo os navios menores
adiante, sondando.
A distância de meia légua, em direito à boca de um rio, fundearam. Nicolau Coelho,
companheiro de Vasco da Gama, desembarcou e pôde observar alguns naturais,
atraídos pela curiosidade, dar e receber presentes.
Um sudoeste acompanhado de chuvaceiros mostrou a conveniência de procurar
situação mais abrigada. Sexta-feira velejaram para o Norte, os navios maiores mais
afastados, os navios menores mais chegados à terra; ao pôr do sol, em distância de
dez léguas, encontraram um recife, abrigando um porto de larga entrada. «Ao
sabbado pela man mandou o capitão fazer vella, e fomos demandar a entrada, a
qual era muito larga e alta, 6 e 7 braças, e entraram todalas naus dentro e
ancoraram-se em 5 e 6 braças, a qual ancoragem dentro é tão grande e tão fremosa
e tão segura que podem jazer dentro mais de duzentos navios e naus». O nome de
Porto-Seguro, dado pelo capitão-mor, resume bem suas impressões; ainda o
conserva uma localidade vizinha.
Em um ilhéu da baía, construído um altar, cantou-se missa domingo da Pascoela,
26. Frei Henrique pregou sobre o evangelho do dia. A ressurreição do Salvador, as
aparições misteriosas aos discípulos, a incredulidade de Tomé, o apóstolo das
Índias, diziam bem com sua situação estranha. No fim da pregação o frade «tratou
da nossa vinda, e do achamento desta terra, conformando-se com o signal da cruz,
sob cuja obediência viemos». A bandeira de Cristo com que o capitão-mor saiu de
Belém esteve sempre alta à parte do Evangelho.
Reuniram-se a bordo da capitânea os comandantes dos outros navios, e o capitão-
mor perguntou se conviria mandar a el-rei a nova do achamento da terra pelo navio
de mantimentos, para S. A. a mandar descobrir. Concordaram que sim. Os dias
seguintes passaram-se na baldeação dos gêneros e na lavrança de uma cruz para
assinalar a posse tomada em nome da coroa de Portugal.
A cruz foi chantada a 1 de maio: a 2, partiram o navio mandado ao Reino e a
poderosa frota para a Índia, deixando lacrimosos dois degradados incumbidos de
inquirirem da terra e irem aprendendo a língua; alguns marujos desertaram,
segundo parece.
As seguintes palavras de Caminha representam as reflexões de um espírito superior
ante esses dias e espetáculos extraordinários:
N'ella [terra] até agora não podemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma
cousa de metal, nem de ferro lho vimos; pero a terra em si é de muitos boos ares
assi frios e temperados como os d'antre Doiro e Minho, porque n'este tempo de
agora assi os achavamos como os de lá; águas são muitas infindas e em tal
maneira é graciosa que querendo a aproveitar dar-se-á n'ella tudo por bem das
aguas que tem; pero o melhor fruito que n'nella se pode fazer me parece que será
salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ella
deve lançar, e que hi non houvesse mais ca ter aqui esta pousada pera esta
navegação de Calecut abastaria, quanto mais disposição para se n'ella cumprir e
fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, s. o acrescentamento de nossa santa fé.
A vantagem da situação geográfica da nova terra para as navegações da Índia, o
modo de aproveitá-la trazendo sementes do Reino, o problema do indígena, sua
incorporação pelo cristianismo, aí ficam definidos com toda a precisão.
A armada do capitão-mor fêz-se rumo do cabo de Boa Esperança, acompanhando a
costa da terra nova por largo espaço, duas mil milhas, calculou um companheiro de
expedição.
O navio de mantimento seguiu para o Nordeste, naturalmente sem perder de vista a
terra e talvez realizando desembarques.
E' possível mesmo haja encontrado Diego de Lepe ou algum outro viajante
espanhol. O descobrimento dos portugueses figura no mapa de Juan de la Cosa,
terminado em outubro de 1500.
Em meados do ano seguinte, partiu de Portugal uma armada de três navios a
explorar a nova ilha da Cruz ou Vera Cruz e encontrou-se em Beseguiche com
Pedr'Álvares Cabral, já de volta da Índia. Se o descobridor e os futuros exploradores
permutaram impressões, deviam ter reconhecido a existência não de ilha, mas de
continente. Diferente dos outros? As respostas não podiam sair claras, pois o
oceano Pacífico estava por descobrir. Duarte Pacheco, o herói de Cambalão,
companheiro de Cabral, alguns anos mais tarde ainda guardava a imagem
tradicional do mundo: vastas massas de terra, interrompidas por mediterrâneos,
abertos em rumos diversos, semelhando lagoas enormes.
A expedição exploradora depois de travessia tormentosa aportou ao litoral do Rio
Grande do Norte e procurou regiões mais temperadas, dando nomes aos lugares
descobertos, tirados uns do calendário -S. Roque, S. Jerônimo, S. Francisco, baía
de Todos-os-Santos, cabo de S. Tomé, angra dos Reis; tirados outros de
impressões e acidentes de viagem -rio Real, cabo Frio, baía Formosa, etc. Os
exploradores, segundo parece, nunca perderam de vista a serra do Mar. Durante
muitos anos figurou nos mapas como último ponto conhecido Cananor, que bem
pode ser a atual Cananéia, em S. Paulo; calculou-se a extensão percorrida em duas
mil e quinhentas milhas. Esta exploração mais demorada confirmou em quase tudo
as palavras de Caminha. Apenas os naturais apareceram à nova luz, selvagens,
rancorosos, sanguinários e antropófagos, material mais próprio para escravatura do
que para a conversão.
Depois de voltar esta armada a coroa resolveu arrendar a terra por um triênio; os
arrendatários comprometeram-se a mandar anualmente seis navios a descobrir
trezentas léguas e a fazer e sustentar uma fortaleza. Fundavam seus cálculos no
lucro produzido por escravos, por animais curiosos e pelo pau-brasil, de que os
primeiros exploradores levariam algum carregamento, e também na vaga esperança
de poderem chegar à Índia por este caminho.
Em 1503 veio de fato uma frota de seis embarcações, reduzidas logo à metade pelo
naufrágio da capitânea, junto à ilha depois chamada Fernão de Noronha, e pela
defecção de Vespucci, de quem o continente deveria tomar o nome. Talvez algum
dos navios restantes iniciasse a exploração do cabo de S. Roque à procura do
Equador. De certo nada se sabe; no mencionado trecho da costa escaparam ao
esquecimento apenas alguns nomes, como o de João de Lisboa, João Coelho e
Corso, desacompanhados de qualquer informação. A falta de portos, a dificuldade
de navegação devida ao regime dos ventos, e a impressão de esterilidade colhida
de bordo não provocavam a amiudar visitas naquela direção; os dizeres dos mapas
contemporâneos ou rareiam ou apenas indicam passagens de largo.
Em 1506 a terra do Brasil, arrendada a Fernão de Noronha e outros cristãos novos,
produzia vinte mil quintais de madeira vermelha, vendida a 2 1/3 e 3 ducados o
quintal; cada quintal custava ½ ducado posto em Lisboa. Os arrendatários pagavam
quatro mil ducados à coroa.
Anos mais tarde, pensou-se em dar liberdade aos que quisessem vir tentar fortuna,
pagando apenas um quinto dos gêneros levados. A este regime já obedeceu, talvez,
a nau Bretoa, armada por Bartolomeu Marchioni, Benedito Morelli, Fernão de
Noronha e Francisco Martins, mandada a Cabo Frio em começo de 1511. Sobre ela
existem documentos.
Tinha a nau capitão, escrivão, mestre e piloto, responsáveis solidariamente pela
execução do regimento; treze marinheiros, quatorze grumetes, quatro pagens, um
dispenseiro. Nem à ida nem à volta podia tocar em qualquer porto intermediário,
salvo caso de falta de vitualhas, temporais ou desarranjo. Era permitido à companha
resgatar com facas, tesouras e outras ferramentas depois de estar completa a carga
dos armadores da nau. Podia resgatar papagaios, gatos e, com licença dos
armadores, também escravos; vedado era o comércio de armas de guerra.
À chegada em terra a carga ficava entregue ao feitor; qualquer resgate dependia da
autorização deste. Recomendava-se o maior cuidado em não fazerem mal ou dano
aos indígenas; não levarem mais naturais livres para o Reino, porque falecendo em
viagem cuidavam os parentes terem sido comidos, como era seu costume; não
deixarem que da gente da nau alguém se lançasse na terra ou nela ficasse, como
alguns já fizeram, coisa muito odiosa ao trato e serviço reais.
A nau Bretoa partiu do Tejo a 22 de fevereiro; fundeou de 17 de abril a 12 de maio
na baía de Todos-os-Santos; em 26 de maio chegou a Cabo Frio, donde a 28 de
julho partiu para Portugal. Levou cinco mil toros de pau-brasil; vinte e dois tuins,
dezasseis sagüis, dezasseis gatos, quinze papagaios, três macacos, tudo avaliado
em 24$220 réis; quarenta peças de escravos, na maioria mulheres, avaliados ao
preço médio de 40$: sobre todos estes semoventes arbitrou-se o quinto, ainda no
Brasil.
O nome do Brasil era bem conhecido e figurava em portulanos anteriores às
descobertas dos portugueses; havia um nome à procura de aplicação, exatamente
como o de Antilha, e isto explicaria a rapidez com que se introduziu e vulgarizou,
suplantando outras denominações, como terra dos Papagaios, de Vera Cruz, ou
Santa Cruz, se a abundância de uma apreciada madeira de tinturaria até então
recebida por via do Levante, e o comércio, sobre ele fundado desde o comêço,o
colaborassem na propaganda, e talvez com maior eficácia.
O pau-brasil reconheceu-se logo no litoral de Paraíba e Pernambuco, nas cercanias
do rio Real, do Cabo Frio ao Rio de Janeiro; naturalmente seriam logo estes os
trechos mais freqüentados destes primeiros portugueses; em outros lugaresmais
tarde se descobriu.
Para facilitar os carregamentos, estabeleceram-se feitorias, de preferência em ilhas;
deviam ser caiçaras ou cercas, próprias apenas para guardarem os gêneros de
resgates; algumas sementes de além-mar podiam ser plantadas à roda, e soltos
alguns animais domésticos de fácil reprodução. Uma feitoria conservou-se no Rio
durante alguns anos aser destruída pelos naturais, indignados com o proceder do
feitor e companheiros; entre as plantações abandonadas entraria a cana de açúcar,
encontrada por Fernão de Magalhães em 1519.
No ano de 1513 uma armada de dois navios estendeu muito o horizonte geográfico
pela zona temperada. Devassou, segundo um contemporâneo, seiscentas e
setecentas léguas de terras novas; encontrou na boca de um caudaloso rio diversos
objetos metálicos; teve notícia de serras nevadas ao Ocidente; julgou ter achado um
estreito e o extremo meridional do continente. O capitão, talvez João de Lisboa,
levou para o reino um machado de prata, e este nome, apegado ao soberbo rio,
ainda hoje proclama a primazia dos portugueses ao Sul, como o das Amazonas
perpetua a passagem dos espanhóis ao Norte.
Com a viagem destes navios, armados por d. Nuno Manuel e Cristóbal de Haro,
coincidiu o descobrimento do mar do Sul ou Pacífico, por Vasco Nunes de Balboa.
Os espanhóis apanharam a importância destes sucessos, mandaram em 1515
procurar o estreito anunciado pelos portugueses, e incumbiram João Dias de Solis
de ir pelo novo caminho às espaldas das terras de Castela de Ouro. Solis foi morto
apenas desembarcou no rio da Prata; seus companheiros voltaram sem detença
para o Reino. Em 1520 Fernão de Magalhães explorou o grande estuário meridional
à procura do estreito cobiçado afinal descoberto mais para o Sul, e navegou pelo
oceano Pacífico até alcançar as famosas Molucas, as ilhas das especiarias por
excelência.
Assim se cumpriu o plano de Colombo: chegar ao Levante navegando sempre para
o Ocidente. Acompanharam Magalhães em sua expedição incomparável João
Lopes de Carvalho, piloto da nau Bretoa, e um mamaluco, filho seu, havido de uma
índia do Rio de Janeiro.
Pau-brasil, papagaios, escravos, mestiços, condensam a obra das primeiras
décadas.
Da parte das índias a mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos
pertencentes a raça superior, pois segundo as idéias entre elas ocorrentes só valia o
parentesco pelo lado paterno. Além disso pouca resistência deviam encontrar os
milionários que possuíam preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas,
tesouras, espelhos. Da parte dos alienígenas devia influir sobretudo a escassez, se
não ausência de mulheres de seu sangue. É fato observado em todas as migrações
marítimas, e sobrevive ainda depois do vapor, da rapidez e da segurança das
travessias.
Estes primeiros colonos que ficaram no Brasil, degradados, desertores, náufragos,
subordinam-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram ao meio, ao ponto de furar
lábios e orelhas, matar os prisioneiros segundos os ritos, e cevar-se em sua carne;
outros insurgiram-se contra ele e impuseram sua vontade, como o bacharel de
Cananéia, que se obrigou a fornecer quatrocentos escravos a Diogo Garcia,
companheiro de Solis, um dos descobridores do Prata.
Tipo intermédio apresenta-nos Diogo Álvares, o Caramuru, que habitou na Bahia de
1510 a 1557, data de seu falecimento.
4 - PRIMEIROS CONFLITOS
Com a chegada dos portugueses coincidiu quase, a dos franceses, que começaram
logo o mesmo comércio de resgate. Na vastidão do litoral podiam ter passado anos
sem se encontrar, mas o encontro era fatal, e não havia de ser amigável.
Portugal considerava a nova terra propriedade direta e exclusiva da coroa, pelas
concessões papais, pelo tratado de limites concluído com a Espanha e pela
prioridade do descobrimento. O rei tirava porcentagem dos gêneros levados para
além-mar; os armadores queriam auferir lucros de seus esforços e capitais.
A presença dos intrusos prejudicava-os a todos os respeitos: nos mercados
europeus, oferecendo os gêneros a preços mais vantajosos, pois não tinham
quintos a deduzir, e levando-os diretamente aos mercados consumidores, pois não
eram obrigados a parar em Lisboa; nas terras brasílicas, conciliando as simpatias
dos naturais, que os agasalhariam com maior carinho, poupar-lhes-iam traições e
aleives, dariam preferência nos carregamentos e se habituariam às mercadorias
francesas. Ainda por cima havia a questão de princípio: Portugal não admitia que os
filhos de outra nação pusessem o pé em terras suas no além-mar.
Desde a Paraíba ao Norte até S. Vicente ao Sul, o litoral estava ocupado por povos
falando a mesma língua, procedentes da mesma origem, tendo os mesmos
costumes, porém profundamente divididos por ódios inconciliáveis em dois grupos; a
si próprio um chamava Tupiniquim, e outro Tupinambá. A migração dos Tupiniquins
fora a mais antiga; em diversos pontos os Tupinambás os tinham repelido para o
sertão, como no Rio de Janeiro, na baía de Todos-os-Santos, ao Norte de
Pernambuco; em parte de S. Paulo, em Porto Seguro e Ilhéus, nas proximidades de
Olinda; na serra de Ibiapaba havia, entretanto, Tupiniquins habitadores do litoral.
Porque os Tupinambás se aliaram constantemente aos franceses e os portugueses
tiveram a seu favor os Tupiniquins, não consta da história, mas o fato é
incontestável e foi importante; durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria
pertencendo aos Peró (portugueses) ou aos Maïr (franceses).
Ainda nos últimos tempos de d. Manuel, começaram os protestos contra a presença
dos Maïr; com a acessão de d. João III a situação agravou-se. Reconhecida a
inutilidade de embaixadas à corte de França, e de promessas compradas a peso de
ouro e jamais cumpridas, o rei de Portugal resolveu desforçar-se. Uma armada de
guarda-costa veio em 1527 ao Brasil comandada por Cristóvão Jaques, que
estivera antes na terra e deixara uma feitoria junto a Itamaracá, de volta de uma
expedição ao Prata. Desde Pernambuco até a Bahia e talvez Rio de Janeiro,
Cristóvão Jaques deu caça aos entrelopos; segundo testemunhos interessados,o
conhecia limites sua selvageria, não lhe bastava a morte simples, precisava de
torturas e entregava os prisioneiros aos antropófagos para os devorarem. Mesmo
assim ainda levou trezentos prisioneiros para o Reino. Devia ter causado um mal
enorme aos franceses.
As armadas de guarda-costa eram simples paliativos; povoando a terra, cortar-
se-ia o mal pela raiz. Cristóvão Jaques ofereceu-se a trazer mil povoadores;
oferecimento semelhante fez João de Melo da Câmara, irmão do capitão-mor da ilha
de S. Miguel. Indignava-se este vendo que até então a gente que vinha ao Brasil
limitava-se a comer os alimentos da terra e tomar as índias por mancebas, e propôs
trazer numerosas famílias, bois, cavalos, sementes, etc.
Preferiu-se a estas propostas práticas e razoáveis aparelhar nova e mais poderosa
armada às ordens de Martim Afonso de Sousa, meio-termo entre armada de
guarda-costa e expedição povoadora. Apenas alcançou a costa de Pernambuco, em
janeiro de 31, começou a faina de guarda-costa; em poucos dias foram tomadas
três naus francesas.
Diogo Leite com duas caravelas foi mandado de Pernambuco para a costa de Este-
Oeste, mais desconhecida então que trinta anos antes, quando por elas passara
Vicente Yañez Pinzon. Com os outros navios, o capitão-mor seguiu para o Sul.
Demorou na baía de Todos-os-Santos, na de Guanabara, em Cananéia; continuava
para o rio da Prata, e devia entrar em seus planos acompanhar-lhe o curso, pois
desde a Europa trazia desarmados bergantins próprios para a exploração, quando a
perda da capitânea fê-lo arrepiar caminho para o porto de S. Vicente. Aqui esperou
o irmão, Pero Lopes, que em seu lugar mandara às águas platinas.
Desde 1514 chegaram à Europa, levados pela armada de d. Nuno Manuel, os
primeiros espécimes de metais preciosos, encontrados nas águas do grande rio.
Alguns companheiros de Solis, escapos à sanha dos índios, e depois tolerados,
confirmaram estes indícios vagos. Na Costa dos Patos alguns deles falavam com
entusiasmo em tais riquezas.
Tais notícias nos Patos ou no próprio rio, colheu-as Cristóvão Jaques, cerca de
1522, e levou-as ao Reino. Na feitoria de Itamaracá então fundada, cursavam com
tamanha insistência que, em 1526, Sebastião Cabot, ouvindo-as ao aportar em
Pernambuco, decidiu logo navegar para Santa Catarina a ir tomar os náufragos de
Solis e realizar o descobrimento dos metais anunciados com tanta certeza e
insistência. Viera mandado para as Molucas, mas sabia que se triunfasse ninguém
lhe lançaria em rosto o desvio, e tanto se capacitou da realidade das minas que não
hesitou em transgredir as instruções mais restritas.
Apesar do insucesso final de Cabot, persistiu inabalável a crença nos tesouros
platinos; por isso quando, em Cananéia, Francisco de Chaves, grande língua do
gentio, pediu gente para fazer uma entrada e prometeu voltar no fim de dez meses
com quatrocentos escravos carregados de prata, Martim Afonso não conheceu
hesitações.
A idéia parecia prática, pois dispensava de acompanhar o litoral até a foz do Prata e
subir por este além da fortaleza fundada por Cabot para procurar o Ocidente, onde
tais tesouros existiam. O capitão-mor deu quarenta besteiros e quarenta
espingardeiros, que sob as ordens de Pero Lobo partiram a 1 de setembro de 1531.
Morreram às mãos dos índios, sabe-se vagamente. Pelo mesmo tempo, navegando
o oceano Pacífico, Francisco Pizarro alcançou por caminho mais direto as terras dos
Incas, procuradas até então pelo lado cisandino.
Depois da perda da capitânea passou Martim Afonso a tratar da segunda parte da
sua missão: o povoamento da terra. Em S. Vicente fundou a primeira vila, à beira-
mar; algumas léguas para o interior, depois de transposta a serra do Mar, fundou
segunda vila, na borda do campo de Piratininga, à margem de um rio cujas águas
fluíam para o Ocidente. «Repartiu a gente nestas duas vilas», escreveu Pero Lopes,
«e fez nelas oficiais, e pôs tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou
muita consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar
matrimônios e viverem em comunicação das artes, e ser cada um senhor do seu e
vestir as injúrias particulares, e ter todos os outros bens da vida segura e
conversável».
A situação geográfica destas vilas explica-se pela proximidade das famosas
riquezas cobiçadas, pela facilidade de fazer as entradas, dez meses apenas para ir
e voltar, garantia Francisco de Chaves. Deslumbrado por tais vantagens, Martim
Afonso esqueceu-se dos franceses ou julgou arredados os motivos para temê-los
depois da campanha energicamente conduzida por Cristóvão Jaques e por ele
continuada com tanto êxito e vigor.
Diogo de Gouveia, português residente em França, seguia desde muito o
movimento dos negócios naquele Reino e pensava de modo diverso. Em cartas e el-
rei dava-lhe notícias pouco tranqüilizadoras, e instava por uma solução real. A
solução era não uma vila afastada da zona freqüentada, mas diversos povoados na
região apetecida do pau-brasil. «Quando lá houver sete ou oito povoações, concluía,
estas serão bastantes para defenderem aos da terra que não vendam o brasil a
ninguém e não o vendendo as naus não hão de querer lá ir para vir de vazio».
Dir-se-ia que os franceses leram estas palavras previdentes. Até então
contentavam-se com o simples resgate, quando muito alguma feitoria. Trataram
agora de fundar uma fortaleza, artilhada e com guarnição numerosa. assim
considerou a corte lusitana «com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a
povoasse, depois de estar assentado na terra e ter nela feitas algumas forças, como
já em Pernambuco começava a fazer».
Estes fatos foram conhecidos no Reino graças à nau La Pèlerine, de Marselha, que,
procedendo de Pernambuco aonde deixara gente e artilharia, arribou a Málaga.
Achava-se no porto uma armada de Portugal, de 10 navios, destinados a Roma; d.
Martinho, embaixador, informado da falta de mantimentos que obrigava a arribada,
forneceu trinta quintais de biscoutos aos franceses, e convidou-os a navegarem de
conserva a Marselha. A cinco milhas de Málaga sobreveio calmaria; a pretexto de
concertar a derrota a seguir foram convidados o capitão e o piloto de La Pèlerine
para vir a bordo da capitânea portuguesa e, logo, presos, tomado o navio e remetido
para Lisboa.
Não foi mais feliz a fortaleza galo-pernambucana. Pero Lopes, terminada a
exploração do Prata, e de viagem para a Europa, bombardeou-a durante dezoito
dias, e obrigou-a a render-se. Da guarnição parte foi enforcada; outra, transferida ao
Reino, passou longos meses de cativeiro nos calabouços do Algarve.
5 - CAPITANIAS HEREDITÁRIAS
A tomadia de La Pèlerine, a feitoria francesa fundada em Pernambuco, notícias de
preparativos para fundarem-se outras, espancaram finalmente a inércia real.
Escrevendo a Martim Afonso de Sousa a 28 de setembro de 32, anuncia-lhe el-rei a
resolução de demarcar a costa, de Pernambuco ao rio da Prata, e doá-la em
capitanias de cinqüenta léguas: a de Martim teria cem; seu irmão Pero Lopes seria
um dos donatários.
A chegada do jovem guerreiro vitorioso em Pernambuco mostrou mais uma vez a
iminência do perigo. Talvez a isto se devam certas medidas desde logo tomadas ou
pelo menos discutidas: liberdade ampla de emigrar para o Brasil, preparo de uma
armada de três caravelas, cada uma com dez a doze condenados à morte, «per farli
desmontar in terra, azió habiano a domestigar quel paese, rispetto per non metter
boni homini dabene a pericolo», assegurava, a 16 de julho de 33, o veneziano Pietro
Caroldo, a quem devemos esta notícia. Tal armada veio efetivamente?
Sua vinda explicaria uma porção de pontos obscuros.
Os documentos mais antigos da doação das capitanias datam de 1534.
A demora entre o projeto e a execução pode explicar-se pela vontade régia de
esperar a volta de Martim Afonso, ou pela dificuldade de redigir as complicadas
cartas de doações e os forais que as acompanham ou, finalmente, pela falta de
pretendentes à posse de terras incultas, impróprias para o comércio desde o
começo. Admira, até, como houve doze homens capazes de empresa tão aleatória.
A nenhum dos membros da alta fidalguia tentou a perspectiva de semear povos.
Os donatários sairam em geral da pequena nobreza, dentre pessoas práticas da
Índia, afeitas ao viver largo da conquista, porventura coactas na malhas acochadas
da pragmática metropolitana. Muitos nunca vieram ao Brasil, ou desanimaram com o
primeiro revés. el-rei cedeu às pessoas a quem doou capitanias alguns dos direitos
reais, levado pelo desejo de dar vigor ao regime agora organizado; muitas
concessões fez também como administrador e grão-mestre da Ordem de Cristo.
Em tudo agiu «considerando quanto serviço de Deus e meu e proveito dos meus
reinos e senhorios, e dos naturais e súditos deles é ser a minha terra e costa do
Brasil mais povoada do que até agora foi, assim para se nela haver de celebrar o
culto e ofícios divinos, e se exaltar a nossa santa católica, com trazer e provocar a
ela os naturais da dita terra infiéis e idólatras, como por o muito proveito que se
seguirá a meus reinos e senhorios, e aos naturais e súditos deles de se a dita terra
povoar e aproveitar».
Os donatários seriam de juro e herdade senhores de suas terras; teriam jurisdição
civil e criminal, com alçada até cem mil réis na primeira, com alçada no crime até
morte natural para escravos, índios, peões e homens livres, para pessoas de mor
qualidade até dez anos de degredo ou cem cruzados de pena; na heresia (se o
herege fosse entregue pelo eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até morte
natural, qualquer que fosse a qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo
somente se a pena não fosse capital.
Os donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insígnias, ao longo das
costas e rios navegáveis; seriam senhores das ilhas adjacentes adistância de dez
léguas da costa; os ouvidores, os tabeliães do público e judicial seriam nomeados
pelos respectivos donatários, que poderiam livremente dar terras de sesmarias,
exceto à própria mulher ou ao filho herdeiro.
Para os donatários poderem sustentar seu estado e a lei de nobreza, eram-lhe
concedidas dez léguas de terra ao longo da costa, de um a outro extremo da
capitania, livres e isentas de qualquer direito ou tributo exceto o dízimo, distribuídas
em quatro ou cinco lotes, de modo a intercalar-se entre um e outro pelo menos a
distância de duas léguas; a redízima (1/10 da dízima) das rendas pertencentes à
coroa e ao mestrado; a vintena do pau-brasil (declarado monopólio real, como as
especiarias), depois de forro de todas as despesas; a dízima do quinto pago à coroa
por qualquer sorte de pedraria, pérolas, aljôfares, ouro, prata, coral, cobre, estanho,
chumbo ou outra qualquer espécie de metal; todas as moendas dágua, marinhas de
sal e quaisquer outros engenhos de qualquer qualidade, que na capitania e
governança se viessem a fazer; as pensões pagas pelos tabeliães; o preço das
passagens dos barcos nos rios que os pedissem; certo número de escravos, que
poderiam ser vendidos no reino, livres de todos os direitos; a redízima dos direitos
pagos pelos gêneros exportados, etc.
Os forais asseguravam aos solarengos: sesmarias com a imposição única do dízimo
pago ao mestrado de Cristo; permissão de explorar as minas, salvo o quinto real;
aproveitamento do pau-brasil dentro do próprio país; liberdade de exportação para o
reino, exceto de escravos, limitados a número certo, e certas drogas defesas (pau-
brasil, especiarias, etc.); direitos diferenciais que os protegeriam da concorrência
estrangeira; entrada livre de mantimentos, armas, artilharia, pólvora, salitre, enxofre,
chumbo e quaisquer cousas de munições de guerra; liberdade de comunicação
entre umas e outras capitanias do Brasil.
Representantes do poder real havia feitores, almoxarifes e escrivães, incumbidos
de arrecadar as rendas da coroa. Para várias capitanias existem nomeações de um
vigário e vários capelães: sempre el-rei ao lado do grão-mestre de Cristo.
Nas terras dos donatários não poderiam entrar em tempo algum corregedor, alçada
ou outras algumas justiças reais para exercer jurisdição, nem haveria direitos de
siza, nem imposições, nem saboarias, nem imposto de sal.
Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, d. João III tratou
menos de acautelar sua própria autoridade que de armar os donatários com
poderes bastantes para arrostarem usurpações possíveis dos solarengos vindouros,
análogas às ocorridas na história portuguesa da média idade. Ao ouvidor da
capitania, com ação nova a dez léguas de sua assistência e agravo e apelação em
toda ela, caberia o mesmo papel histórico dos juízes de fora no além-mar.
Para evitar lutas como as que grassaram entre a coroa ainda enfraquecida e os
vassalos prepotentes, proibiu-se de modo absoluto «partir [a capitania e
governança], nem escaimbar, espedaçar, nem em outro modo alhear, nem em
casamento a filho ou filha, nem a outra pessoa dar, nem para tirar pai ou filho ou
outra alguma pessoa de cativo, nem por outra cousa ainda que seja mais piadosa
porque minha tenção e vontade é que a dita capitania e governança e cousas ao
dito capitão e governador nesta doação dadas hão de ser sempre juntas e se não
partam nem alienem em tempo algum». As dez ou mais léguas de terras dadas aos
donatários, espaçadas entre si e alienáveis em fatiotas, corresponderiam aos
reguengos lusitanos.
As capitanias foram doze, embora divididas em maiormero de lotes. Começavam
todas à beira-mar, e prosseguiram com a mesma largura inicial para o ocidente, até
a linha divisória das possessões portuguesas e espanholas acordada em
Tordesilhas, linha não demarcada então, nem demarcável com os conhecimentos
do tempo. Tàcitamente fixou-se o limite na costa de Santa Catarina ao Sul, e na
costa do Maranhão ao Norte. A testada litorânea agora dividida estendia-se assim
por 735 léguas.
No plano primitivo a demarcação devia ir de Pernambuco ao rio da Prata, meta de
que afinal ficou cerca de 12 graus afastada; nele não entrava a costa de Este-Oeste
que, entretanto, foi demarcada. Para a última decisão é possível afluíssem as
notícias de Diogo Leite, incumbido de explorar aquela zona. por considerações
internacionais se poderia explicar a fixação tácita dos limites do Brasil em 28º 1/3. O
rio da Prata fora descoberta portuguesa; mas os espanhóis tinham estado
bastante tempo, derramado sangue e arriscado empresas: a eles competia por
todos os direitos, a começar pelo tratado de Tordesilhas.
A divisão das donatárias ainda não foi descrita tão concisa e geogràficamente como
nos seguintes termos de D'Avezac, o único que conseguiu dar certa forma a esta
matéria essencialmente refratária:
O limite extremo da mais meridional destas capitanias, concedida a Pero Lopes de
Sousa, é determinado nas próprias cartas de doação por uma latitude expressa de
28º 1/3; confrontava, um pouco ao Norte de Paranaguá, com a de S. Vicente,
reservada a Martim Afonso de Sousa, e que se estendia do lado oposto até Macaé,
ao Norte de Cabo Frio, desenvolvendo assim mais de cem léguas de costa, mas em
duas partes que encravavam, desde São Vicente até a embocadura do Juquiriquerê,
a de Santo Amaro, de dez léguas, adjudicada a Pero Lopes, o irmão de Martim
Afonso.
Ao Norte dos domínios deste estava a capitania de S. Tomé, cujas trinta léguas iam
expirar junto de Itapemirim; era o lote de Pero de Góis, irmão do célebre historiador
Damião de Góis.
Em seguida vinha a capitania do Espírito Santo, outorgada a Vasco Fernandes
Coutinho, cujo linde ulterior era marcado pelo Mucuri, que a separava da capitania
de Porto Seguro, atribuída a Pero do Campo Tourinho; esta prosseguia pelo espaço
de cinqüenta léguas até a dos Ilhéus, obtida por Jorge de Figueiredo Correia,
igualmente de cinqüenta léguas, cujo termo chegava rente à Bahia.
A capitania da Bahia, doada a Francisco Pereira Coutinho, se estendia até o grande
rio de S. Francisco; além estava a de Pernambuco, adjudicada a Duarte Coelho, e
que contava sessenta léguas até o rio Iguaraçu, junto ao qual Pero Lopes possuía
terceiro lote de trinta léguas, formando sua capitania de Itamaracá até a baía da
Traição.
Neste lugar começava, para se estender sobre um litoral de cem léguas até angra
dos Negros, a capitania do Rio Grande, dada em comum ao grande historiador João
de Barros e a seu associado Aires da Cunha; da angra dos Negros ao rio da Cruz
quarenta léguas de costas constituíam o lote concedido a Antônio Cardoso de
Barros: o rio da Cruz ao cabo de Todos-os-Santos, vizinho do Maranhão, eram
adjucadas setenta e cinco léguas ao vedor da fazenda Fernand'Alvares de Andrade:
e além vinha enfim a capitania do Maranhão, formando segundo lote para a
associação de João de Barros e Aires da Cunha, com cinqüenta léguas de extensão
sobre o litoral, a a abra de Diogo Leite, isto é, até cerca da embocadura do
Turiaçu.
Das setecentas e trinta e cinco léguas de litoral demarcado para as capitanias
podemos desde já apartar as duzentas e sessenta e cinco doadas a João de Barros,
Fernand'Álvares, Aires da Cunhas e Antônio Cardoso de Barros. Os esforços para
ocupá-las mangraram; o povoamento fêz-se mais tarde, com gente nascida ou
estabelecidas em outros pontos do Brasil: representam uma formação secundária
na história pátria. Convém também apartar as duzentas e trinta e cinco léguas
demarcadas entre o extremo da capitania dos Ilhéus na baía de Todos-os-Santos e
o rio Curupacé, e mais quarenta léguas de Cananéia para a terra de Sant'Ana. Aqui
houve logo tentativas de povoamento: ainda hoje existem vilas fundadas na quarta
década do século XVI; mas os colonos tiveram pela frente a mata virgem, os rios
encachoeirados, as serranias ínvias, não souberam vencê-los e impulsionaram a
história do Brasil quando os venceram. A primeira vitória decisiva foi ganha no rio de
Janeiro, no século XVIII, com o auxílio dos paulistas; desde então o Rio figura
como fator cada vez mais importante. Outros pontos, como Vitória, Porto Seguro,
Ilhéus, esperaram ou estão esperando as vias férreas.
Restam as cento e quarenta léguas estendidas da baía da Traição à de Todos-os-
Santos, as cinqüenta e cinco léguas inseridas entre o Curupacé e Cananéia, em
outros termos: a capitania de Duarte Coelho, parte da de Martim Afonso de Sousa,
os troços da capitania1 da Bahia depois da morte do primitivo donatário.
A história do Brasil no século XVI elaborou-se em trechos exíguos de Itamaracá,
Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e S. Vicente, situados nestas cento e noventa e
cinco léguas de litoral.
Martim Afonso conservara-se na vila de S. Vicente à espera da gente mandada às
minas que, segundo a tradição, trucidaram os Carijós do Iguaçu, quando tornava da
sua arriscada expedição. Uma carta régia trazida por João de Sousa informou-o dos
novos planos de colonizar, deixando-lhe ao arbítrio permanecer ou tornar para o
Reino. Em começo de 33 partiu para Portugal. Desde então seus feitos pertencerem
a outras partes do mundo.
Em seu lugar ficou governando no civil, concedendo sesmarias, provendo ofícios, o
padre Gonçalo Monteiro, também vigário. O governo das armas exerceram-no Pero
de Góis e Rui Pinto. O primeiro quis expulsar do Iguape alguns espanhóis que ali se
refugiaram, vindo do Paraguai. Surtiu-lhe mal o lance. Os espanhóis derrotaram a
força, aprisionaram o comandante, invadiram e saquearam S. Vicente. Ou achasse
meio de fugir, ou aos inimigos bastasse o escarmento, já estava no velho mundo em
1536, como se concluiu do foral de sua capitania datado de 26 de fevereiro.
Desde Bertioga até o Cabo Frio continuavam implacáveis os Tupinambás,
combatendo e atacando por terra e por mar contra os Peró, e a favor dos Maïr. Num
dos combates sucumbiu Rui Pinto. Cunhambebe, truculento maioral tamoio,
guardava entre os outros troféus o hábito e a cruz de Cristo deste cavaleiro.
Aparece-nos entre os primeiros povoadores Brás Cubas, jovem criado de Martim
Afonso, que aportou a S. Vicente em 1540, governou mais de uma vez a terra,
guerreou contra os Tamoios, fortificou Bertioga, entrada preferida por estes
inimigos, e fundou a vila de Santos, que possuía melhor porto e facilmente superou
a primogênita de Martim Afonso. Mais tarde empenhou-se na cata de minas, e
consta haver achado algum ouro.
À roda destas vilas fundaram engenhos, além dos portugueses, os flamengos
Schetz ou Esquertes, como o pronunciava o povo, e os Dorias, genoveses. Diz-se
até, porém não deve ser exato, que desta procedem as canas plantadas em outras
capitanias. Tais engenhos, com as distâncias e a raridade de comunicações, deviam
ter desenvolvimento medíocre.
Da vila fundada em Piratininga conhecemos a mera existência ou pouco mais. A
situação no descampado dificultava surpresas inimigas. O trânsito do Paraguai
dava-lhe algum movimento. As cabanas de João Ramalho e dos mamalucos seus
filhos e parentes, no outro lado da serra donde as águas corriam para o Prata,
apregoavam a vitória alcançada sobre a mata virgem do litoral, vitória obtida aqui
mais cedo que em qualquer outra parte do Brasil, porque os colonos apenas
continuaram a obra dos indígenas, achando aberto por cima de Paranapiacaba e
aproveitando a trilha dos Tupiniquins.
Na capitania de Pernambuco, depois de estabelecido Igaraçu, Duarte Coelho
passou algumas léguas mais ao Sul, e assentou a capital de seus domínios em
Olinda. O porto de somenos capacidade bastava às pequenas embarcações. A
vizinhança dos Tabajaras (Tupiniquins) compensava as investidas constantes dos
Petiguares (Tupinambás). A energia do donatário continha a turbulência dos
colonos. Nas várzeas surgiam canaviais e engenhos; a lavoura de mantimentos
aproveitou os altos: pau-brasil existia no litoral e no sertão; e estando esta capitania,
de todas a mais oriental, a menor distância do Reino, aqui mais que alhures
freqüentavam os navios de além-mar, e prosperava o comércio. Os mares piscosos
traziam a fartura, e alentavam a costeagem; caravelões espantavam os franceses,
que desde então começaram a evitar aquelas paragens. O nome de Nova Lusitânia
dado pelo donatário à sua colônia, se por um lado figura esperanças de futuro,
simbolizava por outro o orgulho da própria obra. Nas armas concedidas por d. João
III em 6 de junho de 1545 cinco castelos representavam os cinco centros de
povoações criadas por Duarte Coelho. Infelizmente conhecemos Igaraçu, Olinda
e, quiçá, Paratibe.
Da capitania de Itamaracá foram recursos para a de Pernambuco, quando os
Petiguares puseram cerco em Igaraçu e levaram-no aos últimos apuros. Mais tarde
as relações estremeceram. Queixa-se Duarte Coelho de desrespeitos constantes à
sua autoridade; de Itamaracá teve de retirar-se um capitão, por Duarte Coelho haver
mandado dar-lhe uma cutilada: a pequena distância gerou dissensões. Contudo, os
colonos de Pero Lopes tiveram a habilidade de conciliar os Tupinambás da serra, e
como não avançaram pelo litoral para as terras do Paraíba, centro dos Petiguares
amigos dos franceses, seu desenvolvimento correu pacífico e contínuo por algum
tempo.
Largos recursos naturais facilitavam a obra de Francisco Pereira Coutinho: baía
vasta como um mediterrâneo, esteiros numerosos franqueando entrada a cada
passo, correntes numerosas para moverem engenhos, matas virgens ao lado de
terrenos mal vestidos; onde o gado podia medrar à lei da natureza, situação
vantajosa no centro das outras capitanias.
Faltava pau-brasil na vizinhança, mas o afastamento dos franceses, daí resultante,
compensava bem a pobreza e, não instigados pelos franceses, os Tupinambás
mostrariam disposições menos malévolas. Por que não foi avante, com tudo isso,
Francisco Pereira Coutinho?
Não soube dominar os elementos que importou, nem se impôs à indiada das
adjacências. Tais apuros sofreu quem pereceria sem os socorros mandados dos
Ilhéus.
Mais tarde recolheu-se a Porto Seguro, cansado e velho, pouco disposto a
continuar; mas os ânimos serenaram na Bahia, e tornava esperançado, quando foi
morto ao desembarcar. Nas lutas com os índios mandara matar um dos cabecilhas:
prisioneiro agora, foi ritualmente sacrificado por um irmão do finado, de cinco anos,
tão pequeno que foi preciso segurarem-lhe a massa do sacrifício, segundo tradição
conservada num escrito jesuítico.
6 - CAPITANIAS DA COROA
A morte de Francisco Pereira apenas se divulgou no Reino devia convidar os
políticos a meditar sobre o sistema de colonização vigente.
Sem dúvida satisfazia a alguns dos primitivos intuitos que o inspiraram. As
fortalezas espalhadas pelo litoral estorvavam, se não suprimiam de todo, o trato
entre os indígenas e os entrepolos. Os franceses, expulsos de Pernambuco,
procuravam outros pontos, e deles seria possível excluí-los com o tempo. Iam
nascendo filhos de portugueses, a população crescia com a mestiçagem,
regularizava-se a produção e o comércio.
Mas um vício constitucional minava o organismo. Os donatários entravam para a
empresa com recursos próprios ou emprestados: se os primeiros tempos corriam
bem, a remuneração natural permitia-lhes continuarem com mais eficácia; no caso
contrário perdia-se todo o esforço, como sucedera a Pero de Góis, a Francisco
Pereira, a Antônio Cardoso, a João de Barros, a Aires da Cunha, a Fernand'Álvares;
ou as capitanias vegetavam mofinas, como a dos Ilhéus, Porto Seguro, Espírito
Santo, Santo Amaro e São Vicente.
Acrescia que, sendo iguais os poderes dos donatários, estando as capitanias na
condição de estados estrangeiros umas relativamente às outras, impossibilitava-se
qualquer ação coletiva: os crimes proliferavam na impunidade, a pirataria surgia
como função normal. As cartas de Duarte Coelho ilustraram de modo pungente esta
anarquia lastimosa. E a anarquia intercapitanial conjugava-se com a anarquia
intestina. Autoridades e mais autoridades, leis claras, prescrições restritivas havia:
qual o meio de pô-las em atividade e dar-lhes força? Como imobilizariam os
donatários em funções de governo recursos que não sobejavam para misteres
econômicos?
O remédio preferido por d. João III consistiu em tomar posse da capitania deixada
devoluta pela morte de Coutinho, com os recursos da coroa estabelecer uma
organização mais vigorosa, criar um governo geral, forte bastante para garantir a
ordem interna e estabelecer a concórdia entre os diversos centros de população.
Rasgaram-se assim doações e forais, onde estavam previstos conflitos entre
solarengos e senhores hereditários, e se fitava equiparar a situação destes à do
rei contra os poderosos vassalos medievais. Os poucos protestos dos interessados
passaram desatendidos, e em 1549, sem abolir de todo o sistema feudal, instituiu-se
novo regime.
Constava de um capitão-mor, incumbido da administração civil e militar, de um
provedor-mor, encarregado dos negócios da fazenda, de um ouvidor-mor, chefe da
justiça. Exerciam a autoridade primariamente na Bahia; nas outras capitanias tinham
delegados; quando iam a qualquer delas, competia-lhes conhecer de ação nova; na
ausência agiam por meio de recursos. Numerosos, excessivos oficiais
distribuíam-se por estes três ministérios ou desfrutavam magras sinecuras.
Acompanhado por quatrocentos soldados, seiscentos degradados, muitos
mecânicos pagos pelo erário, partiu de Lisboa em fevereiro o primeiro governador,
Tomé de Sousa, com Pero Borges, ouvidor-geral, Antônio Cardoso de Barros,
procurador-mor da fazenda, e aportou à baía de Todos-os-Santos em fins de março
de 1549.
Saltando em terra tratou logo de escolher local apropriado para a cidade que vinha
fundar, de fortalecê-la contra os ataques da gente de terra e construir os edifícios
mais urgentes.
A gente ia desembarcando à medida que se preparavam as acomodações.
Caravelões mandados a diversos pontos da costa, em constante escambo com os
naturais, traziam algum mantimento. O peixe abundante variava os gêneros
conservados ou, mais provavelmente, avariados, procedentes de Portugal. De Cabo
Verde veio algum gado, para cuja propagação o terreno provou admiravelmente. Os
pagamentos faziam-se em gêneros, principalmente ferramentas e avelórios, que
depois os interessados permutavam entre si ou com os indígenas.
Com estes elementos o governador impediu a desordem na capital. O provedor-mor
e o ouvidor-geral em viagens continuadas pelas capitanias reprimiram muitos
abusos.
Em companhia do capitão-mor vieram seis jesuítas, os primeiros mandados a este
continente, sobre cujos destinos tanto deveriam mais tarde pesar. Completaram
harmonicamente a administração, pois tanto como Tomé de Sousa ou Pero Borges,
o padre Manuel da Nóbrega obedecia ao sentimento coletivo, trabalhava pela
unidade da colônia, e no ardor de seus trinta e dois anos achava ainda pequeno o
cenário em que se iniciava uma obra sem exemplo na história.
Seus esforços perdiam-se na indiferença ou hostilidade dos outros eclesiásticos.
Por isto, com insistência e franqueza apostólicas lembrava a el-rei a conveniência
de mandar um bispo, único meio de trazer ao aprisco as ovelhas e conter os lobos.
Criou-se um bispado; em junho de 52 chegou à diocese d. Pedro Fernandes
Sardinha, primeiro bispo do Salvador.
Com o segundo governador, d. Duarte da Costa (1553-1557), esteve em luta
constante o velho prelado, das lutas comuns em mais vasto, e inevitáveis em tão
acanhado teatro, dadas as relações vigentes entre o poder civil e o poder
eclesiástico. A sociedade de Salvador cindiu-se ao meio, acirravam paixões e
cavavam ódios as pessoas de maior responsabilidade, e a multidão ignara atirou-se
na refega, como se meras questiúnculas de poderio representassem interesses
vitais. Variando apenas de forma, tais conflitos repetiram-se durante os séculos
seguintes. Só perderam importância depois que as constituições modernas
eliminaram os resíduos da concepção medieval das duas sociedades perfeitas.
Os jesuítas, superiores e alheios a este debate, concentraram seus esforços na
capitania de S. Vicente.
Transpondo a serra do Mar, estabeleceram na ribeira do Tietê uma primeira missão
que tomou o nome do apóstolo das gentes (25 de janeiro de 54).
Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no planalto, a presença
de tribos próprias à conversão por uma índole mansa e, além do afastamento dos
portugueses, certas idéias vagas de penetração entre os índios de Paraná e
Paraguai. O nome de S. Paulo, agora ouvido pela primeira vez, devia ecoar
poderosamente no futuro.
Os franceses repelidos de Pernambuco por Duarte Coelho, contidos ao centro pela
cidade do Salvador e mais vilas de baixo, afastaram-se dos lugares até ali mais
freqüentados e passaram à capitania de Pero de Góis e terras vizinhas pertencentes
a Martim Afonso, onde por muitas léguas dominavam os fiéis Tamoios, e existia
pau-brasil em abundância.
Navios avulsos, aventureiros conhecedores da língua geral, identificados com os
índios a ponto de lhes não repugnar a iguaria da carne humana, estabeleceram
relações que, se não impediram o progresso dos portugueses, criaram-lhe sérios
embaraços, e durante 23 [anos] trouxeram indecisa a vitória, e talvez a decidissem
contra Portugal se mais persistentes foram seus adversários.
Cumpria coordenar estes elementos. Lembraram-se os franceses de um regime
híbrido, com parte dos capitais adiantada por particulares, parte fornecida pelo rei
que, entretanto, não se responsabilizaria pela empresa e só a perfilharia em caso de
bom êxito.
À frente da expedição colocou-se Nicolas Durand de Villegaignon, notável pela
valentia e pelo saber. Partindo de Brest, chegou em novembro de 55 ao Rio de
Janeiro, seu destino. Estabeleceu-se numa ilha da baía, posição esplêndida contra
os índios com cuja amizade contava, imprópria pela falta de água a resistir aos
portugueses, cujos ataques poderiam tardar mas não faltariam; com duas fortalezas
formidáveis armou-a; fez amado e querido dos indígenas circunvizinhos o nome de
Pay Colas; por mais de uma vez recebeu imigrantes da Europa.
Da assistência na ilha, pequena, rochosa, sem água nativa, sugiram inconvenientes
graves para o sustento da guarnição, sujeita assim aos caprichos dos Tamoios. A
severidade puritana do chefe descontentou a soldadesca. Os imigrantes trouxeram
questões religiosas para a comunidade. O chefe teve de mostrar-se severo, talvez
cruel. Chegaram más notícias e sérias queixas ao velho mundo, tolhendo as
correntes simpáticas. Afinal, desiludido do futuro imediato da colônia, ou convencido
de que sua presença excitaria a tibieza e despertaria a confiança dos armadores da
metrópole, ou desejoso de entrar nos conflitos muito mais brilhantes e gloriosos que
se feriam além-mar, Villegaignon retirou-se em 59 da França Antártica.
Sucedeu-lhe seu sobrinho Bois le Comte, que manteve a situação sem melhorá-la.
Como poderia fazê-lo? Para ser bem sucedidos os franceses deviam ter vindo uns
vinte anos antes, quando os portugueses não tinham ainda criado raízes. Era tarde
agora. Mem de Sá, à frente de uma armada, penetrando na baía, precisou apenas
de três dias de fogo nutrido para desvanecer todos os castelos, em março de 60.
A vitória portuguesa foi realçada por dois sucessos logo ocorridos nas capitanias de
Martim Afonso e Pero Lopes.
Mem de mudou a antiga vila de Santo André, reunindo-a à missão jesuítica de
Piratininga. Por este ou outro motivo, os Tupiniquins se insurgiram e puseram em
cerco o povoado. Os catecúmenos dos jesuítas declararam-se contra seus próprios
parentes, que foram repelidos, e não tornaram mais. A favor dos portugueses bateu-
se heroicamente Martim Afonso Tibiriçá (julho de 62).
No ano seguinte Nóbrega pôde realizar o plano longamente amadurecido de
entabular pazes com os Tamoios, que navegando pela Bertioga traziam em
contínuo sobressalto os moradores de Santo Amaro e de S. Vicente. Em companhia
de José de Anchieta, jovem jesuíta vindo com d. Duarte da Costa, e muito
conhecedor da língua geral, embarcou para Iperoig, nas cercanias da hodierna
Ubatuba, e depois de alguns meses de assistência dramática, em que mais de uma
vez a vida de ambos correu perigo, lograram o almejado escopo (setembro de 63).
Desafrontado o sertão, desoprimida a marinha do Norte, o povo da capitania pôde
auxiliar Estácio de Sá, mandado em 64 à conquista do Rio, dominado ainda pelos
inimigos de aquém e além-mar, sem embargo da vitória recente.
Com os navios e gente levados da Bahia, com índios tomados no Espírito Santo,
canoas e auxiliares colhidos em S. Vicente, Estácio começou a fundar a cidade de
São Sebastião em 1 de março de 65.
Ao contrário de Villegaignon, estabeleceu-se em terra firme, logo à entrada da barra,
com a frente para o levante. Juntamente com a cerca artilhada, começou as
plantações, sem se fiar nos mantimentos que poderiam vir das capitanias. Mesmo
assim curtiu bravas fomes. Multiplicaram ciladas e surpresas os índios do
recôncavo; duas vezes o atacaram naus francesas reunidas aos Tamoios de Cabo
Frio. O jovem herói resistiu durante dois anos; se não consumou avanços
consideráveis, enfraqueceu bastante as forças dos aliados, de modo que à chegada
do seu tio Mem de Sá, com fortes socorros, dois combates, um em Ibiraguaçu-mirim
(morro da Glória?), outro na ilha de Paranapecu, mais tarde chamada do
Governador, bastaram para tornar definitivo o domínio dos portugueses.
Tendo Estácio de sucumbido às conseqüências de ferimentos recebidos em
combate, o governador seu tio demorou mais de um ano na cidade, transferiu-a
mais para dentro da baía, para o morro agora chamado do Castelo, que muniu de
fossos, cercou de muros, enriqueceu de edifícios, como cumpria a uma cidade real
(1567-1568). Ficou esta sendo a segunda capitania da coroa, conquanto pelos
termos da carta de doação devesse pertencer a Martim Afonso.
Outras guerras houve por este tempo no Espírito Santo, em Porto Seguro, nos
Ilhéus, na Bahia, cujos índios ficaram sujeitos desde Camamu até Itapecuru,
distância de quarenta léguas.
Com a derrota dos naturais de Paraguaçu e Ilhéus destruiu-se o que poderíamos
chamar uma marca da língua geral, e irromperam os Tapuias, até então sopeados.
Ninguém lucrou com a substituição: «os Aimorés, homens robustos e feros, andam
sempre pelo mato, no qual bastam quatro para destruir um grande exército», geme
um contemporâneo. Só no século seguinte se remediou o mal.
Estes feitos bélicos não constituem todo o governo de Mem de Sá, homem da toga,
desembargador da casa da Suplicação. Entre todos seus serviços sobreleva o
auxílio prestado a Nóbrega para realizar a obra das missões.
Esgotaria todos os préstimos dos Brasis fornecerem matéria prima para a
mestiçagem e para os trabalhos servis, meras máquinas de prazer bastardo e de
labuta incomportável? Se não com palavras, isto afirmavam os colonos de modo
menos ambíguo por atos repetidos em pertinácia invariável. Ora, os jesuítas
representavam outra concepção da natureza humana. Racional como os outros
homens, o indígena aparecia-lhes educável. Na tábua rasa das inteligências infantis
podia-se imprimir todo o bem; aos adultos e velhos seria difícil acepilhar, poderiam,
porém, aparar-se arestas, afastando as bebedeiras, causa de tantas desordens,
proibindo-lhes comerem carne humana, de significação ritual repugnante aos
ocidentais, impondo quanto possível a monoginia, começo de família menos lábil.
Para tanto cumpria amparar a pobre gente das violências dos colonos, acenar-lhe
com compensações reais pela cerceadura de maus hábitos inveterados, fazer-se
respeitar e obedecer, tratar da alimentação, do vestuário, da saúde, do corpo enfim,
para dar tempo a formar-se um ponto de cristalização no amorfo da alma selvagem.
Tal a idéia de Nóbrega, representada essencialmente pela Companhia de Jesus nos
séculos de sua fecunda e tormentosa existência no Brasil. o tentara em
Piratininga; podia agir com mais eficácia agora, escudado pelo governador-geral.
As primeiras missões estabelecidas à roda da baía de Todos-os-Santos ficavam em
ponto cuidadosamente escolhido, perto do mar para os índios se poderem manter
com suas pescarias, e perto das matas para poderem fazer seus mantimentos;
reuniam-se numa várias aldeias, sujeitas a um chefe ou meirinho, reconhecido
pelos padres como o mais capaz de colaborar nesta obra de depuramento, e nela
residiam um padre e um irmão, que a tudo superintendiam. A vida nas missões
resume-a assim um jesuíta contemporâneo: «Ensinam-lhes os padres todos os dias
pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa, para os que a quiserem ouvir
antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos na escola, onde
aprendem a ler e escrever, contar e outros bons costumes, pertencentes à polícia
cristã; à tarde tem outra doutrina particular a gente que toma a Santíssimo
Sacramento. Cada dia vão os padres visitar os enfermos com alguns índios
deputados para isso; e se têm algumas necessidades particulares lhes acodem a
elas; sempre lhe ministram os sacramentos necessários... O castigo que os índios
têm é dado por seus meirinhos feitos pelos governadores e não há mais que quando
fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em um tronco um dia ou dois,
como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da justiça... Os padres incitam
sempre aos índios que façam sempre suas roças e mais mantimentos, para que, se
for necessário, ajudem com eles aos portugueses por seu resgate, como é verdade
que muitos portugueses comem das aldeias, por onde se pode dizer que os padres
da Companhia são pais dos índios, assim das almas como dos corpos».
Começada em 58, a obra das missões tomou um desenvolvimento rápido nos anos
seguintes, principalmente no provincialato de Luís da Grã. Com a mesma rapidez
decaíu, sobretudo em conseqüência do fato, misterioso e até agora inexplicável, que
condena ao desaparecimento os povos naturais postos em contacto com os povos
civilizados. Nem por isso foi abandonada a empresa que com vário sucesso aturou
até meados do século XVIII.
Em Pernambuco acelerava-se por esse tempo o movimento para a fronteira
meridional no rio S. Francisco. Durante a menoridade de Duarte de Albuquerque
Coelho (1554-1560), seu tio Jerônimo de Albuquerque franqueou a vargem do
Capibaribe. O jovem donatário e Jorge, seu irmão, vindo de Portugal para o Brasil,
conquistaram as terras do cabo de Santo Agostinho e as de Serinhaém. Nas do
cabo fundou oito engenhos João Pais Barreto, tronco de família numerosa ainda
existente. Seguiram-se guerras pelo interior a pretexto de minas, mas realmente
inspiradas pelo desejo de cativar escravos. Nelas figurou Antônio de Gouveia,
clérigo epiléptico, sujeito a visões, que pretendia conversar familiarmente com o
diabo, em nem um lugar podia estar sossegado, a ponto de fugir até das prisões do
Santo Ofício, e era tido e tinha-se por nigromántico. Dava-se por entendido em
minas esta sinistra ave de arribação, lembrada na imaginação popular com o nome
de Padre do Ouro. Por sua causa diz-se que Duarte de Albuquerque Coelho foi
preso para o Reino. Antônio de Salema veio a Pernambuco abrir devassa com
alçada sobre este e outros negócios.
Com a morte de Mem de Sá, em março de 72, pareceu conveniente dividir o Brasil
em dois governos, sujeitos às cidades reais do Salvador e de S. Sebastião.
Luís de Brito de Almeida pretendeu passar além do rio Real e incorporar Sergipe. Já
os Jesuítas tinham preparado o terreno para a penetração pacífica por meio de
missões, mas a cobiça dos colonos e as manhas de alguns mamalucos tudo
arruinaram.
No Rio, Antônio Salema, auxiliado pelo capitão-mor de S. Vicente, deu guerra aos
índios de Cabo Frio e pacificou o território entre a cidade de S. Sebastião e Macaé,
distância de trinta léguas na estima do tempo. Foram mortos muitos dos Tamoios,
escravizados não poucos, e alguns incorporados aos aldeamentos jesuíticos. Quem
pôde emigrou para o sertão. Os franceses desta feita receberam um golpe de que
não puderam mais recobrar inteiramente.
Apareceram várias tentativas de procurar pedras preciosas, principalmente na Bahia
ao Espírito Santo. Sebastião Tourinho e outros varam a serra do Espinhaço, em
busca de esmeraldas. Em S. Vicente ocupa-se Brás Cubas na pesquisa de minas.
Nada produziram de sólido tais esforços. Mais importante que eles é o
desaparecimento dos índios, trazendo como conseqüência o aumento da
importação africana.
«A gente que de vinte anos a esta parte[1583] é gastada nesta Bahia, parece cousa
que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse
nunca, quanto mais em tão pouco tempo», escreve um jesuíta. «Porque nas
quatorze aldeias que os padres tiveram se juntaram 40.000 almas, estas por conta e
ainda passaram delas, com a gente com que depois se forneceram, das quais se
agora as três igrejas que ha tiveram 3.500 almas será muita.
seis anos que um homem honrado desta cidade e de boa consciência e oficial
da câmara que então era, disse que eram descidos do sertão de Arabó naqueles
dois anos atrás 20.000 almas por conta, e estes todos vieram para a fazenda dos
portugueses. Estas 20.000 com as 40.000 das igrejas fazem 60.000. De seis anos a
esta parte sempre os portugueses desceram gente para suas fazendas, quem trazia
2.000 almas, quem 3.000, outros mais, outros menos. Veja-se de dois anos a esta
parte o que isto podia somar, se chegam ou passam de 80.000 almas.
Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros de
Guiné e mui poucos da terra, e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu.
Donde bem se mostra o grande castigo de Deus dado por tantos insultos como são
feitos e se fazem a estes índios, porque os portugueses vão ao sertão e enganam a
esta gente, dizendo-lhes que se venham com eles para o mar e que estarão em
suas aldeias como estão em sua terra e que seriam seus vizinhos. Os índios
crendo que é verdade m-se com eles e os portugueses por se os índios não
arrependerem lhes desmancham logo todas as suas roças e assim os trazem, e
chegando ao mar os repartem entre si, uns levam as mulheres, outros os maridos,
outros os filhos e os vendem».
Por que insistiam os colonos em apossar-se de uma fazenda, cuja pouca valia a
cada passo se devia patentear de modo menos inequívoco?
sofriam de um achaque ainda hoje observado a todos os momentos entre seus
descendentes: a incapacidade de formar convicção firme sobre um assunto e por
ela pautar seus atos. Acresce que os escravos indígenas com todos esses
percalços, auxiliavam extraordinariamente aos que começaram a vida nestas
terras... E a primeira coisa que pretendem adquirir são escravos, para neles lhes
fazerem suas fazendas, informa Gandavo; e se uma pessoa chega na terra a
alcançar dois pares, ou meia dúzia deles (ainda que outra cousa não tenha de seu)
logo tem remédio para poder honradamente sustentar sua família: porque um lhe
pesca, e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e grangeiam suas roças e desta
maneira não fazem os homens despesa em mantimentos nem com eles, nem com
suas pessoas.
7 - FRANCESES E ESPANHÓIS
Em 1580 extinguiu-se a dinastia de Avis. Filipe II da Espanha, neto de d. Manuel,
apoiando suas pretensões pelas armas, sucedeu a d. Henrique, e incorporou à casa
de Habsburgo o trono português. Com Portugal cairam todas suas possessões sob
o domínio espanhol.
Para o Brasil as primeiras conseqüências deste estado de cousas foram favoráveis.
Os limites naturais da colônia indicaram-nos o Amazonas e o Prata. De ambos
separavam o povoado distâncias sempre enormes. Agora, se as distâncias
persistiam as mesmas, podia-se em compensação concentrar os esforços num
sentido, em vez de dissipá-los por ambos. Esperaria o Prata, ocupado em parte;
urgia senhorear o Amazonas, ainda não investido, mas cobiçado por diversas
nações. Assim, caminho do Prata o trabalho reduziu-se a mera consolidação, ao
estreitamento de malhas; para o Amazonas a expansão colonizadora moveu-se
acelerada. Por isso, preferindo a ordem cronológica para a expansão amazônica,
seguiremos a ordem geográfica no outro extremo.
Vindo do sul, encontrava-se a Cananéia habitada por gente ida da capitania de São
Vicente, que também procurava recôncavo de angra dos Reis, e se comunicava
com a cidade de São Sebastião, pela baixada de Santa Cruz, onde os jesuítas
começavam uma fazenda famosa. Nas terras do Cabo Frio os franceses
continuavam a freqüentar, naturalmente menos a miúdo e com menor proveito.
Por fim, Constantino Menelau, depois de vencê-los, obstruiu o porto, e Estevão
Gomes estabeleceu uma pequena fortaleza. Flagelados pelas bexigas, os Guaitacás
aproximaram-se dos brancos que os poderiam socorrer. Para a conciliação muito
contribuiu o jesuíta Domingos Rodrigues.
Este mesmo Domingos Rodrigues, mais tarde egresso da Companhia de Jesus, em
Ilheus, Álvaro Rodrigues Adôrno, na Cachoeira, levaram a bom termo a pacificação
dos Aimorés. Por este modo desde o Rio até a cidade do Salvador cessaram
temporariamente suas devastações os tão temidos Tapuias do litoral, que
reaparecem pelos meados do século.
Ao Norte da Bahia apresenta-se como mais notável o fato da conquista de Sergipe.
Desde os últimos tempos de Mem de a empresa afigurara-se fácil, pois não
cessavam mensagens pedindo aos padres da Companhia que fossem até levar a
boa nova. Com os dois jesuítas mandados a este fim partiram os soldados e
mamalucos, ávidos de escravos, que plantaram a sizania entre os Tupinambás, e
alienaram sua confiança. Todas as desconfianças confirmou o governador Luís de
Brito de Almeida no ano de 74, fazendo guerra implacável aos índios, aprisionando
uns, afugentando outros, devastando aquelas comarcas, por simples desfastio
destruidor, poderia crer-se; pois durante cerca de dois decênios quedou estacionária
a obra colonizadora.
Em fins de 89, Cristóvão de Barros, governador interino por morte de Manuel Teles
Barreto, repetiu de novo a tentativa, com melhor êxito. Parte da força seguiu por
mar, parte por terra, e reunidos deram em várias cercas dos naturais, que foram
derrotados.
Acossando estes, penetraram alguns aventureiros até o rio S. Francisco. No
território devoluto Cristóvão de Barros separou uma enorme sesmaria para o filho;
esta serviu de craveira para outras, e dentro em pouco o havia mais o que
distribuir. Com esta campanha os franceses perderam as antigas ligações no rio
Real.
Na capitania de Duarte Coelho continuou o movimento para o rio S. Francisco.
Fazendas de gado ou canaviais avançaram pelo território das Alagoas. Entre os
povoadores desta região avulta o alemão Lins, que deixou larga descendência, e
João Pais, de quem já se falou. Também daqui os franceses tiveram de retirar-se.
Nos primeiros anos do século 17, podia-se viajar e viajava-se efetivamente por terra
da Bahia até Pernambuco sem encontrar resistência séria por parte dos naturais,
vencidos ou afugentados da marinha. O único obstáculo ao livre trânsito
apresentava a passagem dos rios maiores, direito real, como vimos. Os rios
menores eram passados nos vaus, e assim continuaram nos séculos seguintes;
pelos vaus pode-se traçar a borda da primitiva ocupação litorânea.
Vejamos agora a marcha para o Amazonas.
Longo tempo estacionara o povoamento na ilha de Itamaracá e no continente
fronteiro. Os Petiguares da serra entretinham boas relações com os colonos, que
visitavam pacificamente as aldeias; os da praia, sempre amigos dos franceses,
faziam com estes bons negócios na Paraíba, onde não os perturbavam os
portugueses, contentes com breves excursões à procura de âmbar, abundante por
aquelas plagas até o Ceará, e com o pau-brasil trazido do interior pelos próprios
índios.
Em 74, por causa de uma cunhã do sertão, desaveio-se a gente deste com a da
Goiana, e começam as hostilidades. Foram assaltados e queimados dois engenhos,
e com esta fácil vitória mais se assanharam as paixões dos assaltantes. A guerra
levianamente provocada havia de durar vinte e cinco anos.
A mandado de Luís de Brito, o ouvidor-geral, Fernão da Silva, partiu para a Paraíba,
afugentou a indiana com simples presença, lavrou autos que ficaram no papel.
Frutuoso Barbosa, homem de fortunas, ofereceu-se à metrópole para ultimar a
conquista se lhe concedessem certas mercês. Com elas chegou em 80 a
Pernambuco, mas nada logrou fazer, porque um temporal atirou-o para as Antilhas
e de à Europa. Da segunda vez o se animou a tentar estabelecimento algum;
limitou-se a queimar navios franceses.
Em 83 aportou à Bahia Diogo Flores Valdez, vindo de uma viagem malograda ao
estreito de Magalhães. Ao governador insinuou-se como capaz desta conquista, e
na monção seguinte partiu com uma armada espanhola e algumas embarcações
portuguesas para Pernambuco. Organizou-se ao Recife uma expedição marítima e
outra terrestre. Por mar, Diogo Flores chegou sem embaraço a seu destino,
queimou alguns navios franceses carregados de pau-brasil, fundou um forte, nele
deixou uma guarnição de compatriotas seus; a gente ida por terra saiu vitoriosa de
vários reencontros e fundou um povoado, a cidade Filipéia, como a chamou
Frutuoso Barbosa, em honra do dinasta reinante. O castelhano Castejón ficou por
alcaide do forte, e Frutuoso Barbosa tomou conta da cidade.
Amassaram-se mal o chefe civil e o chefe militar; a discórdia lavrou entre
castelhanos e portugueses. Os Petiguares, aterrados pelos primeiros embates,
voltaram logo em chusmas densas e mais arrogantes. Guiavam-nos franceses dos
diversos navios queimados, sedentos de vingança, cônscios da importância capital
desta partida, em que se disputavam terrenos de seu domínio exclusivo durante
tantos anos.
Castejón portou-se com bravura; socorros de Pernambuco expedidos por Martim
Leitão, ouvidor-geral, nunca lhe faltaram. O próprio ouvidor-geral lá foi, em março de
86, com quinhentos homens brancos e muitos índios em sua companhia. Mas os
índios e os franceses continuavam cada vez mais afoitos e mais ardentes.
Desanimado, Frutuoso Barbosa desistiu de seus direitos e retirou-se para Olinda.
Castejón resistiu até junho; ao retirar-se tocou fogo no forte, quebrou o sino, meteu
a pique um navio, lançou a artilharia ao mar. Ficava aniquilado todo o trabalho.
Anos antes, aventureiros pernambucanos, guerreando no rio S. Francisco,
houveram-se tão aleivosamente com os Tabajaras, os antigos e fiéis aliados desde
o tempo de Duarte Coelho, que estes o mataram a todos, fugiram dos lugares
nefastos, e por uma das gargantas da Borborema procuraram a terra da Paraíba
para combater os brancos, aliando-se embora aos Petiguares, seus inimigos
hereditários e irreconciliáveis da língua geral. Martim Leitão, quando saiu de Olinda
em auxílio de Castejón, reconheceu-os e entabulou negociações, esperando trazê-
los à antiga amizade. Os Tabajaras não se deixaram requestar e prepararam-se
para o combate: traiu-os a sorte, apesar da valentia de Braço de Peixe e Assento de
Pássaro, os dois chefes tupiniquins.
Esta derrota despertou o ódio avito dos Tupinambás que se tornaram contra os
novos aliados, malsinando-os de covardes, tratando-os de traidores, obrigando-os a
tornarem às terras donde vieram. Soube-o Martim Leitão, e mandou emissários a
Piragibá, prometeu o esquecimento das injúrias recentes, anunciou auxílios prontos,
instou por sua permanência, renovando as antigas pazes. Cedeu o Braço de Peixe;
com a intervenção de João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, passaram os
Tabajaras a combater ao lados dos portugueses.
Em agosto 5, dia de Nossa Senhora das Neves, João Tavares recomeçou a obra
aniquilada pela defecção de Castejón, auxiliada agora pela gente de Braço de Peixe
e Assento de Pássaro, mas perturbada sempre pelos Petiguares e pelos franceses.
Mais duas vezes tornou Martim Leitão à Paraíba. Sua ação sempre fecunda e
prestigiosa pode resumir-se em poucas palavras: queimou navios, queimou pau-
brasil cortado, queimou aldeias, arrancou plantações, inutilizou mantimentos na
baía da Traição, na serra de Copaoba, no Tijucopapo.
Em maio de 87, Martim Leitão considerou terminada sua missão, e voltou para
Pernambuco, depois de lançar os alicerces para um engenho real. Enganava-se,
porém; prosseguiram constantes as guerras durante mais de dez anos, no sertão,
no litoral com as naus francesas, que chegaram a cercar a fortaleza do Cabedelo,
com os Petiguares, a quem a presença dos franceses, privados de ir para sua terra
pela queima das naus que os deviam conduzir, comunicaram uma audácia e uma
persistência bem alheias à índole indígena. Destes incidentes ignoramos a história;
a crônica apenas guarda os nomes de Pero Lopes, Feliciano Coelho, Pero Coelho,
talvez Ambrósio Fernandes Brandão, o autor possível dos Diálogos das Grandezas
do Brasil. Do lado dos franceses a tradição lembra Rifault, cujos feitos não podem
aliás ser precisados á falta de documentos.
Tantos anos agitados e tão desesperada resistência patentearam a urgência de
ocupar o rio Grande onde os inimigos perenemente se refaziam. De sairam uma
vez treze navios para tomar Cabedelo e o combate durara de uma sexta a uma
segunda-feira. Em suas águas chegaram a se reunir vinte navios procedentes de
França. Muitos franceses mestiçaram com as mulheres indígenas, muitos filhos de
cunhãs se encontravam de cabelo louro: ainda hoje resta um vestígio da
ascendência e da persistência dos antigos rivais dos portugueses na cabeleira de
gente encontrada naquela e nos vizinhos sertões de Paraíba e Ceará.
A expedição ao rio Grande, concebida no governo de d. Francisco de Sousa,
aparelhada de recursos abundantes, dirigida desde Pernambuco por Manuel de
Mascaranhas Homem, lugar-tenente do donatário, e Alexandre de Moura, que devia
suceder no mando, repartiu-se por terra e por mar. A divisão marítima, comandada
por Manuel de Mascaranhas, a quem se agregou Jerônimo de Albuquerque, chegou
felizmente a seu destino em janeiro de 98. Parte da divisão terrestre, encabeçada
por Feliciano Coelho, capitão-mor da Paraíba, venceu a resistência dos inimigos,
mas dissolveu-se ante uma epidemia de bexigas. A praga passou também ao
inimigo, e serviu para dar folgas a Manuel de Mascaranhas, aliás acometido mais de
uma vez no forte que começara.
Em março, Feliciano Coelho outra vez marchou para o rio Grande, depois de reunir
as suas forças, reduzidas agora à metade pela doença e pela retirada do contigente
de Pernambuco. Com este reforço, Manuel de Mascaranhas concluiu o forte dos
Reis Magos, e entregou-o a Jerônimo de Albuquerque, nomeado para comandá-lo.
À sua sombra medrou o que é hoje a cidade de Natal. Na volta, Mascaranhas e
Coelho afastaram-se da costa e fizeram novas devastações entre a indiada do
sertão.
Nas veias de Jerônimo de Albuquerque circulava sangue petiguar de sua mãe,
Maria do Arco-Verde, e disto não se envergonhava, antes o vemos em mais de uma
conjuntura proclamando a sua extração. Assim devia sorrir-lhe a idéia de conciliar os
parentes, reduzidos aos últimos apuros por tantos trabalhos e tão continuada
perseguição, e agora forçosamente abandonados pelo franceses. A um índio
aprisionado, principal e feiticeiro, incumbiu esta missão, depois de bem instruí-lo no
que devia dizer. O pensamento humanitário foi coroado do melhor êxito, graças
sobretudo às mulheres que, informa um contemporâneo, enfadadas de andarem
com o fato continuamente às costas, fugindo pelos matos sem poder gozar de suas
casas, nem dos legumes que plantavam, traziam os maridos ameaçados que se
haviam de ir para os brancos, porque antes queriam ser suas cativas que viver em
tantos receios de contínuas guerras e rebates. Por ordem de d. Francisco de Sousa
as pazes foram juradas solenemente na Paraíba, a 15 de junho de 99. Serviu de
intérprete frei Bernardino das Neves, filho de João Tavares, escrivão de órfãos de
Olinda, nosso conhecido. Deste ato resultou nascer e criar-se na amizade dos
portugueses, Antônio Camarão, um dos heróis da luta contra Holanda.
A conquista do rio Grande tinha logrado afastar os franceses e desenganar os índios
numa grande extensão de terreno; mas significava, mais que isto, o encurtamento
da distância ao Maranhão e Amazonas. Desde os primeiros tempos do governador
Diogo Botelho surge com força a idéia de consumar a obra, e trata-se de chegar às
regiões onde a mão da natureza assentara os limites do país.
Obrigou-se a incorporar o Maranhão Pedro Coelho de Sousa, cunhado de Frutuoso
Barbosa, que com séquito numeroso partiu da Paraíba e chegou ao Jaguaribe em
1603. Os índios daquela ribeira, a princípio esquivos, deixaram-se enlear pelas
promessas dos intérpretes e todo o sáfio litoral cearense foi percorrido em paz.
na serra de Ibiapaba, aliás seminário dos amigos Tabajaras, apareceu resistência,
promovida por franceses. Venceu-a Pedro Coelho e desceu a serra em busca do rio
Punará, ou Parnaíba, como é chamado hoje. Como sua gente não quisesse ir mais
adiante teve que retroceder.
Tudo correra bem até aí, tudo começou logo a se danar. Pedro Coelho, na volta
para o povoado, capturou os índios que pôde, indiferentemente, Tabajaras, velhos
amigos, e Petiguares, aliados recentes. Quando, depois de os ter distribuído pela
Paraíba e Pernambuco, novamente tornou ao Ceará, achou a situação insustentável
e foi obrigado a retirar-se. Sua retirada lastimável balizaram cadáveres, vítimas dos
areais candentes, da fome e da sede.
No provincialado de Fernão Cardim, governando d. Diogo de Menezes, dois
jesuítas, Francisco Pinto e Luís Figueira, foram incumbidos de chegar ao Maranhão.
Levaram em sua companhia para restituí-los à liberdade alguns dos índios
capturados por Pedro Coelho e sua gente; com algum esforço venceram as
desconfianças do gentio, atravessaram a serra do Uruburetama, e chegaram a
Ibiapaba, bem acolhidos, apesar de tudo. Preparavam-se para prosseguir, quando
uns Tapuaias assaltaram a aldeia em que assistiam, e mataram Francisco Pinto.
Luís Figueira escapou e tornou para Pernambuco, onde anos mais tarde escreveu
esta trágica odisséia em carta felizmente hoje salva da voragem do tempo.
Nem a expedição numerosa, aparelhada para a guerra, de Pedro Coelho, nem a
missão pacífica dos jesuítas adiantara um passo à questão de avanço para a costa
Leste-Oeste, destinada talvez a adiamento indefinido, se não interviesse Martim
Soares Moreno. Chegara de Portugal em 1602, e Diogo de Campos, seu tio,
sargento-mor de estado, o incorporou à primeira expedição de Pedro Coelho, para
aprender a língua da terra e familiarizar-se com os costumes. Contava apenas
dezoito anos. Realizou os desejos do tio de modo superior, e tão bem se houve
entre os indígenas que Jacaúna, chefe petiguar, distinguiu-o da turba malfeitora e
votou-lhe amor de pai. Nomeado tenente da fortaleza dos Reis-Magos, cultivou
estas relações, mais de uma vez visitou o fiel amigo, sempre esperançado de
dissipar as prevenções e rancores. Afinal o índio permitiu-lhe levar um filho à Bahia,
apresentá-lo ao governador, d. Diogo de Meneses, e consentiu-lhe viesse
estabelecer-se com dois soldados. Pôde assim lançar, junto ao minúsculo rio Ceará,
os fundamentos de um forte, onde resistiu aos ataques da gente não sujeita a
Jacaúna; com o auxílio deste tomou duas naus estrangeiras, nu e pintado de
genipapo, à maneira de seus auxiliares. Aquele ponto, até ali conhecido como
excelente aguada dos franceses, passou desde então a ser evitado.
No governo de Gaspar de Sousa projetou-se avançar mais para o Norte. Por sua
ordem Jerônimo de Albuquerque partiu de Pernambuco com quatro barcos, em
meados de 1613, nomeado capitão-mor da conquista do Maranhão, comandando
cem homens brancos e muitos índios. Na passagem pelo Ceará levou consigo
Martim Soares Moreno, como lhe fora permitido, e navegou até o Camocim, onde
pretendeu fundar um forte. Por parecer pouco próprio este lugar, preferiu a enseada
das Tartarugas, em Jererecuacara, onde deixou quarenta soldados num presídio;
com o restante voltou por terra; os barcos mandou que costeassem como melhor
pudessem e tornassem a Pernambuco.
Do Camocim expediu Martim Soares com vinte soldados ao Maranhão, a colher
notícias que pudessem guiar no prosseguimento da conquista. Graças ao pequeno
calado da lancha, Martim navegou muito pegado à terra, pôde entrar pela boca do
Preá, e alcançou por águas interiores a baía hoje chamada de S. José.
O nome e a amizade de Jacaúna serviram-lhe neste lance arriscado. Os
Tupinambás receberam-no com aparente afabilidade, mas preparavam-se para traí-
lo, quando um deles descobriu-lhe a verdadeira situação. Havia um ano estavam
franceses, com uma fortaleza artilhada de vinte peças, soldados, gente trazida em
embarcações, sob o comando de Daniel de Latouche, senhor de la Ravardière. Ao
mesmo tempo eram os franceses informados da presença do explorador português,
e começavam a dar-lhe caça. Martim Soares escapou incólume com os seus e o
índio amigo; o tempo, menos propício, atirou-o às costas da Venezuela, donde, por
São Domingos, chegou a Sevilha em abril do ano seguinte, e tratou logo de mandar
notícias para Pernambuco. Na mesma ocasião enviou com igual destino o piloto
Sebastião Martins, mestre da lancha, que o acompanhara na peregrinação. Chegou
no momento oportuno; Gaspar de Sousa tratava justamente de segunda e mais
poderosa expedição para a nova conquista, e suas informações puderam ainda ser
aproveitadas.
Ainda esta vez Jerônimo de Albuquerque serviu de capitão-mor. Diogo de Campos,
sargento-mor, ia por colateral. Recomendou-lhes o governador as maiores cautelas,
lembrava a fortificação de algum ponto além do fortim deixado no ano anterior, a
plantação de legumes de rápido crescimento, e indicou a conveniência de, desde
Tutóia, ir parte da força por terra, parte por mar.
Depois de receber alguns reforços na fortaleza do Ceará, os expedicionários
prosseguiram viagem a 29 de setembro de 614, para o forte do Rosário, que meses
antes provara forças com a gente de uma nau francesa destinada ao Maranhão.
Feito o alarde da gente, apuraram-se 220 soldados portugueses, 60 marítimos e
300 índios frecheiros. Deviam acampar em Tutóia? Confessaram-se os pilotos
ignorantes daquele trecho da costa: Bastião Martins conhecia a barra do Preá;
para se encaminharam a 12 de outubro, e na noite de 13 se abalançaram por ela
na maior confusão: «houve navios que iam tocando e dando grandes pancadas nos
bancos ao entrar da barra, e, por não atemorizarem os que vinham de trás, calavam
e paravam sem se ouvir uma palavra de rumor».
Iam a bordo moços impacientes e pouco disciplinados, ansiosos de medir-se com os
franceses. Conseguiram do capitão-mor se prosseguisse levianamente pelo Preá a
dentro, até avistar o inimigo. Era o melhor plano a executar, provou-o o resultado.
Antes da viagem de Martim Soares Moreno, aquela entrada era desconhecida dos
franceses; depois dela assentaram um forte ligeiro em Itapari; todo o esforço de
Ravardière aplicara-se, porém, à defesa da baía de S. Marcos; nas suas
fortificações depositavam-se a maior confiança. Claude 'Abbeville, missionário
capuchinho, escrevia orgulhosamente: «C'est donc niaizerie de penser que l'on
puisse desloger les François de ce lieu, lors qu'ils y seront bien establis: & le vouloir
faire croire, outre que c'est trop raualler leur courage & faire trop peu d'estime de
leur valeur & generosité, Si ce n'est une pure malice n'est-ce pas temerité? & que
l'on en parle comme les aueugles des couleurs? Ceux qui ont veu la situation de
cette Isle & qui connoissent par experience les difficultez de ses advenuës,
n'aduoueront iamais telle proposition qui ne procede que d'vn esprit timide». O
ataque pela baía de S. José, devido mais à casual fraqueza da lancha de Martim
Soares, deitava por terra todos estes arreganhos.
A 26 de outubro chegaram os expedicionários ao porto, depois chamado de
Guaxenduba; a 28, começaram no continente o forte de Santa Maria. Na ilha
fronteira, logo muitos fogos pareceram indicar a transmissão de notícias. Vieram à
fala alguns índios, esquivos apesar de todas atenções e carinhos de Jerônimo de
Albuquerque; negavam em geral a assistência dos franceses; um, porém, natural de
Pernambuco, denunciou ataque próximo. De fato, a 12 de novembro, no quarto da
lua, deu o inimigo nas embarcações e tomou três.
A este seguiu-se outro de maior monta a 19. Os franceses desembarcaram
duzentos infantes, mais de dois mil índios; como reserva ficou La Ravardière a
bordo, acompanhado de cem soldados. Transportaram esta força cinqüenta e sete
embarcações, das quais as três tomadas alguns dias antes, e cinqüenta canoas.
Trataram de se entrincheirar e, para ganhar tempo, La Ravardière dirigiu uma carta
ameaçadora a Jerônimo de Albuquerque. Sem dar-lhe resposta começaram os
portugueses uma ofensiva desesperada, indo pela praia Diogo de Campos, Antônio
e Albuquerque, filho do capitão-mor, e Jerônimo Fragoso; pelo monte Jerônimo de
Albuquerque, Francisco de Frias e Manuel de Sousa de Sá.
Dos franceses, escreve este, morreram a espada e a arcabuzaços noventa e tantos,
que logo ali ficaram, além dos que se afogaram fugindo para as embarcações, ao
todo cento e sessenta; foram capturados nove; queimaram-se-lhes quarenta e seis
canoas; tomaram-se ao todo duzentas armas de fogo, mosquetes e arcabuzes; dos
selvagens averiguou-se depois que faltavam quatrocentos, a maior parte mortos
afogados. De parte dos portugueses as perdas foram insignificantes.
A derrota quebrantou o ânimo de La Ravardière. Em vez de procurar desforrar-se
logo, entabulou a 21 uma correspondência com Jerônimo de Albuquerque,
concebida em termos duros, que foi abrandando gradualmente. Os portugueses
achavam-se em situação difícil: o inimigo dominava as entradas com sua frota;
socorros poderiam vir pelo Preá, e o Preá admitia vasos de pequeno calado.
Apesar de tudo sua confiança mantinha-se inalterável: «somos homens que um
punhado de farinha e um pedaço de cobra quando o nos sustenta», escrevia
Jerônimo de Albuquerque; «somos gente que não podemos nadar tanto mar quanto
daqui à Espanha; pelo que ainda que hoje tendes a barra, nós temos a terra que
pisamos, a qual sempre será de nossos corpos até que Sua Majestade d'el-rei da
Espanha, nosso senhor, cujo tudo é, outra coisa ordene», segundava mais difuso
Diogo de Campos.
Da correspondência e das práticas nasceu a idéia de tréguas. As duas metrópoles
estavam amigas e aliadas no velho mundo, por que se degladiariam neste? A 27,
convencionou-se a suspensão das hostilidades até fim de dezembro de 615; nem os
franceses iriam ao continente, nem os portugueses à ilha, e evitariam ambos entrar
em contacto com os índios de uma e outra jurisdição; seriam permutados sem
resgate os prisioneiros; ficaria o mar franco aos portugueses; socorro de gente de
guerra não suspenderia o armistício; a nação obrigada a retirar-se teria três meses
para os aprestos; dois representantes de cada beligerante iriam à corte de Madrid e
à de Paris, saber de Suas Majestades Católica e Cristianíssima suas vontades
sobre quem deveria ficar no Maranhão.
Depois disso o capitão-mor da conquista mandou Manuel de Sousa de , num
caravelão, a Pernambuco levar a notícia do sucedido ao governador geral. A nau
Regente, que se batera com a guarnição do Rosário, em Jererecuacara, partiu a
16 de dezembro, levando os emissário Du Prat e Gregório Fragoso para França. A 4
de janeiro de 1615 saiu para Portugal Diogo de Campos com Mathieu Maillart, numa
caravela comprada a este por 500 cruzados; a 3 de março apresentava-se ao vice-
rei d. Aleixo de Menezes. O sargento-mor aproveitou a travessia para escrever a
Jornada de Maranhão.
Na corte foi acolhido com frieza o resultado da expedição, e a vontade
aumentou quando inesperadamente chegou Manuel de Sousa de Sá, enviado a
Pernambuco mas levado pelos ventos e correntes às Indias ocidentais, donde lhe
deram condução para a Europa. Conhecida a versão de Manuel de Sousa, diferente
em pontos essenciais da de Diogo de Campos, aprestou-se para o Maranhão um
patacho com munições, pólvoras e mais coisas necessárias, que em começos de
junho passou pelo Ceará. Nele parece ter voltado Martim Soares, com o posto de
sargento-mor, na ausência do tio. Falou-se em castigar este, mas prevaleceu o
alvitre de mandá-lo com Sousa de a Gaspar de Sousa, a quem com maior
empenho se ordenou a ultimação da empresa.
Não se descuidara o governador. Em junho mandara Francisco Caldeira de Castelo
Branco, antigo capitão-mor do Rio Grande, comandando uma armada composta de
um patacho, duas caravelas e um caravelão grande, que chegou a Santa Maria de
Guaxenduba em 1 de julho, fazendo a viagem por fora do Preá. La Ravardière foi,
apesar da trégua, intimado a abandonar a terra, e, depois de relutar, cedeu em
promessa; mas, porque rebentassem discórdias entre os dois chefes portugueses,
foi-se deixando ficar, Jerônimo de Albuquerque transferiu-se para a ilha, onde
fundou uma cerca e um forte, chamado de S. José. Provavelmente vem daí o nome
atual desta baía.
Manuel de Sousa encontrou o governador geral em Pernambuco, e deu-lhe cartas e
ordens. Sem demora Gaspar de Sousa aprestou nove navios, cinco dos quais
grandes, com mais de novecentos homens, muito armamento e dinheiro, plantas e
gado para povoarem a terra.
Conferiu o comando a Alexandre de Moura que, partindo a 5 de outubro do Recife, a
17 chegava ao Preá, onde breve se convenceu de não serem para aquele canal as
suas embarcações. Cumpria navegar por fora, fazer sondagens, arrostar a baía de
S. Marcos, as terríveis fortificações, inexpugnáveis no sentir de Abbeville. E não
havia tempo a perder, pois a fortaleza de S. Jo se incendiara, e Jerônimo de
Albuquerque, capitão-mor antes de nome que de fato, porque os portugueses
achavam-se divididos em dois partidos dominados por ódios violentos, estava
reduzido a pouca pólvora e às armas salvas do incêndio.
A 1 de novembro decidiu-se a investir a entrada de São Marcos; um patacho menor
foi adiante, mostrando o caminho, e a armada surgiu fora do alcance da artilharia
inimiga. Jerônimo de Albuquerque marchou por terra com forças; um posto foi
guarnecido com oito peças de artilharia, cento e cinqüenta soldados, duzentos
frecheiros; cem homens com seis peças guardariam a entrada da barra. A 3 foi
intimado La Ravardière a entregar a colônia e a fortaleza, com toda a artilharia e
munições existentes dentro e fora dela, com todos os navios grandes e pequenos,
sem por tudo receber indenização alguma. Obrigava-se Alexandre de Moura a dar
condução para a França; os franceses se obrigariam a partir apenas recebessem os
navios e deixassem reféns. E este favor se lhe faz, concluía, pelas alianças que hoje
há entre os senhores reis Católico e Cristianíssimo.
A fortaleza foi entregue; em duas naus sem artilharia, mandadas separadamente,
partiram os franceses para a pátria; La Ravardière teve de acompanhar o vencedor
a Pernambuco. Anos mais tarde andava em Lisboa, requerendo mercês e alegando
serviços, por haver largado o Maranhão com a sua fortaleza e artilharia. Assim, o
mesmo ano de 1615 assistiu à derrocada final dos franceses depois de quase um
século de resistência: em Cabo Frio, por mão de Constantino Menelau, no
Maranhão pelo antigo capitão-mor de Pernambuco.
Trazia Alexandre de Moura instruções para expulsar os franceses do Pará e ir até o
Amazonas. Como no Pará não existisse estabelecimento francês e o Amazonas
estivesse desocupado, mandou em seu lugar Francisco Caldeira de Castelo Branco
com cento e cinqüenta homens, dez peças de artilharia e três embarcações. Além
de colher outras vantagens, afastava do Maranhão um elemento perturbador. Em
companhia de Castelo Branco seguiu um piloto francês, e o famoso Charles
Desvaux «de quem ele, dito capitão-mor, deve fazer uma conta, com a cautela
devida». Antônio Vicente Cochado foi como piloto.
Partiram no dia de Natal, correndo a costa, fazendo sondagens, dando fundo todas
as noites, tomando as conhecenças da terra, numa extensão de cento e cinqüenta
léguas. Entraram na barra pela ponta de Saparará, e seguiram por entre ilhas, bem
acolhidos pelo gentio disposto em seu favor, graças à derrota dos franceses; muitos
dos naturais usavam cabelo comprido e de longe pareciam mulheres; encontraram
notícias imprecisas de flamengos e ingleses que freqüentavam aquelas regiões.
A 35 guas do mar, na margem direita do Pará, Francisco Caldeira de Castelo
Branco fundou a fortaleza, e chamou-a Presepe.
Estava dado o primeiro passo para a ocupação do Amazonas.
Agora um rápido lancear do país, pelos anos de 1618, quando escrevia autor do
Diálogo das Grandezas do Brasil, e Fr. Vicente do Salvador preparava-se para
redigir sua história.
Os estabelecimentos fundados por portugueses começavam no Pará quase sob o
Equador e terminavam em Cananéia além do trópico. Entre uma e outra capitania
havia longos espaços desertos, de dezenas de léguas de extensão. A população de
língua européia cabia folgadamente em cinco algarismos.
A camada ínfima da população era formada por escravos, filhos da terra, africanos
ou seus descendentes. Aqueles aparecem menos numerosos pela pouca densidade
originária da população indígena, pelos grandes êxodos que os afastaram da costa,
pelas constantes epidemias que os dizimaram, pelos embaraços, nem sempre
inúteis, opostas ao seu escravizamento.
Acima deste rebanho sem terra e sem liberdade, seguiram-se os portugueses de
nascimento ou de origem, sem terra, porém livres: feitores, mestres de açúcar,
oficiais mecânicos, vivendo do seus salários ou do feitio de obras encomendadas;
em geral o mecânico sabia vários ofícios, pois um não garantia a subsistência, e
ia trabalhar pelas fazendas quando a simplicidade das ferramentas o permitia ou os
proprietários possuiam a ferramenta em casa.
Entre os proprietários rurais ocupavam lugar modesto os lavradores de mantimento
e os criadores de gado: a criação avultava somente a uma e outra margem do baixo
São Francisco: seu grande desenvolvimento se operou mais tarde, quando se
separou da lavoura e invadiu os campos e as catingas do interior.
Coroava esta hierarquia o senhor de engenho. Havia engenhos movidos por água e
por bois; servidos por carros ou por barcos; situados à beira-mar ou mais apartados,
não muito, porque as dificuldades de comunicações apenas permitiam arcos de
limitados raios. O engenho real devia possuir grandes canaviais, lenha abundante,
boiada capaz ou barcos e barqueiros suficientes, escravatura, aparelhos diversos,
moendas, cobres, fôrmas, casas de purgar, pessoal adestrado para o preparo do
açúcar, pois a matéria prima passava por diversos processos antes de ser entregue
ao consumo: alguns possuiam igreja, capelão melhor remunerado que os vigários, e
às vezes incumbido de ensinar rudimentos de leitura à meninada. O senhor de
engenho opulento remetia a safra diretamente para o Reino, e recebia o pagamento
do além-mar em fazendas finas, vinhos, farinha de trigo, em suma, coisas de gozo
ou de luxo.
A casa da gente rica representava uma economia autônoma: o nec est quod putes
illum quidquam emere, omnia domi nascuntur, de Petrônio, não podia ser praticado
ao da letra, mas correspondia até certo ponto à realidade. Para os escravos
fiava-se e tecia-se a roupa; a roupa da família era feita no meio dela; da
alimentação, fornecida por peixe de água doce ou salgada, mariscos apanhados
nos mangues ou caça, estavam encarregados os escravos; a criação miúda de
voláteis, ovelhas, cabritos e porcos evitava as surpresas de hóspedes da última
hora: não havia açougues ou mercados: «as casas dos ricos (ainda que seja á custa
alheia, pois muitos devem o que têm) andam providas de todo o necessário, pois
têm escravos pescadores e caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de
vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vezes se não acha isto de
venda».
A mercatura representava-se por embarcadiços vindos do Reino com
carregamentos que tratavam de liquidar, de modo a voltar no mesmo navio, ou de
mascates que iam pelos lugares mais afastados, a vender miudezas. Nas
transações dominava a permuta ou empréstimos de gêneros; transações a dinheiro
não se conheciam ou eram raríssimas, e como ninguém sabia aproximadamente de
suas posses, o endividamento era geral.
Na economia naturista, foi observado, por um economista recente, nunca se
produzem demais os gêneros consumidos em casa; se superabundância de
algum, guarda-se, dá-se ou deixa-se estragar; daí, a hospitalidade, as festas
pantagruélicas e também o jogo. Talvez nas paradas achasse seu melhor emprego
o pouco dinheiro girante; o resto ia em festas eclesiásticas ou profanas.
A ausência de capitais restringia muito as satisfações da vida coletiva: não havia
fontes, nem pontes, nem estradas; se por alguma circunstância favorável, construía-
se alguma, à falta de conservação estragava-se ou ficava de todo arruinada. Como
não havia dinheiro, os impostos eram levados à praça, e o contratador pagava-se
em gêneros. as casas de misericórdia eram até certo ponto devidas à ação
incorporada. As sedes das capitanias, mesmo as mais prósperas, reduziam-se a
meros lugarejos; a gente abastada possuía prédios nas vilas, masos ocupava no
tempo das festas; a população permanente constava de funcionários, mecânicos,
regulares ou gente de vida pouco edificante.
Ajunte-se a isto a natural desafeição pela terra, fácil de compreender se nos
transportamos às condições dos primeiros colonos, abafados pela mata virgem,
picados por insetos, envenenados por ofídios, expostos às feras, ameaçados pelos
índios, indefesos contra os piratas, que começaram a surgir apenas souberam de
alguma coisa digna de roubar. Mesmo se sobejassem meios, não havia pendor a
meter mãos a obras destinadas aos vindouros; tratava-se de ganhar fortuna o mais
depressa possível para ir desfrutá-la no além mar. Informa-nos Gandavo que os
velhos acostumados ao país não queriam sair mais. Seriam estes seus primeiros
entusiastas.
Desafeição igual à sentida pela terra nutriam entre si os diversos componentes da
população.
Examinando superficialmente o povo, discriminaram-se logo três raças irredutíveis,
oriunda cada qual de continente diverso, cuja aproximação nada favorecia. Tão
pouco próprios a despertar simpatia e benevolência, antolhavam-se os mestiços,
mesclados em proporção instável quanto à receita da pele e dosagem do sangue,
medidas naqueles tempos, quando o fenômeno estranho e novo, em toda a energia
do estado nascente, tendia a observação ao requinte e superexcitava os sentidos,
medidas e pesadas com uma precisão de que não podemos mais formar idéia
remota, nós afeitos ao fato consumado desde o berço, indiferentes às peles de
qualquer aviação e às dinamizações do sangue em qualquer ordinal.
A desafeição entre as três raças e respectivos mestiços lavrava dentro de cada
raça. O negro ladino e crioulo olhava com desprezo o parceiro boçal, alheio à língua
dos senhores. O índio catequizado, reduzido e vestido, e o índio selvagem ainda
livre e nu, mesmo quando pertencentes à mesma tribo, deviam sentir-se
profundamente separados. O português vindo da terra, o reinol, julgava-se muito
superior ao português nascido nestas paragens alongadas e bárbaras; o português
nascido no Brasil, o mazombo, sentia e reconhecia sua inferioridade.
Em suma, dominavam forças dissolventes, centrífugas, no organismo social; apenas
se percebiam as diferenças; não havia consciência de unidade, mas de
multiplicidade. muito devagar foi cedendo esta dispersão geral, pelos meados do
século XVII. Reinóis e mazombos, negros boçais e negros ladinos, mamalucos,
mulatos, caboclos, caribocas, todas as denominações, enfim, sentiram-se mais
próximos uns de outros, apesar de todas as diferenças flagrantes e irredutíveis, do
que do invasor holandês: daí uma guerra começada em 1624, e levada ao fim, sem
desfalecimentos, durante trinta anos. Em São Vicente, no Rio, na Bahia, e em
outros lugares, por meios diferentes, chegou-se ao mesmo resultado.
Sobre o modo de administração de toda esta gente informa-nos a folha geral do
estado, organizada em 1617.
Subiam todas as despesas públicas a cinqüenta e quatro contos, cento e trinta e
oito mil, duzentos e noventa e oito réis, repartidos pelas quatro rubricas de igreja,
justiça, milícia e fazenda.
Constituía todo o país uma só diocese; o Bispo assistia na Bahia com o Cabido; dois
administradores, um para as capitanias do Norte e estabelecido na Paraíba, outra
para as capitanias do Sul e residindo no Espírito Santo, seguiam-se em hierarquia;
cada capitania formava uma freguesia, com seu vigário e coadjuntor, exceto a de S.
Vicente, que contava as vigararias de Itanhaém, São Vicente, Santos e São Paulo; a
de Espírito Santo, com as de Vitória e E. Santo; a da Bahia com as de Vila-Velha,
Santo Amaro, S. Iago, Peruaçu, Paripe, Matoim, N. S. do Socorro, Sergipe do
Conde, Taparica, Passé, Pirajá, Cotegipe, Tamari e Sergipe del Rei; a de
Pernambuco com as de Olinda, São Pedro, Recife, S. Lourenço, Igaraçu, S.
Antônio, Várzea, Moribeca, S. Amaro, Pojuca, Serinhaém e Porto Calvo; a de
Itamaracá, com a da ilha e a da Goiana. A todo este pessoal o governo pagava
ordenado e ordinária para a celebração do culto; para isso o rei arrecadava o
dízimo, como grão-mestre da Ordem de Cristo.
Havia colégio de jesuítas, conventos Capuchos, Carmelitas ou Beneditinos na
Bahia, Rio, Espírito Santo, Pernambuco, e todos recebiam auxílios sob diversas
formas, em gêneros ou dinheiro. Quase todas as capitanias sustentavam casas de
misericórdia, que o governo socorria.
À frente da justiça estava a Relação instalada na Bahia com um numeroso pessoal
de desembargadores, ouvidor-geral, etc.; nas capitanias reais parece que a
jurisdição de primeira instância cabia aos juízes ordinários, renovados anualmente;
as dos donatários possuíam ouvidores que muitas vezes eram os próprios capitães-
mores: pouco informa a este respeito a folha geral.
Encabeçava o corpo da fazenda o provedor-mor, estabelecido na capital, a quem
estavam subordinados em cada capitania o provedor e escrivão da fazenda, o
almoxarife e o porteiro das alfândegas.
Ao lado das capitanias de donatários, São Vicente, S. Amaro, Espírito Santo, Porto
Seguro, Ilhéus, Pernambuco e Itamaracá, havia as capitanias reais do Rio, Bahia,
Sergipe, Paraíba, Rio Grande, Ceará, Maranhão, Pará.
Chefe da milícia e em geral da administração era o Governador Geral com assento
na Bahia. A milícia era representada pela tropa paga, e pelas ordenanças, espécie
de guarda nacional.
E agora vistas as vantagens do domínio espanhol na eliminação completa dos
franceses e na rapidez da marcha para o Amazonas, vejamos o reverso da
medalha, nas guerras flamengas dele originadas.
8 - GUERRAS FLAMENGAS
As relações entre Portugal e Flandres, iniciadas desde a idade média, continuaram
ainda depois de descoberto o caminho marítimo das Índias e achado e colonizado o
Brasil. Iam os flamengos a Lisboa adquirir as drogas e gêneros exóticos, apenas
desembarcados, e retalhavam-nos pela vasta clientela do Norte e Ocidente da
Europa, poupando canseiras e garantindo lucros imediatos aos portugueses; estes,
além do dinheiro de contado, proviam-se, graças aos seus fiéis fregueses, de
cereais, peixe salgado, objetos de metal, aparelhos náuticos, fazendas finas.
Modificou-se esta situação vantajosa para ambas as partes quando a monarquia
espanhola abarcou a península inteira e os inimigos de Castela passaram a ser os
de Portugal. Em 85, Filipe II mandou confiscar os navios flamengos ancorados em
seus portos, aprisionando-lhes as tripulações. O mesmo se fez em 90, 95 e 99.
Dificilmente se conceberia mais terrível golpe contra um povo que do comércio
marítimo auferia o melhor de suas riquezas, base de uma independência comprada
a poder de sangue. Depois de tanto heroísmo teria de sujeitar-se ao domínio do
Meio-Dia? Para escapar a estes apuros brotaram os mais desencontrados alvitres:
procurar pelo Norte da Ásia outro caminho marítimo para a China e Índia; transferir a
atividade comercial para o Mediterrâneo; apossar-se do estreito de Magalhães.
Tudo isto se tentou, de tudo se tirou resultado negativo. Por que não se afrontaria o
cabo da Boa Esperança, a buscar os gêneros do Oriente nos próprios lugares de
sua procedência?
Em 95, mercadores de Amsterdam arriscaram a primeira viagem ao oceano Índico,
viagem demorada, de pouco proveito imediato, mas fecundíssima em
conseqüências, pois logrou a certeza da fragilidade do domínio peninsular naquelas
regiões alongadas. Da mesma cidade partiram outros navios em maio de 98,
terceira expedição em abril, quarta em dezembro de 99. Em várias províncias
surgem negociantes arrojados, improvisam-se companhias opulentas, ávidas de
despojos e aventuras no amplo teatro que agora se abria. A emulação salutar
ameaçava degenerar em rivalidade perniciosa. Homens sagazes anteviram o perigo;
intervieram os Estados Gerais, e por meio de concessões e privilégios conciliaram
as pretensões divergentes, fundando a Companhia das Índias Orientais no começo
de 1602.
A trégua de doze anos, assentada em 1609 entre os Países Baixos e a Espanha,
em nada interrompeu a carreira aventurosa da Companhia, que com poucos anos
de existência se impôs aos príncipes indígenas, repeliu os ingleses, derrocou a
aparatosa fábrica luso-hispânica, monopolizou o trato das especiarias, distribuiu
dividendos enormes, prestou serviços inestimáveis ao governo das Províncias
Unidas.
Na constância do armistício sazonou a idéia de uma companhia das Índias
ocidentais, análoga à outra nos intuitos e na organização, que obteve foral a 3 de
junho de 1621. Seu capital seria de sete milhões, cento e tantos mil florins; o
privilégio duraria vinte e quatro anos; constaria de cinco câmaras, representando os
acionistas de Amsterdam, Zelândia, cidades do Maas, o distrito do Norte e a Frísia;
os diretores, em número de dezenove, funcionariam alternadamente em Amsterdam
e Middelburg. A esfera privilegiada seria, na África, do trópico de Câncer ao cabo da
Boa Esperança; ao Ocidente, desde Terra-Nova, no Atlântico, até o estreito de
Anian no Pacífico.
Os Estados Gerais concederam-lhe faculdade de construir fortes na região
outorgada, contrair tratados com os príncipes e povos indígenas, nomear
autoridades e funcionários; obrigaram-se a subvencioná-la, para ficar com direito a
certa parte dos dividendos; forneceriam soldados e naus de guerra em condições
especificadas. Em suma, deixando de parte diferenças patentes, a Companhia das
Índias Ocidentais filiou-se ao sistema dos donatários iniciados por d. João III.
A Companhia deixou sinais de sua passagem no território africano, nas costas dos
Estados Unidos, nas Antilhas, no Brasil, no Chile. A nós importam os feitos
ocorridos em nossa terra.
Sua criação foi acolhida com frieza na Holanda; ainda em 622 o estava subscrito
um quinto sequer do capital que ficou integralizado depois de obtidas vantagens
suplementares, entre outras, o monopólio de exportação do sal brasileiro, em 1624.
Desde 623 começou a preparar uma expedição contra a Bahia. Vinte e três navios e
três iates com quinhentas bocas de fogo, tripulados por mil e seiscentos
marinheiros, foram aos poucos se reunindo em S. Vicente do Cabo-Verde nos fins
deste e no começo do seguinte ano. A 26 de março partiram rumo de SW, a 4 de
maio descobriram costa do Brasil, a 8 surgiram diante da baía de Todos-os-Santos e
foram vistos de terra.
Governava a cidade do Salvador e o Brasil em geral Diogo de Mendonça Furtado.
Tinham-lhe chegado notícias do perigo iminente e procurara prevenir-se.
Sobejavam-lhe coragem e boa vontade, faltava-lhe tudo o mais: as fortalezas
arruinadas umas, outras por acabar, a barra larga e franca, acessível sem prático às
maiores embarcações a qualquer hora do dia e da noite, a guarnição reduzida e
imbele, a população trépida, prestes a fugir mal avistava qualquer vela suspeita, não
encerravam elementos de resistência eficaz. Acresciam dissenções entre o
governador e o bispo e, como de costume, entre uma e outra metade do povo,
sempre ávido de questões entre os potentados.
A 9 de maio a armada enfiou a barra e dirigiu o ataque por terra e por mar. Na ponta
de S. Antônio, à entrada, desembarcaram mil e duzentos soldados e duzentos
marinheiros: e à sua aproximação a força dos colonos postada retirou-se às
carreiras, semeando o pânico. Dos fortes houve alguns disparos, alguns navios
pareceram dispostos a resistir; quando o inimigo se aproximou, recorreu-se ao
incêndio para evitar fossem cair-lhe às mãos os ricos carregamentos de açúcar,
pau-brasil, fumo e peles. Mesmo assim, muitos foram salvos.
À noite, bispo, eclesiástico, os moradores que puderam abandonaram a cidade. Ao
amanhecer, além de escravos e gente baixa sem nada a perder, encontravam-se
apenas o governador e alguns fiéis na cidade deserta. Com facilidade os invasores
prenderam-nos e mais tarde mandaram-nos para a Holanda. Os fugitivos
acomodaram-se como puderam em engenhos próximos, aldeias de índios, debaixo
de árvores, ao céu aberto. Quantas privações passaram e como foi difícil sustentar e
conter esta multidão, pode-se bem imaginar. Ainda depois de reunidos em arraial e
estabelecida certa ordem, a empresa nada tinha de fácil.
As vias de sucessão, então abertas, nomeavam para substituto do governador a
Matias de Albuquerque Coelho. Estava em Pernambuco, capitania hereditária de
seu irmão, em cujo nome governava, a mais de cem léguas de distância. Antes que
recebesse a notícia e tomasse qualquer providência, perder-se-ia tempo, um tempo
precioso. Elegeu-se, pois, capitão-mor interino o desembargador Antão de Mesquita;
dentro em pouco, por motivos pouco conhecidos ainda, ficou sendo governador de
fato o bispo dom Marcos Teixeira.
Uma coisa havia a fazer com os recursos da terra: cercar o invasor dentro da
cidade, impedindo que penetrasse pelas cercanias para renovar provisões,
impossibilitando as adesões das classes baixas, indiferentes à mudança do senhor,
pois o cativeiro prosseguiria invariável. A falta de armamentos apropriados, a
escassez e por fim a carência completa de pólvora limitaram as operações à arma
branca; à flecha, ao combate singular, à tocaia; as companhias de emboscadas, em
número de trinta, composta cada uma de poucas dezenas de combatentes, pelo
subitâneo da aparição nos lugares mais diversos, mantiveram o inimigo
sobressaltado; a multiplicidade dos assaltos, quase sempre coroados de êxito,
alimentava a coragem e fortaleceu o espírito patriótico.
Entretanto chegava a Pernambuco a notícia de ser tomada a cidade. Matias de
Albuquerque, informa um contemporâneo, nem de dia, nem de noite, se poupava ao
trabalho. Não quis nunca andar em rede, como no Brasil se costuma, senão a
cavalo ou em barcos, e quando nestes entrava não se assentava, mas em ia ele
próprio governando. Tinha grande memória e conhecimento dos homens, ainda que
uma vez os visse, e ainda dos navios que uma vez vinham àquele porto. Esta
atividade fervorosa, unida a uma energia indomável, ver-se-á melhor no decurso da
narrativa.
Por sua ordem partiu logo Francisco Nunes Marinho em dois caravelões, com
pólvora, munições de fogo e de boca e trinta soldados. Trataram-no mal as
tormentas; de vergas e mastros quebrados, arribou a Sergipe; mas em começos
de setembro juntava-se à gente do arraial. Sob o seu governo as guerrilhas
avançaram para o interior da Bahia até Itapagipe, para o lado da barra até a ponta
de Santo Antônio; novas e mais fortes trincheiras foram levantadas. Dois barcos, um
no Itapoã, e outro no morro de S. Paulo, vigiavam o mar, avisando os navios
portugueses que evitassem o porto, para não serem aprisionados como o haviam
sido outros.
Pequenos socorros do Reino iam chegando a Pernambuco e Matias de Albuquerque
reforçava-os, e encaminhava-os sem perda de tempo. Graças a ele, d. Francisco de
Moura, vindo com o título de capitão-mor do recôncavo, conduzindo três caravelas,
partiu de Recife depois de demora de oito dias, levando seis caravelões, oitenta mil
cruzados de provimentos novos. A 3 de dezembro troava a artilharia no
acampamento, e os holandeses, curiosos da novidade, então souberam como ao
bispo, poucos dias antes de falecer, sucedera Francisco de Moura, antigo
governador do Cabo Verde.
Na cidade conquistada as coisas corriam mal para o inimigo. Johannes van Dorth,
governador pela Companhia, foi morto numa emboscada. Albert Schout, seu
sucessor, tratou das fortificações, mas em festas e banquetes apanhou uma
enfermidade, que em poucos dias o levou. Willem Schout, seu irmão, mostrou-se
alheio às responsabilidades do cargo.
Contudo a situação poderia manter-se indefinidamente, máxime dominando o
oceano a armada da Companhia; tratava-se de saber quem receberia primeiros
socorros de além-mar. Por uma felicidade nunca mais repetida foram os nossos. A
corte espanhola, geralmente desatenta e inerte, desta vez sentiu a gravidade do
golpe; o rei, ou antes Olivares, seu ministro onipotente, percebeu a ameaça implícita
contra o México e o Peru; cartas régias do próprio punho, procissões, novenas,
excitaram o espírito público; a nobreza da Espanha e a de Portugal alistaram-se
com entusiasmo na cruzada contra o hereje rebelde; fidalgos e prelados fizeram
largos donativos, fretaram navios, custearam companhias; as armadas de Portugal,
do Oceano, do Estreito, de Biscaia, das Quatro-Vilas, de Nápoles, somaram
cinqüenta e dois navios de guerra; mais de doze mil homens d'armas embarcaram
para o Novo Mundo. Comandante geral de todas as forças era d. Fadrique de
Toledo.
A armada chegou à Bahia sábado da aleluia, 29 de março de 1625, no mesmo dia
que aportara Tomé de Sousa, o fundador da cidade, setenta e seis anos antes.
Formou em meia-lua, da ponta de Santo Antônio à de Itapagipe, fechando a saída
aos navios holandeses ancorados.
A tropa desembarcou em Santo Antônio e tomou logo posição em São Bento,
Palmeiras, Carmo e outros morros. A 2 de abril travou-se o primeiro combate,
seguido de outros. O cerco apertou-se por terra e por mar. Os sitiados foram
obrigados a render-se. A 30 de abril assinava-se a capitulação. A 1 de maio abriram-
se as portas e entrou o exército vencedor. A 26 apareceu na barra o socorro
holandês, trinta e quatro naus, comandadas por Boudewiyn Hendrikszoon. Ambas
as armadas evitaram porém travar novos combates e os holandeses foram piratear
em outras regiões mais indefesas.
Nos anos seguintes a Companhia mandou diversos navios que estiveram no Brasil e
em outras partes da África e da América, devastando e saqueando. Seu triunfo mais
completo foi a tomada da frota espanhola, junto à costa de Cuba, por Pieter Heyn,
em setembro de 1628. De uma só vez entraram-lhe para os cofres mais de quatorze
milhões, o duplo do capital inicial; os dividendos subiram a 50%. Com as finanças
restauradas, preparou nova expedição ao Brasil; agora preferiu Pernambuco para
ponto de investida.
A 26 de dezembro de 629 zarpou de S. Vicente uma armada de cinqüenta e dois
navios e iates, e treze chalupas, poderosamente artilhados, com três mil setecentos
e oitenta marinheiros, três mil e quinhentos soldados; a 3 de fevereiro de 630
avistou o Brasil; a 13 chegou em frente a Olinda; no dia seguinte abriu o ataque.
Comandava a capitania Matias de Albuquerque, neto do velho Duarte Coelho, irmão
do quarto donatário. Com as notícias da próxima invasão, partira de Lisboa a 12 de
agosto de 629, trazendo vinte e sete soldados e alguma munição em uma caravela.
Chegou ao Recife a 18 de outubro, e entregou-se com todo o devotamento à obra
desesperada.
As fortalezas estavam arruinadas como na Bahia. Se a barra do Recife não oferecia
as comodidades da baía de Todos-os-Santos e não custaria cegá-la, em
compensação dava fácil desembarque desde Pau-Amarelo ao Norte, até Candelária
ao Sul, na extensão de sete léguas. Poder-se-ia ao menos contar com o sangue frio
da população?
O inimigo dividiu a ofensiva por três pontos. O grosso da armada, comandada pelo
almirante Loncq, investiu a barra, e estacou por achá-la obstruída. Outro troço
dirigiu-se diretamente para Olinda. Com três mil homens o coronel Diedrich van
Weerdenburgh aproou primeiro para o rio Tapado, depois para o Pau-Amarelo, mais
ao Norte, onde desembarcou na tarde de 15 de fevereiro. Na manhã seguinte,
formado em três colunas, marchou para o Sul; as pequenas resistências
esporádicas da nossa gente cederam à tropa numerosa e às embarcações de que
saltara, que navegavam a pequena distância, apoiando-lhes os movimentos.
À entrada da vila alguns militares sacrificaram-se nobremente. O troço da armada
mandado de véspera contra ela apossou-se das trincheiras da praia. Quando
anoiteceu, o pavilhão batavo flutuava sobre a antiga Marim.
A população abandonou a vila e procurou abrigo nos matos e nos engenhos. A
soldadesca invasora entregou-se ao saque e à embriaguez. Matias de Albuquerque
mandou tocar fogo nos navios e nos armazéns para ao menos arrancar das garras
da Companhia o fruto do trabalho amargamente suado. A povoação de Recife,
iluminada pelos clarões de incêndio, converteu-se um montão de ruínas.
Defendiam-na ainda dois fortes: um no istmo que vai para Olinda, outro no próprio
recife. Reforçou-os o general com gente e munições, e mais de um ataque foi
repelido com vantagem; mas a 2 de março o de S. Jorge, velho, capaz de resistir
a ataques de índios, capitulou, e o de São Francisco da barra seguiu-lhe o exemplo.
Só então a armada holandesa entrou no porto.
Durante este tempo Matias de Albuquerque trazia sempre inquieto o inimigo.
Entregue aos próprios recursos não lograria desalojá-lo, mas tirava-lhe o sossego,
diminuia-lhe a confiança, reduzia-lhe o número, impedia-lhe as comunicações com a
gente da terra e nesta substituía o soçobro do primeiro momento pelo desejo de
lutar e desprezo de morrer: a dominação holandesa era um fato; não era, nunca
seria um fato consumado.
A 4 de março o general escolheu uma eminência quase a uma légua do Recife e de
Olinda, próximo do rio Capibaribe e ainda mais do riacho Parnamirim, ponto de boa
água e lenha. Com vinte pessoas começou a fortificação, plantando quatro peças.
Deu à obra o nome de arraial do Bom-Jesus. Pouco a pouco foram chegando
aderentes: aventureiros, senhores de engenho s ou seguidos de escravos, índios
aldeados. Entre estes entra logo a aparecer com um brilho que irá sempre
crescendo Antônio Camarão, chefe petiguar de vinte e oito anos de idade, o mais
fiel e preciso dos auxiliares. Dez dias mais tarde o arraial repelia com grandes
perdas um assalto do inimigo. Será esta a sua história perene durante os cinco anos
seguintes.
Como contar os sucessos desta guerra sem precedentes? Os conflitos feriam-se
diários, houve dias de mais de um. Holandeses que procuravam faxina ou frutos,
destacamentos que pelo istmo saíam de um para outro ponto, caíam em
emboscadas que surdiam a cada passo. Trincheiras tomadas a peito descoberto,
socorros mandados por terra aos pontos mais afastados, em concorrência com os
navios e não raro vencendo-os na rapidez; passagens de rios no momento da maré,
para atacar o centro das fortificações inimigas; fome, nudez, falta de pólvora, de
médicos e botica, tudo isso de tão comum passava despercebido. Estando, havia
quase dois anos, assente na vila de Olinda e povoação do Recife, ainda o invasor
não podia, nem o deixava nosso general por si e seus capitães, colher umavaca,
informa Duarte de Albuquerque. E acrescenta: «Solamente comian de lo que les
embiava Olanda; com que bien licitamente se puede decir que sobre estar de tanto
tiempo em tierra, aun navegavan, pues no tenian otros bastimentos mas de los
salados».
As notícias transmitidas à península não provocaram o alvoroço da tomada da
Bahia. Vieram socorros em pequena quantidade, a grandes intervalos e nem
sempre aproveitáveis, porque a Companhia dominava no mar, e ora se apossava
das caravelas mandadas para Pernambuco, ora as obrigava a vararem em terra,
perdendo os carregamentos ou deixando-os a grande distância dos lugares onde
faziam falta. Encapava-se esta desídia na corte sob um profundo maquiavelismo: a
melhor guerra contra a Companhia das Índias Ocidentais, alegavam estes
calculistas insondáveis, consistiam obrigá-la a despesas que com o tempo
arrastariam seu descalabro econômico!
em 631 partiu de Lisboa o famoso d. Antônio de Oquendo com uma armada de
vinte navios, a 5 de maio. Trazia socorros para Paraíba, Pernambuco e Bahia, e na
volta deveria comboiar as embarcações carregadas de açúcar para o Reino.
Procurou primeiramente a Bahia, como se quisesse dar tempo de prepararem-se
aos holandeses. Estes, apenas souberam da sua vinda, despediram com o mesmo
destino uma armada mandada por Adrian Pater.
Deu-se o encontro nas alturas dos Ilhéus, quando Oquendo demandava
Pernambuco, a 12 de setembro; atos de heroísmo houve de parte a parte; o
almirante batavo sepultou-se nas ondas com a capitânea; o resultado ficou indeciso,
isto é, a Companhia das Índias continuou dominando o mar. Com Oquendo vieram e
continuaram no Brasil Duarte de Albuquerque, donatário de Pernambuco, admirável
historiador desta guerra, desde o desembarque do Pau-Amarelo até o assalto da
Bahia por Nassau (1630-1638), e João Vicente de San Felice, conde de Bagnoli,
que aqui estivera com d. Fadrique de Toledo. Depois do combate dos Ilhéus, o
inimigo incendiou Olinda, desesperado de fortificá-la eficazmente, e concentrou-se
no Recife.
Até aqui sairam frustrados todos os esforços da Companhia para romper o círculo
de ferro em que a envolvera Matias de Albuquerque; apenas fundara na ilha de
Itamaracá o forte de Orange. Começa agora a sorrir-lhe a sorte. A 20 de abril de 32
passou para seu lado Domingos Fernandes Calabar, mulato natural de Porto Calvo,
aonde tinha mãe e alguns parentes. Segundo se pode concluir das poucas e
suspeitas notícias encontradas a seu respeito nos escritos contemporâneos,
Calabar exercia a profissão de contrabandista, nem de outro modo se podem
explicar os roubos feitos à fazenda real de que o acusam os nossos, pois não
deviam ter andado dinheiros públicos por suas mãos; para professar o contrabando
assinalavam-no a audácia, a presença de espírito, a fertilidade de invenções, o
profundo conhecimento das localidades. Era o único homem capaz de se medir com
Matias de Albuquerque, e como tinha sobre este a vantagem de dispor do mar,
desfechou-lhe os golpes mais certeiros. Qual móvel o levou a abandonar os
compatriotas, nunca se saberá; talvez a ambição, ou a esperança de fazer mais
rápida carreira entre estranhos, tornando-se pela singularidade de seus talentos
indispensável aos novos patrões ou, talvez, o desânimo, a convicção da vitória certa
e fácil do invasor.
Entre os feitos mais notáveis inspirados por Calabar contam-se o ataque ao Igaraçu,
várias incursões ao rio Formoso, a ocupação de Afogados, séria ameaça ao arraial
de Bom-Jesus, entradas por Alagoas, a tomada de Itamaracá e Rio Grande. Estes
últimos sucessos deixavam bem iniciada a conquista da Paraíba, agora mera
questão de tempo. Em fins de fevereiro de 34, uma armada para se dirigiu, e
durante dois dias o cessaram combates; tratava-se, porém, de simples diversão:
a verdadeira mira era, como se verificou logo no começo de março, o cabo de Santo
Agostinho. Neste porto desembarcavam os socorros vindos da Bahia; ali
embarcavam os frutos da terra destinados ao comércio; apossar-se dele era senão
impossibilitar de todo, pelo menos paralizar qualquer resistência ulterior.
O inimigo dividiu o ataque em três armadas, uma de treze, outra de onze navios,
outra composta de lanchas com mil homens encabeçados por Calabar.
Graças a seu conhecimento da localidade, os holandeses entraram no porto e
fortificaram-se no pontal. Um ataque violento dirigido contra eles, e começado sob
os melhores auspícios, fracassou devido ao pânico. O arraial passava agora ao
segundo plano: heroísmo sobraria sempre ali; o cabo de Santo Agostinho reclamava
a efervescência do general.
Com os auxílios recebidos de fresco, o inimigo dirigiu-se depois para a Paraíba, sob
o comando de Sigismundo von Schkoppe. Governava a praça Antônio de
Albuquerque, filho do conquistador do Maranhão, que bem mostrou não
desmerecera o sangue paterno. Foi-lhe, porém, impossível impedir o desembarque
do inimigo a 4 de dezembro. Os socorros, idos por terra, de Pernambuco, chegaram
tarde. Os fortes foram capitulando; véspera de Natal a cidade estava em poder da
Companhia. Antônio de Albuquerque ainda tentou fundar um arraial à semelhança
do de Bom-Jesus; não encontrou companheiros; os que não se quiseram sujeitar ao
domínio estrangeiro emigraram com ele para Pernambuco, e foram batalhar com
Matias.
No fim de cinco anos o invasor mandava desde o Rio Grande até o Recife; agora
resistiam-lhe apenas o arraial e o forte de Nazaré, no cabo de S. Agostinho.
Arciszewski desde Paraíba marchou por terra a apertar o cerco do arraial;
Sigismundo von Schkoppe seguiu do Recife para Guararapes a apertar o cerco de
Nazaré. Matias de Albuquerque, deixando-o entregue a soldados de confiança,
transferiu-se a Serinhaém, para de organizar e mandar os socorros. Por terra, por
mar, em caravelas, em jangadas, pelos caminhos mais defesos socorreu os
companheiros enquanto pôde; mas a resistência tem limites. «Afinal faltou o que
tudo rende, que é o sustento, e não de rocins, que isto seria regalo, mas de
couros, cachorros e gatos e ratos», escreve Duarte de Albuquerque. «E quando
disto houvesse o necessário, não havia pólvora nem outra munição. Não é de
admirar, pois, que se perdesse, não por certo; o admirável é que em tal estado o
sustentasse o governador André Marin com seus capitais três meses e três dias». À
rendição do arraial em 3 de junho seguiu-se a do forte de Nazaré a 2 de julho de
635. «Al salir nuestra gente cayeron algunos soldados muertos de que parece los
sustentava vivos el no moverse».
Bagnoli tinha-se retirado antes para Alagoas, e Matias de Albuquerque foi reunir-se
a ele com duzentos soldados de linha, menos de cem de emboscada e alguns
índios. A 3 abalou de Serinhaém este êxodo dos que não desesperavam.
«Iam sessenta índios com seus capitães Antônio Cardoso e João de Almeida,
ambos bem valentes, descobrindo adiante os caminhos e bosques, por serem nisto
tão práticos, como quem havia nascido neles. Seguiam-nos os capitães d. Fernando
de la Riba Agüero, Afonso de Albuquerque, d. Pedro Taveira Souto Mayor,
Francisco Rabelo, Luiz de Magalhães, Leonardo de Albuquerque.
Logo sucediam os moradores que se iam retirando, e levavam duzentos carros.
Atrás destes os capitães Martim Ferreira, João de Magalhães, d. Pedro Marinho,
Manuel de Sousa e Abreu, Rodrigo Fernandes, d. Gaspar de Valcáçar e Paulo
Vernola. Era retaguarda o capitão-mor dos índios Antônio Filipe Camarão, com
oitenta dos seus, armados de mosquetes e arcabuzes». Confiavam-se a índios os
postos de maior perigo! Precisam de outra justificativa os esforços de Nóbrega?
O caminho mais praticável passava em Porto Calvo, ocupado pelo inimigo. Matias
de Albuquerque, para facilitar a passagem, teria de atacá-lo; sua resolução tornou-
se inflexível quando soube da chegada de Calabar com um reforço de duzentos
soldados. Mandou adiante a gente imbele. O combate começou a 12 de julho e
continuou nos dias seguintes. A 19 o inimigo propôs capitular. Os sitiantes, sem os
índios, eram apenas cento e quarenta; o inimigo, além de Picard, chefe holandês, e
numerosos oficiais, contava trezentos e sessenta homens. Foram desarmados e
logo mandados aos pequenos troços para Alagoas, a fim de não conhecerem a
insignificância da força atacante e romperem o pacto à última hora. De todos Matias
de Albuquerque reservou para a justiça real o Domingos Fernandes Calabar. No dia
22, «strangulatusque, jugulo defectionem expiavit, et dissectos artus infidelitatis ac
miseriae suae testes ad spectaculum reliquit».
Desde muito anunciava-se a chegada de nova e mais forte frota espanhola com
socorros. Matias de Albuquerque deixara em diversos pontos do litoral pessoas fiéis
incumbidas de darem notícias da terra aos navegantes e fornecerem-lhes
indicações sobre o ponto mais convenientes para o desembarque. Devia partir em
março, depois em maio, partiu em 7 de setembro. Reunidos em Cabo Verde os
navios espanhóis e portugueses, comandados aqueles por d. Lope de Hoces y
Córdoba, estes por d. Rodrigo Lobo, decidiram aproar a Pernambuco.
A 26 de novembro avistaram Olinda, e logo em frente ao Recife surtas nove naus do
inimigo, carregadas de açúcar, pau-brasil, tabaco, algodão e gengibre, de partida
para a Holanda, cada uma com cinco ou seis homens apenas a bordo. Resolveu-se
atacá-las mas o almirante espanhol, a pretexto de suas naus serem maior calado,
deu contra-ordem. Nem ao menos se deteve um pouco à espera de algum
mensageiro de terra.
Sigismundo ante o aparelho bélico julgou-se perdido, mas a viração soprava de
Nordeste, as águas corriam para o Sul, e era agradável entregar-se às seduções da
corrente. No cabo de S. Agostinho um jangadeiro desfraldando a vela pôde
comunicar o recado: deitassem a gente no rio Serinhaém, mandassem um navio
buscar Matias de Albuquerque! As duas armadas entregaram a solução ao vento e
às águas; ao anoitecer de 28 ancoravam em Alagoas.
Vinham a bordo Pedro da Silva, nomeado sucessor de Diogo Luís de Oliveira no
governo geral do Brasil, Luis de Rojas y Borja, sucessor de Matias de Albuquerque.
Devia este recolher-se ao Reino; Duarte de Albuquerque continuaria no governo
político da sua capitania; a Diogo Luís de Oliveira cometia-se a reconquista de
Curaçau, antes de voltar para o Reino.
Matias informou largamente a Rojas y Borja do estado de cousas. Em suma, a
situação não era desesperada; urgia desandar o caminho percorrido, voltar para o
Norte, inquietar, expulsar o inimigo. Calaram estes conselhos: d. Luis pôs-se a
caminho de Pernambuco e apossou-se de Porto Calvo, ocupado pelo inimigo
apenas os nosso prosseguiram para o Sul, depois da execução de Calabar. Teria
forças para continuar as tradições e estaria à altura do seu heróico antecessor? Na
batalha de Mata Redonda (18 de janeiro), um mosquetaço na perna derrubou-o do
cavalo, outro no peito levou-lhe a vida, aos cinqüenta anos de idade. Pelas vias de
sucessão assumiu o comando supremo o conde de Bagnoli, velho militar muito difícil
de se julgar com justiça. Nossos escritores tratam-no sempre com menosprezo,
cobrem-no de apodos, negam-lhe até a virtude elementar da coragem individual.
Constitui uma exceção apenas Duarte de Albuquerque, sempre discreto e
circunspecto, mas sente-se que não expõe todo o seu pensamento. De Bagnoli, se
alguma linha foi publicada relativa ao período holandês, anda perdida em alguma
coleção escura: não sabemos como se defenderia dos acusadores. Em todo caso
uma honra lhe cabe: nunca desesperou.
Bagnoli assinalou seu comando pelo emprego de companhistas, aventureiros,
destemidos, que iam até as barbas do inimigo, aprisionando, degolando gente,
jarreteando gado, se não podiam conduzi-lo, queimando os canaviais, os açúcares,
o pau-brasil, os engenhos. Alguns avançaram até as fronteiras da Paraíba. Era
sempre o pensamento de Matias de Albuquerque: a conquista nunca seria fato
consumado. Algum tempo Bagnoli pensou em mover-se para o Norte e fortificou
ligeiramente o passo do rio Una, seis léguas ao Sul de Serinhaém. Talvez
contribuísse a animá-lo nesta iniciativa tão estranha à sua maneira habitual a
presença de Duarte de Albuquerque. Com este avanço os holandeses
abandonaram Paripuera e Barra Grande.
Tomado o arraial de Bom-Jesus, ocupada a fortaleza de Nazaré, a Companhia das
Índias Ocidentais achou a ocasião própria para nomear um governador geral, como
lhe permitia seu regimento.
Escolheu João Maurício, conde de Nassau-Siegen, membro da família de Orange, e
confiou-lhe interinamente o cargo por cinco anos. A 27 de janeiro de 637 aportou
Nassau a Pernambuco, onde deveria permanecer um octênio. Em sua companhia
ou logo depois vieram consideráveis reforços. Tratou sem demora de retomar Porto
Calvo. Do Recife partiram ao mesmo tempo trinta navios com dois mil infantes
mandados por Arciszewski, que a 12 de fevereiro fundearam em Barra Grande, e o
próprio Nassau com Sigismundo, levando três mil soldados e quinhentos índios, que
incólumes passaram o rio Una, já desguarnecido por Bagnoli.
Reunidos apresentaram-se a 17 diante do povoado; a 18 travaram um combate de
que a nossa gente não saiu com o melhor partido; a 20 subiram lanchas pelo rio das
Pedras, conduzindo artilharia e material; com o canhoneio, respondido sempre
galhardamente, baquearam os parapeitos do forte de Porto Calvo, misturando terra
nos mantimentos; a 5 de março a falta de víveres obrigou Miguel Giberton,
comandante da praça, a render-se.
Na noite de 18 de fevereiro, depois de mandar Alonso Ximénez com parte da força
pelo caminho da praia, escoltando a gente que se queria retirar para Alagoas,
Bagnoli tomou o mesmo destino pelo interior. A 25 chegava à vila de Madalena,
onde não julgou prudente demorar. A 10 de março continuou a marcha e a 17
chegava à vila de S. Francisco, recentemente erigida pelo donatário na margem
esquerda do rio, a meia distância entre a barra e a região encachoeirada. Duarte de
Albuquerque aconselhou-lhe fortificar-se no rio Piaguí, para resistir ao inimigo, caso
avançasse por terra; tão pouca atenção prestou a este como antes ao conselho de
fortificar eficazmente o passo da Una. Em ambos os casos o inimigo não deparou
tropeços.
A 18 Bagnoli fez os terços napolitano e castelhano atravessarem o rio para a
capitania de Sergipe; a 19 passou parte do terço de Portugal, a 26 passou o resto; a
27 chegaram os holandeses à vila e acharam-na vazia. Com a confusão, muitos dos
retirantes ficaram prisioneiros, salvaram-se outros perdendo todos os haveres. No
local abandonado por Bagnoli resolveu Nassau construir um forte chamado
Maurício: existe hoje a cidade de Penedo. Sigismundo foi incumbido da
construção e do comando. Nassau voltou para Pernambuco.
A 31 de março Bagnoli chegou a S. Cristóvão. Por sua ordem diversos
companhistas avançaram para Alagoas, ora acima, ora abaixo do forte, fazendo
suas costumadas façanhas. Trouxeram também a notícia de uma invasão planejada
no forte Maurício contra Sergipe, no intento de arrebanhar as numerosas manadas
de gado, e vingar-se dos audazes que não deixaram os holandeses sossegados em
suas novas conquistas. De fato, a 17 de novembro Sigismundo chegou a S.
Cristóvão, deserta, a 25 de dezembro queimou a cidade e retirou-se para o outro
lado do rio.
A 14 de novembro, sabendo da entrada do inimigo pelo território sergipano, Bagnoli
prosseguiu para a Bahia, com grande pesar e indignação dos emigrados de Paraíba
e Pernambuco, que haviam começado suas roças; a 24 alcançou a Torre de Garcia
d'Ávilla, onde recebeu ordem do governador geral para se deter. Com alguns
companheiros encaminhou-se a 15 de dezembro para a cidade do Salvador a
avistar-se com Pedro da Silva, governador geral do Estado. Receoso de próximo
ataque dos holandeses contra a capital do Brasil, vinha lembrar a conveniência de
estabelecer-se com sua gente na antiga povoação de Pereira, onde poderia com
suas forças auxiliar a resistência.
Nem Pedro da Silva, nem o povo acreditaram na iminência de tal perigo, ninguém
queria a soldadesca na vizinhança. Concordou-se que permaneceriam na Torre e,
contrariado embora, Bagnoli submeteu-se. Em breve, porém, seus companhistas
trouxeram notícia que Nassau preparava uma expedição destinada a tomar a Bahia
e, apesar de pactuado, marchou para Vila-Velha a 14 de março de 38.
Prisioneiros feitos por Sebastião do Souto, chegados ao acampamento em 8 de
abril, dissiparam as últimas dúvidas. A 16 numa forte armada Nassau entrava de
fato pela baía de Todos-os-Santos, com três mil e quatrocentos soldados europeus
e mil índios, e desembarcou em Itapagipe.
Nos dias seguintes apossou-se de alguns fortes, construiu trincheiras e baluartes,
despejou artilharia contra partes da cidade. A continuação correspondeu mal a tão
brilhante estréia: as tropas de Bagnoli e a guarnição, deixadas de parte rivalidades
mesquinhas, bateram-se com entusiasmo; a população, a princípio tumultuária e
desconfiada, acreditou por fim na bravura e capacidade dos defensores;
embarcações veleiras traziam sem cessar farinha de Camamu; entrou abundante
gado de Itapicuru e do Real; emboscadas repetidas faziam prisioneiros pelos quais
se ficava a par de todos os passos do inimigo; realizaram-se sortidas felizes. Na
noite de 25 para 26 de maio Maurício de Nassau encerrou as seis semanas de
carnificina, embarcando furtivamente para o Recife, não com tanta festa como se
prometia, nem com tanto contentamento como desejava.
A vitória foi conhecida na península quando se preparava uma forte armada
restauradora, composta de trinta e três navios, comandada por d. Fernando
Mascarenhas, conde da Torre. Partiu de Lisboa a 7 de setembro; depois de danosa
demora no pestilencial clima do Cabo Verde, passou à vista de Recife em 23 de
janeiro de 39, sem, tão pouco como as duas que a precederam, ousar atacá-lo, e
seguiu para a Bahia. Nassau aproveitou o aviso, e no prazo de quase um ano pelo
almirante português proporcionado, melhorou as fortificações, organizou um serviço
de informações rápidas e aparelhou uma esquadra.
Só a 19 de novembro a armada restauradora partiu da Bahia em demanda do Norte,
então elevada a oitenta e seis embarcações com onze a doze mil homens. A
situação de Nassau era aproximadamente a de Matias de Albuquerque dez anos
antes, com a grande vantagem de possuir a força naval que faltava àquele.
O conde da Torre poderia desembarcar nas proximidades de Santo Agostinho ou
Serinhaém; preferiu abordar o Pau-Amarelo. Não lho permitiu a vigilância do inimigo.
Apareceu depois a armada holandesa; entre a ponta de Pedras, o ponto mais
oriental do continente americano, e Canhaú, na costa do Rio Grande, renhiram-se
combates a 12, 13, 14 e 17 de janeiro de 40. Apenas cerca de mil soldados nossos
lograram tomar terra na ponta do Touro, donde Luiz Barbalho, por entre inimigos e
pelo sertão, novo Xenofonte, levou-os heròicamente à Bahia. o precedera por via
marítima com os destroços que pôde salvar o conde da Torre, acompanhado do
velho Bagnoli, que não tardou a falecer. O resto da esquadra dispersara-se em
várias direções.
Os flamengos sofreram grandes perdas; alguns de seus oficiais portaram-se
covardemente e foram executados; mas a vitória coube às suas armas e sua
posição consolidou-a mais do que nunca.
Podemos deixar em silêncio vários feitos navais dos holandeses e numerosas
incursões dos companhistas ocorridos em seguida; outro sucesso reclama de
preferência a atenção. A 1 de dezembro de 640 Portugal declarou-se independente
da Espanha, aclamou rei o duque de Bragança, tratou pactos de amizade com os
adversários da monarquia espanhola. A 12 de junho de 41 concluiu com a Holanda
um tratado de aliança ofensiva e defensiva na Europa, e nas colônias uma trégua de
dez anos, que devia vigorar para os domínios da Companhia das Índias Orientais
um ano depois da ratificação do tratado, e nos da companhia das Indias Ocidentais
apenas a notícia de haver sido ratificado fosse transmitida oficialmente. Esta
cláusula pouco lisa deve ter sido lembrada pelos portugueses, na esperança de
melhorarem a situação durante o interstício; de outro modo não se explica terem
demorado a ratificação até 18 de novembro. Em fevereiro de 42 os Estados Gerais
ordenaram às duas companhias cumprissem fielmente o pactuado.
Governava na Bahia, como primeiro vice-rei do Brasil, d. Jorge de Mascarenhas,
marquês de Montalvão, quando chegou a notícia dos sucessos de Portugal. Suas
medidas previdentes inutilizaram a pequena guarnição espanhola; todos os
magnatas aderiram à independência de Portugal e à aclamação do Bragança, e o
resto do país acompanhou-os, mesmo a capitania de S. Vicente, onde havia muitas
famílias de estirpe castelhana.
O vice-rei comunicou a novidade a Maurício de Nassau, que a recebeu contente e
celebrou-a com festas. O inimigo tradicional era o espanhol; tudo de contrário a este
resultava em proveito das Províncias Unidas. As relações melhoraram ainda com a
notícia do tratado de 12 de junho; como, porém, a ratificação se demorasse,
Maurício ampliou os domínios da Companhia no Maranhão e na África.
Os últimos anos do seu governo cabem em poucas palavras. Da obra do
administrador nada sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se na voragem
de fogo e sangue dos anos seguintes; suas coleções artísticas enriqueceram vários
estabelecimentos da Europa e estão estudando-as os americanistas; os livros de
Barlaeus, Piso, Markgraf, devidos a seu mecenato, atingiram uma altura a que
nenhuma obra portuguesa ou brasileira se pode comparar, nos tempos coloniais;
parece mesmo terem sido pouco lidos no Brasil apesar de escritos em latim, na
língua universal da época, tão insignificantes vestígios encontramos deles.
A cidade Mauricéia não guardou seu nome, mas prosperou e conserva sua
memória. Com o tulo de desforra, legado, vingança ou coisa semelhante, de
Maurício de Nassau, poderia um amante de fantasias históricas interpretar a guerra
dos Mascates adiante narrada, e não precisaria de esforço maior do que o
empregado para transformar Domingos Fernandes Calabar em patriota e vidente. A
origem principesca de Maurício lisonjeou os colonos e tornou-lhes mais repugnantes
os outros governadores, simples burgueses, meros dependentes da Companhia. Ele
próprio preveniu disto os sucessores, ao entregar-lhes o mando.
Frei Manuel Calado, que o conheceu e freqüentou, apresenta-o como fidalgo de
raça, capaz de sentir uma injustiça e repará-la, amante de festas e esplendores,
inclinado a farsas nem sempre do gosto mais delicado, admirador das belezas
tropicais, isento da preocupação de voltar as terras mais civilizadas. Em limpeza de
mãos ficou infinitamente abaixo de Matias de Albuquerque: está provado o seu
conluio em contrabandos com Gaspar Dias Ferreira que, como era natural, logrou-o
no ajuste das contas, feito em Holanda quando o príncipe já não governava.
À partida de Maurício de Nassau, em maio de 644, seguem-se dez anos
profundamente agitados.
Dos emigrados com Matias de Albuquerque alguns tinham voltado para as antigas
propriedades e procuravam reconstituir sua antiga abastança. O regime holandês
era duro, as extorsões contínuas; mesmo se Nassau fosse o justiceiro, em que
pretendem transfigurá-lo, não tinha braço bastante longo e bastante forte para
amparar todas as vítimas.
Os invasores desarmaram a população rural, preferindo deixá-la entregue às
devastações inclementes de companhistas a ter de se preocupar algum dia com
qualquer tentativa de insurreição.
Como poderia reagir?
O foco do irredentismo, entretanto, lavrava na Bahia.
Norteiros emigrados e reduzidos à miséria, baianos, cujos engenhos devastaram
tantas vezes as expedições marítimas dos flamengos, alimentavam profundo rancor
contra os seus malfeitores; padres e frades espoliados e expulsos irritavam a
consciência religiosa. O sucessor de Montalvão, Antônio Teles da Silva, tão
abrasado católico que quis fundar e dotar à sua custa um Santo Ofício para o Brasil,
a exemplo de Goa, onde estivera, não podia suportar herejes na vizinhança.
Ainda no tempo de Nassau a religião católica gozava de tolerância embora limitada
e instável. Com sua partida, protestantes e judeus ultrajavam a toda hora as crenças
da população indígena. Por isso o primeiro título assumido pelos chefes dos
insurgentes foi o de governadores da liberdade divina: em linguagem moderna tanto
valeria dizer da liberdade de consciência.
Da Bahia devia partir a iniciativa contra o flamengo, pois de podiam sair o
armamento, os oficiais, a gente de guerra, em torno da qual se adensassem os
pernambucanos bisonhos; precisava-se, entretanto, de um chefe em Pernambuco,
para o esforço não ficar perdido nos primórdios.
Um homem havia ali capaz de assumir esta responsabilidade, se quisesse: João
Fernandes Vieira. Natural da ilha da Madeira, passara aos onze anos para aquela
capitania, batera-se ao lado de Matias de Albuquerque, e foi um dos prisioneiros do
arraial de Bom-Jesus, em junho de 635. Preferiu ficar com os holandeses, depois da
rendição, e a sorte protegeu-o. Adquiriu a maior fortuna da terra. Os compatriotas
respeitavam-no, e ele os ajudava e protegia liberal e generosamente. Conciliou
igualmente as graças dos invasores. Por que artes explica-o no seu testamento:
«Também me são devedores [os flamengos]de mais de cem mil cruzados, que no
decurso de oito ou nove anos lhes dei por remir minha vexação e por segurar a vida
de suas tiranias, de peitas e divas a todos os governadores e seus ministros e
com grandiosos banquetes que ordinàriamente lhes dava pelos trazer contentes».
À primeira vista ninguém menos próprio para o papel de herói e libertador.
Entretanto Vidal de Negreiros, paraibano que começou a se distinguir com Matias de
Albuquerque, e oficial da guarnição da Bahia, sondou o espírito de Vieira e achou-o
disposto à empresa. Notou, porém, a falta de munições, de armamento, de gente
entendida em guerra para o levante o degenerar em manifestação estéril; para
suprir todas estas faltas precisava-se de tempo e de socorros estranhos. De fato foi-
se fazendo tudo com as maiores precauções possíveis. Apesar de todas as
cautelas, os holandeses tiveram notícias vagas dos preparativos, admira até, que as
tivessem tão tarde, quando o segredo andava por tantas bocas, e mandaram duas
embaixadas a Antônio Teles, queixando-se dos baianos que fomentavam a
revolução nas possessões dos recém-aliados.
Um dos embaixadores, d. von Hoogstraten, comprometeu-se a trair os patrões,
entregando o forte de Nazaré de seu comando quando lhe fosse exigido.
Por ocasião da segunda embaixada, Camarão e seus índios, Henrique Dias e seus
negros, de acordo com o governador da Bahia, a convite de Vieira tinham passado
para o lado de Pernambuco. Peguem-nos e castiguem-nos como merecem,
intimava Antônio Teles aos agentes da Companhia das Índias Ocidentais, desde
que não pôde mais negar a sua ausência. E quando a gente de Vieira começou a se
agitar, mandou embarcados dois terços da força paga sob o mando do velho Martim
Soares Moreno e do ardente Vidal de Negreiros, a pretexto de conterem os
rebeldes. Os dois mestres de campo a 28 de julho de 45 desembarcaram próximo
de Serinhaém; logo a 4 de agosto rendeu-se-lhes o forte holandês ali situado; a 3 de
setembro Hoogstraten entregou-lhes o forte de Pontal, como tratara.
Para se ajuizar da importância deste ponto basta lembrar que Matias de
Albuquerque nunca mais assistiu no arraial de Bom Jesus depois de tomado o
Pontal. Assim a restauração começava por onde findara a conquista. O êxito dos
terços baianos seria maior se o flamengo não destruísse a esquadrilha de Serrão de
Paiva em que tinham vindo até Serinhaém e se Salvador Correia colaborasse com
sua armada, como lhe foi mandado, para fechar o ataque do Recife por terra e por
mar.
Desde junho, antes de chegado o reforço da Bahia, a insurreição rebentara em
Pernambuco. Com pouca gente, sem armamentos, sem munição, Vieira devia
empenhar-se sobretudo em não se encontrar com o inimigo. Isto conseguiu graças
às medidas cautelosas anteriormente tomadas, ao requintado serviço de
espionagem, apoiado no conhecimento das localidades. a 3 de agosto houve o
primeiro combate no Monte das Tabocas, e a vitória ficou de nosso lado. Aos que
censuram as hesitações de Vieira, suas delongas à espera de Camarão e Henrique
Dias, sua insistência por socorros da Bahia, basta lembrar um fato: na batalha das
Tabocas muita gente combateu ainda de pau tostado e foice por falta de
espingarda.
Uma das vantagens da vitória foi proporcionar armas de fogo e munições tiradas
aos inimigos mortos. A tomada da Casa-Forte em 16 de agosto propagou o
incêndio. Com a rendição de Serinhaém e do Pontal a Martim Soares e André Vidal,
insurgiu-se o Sul até o rio de S. Francisco e a situação voltou ao que era em
começos de 35. As forças baianas, mandadas a pretexto de pacificá-los, reuniam-se
sem rebuço aos insurgentes.
Formou-se logo um arraial à margem direita do Capibaribe, e deram-lhe o nome de
arraial Novo do Bom Jesus. Daqui partiram ataques incessantes contra a gente do
Recife. Uma fortaleza no continente, a força do Asseca, sobretudo, causava-lhe
grandes estragos. Lembrou-se Sigismundo de repetir a tática pela qual isolara o
antigo arraial do forte de Nazaré e obrigara os dois a se renderem. Desta vez o
plano mangrou: a batalha dos Guararapes (19 de abril de 48) terminou em derrota
completa dos invasores, que deixaram o campo juncado de mortos e despojos. Uma
compensação tiveram valiosa: a devastadora força de Asseca passou para seu
poder e em seu poder persistiu até o fim da guerra.
Poucos dias antes da batalha dos Guararapes assumira o comando supremo dos
pernambucanos o general Francisco Barreto de Menezes, mandado do Reino a este
fim. O estado em que achou as cousas descreve assim um historiador destes feitos,
arauto enfático de Vieira: «Sem armas e soldados venceu [Vieira] o inimigo que o
buscava com soldados e armas na batalha das Tabocas. Depois unido com o
mestre de campo André Vidal de Negreiros ganharam a vitória ao flamengo no
engenho de d. Ana Pais, e nove fortalezas, com outros redutos e casas fortes; perto
de oitenta peças de artilharia de diversos calibres, a maior parte de bronze; armas,
munições e petrechos de guerra em tanta quantidade quanta bastou para sustentar
a guerra viva em cinco anos contínuos».
À primeira seguiu-se a segunda batalha dos Guararapes, em 19 de fevereiro de 49,
com o mesmo resultado contrário aos flamengos. Depois dela não houve mais
combates notáveis por terra nem por mar. A Companhia estava exausta, apesar dos
largos subsídios dados pelos Estados Gerais. Dentro em pouco estes não puderam
mais auxiliá-la, envolvidos em guerra contra a Inglaterra. Em compensação Portugal
organizara uma companhia de comércio que apareceu na costa pernambucana por
dezembro de 53. Os patriotas puseram-se de acordo com ela, como outrora a gente
da Bahia com a armada de d. Fadrique de Toledo; o almirante português
desembarcou no rio Tapado, o primeiro ponto em que Weerdenburgh tentara o
desembarque, e em Olinda combinou com os chefes pernambucanos a marcha a
seguir.
Um a um foram caindo os fortes holandeses; a 26 de janeiro de 54 assinava-se a
capitulação da Taborda, e terminava esta guerra, levada quase sem interrupções
durante trinta anos.
O desfecho fora previsto e publicado anos antes por Pierre Moreau, natural de
Charolais, na Borgonha, que passara algum tempo entre os holandeses, em
Pernambuco. Suas palavras patenteiam algumas das mais profundas causas do
insucesso final da Companhia das Índias Ocidentais.
«Não aparência», publicava em 1651, «de que os holandeses possam nunca se
restabelecer e restaurar no Brasil como eram antes, mesmo se sua frota derrotasse
a dos portugueses; mesmo se lhes enviassem outro socorro semelhante ao último,
apenas perderiam homens e esgotariam seus tesouros, sem nada adiantar; porque
o território que lhes resta desde o Ceará até a cidade de Olinda está inteiramente
perdido e sem habitantes, as casas, povoados, aldeias ou vilas, as próprias fruteiras
queimadas e arruinadas, portanto seu estado inútil e sem proveito; e embora sejam
senhores das fortalezas do Rio Grande e Paraíba, as únicas que resistem com o
Recife, para pouco prestam e delas não podem tirar socorros; os que se animam a
reconstruir tijupás para cultivar a terra ou se aventuram a alguma distância são
surpreendidos e mortos quando menos pensam pelos corsos ordinários dos
portugueses, dos Tapuias e dos brasis bravos (desunis) que não têm de
ninguém.
Os portugueses têm bloqueado o Recife, por terra, de todos os lados, por meio da
cidade de Olinda, do cabo de S. Agostinho, das fortalezas construídas em redor;
são absolutos por toda a campanha fértil e abundante, e de todas as praças fortes,
portos, abras e passagens desde o Recife até a outra extremidade do Brasil além do
Rio de Janeiro. Todo o país que possuem é muito bem povoado, com gente de
guerra numerosa, sabem subsistir e vivem do que a terra produz com abundância,
dispensam facilmente as produções da Europa, coisa impossível aos holandeses,
que aliás têm apenas soldados arrebanhados de diversas nações, comprados antes
que escolhidos, de cuja fidelidade não podem estar seguros, impróprios aos
costumes e ao ar estranho do país, ignorantes dos desvios e das emboscadas dos
lugares. Ao passo que os portugueses em sua maioria ali nasceram, dele são
originários desde a quarta geração, são robustos, um mesmo povo, dos mesmos
costumes e complexões, que se sustentam entre si, não deixam de valorizar e tirar
proveito da terra, sabem-lhe até os mínimos recantos, e basta-lhes esperarem os
inimigos nas passagens para derrotá-los».
Em outros termos, Holanda e Olinda representavam o mercantilismo e o
nacionalismo. Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus
como Vieira, masombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como
Henrique Dias, mamalucos, mulatos, caribocas, mestiços de todos os matizes
combaterem unânimes pela liberdade divina.
Sob a pressão externa operou-se uma solda, superficial, imperfeita, mas um
princípio de solda, entre os diversos elementos étnicos.
Vencedores dos flamengos, que tinham vencido os espanhóis, algum tempo
senhores de Portugal, os combatentes de Pernambuco sentiam-se um povo, e um
povo de heróis. Nesta convicção os confirmaram os testemunhos do
reconhecimento oficial, os encarecimentos dos historiadores, como Manuel Calado
e Rafael de Jesus, cujas obras foram logo publicadas, Diogo Lopes de Santiago,
inédito até nossos dias, os sobreviventes das lutas, os herdeiros das tradições
ligeiramente alteradas com o tempo. Um documento de 1703 resume tais
sentimentos nos seguintes termos:
«Entre todas as nações do orbe são os portugueses os que se têm empenhado nas
empresas mais árduas e conseguido os maiores triunfos, tendo pelo mais heróico
brasão a fidelidade e íntimo afeto com que não veneram mas adoram aos seus
príncipes naturais: e sendo isto assim parece que em Pernambuco se souberam
sinalar com maior ventagem, pois quando mais oprimidos, mais sujeitos e mais
desamparados, sem favor e sem humana ajuda, desprezando aquele trato que a
continuação de tantos anos pudera por familiar ter facilitado, e mais sabendo
grangear os ânimos com liberal mão os holandeses, desprezando tudo com
soberano impulso, intentaram e conseguiram a mais ilustre ação e digna de imortal
fama, não porque com invicto sofrimento suportaram o duro peso de toda a
guerra, até se extinguir de todo a hostilidade, mas ostentando-se ainda mais
generosos, nem um privilégio procuraram impetrar por serviço tão relevante,
havendo despendido por consegui-lo todos os seus bens e ficando pobres; e assim
sem mais prêmio que o interesse do glorioso nome de leais vassalos, fidelíssimos
ao seu rei e amantíssimos de sua pátria, recuperada e isenta de alheio domínio lha
restituiram como usurpada, sendo uma tão nobre parte da sua real coroa, a custa do
caro preço de tantas vidas e de tanto sangue vertido, recuperando, o que é o mais,
o culto ao sagrado que tão profanamente viram da heresia infestado tantos anos.»
Passado o primeiro momento de entusiasmo, os reinóis quiseram reassumir a sua
atitude de superioridade e proteção. Data daí a irreparável e irreprimível separação
entre pernambucanos e portugueses.
9 - O SERTÃO
A invasão flamenga constitui mero episódio da ocupação da costa. Deixa-a na
sombra a todos os respeitos o povoamento do sertão, iniciado em épocas diversas,
de pontos apartados, até formar-se uma corrente interior, mais volumosa e mais
fertilizante que o tênue fio litorâneo.
Podemos começar pela capitania de São Vicente. O estabelecimento de Piratininga,
desde a era de 530, na borda do campo, significa uma vitória ganha sem combate
sobre a mata, que reclamou alhures o esforço de várias gerações. Deste avanço
procede o desenvolvimento peculiar de São Paulo.
O Tietê corria perto; bastava seguir-lhe o curso para alcançar a bacia do Prata.
Transpunha-se uma garganta fácil e encontrava-se o Paraíba, encaixado entre a
serra do Mar e a da Mantiqueira, apontando o caminho do Norte. Para o Sul
estendiam-se vastos descampados, interrompidos por capões e até manchas de
florestas, consideráveis às vezes, mais incapazes de sustarem o movimento
expansivo por sua descontinuidade. A Este apenas uma vereda quase intransitável
levava à beira-mar, vereda fácil de obstruir, obstruída mais de uma vez, tornando a
população sertaneja independente das autoridades da marinha, pois um punhado
de homens bastava para arrostar um exército, e abrir novas picadas, domando as
asperezas da serra, rompendo as massas de vegetação, arrostando a hostilidade
dos habitantes, pediria esforços quase sobre-humanos.
Sob aquela latitude, naquela altitude, fora possível uma lavoura semi-européia, de
alguns, senão todos os cereais e frutos da península. Ao contrário o meio agiu como
evaporador: os paulistas lançaram-se a bandeirantes.
Bandeiras eram partidas de homens empregados em prender e escravizar o gentio
indígena. O nome provém talvez do costume tupiniquim, referido por Anchieta, de
levantar-se uma bandeira em sinal de guerra. Dirigia a expedição um chefe
supremo, com os mais amplos poderes, senhor da vida e morte de seus
subordinados. Abaixo dele com certa graduação marchavam pessoas que
concorriam para as despesas ou davam gente.
Figura obrigada era o capelão. «Meu capelão saiu para fora estando eu para sair
para a campanha», escrevia Domingos Jorge Velho em novembro de 692, «mandei-
o buscar; não quis vir; de necessidade busquei o inimigo; sem ele morreram-me três
homens brancos sem confissão, cousa que mais tenho sentido nesta vida; peço-lhe
pelo amor de Deus me mande um clérigo em falta de um frade, pois se não pode
andar na campanha e sendo com tanto risco de vida sem capelão». Montoya fala
nestes «lobos vestidos de pieles de ovejas, unos hipocritones, los cuales tienen por
oficio mientras los demás andan robando y despojando las iglesias y atando indios,
matando y despedazando niños, ellos, mostrando largos rosarios que traen al cuello,
lléganse a los padres [jesuítas espanhóis] pídenles confesión... y mientras están
hablando de estas cosas van pasando las cuentas del Rosario muy aprisa».
Escravos serviam de carregadores. Compunha-se a carga de pólvora, bala,
machados e outras ferramentas, cordas para amarrar os cativos, às vezes
sementes, às vezes sal e mantimentos. Poucos mantimentos. Costumavam partir de
madrugada, pousavam antes de entardecer, o resto do dia passavam caçando,
pescando, procurando mel silvestre, extraindo palmito, colhendo frutos; as pobres
roças dos índios forneciam-lhes os suplementos necessários, e destruí-las era um
dos meios mais próprios para sujeitar os donos.
Se encontravam algum rio e prestava para a navegação, improvisavam canoas
ligeiras, fáceis de varar nos saltos, aliviar nos baixios ou conduzir à sirga. Por terra
aproveitavam as trilhas dos índios; em falta delas seguiam córregos e riachos,
passando de uma para outra banda conforme lhes convinha, e ainda hoje lembram
as denominações de Passa-Dois, Passa-Dez, Passa-Vinte, Passa-Trinta; balizavam-
se pelas alturas, em busca de gargantas, evitavam naturalmente as matas, e de
preferência caminhavam pelos espigões. Alguns ficaram tanto tempo no sertão que
«volviendo a sus casas hallaron hijos nuevos, de los que teniéndolos ya a ellos por
muertos, se habían casado con sus mujeres, llevando también ellos los hijos que
habían engedrado en los montes», informa-nos Montoya. Os jesuítas chamam à
gente de S. Paulo mamalucos, isto é, filhos de cunhãs índias, denominação
evidentemente exata, pois mulheres brancas não chegavam para aquelas brenhas.
Faltaram documentos para escrever a história das bandeiras, aliás sempre a
mesma: homens munidos de armas de fogo atacam selvagens que se defendem
com arco e frecha; à primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo
desmaia-lhes a coragem; os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e
distribuídos segundo as condições em que se organizou a bandeira. Nesta
monotonia trágica os Caiapós introduziram mais tarde uma novidade: «a de nos
cercar de fogo quando nos acham nos campos, a fim de que impedida a fuga nos
abrasemos: este risco evitam alguns lançando-lhe contrafogo, ou arrancando o
capim para que não se lhe comuniquem as suas chamas; outros se untam com mel
de pau, embrulhados em folhas ou cobertos de carvão, por troncos verdes ou paus
queimados».
À parte geográfica das expedições corresponde mais ou menos o seguinte
esquema: Os bandeirantes deixando o Tietê alcançaram o Paraíba do Sul pela
garganta de São Miguel, desceram-no até Guapacaré, atual Lorena, e dali passaram
a Mantiqueira, aproximadamente por onde hoje transpõe a E. F. Rio e Minas.
Viajando em rumo de Jundiaí e Mogi, deixaram à esquerda o salto do Urupungá,
chegaram pelo Paranaíba a Goiás. De Sorocaba partia a linha de penetração que
levava ao trecho superior dos afluentes orientais do Paraná e do Uruguai. Pelos rios
que desembocam entre os saltos do Urubupungá e Guaiará, transferiram-se da
bacia do Paraná para a do Paraguai, chegaram a Cuiabá e a Mato-Grosso. Com o
tempo a linha do Paraíba ligou o planalto do Paraná ao do S. Francisco e do
Parnaíba, as de Goiás e Mato-Grosso ligaram o planalto amazônico ao rio-mar pelo
Madeira, pelo Tapajós e pelo Tocantins.
As bandeiras no século XVI devastaram sobretudo o Tietê, cujos numerosos
Tupiniquins depressa desapareceram, e o alto Paraíba, chamado rio dos Surubis
em Piratininga, segundo informa Glimmer; com o tempo foram-se alongando os
raios do despovoamento e depredação, característico essencial e inseparável das
bandeiras.
O movimento paulista para o sertão ocidental chocou-se com o movimento
paraguaio à procura do mar: Ciudad Real, no Piqueri, próximo do salto das Sete
Quedas, Vila Rica, no Ivaí, datam da segunda metade do século XVI, antes do Brasil
cair sob o domínio da Espanha. Com estes colonos a gente de São Paulo cultivou a
princípio boas relações; nas caçadas humanas foram às vezes sócios aliados. Além
disso a viagem por terra do Paraguai para a costa fazia-se mais facilmente
procurando Piratininga, do que repetindo a incômoda travessia de Cabeza de Vaca.
A harmonia entrava assim no interesse de ambas as partes. mais tarde houve
conflitos e as duas povoações desapareceram.
Por 1610, jesuítas castelhanos partidos de Asunción começaram a missionar na
margem oriental do Paraná. Fundaram Loreto e San Ignacio, no Paranapanema, e
em compasso acelerado mais onze reduções no Tibagi, no Ivaí, no Corumbataí, no
Iguaçu. Transposto o Uruguai, assentaram outras dez entre o Ijuí e o Ibicuí, outras
seis nas terras dos Tape, em diversos tributários da lagoa dos Patos. De San
Cristóbal e Jesús María, no rio Pardo, poucas léguas os separavam agora do mar.
Esta catequese grandiosa não consistia simplesmente em verter as orações da
cartilha para a língua geral, fazê-las repetir pela multidão ignara, submetendo-a à
observância maquinal do culto externo. «Reduções, escreve um dos jesuítas
contemporâneos que mais concorreram para avultarem, chamamos aos povoados
dos índios, que vivendo à sua antiga usança, em matos, serras e vales, em
escondidos arroios, em três, quatro ou seis casas apenas, separados, uma, duas,
três e mais léguas uns de outros, os reduziu a diligência dos padres a povoações
grandes e a vida política e humana, a beneficiar algodão com que se vistam, porque
comumente viviam em nudez, ainda sem cobrir o que a natureza ocultava».
Não se imagina presa mais tentadora para caçadores de escravos. Por que
aventurar-se a terras desvairadas, entre gente boçal e rara, falando línguas travadas
e incompreensíveis, se perto demoravam aldeamentos numerosos, iniciados na arte
da paz, afeitos ao jugo da autoridade, doutrinados no abanheen?
Houve alguns salteios contra as reduções desde o seu começo, mas a energia e o
sangue frio dos jesuítas contiveram os arreganhos dos mamalucos, que se retiraram
proferindo ameaças. Para pô-las em prática precisavam, porém, da convivência da
gente de Asunción. Isto conseguiram em fins de 628, e muito concorreu para
assegurá-la Luís Cespedes Xeria, governador do Paraguai, casado em família
fluminense, senhor de engenho no Rio. Fez por terra a viagem para seu governo;
esteve em Loreto do Pirapó e Santo Ignacio de Ipãumbuçu, admirou as igrejas,
«hermosísimas iglesias, que no las he visto mejores en las Indias que he corrido del
Perú y Chile», e fez sinal aos bandeirantes para avançarem.
A primeira das reduções invadidas, a de S. Antônio, demorava na margem direita do
Ivaí; invadiram depois San Miguel, Jesús María, San Pablo, San Francisco Xavier,
no Tibagi; as outras, ainda mais depressa do que as agremiara uma inspiração
ideal, foram sucessivamente destruídas pela fúria devastadora. Restavam apenas
as de Loreto e San Ignacio, na Paranapanema; os jesuítas resolveram transplantá-
las para abaixo do salto das Sete Quedas, entre o Paraná e o Uruguai, doloroso
êxodo cuja narrativa ainda hoje penaliza. Depois de devastadas as missões de
Guairá, os mamalucos passaram às do Uruguai e dos Tape.
A entrada em Jesús María, no rio Pardo, em águas da lagoa dos Patos, qual a
descreve Montoya, dará idéia resumida dos processos empregados nestas
expedições.
No dia de São Francisco Xavier (3 de dezembro de 637), estando celebrando a festa
com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com cento e cinqüenta tupis, todos
muito bem armados de escopetas, vestido de escupis, que são ao modo de
dalmáticas estofadas de algodão, com que vestido o soldado de pés à cabeça
peleja seguro das setas, a som de caixa, bandeira tendida e ordem militar, entraram
pelo povoado, e sem aguardar razões, acometendo a igreja, disparando seus
mosquetes. Pelejaram seis horas, desde as oito da manhã até as duas da tarde.
Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos,
determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente. Por três vezes tocaram-lhe
fogo que foi apagado, mas à quarta começou a palha a arder, e os refugiados viram-
se obrigados a sair. Abriram um postigo e saindo por ele a modo de rebanho de
ovelhas que sai do curral para o pasto, com espadas, machetes e alfanjes lhes
derribavam cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessaram
corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em rachar os meninos em duas partes,
abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros.
Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos bandeirantes
pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?
Apenas vagamente se conhece o caminho seguido nas bandeiras contra Guairá,
Uruguai e Tape. Certamente Sorocaba, último povoado, representava papel
importante. Em canoas ou balsas feitas no planalto desciam os rios, e uma ou outra
que garrava servia de aviso do perigo iminente às reduções; eram, pois, viagens
mistas. À volta, as jornadas deviam ser inteiramente por terra; de outro modo o
poderiam trazer as chusmas de prisioneiros de coleira, amarrados uns aos outros.
Que destino davam a esta gente? Diz-nos Montoya que eram empregados em
transportar nas costas para a marinha carne de vaca e porco; naturalmente
carregariam sal na volta; outros passavam para o Rio, onde havia interessados
nestas piratarias; outros finalmente juntavam-se nas fazendas dos administradores.
Em campanha «las mujeres que en este, y otros pueblos (que destruyeron) de buen
parecer, casadas, solteras o gentiles, el dueño las encerraba consigo en un
aposento, com quien pasaba las noches al modo que un cabron en un curral de
cabras».
O número considerável dos escravizados nas reduções jesuíticas manifesta-se na
freqüência de Carijós, chamavam em São Paulo aos Guaranis. Estes índios,
devidamente amestrados, serviam também para as conquistas de outros; eram o
grosso das forças dos bandeirantes, cujo papel se limitava ao de oficiais.
Os sucessos dos Tape provaram mais uma vez não haver remédio em Asunción,
Rio ou Bahia. Os missionários esperavam ser mais felizes no além-mar e
embarcaram Antonio Ruiz de Montoya para Madrid, Francisco Dias Taño para
Roma. Conseguiu este bulas e censuras fulminantes, trouxe aquele as ordens mais
precisas e encarecidas para as autoridades coloniais. Tudo perdido. Conhecidas as
letras pontifícias no Rio, alborotou-se a população, e a bula ficou suspensa. A
irritação propagou-se pela marinha e intensificou-se em serra acima. Defendidos por
seu caminho inexpugnável, os paulistas expulsaram os jesuítas que voltaram
anos depois, à força de negociações e concessões. Implantou-se, portanto, o
sistema seguido nas terras espanholas de encomendas ou administração dos
índios; algumas encomendas por testamento couberam finalmente à Companhia de
Jesus. Imagina-se mal neste figurino oportunista a consciência heróica de Manuel
da Nóbrega.
Montoya conseguiu licença para aparelhar os índios com armas de fogo e adestrá-
los na arte militar. Em breve os bandeirantes perderam a superioridade: derrotados,
procuraram conquistas mais fáceis, na serra de Maracaju, no alto Paraguai, entre os
Chiquitos, e por fim entre o gentio de corso, de língua travada. Esta caçada não
rendia tanto, as bandeiras foram perdendo parte dos primeiros atrativos e decairam.
Das reduções destruídas nunca mais se restabeleceram novamente fundados sete
povos, mais tarde incorporados ao Brasil, como veremos.
Melhores serviços prestaram os paulistas na Bahia e ao Norte do rio S. Francisco.
Em torno do Paraguaçu reuniram-se tribos ousadas e valentes, aparentadas aos
Aimorés convertidos no princípio do século, que invadiram o distrito de Capanema,
trucidaram os moradores e vaqueiros do Aporá, e avançaram até Itapororocas.
Pouco fizeram expedições baianas mandadas contra eles, e houve a idéia de
chamar gente de São Paulo. Acudindo ao convite Domingos Barbosa Calheiros
embarcou em Santos; na Bahia se dirigiu para Jacobinas, mas deixou-se iludir por
Paiaiás domesticados, e nada fez de útil. Acompanhando-o na jornada mais de
duzentos homens brancos, raros tornaram do sertão.
Com este malogro não admira se repetissem as incursões de Tapuias, a ponto de a
4 de março de 1669 ser-lhes declarada guerra e outra vez convidados paulistas para
fazê-la. em agosto de 71 chegou a gente embarcada, com cuja condução a câmara
do Salvador despendeu mais de dez contos de réis. Eram dois os chefes principais,
Brás Rodrigues de Arzão e Estêvão Ribeiro Baião Parente. Fizeram de Cachoeira
base das operações que duraram anos. Brás Rodrigues retirou-se depois de tomar,
na margem esquerda do Paraguaçu, a aldeia do Camisão. Estêvão Ribeiro guerreou
sobretudo na margem direita, onde conquistou a aldeia de Massacará. Em paga dos
serviços foi-lhe dado o senhorio de uma vila chamada de João Amaro, nome de seu
filho. A vila, depois de vendida com as suas terras a um ricaço da Bahia, extinguiu-
se; o epônimo ainda é lembrado nos catingais baianos.
A estas expedições marítimas sucederam outras por via terrestre. Talvez a mais
antiga fosse a de Domingos de Freitas de Azevedo, de quem apenas consta haver
sido derrotado no rio S. Francisco. Facilitaram estas entradas a abundância de
matas no trecho superior do rio, as suas condições de navegabilidade dentro do
planalto, o emprego de canoas. Paulistas houve que fizeram canoas e desceram
para vendê-las próximo do trecho encachoeirado, onde a escassez da vegetação
tornava preciosa a mercadoria. Das expedições feitas pelo interior conhecemos a de
Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso de Almeida, Morais Navarro, todos
empregados em combater os Paiacus, Janduís, Icós, nas ribeiras do Açu e do
Jaguaribe. Domingos Jorge auxiliou a debelação dos Palmares, mocambo de
negros localizado nos sertões de Pernambuco e Alagoas, que existia antes da
invasão flamenga e zombara de numerosas e repetidas tropas contra ele
mandadas. Ficou assim livre todo o território entre as matas do cabo de Santo
Agostinho e Porto Calvo.
Muitos dos paulistas empregados nas guerras do Norte não tornaram mais a S.
Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários nas terras adquiridas por suas
armas: de bandeirantes, isto é despovoadores, passaram a conquistadores,
formando estabelecimentos fixos. Ainda antes do descobrimento das minas
sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas e do S. Francisco havia mais de cem
famílias paulistas, entregues à criação de gado.
Conhecemos mal, para ajuizar dela, a vida levada em São Paulo pelos bandeirantes
recolhidos aos lares, pela gente rica e poderosa. O seguinte trecho de Pedro
Taques em parte supre a lacuna, pois refere-se a época posterior às minas, o
que altera em muito a situação:
Na casa de Guilherme Pompeu de Almeida, celebrava-se anualmente a festa de 8
de dezembro com um oitavário de festa de missas cantadas, sacramento exposto e
sermão a vários santos de sua especial devoção e se concluía o oitavário com um
aniversário pelas almas do purgatório, com ofício de nove lições, missa cantada e
sermão para excitar a devoção dos fiéis ouvintes. De São Paulo concorria a maior
parte da nobreza com os religiosos de maior autoridade das quatro comunidades,
Companhia de Jesus, Carmo, São Bento e São Francisco, e os clérigos de maior
graduação. Era a casa do Dr. Guilherme Pompeu naqueles dias uma populosa vila
ou corte pela assistência e concurso dos hóspedes. Para a grandeza do tratamento
da casa deste herói paulista, basta saber-se que fazia paramentar cem camas, cada
uma com cortinado próprio, lençóis finos de bretanha, guarnecidos de rendas, e com
uma bacia de prata debaixo de cada uma das ditas cem camas, sem pedir-se nada
emprestado. Tinha, na entrada de sua fazenda da Araçariguama, um pórtico, do
qual até as casas mediava um plano de 500 passos, todo murado, cujo terreno
servia de pátio à igreja ou capela da Conceição.
Neste portão ficavam todos os criados dos hóspedes, que ali se apeavam, largando
esporas e outros trastes com que vinham de cavalo, e tudo ficava entregue a
criados, escravos, que para este político ministério os tinha bem disciplinados.
Entrava o hóspede, ou fosse um, ou muitos em número, e nunca mais nos dias que
se demoravam, ainda que fossem de uma semana ou de um mês, não tinham
nenhum dos hóspedes notícia alguma dos seus escravos, cavalos e trastes. Quando
porém qualquer dos hóspedes se despedia, ou fosse um, quinze ou muitos ao
mesmo tempo, chegando ao portão cada um achava o seu cavalo com os mesmo
jaezes, em que tinha vindo montado, as mesmas esporas, e os seus trastes todos,
sem que a multidão da gente produzisse a menor confusão na advertência daqueles
criados, que para isto estavam destinados. Os cavalos recolhiam-se às cavalariças,
onde tinham todo o bom penso de herva e milho, que é o que se diariamente no
Brasil aos cavalos, principalmente na capitania de São Paulo... Esta advertência era
uma das ações de que os hóspedes se aturdiam, por observarem que nunca jamais,
entre a multidão de várias pessoas que diàriamente concorriam a visitar e obsequiar
dias e dias ao Dr. Guilherme Pompeu de Almeida, se experimentava a menor falta,
nem ainda uma troca de trastes a trastes. Foi tão profusa a mesa do Dr.
Guilherme Pompeu, que nela as iguarias de várias viandas se praticava com tal
advertência, que se acabada a mesa, passadas algumas horas, chegassem
hóspedes não houvesse para banqueteá-los a menor falta.
Por esta razão estava a ucharia sempre pronta. A abundância de trigo nesta casa foi
tanta que todos os dias se fazia pão, de sorte que para o seguinte não servia o
que tinha sobrado do antecedente; o vinho era primoroso de uma grande vinha que
com acerto se cultivava e suposto o consumo era sem miséria, sempre o vinho
sobrava de ano a ano.
A vida do povo comum dizia mal com estes esplendores: a canjica, alimento da
maioria da população, dispensava sal, porque este ingrediente não chegava para
todos.
Os paulistas o se limitaram a passar de bandeirantes a conquistadores. Houve
sempre alguma mineração em Iguape e Paranaguá: em maior mero ainda,
entregaram-se a pesquisas minerais a partir da era de 670, depois que o monarca
português apelou para seu brios. Antes da grande dispersão provocada pelos
descobertos auríferos, a população grupava-se nas margens do Tietê e nas do
Paraíba. Na ribeira do Tietê, Mogi das Cruzes, Parnaíba, Itu, Sorocaba; na do
Paraíba, Jacareí, Taubaté, Guaratinguetá precedem os descobertos. A maior
densidade provàvelmente notava-se no Paraíba, cujo vale estreitado à direita pela
serra do Mar, à esquerda pela da Mantiqueira, produzia o efeito de condensador.
Entretanto, a abundância de vilas não importa forçosamente população
considerável. Em terras de donatários deviam facilitar as fundações o orgulho de
poder juntar ao próprio nome o título de senhor de tais e tais vilas e o interesse de
nomear tabeliães, etc.
neste tempo, Piratininga não se impunha como entrada única do planalto:
formaram-se grupos conjugados do sertão e da marinha: Parati e Taubaté; S.
Vicente, Santos, São Paulo, Mogi e quiçá Jacareí que, pelo menos mais tarde,
possuiu ligação direta com o litoral; Iguape, Paranaguá, o Francisco e Curitiba:
esta última, aparentemente destinada a situação preponderante, atraiu pouca
população, e medrou precàriamente enquanto não lhe deu vida o comércio de
trânsito, principalmente de muares, procedentes do Sul.
Um escritor anônimo dizia a respeito dos paulistas pouco depois de 1690: «Sua
Majestade podia se valer dos homens de São Paulo, fazendo-lhes honras e mercês,
que as honras e os interesses facilitam os homens a todo o perigo, porque são
homens capazes para penetrar todos os sertões, por onde andam continuamente
sem mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e
raízes de vários paus, e não lhes é molesto andarem pelos sertões anos e anos,
pelo hábito que têm feito daquela vida. E suposto que estes paulistas, por alguns
casos sucedidos de uns para com outros, sejam tidos por insolentes, ninguém lhes
pode negar que o sertão todo que temos povoado neste Brasil eles o conquistaram
do gentio bravo que tinha destruído e assolado as vilas de Cairu, Boipeba, Camamu,
Jaguaripe, Maragogipe e Peruaçu no tempo do governador Afonso Furtado de
Mendonça, o que não puderam fazer os mais governadores antecedentes por mais
diligências que fizeram para isso.
Também se lhes não pode negar que foram os conquistadores dos Palmares de
Pernambuco, e também se podem desenganar que sem os paulistas com seu
gentio nunca se há de conquistar o gentio bravo que se tem levantado no Ceará, no
Rio Grande e no sertão da Paraíba e Pernambuco, porque o gentio bravo por
serras, por penhas, por matos, por catinga com o gentio manso se de
conquistar e não com algum outro poder, e dos paulistas se deve valer Sua
Majestade para a conquista de suas terras».
Alexandre de Moura deixou Jerônimo de Albuquerque por capitão-mor do
Maranhão; da capitania subordinada de Cumá encarregou Martim Soares Moreno; a
do Pará, confiada a Francisco Caldeira de Castelo Branco, ficaria independente,
para evitar novos atritos entre os recentes rivais. Capitão de entradas elegeu Bento
Maciel Parente, reinol criado em Pernambuco, que estivera nas guerras da Paraíba
e Rio Grande, andara na jornada de salitre na Bahia, acompanhara d. Francisco de
Sousa a São Vicente, e assistira um triênio empenhado em minas e bandeiras,
outro de sargento-mor em cinco vilas do Sul.
Faltavam a Jerônimo de Albuquerque alguns requisitos para governar bem, na
opinião insuspeita de Gaspar de Sousa; acusações lhe fizeram, bem graves se
forem verdadeiras; algumas das recomendações de Alexandre de Moura parece ter
descurado; mostrou-se mais próprio aos rompantes da guerra que às artes da paz.
Faleceu em fevereiro de 618 legando o cargo a seu filho Antônio de Albuquerque,
assessorado por Bento Maciel e Diogo da Costa Machado. O jovem de vinte e dois
anos desprezou os limites postos pelo pai à sua autoridade; quando, havendo preso
aquele, o governador geral impôs-lhe a assistência do segundo, preferiu retirar-se
para o reino. Substituiu-o no mando desde abril de 619 Diogo Machado; de suas
mãos recebeu-o Antônio Muniz Barreiros em maio de 622, e ocupou-o até agosto de
626.
Durante esta primeira década, Bento Maciel fez diversas entradas aos rios Mearim e
Pindaré, seguindo os exemplos e processos dos bandeirantes e construiu um forte
no Itapicuru, bastante acima da barra. Outras entradas fez Francisco de Azevedo, o
primeiro a penetrar nos sertões de Turi e Gurupi. O gentio de Cumá insurgiu-se
apenas Martim Soares saiu para o Reino, urgido por antigas enfermidades. Sob seu
sucessor Matias, irmão de Antônio de Albuquerque, a guarnição portuguesa foi
quase toda trucidada, e o levante estendeu-se quase à ponta de Saparará. A
devastação nos índios foi enorme; os jesuítas Manuel Gomes e Diogo Nunes,
convictos da inutilidade de seus esforços em favor dos indígenas, procuraram as
Índias Ocidentais; Fr. Cristóvão de Lisboa, chefe dos capuchos, viu desrespeitadas
as leis mais explícitas e até as censuras.
No governo de Diogo da Costa Machado chegaram a São Luís algumas centenas
de açorianos, engajados para povoadores. Nada encontraram feito para recebê-los,
e padeceram as maiores privações e misérias. A imigração, iniciada sob fagueiras
esperanças, não recobrou o alento originário com o livro de propaganda de Simão
Estaço da Silveira.
No empenho de criar engenhos, o governo geral contratou a construção de dois ou
três com Antônio Barreiros; a nomeação do filho para capitão-mor do Maranhão
visava facilitar a execução do trato. Um engenho construiu Bento Maciel. A terra
prestava-se bem à cultura da cana; braços podiam fornecer os índios sujeitos às
administrações usadas nas colônias espanholas e transplantadas por Bento Maciel;
a dificuldade grande pendia dos transportes. Ficava próximo Pernambuco, o maior
mercado do país, mas se navegava para durante certa parte do ano, nas
monções; a viagem terrestre pela costa, feita na estação das águas, para escapar
aos tormentos sofridos por Pedro Coelho quando tentou colonizar o Ceará, apenas
poderia servir à passagem de escravos. Parece ter servido efetivamente: fala um
contemporâneo na «grande quantidade de patacões que os moradores do
Maranhão houveram pelo comércio com os de Pernambuco, enviando-lhes de
quando em quando escravos.»
Além da cana plantava-se algodão e fumo; o fio e o pano de algodão correram como
moeda. Os navios partiam para o reino em agosto ou setembro.
As dificuldades de comunicações marítimas entre o Maranhão e o resto do Brasil
sugeriram a idéia de criar ali um estado independente. Isto se ordenou em 621.
Começava no Ceará, próximo do cabo de São Roque, e ia à fronteira setentrional,
ainda indefinida, do Pará. Francisco Coelho de Carvalho, primeiro governador,
aportou a Pernambuco ao tempo da invasão holandesa na Bahia. Deteve-o ali
Matias de Albuquerque; depois, sob vários pretextos, foi se deixando ficar; em
agosto de 26 chegou a seu destino, levando Manuel de Sousa de Sá, capitão-mor
do Pará, declarado agora dependente do Estado do Maranhão.
Na capitania do Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco, recebido
amigavelmente pelo gentio, apanhara o primeiro pretexto para guerreá-lo. A
imensidade das águas inspirou-lhe a adaptação de um suplício mediável, que devia
parecer novo e terrível aos rudes filhos da natureza: amarrava o condenado a
diversas canoas, mandava remar em sentidos opostos, até os membros
despregarem do tronco. Seu gênio rixento, revelado em presença dos franceses,
malquistou-o com os compatriotas; cansados de aturá-lo, depuseram-no, meteram-
no a ferros, e substituiram-no por Baltasar Rodrigues em novembro de 618. Nem
assim arrefeceu a sanha dos índios; o movimento de Cumá soldou-se ao do Pará.
Teve-se de reclamar auxílio de Pernambuco; vieram socorros sob as ordens de
Jerônimo Fragoso, nomeado capitão-mor por d. Luís de Sousa, governador geral,
com ordem, logo cumprida, de mandar presos Castelo Branco, Rodrigues e outros
cabecilhas. Castelo Branco morreu na prisão do Limoeiro, em Lisboa.
Bento Maciel, que fora a Pernambuco depois das questões com Antônio de
Albuquerque, voltou com gente nova recrutada nas duas capitanias vizinhas, e
repetiu com maior fúria suas costumadas façanhas. De Tapuitapera até dentro do
Amazonas tamanhas foram suas devastações que Jerônimo Fragoso intimou-lhe
cessasse as hostilidades; ele, porém, desrespeitou a intimação porque, sendo o
comandante da guerra por investidura do governador geral, não estava subordinado
ao capitão-mor do Pará. Fragoso faleceu logo; houve diversos pretendentes à
sucessão; por fim saiu nomeado Bento Maciel, que abriu um caminho terrestre para
o Maranhão, ligando talvez o rio Capim ao Pindaré, como se tentou mais tarde, e
governou quatro anos, até chegar Manuel de Sousa de Sá, em 1627.
Francisco Caldeira fora logo à chegada informado de viagens e fortalezas de
ingleses e flamengos nas plagas amazônicas. No próprio ano da fundação de
Belém, Pedro Teixeira aprisionou uma nau holandesa, cuja artilharia serviu a
reforçar a do Presepe. Os ingleses preferiam a foz do rio e seu estabelecimento
mais ocidental assentava no Cajari; os flamengos avançaram até o Xingu. Diversas
expedições, em que se distinguiram Pedro Teixeira, Pedro da Costa Favela,
Feliciano Coelho, come Raimundo de Noronha tomaram navios, fizeram muitos
prisioneiros e arrasaram um a um todos os fortes. No assalto ao forte inglês de
Filipe, gaba-se Noronha de haver tomado quatro peças de artilharia grossas e
roqueiras e muitas armas, com a morte de oitenta e três estrangeiros, o
aprisionamento de treze, a destruição de todos os gentios confederados, «com que
ficaram tão aterrorizados que nunca mais tiveram pazes com os estrangeiros».
A falta de índios amigos, fornecedores de fumo, algodão, urucu (anoto, em língua
cariba) e outras drogas, bastaria a dissuadir os entrepolos de novos cometimentos.
Veio ainda mais dificultá-los a fortaleza de Gurupá, estabelecida no local de um
antigo forte holandês, no começo do delta amazônico, excelente posto de
observação para todos os movimentos da margem esquerda, obra avançada e
complemento precioso do forte de Presepe na margem direita. O último
estabelecimento holandês de que temos notícia tomou-o Sebastião de Lucena em
1646, no Maiacaré, junto ao cabo do Norte; os ingleses havia anos não
apareciam. Ficou assim firmada a soberania de Portugal desde o cabo do Norte até
a ponta de Saparará, e desassombrado de inimigos todo o baixo Amazonas.
No tempo de Francisco Coelho, foi dividido o Estado do Maranhão em várias
capitanias hereditárias: as de Tapuitapera e Cametá couberam a um irmão e ao filho
do governador, a de Caeté ou Gurupi a Álvaro de Sousa, filho de Gaspar de Sousa,
que tantos serviços prestara à conquista; para si a metrópole reservou no Maranhão
o território entre o Parnaíba e o Pindaré, no Pará as terras de Maracanã ao
Tocantins. Mais tarde Bento Maciel obteve a capitania do cabo do Norte limitada
pelos rios Vicente Pinzon ou Oiapoque, Amazonas e Paru, e Antônio de Sousa de
Macedo a da ilha Marajó.
A penetração no Amazonas prosseguia lentamente: pela margem setentrional
tratara-se apenas de eliminar os entrelopos; ao Sul a aldeia Maturu, na margem
direita do Xingu, também chamado Parnaíba, durante algum tempo permaneceu o
posto mais ocidental; ante as flechas envenenadas do gentio do Tapajós estacaram
as entradas. A marcha precipitou-se a partir de 1637 com a chegada de dois leigos
franciscanos vindos do dos Andes. Jácome de Noronha, que com certo atropelo
de formas sucedera no governo por falecimento de Francisco Coelho de Carvalho,
resolveu abrir relações com as dependências cisandinas de Castela. Pedro Teixeira,
incumbido desta missão, partiu a 17 de outubro águas a riba do rio-mar, em 15 de
agosto de 38 alcançou o Paiamino, afluente do Napo, e seguiu para Quito. Depois
de receber as ordens do vice-rei do Peru, regressou e chegou ao Pará em 12 de
dezembro do ano seguinte. de volta, a 16 de março de 39, na barra do Aguarico,
tomou posse em nome da coroa de Portugal das terras que para o Oriente se
estendiam até beira-mar. Bento Maciel, então governador do estado, recompensou
estes e outros serviços durante mais de quatro lustros prestados por seu
companheiro de armas, concedendo-lhe por três vidas a encomendação de
trezentos casais de índios.
Mal suspeitava então o velho capitão de entradas os perigos que se avizinhavam.
Desde de 1637, Gedeon Morris, flamengo preso em combate no Amazonas e
conservado prisioneiro durante oito anos, lograra repatriar-se e chamava a atenção
da câmara de Zelândia para a conquista do Maranhão. Tal conquista, alegava, traria
a aquisição de mais de quatrocentas léguas de costa, ocupadas apenas por mil e
quatrocentos a mil e quinhentos portugueses, e quarenta mil índios; os índios
estavam sujeitos mais por medo que por afeição, os portugueses com as forças
disseminadas, os soldados descontentes e rebeldes pelo desgoverno e falta de
pagamento, os fortes pouco defensáveis; os índios considerariam os flamengos
como libertadores. A Companhia das Índias Ocidentais se apossaria de belos
açúcares, fumos, algodão, laranjas, anil, tintas, óleos e bálsamos, gengibres, gomas
e várias sortes de excelentes madeiras. Poderia vender escravos para Pernambuco
«como os portugueses faziam outrora, antes de começar a guerra naquela
capitania, e este era o seu maior negócio».
Quando Morris expunha estas idéias em Middelburg, ocorria na colônia um fato
próprio a facilitar-lhes a execução. Atendendo a repetidos chamados do gentio
cearense, a Companhia mandou uma expedição que desembarcou no Mocuripe, e
após brava mas inútil resistência da guarnição apossou-se do forte fundado por
Martim Soares Moreno. Havia agora um ponto de apoio para as operações
apregoadas como tão proveitosas: Gedeon Morris foi nomeado comandante do
Ceará, onde descobriu as salinas do Ipanema, como que a preparar a avançada.
A notícia da viagem de Pedro Teixeira, apenas divulgada, ainda mais confirmou-o
em suas traças e aspirações. A todas as vantagens apresentadas, a conquista do
Maranhão juntava ainda a da contigüidade com as terras do Peru, e seria portanto o
mais terrível golpe contra as possessões espanholas, insistia novamente Gedeon.
Não foi compreendido. Nassau e as autoridades superiores preocupavam-se antes
com a conquista de Buenos Aires e do Chile, procurando longe o que lhes acenava
de tão perto. mais tarde atenderam a suas incitações; em novembro de 641
apresentou-se uma esquadra holandesa na baía de São Marcos.
Vigorava o estado esquisito criado pela política hesitante de d. João IV. Não havia
guerra, pois fora decidida na Europa uma aliança ofensiva e defensiva entre
Portugal e Holanda; não havia paz nas colônias, porque faltava a ratificação do
tratado. Iludido ou decrépito ou aterrado, Bento Maciel entregou-se sem combater e
a Companhia das Índias mais uma vez alargou seus domínios. Morris, que tomou
parte na operação, ficou descontente com o modo de proceder de Nassau. Por que
depois de tomada a ilha não passavam logo ao Pará? Por que não expulsavam os
portugueses ricos deixando apenas os mais pobres como feitores? Onde se viu em
todo o Brasil um português, quatro meses apenas depois de tomada a terra,
embarcar por sua conta cem caixas de açúcar, como fez o provedor-mor Inácio do
Rêgo, que se passou para as Índias? Que valia a posse do Maranhão sem a
incorporação do Amazonas?
Enquanto dominaram, os flamengos houveram-se com a cobiça e a venalidade
correntes em Pernambuco. Entretanto, a população calava-se e parecia mesmo
disposta a não reagir, seo fossem Antônio Muniz Barreiros, o antigo capitão-mor,
e os jesuítas Benedito Amadeu e Lopo do Couto, este chegado em companhia de
um coadjutor desde 1624. Impeliram a estes chefes insurgentes sobretudo
considerações religiosas: o holandês era o herege e a católica perigava. O
movimento começou no Itapicuru, libertado em poucos dias, e passou à ilha. Aqui a
resistência foi maior: vieram socorros de Pernambuco para o flamengo, também os
nossos receberam-nos do Pará, mas a falta de armas e munições obrigou-os a
passarem para a capitania de Tapuitapera, no continente. Mais tarde, chegados
recursos da Bahia, acometeram novamente a obra libertadora. A Teixeira de Melo,
sucessor de Barreiros, morto em conseqüência de ferimentos, coube a glória de
restaurar S. Luís em 1643. O exemplo do Maranhão propagou-se a Ceará, onde os
índios trucidaram os holandeses, que entretanto voltaram mais tarde e se
mantiveram até 1654. Também produziu impressão em Pernambuco, e alentou os
anhelos patrióticos ainda desconexos, apontando um exemplo a seguir.
Nos anos seguintes o fato mais notável foi a introdução dos jesuítas. A Alexandre de
Moura acompanharam dois, mas retiraram-se, reconhecendo a inutilidade de seus
esforços na defesa dos índios. Luís Figueira, vindo com Antônio Barreiros, logrou
apagar as prevenções dos colonos, limitando e encobrindo a sua ação, e depois de
algum tempo recolheu-se à Europa. Lopo do Couto, além de isolado e portanto
impotente, soube conquistar as simpatias no ardor da reconquista, de que foi a
alma. Figueira, que desde 638 preparava uma missão no além mar, afinal com
muitos sócios partiu do reino mais Pedro de Albuquerque, nomeado sucessor de
Bento Maciel. Por estarem ainda os holandeses senhores de S. Luís, passaram ao
Pará; junto à baía do Sol, Figueira e a maior parte dos companheiros afogaram-se
ou foram mortos pelos índios, em junho de 643. Os sobreviventes pouco puderam
fazer no Maranhão para onde se transportaram apenas as condições o permitiram;
logo trucidaram-nos selvagens de Itapecuru. Em 1649 não havia mais um padre
da Companhia de Jesus em todo o Estado.
Entretanto, na Europa movia-se o padre Antônio Vieira, grande valido de dom João
IV e um dos maiores escritores da língua. Pupilo de Fernão Cardim, colhera dos
lábios deste amigo de Anchieta a história das primeiras missões, e a carreira de
missionário formara uma das primeiras aspirações de sua alma ambiciosa.
Mandado para o Reino quando se divulgou na Bahia a notícia da independência de
Portugal, passara dez anos em terras européias por vontade da Companhia ou
insistência do rei, triunfando na tribuna sagrada, ajudando as mais espinhosas
negociações diplomáticas, engenhando combinações financeiras como a da
Companhia do Comércio, tão útil na guerra pela libertação de Pernambuco, influindo
nos conselhos da coroa, dando idéias e defendendo as próprias ou alheias, estas
principalmente, com uma abundância de expressões, uma sutileza de raciocínios,
um bisantinismo de argumentos, uma fertilidade de distinções verdadeiramente
admiráveis. Um dia apareceu-lhe o vácuo de todas estas pompas, invadiu-o a
saudade da primeira infância e da segunda pátria e aspirou missionar no Maranhão.
Em setembro de 652 partiram adiante nove missionários, trazendo por superior o
padre Francisco Veloso: dois destes continuaram a viagem para o Pará, onde
fundaram casa. Em seguida à primeira leva embarcou no Tejo o padre Vieira
acompanhado de outros três jesuítas, que a 16 de janeiro de 53, véspera de S.
Antão, fundearam diante da capital do estado. Afinal chegavam defensores aos
índios. Para que narrar esta história? Com os índios havia duas políticas
racionais: ou deixá-los aprisionar à vontade como então se fazia, ou proibir
expressamente toda e qualquer escravidão. Nem uma das duas observaram quer o
governo, quer os próprios jesuítas. Daí lutas contra os colonos cubiçosos, contra os
governadores venais, contra padres e frades simoníacos, contra os legisladores
incoerentes e a legislação instável, viagens pelo sertão e rios, travessias do oceano,
sermões cáusticos, papéis sediciosos, expulsões e exprobrações, em suma uma
série de tumultos trágicos ou burlescos. Mais interessa que tais historietas
apresentar o organismo do estado cerca de 1662, tal qual o desseca o valente
escritor em uma página memorável, ainda palpitante no pálido resumo aqui feito.
Os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o
edifício e as pedras se desfazem, separam e arruínam. As terras se esterilizam; as
plantações de mandioca não bastam para garantir o sustento; tem-se de buscar
longe as madeiras e as terras de tabaco; minguaram a caça e a pesca; as
povoações o muito distantes uma das outras e o trabalho de remar consome as
forças da indiada. Não açougue, nem ribeira, nem horta, nem tenda para vender
as cousas usuais para o comer ordinário, nem ainda um arratel de açúcar, com se
fazer na terra. No Pará, onde todos os caminhos são por água, não uma canoa
de aluguel. Para um homem ter o pão da terra há de ter roça, e para comer carne há
de ter caçador, e para comer peixe pescador e para vestir roupa lavada lavadeira, e
para ir à missa ou qualquer parte canoas e remeiros: os moradores de tal cabedal
têm a mais de tudo isto costureiras, fiandeiras, rendeiras, teares e outros
instrumentos e ofícios de mais fábrica, com que cada família vem a ser uma
república.
Os povoadores primeiros foram gente pobre: soldados idos de Pernambuco, mal
pagos a ponto de raros poderem calçar sapatos e meias; ilhéus nobres, mas gente
necessitada, impelida à emigração pela procura de meios não existentes no
arquipélago; soldados rotos e despedidos tomados na guerra e abandonados nas
costas pelos holandeses; finalmente degradados.
Não guarda proporção com a população o número de frades: o Pará, com oitenta
moradores, tem quatro conventos e sai dos moradores a paga de missas, ofícios e
enterros, servem grande número de confrarias com grandes e involuntários gastos
nas suas festas, porque em serem perguntados, se ouvem apregoar dos púlpitos e
não basta o que grangeiam num ano para satisfazer os empenhos desta forçada
devoção. Apenas a Companhia de Jesus não pesa sobre a gente, porque a renda
concedida pela fazenda real a põe a coberto das necessidades.
As drogas do estado baixaram de preço, e mal bastam para pagar os fretes, em
compensação os gêneros vindos da Europa vendem-se por preços excessivos.
Dominam a ociosidade, a preguiça e o luxo: grassa o alcoolismo; na cidade do
Pará gastam anualmente quinze mil cruzados em aguardente da terra, sem falar na
que vai do reino. Os governadores e oficiais de fazenda pagam-se em primeiro
lugar, pouco deixando para os vigários e soldados; confiam os melhores ofícios aos
criados; prendem, processam, recrutam, atravessam os gêneros.
Finalmente os índios, por sua natural fraqueza e pelo ócio, descanso e liberdade em
que se criam, não são capazes de aturar por muito tempo o trabalho em que os
portugueses os fazem servir, principalmente das canas, engenhos e tabacos, sendo
muitos os que por esta causa continuamente estão morrendo; e como nas suas
vidas consiste toda a riqueza e remédios dos moradores, é mui ordinário virem a
cair em pouco tempo em grande pobreza os que se tinham por mais ricos e
afazendados, porque a fazenda não consiste nas terras que são comuns senão nos
frutos da indústria com que cada um as fabrica e de que são os únicos instrumentos
os braços dos índios. -Até aqui Antônio Vieira, com esta vívida descrição da
economia naturista.
Excetuando a de Bartolomeu Barreiros de Ataíde ao rio de Ouro, isto é, às terras de
que Pedro Teixeira tomara posse em nome da coroa de Portugal, e a de João
Betencourt Muniz contra os Anibás do Jari, as expedições tinham de preferência
procurado a margem direita do Amazonas. Em 1663 Antônio Arnau Vilela dirigiu-se
à outra margem e foi pouco feliz numa entrada do rio Urubu; a vingá-lo saiu Pedro
da Costa Favela, que matou setecentos, aprisionou quatrocentos índios dos
Guaneenas e Caboquenas, queimou trezentas aldeias. Atrás destes vieram outros,
atraídos pela densidade da indiada. Logo em seguida começou a ser freqüentado o
rio Negro e finalmente o Branco. A fortaleza da barra do rio Negro, nas proximidades
da atual cidade de Manaus, ponto de partida para este movimento de penetração,
foi fundada logo depois.
No ano de 1693 foram determinados os territórios em que cada uma das ordens
poderia estabelecer missões: aos jesuítas concedeu-se a margem meridional do
Amazonas; aos franciscanos as terras do cabo do Norte até o rio Urubu; aos
carmelitas coube o rio Negro.
Entrementes os jesuítas espanhóis no seu ardor de catequizar foram descendo o
Solimões, como os do Paraguai procuraram o Paranapanema, Ivaí, Igyaçu e
Uruguai. Samuel Fritz, natural da Boêmia, atraiu ao grêmio da igreja diversas tribos
de línguas travadas, e os Cambebas ou Omagoas da língua geral, missionando até
o Juruá ou talvez mais a Este. Motivos de saúde levaram-no ao Pará em setembro
de 1689, onde sob vários pretextos o detiveram cerca de dois anos. Na volta, apesar
de suas excusas, deram-lhe uma escolta para acompanhá-lo às reduções e,
chegado, o oficial comandante protestou pertencerem a Portugal as terras que se
estendiam até o rio Napo. Enquanto o apóstolo dos Mainas se dirigia a Lima, no
intuito de avisar da próxima usurpação ao vice-rei do Peru, que não quis tomar
providências, desde 1695 se discutia no Pará e em Lisboa a idéia de aumentar o
domínio português por aqueles lados. Forneceu ensejo próprio o caso da sucessão
da Espanha. Inácio Corrêa de Oliveira expulsou os jesuítas castelhanos do
Solimões. Assim a guerra entre as duas coroas produziu ao Norte os mesmos
efeitos que de sua união resultaram em Guairá, Uruguai e Tape. A estas invasões e
às seguintes uniram-se os frades do Carmo, dignos confrades dos capuchos das
bandeiras meridionais. Nestas missões aprenderam os invasores o emprego do
caucho.
As entradas pelos afluentes da margem direita iam também continuando: em 1669
Gonçalo Pires e Manuel Brandão descobrem cravo, canela e castanha no
Tocantins; em 1716 João de Barros Guerra derrota os Torás no Madeira; em 1720
marcha uma expedição contra os Juínas do Juruá; em 1724 Francisco de Melo
Palheta sobe o Madeira até as aldeias espanholas. Com o descobrimento das
minas, procura-se chegar a elas pelos afluentes meridionais. Mais de uma das
tentativas foi bem sucedida e o Maranhão reclamou como pertencentes a seu
distrito as minas de S. Félix e da Natividade, ribeirinhas do Tocantins. Desde a
terceira década do século XVIII descem ao Amazonas mineiros de Goiás e Mato
Grosso. Destas descidas a mais fértil em conseqüências foi a de Manuel Félix de
Lima, que em 1742 navegou o Sararé, Guaporé, Mamoré, Madeira e alcançou o
Maranhão. Quando o governador de Mato Grosso assentou a capital na margem do
Guaporé apenas tirou a conseqüência do achamento deste caminho, que com o
tempo se tornou o mais freqüentado.
Lentamente a população ia crescendo, embora epidemias freqüentes inutilizassem
em poucos meses o progresso de anos. Como sinais evidentes de melhores
condições, basta citar a fundação de um pesqueiro real em 1692 na ilha de Marajó,
por Antônio de Albuquerque Coelho, e o desenvolvimento assumido pela criação de
gado na mesma ilha, a partir dos primeiros anos do século seguinte. Na Páscoa de
1726 começou a funcionar um açougue em Belém. Quando La Condamine passou
por Belém em 743 a única moeda corrente eram grãos de cacau; desde maio de
1749 principiou a correr dinheiro amoedado de ouro, prata e cobre.
Em 1751, o Pará, a que agora estava subordinado o Maranhão, contava 9
freguesias e seis ermidas paroquiais, sete fortalezas, vinte e quatro engenhos de
açúcar, quarenta e duas engenhocas de aguardente, sessenta e três aldeias de
índios missionados. Muitas medidas concertou o governo para desenvolver a
agricultura, mas o conseguiu nas cercanias de Belém. O café, levado de Caiena
por Francisco de Melo Palheta, pareceu despertar o torpor da população. Pouco
tempo durou a experiência; preferiu-se a apanha de produtos florestais, cravo,
canela, cacau, salsa, mais rendosos e criados à lei da natureza.
Os anos seguintes à partida de Antônio Vieira para a Europa em 1661 assinalam-se
pela legislação caótica a respeito de aldeias, jurisdição espiritual e temporal,
descimentos, salários e escravidão dos índios. Em 1680 uma lei proibiu que os
índios fossem escravizados, única solução lógica e justa, se houvesse gente
bastante honesta e bastante enérgica para fazê-la respeitada.
Para mitigar as queixas dos colonos criou-se uma companhia de comércio com o
privilégio de vender certos gêneros de primeira necessidade, que compraria toda a
produção do estado e forneceria escravos africanos, mais fortes e mais próprios
para a pesada labuta agrícola.
Pouca repugnância provocou no Pará, cujos interesses, em partes divergentes, a
distância resguardava; no Maranhão produziu grande alborôto. Foram expulsos os
jesuítas, deposto e preso o capitão-mor, mandados procuradores à Corte para
apresentar as queixas do povo e impetrar o perdão régio. Manuel Bequimão, reinol
de origem teutônica, primeira figura da assuada, pôs-se à frente da governança. O
movimento iniciado com tamanha valentia ficou estacionário; nem a fronteira
capitania de Tapuitapera aderiu; dos aderentes da primeira hora, muitos foram-se
esgueirando.
Nota-se agora o caso repetido tantas vezes em nossa história: depois do triunfo,
obtido antes por desídia ou pusilanimidade do atacado que por habilidade ou
fortaleza do atacante, e depois do triunfo comprado tão barato, compreende-se
que o fato importa conseqüências, e começa-se a indagação de quais poderão ser.
Desta mandrice intelectual ou miopia política não se eximiu Bequimão. Quando
apareceu na barra Gomes Freire de Andrada, nomeado governador do Estado e
acompanhado de força armada para se fazer obedecido, veio-lhe a veleidade de
opor-se ao desembarque. Nada previra, nada preparara, agora era tarde. O
governador empossou-se do poder sem oposição.
Restava a esperança de ter trazido o perdão régio; mesmo este não veio. Prestes
instaurou-se o processo, e sairam condenados à morte Manuel Bequimão, Jorge de
Sampaio e Deiró. Este padeceu o suplício em efígie; os outros subiram ao patíbulo.
Com os figurantes o governador mostrou benevolência: de bondoso e benévolo
deixou tradição entre os governados. Por seu conselho aboliram-se a companhia e o
estanco; a questão índia prosseguiu com os avanços, recuos e sobressaltos do
costume.
Durante seu governo preocupou-o a questão máxima do Estado: achar
comunicações com o Brasil, independente do capricho das monções, sobranceira à
linha dos vaus à beira-mar.
Poucos anos antes Vital Maciel Parente, filho do velho prisioneiro dos flamengos,
depois de derrotar ao Tremembés, desafrontando o caminho da praia para o Ceará,
navegara muitas léguas pelo Parnaíba e reconhecera a direção meridional de seu
curso. Deve manar daí a idéia da proximidade senão identidade entre o Parnaíba ou
Paraguaçu e o São Francisco. Assim a questão apresentava-se com certa nitidez: a
Bahia representava o objetivo e o Parnaíba o rumo a seguir.
João Velho do Vale incumbido de resolver o problema levou-o a bom termo;
escreveu a mesma narrativa do descobrimento, entregue mais tarde a Gomes
Freire, no Reino, livro hoje extraviado ou perdido, e muito importante para a
etnografia e história pátria, a julgar pelas indicações ligeiras, fornecidas por Fr.
Domingos Teixeira, biógrafo do governador:
Depois de dar em larga relação notícia exata dos sertões que penetrou, rios, e
nações várias que os habitam, sinalando pelos graus as alturas do polo, mais gasto
do trabalho, que dos anos, veio a acabar [João Velho do Vale] em benefício da
pátria, com serviços maiores que a gratidão. Descansam suas cinzas em jazigo
humilde na cidade de São Salvador, onde veio consumar com último termo seus
trabalhos com mais honra que interesse.
Vale fez duas viagens. Na primeira chegou à serra de Ibiapaba, onde deixou três
estradas; da segunda alcançou a Bahia, naturalmente partindo da mesma serra, o
que indica traçado bastante oriental, talvez pelas ribeiras do Poti e contravertentes
do rio São Francisco, Cabrobó, Ibó e Jeremoabo.
E' impossível decidir se a esta ou a outra estrada se refere uma carta de Antônio
Albuquerque, sucessor de Gomes Freire, escrita em julho de 1694 e entregue na
Bahia a d. João de Lencastro, governador geral, em 19 de abril do ano seguinte.
Dois dias depois chegava à mesma cidade o sargento-mor Francisco dos Santos
com quatro soldados e vinte índios, que tinham acabado de descobrir o caminho,
trazendo uma carta de Antônio de Albuquerque datada de 15 de dezembro. Para
retribuir a fineza e ver se podia encurtar o caminho, o governador geral mandou o
capitão André Lopes ao Maranhão, com carta para Antônio de Albuquerque datada
de 21 de maio. André Lopes alcançou a capital do Estado em novembro mas teve
de esperar pela volta de Antônio de Albuquerque, ido ao Pará. Com resposta de 15
de março de 1696 estava na Bahia em 22 de setembro.
O trecho mais difícil a vencer ficava no Maranhão pròpriamente dito: nos rios Piauí e
Canindé, nas ribeiras do Ceará, a uma e outra margem do São Francisco
abundavam fazendas de gado e deviam existir numerosas vias de comunicação.
Com o gado desta procedência povoaram-se os sertões de Pastos Bons, cujas
transações durante algum tempo se fizeram com a Bahia, exatamente como as
de Pernambuco a montante de Paulo Afonso.
Mais tarde o padre Malagrida levou a catequese até o rio Codó; seu sucessor João
Ferreira fundou as Aldeias Altas, hoje Caxias. Conhecida a pequena distância neste
trecho entre o Itapecuru e o Parnaíba começou a ser preferida esta passagem.
em 1747 dela se servia d. Manuel da Cruz, trasladado do sólio do Maranhão para o
de Mariana.
Maranhão começou a decair desde ou antes do governo de Gomes Freire, e
explica-se o fato pelo abandono da agricultura, devido a produtos florestais
semelhantes aos do Pará. Ao cravo, à canela, à castanha sucumbiram os
engenhos.
«Erigiram cerca de cinqüenta engenhos», escrevia um contemporâneo em 1703,
«que fabricaram enquanto se não descobriu o cravo e cacau, total ruína daqueles
homens, como causa de ócio com que todos deixaram perder a fábrica de tabaco e
açúcar em que se iam aumentando... Terrível é a dificuldade que têm os senhores
de engenho em acomodar a conveniência de seus lavradores, em quem também é
impraticável o querer lavrar canas; uns e outros confessam esta pela melhor
conveniência, clamando que por falta dela estão miseráveis e que quando dela
usavam viviam prósperos; porém, não remédio em ajustarem-se; os lavradores
com justa causa queixosos e teimosos com notável sem-razão; os senhores de
engenho tiranos de suas próprias consciências: esta desunião é capaz de impedir
as fábrica dos engenhos e não é o menos outro erro a que aqueles homens estão
amarrados, querendo fabricar tudo o que gastam, como são lenhas, cinzas, azeites,
farinhas, tabuados e canoas, em cuja fábrica divertindo a gente dos engenhos lhes
não fica lugar de fabricar açúcar».
Informando este papel, acrescentava Antônio de Albuquerque: como estejam
com o sentido no sertão, feitos hidrópicos do gentio que apetecem e procuram
por único remédio, não tratam de se disporem a outro algum meneio.
Em 1751 a capitania contava oito freguesias, cinco engenhos de açúcar, duzentas e
três fazendas a criar gado, das quais quarenta e quatro em Pastos Bons e trinta e
cinco em Aldeias Altas.
As questões de limites com a Espanha, não menos que a importância crescente do
Pará, foram causa da metrópole declarar-lhe subordinado o Maranhão e transferir
para a bacia do Amazonas a capital do Estado. Breve, porém, graças à cultura do
algodão e do arroz, à introdução de escravos africanos e à intervenção de nova
companhia de comércio, abriu-se uma era de prosperidade relativa, muito inferior
entretanto a seus imensos recursos naturais.
Os engenhos de açúcar, as roças de fumo e mantimentos cabiam dentro de uma
área traçada pelo custo de transporte dos produtos. Além de certo raio vegetava-se
indefinitivamente, a prosperidade real nunca bafejaria o proprietário. Com a
economia naturista, o equívoco podia prolongar-se por muito tempo, mas por fim
patenteava-se que próximo do mar ou no pequeno trecho dos rios navegáveis
graças à ausência de corredeiras e saltos, a labuta agrícola encontrava
remuneração satisfatória. Queixam-se os primeiros cronistas de andarem os
contemporâneos arranhando a areia das costas como caranguejos, em vez de
atirarem-se ao interior. Fazê-lo seria fácil em São Paulo, onde a caçada humana e
desumana atraía e ocupava a atividade geral, na Amazônia toda cortada de rios
caudalosos e desimpedidos, com preciosos produtos vegetais, extraídos sem
cultura. Na outras zonas interiores o problema pedia solução diversa.
A solução foi o gado vacum.
O gado vacum dispensava a proximidade da praia, pois como as vítimas dos
bandeirantes a si próprio transportava das maiores distâncias, e ainda com mais
comodidade; dava-se bem nas regiões impróprias ao cultivo da cana, quer pela
ingratidão do solo, quer pela pobreza das matas sem as quais as fornalhas não
podiam laborar; pedia pessoal diminuto, sem traquejamento especial, consideração
de alta valia num país de população rala; quase abolia capitais, capital fixo e
circulante a um tempo, multiplicando-se sem interstício, fornecia alimentação
constante, superior aos mariscos, aos peixes e outros bichos de terra e água,
usados na marinha. De tudo pagava-se apenas em sal; forneciam suficiente sal os
numerosos barreiros dos sertões.
A criação de gado primeiro se desenvolveu nas cercanias das cidade do Salvador; a
conquista de Sergipe estendeu-se à margem direita do São Francisco. Na outra
margem veio dar menos forte e menos acelerado o movimento idêntico partido de
Pernambuco. Ao romper a guerra holandesa estavam inçadas de gado as duas
bandas do rio em seu curso inferior. Nem por outro motivo as incorporou Maurício
de Nassau ao território da Companhia das Índias Ocidentais, e os patriotas da
liberdade divina com tanto afinco as defenderam.
Foi o gado acompanhando o curso do São Francisco. O povoado maior, a Bahia,
atraiu todo o da margem meridional, que paraia por um caminho paralelo à praia,
limitado pela linha dos vaus.
Mais tarde, à medida que a criação se afastou do litoral, outros caminhos se
tornaram necessários. Um dos mais antigos passava por Pombal no Itapecuru,
Jeremoabo no Vasabarris, e atingindo o São Francisco acima da região
encachoeirada, chamou o gado da outra margem. Esta, pertencente a Pernambuco
por todos os títulos, ficou de fato baiana, foi povoado por baianos, e como o
chapadão do São Francisco se estreita depois da grande volta, onde ao contrário
atinge sua maior expansão o do Parnaíba, consumou-se aqui a passagem de um
para o outro, e encontraram-se os baianos com a gente vinda do Maranhão. O
riacho do Terra Nova e o do Brígida facilitaram a marcha para o Ceará. Pelo do
Pontal e pela serra dos Dois Irmãos passaram os caminhos do Piauí. Nem o
Parnaíba teve poder para conter a onda invasora: Pastos Bons foi povoado por
baianos, e até meados do século XVIII teve comunicações exclusivamente com a
Bahia.
Na margem pernambucana do rio S. Francisco possuía duzentas e sessenta léguas
de testada a casa da Torre, fundada por Garcia d'Ávilla, protegido de To de
Sousa, a qual entre o S. Francisco e o Parnaíba senhoreava mais oitenta léguas.
Para adquirir estas propriedades imensas, gastou apenas papel e tinta em
requerimentos de sesmarias. Como seus gados não davam para encher tamanhas
extensões, arrendava sítios, geralmente de uma légua, à razão de 10$ por ano, no
princípio do século XVIII. Um de tais rendeiros, Domingos Afonso, por alcunha o
Sertão, partindo de um dos muitos sobrados existentes no São Francisco, aos quais
se este nome por causa de vagamente semelharem um edifício, fundou
numerosas e importantes fazendas nos rios Piauí e Canindé, legadas por sua morte
à Companhia de Jesus, a quem a coroa as confiscou em proveito próprio, por
ocasião de suprimir a Ordem.
Por esta margem do São Francisco existiam numerosas tribos indígenas, a maioria
pertencente ao tronco cariri, algumas caribas como os Pimenteiras, e até tupis como
os Amoipiras. Com elas houve guerras, ou por não quererem ceder pacificamente
as suas terras, ou por pretenderem desfrutar os gados contra a vontade dos donos.
Estes conflitos foram menos sanguinolentos que os antigos: a criação de gado não
precisava de tantos braços como a lavoura, nem reclamava o mesmo esforço, nem
provocava a mesma repugnância; além disso abundavam terras devolutas para
onde os índios podiam emigrar. Entretanto, muitos foram escravizados, refugiaram-
se outros em aldeias dirigidas por missionários, acostaram-se outros à sombra de
homens poderosos, cujas lutas esposaram e cujos ódios serviram.
Resistiram bastante os índios do Pajeú, mas em tempo de d. João de Lencastro e
por sua ordem Manuel de Araujo de Carvalho atacou-os. Simultaneamente
penetrava da Paraíba Teodósio de Oliveira Ledo. Graças aos esforços dos dois,
ficaram pacificados os sertões de Pajeú, Piancó e Piranhas. Parte deles abriu
comunicações com Pernambuco, para onde mandava seus gados. Pajeú, apesar da
proximidade, fez isto em começos do século XIX; até então gravitava para a
Bahia.
Ao compasso do afastamento do gado, novas passagens e novos caminhos iam
sendo trilhados. Basta citar o de Jacobinas e a passagem do Juazeiro, pelo qual
pautou-se uma estrada de ferro. Com o crescimento de Cachoeira e o impulso do
plantio de fumo, abriu-se um ramal importante em busca do baixo Paraguaçu.
A margem baiana do São Francisco criou gado em o menor quantidade, embora
no terreno cortado de serras e nas matas litorâneas ou ribeirinhas se conservasse
numerosa população indígena, sempre disposta a salteios. As bandeiras de Arzão e
Estêvão Parente e outras enfraqueceram, mas não extinguiram a resistência do
gentio, e anos depois guerreavam-se ainda nas cabeceiras do rio de Contas, Pardo,
etc. O grande proprietário desta banda chamava-se Antônio Guedes de Brito, com
cento e sessenta léguas, contadas do morro do Chapéu até águas do rio das
Velhas. Merecem também ser mencionados João Peixoto Viegas, que incorporou as
terras do alto do Paraguaçu; Matias Cardoso e Fiqueira, conquistadores paulistas,
estabelecidos em situações muito próprias a favorecerem o tráfego com S. Paulo.
Os caminhos destes lados entroncaram primeiramente nos que pela margem
esquerda do S. Francisco demandavam o chapadão do Parnaíba; mais tarde o
Paraguaçu foi procurado desde o curso superior e seguido a Cacheira, perto da
barra.
Os primeiros ocupadores do sertão passaram vida bem apertada; não eram os
donos das sesmarias, mas escravos ou prepostos. Carne e leite havia em
abundância, mas isto apenas. A farinha, único alimento em que o povo tem
confiança, faltou-lhes a princípio por julgarem imprópria a terra à plantação da
mandioca, não por defeito do solo, pela falta de chuva durante a maior parte do ano.
O milho, a não ser verde, afugentava pelo penoso do preparo naqueles distritos
estranhos ao uso do monjolo. As frutas mais silvestres, as qualidades de mel menos
saborosas eram devoradas com avidez. Pode-se apanhar muitos fatos da vida
daqueles sertanejos dizendo que atravessaram a época do couro. De couro era a
porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os
partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforge
para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia
para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as broacas e surrões, a roupa de
entrar no mato, os banguês para cortume ou para apurar sal; para os açudes, o
material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a
terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.
Adquirida a terra para uma fazenda, o trabalho primeiro era acostumar o gado ao
novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante gente; depois ficava tudo entregue
ao vaqueiro. A este cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras,
queimar os campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças, cobras
e morcegos, conhecer as malhadas escolhidas pelo gado para ruminar
gregàriamente, abrir cacimbas e bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício
vaqueiral, escreve um observador, deixa poucas noites de dormir nos campos, ou a
menos as madrugadas não o acham em casa, especialmente de inverno, sem
atender às maiores trovoadas, porque nesta ocasião costuma nascer a maior parte
de bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de espalhar-se ao romper
do dia, como costumam, marcar as vacas que estão próximas a ser mães e trazê-
las quase como à vista, para que parindo não escondam os filhos de forma que
fiquem bravos ou morram de varejeiras.
Depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de
quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por sua conta. Desde
começos do século XVIII, as sesmarias tinham sido limitadas ao máximo de três
léguas separadas por uma devoluta. A gente dos sertões da Bahia, Pernambuco,
Ceará, informa o autor anônimo do admirável Roteiro do Maranhão a Goiás, tem
pelo exercício nas fazendas de gado tal inclinação que procura com empenhos ser
nela ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o
nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de fazenda, são títulos honoríficos
entre eles.
As boiadas procuravam os maiores centros de população, isto é, as capitais da
Bahia e Pernambuco.
Sobre as que iam para a Bahia escreve o seguinte André João Antonil, anagrama do
benemérito jesuíta João Antônio Andreoni:
Constam as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia, de cem, cento e
cinqüenta, duzentas e trezentas cabeças de gado; e desta quase cada semana
chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade oito léguas, aonde tem pasto
e aonde os marchantes as compram: e em alguns tempos do ano semanas em
que cada dia chegam boiadas. Os que as trazem são brancos, mulatos e pretos, e
também índios que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns
adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vêm atrás das
reses tangendo-as e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontem. As
jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos
aonde hão de parar. Porém, aonde falta de água, seguem o caminho de quinze,
e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem
paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a
boiada, pondo uma armação de boi na cabeça e nadando, mostra às reses o vau
por onde hão de passar.
Por maior cuidado na condução das boiadas, transviavam-se algumas reses, outras
por fracas ficavam incapazes de continuar a marcha. Contando com isso, alguns
moradores se estabeleceram nos caminhos e por pouco preço compravam este
gado depreciado que mais tarde cediam em boas condições. Além disso, faziam
uma pequena lavoura, cujas sobras vendiam aos transeuntes; alguns, graças aos
conhecimentos locais, melhoraram e encurtaram as estradas; fizeram açudes,
plantaram canas, proporcionaram ao sertanejo uma de suas alegrias, a rapadura.
No rio S. Francisco, desde a barra do Salitre até São Romão, descobriram-se
jazidas de sal na detenção de três graus geográficos, que preparado com algum
trabalho provou excelente. Graças a estas circunstâncias, formou-se no trajeto do
gado uma população relativamente densa, tão densa como houve igual depois
de descobertas as minas, nas cercanias do Rio.
Perdeu assim os terrores a viagem do sertão, e cerca de 1690 havia antes motivos a
aconselhá-la. Um contemporâneo muito bem informado fala no preço altíssimo dos
gêneros estrangeiros, na depreciação dos frutos da terra, na menor feracidade do
solo em conseqüência do cansaço, nas limitações impostas à cultura do tabaco,
«gênero fabricado por pretos, por brancos, por forros, por cativos, por ricos, por
pobres, de que todos em sua qualidade se alimentavam e vestiam», nos excessos
do contrato do sal, na prepotência da magistratura, na dificuldade de cobrar dívidas,
no desenvolvimento anormal da mão-morta. «Das fazendas, terras, lavouras e
propriedades possuídas das religiões nem Sua Majestade tem tributos, nem
subsídios, nem ainda dízimos, nem as misericórdias, nem os hospitais, nem as sés,
matrizes e mais igrejas, nem as confrarias e irmandades, nem as pobres órfãs e
viúvas têm esmola alguma; são úteis às religiões que as possuem e não a outra
pessoa alguma... Anualmente vão indo às religiões muitas propriedades, terras e
fazendas, ou por compra, ou por deixa, ou por herança, ou por demanda de
pretensões de sessenta, setenta, oitenta, noventa e cem anos, as quais em poder
dos vassalos seculares eram sujeitas a dízimos, tributos e mais pensões e
incorporadas em religiões logo ficam isentas, e o pior é que aquele tanto ou quanto
que pagavam de fintas, tributos subsídios e outros impostos, tornam a cair sobre os
miseráveis seculares».
Desvanecidos os terrores da viagem ao sertão, alguns homens mais resolutos
levaram família para as fazendas, temporária ou definitivamente e as condições de
vida melhoraram; casas sólidas, espaçosas, de alpendre hospitaleiro, currais de
mourões por cima dos quais se podia passear, bolandeiras para o preparo da
farinha, teares modestos para o fabrico de redes ou pano grosseiro, açudes,
engenhocas para preparar a rapadura, capelas e até capelães, cavalos de
estimação, negros africanos, o como fator econômico, mas como elemento de
magnificência e fausto, apresentaram-se gradualmente como sinais de abastança.
Se a Bahia ocupava os sertões de dentro, escoavam-se para Pernambuco os
sertões de fora, começando de Borborema e alcançando o Ceará, onde confluíam a
corrente baiana e pernambucana. A estrada que partia da ribeira do Acaracu
atravessava a do Jaguaribe, procurava o alto Piranhas e por Pombal, Patos,
Campina Grande, bifurcava-se para o Paraíba e Capibaribe, avantajava-se a todas
nesta região. Também no alto Piranhas confluiram o movimento baiano e o
movimento pernambucano, como já fica indicado.
Sobre a extensão de terras ocupada pelo gado vacum oferece-nos dados positivos o
maravilhoso Antonil-Andreoni: «Estende-se o sertão da Bahia até a barra do rio de
S. Francisco, oitenta léguas por costa; e indo para o rio acima até a barra que
chamam de Água-Grande, fica distante a Bahia da dita barra cento e quinze léguas;
de Santunse cento e trinta léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta léguas; das
Jacobinas, noventa, e do Tucano cinqüenta... Os currais da parte da Bahia estão
postos na borda do rio de São Francisco, na do rio das Velhas, na do rio das Rãs,
na do rio Verde, na do rio Paramirim, na do rio Jacuípe, na do rio Ipojuca, na do rio
Inhambupe, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vasabarris, na do rio
Sergipe e de outros rios, em os quais, por informação tomada de vários, que
correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais...
E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia chegam a muito maior
número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa, desde a cidade de
Olinda até o rio São Francisco, oitenta léguas; e continuando da barra do rio de São
Francisco até a barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para
Oeste até o Piagui, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas,
e pela parte do Norte estende-se de Olinda até o Ceará-mirim, oitenta léguas, e daí
até o Açu trinta e cinco, e até o Ceará Grande, oitenta; e por todas vem estender-se
desde Olinda até esta parte, quase duzentas léguas...
Os currais desta parte hão de passar de oitocentos; e de todos estes vão boiadas
para o Recife e Olinda e suas vilas e para o fornecimento das bricas dos
engenhos desde o rio de São Francisco até o rio Grande: tirando os que acima
estão nomeados desde o Piagui, até a barra de Iguaçu e de Paranaguá e rio Preto;
porque as boiadas destes rios vão quase todas para a Bahia, por lhes ficar melhor
caminho pelas Jacobinas, por onde passam e descansam...
As [cabeças de gado] da parte da Bahia se tem por certo que passam de meio
milhão, e mais de oitocentas mil hão de ser as da parte de Pernambuco, ainda que
destas se aproveitam mais os da Bahia, para onde vão muitas boiadas, que os
pernambucanos».
Muito tempo viveu esta gente entregue a si mesmo, sem figura de ordem nem de
organização. Como eram católicos e a igreja à freqüência dos sacramentos,
naturalmente qualquer vigário ou algum mais animoso, mais zeloso ou mais cúpido
saía de tempos em tempos a desobrigar as ovelhas remotas. Depois da instalação
do arcebispado da Bahia, criaram-se freguesias no sertão, enormes, de oitenta, cem
léguas e mais. Ali era cobrado o imposto meio civil meio eclesiástico do dízimo. Os
dizimeiros que o arrematavam, depois de ter feito a experiência, preferiram deixar a
outros o trabalho da arrecadação: um dos fazendeiros ou qualquer pessoa capaz do
interior em seu nome ia pelos vizinhos recolher os bezerros dizimados, pois a paga
realizava-se em gênero; depois de alguns anos, três ou quatro conforme a
convenção, prestava contas: cabia-lhe pelo trabalho um quarto do gado, exatamente
como aos vaqueiros.
A carta régia de 20 de janeiro de 1699, primeiro esforço para introduzir alguma
ordem naquela massa amorfa, mandou criar nas freguesias do sertão juízes à
semelhança dos de vintena, que saíam dos mais poderosos da terra, e em cada
freguesia um capitão-mor e cabos de milícia obrigados a socorrer e ajudar os juízes.
A resistência contra estes se equiparava à resistência contra os juízes de fora, e
ficariam seqüestrados os bens do réu até sentença final; as penas pecuniárias
deveriam ser preferidas por não se poder facilmente executar as corporais.
Ouvidores, corregedores eram obrigados a uma visita trienal. Se tais ordens foram
cumpridas e nos arquivos de além-mar existirem relatórios das correções, nem um
documento poderá nos ajudar tanto no estudo e conhecimento da vida sertaneja.
Os capitães-mores deixaram fama de violentos, arbitrários e cruéis; não eram,
porém, incontratáveis e maior ou menor sempre encontraram oposição. Reinava
respeito natural pela propriedade; ladrão era e ainda é hoje o mais afrontoso dos
epítetos; a vida humana o inspirava o mesmo acatamento. Questões de terra,
melindres de família, uma descortesia mesmo involuntária, coisas às vezes de
insignificância inapreciável desfechavam em sangue. Por desgraça não se dava o
encontro em campo aberto: por trás de um pau, por uma porta ou janela aberta
descuidosamente, na passagem de algum lugar ermo ou sombrio lascava o tiro
assassino, às vezes marcando o começo de longa série de assassinatos e
vendetas. Com a economia naturista dominante, custava pouco ajuntar valentões e
facinorosos, desafiando as autoridades e as leis. Para apossar-se destes régulos
havia dois recursos: a astúcia ou o auxílio de vizinhos.
Além do sentimento de orgulho inspirado pela riqueza, pelo afastamento de
autoridades eficazes, pela impunidade, a criação de gado teve um efeito, que
repercutiu longamente. Graças a ela foi possível descobrir mina. Desde 1618 o autor
dos Diálogos das Grandezas do Brasil dizia que o problema da mineração não
consistia em encontrar metais, -estes existiam não restava dúvida, pois o Oriente é
mais nobre que o Ocidente e portanto o Brasil mais opulento que o Peru; o
problema verdadeiro consistia na dificuldade de alimentar os mineiros. E expunha
um plano: «O primeiro que se devia fazer antes de bulir nelas, depois de estarem
certos que eram de proveito, houvera de plantarem-se muitos mantimentos ao redor
do sítio onde elas estão e como os houvesse em abundância tratar-se-ia da lavoura
das minas; mas isto se faz pelo contrário, porque sem terem mantimento
entenderam em tirar o ouro e como as minas estão muito pelo sertão os que vão
levam de carreto o mantimento necessário e como se lhe acaba tornam-se e deixam
a lavoura que tinham começado. E esta cuido que é a verdadeira causa de darem
as ditas minas pouco de si».
O plano decorria da natureza das coisas e Fernão Dias Pais, sem nunca ter lido os
Diálogos das Grandezas do Brasil, conservados inéditos até muito poucos anos,
obedeceu-lhe na famosa jornadas das esmeraldas; seria suficiente enquanto os
mineiros se limitassem a bandos mais ou menos numerosos, e a alimentação
vegetal pudesse ser suprida com a caça e a pesca; depois do alborôto provocado
pelos descobertos era indispensável recurso menos aleatório, e impunha-se a
necessidade de gado vacum e de muito gado.
Não podia ir de S. Paulo: em março de 1700 o capitão-mor Pedro Taques de
Almeida confessava a d. João de Lencastro, governador geral: «destas vilas não é
possível fazer-se [a remessa das boiadas], porque sendo vinte já perecem os povos,
nem se vende peso de carne, e valendo uma rês dois mil réis prometem os mineiros
oito, pelo que interessam nas minas, porque o preço geral até o presente foi
cinqüenta oitavas e em alguma necessidade cem».
O recurso podia partir da bacia do rio S. Francisco. «Pelo dito rio ou pelo seu
caminho, expõe um documento pouco posterior a 1705, lhe entram os gados de que
se sustenta o grande povo que está nas minas, de tal sorte que de nem uma outra
parte lhe vão nem lhe podem ir os ditos gados, porque o os nos sertões de
São Paulo nem nos do Rio de Janeiro. Da mesma sorte se provêm pelo dito
caminho de cavalos para suas viagens, de sal feito de terra no rio S. Francisco, de
farinhas e outras cousas, todas precisas para o trato e sustento da vida.
O rio S. Francisco, acrescenta, desde a sua barra que faz no mar junto à vila de
Penedo, em igual distância de oitenta léguas da Bahia e Pernambuco, de uma e
outra parte, assim do que pertence à jurisdição de Pernambuco como à da Bahia
(para os quais serve de divisão o dito rio) tem às suas beiras várias povoações,
umas mais chegadas, outras mais distantes do dito rio; e na mesma forma se vão
continuando por ele acima, por espaço de mais de seiscentas léguas, até se
ajuntarem na barra que nele faz o rio das Velhas, em cuja altura se acham hoje as
últimas fazendas de gados de uma e outra banda do dito rio de S. Francisco, sem
ter da dita barra até esta altura parte despovoada nem deserta em a qual seja
necessário dormir ou alvergarem no campo os viandantes, querendo recolher-se na
casa dos vaqueiros, como ordinàriamente fazem, pelo bom acolhimento que nelas
acham».
Assim, como o alto Paraíba do Sul, mas em proporções muito mais grandiosas,
também o rio de S. Francisco serviu de condensador da população.
À vista disto poder-se-ia esperar muitas vilas nestas regiões tão povoadas. Puro
engano: foram criadas no século XVIII, mais uma prova da diferença entre as
capitanias del-rei e as de donatários na apreciação das municipalidades.
As câmaras do sertão não divergiam das do litoral, isto é, possuíam direito de
petição, podiam taxar os gêneros de produção local, davam os juízes ordinários,
mas eram antes de tudo corporações meramente administrativas.
Dos assentos da câmara do Icó no Ceará, instalada em 1738, constam posturas
relativas ao plantio de mandioca para farinha e de carrapateira para o fabrico de
azeite, à proibição de exportar farinha por causa da carestia, aos salários que
deviam cobrar alfaiates, sapateiros e outros oficiais, à morte de periquitos, etc.
Nada confirma a onipotência das câmaras municipais descoberta por João
Francisco Lisboa, e repetida à porfia por quem não se deu ao trabalho de recorrer
às fontes.
À preocupação de minas cederam Cristóvão Jaques e Martim Afonso. Nas suas
capitanias esperavam encontrá-las João de Barros e sócios. Duarte Coelho contava
descobri-las no rio de S. Francisco, e deixou de ir pesquisá-las pessoalmente por
circunstâncias alheias à sua vontade. Em Porto Seguro correram notícias de ouro
uns quarenta anos depois da viagem de Pedr'Álvares. Luís de Melo da Silva
embarcou-se à sua procura para as terras do Amazonas.
Tomé de Sousa dispôs uma expedição que transpôs a serra do Espinhaço. Sob
seus sucessores volveram outros com pedras preciosas, especialmente esmeraldas.
Pareceram por fim tais e tantos os vestígios de haveres a uma inteligência
perspícua como a de Gabriel Soares, que abandonou o próspero engenho de
Jeriquiriçá e perdeu anos com requerimentos junto às cortes de Lisboa e de Madrid
para prestar à pátria o serviço de revelar-lhe as riquezas ocultas.
Dos metais de que o mundo faz mais conta, que é ouro e prata, -escreve no último
capítulo de seu monumental Tratado,- fazemos aqui tão pouca que os guardamos
para o remate e fim desta história, havendo-se de dizer deles primeiro, pois esta
terra da Bahia tem dele tanto quanto se pode imaginar; do que pode vir a Espanha
cada ano maiores carregações do que nunca vieram das Índias Ocidentais, se Sua
Majestade for disso servido.
A tentativa em que se meteu não provou a verdade destes assertos, mas perpetuou-
lhe o nome. A ele prende-se a tradição de grandes viagens ao interior e de
inexauríveis minas de prata. Melchior Dias, seu parente, ofereceu mostrar o metal
branco em quantidade igual à do ferro em Biscaia. Após muitas negaças, intimado a
cumprir a promessa, levou o governador geral do Brasil com alguns mineiros às
serras de Itabaiana. As experiências feitas com azougue deram nada, com fogo
deram fumo, informa testemunha de vista. Apesar de tudo continuou inabalável a
crença nos tesouros ocultos de Melchior e na riqueza argentífera. Ainda no último
quartel do século XVII procurava-se, esperava-se prata.
Partilhando das crenças de Gabriel Soares, d. Francisco de Sousa mandou do
Espírito Santo às esmeraldas e de S. Vicente a Sabarabuçu. Quando veio-lhe
substituto dirigiu-se para Madrid, onde conseguiu a separação do Estado em dois
governos, em 1608; coube-lhe o do Sul com a superintendência exclusiva das minas
em toda a colônia. Nestes trabalhos perdeu a vida em São Paulo; a esperança
conservou sempre e soube comunicá-la a outros.
A incumbência dada a d. Francisco passou por sua morte a Salvador Correia e a
alguns de seus descendentes, que durante quatro gerações pesquisaram ouro,
prata, esmeraldas nos pontos mais diversos. Salvador neto adquiriu por fim certo
cepticismo a propósito de metais; antes de qualquer outro convenceu-se da não
existência de prata: «em sua consciência o declara que de Itabaiana para o Sul,
quarenta léguas do mar, não minas de prata, porquanto nestas partes andou ele
conselheiro e fez todas as experiências para a descobrir, e é diferente terreno do de
Potosi», concluía no Conselho Ultramarino em 3 de maio de 1677. De Potosi podia
falar com pertinência, pois fora até os Andes.
Por que se generalizou e persistiu esta crença com tanta pertinácia? Porque se
acreditava na identidade estrutural do Ocidente e do Oriente da América; porque
tomaram a malacacheta por prata, como Salvador afirma de Melchior Dias; porque
nas idéias do tempo o Oriente era mais nobre que o Ocidente, e não podia faltar
aqui o que abundava lá: «por boa razão de filosofia esta região deve ter mais e
melhores minas que a do Peruv, lê-se em documento escrito cerca de 1610, «por
ficar mais oriental que ela e mais disposta para a criação de metais». Talvez
influíssem também o nome do rio da Prata legado pelos primeiros navegadores e os
informes confusos dos indígenas.
O ouro, não procurado ou procurado com menor afinco, aparecia entretanto às
pequenas quantidades na capitania de S. Vicente. Desde o tempo de Mem de
encontraram alguns grãos Brás Cubas, provedor da fazenda, e Luís Martins, mineiro
ido de Portugal.
Foram igualmente felizes outros. A crer na tradição houve descobertos riquíssimos;
Afonso Sardinha, dizia-se, deixara oitenta mil cruzados de ouro em pó. de entrar
exagero nesta conta, ou pelo menos muito ogó haveria no monte. Se tanto
abundasse o metal, a população teria afluído aos bandos e os paulistas não
levariam tanto tempo vida de bandeirantes.
Antonil-Andreoni parece mais próximo da verdade, quando diz a respeito destas
primitivas lavras «que de um outeiro alto distante três léguas da vila de S. Paulo, a
que chamam Jaraguá, se tirou quantidade de ouro que passava de oitavas a libras.
Em Parnaíba, também junto da mesma vila no serro Ibituruna, se achou ouro e tirou-
se por oitavas. Muito mais e por muitos anos se continuou a tirar em Parnaguá e
Curitiba, primeiro por oitavas, depois por libras, que chegaram a alguma arroba
posto que com muito trabalho para o ajuntar, sendo o rendimento no catar limitado».
Mais que as libras e oitavas, importam porém o gosto pelas pesquisas auríferas
assim mantido e a prática do ouro de lavagem. Esta familiaridade influiu de maneira
benéfica sobre o desenvolvimento ulterior da mineração.
D. Pedro II, depois de ver frustradas ou mal correspondidas todas as esperanças
concentradas nas minas, resolveu dar um grande passo: dirigiu as mais lisonjeiras
cartas à gente principal de São Paulo, confiando-lhe por assim dizer a questão.
Este apelo aos brios paulistas provocou o maior entusiasmo: um rei ainda se
reputava então semideus, e uma carta régia honra quase sobre-humana. De chofre
aparelharam-se e partiram nos rumos mais opostos numerosas bandeiras, e desde
logo se evidenciou que, se o Brasil contivesse haveres minerais, não poderia
conservá-los encobertos por mais tempo.
O mais famoso destes bandeirantes, transformado agora em mineiro pelo pedido do
rei, chamava-se Fernão Dias Pais. Administrava algumas aldeias de índios
Guanãan, desfrutava a casa grande característica da economia naturista e
transmontara o pino da vida. Alistou-se na cruzada do metal, apesar de tudo isto.
Dez anos consumiu na porfia, e ao falecer nas matas do rio Doce levou a certeza de
haver descoberto as célebres esmeraldas, secularmente esquivas.
Sua morte precedeu de pouco o despontar dos descobertos fenomenais. Garcia
Rodrigues Pais era seu filho, uma filha sua esposara Manuel da Borba Gato, ambos
astros de primeira grandeza nestes cometimentos.
De Minas Gerais o nome indica a fartura, a onipresença dos haveres. Quem os
descobriu primitivamente é impossível apurar, tanto se contradizem as versões; o
fato ocorreu pouco depois de 1690. Segundo Antonil-Andreoni, um mulato de
Curitiba encontrou no riacho chamado Tripuí uns granitos cor de aço, que vendeu
em Taubaté a Miguel de Sousa por meia pataca a oitava; levados ao Rio
reconheceu-se neles ouro finíssimo. Foi este o primeiro descoberto.
Seguiram-se o de Antônio Dias, a meia légua de Ouro Preto, o de João de Faria, o
de Bueno e de Bento Rodrigues pouco mais distantes, os do ribeirão do Carmo e do
Ibupiranga, todos nas cercanias de Ouro Preto e Mariana; parte da bacia do alto rio
Doce foi escavada, justificando o nome de minas gerais primeiramente aplicado a
este distrito.
Outros centros foram o rio das Mortes nas proximidades de São João e São José de
El-Rei, caminho de São Paulo; o rio das Velhas, revelado por Manuel da Borba
Gato, caminho da Bahia; Caeté e, ainda e sempre no alto rio Doce e na cordilheira
do Espinhaço, o serro do Frio. Novas minas foram descobertas em Pitangui,
Paracatu e alhures; pertencem à segunda corrente e dispensam enumeração
especial.
Dos caminhos primitivos um partia de S. Paulo, acompanhava o Paraíba,
transpunha a Mantiqueira, cortava as águas do rio Grande e além bifurcava para o
rio das Velhas ou o Doce, conforme o destino; outro ou saía de Cachoeira na Bahia
e subia o rio Paraguaçu, ou tomando outras direções, passava a divisória do São
Francisco, margeava-o a maior ou menor distância até o rio das Velhas que
perlongava; o caminho do Rio seguia por terra ou por mar até Parati, pela antiga
picada dos Guaianá galgava a serra do Facão nas cercanias da atual cidade do
Cunha e em Taubaté entroncava na estrada geral de São Paulo. Mais tarde o
entroncamento fez-se em Pindamonhangaba.
Artur de Sá, primeira autoridade que visitou os descobertos, tratou com Garcia
Rodrigues Pais a abertura de uma linha mais direta de comunicações com a cidade
de São Sebastião, a verdadeira capital do Sul. O filho de Fernão Dias deu conta
cabal da incumbência. Nas proximidades da hodierna Barbacena reuniam-se os
caminhos do rio das Mortes, o do rio das Velhas, e o do rio Doce; começou daí,
venceu a Mantiqueira, procurou o Paraibuna, seguiu-o até sua barra no Paraíba e
pela serra dos Órgãos chegou à baía do Rio, passando em Cabaru, Marcos da
Costa, Couto e Pilar. O trecho entre o Paraíba e a baía já estava ligado em 1725 por
outro caminho, devido a Bernardo Soares de Proença, correspondendo em parte ao
traçado de E. de F. de Petrópolis a Entre-Rios, em parte acompanhando o rio
Inhomirim.
Ainda uma década depois dos primeiros descobertos, custava um boi cem oitavas, a
mão de sessenta espigas de milho trinta oitavas, um alqueire de farinha de
mandioca quarenta oitavas, uma galinha três ou quatro oitavas, um barrilote de
aguardente, carga de um escravo, cem oitavas, um barrilote de vinho, carga de um
escravo, duzentas oitavas, um barrilote de azeite duas libras (libra = 128 oitavas).
«Não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineiros por falta de
mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão
sem terem outro sustento», informa Antonil-Andreoni. «Porém tanto que se viu a
abundância do ouro que se tirava e a largueza com que se pagava tudo o que ia,
logo se fizeram estalagens e logo começaram os mercadores a mandar às minas o
melhor que chega nos navios do Reino e de outras partes, assim de mantimentos
como de regalo e de pomposo para se vestirem, além de mil bugiarias de França,
que também foram dar... E não havendo nas minas outra moeda mais que ouro
em pó, o menos que se pedia e dava por qualquer coisa eram oitavas.
Com vender coisas comestíveis, aguardente e garapas muitos em breve tempo
acumularam quantidade considerável de ouro, -continua o mesmo autor. Porque
como os negros e os índios escondem bastantes oitavas quando catam nos ribeiros
e nos dias santos e nas últimas horas do dia tiram ouro para si, a maior parte deste
ouro se gasta em comer e beber, e insensìvelmente aos vendedores grande
lucro, como costuma dar a chuva miúda aos campos, a qual continuando a regá-los
sem estrondo, os faz muito férteis. E por isso até os homens de maior cabedal não
deixaram de se aproveitar por este caminho dessa mina à flor da terra, tendo negras
cozinheiras, mulatas doceiras e crioulos taverneiros ocupados nesta redosíssima
lavra, e mandando vir dos portos de mar tudo o que a gula costuma apetecer e
buscar».
Sem serem procuradas apareceram as minas de Cuiabá. Pascoal Moreira Cabral e
seus companheiros andavam à cata de índios quando encontraram os primeiros
grãos de ouro em 1719, em tamanha abundância que extraía-se com as mãos e
paus pontudos; tirava-se ouro da terra como nata de leite, na expressão pitoresca
de Eschwege. Os bandeirantes viraram mineiros sem pensar e sem querer. A
experiência das desordens das minas gerais foi aproveitada, e não houve aqui as
terríveis desordens que fizeram tristemente célebre o rio das Mortes.
As notícias desta facilidade única de minerar, levadas ao povoado, agitaram a
população, e levianamente se lançou à terrível jornada que começava no Tietê
próximo do Itu, prosseguia pelo Paraná até junto das Sete Quedas, varava para as
águas do Mbotetéu até sua barra no Paraguai e subindo por este procurava o São
Lourenço e o Cuiabá. Muitos naufragaram; morreram outros de inanição ou
devorados pelas feras; dos escapos à morte muitos perderam nos saltos e
corredeiras as fazendas com que pretendiam negociar; as fazendas salvas
chegavam podres a seu destino, porque não toldavam as canoas. E depois de
tantos perigos encontravam a mais negra miséria em Cuiabá.
Alguns fatos narrados por Barbosa de Sá, testemunha e cronista desse período,
mostram o horror da situação.
em 1721 chegou a primeira ferramenta para a mineração. Não havia pescadores
e um dourado colhido acaso vendia-se por sete e oito oitavas. Muitos andavam
opilados e hidrópicos, todos em geral com pernas e barrigas inchadas, com cores de
defuntos; apetecia-se comer terra e muitos o faziam. Em 1723 apareceram os
primeiros porcos e galinhas. Em 1725 chegou-se a dar por um frasco de sal meia
libra de ouro (256$, a câmbio de 27). O milho, antes de brotado, era comido pelos
ratos; depois de nascido caíam-lhe em cima os gafanhotos; se espigava, o sabugo
saía sem grãos; o que granava tinha de ser colhido verde para os pássaros o não
comerem. As ratazanas eram tantas que um casal de gatos foi vendido por uma
libra de ouro, e os filhotes a vinte e trinta oitavas. Em 1729, por falta de fazendas,
venderam-se camisas de alguns lençóis que se desfaziam a doze oitavas de ouro; a
vara de algodão da terra a três e a quatro oitavas; sal não havia nem para batizado.
A situação melhorou muito lentamente. Em 1725 começou-se a navegação pelo
Pardo, Coxim e Taquari, o que facilitava bastante a viagem, principalmente depois
de se fazerem roças, criação de gado e até carros para transportar canoas no
varadouro de Camapuã, entre o Paraguai e o Paraná.
Em 1728 plantou-se cana: «logo começaram a moer nas moendinhas que
chamamos escaroçador e a estilar em lambiques que formavam de tachos,
apareceram logo águas ardentes de cana que vendiam a cinco e seis oitavas de
ouro e as frasqueiras a quarenta oitavas. Com isto foi que se começou a lograr
saúde, a cessarem enfermidades e terem os homens boas cores que até então
tinham-nas de defuntos, foram a menos as hidropisias e inflamações de barrigas e
pernas e a mortandade de escravos que té se experimentava enterrando-se cada
dia aos montões».
Até então a gente se concentrava nas cercanias de Cuiabá. Em 1734 transpuseram
a serra e na região dos Parecis afloraram novas minas. Grandes florestas
encontradas ali são a origem do nome de Mato Grosso. Em 1736 descobriu-se
caminho por terra de Cuiabá ao Paraguai, e pelas águas do Guaporé a mineração
foi se estendendo. Aquele ponto mais remoto ainda do que Cuiabá sofreu iguais
misérias; despertou, porém, risonhas esperanças conhecer-se a existência de
aldeias de jesuítas espanhóis a distâncias relativamente pequenas. Os primeiros
que foram às reduções encontraram bom acolhimento e obtiveram algum gado.
Brotou a idéia entabular comércio e logo outros aventureiros realizaram mais de
uma expedição sem o fruto apetecido, porque ordens restritas vedaram quaisquer
transações com os portugueses. Nas reduções encontraram notícia de estarem na
bacia do Madeira.
Poucos anos antes Francisco de Melo Palheta chegara às aldeias do Mamoré,
partindo do Pará. Animado por este exemplo, Manuel Félix de Lima em 1742 atirou-
se ao rio Guaporé e foi sair em Belém. Mais tarde João de Sousa de Azevedo
embarcou no Arinos, foi dar no Tapajós e voltou pelo Madeira. Apesar das
dificuldades de navegação ainda hoje não vencidas, a viagem de um e outro rio foi
repetida e aqueles sertões de Noroeste ficaram ligados à baixada do Amazonas.
Outra ligação se estabelecera antes com S. Paulo por via terrestre para evitar os
índios brabos. Desde a barra do São Lourenço começaram os Paiaguás e
Guaicurus a perseguir as pessoas que iam para Cuiabá ou de tornavam.
Apareciam de súbito em inúmeras canoas, e conhecendo os mínimos acidentes dos
pantanais escolhiam os pontos de ataque e sabiam furtar-se aos que perseguiam.
Diz-se que obravam incitados pelos castelhanos de Asunción e é muito possível,
porque mineiros e bandeirantes não eram vizinhos para se desejar. Em todo o caso
o ouro que tomavam encontrava a saída no Paraguai e tanto bastava para estimulá-
los em seus salteios.
O primeiro destes sucessos ocorreu em 1725. Diogo de Sousa com muita gente
entrava no Xané, no delta do S. Lourenço, quando apareceu o gentio. Foram mortas
seiscentas pessoas: salvaram-se apenas um branco e um preto: como troféu e
despojo, os Paiaguás levaram vinte canoas. Repetiram-se os ataques nos anos
seguintes, ora mais perto, ora mais longe do Taquari, ponto obrigado depois das
plantações do Camapuã e da navegação do Pardo. No meio de expedições para
tomar vingança dos Bárbaros, surgiu a idéia de abrir caminho para Goiás e o povo
concorreu com três mil oitavas para a obra. Realizou-se Antônio Pinto de Azevedo,
que estava de volta a Cuiabá em setembro de 1737, com cavalarias e gados, os
primeiros ali introduzidos.
Os descobertos de Cuiabá lembraram a Bartolomeu Bueno da Silva que, uns
quarenta anos antes, percorrendo os sertões em companhia de seu pai, o primeiro
Anhangüera, vira entre os índios Guaiá pepitas de ouro servindo-lhes de ornatos.
Deviam ser muito auríferas aquelas regiões, pois o metal chegara a atrair a atenção
do aborígene. Sentiu-se capaz de achá-las outra vez, ofereceu-se a tentá-lo e seu
oferecimento aceito, partiu de São Paulo em janeiro de 722.
Fiara demais de sua retentiva: durante mais de três anos andou a esmo em todos
os sentidos, até as cabeceiras do Araguaia; parte de sua gente desceu o Tocantins
e chegou ao Pará; parte caiu em encontro com os índios, parte morreu de fome;
depois de comidos os cachorros e alguns cavalos, «fiz trinta e cinco sermões sem
mudar de tema», conta um companheiro do segundo Anhangüera, «animando a
todos que não esmorecessem, certificando-lhes para diante rios de muitos peixes,
campos de muitos veados, matos de muita caça, mel e guarirobas. Perguntavam os
miseráveis: quando? Respondia-lhes: nestes dias, e nestes permitia Deus que
chegássemos e tudo se achava certo. Com isto cessaram as mortes e não morreu
mais ninguém, e mal de muitos se não fora o pregador».
Afinal, em 21 de outubro de 725, Bartolomeu Bueno chegou triunfante a S. Paulo,
assegurando iguais grandezas às de Cuiabá, com a vantagem dos ares não serem
tão contagiosos. Os rios, cujas passagens lhe foram concedidas e a seu sócio
Bartolomeu Pais de Abreu, pai do benemérito historiador paulista Pedro Taques,
dão idéia aproximada do seu itinerário, a trechos seguido no traçado da E. F.
Mogiana: Atibaia, Jaguari, Mogi, Sapucaí, Pardo Grande, Velhas, Paranaíba,
Corumbá, Meia-Ponte e Pasmados.
A primeira mineração condensou-se no rio Vermelho, afluente do Araguaia; mas
também aqui apareceram minas generalizadas e os mineiros se dispersaram.
Em 733 Domingos Rodrigues do Prado descobriu as de Crixás, Manuel Dias da
Silva as de Santa Cruz e Calhamare as de Antas; no mesmo ano Manuel Rodrigues
Tomar descobriu as de Água-Quente e nos seguintes as de S. Jo e Traíras; em
734 Carlos Marinho descobriu as de S. Félix, em 736 descobriu as de Cachoeira,
Santa Rita e Moquém; em 737 Francisco de Albuquerque Cavalcante descobriu as
que guardam seu nome; datam de 739 o descoberto de Amaro Leite, de 740 o de
Arraias, devido a Francisco Lopes, de 740 o de Pilar, devido a João de Godói Pinto
da Silveira, de 746 o de Santa Luzia, devido a Antônio Bueno de Azeredo. Estas
datas são aproximadas, e variam com os cronistas.
A situação geográfica de Goiás permitia-lhe fàcilmente comunicar-se com a baixada
amazônica e com os chapadões de Parnaíba, de S. Francisco e do Paraná; sua
aparição tardia na história e relativa proximidade2 caminho de São Paulo pouco
tempo conservou-se único; apesar das proibições repetidas e arbitrárias abriram-se
mais outras picadas, e gados e aventureiros afluiram de Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Piauí e Maranhão. se viu que poucos anos depois daqui partiram
recursos para os cuiabanos.
Várias expedições se organizaram à procura de jazidas particularmente abundantes,
sibilinamente anunciadas em roteiros misteriosos: -Martírios, assim chamados da
semelhança entre as formas das rochas vizinhas e os instrumentos da Paixão,
Araez, rio Rico, etc. Nos roteiros, observa Eschwege, que ainda alcançou alguns,
guardados ciosamente nas famílias, três irmãos ou três irmãs podem ser três serras
ou três rios; juntamente com a trindade, anda em geral a alavanca encostada à
gameleira, ou a corrente pregada ao cedro, ou o prato de estanho largado numa
loca, designados como conhecenças inequívocas do tesouro e nunca vistos. Os
Martírios, se de fato existem, aguardam ainda descobridor.
A estas três capitanias auríferas cumpre agregar a da Bahia, o menos rica.
Jacobinas e rio de Contas, este sobretudo, justificaram todas as esperanças do
velho Gabriel Soares; mas a metrópole julgou estes descobertos demasiado
próximos do litoral, expostos portanto a assaltos de piratas, e proibiu fossem
minerados. O veto respeitou-se o menos possível, embora se guardassem as
aparências; daí certo ar de clandestinidade de especificá-la. Mais tarde a proibição
foi levantada; contudo Bahia continuou antes agrícola e pastoril que mineira, e Goiás
afogou-a com o seu esplendor.
As Ordenações do Reino enumeravam as minas entre os direitos reais. Como a
experiência de quase um século patenteasse a dificuldade de desfrutá-las, triunfou a
idéia, sugerida talvez por d. Francisco de Sousa e incorporada no regimento de
1603, de permitir a lavrança, com a ressalva do quinto para a Coroa. Enquanto o
ouro andou por oitavas e libras, a porcentagem foi por assim dizer deixada aos
escrúpulos de cada mineiro, mera afirmação de um princípio teórico; com os
descobertos gerais de Cataguases transformou-se em propulsor de todo o
mecanismo colonial.
No caos inicial a única autoridade, o guarda-mor, demarcava os lotes e apartava
para o rei uma data, adjudicada em licitação a quem mais desse. O quinto cobravam
provedores ad hoc ou arrecadavam registos colocados em pontos de passagem
forçada: Taubaté, para quem procurava São Paulo, ou Parati, no caminho do Rio.
Nas ribeiras do São Francisco a coleta ficava mais difícil, porque a partir do arraial
de Matias Cardoso, perto da atual Januária, abriram-se muitos caminhos para o
Norte e nascente; pelo rio desciam canoas e muitos preferiam este veículo, mais
seguro e mais econômico. A dificuldade de arrecadação ainda avultou quando
Garcia Pais estabeleceu comunicação direta com a baía do Rio de Janeiro. Mesmo
assim o rendimento foi considerável.
Nova era começa em 1711, com a chegada de Antônio de Albuquerque, a criação
de vilas e a instalação das municipalidades. Albuquerque reuniu as maras e
pessoas mais notáveis, para assentarem o melhor meio de garantir os interesses da
Coroa. Parecia racional uma capitação paga por cada bateia empregada na lavra;
as câmaras preferiram impostos de entrada sobre fazendas secas, molhados e
escravos. A invasão de Duguay-Trouin chamou o governador ao Rio; o ponto ficou
suspenso; continuaram os registros e o sistema antigo.
Brás Baltásar da Silveira, novo governador, aceitou o oferecimento feito pelas
câmaras de Vila-Rica, Sabará e Carmo, de darem anualmente, em paga do quinto,
trinta arrobas de ouro (1 arroba = 16:834$000, ao câmbio de 27); para auxílio da
cobrança, concedeu-lhes d. Brás uma quota no direito das entradas. Durou esta
avença um quinqüênio, sem que o governo da metrópole jamais parecesse
satisfeito.
De 1718 a 722, as câmaras abriram mão da quota de importação e obrigaram-se a
pagar anualmente vinte e cinco arrobas. A corte encheu-se, porém, de escrúpulos
com a injustiça da capitação até ali vigente; preferiu casas de fundição, a que seria
recolhido todo o ouro em pó, reduzido a barras e desde logo quintado. Avessas a
este sistema, as municipalidades propuseram pagar trinta e sete arrobas e assim se
fez até 1725.
De então até 1750 vigorou, ora o sistema de capitação, ora o de casas de fundição.
Estas foram definitivamente estabelecidas desde o começo do reinado de José I;
afiançaram as câmaras o rendimento anual de cem arrobas; havendo sobra, poderia
servir para cobrir deficit do ano seguinte; se este apresentasse também sobra, a
do ano anterior ficava pertencendo definitivamente à Coroa; se houvesse déficit e
não pudesse ser suprido pelo modo indicado, proceder-se-ia à derrama, isto é, cada
municipalidade concorreria proporcionalmente, de modo a completar-se a centena
de arrobas. A câmara mais opulenta, a de Vila-Rica, tinha, como recursos
exclusivos, os aferimentos de pesos e medidas, os foros das casas, a renda dos
açougues e a da cadeia; somado tudo não chegava a cinco contos ânuos. Quer isto
dizer que a escrupulosa metrópole passava adiante a responsabilidade na odiada
capitação.
Levariam longe os pormenores do regime fiscal, imposto a Minas Gerais e, até onde
o permitiam as distâncias e a população esparsa, à Bahia, Goiás e Mato Grosso; a
proibição de abrir novas picadas, a proibição de fundar novos engenhos, a proibição
de andar com ouro em pó, a proibição de andar com ouro amoedado, a proibição de
exercer o ofício de ourives, os impostos múltiplos, os donativos implorados por
prazo certo e curto e depois exigidos imperiosamente por prazo muito maior,
estranhando-se a ousadia de suspendê-los nos termos do acordo inicial, mostrariam
até onde pode chegar uma administração sem melindres e sem inteligência e uma
gente sem energia, se não fosse o distrito adiamantino.
Apenas uma amostra. Divulgada em 1730 a existência de diamantes no Tijuco, logo
d. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais, estabeleceu a capitação de
5$ por cada escravo empregado nas lavras; no ano seguinte mandou despejar as
minas, expulsar da comarca do Serro negros, mulatas e mulatos forros, limitar a
mineração a certa zona, pagando-se pelo menos 60$ anualmente, afinal por muito
favor reduzidos a 20$, proibiu vendas fora do povoado e só as permitiu na povoação
com o sol de fora; em 1734 a capitação foi elevada a 40$, e logo em seguida
vedada a mineração e mandado que nem um dos habitantes do distrito pudesse ter
bateia, almocrafe, alavanca ou qualquer outro instrumento de minerar. Com o tempo
foi-se tornando mais tirânico o regime, de modo a permitir que a Coroa portuguesa
ficasse senhora do mercado de diamantes do mundo inteiro.
O ouro produzido no Brasil escapa a qualquer avaliação exata. Levando em conta
uma porção de dados, Calógeras calcula que Goiás e Mato Grosso, desde o
começo da mineração até 1770, deram uma produção total de nove mil arrobas;
daquela data a 1822 mais umas duas mil e quinhentas: ao todo cento e noventa mil
quilogramas. Entre São Paulo, Bahia e Ceará haveria mais setenta e cinco a oitenta
mil. Chega-se assim ao total de duzentos e setenta mil quilos para a produção
destas partes do Brasil, durante o período colonial até 1822.
Para Minas Gerais avalia-se em sete mil e quinhentas arrobas do princípio até 1725;
em seis mil e quinhentas arrobas a produção dos onze anos seguintes; em doze mil
arrobas de 1736 a 1751; em dezoito mil arrobas de 1752 a 1787; em três mil e
quinhentas a quatro mil arrobas de 1788 a 1801; em três mil e quinhentas arrobas
de 1801 a 1820. Até 1820 a extração total em Minas devia andar por 51.500
arrobas, digamos 772.500 quilogramas.
Os quintos representam apenas uma parte do regime fiscal: havia mais os dízimos,
os direitos das entradas, as passagens dos rios.
Os dízimos, estabelecidos em 1704, rendiam no tempo de Teixeira Coelho mais de
sessenta contos anuais: para os seis anos e cinco meses decorrentes do primeiro
de agosto de 1777 ao último de dezembro de 1783 o contrato foi arrematado por
388 contos.
Os direitos de entrada cobravam-se nos registros do caminho novo, da Mantiqueira,
do Itajubá, do Jaguara, do Ouro-fino, do Jacuí, de Sete Lagoas, do Jequitibá, do
Zabelê, do ribeirão da Areia, de Nazaré, de Olhos d'Água, de S. Luís, de Santo
Antônio, de Santa Isabel, do do morro, do Rebelo, do Inhacica, do Caeté-mirim,
do Galheiro, do Bom-Jardim, de Simão Vieira, de Jequitinhonha, de Itacambira, do
rio Pardo. Pagavam entrada os escravos introduzidos pela primeira vez, cabeças de
gado vacum, muar ou cavalar, e as cargas de fazenda seca ou molhada. Por
molhados entendiam-se os comestíveis, ferro, aço, pólvora e tudo o mais impróprio
para se vestir. O rendimento das entradas em 1776 foi de mais de cento e quarenta
e sete contos.
Pagava-se passagem nos rios Sapucaí, Verde, Mortes, Grande, Paraupeba, Velhas,
Urucuia, Baependi, Pará, São Francisco, Jequitinhonha. Ofícios de justiça e fazenda
pagavam também donativos, terças e novos direitos.
Na constância da derrama surgiram os primeiros fenômenos da decadência da
mineração. Explicaram-na pelos extravios cada vez mais numerosos, graças à
multiplicidade de vias de comunicação. Teixeira Coelho, que passou onze anos em
Minas, ocupando altos empregos, e deixou escrito precioso sobre a capitania, indica
outras causas: a pobreza dos mineiros; falta de negros, monopólios deles e direitos
excessivos que pagavam; abusos nas concessões dos guardas-mores; demandas
sobre terras e águas minerais; mau método de minerar; demandas sobre os
privilégios dos mineiros a que chamam da trintada, divisão das fábricas por
heranças, etc.
Todos estes males influem sensivelmente na decadência das minas, observa
Eschwege, mas todos eles procedem de duas únicas causas, e são terem se
franqueado ao povo as minas sem limitação e sem inspeção sobre seus trabalhos e
a falta de leis montanísticas adequadas a este país... Os mineiros do país
aproveitam o que podem separar mecânicamente e de uma maneira muito
imperfeita. Assim, contando todas as perdas que sofrem, causadas pela sua
ignorância, desde que tiram o ouro do seu leito natural até que sai fundido da casa
de fundição e da moeda, não será por certo exagerado quem avaliar estas perdas
em a metade do mesmo ouro...
Desenganada de ouro, a população procurou outros meios de subsistência: a
criação do gado, a agricultura de cereais, a plantação de cana, de fumo, de algodão;
com o tempo avultou a produção ao ponto de criar-se uma indústria especial de
transportes, confiada aos históricos e honrados tropeiros.
Diversas tentativas se fizeram para atravessar a mata e comunicar diretamente com
o mar. A mais feliz consistiu na passagem do alto rio Doce para o Pomba, iniciada
por 1766. A presença de poaia facilitou o comércio com os índios daquelas regiões.
Coroados, Coropotos, extratores da erva medicinal, cujo emprego, segundo uma
tradição encontrada por Martius, lhes ensinou a irara: «asseguraram-nos», escreve
ele, «que estes filhos da natureza aprenderam o uso da raiz hemética com a irara,
espécie de marta, que costuma, quando bebeu demais água impura ou salgada de
muitos riachos e tanques, mastigar a raiz e a erva para provocar vômito. Contudo
isto pode muito bem ser uma das muitas histórias infundadas que sem exame os
portugueses receberam dos índios».
Assim, a penetração ou melhor a exteriorização fez-se rápida através da zona de
ipecacuanha. na era de 780 Miguel Henrique, o Mão de Luva, chegava por este
caminho às minas de Cantagalo. Mais tarde plantou-se café naquela comarca, que
desceu o Paraíba ou procurou o porto de Magé (por Aparecida, Serra do Capim,
Paquequer, estrada construída pelo barão de Aiuruoca), enquanto não pôde servir-
se da Estrada de Ferro de Pedro II e da Estrada de Ferro da Leopoldina.
Os triunfos colhidos em guerras contra os estrangeiros, as proezas dos
bandeirantes dentro e fora do país, a abundância de gados animando a imensidade
dos sertões, as copiosas somas remetidas para o governo da metrópole, as
numerosas fortunas, o acréscimo da população, influiram consideravelmente sobre
a psicologia dos colonos. Os descobertos auríferos vieram completar a obra. Não
queriam, não podiam mais se reputar inferiores aos nascidos no além-mar, os
humildes e envergonhados mazombos do começo do século XVII. Por seus
serviços, por suas riquezas, pelas magnificências da terra nata, contavam-se entre
os maiores beneméritos da coroa portuguesa.
Tal transfiguração não se deram pressa em reconhecer os filhos do além-mar. Daí
atritos freqüentes. Gregório de Matos, baiano que se formara em Coimbra e aliás
não revela simpatia particular pelos patrícios, na segunda metade do século XVII
manejava o látego da sátira contra o reinol: vem degradado por crimes ou fugido ao
pai, ou por o ter o que comer, salta no cais descalço, despido, roto, trazendo por
cabedal único piolhos e assobios, curte a vida de misérias, amiúda roubos, ajunta
dinheiro, casa rico e ocupa os cargos da república! De outra parte não faltariam
respostas mordazes e remoques equivalentes.
Destes atritos e malquerenças a primeira manifestação pública explodiu nas terras
do ouro com a chamada guerra dos Emboabas, uma das designações dos reinóis
na língua geral. Para o caso de que vamos agora tratar a designação era pouco
rigorosa. Naquelas brenhas tão alongadas do litoral devia haver poucos
portugueses; é provável, quase certo, estivessem em minoria nos combates: mas a
alcunha, além de afrontosa, resolvia uma questão difícil: como chamar os
adversários, em sua maioria gente da ribeira do São Francisco, se muitos vieram de
São Paulo ou procediam de paulistas, e eram baianos os de uma, pernambucanos
os de outra margem? Chamavam emboabas a todos os que não sairam de sua
região, explica Rocha Pita.
Os paulistas afetavam profundo desprezo pelo emboaba, tratavam-no por vós, como
se fora escravo, informa o cronista destes sucessos. Durante o prazo de sua
prepotência entre a serra da Mantiqueira e a do Espinhaço, nas primeiras décadas
da anarquia incompreensível, entregaram-se aos maiores excessos e só a força deu
leis. Um dia, ante a violência praticada à sua vista contra um pobre diabo, protestou
Manuel Nunes Viana, emboaba poderoso, afazendado nas margens do Carinhanha,
prático em guerras contra o gentio do S. Francisco, nas quais conquistara o posto
de mestre de campo. Tanto bastou para promoverem-no a chefe dos oprimidos. Os
paulistas por sua vez sentiam-se espoliados com a presença de tantos forasteiros.
Conservam ódio aos reinóis, lembrava Antônio Rodrigues da Costa, no Conselho
Ultramarino de que era membro, porque os reputam por usurpadores daquelas
riquíssimas minas, que eles entendiam firmemente serem patrimônio seu, que lhes
havia dado ou a sua fortuna ou a sua indústria. Entre espoliados e oprimidos o
conflito era fatal.
A morte da gente miúda não se levava em conta, mas um dia os forasteiros
mataram José Pardo, paulista poderoso, e seus patrícios começaram a se armar,
para em janeiro do seguinte ano de 1709 dar cabo dos emboabas. Estes, fogosos
agora com o prestígio do chefe eleito, anteciparam a ameaça e sairam à procura do
inimigo para dar-lhe combate. A força de São Paulo, que descuidosa acampava
junto ao rio das Mortes, recolheu-se a um capão quando chegou a multidão
arrebanhada no rio das Velhas e alto rio Doce. De cima das árvores os paulistas
disparam tiros certeiros, mas sua resistência não podia aturar muito, por estar
cercado o mato de modo a não permitir saída e além disso falecerem víveres.
Espalhou-se que os emboabas se contentariam com desarmar os contrários, e
estes, fiados na promessa vaga, pediram bom quartel, prometendo entregar as
armas. Concedeu-lho Bento do Amaral Gurgel, cabo da força atacante, fluminense
de instintos sanguinários; apenas, porém, os viu indefesos «fez um tal estrago
naqueles miseráveis que, deixando o campo coberto de mortos e feridos, foi causa
de que ainda hoje se conserve a memória de tanta tirania, impondo àquele lugar o
infame título de capão da Traição».
Ensoberbecidos com esta vitória, os emboabas proclamaram Manuel Nunes Viana
governador daquelas minas. O aclamado, alheio às malfeitorias e crueldades de
Bento do Amaral, praticadas longe de suas vistas e sem seu assentimento, mostrou-
se capaz do cargo; elevou-se de chefe de partido a cabeça de governo, criou juízes,
distribuiu postos, ofícios e patentes, regularizou a concessão das minas, cobrou os
quintos devidos ao régio erário, arrecadou direitos sobre os gados e fazendas
importadas, sopeou a anarquia reinante. Excessos praticou necessariamente, nem
com a facilidade poderia evitá-los, mas sua obra foi benéfica e depois dela percebe-
se o arrefecimento da barbárie universal. Era aliás um espírito de certa cultura;
gostava de ler a Cidade de Deus e obras congêneres; a suas expensas se imprimiu
o Peregrino da América de Nuno Marques Pereira, um dos mais apreciados livros
para nossos avós do século XVIII, como provam suas numerosas edições.
A notícia dos sucessos do rio das Mortes atraiu às minas Fernando de Lencastro,
governador do Rio. Os espíritos estavam ainda muito excitados para reconhecer-lhe
a autoridade, mesmo se admitissem sua imparcialidade e desta com razão ou sem
ela duvidavam. Em Congonhas, próximo de Ouro Preto, Nunes Viana saiu-lhe ao
encontro, rodeado de cavalaria e infantaria, e o governador intimidado fez-se de
volta para sua capital. Diz-se que secretamente procurou-o o chefe dos emboabas,
assegurando-lhe sua lealdade, prometendo sujeitar-se à ordem legal apenas
serenasse a efervescência de sua gente. Parece exata a história, pois quando mais
tarde acudiu Antônio de Albuquerque, sucessor de d. Fernando, acompanhado
apenas de dois capitães, dois ajudantes e dez soldados, Nunes Viana entregou-lhe
voluntàriamente o mando e recolheu-se a suas fazendas na margem pernambucana
do São Francisco.
Donde menos se esperava anunciou-se nova procela. Os paulistas, sobreviventes
ao morticínio do capão da Traição, foram recebidos em sua terra com desprezo até
das próprias mulheres, que «blasonando de Pantasiléas, Semiramis e Zenobias, os
injuriavam por se haverem ausentado das minas fugitivos, e sem tomarem vingança
dos seus agravos, estimulando-os a voltar na satisfação deles com o estrago dos
forasteiros». Estas palavras ardentes encontraram eco; Piratininga tornou-se praça
de guerra; numerosos voluntários, sedentos de vingança, gruparam-se à roda de
Amador Bueno da Veiga e se encaminharam para além da Mantiqueira. Sua marcha
foi bastante vagarosa. Saiu-lhes ao encontro Antônio de Albuquerque, esperançado
em ser tão bem sucedido com eles como fora com os emboabas. Enganou-se,
porém; a marcha vagarosa dos paulistas não provinha de hesitações ou receios e
por tal modo receberam o governador que dali mesmo seguiu para o Rio pelo velho
caminho de Parati, receioso de ser preso por aqueles súditos turbulentos. Da
cidade, pelo caminho novo de Garcia Pais, mandou avisar os emboabas do perigo
que os ameaçava.
Assim tiveram tempo de se aparelhar e fortalecer até chegar Amador Bueno com
seus mil e trezentos soldados. Feriu-se logo o combate e durou vários dias; alguns
paulistas, desanimados com a resistência, falaram em levantar o cerco; alguns
emboabas, à vista da mortandade nas próprias fileiras, pensaram em se render. O
ódio era demasiado forte de parte a parte para prevalecer qualquer solução mais
humana. Afinal, quando os emboabas não podiam se manter e dispunham uma
sortida desesperada, misteriosamente retiraram-se os paulistas, talvez com o boato
de marcharem do rio das Velhas e de Ouro Preto forças consideráveis. Não deram
com isso a partida por perdida e trataram de preparar ou fingiram preparar outra
expedição mais forte para recomeçar a luta; interveio, porém, d. João V, com o
prestígio semi-divino da realeza naquelas inteligências rudimentares: «entendendo o
soberano que ânimos generosos se deixam vencer com qualquer afago, lhes enviou
pelo novo governador um retrato seu... para que entendessem que visitando-os
daquele modo, que pessoalmente o não podia fazer, tomava aos paulistas
debaixo de sua real proteção». Com este singular presente se satisfizeram, e
esquecidos dos agravos passados depuseram as armas.
Depois da guerra dos emboabas, houve ainda desordens em Minas Gerais, uma
delas, em 1720, sufocada enèrgicamente; o mais inspirou-as o espírito de
nativismo, isto é, a queixa de espoliação e sua importância é meramente
provinciana.
Mal estavam pacificadas as terras do ouro e rebentava a manifestação análoga
na capitania de Pernambuco.
Depois da expulsão dos flamengos, o governador fixou residência em Olinda, e nela
o primeira bispo estabeleceu a sede da diocese em 1688. A nobreza antiga
reedificou a casaria destruída, que ocupava por ocasião das festas, pois a maior
parte do ano passava nos engenhos. O Recife, graças à superioridade do porto,
continuou a prosperar e adquiriu população numerosa e permanente; preferiam-no
para morada os negociantes, gente que em geral procurava enriquecer depressa,
para ir desfrutar a fortuna no além-mar. Os olindenses olhavam para eles com toda
a soberania, de sua prosápia e de seus postos, desdenhosamente chamavam-nos
mascates, e andavam sempre em rusgas por causa de contas queixando-se uns de
usura e extorsão, outros de mau pagamento e má fé.
Depois de enriquecer, alguns recifenses procuravam ter também parte no governo,
obter hábitos e ganhar postos de milícia. Conseguiram-no com grande indignação
da nobreza, acostumada ao privilégio destas honrarias. Em 1703 fizeram o
eleitores como um vereador. Com isto tanto mais se exacerbaram as paixões.
Olinda aproveitou sua dupla superioridade de capital civil e eclesiástica para a todo
propósito amesquinhar a rival. Desde então empenharam-se os mascates em obter
para o Recife o título de vila, condição de autonomia dos negócios municipais.
Enquanto reinou d. Pedro II, lembrado ainda da guerra dos vinte e quatro anos,
valeu a oposição da nobreza; d. João V cedeu à influência contrária poucos anos
depois de haver subido ao trono.
A solução ofendeu os brios olindenses, mas talvez não provocasse violências se a
outro coubesse executar a ordem régia. Governava a capitania Sebastião de Castro
Caldas, ex-governador do Rio e da Paraíba, português leviano, sarcástico,
desdenhoso dos subordinados, adito dos reinóis. A 15 de fevereiro de 1710 levantou
o pelourinho da vila nova, em honra sua chamada de S. Sebastião; a 3 de março
levantou outro com maior solenidade, por não ser bastante o primeiro. A delimitação
do termo de Recife, a jurisdição dos juízes ordinários, a serventia dos diversos
ofícios malquistaram o ouvidor, o juiz de fora e o juiz ordinário com o governador.
Correu que se pretendia depô-lo, como em 1666 se fizera a Jerônimo de Mendonça
Furtado. Sob este pretexto, verdadeiro ou falso, começou ele a prender pessoas
importantes, e ameaçava ainda outras quando a 17 de outubro desfecharam-lhe um
tiro às 4 horas da tarde, no meio da rua. tardava este desfecho: «em
Pernambuco se acha que mais gente se tem morto a espingarda depois de sua
restauração do que matara a mesma guerra», escrevera-se alguns anos antes.
Não foram pegados os três mandatários nem se descobriu mandante. Caldas,
ligeiramente ferido, proibiu que a dez léguas do Recife andasse alguém armado e
mandou prender mais gente. O fato de superintender a tudo sem se recolher ao leito
deu azo aos agitadores para espalharem ser fingido o ferimento e o tiro mandado
dar por ele próprio; a proibição de andar-se armado apontaram como prova de estar
disposto a entregar a terra aos franceses, que acabavam de atacar o Rio. Com isto
cresceu a fermentação; perdendo a calma, o governador expediu vários
destacamentos às freguesias da mata, a efetuar novas prisões. Levantou-se o povo;
parte da tropa foi cercada, parte capitulou, parte fraternizou, e levas numerosas de
populares puseram-se em marcha para o Recife.
A 5 de novembro chegou à praça a notícia do levante; a 6, Caldas tentou negociar
com os levantados, que a nada quiseram atender; a 7 de madrugada embarcou
numa sumaca para a Bahia, levando consigo alguns dos mais odiados de seus
partidários.
Dos populares, recrutados pela maior parte em Santo Antão, S. Lourenço, Jaboatão,
Varge, Muribeca, alguns eram movidos sobretudo pela pretensa traição do
governador; a outros instigava ódio aos mascates, e formava artigos de seu
programa o saque do Recife. Tê-los dissuadido deste projeto deveu-se
principalmente aos religiosos regulares e seculares. Na entrada da nova vila houve
algumas violências, mas de pequeno vulto e a tempestade desfez-se sem os
estragos temidos. O pelourinho foi derribado, anulada a eleição, inutilizados os
pelouros, privados de insígnias os oficiais mascates; um ou outro devedor menos
consciencioso liquidou as contas sumàriamente; contudo houve mais farsas e
desfeitas que violências e desforços.
Com retirada de Sebastião de Castro vagara o lugar de governador; abertas as vias
de sucessão para saber o nome do substituto, saiu o do bispo da diocese. Alguns
insurgentes opuseram-se à posse. Bernardo Vieira de Melo, sargento-mor, um dos
cabos na guerra dos Palmares, propôs se proclamasse umas república à moda de
Veneza ou se procurasse a proteção de alguma potência cristã. Hoje é festa
estadual em Pernambuco o dia 10 de novembro, em honra deste gesto peregrino.
Que idéia formava da república e da adaptabilidade a terras tão atrasadas, a povo
tão alheio às práticas políticas e administrativas, de organismo complexo e delicado
qual a constituição veneziana, provàvelmente se ignorará até a consumação dos
séculos. Ouvira, talvez, falar no seu caráter aristocrático e ingenuamente equiparava
a nobreza de Olinda aos cultos patrícios das lagunas. Do protetorado de qualquer
nação cristã que se poderia seguir? Esperava-o fim idêntico ao da invasão
flamenga, -bem o provava o atual movimento, triunfante graças principalmente à
crença que se divulgou da convivência do governador expulso com os franceses. De
resto podem ser falsas estas alegações, transmitidas só por adversários rancorosos,
empenhados em agravar as culpas dos vencidos. Acabou-se reconhecendo legítimo
o sucessor indicado pelas vias de sucessão, Sua Ilustríssima o Senhor d. Manuel.
D. Manuel Álvares da Costa, chegado de Portugal no começo do ano, mantivera
com o representante do poder civil as relações antes frias que cordiais de praxe
entre os cabeças das duas sociedades perfeitas. Ao ser informado do tiro, foi visitar
o ferido de quem na mesma ocasião se despediu por ter de partir para a Paraíba.
Em caminho agregou-se à comitiva, como dias antes convencionara, José Inácio
Arouche, o ex-ouvidor malquistado com o governador a propósito da divisão do
termo do Recife, e objeto de ódio muito particular seu e dos mascates, apesar de
português. Sebastião de Castro implicou-o entre os mandantes do crime a fautores
da conspiração, deu ordem de capturá-lo e, não sendo achado em casa, mandou
segui-lo até onde fosse encontrado: era fácil a diligência, pois Arouche não andara
com mistérios.
A 20 de outubro amanheceu cercada a igreja de Tapirema, onde pernoitara o bispo,
por uma tropa de soldado encarregada de realizar a prisão. D. Manuel escreveu a
Sebastião de Castro protestando contra a desatenção à sua pessoa e
descomposição imerecida e obrigando-se a dar conta do perseguido. A resposta foi
remessa de força mais numerosa, acusações odiosas contra o ex-ouvidor, ordem de
trazê-lo vivo ou morto: «se o dito doutor está inocente, tenho bens com que
satisfazer-lhe a injúria e cabeça com que pague quando por este respeito mereça
castigo... Este doutor ficou em Pernambuco ou por pecado da terra ou pelo meus,
pois não embaraçou o meu governo, mas pôs a V. S.ª em ódio com as sua
ovelhas, como é público e notório, pois todos reconhecem as letras e virtudes de V.
S.ª e atribuem aos seus conselhos e vinganças tudo quanto se tem visto e
experimentado». Arouche escapou à prisão porque sacerdotes do lugar deram-lhe
escapula e por caminhos desviados levaram-no à Paraíba.
D. Manuel voltou para Olinda no dia 10 de novembro, a 15 tomou posse do governo
e logo, para aquietar os povos sublevados desde São Francisco até Paraíba,
perdoou-lhes a revolução e o tiro, «confiado na grandeza de el-rei nosso senhor que
Deus guarde, o haja de confirmar».
Seguem-se alguns meses de calma aparente. A nobreza desfrutava ruidosamente a
vitória, dando tudo terminado; apenas em junho do ano seguinte falou-se de tirar
proveito das fortalezas para impedir o desembarque do novo governador, se não
trouxesse o perdão esperado, ou permiti-lo sòmente sob certas condições.
Entretanto a inércia dos mascates encobria um trabalho de mina muito ativo. Com
habilidade foram separadas da causa de Olinda as freguesias situadas entre o cabo
de Santo Agostinho e o rio S. Francisco, obtida a cooperação do capitão-mor da
Paraíba, do mestre de campo dos Henriques, do governador dos índios, do
comandante da fortaleza de Tamandaré; aos poucos, para não despertar atenção,
reunidos víveres em quantidade suficiente para resistir a um cerco; aliciado o terço
do Recife com seus oficiais, fiéis a Sebastião de Castro até a última hora. Esta pelo
menos é a versão olindense. Como nada transpirou até o momento decisivo
dificilmente se compreende; não se sabe o que mais admirar, se a manha da gente
mascatal, se a cegueira da nobreza, e ganha foros de verossímil a história depois
contada pelos mascates de que nada se previra, nada se preparara, tudo surgira de
momento. Até hoje têm triunfado no Brasil movimentos improvisados, que
dispensam longas combinações e prodigalidades cerebrais.
Soldados do terço do Recife e os de Bernardo Vieira de Melo entraram em rusga
por causa de mulheres à toa; o sargento-mor tomou o partido dos seus e exigiu o
castigo dos outros; estes imploraram-lhe perdão, mas encontrando-o mal disposto e
implacável, sairam para a rua disparando tiros, dando vivas ao rei e morras aos
traidores, prenderam o cabo dos Palmares e levaram-no para a cadeia. O bispo e
Valenzuela Ortiz, antigo juiz de fora que interinamente substituía a Arouche na
ouvidoria, assistiram à prisão e aprovaram-na. Como por encanto ocupou as
fortalezas a gente recifense; tudo isto a 18 de junho de 1711. No outro dia o bispo
assinou comunicações às freguesias rurais aquietando-as. Se houvera de fato
plano, a execução correu magistral: de um golpe ficavam guarnecidas as
fortalezas com pessoal amigo, imobilizado o mais resoluto cabecilha do grupo
adverso e a legalidade de tudo atestada pela presença e aprovação explícita do
chefe religioso e civil da capitania e de seu primeiro magistrado. Depois de três dias
o bispo e o ouvidor sairam de Recife para Olinda, onde o inesperado dos sucessos
provocara a maior agitação.
D. Manuel era varão virtuoso e letrado, mas facilmente sugestionável, timorato e
violento a um tempo, impelido numa direção pelos ditames da consciência e logo
atirado em sentido oposto pelas intrigas dos conselheiros. Sem grande custo
convenceu-se na cidade de que os mascates quiseram prendê-lo, que a guarnição
das fortalezas embuçava os mais negregados horrores e não podia, nem devia
permitir desrespeito à majestade real depositada em suas mãos. Mandou diversas
intimações aos do Recife para abandonarem as fortalezas, desvanecerem as
fortificações feitas para terra, reconhecerem a fidelidade dos olindenses. Depois da
quarta, tão inútil como as outras, a 27 de junho demitiu de si parte do poder
temporal em favor de Valenzuela Ortiz, do mestre de campo Cristóvão de Mendonça
Arrais, e oficiais do senado, «contanto que não haja efusão de sangue e assim o
protesto uma e mil vezes, como protestado tenho, e que para esta restauração e
negócio e tudo o mais que dele se pode seguir, não concorro direta nem
indiretamente, porque quero a paz e sossego nos vassalos de Sua Majestade
que Deus guarde».
Se quisesse tornar inevitável a efusão de sangue, o pobre prelado não teria achado
melhor caminho. Escudada em sua cumplicidade, a nobreza cercou o Recife e as
hostilidades abriram-se com violência de parte a parte. Bombardeios, sortidas,
recriminações, folhas avulsas mostrando a sem-razão dos adversários compõem
este pouco interessante episódio. Comandava os mascates João da Mota, natural
de Alagoas, elevado a capitão mandante por ser o oficial mais antigo. Era-lhe fácil
manter a resistência, pois os sitiados sabiam que desta vez, se se rendessem, seria
fatal o saque da vila. Dispunha a mais de sangue frio, bravura, entusiasmo, bom
humor e presença de espírito. A exemplo do bispo, constituiu uma espécie de
governo eclesiástico de frades, principalmente recoletos e carmelitas, letrados e
canonistas, para contrabalançar as censuras e excomunhões episcopais. Nunca os
mensageiros do prelado puderam fazer as intimações necessárias, e portanto
ninguém se considerou nunca excomungado. A terrível arma mentiu fogo.
Na campanha houve dois combates: no primeiro venceram os mascates, no
segundo os cidadãos. Apesar de seu furor partidário, o cronista olindense
reconhece um quê de providencial no resultado dos dois encontros: «Mistérios
foram ambas estas ocasiões da Divina Providência, que não permitiu o conseguir-se
de outra sorte, livrando-nos sempre do maior mal, que por cegos o não víamos; pois
é certo que se os nossos na primeira vez vencessem, como desejavam,
escandalizados do seu atrevimento e sem o seu amparo os do Recife, entrariam de
fora os moradores a abrasar quantos dentro nele achassem. E se nesta segunda
batalha nos vencessem, vinham do mesmo modo sobre nós a acabar-nos».
A notícia dos primeiros sucessos chegou a Lisboa em fevereiro de 711. Com eles
ocupou-se o Conselho Ultramarino na consulta de 26. A impressão produzida foi
veemente: «este caso não é gravíssimo, mas o maior que até agora aconteceu
na nação portuguesa», e a variedade nos alvitres, a virulência nas propostas,
chegando um membro a fixar o mínimo dos que deveriam ser condenados à pena
última, patentearam o soçobro dos conselheiros. Quase tanta indignação como o
tiro e o levante suscitou a fuga de Sebastião de Castro, largando um governo de que
prestara menagem nas mãos do soberano; o perigo da vida, mesmo se houvesse,
não era o motivo para desculpá-lo.
Chegaram depois notícias mais tranqüilizadoras: a posse do bispo, o perdão
concedido aos revoltosos, a paz e a obediência sucedendo ao motim. A consulta de
8 de abril revela mais calma. a 1 de junho, porém, o governo metropolitano
resolveu confirmar o perdão, prender Sebastião de Castro por abandono do cargo,
enviar novo governador, acompanhado de ouvidor, juiz de fora e alguma tropa.
Félix José Machado, nomeado governador, apareceu ao longe sobre Pau Amarelo
em 6 de outubro, e logo os dois partidos mandaram a bordo expondo a seu modo o
estado das cousas. então devia ter sabido do cerco do Recife e mais sucessos
dele decorrentes. Exigiu que João da Mota entregasse as fortalezas, fez levantar o
cerco e restituir toda a autoridade política a d. Manuel, de cujas mãos ùnicamente
as receberia.
Estes atos revelaram espírito bem orientado, disposto a colocar-se sobranceiro às
facções que se degladiavam. E' bem possível mantivesse esta atitude até o fim se
houvesse maneira de chegar a qualquer conciliação entre os combatentes, ou de
arredar a questão fundamental: quem eram os verdadeiros criminosos? os de Olinda
que atentaram contra a vida de Sebastião de Castro, derribaram o pelourinho,
queimaram as pautas eleitorais? os do Recife que negaram obediência ao bispo-
governador, guarneceram as fortalezas por autoridade própria, abocaram a artilharia
contra a terra? Os cidadãos haviam sido anistiados pelo rei; o governador geral
desde a Bahia anistiara os mascates, mas estes, desvanecidos e orgulhosos, diziam
não precisar de perdão, antes reclamavam recompensas e agradecimentos.
A resposta seria fácil havendo terceiro levante, e logo um partido denunciou o outro
de o estar tramando. A acusação era absurda, como o ato inexeqüível. Os de Olinda
não tinham encontrado apoio ao Norte de Itamaracá ou ao Sul de Santo Agostinho;
menos o encontrariam agora, com tropas vindas de Portugal e navios de guerra
fundeados no porto. A gente mascatal obtivera a restauração da vila, o reerguimento
do pelourinho, novas eleições: que mais poderia aspirar?
Entretanto, convenceu-se o governador de que os olindenses conspiravam, e logo
começaram prisões, perseguições e processos. Ouvidores e desembargadores
chamados a devassar o caso mostraram não a parcialidade odienta a favor dos
reinóis, como às vezes ordenaram prisões pelo simples desenfado de desfeitear o
adversário e de se divertir com a gente de sua roda. O bispo teve ordem de sair de
Olinda para o S. Francisco e como, por ser tempo das águas, viajasse devagar,
intimou-lhe um desembargador que andasse mais depressa. Se a primeira
dignidade eclesiástica não escapava destas afrontas, pode-se imaginar o que
passariam pessoas sem imunidades. Foram anos bem calamitosos os de 712 e 713.
No fim deste, Antônio de Albuquerque, depois de ter governado Maranhão, Rio, S.
Paulo e Minas, aportando a Pernambuco de passagem para a Europa, pôde
observar o estado de miséria e atribulação daquela pobre gente, e na corte expôs a
verdadeira situação.
Os serviços prestados durante anos em cargos tão importante davam peso a suas
palavras e a ele se atribuiu a disposição mais benévola desde logo mostrada. Cartas
régias datadas de 7 de abril de 714 lembraram que estavam perdoados tanto o
levante de 710 como o de 711; não havia mais devassar e prender por causa deles;
só constituía crime o de 713.
Por implicados neste foram conservados presos Bernardo Vieira de Melo e um filho,
Leonardo Bezerra e dois filhos, e Leão Falcão, o estouvado e leviano que, ainda
depois da chegada de Félix José Machado, teve a veleidade de tentar resistir e
insurgir-se, nos limites de Goiana, poderoso centro mascatal.
Leonardo Bezerra, depois de desterrado para a Índia, conseguiu fugir para a Bahia,
onde terminou a vida. Segunda a tradição escrevia aos amigos: «não corteis um
quiri das matas; tratai de poupá-los para em tempo oportuno quebrarem-se nas
costas dos marinheiros». Marinheiro era uma das designações dos portugueses na
capitania de Pernambuco, quiri o nome de madeira tão rija como ferro. Se as
palavras são autênticas, devia possuir otimismo incurável o velho insurgente que
fiava a república ou a independência de sua pátria de costas e cacetes quebrados.
Entre estas agitações publicou-se na metrópole um livro intitulado Cultura e
opulência do Brasil por suas drogas e minas, obra de André João Antonil, lê-se na
primeira página da edição impressa com as licenças necessárias pela oficina real
Deslanderina em 1711. Hoje sabemos que se tratava de anagrama e deve-se ler
João Ant. Andreoni L. (luquense). Filho de Luca em Toscana, Andreoni veio ao
Brasil em 1689 como visitador da Companhia de Jesus e terminada a comissão
ficara na província. Ocupava o cargo de reitor da Bahia quando expirou Antônio
Vieira, em 1697. Era provincial ao rebentar a guerra dos Mascates; queixas,
provàvelmente fideindignas, de haver manifestado simpatias a favor da nobreza de
Olinda.
A obra de Andreoni, dividida em cinco partes, trata de engenhos e açúcar, de fumo,
minas e gado. Sem amplificações, em forma tersa e severa, adunava algarismos e
mostrava o Brasil tal qual se apresentava à visão de um espírito investigador e
penetrante. Ficava-se agora sabendo da existência de cento e quarenta e seis
engenhos, moentes e correntes na Bahia com a produção ânua de quatorze mil e
quinhentas caixas de açúcar; de duzentos e quarenta e seis engenhos em
Pernambuco;produzindo doze mil e trezentas caixas; de cento e trinta e seis
engenhos no Rio, produzindo dez mil duzentas e vinte. Somava tudo trinta e sete mil
e vinte caixas, de trinta e cinco arrobas cada uma, apurando 2.535:142$800.
A Bahia produzia vinte e cinco mil rolos de fumo, Pernambuco e Alagoas dois mil e
quinhentos, rendendo anualmente 334:650$000.
No decênio anterior, a extração de ouro importaria mil arrobas; oficialmente andava
agora por cem cada ano, mas a realidade importaria trezentas, uma por dia,
descontados domingos e dias santos.
Para avaliar o gado bastava lembrar que os milhares de rolos de fumo iam
encourados para bordo; além disso Bahia exportava anualmente cinqüenta mil
meios de sola, Pernambuco quarenta mil e Rio, com os que iam da colônia do
Sacramento, vinte mil, -ao todo cento e dez mil meios de sola, na importância de
201:800$000.
E não são tudo estes 3.743:992$800 da opulência do Brasil em favor de Portugal.
Cumpre acrescentar «o que rende o contrato das baleias que por seis anos se
arrematou ultimamente na Bahia por 110 mil cruzados3, o contrato anual dos
dízimos reais, que na Bahia, nestes últimos anos, fora as propinas, chegou a perto
de 200.00 cruzados; no Rio de Janeiro, por três anos, por 190.000 cruzados; em
São Paulo por 60.000 cruzados, fora os das outras capitanias menores, que em
todas notàvelmente cresceram; o contrato dos vinhos, que na Bahia se arrematou
por seis anos 195.000 cruzados, em Pernambuco por três anos em 46.000
cruzados, e no Rio de Janeiro por quatro anos por mais de 50.000 cruzados; o
contrato de sal na Bahia arrematado por doze anos a 28.000 cruzados cada ano; o
contrato das águas ardentes da terra e de fora, avaliado por junto em trinta mil
cruzados; o rendimento da Casa da Moeda do Rio de Janeiro, que, fazendo em dois
anos três milhões de moeda de ouro, deu de lucro a el-rei, que o compra a doze
tostões a oitava, mais de seiscentos mil cruzados; além das arrobas dos quinto que
cada ano lhe vão; os direitos que se pagam nas alfândegas dos negros que vêm
cada ano de Angola, S. Tomé e Mina em tão grande número aos portos da Bahia,
Recife e Rio de Janeiro, a 3.500 réis por cabeça; e os dez por cento das fazendas
no Rio de Janeiro, que importam um ano por outro oitenta mil cruzados.»
A conclusão tirada destes algarismos escrupulosamente dispostos não podia ser
mais modesta. Devem ser multiplicadas as igrejas, pois tanto cresce a população,
amoestava o sagaz jesuíta; devem ser propostas pessoas idôneas nos concursos e
provimentos das igrejas vacantes, pois tanto avultam os dízimos; deve-se pagar com
pontualidade a soldadesca das praças e fortalezas marítimas e adiantá-la nos
postos em igualdade de serviços; deve-se deferir as petições dos moradores, e
aceitar os meios que para seu alívio e conveniência as câmaras tão humildemente
propõem. «Se os senhores de engenhos e os lavradores do açúcar e do tabaco são
os que mais promovem um lucro tão estimável, parece que merecem mais que os
outros preferir no favor e achar em todos os tribunais aquela pronta expedição que
atalha as dilações dos requerimentos, e o enfado e os gastos de prolongadas
demandas».
O governo metropolitano deu ao livro uma resposta fulminante: confiscou-o, e com
tamanho rigor que ainda hoje raríssimos exemplares se encontram da edição
princeps. Pretextou para esta violência, estar divulgado nele o segredo do Brasil aos
estrangeiros. Não se vê bem como podia fazê-lo: cultiva-se cana e fabricava-se
açúcar em colônias de outras nações; plantava-se também fumo, criava-se gado,
trafegavam-se minas. Que lhes poderia ensinar de novo a Cultura e opulência do
Brasil por suas drogas e minas? A verdade é outra: o livro ensinava o segredo do
Brasil aos brasileiros, mostrando toda a sua possança, justificando todas as suas
pretensões, esclarecendo toda a sua grandeza.
Sob a arquitetônica severa dos algarismos colhidos pelo benemérito jesuíta
conservou-se inviolado o segredo do Brasil aos brasileiros; transpirou, porém, sob
outras formas, em adumbrações significativas.
Surdiu em ditirambos, exaltando a riqueza sem par do país. Apareceu em vastas
compilações dedicadas à nobiliarquia, como a de Borges da Fonseca para
Pernambuco, a de Jaboatão para a Bahia, e sobretudo a de Pedro Taques para S.
Paulo, entroncando as famílias do Brasil na primeira nobreza de Espanha, Itália e
Flandres. Como falecia-lhe senso histórico, Loreto Couto apanhou centenas de
nomes para mostrar Pernambuco ilustrado com virtudes, com as letras, pelas
armas, pelo sexo feminino.
No mesmo Loreto Couto, beneditino pernambucano que escrevia por 1757,
encontramos manifestação ainda mais característica: o exalçamento, a glorificação
do indígena, em confronto com a antiga gente de Portugal e até com povos mais
adiantados do velho mundo.
Para provar suas virtudes morais, cita o nome de índios notáveis pelo valor e pela
fidelidade, um Tabira, os Camarões e tanto outros auxiliares nas guerras flamengas
e na conquista do país. Entre as manifestações de suas virtudes intelectuais aponta
os conselhos em que os velhos da tribo discutiam as questões pendentes, o
conhecimento das enfermidades e mezinhas, os ardis de caça e pesca.
Ignoravam a verdadeira religião? Não adoravam como os gentios antigos moradores
da Beira e marinha de Setúbal uma baleia arrojada à praia, nem lhe ofereciam em
sacrifício anualmente uma donzela e um moço. «Se os erros mui repugnantes aos
princípios naturais provam barbaridade, é preciso declarar por bárbaros aos
ingleses, dinamarqueses, suevos e muitos alemães, pois em todas estas nações
está muito dominante o erro de que não pecamos por eleição, senão por
necessidade, que Deus nos obriga a pecar e nos é impossível evitar o pecado».
Se tivessem cultura, desenvolveriam a inteligência. «No nosso reino de Portugal
entre Celorico e Trancoso habitavam povos tão brutos e silvestres como animais
indômitos, tão rudos que uma família não entendia a língua de outra com menos de
duas léguas de distância, pelo que eram julgados pelos povos confinantes como
bestas mais feras que as mesmas feras».
Entregavam-se à antropofagia? «Nem nos deve admirar a barbaridade destes
povos, quando sabemos que dos descendentes de Tubal e de outras nações
políticas com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos seus descendentes a
tanta brutalidade que matavam e comiam aos que dos povos vizinhos apanhavam
ou em guerra ou em ciladas».
Servindo-se dos mesmos raciocínios, trata da língua geral cujas excelências
celebra, da cor dos primitivos habitantes, etc. Suas idéias, discursivamente expostas
e fundamentadas, aparecem sob forma sintética nos poetas contemporâneos; de
modo ainda mais intuitivo revelam-nas os apelidos tomados na época da
independência: Araripe, Braúna, Canguçu, Guaicuru, Jucá, Montezuma, Mororó,
Sucupira, Tupinambá e muitos outros. Por toda parte transparece o segredo do
brasileiro: a diferenciação paulatina do reinol, inconsciente e tímida ao princípio,
consciente, resoluta e irresistível mais tarde, pela integração com a natureza, com
suas árvores, seus bichos e o próprio indígena.
Com ar triunfante, o escritor beneditino agita o decreto real de 4 de abril de 1755,
declarando «que os meus vassalos deste reino e da América que casarem com as
índias dela não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos de minha real
atenção e que nas terras em que se estabelecerem serão preferidos para aqueles
lugares e ocupações, que couberem na graduação de suas pessoas, e que seus
filhos e descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou
dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma», etc.
Este decreto constitui episódio de longa história que se pode resumir em poucas
palavras.
Apenas aportou à Bahia em 1549, Manuel da Nóbrega interessou-se pelos
indígenas, por seu bem-estar físico, por sua formação espiritual e incorporação ao
catolicismo. A experiência convenceu-o da necessidade, para colher resultado útil e
duradouro, de isolar o indígena do colono, para afeiçoá-lo ao trabalho moderado,
resguardar-lhe a segurança pessoal e garantir-lhe economia independente. Que
fosse permitido escravizar índios, nunca contestou ele nem qualquer de seus
sucessores: exigiram apenas o preenchimento de certas condições para a
escravidão ser lícita. Cometeram um erro capital, mas inevitável: como poderiam
negar o direito de cativar brasis, se os contemporâneos e as gerações seguintes
durante mais de dois séculos reconheceram a escravatura africana?
Apesar de todos os embaraços criados pelas hesitações da metrópole e pelas
paixões da colônia, a obra de Nóbrega prosseguiu e, na região amazônica
sobretudo, prosperou. Aos missionários foi entregue a administração temporal das
aldeias, cuja abastança e fartura excediam às das vilas dos brancos. Não se falava
senão das riquezas dos jesuítas, e de fato sua parcimônia, gerência metódica e
desapego pessoal figuravam uma magnificência de que levaram o segredo, como
depois se verificou.
Com o tempo as aldeias tornaram-seo um estado no estado como uma igreja
na igreja. O primeiro bispo do Pará quis chamar à sua jurisdição os missionários,
mas estes, escudados em numerosos privilégios pontifícios e mercês régias,
recusaram submeter-se. Suas razões deviam pesar alguma cousa, pois a decisão
final exigiu largos anos.
Aos 24 de setembro de 1751 tomou posse do cargo em Belém Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, nomeado Governador Geral do Estado. Recomendavam-lhe
suas instruções velasse pela liberdade dos índios e coibisse os excessos dos
missionários. Uma excursão começada em Fevereiro do ano seguinte permitiu-lhe
visitar as aldeias distribuídas entre a ilha de Marajó e o estreito de Pauxis. Em Caiá,
ouvindo o discurso de um cacique, satisfeito com os melhores tempos que se
anunciavam, exclamou: «E estes são os homens de quem se diz não têm juízo nem
são capazes de nada! Deles se pode fazer uma nação como qualquer outra de que
se pode tirar grande interesse».
Sua correspondência oficial neste e nos anos imediatos insiste na liberdade dos
indígenas, nos abusos dos missionários, nos bens de raiz possuídos contra lei
expressa, etc. Em fevereiro de 54, escrevendo a Diogo de Mendonça Corte-Real,
mostra-se convencido da impossibilidade de civilizar os índios com o auxílio dos
regulares. Suas palavras eram genéricas, sem referência alguma especial à
Companhia de Jesus. De suas reclamações resultaram duas leis, datadas de 6 e 7
de junho do ano seguinte, uma abolindo a administração temporal dos missionários
nas aldeias, proclamando a outra mais uma vez a liberdade absoluta dos indígenas.
Deixou-se ao arbítrio do governador geral o modo e a ocasião de publicá-las.
Incumbido de dirigir a demarcação das fronteiras do Norte, Mendonça Furtado
reclamou das aldeias as centenas de remeiros necessários ao progresso da
comissão, os milhares de alqueires de farinha e outros gêneros necessários à
manutenção de toda esta gente durante anos. O Pará moderno, servido por navios
a vapor, comerciando com os dois mundos, estaria à altura de tamanhas exigências;
não estava a Amazônia antiga, ocupada na extração do cravo, da salsa-parrilha, do
cacau, sustentada quase exclusivamente pela pesca, muito feliz quando a pequena
produção agrícola bastava para o consumo ordinário.
Mendonça parece não ter tido idéia clara desta situação, e todos os embaraços
fatais, decorrentes da natureza das coisas, atribuiu às intrigas, à malevolência e
perfídia dos jesuítas, criminosos obstinados e relapsos de uma monstruosidade sem
nome: não terem domesticado as leis demográficas e econômicas às impaciências
do irmão de Pombal. Para castigar tão nefando crime, reuniram-se as duas
sociedades perfeitas; só uma expiação bastaria: extinguir a igreja na igreja, o estado
no estado, que realmente era e não podia deixar de ser o regime dos aldeamentos.
Em 5 de fevereiro de 57, Mendonça publicou a lei retirando aos missionários a
administração temporal das aldeias, que deviam ter daí por diante uma organização
puramente civil. Os missionários continuariam como párocos sujeitos à jurisdição do
prelado. Todos sujeitaram-se a isto exceto os jesuítas por não lho permitirem suas
constituições. Ofereceram-se para coadjutores, mas isto não aceitaram o
governador nem o bispo.
Mendonça formulou um diretório em cerca de noventa e cinco artigos, datado de 3
de maio, para reger provisòriamente. Neste código da nova ordem de cousas, o
missionário era substituído pelo diretor. A 14 do mesmo mês explicava esta criação
do seguinte modo: «E não sendo possível que passassem [os índios] de um
extremo a outro sem se buscar algum meio por que se pudesse chegar àquele
importante fim, me não ocorreu outro mais proporcionado do que pôr em cada
povoação um homem com o título de diretor, ao qual, sem ter jurisdição alguma
coativa, lhe pertencesse a diretiva para lhe ir ensinando não a forma de se
governarem civilmente, mas a comerciarem de a cultivarem as suas terras, e tirarem
destes frutuosos e interessantissímos trabalhos os lucros que eles sem dúvida
alguma hão de dar de si e fazerem-se estes até agora desgraçados homens por
esta forma cristãos, civis e ricos, que é o que sem dúvida alguma lhe de suceder,
se os diretores fizerem a sua obrigação».
Em seguida passou a elevar as aldeias maiores a vilas e as menores a lugares. Um
contemporâneo, suspeito por ser jesuíta e não ter presenciado os sucessos,
interessante descrição destas novidades; também sua cronologia não parece
rigorosamente exata.
Veio-lhe pois ao pensamento dar o nome e os privilégios de vilas à semelhança das
que em Portugal a muitas aldeias que os índios habitavam, não obstante
constarem todas de pobres, e rústicas choupanas, a exceção da igreja e casas dos
párrocos. Para isto mandando levantar um grande pau no meio de um terreiro, dava
a este sítio o nome de pelourinho; depois escolhendo entre todos aqueles selvagens
alguns, que lhe pareceram ou pela fisionomia do rosto ou pela mole do corpo, mais
hábeis para os empregos, a que os queria elevar, os constituiu como vereadores ou
juízes dos mais, dizendo-lhes que eles eram tão bons, como os portugueses: que se
governassem a si, sem dependência, ou sojeição alguma dos missionários. Além
disto mandou vestir e calçar estas suas novas criaturas, assentá-las á sua mesa,
fazendo-lhes nela muitos brindes, e ensinado-lhes inter pocula, por meio de um
língua ou intérprete, o modo como se haviam de portar dali em diante,
administrando a todos Justiça, etc. etc. Os Índios porém, acabada a comida, e a
companhia desfeita, esquecendo-se de quanto lhes tinha dito o senhor Mendonça,
apenas sairam da sua presença tiraram os sapatos e vestidos e se emborracharam
com os seus vinhos a que chamam mocòroròs, e em sinal de alegria e
contentamento pelos cargos, a que tinham sido elevados, gritavam todos dizendo:
Vinha del-rei, vinha del-rei, querendo dizer viva el-rei, viva el-rei. Mas passada a
bebedice e tornando em si, se fizeram insolentes não com os Missionários,
perdendo-lhes o respeito e desobedecendo-lhes ainda nas cousas espirituais, senão
também com os outros Índios; e isto com tal excesso, que saindo os Jesuítas e o
mais Religiosos, que até ali foram párrocos nas Aldeias, além dos clérigos, que os
substituíram, se viu o senhor Mendonça obrigado a mandar alguns portugueses com
o título de diretores para os governar, e meter em sojeição: e ainda muitos destes
portugueses repugnaram a ir para as novas vilas sem terem sempre consigo alguns
soldados, que os defendessem dos insultos daqueles bárbaros.
Mendonça tratou em seguida da lei relativa à liberdade dos índios. Havia uma bula
de Benedito XIV, passada em 20 de dezembro de 1741 a instâncias de d. João V,
cominando excomunhão latae sententiae a quem por qualquer motivo cativasse
indígenas do Brasil. No panfleto pombalino intitulado Relação abreviada da
república, etc., lê-se que o bispo do Pará d. Miguel de Bulhões ao tratar de executar
a mesma bula se concitou contra ele uma sublevação que impediu por então aquela
providência apostólica. A alegação é absolutamente caluniosa. Em data de 11 de
junho de 1757 escrevia Mendonça Furtado: «cuja bula foi dada a este prelado por
ordem de S. Majestade para publicar e fazer observar na sua diocese, o que
pretendendo executar quando veio para esta cidade foi embaraçada pelos mesmos
fundamentos com que eu suspendi a publicação da liberdade», etc. Os
fundamentos para a suspensão da lei da liberdade foram meras considerações de
oportunidade, como se verifica em toda a correspondência do governador geral;
nunca houve sublevação. E tanta consciência tinha o escriba de estar caluniando,
que acrescenta: «ao mesmo prelado não pareceu participar à corte uma tão
estranha desordem, em tempo no qual a notícia de um tão escandaloso fato, temeu
que alterasse a tranqüilidade do ânimo do dito monarca, que se achava com a
grave enfermidade de que veio a falecer em 31 de julho de 1750». Assim se escreve
a leitura.
A 25 de maio foi publicada a bula de Benedito XIV pelo bispo. A 28 Mendonça
publicou a lei da liberdade dos índios. Não despertaram protestos, e diga-se a
verdade, não foram respeitadas, apesar das aparências.
O diretório, aprovado pelo rei, vigorou de 1757 a 1798. As misérias provocadas por
ele, direta ou indiretamente, são nefandas. Por fim d. Francisco de Sousa Coutinho
teve compaixão dos índios e conseguiu a revogação. Chegava tarde a medida
salvadora: o mal estava feito. Em 1850 o Pará e o Amazonas eram menos
povoados e menos prósperos que um século antes; as devastações da cabanagem,
os sofrimentos passados por aquelas comarcas remotas de 1820 a 1836 contam
entre as raízes a malfadada criação de Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
As leis retirando aos missionários a administração das aldeias e libertando os índios,
ditadas para o Estado do Maranhão, foram feitas extensivas ao resto do Brasil
por alvará de 8 de maio de 1758. Também aqui miraculosamente pulularam as vilas,
todas com legítimos nomes portugueses. Nestas partes a questão do indígena
perdera a importância, e as violências não foram tamanhas. Um escritor
pernambucano das primeiras décadas do século passado mostra a situação antes
ridícula que tétrica:
Os Índios têm vilas, e câmeras; e são nelas juízes, sem saberem nem ler, nem
escrever, nem discorrer! tudo supre o escrivão; o qual, não passando muitas vezes
de um mulato sapateiro, ou alfaiate, dirige a seu arbítrio aquelas câmeras de
irracionais quase, pelo formulário seguinte:
Na véspera do dia, em que de haver na aldeia vereação, parte o escrivão da sua
moradia, se é longe; e neste caso sempre a cavalo; e vem dormir, nessa noite, em
casa do senhor juiz, o qual imediatamente se encarrega do cavalo do senhor
escrivão, leva-o a beber água; e por fim vai peá-lo aonde possa cômodamente
pastar.
Fica entretanto o escrivão descansando, senhor aliás da casa, mulher, e filhas do
oficioso juiz, que na volta lhe cede o melhor lugar da choupana, para dormir e
passar a noite. Logo em amanhecendo começa o juiz a ornar-se com os velhos e
emprestados arreios da sua dignidade, e a horas competentes marcha para um
pardieiro, com alcunha de casa da câmera, aonde lidas as petições, que o escrivão
fez na véspera, são despachadas pelo mesmo escrivão em nome do senhor juiz
ordinário; e pouco depois se desfaz o venerando senado, e aparecem os senadores
de camisa, e ceroulas, e de caminho para as suas tarefas.
A declaração da liberdade e o diretório dos índios foram seguidos de outras
medidas em que igualmente colaboraram a igreja e o Estado. A Santa nomeou
visitador e reformador geral apostólico da Companhia de Jesus o cardeal F. de
Saldanha, que contra os jesuítas vibrou um tremendo mandamento, subscrito a 15
de maio de 1758. A 7 de junho o patriarca de Lisboa suspendeu-os do exercício de
confessarem e pregarem na sua diocese. Aproveitando uns tiros dados no rei,
Pombal fez assinar pelo régio manequim uma lei declarando-os rebeldes, traidores,
e havendo-os por desnaturalizados e proscritos.
No correr do ano seguinte foram embarcados para o Reino as centenas de
sucessores de Nóbrega encontrados no Brasil. Durou duzentos e dez anos a sua
atividade em nossa terra, e sua influência deve ter sido considerável. Deve ter sido,
porque no atual estado de nossos conhecimentos é impossível determiná-la com
precisão. No tempo de sua prosperidade publicaram apenas a redundante,
deficiente e nem sempre fidedigna crônica de Simão de Vasconcelos, que vai de
1549 a 1570. O que se encontra nas crônicas gerais, ânuas e outras publicações
reduz-se às poucas páginas reunidas por A. H. Leal na Rev. Trim. do Inst. Hist.
Biografias como as de Anchieta, Almeida, Vieira, Correia, pouco adiantam. Uma
história dos jesuítas é obra urgente; enquanto não a possuirmos será presunçoso
quem quiser escrever a do Brasil.
Nas suas diferentes casas devem ter ficado numerosos e importantes documentos,
que o desleixo ou propósito aniquilou; salvaram-se apenas os títulos de suas
propriedades. A julgar por algumas publicações e documentos fornecidos a Eduardo
Prado e a Studart os arquivos europeus devem ser ricos.
Enquanto não se fizer a luz sobre tão obscuros assuntos, um juízo definitivo a
respeito da famosa ordem peca pela base. Em todo caso pouca, muito pouca
inteligência revelam os ataques dirigidos contra ela. Instintivamente a simpatia volta-
se para os discípulos e companheiros de Nóbrega, Anchieta, Cardim, Vieira,
Andreoni, os educadores da mocidade, os fundadores da linguística americana.
10 - FORMAÇÃO DOS LIMITES
Os papas Nicolau V, Calixto III, Xisto IV concederam à coroa portuguesa as terras e
ilhas novamente descobertas sob o influxo do infante d. Henrique e dos seus
sucessores imediatos. Com surpresa de Portugal obtiveram os reis católicos uma
concessão do mesmo gênero depois de Cristóvão Colombo tornar de sua primeira
viagem: em maio de 1493 atribuiu-lhes Alexandre VI todas as terras e ilhas
descobertas e por descobrir, situadas cem léguas a Oeste de qualquer das ilhas do
Açores e do Cabo Verde.
Protestou contra o ato pontifício d. João II, julgando-o lesivo de seus direitos; depois
do protesto entabulou negociações com os monarcas vizinhos; afinal concluiram um
acordo em Tordesilhas. O convênio, aí assinado em 7 de junho de 1494, manteve o
princípio enunciado pelo Papa: a divisão do mundo em dois hemisférios,
pertencentes um a Portugal, outro à Espanha; modificou, porém, o mero de
léguas, elevando-as de cem a trezentas e setenta, e o ponto de partida para a
contagem, que seria uma ilha, não especificada então nem depois, do arquipélago
do Cabo Verde. O arreglo foi meramente formal e teórico: ninguém sabia o que dava
ou recebia, e se ganhava ou perderia com ele no ajuste das contas.
O descobrimento do Brasil, realizado alguns anos depois por Pedr'Álvares Cabral,
foi precedido pela expedição de Vicente Yañez Pinzon; mas os espanhóis não
alegaram prioridade nem duvidaram coubesse a terra dos Papagaios dentro na raia
portuguesa. Seus interesses estavam ao Norte, não ao Sul da equinocial, que
começou a ter valor com a expedição de d. Nuno Manuel.
As primeiras dúvidas sobre a linha divisória surgiram no mediterrâneo austral-
asiático. Segundo o parecer de Fernão de Magalhães compreendiam-se nos
domínios da Espanha as Molucas, tão cobiçadas por suas especiarias. Para prová-
lo empreendeu a viagem em que descobriu o estreito ainda hoje conhecido por seu
nome, atravessou o oceano Pacífico, chegou pelo Poente ao Levante como
nebulosamente concebera e nunca realizou Colombo. Depois de sua morte
Sebastian d'Elcano concluiu o périplo incomparável e na volta à pátria, em setembro
de 1522, manifestou a mesma crença nos direitos de sua nação e a urgência de
reivindicá-los. A corte espanhola deixou-se convencer. Entre ela e a de Portugal
estabeleceu-se uma discussão enfadonha, alegando-se ora a prioridade do
descobrimento, ora a legitimidade do domínio no arquipélago prestigioso. Do debate
resultou a capitulação de Saragoça, em abril de 529. Admitindo que as Molucas
pertenciam legitimamente à coroa espanhola, João III comprou os direitos de Carlos
V, por trezentos e cinqüenta mil ducados; se mais tarde verificassem a não
existência de tais direitos, o imperador restituiria a soma recebida; a linha divisória
passaria naquele hemisfério duzentas e noventa e sete e meia léguas ao oriente
das Molucas; e a légua seria das de dezessete e meia o grau no equador.
O machado de metal levado em 1514, as expedições de Solis, Cristóvão Jaques,
Cabot e Garcia deram importância às terras platinas e levantaram a questão de
limites no continente americano. Surgiram e arrastaram-se os debates a propósito
da expedição de Martim Afonso de Sousa (1530-1533), sempre sob a dupla face de
prioridade proclamada por Portugal e legitimidade de domínio, alegada por Castela.
Em setembro de 32, exprimia d. João III a idéia de distribuir em capitanias
hereditárias o território situado entre Pernambuco e rio da Prata; nas doações feitas
mais tarde, avançou apenas até 28º 1/3, à vista das reclamações espanholas, ou,
segundo parece, de observações astronômicas de Martim Afonso, assim
reconhecendo que seus domínios não iam mais longe. Os espanhóis estendiam,
porém, suas pretensões mais para o Norte. Em 534, Rui Mosquera estabeleceu-se
no Iguape, repeliu com vantagem um ataque de Pero de Góis e saqueou S. Vicente;
diversos documentos oficiais contemporâneos traçam a linha divisória desde
Cananéia e até de S. Vicente para o Sul.
Com a união das duas coroas decresceu a importância dos limites meridionais e a
atenção concentrou-se na Amazônia. Ante as incursões de flamengos e ingleses,
conhecidas apenas no Pará se estabeleceu Castelo Branco, pareceu acertado
confiar as novas conquistas à guarda dos portugueses mais próximos e melhor
preparados para defendê-las; a criação do governo separado do Maranhão
representou um primeiro passo neste sentido. Ainda mais decisiva foi a criação de
duas capitanias hereditárias, sujeitas ambas à coroa portuguesa, em terreno
indiscutivelmente espanhol pelo espírito e pela letra de Tordesilhas: a de Cametá,
concedida a Feliciano Coelho de Carvalho, limitada a Oeste pelo Xingu na margem
direita, a do cabo do Norte na margem esquerda do Amazonas, concedida a Bento
Maciel Parente, limitada a Oeste pelo Paru. Em 1639, Pedro Teixeira, voltando de
Quito, tomou posse em nome del rei de Portugal das terras situadas entre o rio
Aguarico, afluente do Napo, e o mar; faltava-lhe autoridade para tanto; mas este ato
foi mais tarde e muitas vezes invocado e aceito como título de posse.
No Sul, o movimento de ocupação se operou com muita lentidão por parte de
Portugal, acompanhando o litoral do Paraná e Santa Catarina, e continuou do
mesmo modo ainda depois de 1640. Por sua parte os espanhóis não curaram de
ocupar a margem esquerda do Prata, descuido verdadeiramente inexplicável, se
não duvidavam de seus direitos, a menos que se não explique pela certeza de sua
intangibilidade.
Se persistissem as reduções dos Tapes e de Guairá, avançariam naturalmente para
o Oriente, chegariam à marinha. Se outros elementos os reforçassem, o conflito
poderia ser evitado ou talvez a vitória lhes coubesse. Mas os jesuítas reergueram
as missões do Uruguai, e as relações destas gravitavam para Buenos Aires e
Asunción, como estas capitais para os Andes e o Pacífico.
Autores portugueses discutiam entretanto o meridiano de Tordesilhas, traçando-o
uns pela foz do Prata, outros pelo golfo de São Matias, na Patagônia. Tais idéias
tornaram-se correntes. Depois de assinada a paz que reconheceu sua
independência, o monarca de Portugal outorgou uma capitania a um dos netos de
Salvador Correia, balisando-a pelo estatuário platino. Em 1680 mandou fundar na
margem setentrional do Prata, a dez léguas de Buenos Aires, a colônia do
Sacramento.
Apenas certificou-se de sua existência, o governador espanhol atacou-a e tomou-a.
A notícia transmitida à Europa quase desencadeou nova guerra. Procurou-se ainda
uma vez, e agora com mais veras, apurar o verdadeiro alcance da linha de
Tordesilhas. Não se conseguiu. A Espanha condescendeu em reconstruir a fortaleza
e restituir provisionalmente o território, para afastar qualquer motivo de irritação do
debate, que deveria continuar no terreno científico.
Ao rebentar a guerra da sucessão da Espanha, el-rei de Portugal esposou a causa
do duque de Anjou, que por isso lhe cedeu o território disputado no Prata. Mais
tarde mudou de partido e aliou-se à Inglaterra a favor do pretendente austríaco. Daí
resultou novo ataque e nova tomada da colônia do Sacramento, que permaneceu
em mãos do inimigo de 1706 a 1715. Levara até então vida bem singular. «A nova
colônia do Sacramento por mercê de Deus se conserva», escrevia alguém pouco
depois de 1690, «por meterem nela um presídio fechado sem mulherio que é o que
conserva os homens, porque seo tem visto em parte alguma do mundo fazerem-
se novas povoações sem casais». Este ninho, antes de contrabandistas que de
soldados, foi talvez o berço de uma prole sinistra, os gaúchos os gaudérios,
originários da margem esquerda do Prata, famosos durante largas décadas e ainda
não assimilados de todo à civilização. A quantidade de meios de sola exportados do
Rio no começo do século XVIII não se explica pela simples produção indígena nem
por contrabando de Buenos Aires: implica o processo sumário dos gaúchos na
matança das reses, resultante da abundância e depreciação do gado vacum, do
pululamento da cavalhada e do espaço indefinido e livre para as correrias.
O tratado de Utrecht mandou restituir a colônia a Portugal e foi restituída com seu
território. Qual era o seu território? Toda a margem esquerda do Prata, pretenderam
os portugueses; o espaço alcançado por um canhão da fortaleza, entendiam os
espanhóis. Triunfaram estes. Aqueles tentaram estabelecer-se em Montevidéu, mas
seus esforços foram perdidos. Também os espanhóis em 1735 tentaram apossar-se
da colônia e sujeitaram-na a um assédio aspérrimo de vinte e dois meses. Antônio
Pedro de Vasconcelos, comandante da praça, resistiu heròicamente e obrigou o
inimigo a retirar-se.
A fundação da colônia do Sacramento devia servir de ponto de partida para um
povoamento que, partindo do Prata, iria ter à beira-mar. Este plano falhara; restava
o plano contrário: estabelecer-se na marinha, estender-se pelo interior até chegar às
águas platinas, em outros termos, povoar o rio de S. Pedro, mais tarde chamado Rio
Grande do Sul.
Em fevereiro de 1737 entrou José da Silva Pais pelo canal que sangra a lagoa dos
Patos e a Mirim. No local que lhe pareceu mais apropriado desembarcou, fortificou-
se. À sombra da fortaleza foi-se adensando a população. Dos Açores vieram várias
famílias e agregaram-se a este núcleo primitivo; as capitanias do Norte por força ou
por vontade forneceram não poucos colonos.
A rápida expansão do Brasil pelo Amazonas a o Javari, no Mato Grosso até o
Guaporé e agora no Sul, urgiu a necessidade de atacar de frente a questão de
limites entre possessões portuguesas e espanholas, no velho e no novo mundo,
sempre adiada, sempre renascente, interpretando autenticamente o convênio de
1494. Com este fim, os dois monarcas da península assinaram um tratado em
Madrid a 13 de janeiro de 1750.
Ambas as partes contratantes reconheceram neste documento ter violado a linha de
Tordesilhas, uma na Ásia, outra na América. Começaram, portanto, abolindo «a
demarcação acordada em Tordesilhas, assim porque se não declarou de qual das
ilhas do Cabo Verde se havia de começar a conta das trezentas e setenta léguas,
como pela dificuldade de assinalar nas costas da América Meridional os dois pontos
ao Sul e ao Norte donde havia de principiar a linha, como também pela
impossibilidade moral de estabelecer com certeza pelo meio da mesma América
uma linha meridiana». Na mesma ocasião aboliram quaisquer outras convenções
referentes a limites, que exclusivamente seriam regidos pelo tratado agora assinado:
A linha meridiana, até então vigente pelo menos nos instrumentos públicos, seria
substituída por limites naturais, tomando por balisas as passagens mais conhecidas
para que em tempo nem um se confundam, nem dêem ocasiões a disputas, como
são a origem e curso dos rios e os montes mais notáveis. Salvo mútuas concessões
inspiradas por conveniências comuns para os confins ficarem menos sujeitos a
controvérsia, ficaria cada parte com o que atualmente possuísse.
Maior importância que às terras prestou-se ao aproveitamento dos rios.
Estabeleceu-se que a navegação seria comum quando cada um dos reinos tivesse
estabelecimentos ribeirinhos; se pertencessem à mesma nação ambas as margens,
só ela poderia navegar pelo canal. Para ficar com a navegação exclusiva do Prata, a
Espanha trocou a colônia do Sacramento pelas missões do Uruguai. Encarregadas
de assentar os limites iriam duas tropas de comissários, uma pelo Amazonas, outra
pelo Prata.
Da comissão do Amazonas foi plenipotenciário e principal comissário português
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do marquês de Pombal. Como vimos,
exercia o cargo de governador do Pará, quando foi nomeado para o trabalho das
demarcações. A 2 de outubro de 1754 saiu para o rio Negro, levando em sua
companhia setecentas e noventa e seis pessoas, distribuídas em vinte e cinco
barcos. Escolheu para residência a aldeia de Mariuá, chamada mais tarde Barcelos,
e nela mandou construir aposentos para acomodar a partida espanhola. À frente
desta, de estado-maior ainda mais numeroso, partiu de Cádiz d. José de Iturriaga, a
13 de janeiro do mesmo ano, e chegou ao Orinoco aos fins de julho. Em 1756
fundou São Fernando de Atabapo, para escala da grande peregrinação e caixa de
víveres. Daí por diante, arcando com o áspero sertão despovoado, tais embaraços
encontrou, apesar das ordens mais expressas e das facilidades extraordinárias
proporcionadas por seu governo, que gastou anos no caminho.
A partida de Mendonça tinha de se ocupar de três questões principais: a do rio
Negro, a do Japurá e a do Madeira e Javari; a cada uma caberia uma tropa. Tomou
as providências necessárias para organizá-las e como Iturriaga continuasse
ausente, voltou em 756 para Belém com os engenheiros da demarcação, onde
absorveram-no outras preocupações mais instantes.
Em janeiro de 758, recebendo aviso da próxima chegada dos comissários
espanhóis, dirigiu-se novamente para Barcelos. Com efeito, no ano seguinte ali se
apresentaram d. José de Iturriaga e seu grandioso séquito de comissários,
matemáticos, engenheiros, desenhistas. Quase ao mesmo tempo chegou a notícia
da substituição de Mendonça na capitania do Pará e no trabalho dos limites, que daí
em diante seria dirigido da parte de Portugal por Antônio Rolim de Moura,
governador de Mato Grosso, mais tarde vice-rei do Brasil e conde de Azambuja. No
mesmo dia e hora da partida de Mendonça Furtado para a capital os comissários
espanhóis volveram ao Orinoco. Tal é pelo menos a versão referida por Baena. Os
escritores venezuelanos e colombianos contestam o encontro dos dois comissários
e, parece, com melhores fundamentos.
Depois de tantos anos e de tantas canseiras nem um passo se dera para realizar o
ideal afagado pelo tratado de Madrid. Para os interesses de Portugal a solução não
foi desvantajosa: estribado no uti possidetis, dando-lhe uma extensão inconciliável
com o tratado de Madrid, pôde agora satisfazer a sua avidez de terras.
No tempo de Mendonça instalou-se a capitania de S. José de Javari. Mandara-lhe a
coroa assentar a capital no Solimões próximos dos limites ocidentais; ele achou
mais conveniente situá-la no rio Negro, donde os espanhóis estavam muito
afastados, como o provara a lenta marcha de Iturriaga. Aí, portanto, a expansão se
faria sem tropeços. Além disso, a proximidade relativa de Belém e de Portugal
garantia uma superioridade esmagadora. Em seu tempo foram fundados o forte de
Marabitanas no rio Negro, o de S. Joaquim na confluência de Uraricoera e Tacutu,
cabeceiras do Branco.
Pelas instruções, a tropa de comissários destinados à demarcação do Sul devia
subdividir-se em três troços: um reconheceria o terreno desde Castilhos Grandes
até a barra do Ibicuí, no Uruguai; outra o Uruguai desde o Ibicuí até o Pepiri-guaçu
e, passada sua contravertente, desceria o Iguaçu até marcar a barra do Igureí,
aquele afluente oriental, este ocidental do Paraná; a terceira deveria demarcar o
Igureí em todo o curso, por seu concabeçante descer para o Paraguai e subir por
este até a barra do Jauru.
As duas últimas tropas deram conta de sua comissão pacìficamente; a primeira
andou com menos fortuna. Em troca da colônia do Sacramento e navegação
exclusiva do Prata, a Espanha cedera a Portugal a navegação do Uruguai com os
sete povos das missões jesuíticas: São Nicolau, São Miguel, São Luís Gonzaga,
São Borja, São Lourenço, São João e Santo Ângelo, fundados entre 1687 e 1707,
alguns com os restos de reduções que escaparam à sanha dos mamalucos. Ceder
terras com habitantes é amputação dolorosa, ainda hoje praticada; entregar as
terras, deixando os bens de raiz, levando os moradores apenas os móveis e
semoventes reporta à crueza dos Assírios. Entretanto as duas cortes julgaram
consumar facilmente este ultraje à humanidade se os jesuítas as ajudassem,
pesando sobre o espírito dos índios. Os jesuítas acreditaram-se poderosos para
tanto e bem caro pagaram este acesso de fraqueza ou de vaidade: quando os
índios se levantaram, desmentindo ou antes engrandecendo seus padres,
mostrando que a catequese não fora mera domesticação e a vida anterior vibrava-
lhes na consciência, aos jesuítas foi atribuída a responsabilidade exclusiva em um
movimento natural, humano e por isso mesmo irresistível.
Os chefes da missão demarcadora do Sul, Gomes Freire de Andrada por parte de
Portugal, o marquês de Valdelirios pela de Espanha, encontraram-se na fronteira
marítima do Rio Grande do Sul em começo de setembro de 1752, e no mês
seguinte iniciaram os trabalhos. Em janeiro, assentado o terceiro marco, Gomes
Freire ausentou-se para a colônia do Sacramento e o marquês para Montevidéu. A
primeira partida luso-espanhola continuou na tarefa, que deveria se estender até a
barra do Ibicuí; mas ao chegar a Santa Tecla, dependência do povo de São Miguel,
situado um pouco ao Norte da atual cidade de Bagé, defrontou índios armados que
se opuseram a seu avanço. Fora prevista a hipótese e havia ordem dos dois
governos para domar a resistência pelas armas, pois os jesuítas se haviam
felizmente convencido de sua impotência.
Reunidos Gomes Freire e Valdelirios na ilha de Martim Garcia, resolveram mandar
emissários às missões a ver se ainda era possível conciliar os índios. Se eles
continuassem teimosos, marchariam Andonaegui, governador de Buenos Aires, pelo
Uruguai até São Borja, e Gomes Freire pelo rio Pardo até Santo Ângelo. Depois de
tomadas estas duas reduções, prosseguiriam até se encontrar. Em março de 54
Andonaegui pôs-se em movimento, mas o mau estado da cavalhada e outras
causas não menos fortes obrigaram-no a recuar até Daiman, junto à presente
cidade do Salto. os índios atacaram os espanhóis e perderam trezentos homens,
dos quais duzentos e trinta mortos, canhões, armas brancas e cavalhada. Menos
feliz foi Gomes Freire, obrigado a assinar um armistício com os levantados a 18 de
novembro.
Viu-se que melhor andariam unidos os dois exércitos. Partiu Gomes Freire do rio
Pardo e em Sarandi, no rio Negro, juntou-se às forças de Andonaegui. A 21 de
janeiro de 56 marcharam para as missões. Quase encontraram os obstáculos
criados pela natureza. Os índios, embora numerosos, mal armados, mal ou antes
não dirigidos, pouca resistência podiam oferecer; de todos os reencontros saíram
derrotados. A 17 de maio entregou-se São Miguel sem resistência, e os outros
povos foram seguindo-lhe o exemplo. Podia-se agora operar a permuta, Gomes
Freire empossar-se das sete missões e entregar a colônia do Sacramento. Não se
fez isto; dir-se-ia que, como os primitivos, estes mamalucos póstumos tinham por
móvel único a destruição. Em janeiro de 59 Gomes Freire embarcou para o Rio,
donde não mais voltou.
Entretanto, falecia Fernando VI, subia ao trono Carlos III, inimigo do tratado de 1750
desde o tempo de seu reinado em Nápoles. Um dos primeiros cuidados do novo rei
foi anulá-lo pelo pacto firmado no Pardo, a 12 de fevereiro de 1761. Ficaram outra
vez de todos os atos reguladores de limites, a principiar pelo de Tordesilhas,
tantas vezes desrespeitado por ambas as partes, como de público haviam
reconhecido poucos anos antes. O tratado de Madrid, exatamente porque resolvia
uma questão secular, fora atacado com violência em ambas as cortes e a
cordialidade dos dois monarcas que o assinaram não teve eco nos respectivos
povos. Agora com razão condenavam-no os representantes dos dois governos à
vista de seus resultados, fáceis de evitar, a o ser a cláusula bárbara relativa aos
sete povos do Uruguai: «estipulado substancial e positivamente para estabelecer
uma perfeita harmonia entre as duas Coroas e uma inalterável união entre os
vassalos delas, se viu pelo contrário que desde o ano de 1752 tem dado e daria no
futuro muitos e muito frequentes motivos de controvérsias e contestações opostas a
tão louváveis fins».
A insistência de Portugal em não aderir ao famoso pacto de família, dirigidos pelos
Bourbons contra a Inglaterra, desencadeou as hostilidades na península e nos
domínios da América do Sul. Pedro Cevallos, sucessor de Andonaegui no governo
de Buenos Aires, pôs cerco à colônia do Sacramento em outubro de 62 e tomou-a
sem grande esforço. Dirigiu-se depois às plagas rio-grandenses, num passeio militar
apossou-se do forte de Santa Teresa próximo ao Chuí, da vila capital, da margem
setentrional da lagoa dos Patos. Um convênio assinado no povo de São Pedro em 6
de agosto de 1763 declarou o porto privativo do domínio da Espanha, fechado,
portanto, ao comércio de qualquer outra nação.
O tratado concluído em Paris a 10 de fevereiro 763 mandou voltarem as cousas ao
estado anterior à guerra. Cevallos restituiu a colônia do Sacramento, guardou o Rio
Grande, deixando os portugueses reduzidos à fortaleza do rio Pardo e às cercanias
de Viamão. Mesmo estas nesgas procurou retirar-lhes Vertiz y Salcedo, novo
governador de Buenos Aires, atacando o rio Pardo em 773, não com tanta felicidade
como esperava.
Portugal fingiu aceitar a situação criada por Cevallos, mas foi se preparando
manhosamente para modificá-la em seu proveito. Readquiriu, sem combate, S. José
do Norte à entrada da barra; a pouco e pouco mandou forças por terra; uma
esquadra entrou pelo canal apesar das fortalezas inimigas; em março de 76,
combinadas as forças de terra e mar atacaram e tomaram as fortificações dos
castelhanos; em abril a vila de São Pedro foi evacuada. O domínio espanhol durava
treze anos: data dele a fortuna do porto dos Casais, hoje Porto Alegre.
Muitos dos colonos portugueses transplantados para além do Chuí não tornaram
mais para as antigas estâncias.
Apenas chegou ao velho mundo a notícia da reconquista do rio de S. Pedro,
preparou-se em Espanha uma forte armada para tirar a desforra. Comandava-a
Cevallos, nomeado para assumir o vice-reinado do Prata, então criado. Deveria
tomar Santa Catarina, Rio Grande e Sacramento. Santa Catarina entregou-se logo
sem resistência; na colônia propuseram a entrega apenas se apresentou o inimigo.
O Rio Grande ficou livre de ser acometido por via marítima graças aos ventos
contrários; quando ia ser atacado por via terrestre, chegou ordem de suspender as
hostilidades. Cevallos, como se votasse ódio pessoal à Colônia do Sacramento,
secular pomo de discórdia entre os dois povos, não quis deixar pedra sobre pedra. A
8 de junho de 77 começou a demolição pela fortaleza; foram depois destruídas as
casas, o porto obstruído; as famílias que não quiseram recolher-se ao Brasil,
transportadas para Buenos Aires, distribuíram-se pelo caminho do Peru.
Expirava a este tempo José I, extinguia-se o poderio do truculento Pombal, pela
primeira vez uma rainha ascendia ao trono português; todos estes motivos devem
ter influído certa brandura no tratado de limites firmado em Santo Ildefonso a 1 de
outubro de 1777, em quase tudo semelhante ao de Madrid, e mais humano e
generoso que este, pois não impunha êxodos cruentos.
O uti possidetis, reconhecido em 1750, anulado em 761, veio outra vez a prevalecer.
Se não se explicasse pela superioridade relativa das posições portuguesas nas
zonas litigiosas, seria uma das ironias da história averiguar que do mero apego à
posse das Filipinas procederam todas as concessões por parte da Espanha.
As modificações mais notáveis apanharam a fronteira meridional. Espanha não
concordou mais que Portugal tivesse direito a navegar no Uruguai e por isso impôs
uma fronteira tal que as possessões portuguesas abeirassem o rio ao Oriente do
Pepiri-guaçu. Desenvolvendo um princípio formulado no tratado de Madrid, cujo
artigo 22 não permitia fortificações nem povoações nos cumes das raias, a partir
das lagoas Mirim e da Mangueira, o tratado de Santo Ildefonso estabeleceu no
artigo 6 «um espaço suficiente entre os limites de ambas as nações, ainda queo
seja de igual largura à das referidas lagoas, no qual não possam edificar-se
povoações, por nenhuma das duas partes, nem construir-se fortalezas, guardas ou
postos e tropas, de modo que os tais espaços sejam neutros, pondo-se marcos e
sinais seguros, quer façam constar aos vassalos de cada nação o sítio, de que não
deverão passar; a cujo fim se buscarão os lagos e rios, que possam servir de limite
fixo e inalterável, e em sua falta o cume dos montes mais sinalados, ficando estes e
as suas faldas por termo natural e divisório, em que se não possa entrar, povoar,
edificar nem fortificar por alguma das duas nações».
Para o trabalho de demarcar a fronteira foram criadas quatro divisões: operaria a
primeira do Chuí ao Iguaçu; a segunda de Igureí ao Jauru; a terceira do Jauru ao
Japurá; a quarta daí ao rio Negro. Pela parte de Portugal ficaram dependentes do
vice-rei no Rio, dos governadores de S. Paulo, Mato Grosso e Pará. O trabalho
efetuado limitou-se à fronteira do Chuí ao Iguaçu, e do Javari ao Japurá, isto
durante anos de argúcias, dilações, inação, de que cada nação lançava à outra a
culpa exclusiva. As divisões confiadas aos governadores de S. Paulo e Mato Grosso
nunca se encontraram com as divisões espanholas. Poder-se-ia dizer que com isso
ganhou a geografia das respectivas regiões, pois os cientistas exploraram rios,
descreveram plantas e animais, enviaram curiosos espécimes dos três reinos para
os estabelecimentos de além-mar... poder-se-ia dizê-lo, se tais trabalhos,
ciosamente guardados, fossem dados então à publicidade.
Dois episódios mostrarão como as cousas passaram.
O tratado de Madrid nos artigos 5.º e 6.º, repetidos pelo Santo Ildefonso nos artigos
8.º e 9.º, dispunha que a fronteira desde a barra do Iguaçu prosseguiria pelo álveo
do Paraná acima, até onde pela parte ocidental se lhe ajuntasse o Igureí,
acompanharia este até descer o concabeçante mais próximo, afluente do Paraguai,
chamado talvez Corrientes.
Próximo do Iguaçu não desemboca pela margem ocidental do Paraná rio chamado
Igureí, próprio a servir de fronteiras, alegou e Faria, português passado agora
para o serviço de Castela; rio Corrientes tão pouco se conhece no Paraguai.
Convencionou-se, pois, que a fronteira partiria do Iguatemi, primeiro afluente oriental
do Paraná, acima das Sete Quedas. Mais tarde, o vice-rei do Brasil escreveu ao do
Prata que a convenção fora condicional, para a hipótese de não existir o Igureí; ora,
Igureí existia abaixo das Sete Quedas. Cândido Xavier o descobriu e o seu
correspondente no Paraguai é o Jejuí. Pelo Igureí e pelo Jejuí devia passar portanto
a linha divisória.
Tem a razão o vice-rei do Brasil, respondia Félix de Azara, comissário espanhol; a
convenção foi condicional e desaparece apurada a existência do Igureí; mas o Igureí
existe: é o Iaguareí, Monici ou Ivinheima, e corresponde-lhe pelo Paraguai outro rio
caudaloso, que desemboca aos 22º. Isto, acrescentava, nos dará as únicas terras
não inundadas daquelas regiões; teremos ervais, barreiros, salinas, pastos,
aguadas, madeiras; as frotas de Cuiabá e Mato Grosso cairão em nossas mãos na
boca do Taquari, ou mais acima; podemos na paz chupar suas riquezas por um
comércio que de ser-nos vantajoso sem prejuízo; os famosos estabelecimentos
de Mato Grosso, Cuiabá e serra do Paraguai serão precários a seus ilegítimos
donos e alfim cairão em nossas mãos com o tempo. «No es posible que no
tengamos las minas de Cuyabá y Mato groso, cuando las podemos atacar com
fuerzas competentes, llevadas por el mejor rio del mundo, sin que los portugueses
puedan sostenerlas ni llegar á ellas, sino por el embudo obstruido del rio Tacuari, en
canoas y con los trabajos que nadie ignora».
Seriam melhores os portugueses? O caso Chermont-Requena, narrado brevemente,
responderá de modo satisfatório.
Tinham os comissários de demarcar a fronteira do Javari à boca mais ocidental do
Japurá e seguir por este acima até um rio que resguardasse os estabelecimentos
portugueses do rio Negro. A boca mais ocidental do Japurá originou graves
discussões, por um chamar boca o que o outro considerava furo, isto é, um canal
que levava as águas do Solimões ao Japurá em vez de trazê-las. O rio que devia
resguardar as possessões portuguesas do rio Negro seria o Apaporis, o Comiari ou
dos Enganos, ou qualquer outro? Nunca se decidiu, à vista dos múltiplos
varadouros, imaginários ou verdadeiros, alegados por parte de Portugal. Em todo
caso, Tabatinga demorava a Oeste da mais ocidental das bocas do Japurá,
demorava mesmo a Oeste do Içá, não compreendido nas pretensões portuguesas
mais exageradas; quando, porém, Requena reclamou a posse de Tabatinga,
Chermont negou-se a assumir responsabilidade tão grave e declinou da sua para a
competência de João Pereira Caldas, chefe daquela divisão. Este declarou-se
prestes a fazer a entrega de Tabatinga se os espanhóis lhe entregassem São
Carlos, forte do alto rio Negro, fundado na expedição de D. José de Iturriaga,
malogrado comissário da primeira demarcação.
Nestes dares e tomares consumiu Requena um decênio. Afinal conseguiu de seu rei
licença de voltar para a Europa, e o de Portugal permitiu-lhe que descesse até o
Pará. «De ordem do governador do Rio Negro o acompanhou o tenente-coronel
engenheiro José Simões de Carvalho com a recomendação secreta de dirigir a
viagem de maneira que ele não visse povoação alguma, nem pudesse tomar nota
topográfica de qualquer ponto do Amazonas. Destina-lhe o governador [do Pará]
para sua morada a fazenda de Val de Cães. Ali o teve como em custódia até
prosseguir a viagem, permitindo-lhe vir à cidade [de Belém] de noite, e
acompanhado de um oficial de tropa regular quando intentava fazer-lhe visitação, na
qual também era recebido pelos cidadãos mais qualificados que segundo a
disposição do governador o esperavam em grande cerimônia».
Em suma, valiam-se bem os comissários das duas altas partes contratantes. Teria
razão ou talvez não tenha quem afirmasse sua fé; entretanto, uma o outra
opinião seria superficial. Os termos dos tratados prestavam-se às vezes a mais de
uma interpretação; os mapas trazidos do reino aplicavam-se mal aos terrenos; nem
destes nem daqueles resultava uma hermenêutica forçada; cada funcionário
procurava ostentar zelo, isto é, adiantar sua carreira. E em nome destes seres
heterônomos ainda hoje nossos vizinhos propagam e herdam o ódio ao Brasil desde
os bancos escolares! Felizmente no Brasil não somos prisioneiros destas paixões
inferiores de colonos fossilizados.
Portugal saiu mais favorecido da sorte por ter criado a capitania independente de
Mato Grosso logo depois do tratado de 1750 e a capitania subordinada do Rio
Negro em seguida. De Vila Bela via-se bem claro que o problema decompunha-se
em duas partes: absorver a navegação do Madeira, paralizando as hostilidades das
vizinhas aldeias dos Moxos e dos Chiquitos, -e isto fez principalmente o conde de
Azambuja; passar além dos Xarais, até onde o Paraguai não transborda do leito,
limitando assim as possibilidades dos ataques e surpresas, garantindo ao mesmo
tempo a navegação de S. Paulo,- isto fizeram Luís de Albuquerque, com a fundação
de Corumbá e Coimbra, e Caetano Pinto com a de Miranda. Na capitania subalterna
Mendonça Furtado sentiu a importância capital do rio Negro e do rio Branco;
escolhendo Barcelos para capital, assinalou nitidamente o rumo a seguir pelos
sucessores. Tanto em Mato Grosso como no rio Negro houve pequenos conflitos
sem importância, de que os espanhóis não tiraram o melhor partido e os
portugueses puderam continuar na sua maneira original de entender e aplicar o uti
possidetis.
Os debates inanes das demarcações ainda continuavam em 1801 ao rebentar a
guerra entre Portugal e Espanha. Ipso facto, caducaram os tratados. José Borges
do Canto, desertor do regimento dos dragões, e Manuel dos Santos Pedroso, sem
ordem de ninguém, congregaram um troço de aventureiros, e atiraram-se contra os
sete povos do Uruguai. Foram, viram, venceram; voltou novamente a ser lindeiro o
rio Ibicuí.
Depois disto não houve mais questões sobre limites americanos entre as duas
metrópoles peninsulares.
O histórico dos limites com a França e Holanda, desde o rio Branco a Oeste até o
cabo de Orange a Este, conta-se em poucas palavras.
A capitania do cabo do Norte, doada a Bento Maciel Parente, foi limitada a beira-
mar pelo rio Vicente Pinzon, cuja denominação indígena é Oiapoque. Apenas se
fixaram em Caiena, os franceses lançaram olhos cobiçosos sobre o Amazonas, e
reclamaram-no como limite.
Para afirmar seus direitos, em 1697 tomaram os fortes portugueses de Araguari,
Toeré e Macapá, logo retomados. Um tratado provisional assinado em 1701
neutralizou o território, mas o de Utrecht restituiu-o aos portugueses. Pelo
inequívoco artigo 8, Sua Majestade Cristianíssima desistiu «pelos termos mais fortes
e mais autênticos e com todas as cláusulas que se requerem, assim em seu nome
como de seus descendentes, sucessores e herdeiros de todo e qualquer direito e
pretensão que pode ou poderá ter sobre a propriedade das terras chamadas do
cabo Norte, e situadas sobre o rio dos Amazonas e o de Japoc ou de Vicente
Pinsão, sem reservar ou reter porção alguma das ditas terras, para que elas sejam
possuídas daqui em diante por Sua Majestade Portuguesa», etc.
A disposição por sua clareza não permitia dúvidas; os franceses acharam meio de
perpetuá-las, descobrindo mais de um Vicente Pinzon e mais de um Oiapoque, de
modo a aproximarem-se o mais possível do Amazonas, seu verdadeiro e constante
objetivo. Isto lograram durante a revolução francesa e o império. O tratado de Paris,
de 23 Thermidor V, traçou o limite pelo Calçoene até as cabeceiras e destas por
uma reta até o rio Branco. O de Badajoz de 6 de junho de 1801 transportou-o para o
Araguari, desde a foz mais apartada do cabo do Norte até a cabeceira e daí até o rio
Branco. O de Madrid de 29 de setembro do mesmo ano fixou-o no Carapanatuba
desde a foz até as cabeceiras, donde acompanharia as inflexões da serrania
divisora das águas até o ponto mais próximo do rio Branco, cerca de 1/3 N. O de
Amiens de 27 de março de 1802 trouxe-o novamente para o Araguari. Todos estes
tratados caducaram com o de Fontainebleau, que desmembrou Portugal e produziu
a trasladação da corte portuguesa para o Brasil.
Depois de na era de 1750 terem passado do rio Branco para o Rupununi, os
portugueses aproximaram-se das possessões holandesas. Nunca entretiveram,
porém, contacto, ou travaram conflitos com elas, nem convenção alguma interveio
entre as duas metrópoles.
11 - TRÊS SÉCULOS DEPOIS
Três séculos depois do descobrimento os habitantes do Brasil exprimiam-se por
sete algarismos. Repartidos na superfície reclamada como sua pela metrópole,
tocavam dois ou três quilômetros quadrados a cada indivíduo.
A população ocupava a marinha desde Marajó até o Chuí, e uma e outra margem
do Amazonas desde a foz de Tabatinga ao Javari. Nos tributários desta bacia os
povoados, de preferência estabelecidos nos caudais de água preta, paravam a
pouca distância da barra, exceto no rio Negro, onde preocupações de limites tinham
requintado a expansão natural, no Madeira, Tapajós e Tocantins, ligados a Mato
Grosso e Goiás. Desde o Piauí à linha singela do litoral correspondiam uma ou mais
linhas interiores de povoamento nas beiras dos rios e nos chapadões do Parnaíba,
do S. Francisco, do Para e regiões intermédias. Estas linhas, interrompidas a
cada instante, melhor se diriam pontos indicando um traçado a realizar.
Observando a distribuição geográfica dos povoadores notavam-se duas correntes
fáceis de distinguir. A corrente espontânea do povoamento tendia à continuidade e
procurava a periferia a Oeste, ao Norte e ao Sul. A corrente voluntária, determinada
por ação governativa, ambição de territórios ou vantagens estratégicas, aparecia
salteada e desconexa, e começando da periferia procurava rumos opostos. Nas
terras auríferas a ocorrência irregular dos minérios trouxe primitivamente a
desconexão dos núcleos, mais tarde corrigida onde foi possível.
A maioria constava de mestiços; a mestiçagem variava de composição conforme as
localidades. Na Amazônia prevalecia o elemento indígena, abundavam mamalucos,
rareavam os mulatos. Na zona pastoril existiam poucos negros e foram assimilados
muitos índios. À beira-mar e nas comarcas dos metais sobressaía o negro, com
todos os derivados deste radical. Ao Sul dos trópicos elevava-se a porcentagem dos
brancos. Das três raças irredutíveis, oriunda cada qual de um continente e
compelidas à convivência forçada, eram os africanos a que maior número de
representantes puros possuía, em conseqüência das levas anualmente fornecidas
pelo tráfico dos negreiros.
Na baixada amazônica o predomínio da água e da mata restringiam as ocupações
agrícola e pastoril. Lavoura existia apenas nas proximidades dos povoados maiores,
limitada à cana, ao café, a poucos cereais e à mandioca: esta desfazia-se em
farinha d'água, mais resistente à umidade; o tucupi ou manipuera dava um molho
apreciado; cru servia também para apanhar aves. O gado vacum criado na ilha do
Marajó, perto do Paru, em Óbidos, no Tapajós, nos campos do rio Branco, não
chegava para o consumo interno. De gado cavalar ainda menos se curava: as
embarcações, desde a montaria, verdadeira sucedânea do cavalo, como o nome
está indicando, até as grandes canoas, arqueando centenas de arrobas, e durante
parte do ano impelidas rio arriba pelos ventos gerais, eram o quase exclusivo meio
de transporte.
O povo alimentava-se de peixe fresco, pegado diàriamente pelos múltiplos e
engenhosos processos recebidos dos indígenas, ou salgado, como o pirarucu, a
tainha e o peixe-boi; de tartaruga, mais abundante à medida que se caminhava para
Oeste, ou porque assim estivesse distribuída originariamente, ou por se não ter
adiantado tanto por aquelas bandas a obra de devastação. Verdadeira vaca
amazônica, gado do rio como a chamavam, podia-se guardar às centenas em
currais, e fornecia manteiga; a gema do ovo de uma espécie tomava-se com café,
como leite. Sua manteiga, além, de condimento usual, fornecia iluminação; o casco,
sem brilho e por isso imprestável para obras delicadas, empregava-se como vasilha.
A extração de produtos florestais, cacau, salsa, piaçaba, cravo, ocupava a maioria
da população masculina em certas quadras do ano, marcadas pelas enchentes e
vasantes do rio-mar, durante as quais as aldeias ficavam reduzidas a velhos,
meninos e mulheres. Estas fabricavam louça, pintavam coités, não raro reveladoras
de talento artístico, fiavam e teciam. A seringueira, conhecida e utilizada, entrava
apenas no fabrico de objetos caseiros, como o que lhe deu o nome, ou no tornar
impermeáveis botas e tecidos. Nem de longe se poderia ainda prever a importância
que lhe adveio depois de descobertos os modernos processos de manipulação.
«Nenhuns [cuidados] parecem ter comumente no estado», escrevia Fr. João de São
José em tempo de Pombal, e continuava a ser verdade: «havendo rede, farinha e
cachimbo, está em termos. A frugalidade da mesa pode passar se fosse coerente a
de beber; e quanto ao mais é expressão vulgar a da seguinte endecha ou trova:
Vida do Pará,
vida de descanso;
comer de arremesso,
dormir de balanço.»
Da bacia amazônica passando à zona pastoril, notava-se logo a falta de mata e a
escassez de água. A mata aparece apenas às margens das correntes mais
caudalosas, em algumas baixadas úmidas, em serras elevadas de mil metros mais
ou menos de altitude. A água, excetuando alguns rios permanentes, limitava-se a
ipueiras, olhos d'água, poços naturais, mais ou menos grandes e constantes; fora
destes casos tem-se de procurá-lo no seio da terra, operação fácil nos álveos secos,
em outros casos empresa árdua e até frustânea. Em geral não prima quanto ao
gosto, em conseqüência da salinidade dos terrenos que a filtram. O caráter salino do
solo, a abundância de pastos suculentos, os campos mimosos e agrestes,
determinaram a multiplicação do gado vacum. Vivia solto o maior tempo. Na época
da parição, as vacas eram recolhidas ao curral, por causa dos cuidados exigidos
pelo bezerro, e também do leite, e mais tarde do queijo e do requeijão; pouco valia a
manteiga, se merece este nome o esquisito produto guardado em botijas, que se
aquecia para extrair o conteúdo.
O gado não se prendia ao descampado; internava-se pelas catingas e amontava. O
vaqueiro corria-lhe ao encalço, e com uma vara de ferrão em alguns pontos, em
outros pela simples apreensão do rabo, deitava a rês em terra e subjugava-a.
«Quando o vaqueiro se aproxima o boi foge para o mato mais próximo», informa
Koster; «segue-o o homem tão de perto quanto possível, a fim de aproveitar a
aberta que o animal faz apartando os galhos, os quais se aproximam logo depois e
retomam a sua posição antiga. Algumas vezes o boi passa sob o grosso e baixo
galho de uma árvore grande; o cavaleiro passa igualmente por baixo do galho; para
consegui-lo inclina-se tanto à direita que pode agarrar a silha com a o esquerda;
ao mesmo tempo prende-se com o calcanhar esquerdo à aba da sela; nesta
posição, roçando quase em terra, de aguilhada em punho segue sem diminuir a
andadura, endireitando-se novamente no assento desde que transpôs o obstáculo.
Se pode alcançar o boi, mete-lhe o aguilhão na anca, e fazendo-o com jeito, derriba-
o. Apeia então, liga as pernas do animal, ou passa-lhe uma dasos por cima dos
chifres, o que o segura do modo mais eficaz. Estes homens recebem muitas vezes
ferimentos, mas raro é que ocasionem mortes». A tradição popular celebrou alguns
dos barbatões mais famosos, como o boi Espaço (espaço, isto é, de chifres
espaçados, não espácio, como José de Alencar escreveu e outros têm repetido), o
Surubim, o Rabicho da Geralda.
Na boca deste uma poesia publicada por Sílvio Romero põe as seguintes quadras:
Foi uma carreira feia
para a serra da Chapada,
quando eu cuidei era tarde,
tinha o cabra na rabada.
Tinha adiante um pau caído,
na descida de um riacho,
o cabra passou por riba.
O russo passou por baixo.
Apertei mais a carreira
fui passar no boqueirão,
o russo rolou no fundo,
o cabra pulou no chão.
O gado cavalar dava bem no sertão, mas nunca se multiplicou tanto como o outro,
por falta de forragem apropriada. Talvez isto, mais que a falta de cruzamento,
explique a diminuição da estatura; em todo caso sua resistência ao trabalho é
incomparável, a exigüidade do porte apropriava-o às corridas pelo cantigal. As
viagens eram sempre interrompidas nas horas de maior calor; não se ferravam os
cavalos, cujo casco rijo resistia às pederneiras sem estropeio. O gado muar quase,
senão de todo, se desconhecia no começo. Havia poucas ovelhas e cabras: o
desenvolvimento destas data dos últimos trinta anos, depois de reconhecida a
superioridade de sua pele.
Na alimentação entrava naturalmente a carne, mas em quantidade menor do que se
poderia supor. Uma rês tinha grande valor relativo, porque ficavam próximos
consideráveis centros de consumo, como Bahia e Pernambuco. Além disso dos
sertões do Parnaíba e São Francisco e das ribeiras concabeçantes partiu o gado
que abasteceu e inçou Minas Gerais, Goiás e indiretamente Mato Grosso; tal
abastecimento encareceu ainda mais a mercadoria, desfalcando-a. Cumpre não
esquecer a calamidade das secas. Assim consumia-se principalmente carne secada
ao sol, ou a do gado miúdo, de preferência à de ovelha.
No começo nada se plantava, julgando o terreno estéril; mais tarde introduziu-se o
feijão, o milho, a mandioca e até a cana. São ainda hoje três épocas alegres do ano
sertanejo: a do milho verde, a da farinha e a da moagem. Do milho seco, quase
exclusivamente reservado para os cavalos, se utilizavam torrado ou feito pipoca,
transformado no raro cuscus ou no insípido aluá. O milho verde, cozido ou assado,
feito pamonha ou canjica (no sentido do Norte, muito diverso do Sul), o milho verde
durante semanas tirava o gosto das outras comidas. A farinhada com a farinha
mole, os beijus de coco ou de folha, as tapiocas, os grudes, etc., as cenas joviais da
rapagem de mandioca, representavam dias de convivência e cordialidade. A
moagem era a cana assada, a garapa, o alfenim, a rapadura, o mel de engenho.
Estas festas, exceto a do milho, provavelmente herdada dos indígenas,
pressupunham a casa grande, isto é, proprietários abastados que residiam em suas
terras e escravos que as cultivavam. Nas proximidades moravam agregados, livres e
dedicados. Muitas vezes por motivos fúteis entre os donos de duas casas grandes
irrompiam questões que podiam pôr em armas populações inteiras. São
características as lutas de Montes e Feitosas no Ceará. Os inventos mecânicos, que
no século dezoito revolucionaram a indústria dos tecidos, aumentando o consumo
do algodão, levaram o plantio aos terrenos mais afastados, por onde difundiram o
bem-estar.
O dono da casa grande, como toda a população masculina, exceto quando viajava,
andava de ceroula e camisa, geralmente com rosários, relíquias, orações
cuidadosamente cosidas e escapulários ao pescoço. Nas ocasiões solenes,
recebendo visitas, revestia-se de quimão, timão ou chambre. «Quando um brasileiro
põe-se a usar um desses hábitos talares começa a se considerar personagem
importante (gentleman) e com título portanto a muita consideração», informa Koster.
A roupa caseira das mulheres constava de camisa e saia; o casebeque só apareceu
mais tarde. As moças solteiras dormiam juntas num gineceu chamado camarinha.
Não apareciam aos estranhos. Era comum verem-se os noivos pela primeira vez no
dia do casamento. Entre as jóias prezava-se sobretudo o colar: o número de varas
de cordão possuído pela mulher indicava a certo ponto sua hierarquia. Até as
alongadas brenhas penetravam os bufarinheiros levando ouros, fazendas, utensílios
domésticos. Quando os objetos se permutavam em gado, alugavam gente para
arrebanhá-lo, e podiam voltar com grande número de cabeças. O mesmo sucedia
aos dizimeiros, e até a eclesiásticos ambulantes. Um fenômeno daquelas regiões,
ainda hoje existentes, eram as feiras de gado ou de outros gêneros. Algumas feiras
deram origem a povoados.
A zona criadeira começava um pouco acima da foz do São Francisco,
acompanhava-lhe as margens a entestar com a fronteira de Minas Gerais,
transpunha as vertentes do Tocantins e do Parnaíba, alcançava enfraquecida o
alto Itapicuru, compreendia as ribeiras de todos os rios de meia-água metidos entre
a baía de Todos-os-Santos e a de Tutóia. A trechos se aproximava muito da beira-
mar, de que em Ilhéus e Porto Seguro separavam-na a serra do Espinhaço e suas
matas litorâneas. Em Pernambuco ocorria fato semelhante, porque como as
ligações beiravam o rio de o Francisco, a maior ou menor distância, grande
número de sertanejos achavam mais fácil e mais vantajoso comunicar-se com a
Bahia, deixando deserta uma região intermédia, variável em comprimento e largura;
o caminho entre Pajeú e Capibaribe, que regulou esta anomalia, data dos primeiros
anos do século XIX.
Como vimos, pode-se chamar pernambucanos os sertões de fora, desde Paraíba
até o Acaracu no Ceará; baianos os sertões de dentro, desde o rio S. Francisco até
o sudoeste do Maranhão. Entre os sertanejos de um e outro grupo deve ter havido
diferenças mais ou menos sensíveis. Talvez se venha a determiná-las um dia,
quando forem divulgadas as relações dos missionários, corregedores, etc.; em todo
caso as semelhanças entre os moradores de ambos os sertões avultam mais que
entre quaisquer outros habitantes do Brasil.
Nas margens do rio S. Francisco encontraram-se baianos e pernambucanos com os
paulistas. Ao Sul e ao ocidente pode-se determinar até certo ponto os limites das
duas correntes opostas, marcando os lugares em que os altos deixam de ser
preferidos para a habitação, mesmo quando o perigo de ser inundado o
terreno, e entram a funcionar os monjolos.
Predileção pelas baixas para as casas de vivenda, freqüência de monjolo para pilar
o milho seco, milho como alimentação habitual, sob as formas de canjica (no sentido
do Sul), fubá e farinha fermentada antes da torrefação definitiva, carne de porco
preferida à de boi indicam a presença de paulistas ou de seus descendentes. Como
raiz de todas estas vergônteas aparece a falta de sal, que impedia o
desenvolvimento rápido do gado vacum e ainda hoje não tempera o angu nem a
canjica. O porco, apesar de enorme consumo interno, tornou-se mais tarde gênero
de exportação, em toucinho e em pé.
Para o terreno acidentado provavam melhor os muares, mais sóbrios, mais
resistentes, de passo mais seguro, importados de além Uruguai. A viagem, não
partida como ao Norte, arrastava-se vagarosamente quase de sol a sol. As
cavalgaduras eram ferradas; nos caminhos mais freqüentados, junto às vendas que
forneciam milho, havia ferradores, e seus serviços reclamavam a cada instante os
terríveis caldeirões.
O ouro, passado o alborôto primitivo, quase ocupava faiscadores. A mineração
de ferro, aprendida de africanos, segundo informa Eschwege pouco deu de si pelo
atraso dos processos e sobretudo pela ausência de lenha, devastada cruelmente. A
agricultura, além de cereais comuns, encontrou a aplicação rendosa no algodão: o
de Minas-Novas procurava-se muito pela excelente qualidade. A cultura do café
começou relativamente tarde, depois de verificada a superioridade das regiões
serranas sobre as de beira-mar, nas proximidades do Rio, e desde o começo
revestiu os caracteres que conservou até o fim.
Perguntou Augusto de Saint-Hilaire a um seu compatriota, conhecedor da
localidade, em que os fazendeiros gastavam o dinheiro: «Como vê, respondeu-lhe,
não é em construir belas casas nem em mobiliá-las. Comem arroz e feijão; muito
pouco lhes custa também o vestuário, tão pouco dispendem na educação de seus
filhos, que se rebolcam na ignorância; são de todo estranhos aos prazeres da
sociedade; mas é o café que lhes dá dinheiro, não se pode apanhar café senão com
negros; é pois em comprar negros que gastam todos os seus rendimentos, e o
aumento de sua fortuna serve muito mais para satisfazer-lhes a vaidade que para
aumentar-lhes os gozos. Não têm luxos de habitação, nada apregoa sua riqueza.
Mas é impossível que se ignore nas cercanias que têm tantos escravos, tantos pés
de café; empertigam-se, comprazem-se consigo mesmo e vivem satisfeitos, não se
distinguindo realmente dos pobres senão por uma nomeada que se estende a
alguns tiros de espingarda de sua casa».
Esta instalação sumária e pobre apareceria nos lugares recentemente desbravados;
nos de ocupação mais antiga notava-se espetáculo bem diferente. «Às fazendas
apartadas falece todo o auxílio da grande sociedade, escreve Martius, entre Vila-
Rica e a demarcação diamantina; cada fazendeiro rico é por isso obrigado a
preparar os escravos para todas as necessidades da sua casa. Assim comumente
acham-se numa casa todos os oficiais e a aviação para eles, como sapateiros,
alfaiates, tecelões, serralheiros, ferreiros, pedreiros, oleiros, caçadores, mineiros,
agricultores... À frente dos negócios está um feitor, mulato ou negro de confiança, e
determina-se a ordem do dia como num convento. O dono faz ao mesmo tempo de
regedor, juiz e médico em sua propriedade. Muitas vezes é um eclesiástico ou vem
um clérigo da vizinhança celebrar em sua capela particular».
Como alguns frades figuraram nas primeiras desordens, a metrópole proibiu
severamente a fundação de conventos nas três capitanias auríferas e, caso raro,
nunca variou a tal respeito. Em tanto maior número apareceram os clérigos dos
hábito de S. Pedro, a princípio importados, ordenados mais tarde no ribeirão do
Carmo, depois de criada a diocese de Mariana sob d. João V, por Benedito XIV.
«Desde a nomeação do bispo de Mariana, d. Joaquim Borges de Figueiroa (1782),
se tem conferido ordem a um sem número de sujeitos, sem necessidade e sem
escolha. Tem-se visto alguns que, tendo aprendido ofícios mecânicos e servido de
soldados pedestres, se acham hoje feitos sacerdotes. Tendo o doutor Francisco
Xavier da Rua, governador que foi do bispado com procuração do dito bispo,
ordenado os sacerdotes que eram precisos, não foi bastante para que o Dr. José
Justino de Oliveira Gondim, que lhe sucedeu, deixasse de ordenar em menos de
três anos cento e um pretendentes, dispensando sem necessidade em mulatismos e
ilegitimidades. O Dr. Inácio Correia de Sá, que sucedeu a este José Justino no
governo do bispado, ordenou oitenta e quatro pretendentes em menos de sete
meses e entre eles um que era devedor à fazenda real». Estas facilidades
começaram a desaparecer no correr do século XIX.
Junte-se a tal fartura de sacerdotes a abundância de irmandades, o gosto geral pela
música, a proximidade dos povoados nos distritos em que primeiro se extraiu o
metal amarelo, os numerosos vadios sustentados pela hospitalidade e indiferença
indígenas, a falta de divertimentos públicos e se compreenderá a freqüência das
festas religiosas. Sobressaíam principalmente as procissões pelo grande luxo, pelo
número de figuras simbólicas, por um certo aparato teatral e jogralesco. No extremo
Goiás, em Traíras, Pohl assistiu a uma festa de Santa Efigênia, padroeira dos
negros, feita com todas estas visualidades: imperador, imperatriz, tiros de roqueira,
dutos aos imperantes, cavalhadas, lanças, leilão, etc.
O mineiro e o paulista diferiam bastante de aspecto. «O mineiro em geral é esbelto
e magro, de peito estreito, pescoço comprido, rosto um tanto alongado, olhos
negros e vivos, cabelo preto na cabeça e no peito; tem por natureza um nobre
orgulho e no exterior um modo brando, afável e inteligente, é sóbrio e parece gostar
de uma vida cavalheiresca, assegura Martius. Em todas estas feições assemelha-se
mais ao árdego pernambucano que ao paulista pesadão... Seu vestuário nacional
difere do paulista. Em geral usa jaqueta curta, de algodão ou de manchéster preto,
colete branco de botões de ouro, calça de veludo ou de manchéster, longas botas
de couro branco, presas acima do joelho por fivelas; um chapéu de feltro de abas
largas abriga-o do sol; a espada e não raro a espingarda são com o guarda-chuva
seus companheiros inseparáveis, desde que sai de casa. As viagens, mesmo as
mais breves, são feitas em mulas. Os estribos e as rédeas são de prata e do mesmo
metal o cabo do facão que enfia na bota abaixo do joelho. Nestas jornadas as
mulheres são carregadas em liteiras por negros ou bestas, ou sentam-se, vestidas
de longa montaria azul com chapéu redondo, em uma cadeirinha presa à mula».
A pequena estatura do paulista, o cabelo corrido, a face pálida, os olhinhos
penetrantes revelavam a procedência americana, no entender de Eschwege, que
acrescenta em desacordo com Martius: «Sua coragem, sua impavidez no perigo,
sua agilidade e espírito de iniciativa, sua repugnância a canseiras, sua sede de
vingança, patenteiam a procedência selvagem pelo lado materno, assim como sua
finura e a vivacidade de seu espírito denunciam a ascendência portuguesa pelo lado
paterno».
De resto, chamando pesadão ao paulista, Martius parece referir-se apenas ao
aspecto físico, pois antes escrevera: «O paulista goza em todo o Brasil da fama de
grande franqueza, impavidez e amor romanesco às aventuras e perigos. Associa a
isto um temperamento apaixonado, que o leva à cólera e à vingança, e seu orgulho
e inflexibilidade são temidos pelos vizinhos... Muitos paulistas se conservaram sem
mescla com os índios; os mamelucos, conforme os graus da mescla, têm a pele
quase cor de café, amarela ou quase branca. Traem a mistura indiana antes de tudo
a cara larga, com maçãs salientes, olhos pretos e não grandes e certa incerteza de
olhar. A estatura elevada e ao mesmo tempo larga, feições fortes, sentimento de
liberdade e desassombro, olhos brunos, ou raramente azuis, cheios de fogo e
afoiteza, cabelo cheio, preto e liso, musculatura reforçada, decisão e rapidez no
movimentos são, aliás, os principais característicos na fisionomia dos paulistas. Em
geral pode-se atribuir-lhes um caráter melancólico, misturado com alguma coisa de
colérico... Em parte alguma do Brasil há tantos coléricos e histéricos como aqui».
Escreve ainda o mesmo viajante:
Em S. Paulo, homens e mulheres viajam sempre a cavalo ou em mulas; muitas
vezes o homem leva uma mulher na garupa. Os cavaleiros usam de um chapéu de
feltro pardo de abas largas, um poncho azul, comprido e muito largo, em cujo meio
uma abertura para a cabeça; jaqueta e calças de algodão escuro, botas
compridas por tingir, apertadas no joelho por uma correia e um fivelão; uma longa
faca de cabo de prata, metida na bota ou presa à cinta, serve para a comida e
outros misteres. As mulheres usam longos sobretudos e chapéus redondos.
Segundo um provérbio corrente eram dignos de apreço na Bahia eles não elas, em
Pernambuco elas não eles, em S. Paulo elas e elas. Não raro ouve-se dizer nesta
província: se não fôssemos os primeiros que descobriram as minas de ouro,
seríamos ainda beneméritos da pátria graças à canjica e à rede, que primeiros
imitamos dos índios.
A canjica paulista, preparada pelo monjolo, preguiça ou negro velho, dominava nos
lugares de águas correntes, que dispensavam os pilões: nos sertões do Norte, onde
tal abundância de água não era comum, o mungusá que lhe corresponde se
usava nas casas grandes, com escravos para a pilação.
Aos paulistas atribui Martius a descoberta das propriedades medicinais das plantas
indígenas, que não podiam ter aprendido com os índios. Desde Pindamonhangaba
notavam-se papudos, e em geral os paulistas levaram o papo aos lugares onde
foram. «Muitas vezes o pescoço é todo ocupado pela grande intumescência;
entretanto, parecem considerar esta disformidade como beleza particular, pois não
raro vêem-se mulheres com enorme papeira à mostra, ornada de ouros e pratas,
sentadas em frente as suas casas, de cachimbo no queixo ou fiando algodão».
No princípio do século, começavam a despertar da hibernação devida às minas e
aos grandes êxodos por elas provocados em S. Paulo. A agricultura aos poucos se
reanimava; existiam engenhos de açúcar e de aguardente; duvidava-se ainda que o
clima permitisse a grande cultura do algodão e do café. A mais importante fonte de
receita consistia no comércio de trânsito, de Mato Grosso, de Goiás, de parte de
Minas e dos sertões do Sul. Já funcionava a famosa feira anual de Sorocaba.
Um paulista sem vivacidade poderia se chamar o goiano, ainda notável pela aversão
à vida de casado.
Segundo uma estatística de 1804, extratada na obra de Pohl, existiam 7.273
brancos, 15.585 mulatos, 7.992 pretos, 19.285 escravos, ao todo 50.135 habitantes.
Descontando das 24.371 pessoas do sexo feminino 7.868 escravas, sobre as quais
não apresenta informações, havia casadas 809 brancas, 1.668 mulatas, 575 pretas,
ao todo 3.052, e solteiras 2.663 brancas, 6.639 mulatas, 4.179 pretas, ao todo
13.481. Por esta sinopse vê-se também como o elemento africano era numeroso.
A gente de Cuiabá tinha certa semelhança com os mineiros no aspecto; dormitava,
porém, nela um nio sanguinário, talvez aprendido com os Guaicurus, que se
revelou estrepitosamente na era regencial, e com mais freqüência se tem
manifestado depois de proclamada a república. A gente do Paraguai e Guaporé era
fraca e doentia.
Nos campos gerais do Paraná viviam bastantes criadores, mas a verdadeira zona
pastoril do Sul ostentava-se nas terras rio-grandenses.
Exceto as faldas da serra geral ainda desertas, capões salteados e alguns trechos
ribeirinhos, o território era ocupado por pastagens suculentas, tão propícias à
propagação de bois como de cavalos, que dispensavam rações de sal. Abundava a
água perene; nunca passavam anos sem chuva; não havia as enredadas catingas
de outras regiões menos favorecidas. A proporção entre o gado cavalar e vacum era
muito maior do que ao Norte: basta dizer que havia lotes de baguais, cavalos
bravios e sem dono; os donos conheciam os cavalos pela marca, e matavam
éguas para extrair o couro. Para viagens mais longas não chegava uma
cavalgadura; era preciso levar uma cavalhada.
Como difere isto dos sertões nortistas, com poucos cavalos, todos bem conhecidos
e estudados, e o cavalo da sela, ensinado no passo, na estrada, na baralha, no
esquipado, e várias outras marchas de que mestres habilidosos, promovido
quase a parente da família!
Quando começou o povoamento já pululava esta criação, procedente das
destruídas missões jesuíticas; apossava-se cada um do que lhe convinha, e o uso
da bola e do laço, conhecido dos Charruas, dispensava as corridas violentas pelo
mato do sertão baiano-pernambucano. O valor do gado era até certo ponto
negativo; sobejava para a população e não havia para onde exportá-lo; consumi-lo
sem parcimônia parecia ato de prudência, pois mais facilmente se amansava e os
pastos não se esgotariam; os trabalhos de rodeio, únicos reclamados quando a
situação se regularizou, eram antes um divertimento que uma canseira.
«Toda a guerra era contra as vitelas», informa Aires de Casal, «e de ordinário uma
não chegava para o jantar de dois camaradas, porque acontecendo quererem
ambos a língua, tinham por mais acertado matar segunda do que repartir a da
primeira. Havia homem que matava uma rês pela manhã para lhe comer o rim
assado; e para não ter o incômodo de carregar uma posta de carne para jantar,
onde quer que pousava fazia o mesmo àquela que melhor lhe enchia o olho. Não
havia banquete em que não aparecesse um prato de vitelinha recém-nascida».
Aos poucos, a gente se desacostumou do sal, da farinha (comer do arremesso no
Pará) e de qualquer conduto. A escassez de lenha obrigava a comer a carne quase
crua, apenas sapecada no lume produzido por dejeções animais ou gravetos, e
comida quase sempre sem mastigar. Ao mate, beberagem primeiro descoberta nos
sertões de Guairá e depois propagada pelos jesuítas, atribui-se a atenuação dos
males que deviam resultar desta dieta.
A superfície ligeiramente ondulada, o descampado quase onipresente, a facilidade
de alimentação, a abundância de cavalgaduras convidavam à locomoção. Viajava-
se principalmente no verão, quando raras vezes chovia, os rios levavam pouca água
e aumentava o número de vaus; a importância destes em capitania onde não havia
pontes manifesta-se nos passos sem conta que a cada instante se encontram
designando localidades. Serviam-se às vezes de pelotas, canoas frágeis feitas de
pele. De passagem fique notado que também aqui houve uma época do couro.
Dormia-se ao relento: os aperos do animal serviam de leito. Estendiam por terra
grande peça chamada carona, o lombilho substituía o travesseiro, sobre a carona
punham o pelego e por cima de tudo deitavam-se embrulhados no poncho e de
cabeça descoberta.
Avigorou-se a tendência ao nomadismo com a circunstância de passar por ali a
fronteira, uma fronteira disputadíssima, que qualquer dos confinantes ambicionava
estender, e de entre ambos meterem-se os campos neutrais, em que nenhum tinha
direito de penetrar, por isso mesmo violados a cada instante, máxime da parte do
Rio Grande. Os combates regulares não subiram a muitos, mas as surpresas, as
arreatas, os encontros singulares, as incursões de contrabandistas constituíam fato
quotidiano. Forçosamente os rio-grandenses tornaram-se aventureiros e soldados;
por militares tinham atenção; a Saint-Hilaire deram o título de coronel. A quem
não montava bem ou não sabia laçar de cavalo xingavam de baiano ou maturango.
Este desbarato semibárbaro modificou-se graças ao aumento da população em
parte, em parte graças às secas do Norte. O Ceará não pôde mais fornecer a carne
a que acostumara parte da gente do litoral e experimentou-se o charque do Rio
Grande; diz-se que cearenses concorreram para a fundação de S. Francisco de
Paula, mais tarde Pelotas. Abriu-se assim uma fonte de riqueza, o gado cresceu de
valor e as estâncias, também aqui estabelecidas geralmente nas eminências,
começaram a ter alguma organização. Com as charqueadas foram introduzidos os
negros, que chegaram a muitas dezenas de mil. Algumas estâncias rendiam
milhares de cruzados, esbanjados no jogo e nas apostas.
Na Bahia, por 1803, cerca de quarenta navios, de duzentas e cinqüenta toneladas
cada um, empregavam-se no comércio do charque do Rio Grande, que mal
completavam a viagem dentro de dois anos. Levavam da Bahia aguardente, açúcar,
louça, mercadorias européias, principalmente inglesas e alemãs, que passavam por
prata de contrabando em Maldonado e Montevidéu. Durante este tempo as
tripulações empregavam-se em carregar couro e carne seca. Os navios chegando à
Bahia vendiam o charque e retalho, a dois vinténs a libra. Dispondo da carga por
este modo em vez de desembarcá-la, detinham-se no porto cinco meses e até mais,
de modo que, observa Lindley, no tempo consumido por uma viagem podiam ser
feitas três.
A agricultura nunca ficou de todo descurada. A produção do trigo atingiu a milhares
de alqueires; cultivaram outros cereais, a própria mandioca. Aos inconvenientes da
proximidade do gado solto obviava-se abrindo valados, fazendo sebes vivas de
sabugueiro e cactos, levantando cercas de cabeças com chifres. Entretanto, a faixa
agrícola ocupava uma área insignificante, que se dilatou depois da chegada de
imigrantes alemães. A decadência na lavoura do trigo, atribuída a certas medidas
anti-econômicas tomados pelo governo central e à deterioração das sementes em
conseqüência da ferrugem, deve ter causas mais profundas, pois não foi ainda
possível reerguê-la.
Saint-Hilaire, que percorreu a região, pinta-nos o rio-grandense da campanha como
vivo, corado, em geral de cor branca, de estatura avantajada, sem curiosidade
intelectual, de maneiras agrestes, incrivelmente voraz e pouco sensível, senão
cruel... Falando de alvoroço todas as vezes que se carneava alguma rês, repara: «A
idéia de em pouco poder se fartar de carne é um dos motivos do prazer, mas não é
o único; o maior é matar e vaca e espedaçá-la, independente de toda a esperança
de poder satisfazer logo a sua gula. Entretanto, cumpre confessá-lo, esta paixão é
uma das que dominam os habitantes da capitania do Rio Grande».
Ao mesmo autor deve-se uma observação que explica uma porção de fatos
decorridos desde a regência. Os mineiros, afirma, não se apegam ao seu país. Com
efeito, nem um hábito particular ali os retém, e não lhes custa acharem outro
melhor. Acresce que a inteligência, que lhes é natural, garante-lhes por toda a parte
meios fáceis de subsistirem. Os habitantes desta capitania, ao contrário, nunca
saem de sua terra, porque sabem que alhures seriam obrigados a renunciar a
andarem sempre a cavalo e em parte alguma achariam carne em tamanha
abundância.
Na formação do rio-grandense entraram sobretudo açorianos, nortistas,
principalmente de S. Paulo, e não poucos espanhóis imigrados ou incorporados.
Sobretudo na fronteira meridional deu-se a penetração das duas línguas. Havia
poucos mulatos. Notava-se a certos respeitos um quê de mocidade fogosa ausente
das outras capitanias. O combate contra seres animados difere muito nos efeitos da
luta travada contra as massas da vegetação ou contra as inclementes forças
cósmicas, como ao Norte.
À beira-mar pobres pescadores arrastavam existência miserável; as armações de
baleias davam trabalho durante uma estação apenas e apenas em poucos pontos; a
pescaria feita em maior escala, como em Porto Seguro e alhures, não dispensava a
importação4 entre as espécies de maior consumo. O contrabando universalizado
zombava de todas as medidas de repressão.
Os proprietários rurais, possuindo melhores aviamentos, casas mais espaçosas e
mobílias menos sumárias, prosseguiam na lavoura aleatória de drogas de luxo para
o estrangeiro, esbanjando as riquezas naturais, indiferentes às culturas dos gêneros
de primeira necessidade e à formação de mercados internos. Vítima desta
latronicultura, a escravidão africana condenava-a por sua vez à imobilidade e ao
recuo. As crises agrícolas repetiam-se; as valorizações disfarçavam sem extinguir o
vício congênito.
Os antigos povoados, assentes, como Igaraçu e Porto Calvo, nos limites da
cabotagem fluvial, definharam à medida que as embarcações cresceram de calado.
A prosperidade mercantil pedia o contacto do oceano. Os centros de maior
movimento eram São Luís do Maranhão, Recife, Bahia e Rio.
Nas cidades costeiras o pobre índio sumia-se ante o europeu e o negro com seus
descendentes puros ou mesclados. o preconceito de cor agonizava no exclusivismo
dos corpos armados, como o dos Henriques, composto só de pretos, nas confrarias,
de que algumas só admitiam pretos, pardos ou brancos, na especialização de certos
padroeiros, como a Senhora do Rosário, São Benedito, São Gonçalo Garcia. A
impedir ou sequer minorar a mestiçagem não chegava seu alento; era antes uma
tradição meio delida do que uma força viva.
O serviço doméstico tocava aos escravos, sempre em número excessivo, pois vivia-
se com pouco, e graças à criação miúda, aos mariscos abundantes, ao peixe
barato, aos engenhosos e múltiplos quitutes, grassavam a prodigalidade e a
imprevidência da economia naturista. Alguns deles empregavam-se na faina dos
transportes por terra e por água; alguns aprendiam ofícios; outros, pagando jornais
convencionados com os donos, procuravam ocupações a seu gosto. Conversavam
às vezes em língua africana, constituíam grêmios secretos e praticavam feitiçarias.
Sua alegria nativa, seu otimismo persistente, sua sensualidade animal sofriam bem
o cativeiro.
Nunca ameaçaram a ordem de modo sério, e os carregadores davam certa
animação às ruas. «São mandados com cestos vazios e longas varas a procurar
emprego em benefícios de seus senhores, escreve John Luccok. Mercadorias
pesadas transportam-se ao ombro entre dois parceiros por meio destas varas, às
quais se passam umas alças, que levantam o fardo um pouco acima do solo. Se a
carga for muito grande para um parelha, forma-se um bando de quatro, de seis e até
mais, de que um, em geral o mais inteligente, é escolhido para dirigir o trabalho.
Este para promover a regularidade dos esforços, e especialmente uniformizar o
passo, entoa sempre um canto africano, de música breve e simples; no fim
respondem todos em coro estridente. O coro continua enquanto dura o trabalho, e
parece aliviar o peso e alegrar o coração».
Os mulatos, gente indócil, e rixenta, podiam ser contidos a intervalos por atos de
prepotência, mas reassumiam logo a rebeldia originária. Suas festas, menos
cordiais que as dos negros, não raro terminavam em desaguisados; dentre eles
saíam os assassinos e os capangas profissionais. Crescendo em número,
desconheceram, e afinal extinguiram as distinções de raça e foram bastantes fortes
para romper com as formas do convencionalismo vigente e viver como lhes pedia a
índole irrequieta. Para o nivelamento concorreu sobretudo a parte feminina, com
seus dengues e requebros lascivos. Spix e Martius ouviram cantar na Bahia:
Uma mulata bonita
não carece de rezar,
abasta o mimo que tem
para sua alma se salvar.
O convencionalismo oprimia a gente branca: funcionários pretensiosos vindos da
metrópole e abrangendo no mesmo desdém soberano a terra e os moradores,
negociantes grosseiros e pouco lisos nas transações, meros consignatários de seus
patrícios, que por sua vez não passavam de consignatários de ingleses, capitalistas
desconfiados, descendentes empobrecidos de pais ricos e perdulários, irmãos das
almas, os próprios mulatos, quando a multiplicidade dos cruzamentos disfarçava-
lhes a casta, em público moviam-se sorumbaticamente, como autômatos.
Toda a população parecia de língua atada, informa ainda Luccock; não havia
brinquedo de meninada, vivacidade de rapazes, gritaria ruidosa de gente mais
entrada em anos. «O primeiro grito geral que ouvi no Rio foi no aniversário da rainha
em 1810. Seguiu-se a um fogo queimado nesta ocasião e foi um viva abafado, não
frio, porém tímido; parecia perguntar se podia ser repetido».
De sua residência, no cruzamento da rua do Ouvidor com a da Quitanda, assistia a
uma cena, que descreve do seguinte modo: «Precisamente neste lugar, todos os
dias não santificados pela manhã, reuniam-se os solicitadores com os meirinhos
para tratar de negócios. A generalidade deles usava de velhos casacos pretos
surrados, alguns com bastantes remendos, e tão mal adaptados à altura e à forma
dos donos, que excitavam a suspeita de não terem sido estes os primeiros que os
possuiram; os coletes eram de cores mais alegres, com longos peitos bordados,
grandes golas e profundas algibeiras; os calções eram pretos e tão curtos que mal
chegavam aos lombos ou aos joelhos, onde se prendiam com fivelas quadradas de
diamantes falsos, as meias de algodão fiado em casa e enormes as fivelas dos
sapatos. As cabeças eram cobertas de cabeleiras empoadas e punham por cima
chapéus de bico, grandes e sebosos, em que usualmente colocavam um tope preto.
À esquerda traziam um espadagão muito velho e estragado. Era divertido observar
com que cerimônias minuciosas estes cavalheiros e seus subalternos dirigiam-se
uns a outros; com que ordem exata se curvavam e tiravam os sujos chapéus; com
que formas perversas e fria deliberação combinavam-se para esvaziar o bolso de
seus clientes».
A educação reduzia-se a expungir a vivacidade e a espontaneidade dos pupilos.
Meninos e meninas andavam nus em casa até a idade de cinco anos; nos cinco
anos seguintes usavam apenas de camisas. Se porém iam à igreja ou a alguma
visita, vestiam com todo o rigor da gente grande, com a diferença apenas das
dimensões. Poucos aprendiam as ler. Com a raridade dos livros exercitava-se a
leitura em manuscritos, o que explica a perda de tantos documentos preciosos.
Só os frades, a exemplo da gente de cor, obedeciam aos ditames do temperamento,
sem medo de escândalo e até procurando-o. «Um dos motivos da relaxação é
haverem muitos conventos e poucos religiosos, escrevia Fr. Caetano, bispo do Pará;
a causa para não poderem satisfazer a todas as observâncias brevemente degenera
em pretexto frívolo para se eximirem até das mais fáceis e ei-los ociosos, inúteis
absolutamente à igreja e ao estado». A tanto subiu sua desenvoltura que
dificilmente encontravam noviços nos últimos tempos. Das freiras e recolhidas não
se contavam iguais excessos.
Gozavam de prestígio os padres, os genuínos representantes da mentalidade até o
começo do segundo império, quando os substituiram no cenário bacharéis formados
pelas academias de S. Paulo e Olinda. As virtudes da sua vocação raros possuíam,
mas o caso de tão comum não causava estranheza. Alguns, rompendo com o
exclusivismo do latim, aprenderam francês e até inglês, cultivavam as ciências
naturais, esposavam as idéias dos enciclopedistas, entusiasmaram-se pelas
tragédias da revolução francesa, conheciam as teorias de Adam Smith.
Entre eles contavam-se pedreiros livres, que existiam em pequeno número,
oficiais portugueses e brasileiros viajados no estrangeiro, e não se reuniam ainda
em lojas. A população, que aliás não podia conhecê-los, pois ninguém se animava a
apregoar-se como tal, votava-lhes um terror louco; circulavam notícias pavorosas de
suas abominações sacrílegas, entre elas e a de se aprazerem em apunhalar
crucifixos. Apesar de sua exiguidade ou por causa desta, dispunham de certa
influência e conseguiram dar escapula ao inglês Thomas Lindley, preso na Bahia
por contrabandista.
«Os principais divertimentos dos pracianos (citizens) são as festas dos diferentes
santos, profissões de freiras, funerais suntuosos, a semana santa, etc., celebrados
rotativamente, com grandes cerimônias, músicas e procissões freqüentes, informa
este viajante. Mal passa um dia em que não ocorra uma ou outra destas festas, e
assim se apresenta um círculo de oportunidade para unir a devoção e o prazer, que
é vivamente abraçado, em particular pela mulher.
Em grandes ocasiões destas, depois de virem da igreja, visitam-se uns a outros e
saboreiam um jantar mais farto que de costume, durante e passado o qual bebem
quantidades desmedidas de vinho. Quando alcançam uma temperatura
extraordinária introduz-se o violino ou a guitarra, começa o canto, logo seguido da
excitante dança negra, mistura de danças da África e dos fandangos de Espanha e
Portugal, que consiste em um indivíduo de cada sexo dançar ao toque monótono do
instrumento, sempre no mesmo compasso, quase sem mover as pernas, mas com
todos os movimentos licenciosos do corpo, juntado-se durante a dança em contacto
estranhamente imodesto. Os espectadores, acompanhando a música de um coro
improvisado e dando palmas, saboreiam a cena com um gozo indescritível».
As mulheres poucas vezes saíam a público e iam às missas de madrugada;
algumas serviam-se de cadeirinhas, carregadas por negros de bela estampa e rica
libré; carruagens pode-se dizer não havia. A maior parte do tempo levavam em seus
aposentos, quase em mangas de camisas, sem meias e até sem tamancos, ouvindo
das mucamas histórias de carochinha ou bisbilhotices frescas, penteando o cabelo,
embevecidas nos cafunés. Bordavam, faziam rendas ou doces, cantarolavam
modinhas sentimentais, comunicavam com as vizinhas pelos quintais; entretinham-
se com quitandeiras e beatas, ou abrigadas por uma rótula discreta procuravam
saber o que havia na rua. As moças solteiras engordavam, quando se fazia esperar
muito o dia do casamento, felizes as que encontravam «casa de Gonçalo, em que a
galinha canta mais que o galo».
Das fluminenses, diz Luccock que seus ornatos produziam um efeito agradável, e
molduravam os encantos de uma face redonda, de feições regulares, olhos negros,
vivos e curiosos, fronte lisa e aberta, boca expressiva de simplicidade e bom gênio,
ocupada por uma fieira de dentes brancos e iguais, unidos a um rosto sofrivelmente
bonito, um ar risonho e um modo alegre, franco e sem malícias.
Tal, acrescenta, é a aparência comum de uma moça de cerca de treze ou quatorze
anos. Aos dezoitos a natureza atingiu a maturidade completa na brasileira. Alguns
anos mais tarde torna-se corpulenta e até pesadona; adquire uma grande giba nas
espáduas, e anda com um passo desgracioso e cambaleante. Começa a decair,
perde o bom humor da fisionomia, e substitui-o por uma carranca; olhar e boca
exprimem ambos que se acostumou a exprimir paixões vingativas e violentas, as
faces ficam privadas de frescura e de cor, e aos vinte e cinco anos ou trinta
transforma-se numa velha perfeitamente enrugada.
Os homens jogavam, freqüentavam cafés, iam às casas de pasto, palestravam
sobre assuntos muito limitados, quase sempre vida alheia. Os acontecimentos mais
comezinhos deformavam-se em intermináveis comentários maliciosos. Abundavam
as alcunhas. Mesmo a morte se desrespeitava. Se morria alguém com fama de
santo, se aparecia algum cadáver incorrupto, estabelecia-se um reboliço na
população e a procura de relíquias assumia as mais indiscretas formas. Se ao
contrário corria que a alma se perdera, corriam logo boatos prodigiosos,
assombravam-se as casas e sentia-se a proximidade das trevas exteriores onde
choro e ranger de dentes. Ainda hoje se nota isto no interior.
No Rio, e o mesmo se deveria com pouca diferença notar nas outras cidades
marítimas, a maioria das casas era térrea. Na frente havia uma sala assoalhada de
bom tamanho; atrás ficavam as alcovas, a cozinha, o quintal. Embaixo dos poucos
sobrados existiam geralmente vendas. A família se reunia na varanda no fundo, as
mulheres sentadas em esteiras, os homens encostados a qualquer coisa, ou
andando de uma parte para outra. jantavam numa mesa velha estendida sobre
dois cavaletes, cercada de bancos de pau e às vezes uma ou duas cadeiras. A
principal refeição era ao meio-dia, e então o dono, a dona da casa, os filhos
sentavam-se todos a roda; mais comumente, porém, acocoravam-se no chão. Os
alimentos molhados vinham em terrinas ou cuias; os alimentos secos em cestas;
comia-se em pratinhos de Lisboa. os homens serviam-se de faca; mulheres e
meninos comiam com a mão.
Quando um cavalheiro fazia qualquer visita, se não era íntimo da casa, ia de ponto
em branco, chapéu armado, fivela nos sapatos e nos joelhos, espada à cinta,
segundo Luccock. Ao chegar batia palmas para chamar a atenção, e soltava um
espécie de som sibilante, emitido entre os dentes e a ponta da língua. Acudia uma
criada que de modo áspero e tom fanhoso perguntava quem era e ia levar o recado
ao patrão. Se o visitante era algum amigo ou não reclamava cerimônias, aparecia
logo o dono da casa, levava-o para a sala, protestando alto o prazer com que o
recebia, fazendo-lhe discursos cheios de cumprimentos, acompanhado de
reverências, e antes de entrar em negócio, se disto se tratava, pedia-lhe muitas
desculpas pela sem-cerimônia da recepção. Se o visitante era de cerimônia, uma
criada levava-o para a sala, donde ao entrar via muitas pessoas que estavam
sairem por outra porta. Aqui esperava só, talvez meia hora, até o cavalheiro
aparecer numa espécie de trajo de meio rigor. Ambos se inclinam profundamente a
distância; depois de haver mostrado suficiente perícia nesta ciência, ganhando
tempo para apurar a posição e as pretensões do outro, aproximavam-se, com
dignidade e respeito correspondente se desiguais; com familiaridade se supostos
proximamente iguais. Tratava-se e despachava-se o negócio sem demora. Pede-se
ao estranho que considere a casa como sua, nota Pohl; se mostra agradar-se de
qualquer coisa, exige o costume que lhe seja oferecida, pedindo-se que leve aquela
insignificância.
As ruas eram estreitas, sem calçamento, sem iluminação ou iluminadas a azeite de
peixe. A água e os esgotos ficavam entregues à iniciativa particular. Enterravam-se
os cadáveres nas igrejas. a pouca população explica a ausência de epidemias.
Da higiene pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios do sol e os diligentes
urubus. Constituíam exceção notória o passeio público e o aqueduto do Rio.
Depois de brutalmente extintas as primeiras tentativas industriais, ficaram nas
cidades apenas mecânicos que trabalhavam por encomenda e a quem se pagava
o feitio. «Quando um oficial ganhava algumas patacas folgava até acabar de
comê-las, observa Saint-Hilaire. Apenas possuía a ferramenta mais necessária, e
quase nunca andava provido das matérias que devia feitiar. Assim tinha-se de
fornecer couro ao sapateiro, linha ao alfaiate, madeira ao marceneiro; adiantava-se
dinheiro para comprarem tais objetos, mas quase sempre gastavam o dinheiro e a
obra não se fazia ou se fazia passado um tempo considerável. Quem tinha
alguma coisa a encomendar precisava de fazê-lo com larga antecedência.
Suponhamos por exemplo que fosse uma obra de marcenaria, era necessário
primeiro empregar amigos para arranjarem no campo a madeira precisa; tinha-se
depois de mandar cem vezes à casa do oficial, ameaçá-lo, e às vezes em definitivo
nada conseguir. Perguntava a um homem honrado de S. Paulo como fazia quando
precisava de um par de sapatos. Encomendo-o, disse-me, a vários sapateiros ao
mesmo tempo e entre eles acha-se ordinariamente um que, premido pela falta de
dinheiro, se resigna a fazê-lo».
Os oficiais do Rio tinham a pretensão de possuir grandes segredos, mas ignoravam
as coisas mais simples, narra Luccock. Tendo perdido uma chave, foi à procura e
afinal encontrou um operário que o tirasse do aperto. «Deteve-me longo tempo, mas
em compensação apareceu-me de ponto em branco, chapéu armado, de fivelas nos
sapatos e nos joelhos e correspondentes parafernais. À saída remanchou ainda à
espera de algum negro que lhe carregasse o martelo, o escopro e outro instrumento
pequeno. Sugeri-lhe que eram leves, e propus eu próprio carregar parte ou todos;
mas isto teria sido solecismo prático tamanho como usar ele das próprias mãos. O
cavalheiro esperou pacientemente até aparecer um negro, fez então seu trato e
marchou com a devida solenidade acompanhado de seu servo temporário.
Despachou-se depressa, arrombando a fechadura em vez de arrancá-la; então o
figurão, fazendo-me uma profunda mesura, partiu com seu acólito».
Os mecânicos nunca formaram grêmios profissionais à maneira da Europa: eram
para isso muito poucos, e se nas cidades podiam viver de um ofício, em lugares
de população menos densa precisavam de sete instrumentos para ganhar a
subsistência. Mesmo nas cidades faziam-lhes concorrência os oficiais escravos.
A falta de grêmios notava-se nas outras classes. Continuavam as históricas pessoas
morais, mas sua ação, enfraquecida pela vastidão do território, acabara de
definhar desde que o absolutismo nivelador desatendeu a seus privilégios. Se
excetuarmos algumas irmandades e associações de beneficência como as casas de
misericórdia, sempre beneméritas e sempre vivazes, as manifestações coletivas
eram sempre passageiras: mutirão, pescarias, vaquejadas, feiras, novenas. Entre o
estado e a família não se interpunham coordenadores de energia, formadores de
tradição, e não havia progressos definitivos. Um indivíduo podia tentar uma empresa
e levá-la a bom êxito; com a sua ausência ou com a sua morte perdia-se todo o
trabalho, até vir outro continuá-lo passados anos, para afinal colher o mesmo
resultado efêmero.
Vida social não existia, porque não havia sociedade; questões blicas tão pouco
interessavam e mesmo não se conheciam: quando muito sabem se paz ou
guerra, assegura Lindley. E' mesmo duvidoso se sentiam, não uma consciência
nacional, mas ao menos capitanial, embora usassem tratar-se de patrício e paisano.
Um ou outro leitor de livro estrangeiro podia falar na possibilidade da independência
futura, principalmente depois de fundada a república dos Estado Unidos da América
do Norte e divulgada a fraqueza lastimável de Portugal.
Não se inquiria, porém, o meio de conseguir tal independência vagamente
conhecida, tão avessa a índole do povo a questões práticas e concretas. Preferiam
divagar sobre o que se faria depois de conquistá-la por um modo qualquer, por uma
série de sucessos imprevistos, como afinal sucedeu. Sempre a mesma mandriice
intelectual de Bequimão e dos Mascates!
Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da
religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo
pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentindo pelo português
aversão ou desprezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular
-eis em suma ao que se reduziu a obra de três séculos.
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