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AMOR DE PERDIÇÃO
(Memórias Duma Família)
Camilo Castelo Branco
AO
ILMO. E EXMO. SR.
ANTÔNIO MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELO
DEDICA
O AUTOR
Ilmo. e Exmo. Sr.
de pensar muita gente que V. Exa. não valor algum a este livro, que a minha gratidão lhe
dedica. porque muita gente está persuadida que ministros do Estado não lêem novelas. É um
colega de V. Exa. discorrer no parlamento acerca de caminhos de ferro - Com tanto engenho o
fazia, de tantas flores matizara aquela matéria. que me deleitou ouvi-lo. Na noite desse dia,
encontrei o colega de V. Exa. a ler "Fanny", aquela "Fanny" que sabia tanto de caminhos de ferro
como eu.
Que V. Exa. tem romances na sua biblioteca, é convicção minha. Que lá tem alguns, que não leu,
porque o tempo lhe falece e outros porque não merecem tempo, também o creio. V. Exa., no
lote dos segundos, um lugar a este livro. e terá assim V. Exa. significado que o recebe e aprecia,
por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado de V. Exa..
Na cadeia da Relação do Porto,
aos 24 de setembro de 1861.
CAMILO CAS'TELO BRANCO.
INTRODUÇÃO
Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do
Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:
Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua
prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho
e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos
castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão
pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias.
A margem esquerda deste assento está escrito:
Foi para a Índia em 17 de março de 1807.
Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um
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moço de dezoito anos lhe há de fazer dó.
Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração
que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito
anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos braços de mãe, dos
beijos das irmãs para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor
da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Dezoito anos!... E
degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade,
nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!
O leitor decerto se compungiria; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a
história daqueles dezoito anos, choraria!
Amou, perdeu-se, e morreu amando.
É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem
formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da
divina misericórdia?! Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não
choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade,
irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de
inocentes desejos?!
Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me causaram
aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo
tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo vereão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora
melhor abrir mão desde de uma história que me pode acarear enojos dos frios
julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de
homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.
I
Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos
mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de
Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida
Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro
Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem notável por sua jerarquia, como
por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte de Guerra.
Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano.
Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos:
Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a
uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta
mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam
também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos da
Universidade o epíteto de "brocas", com que ainda hoje os seus descendentes em Vila-
Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam
os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele
digeria na sua terra.
Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelente flautista; foi a
primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se sustentou dois anos em Coimbra, durante
os quais seu pai lhe suspendeu as mesadas, porque os rendimentos da casa não
bastavam a livrar outro filho de um crime de morte (1).
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Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço,
iniciação banal dos que aspiravam à carreira da magistratura. Fernão Botelho, pai do
bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe
teve a cabeça em risco, na tentativa regicida de 1758. O provinciano saiu das masmorras
da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do conde de Oeiras, porque
tomara parte na prova que este fizera do primor de sua geneologia sobre a dos Pintos
Coelhos, do Bomjardim do Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela recusa que
o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho.
As artes como que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D. Maria I e Pedro
III o as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a rainha com as suas facécias, e por
ventura com os trejeitos de que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos
Botelho freqüentava o paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão. com a
qual o aspirante a juiz de fora se esqueceu de si, do futuro e do ministro da justiça, que,
muito rogado, fiara das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais.
Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço. não poetando como Luís de Camões
ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa provinciana, e captando a bem-
querença da rainha para amolecer as durezas da dama. Devia de ser, afinal, feliz "doutor
bexiga" - que assim era na corte conhecido - para se não desconcertar a discórdia em
que andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita
Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinqüenta anos se podia prezar de o
ser. E não tinha outro dote. se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros
generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da
mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente. mas de tal monta que os descendentes
do general frito se assinaram Caldeirões.
A dama do paço o foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da corte, das
pompas das câmaras reais. e dos amores de sua feição e malde, que imolou ao capricho
da rainha. Este desgostoso viver, porém, não empreceu que se reproduzissem em dois
filhos e três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas uma era
Maria, a segunda Ana e a última tinha o nome de sua mãe, e alguns traços de beleza
dela,
O Juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado banco, demorava em
Lisboa, na freguesia da Ajuda. em 1784. Neste ano é que nasceu Simão, o penúltimo dos
seus filhos. Conseguiu ele, sempre balanceado da fortuna,. transferência para Vila-Real,
sua ambição suprema.
A distância duma légua de Vila-Real estava a nobreza da vila esperando o seu
conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão da casa. A dos Correias de
Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as librés dos criados as mais surradas e
traçadas que figuravam na comitiva.
D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de
oiro, e disse:
- Ó Meneses, aquilo que é?
- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.
- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou dama do paço.
- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
- Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...
O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente.
Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para dar a mão à nora, que
apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro,
contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois
que os fidalgos de Vila-Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes
de entrar na avoenga liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade,
se não haveria risco em ir dentro daquela antigüidade. Fernão Botelho asseverou a sua
nora que a sua liteira não tinha ainda cem anos, e que os machos não excediam a trinta.
O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza - velha nobreza, que para ali
viera em tempo de D. Deniz, fundador da vila - fez que o mais novo do préstito, que ainda
vivia doze anos, me dissesse a mim: "Sabíamos que ela era dama da Senhora D.
Maria I; porém, da soberba com que nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria
rainha". Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou à Senhora de
Almudena. D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e
barata.
Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou os olhos pela
fachada do edifício, e disse de si para si: uma bonita vivenda para quem foi criada em
Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz".
Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser devorada das
ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os tetos estavam a desabar; que
as paredes não resistiriam ao inverno; que os preceitos de uniformidade conjugal não
obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos
reis,
Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e começou a fábrica dum
palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces: escreveu à rainha,
e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. As varandas das janelas foram a
última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um
testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D. Maria I.
Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita, porém, teimara
que no escudo se esquarteassem também as suas; mas era tarde, porque a obra tinha
vindo do escultor, e o magistrado não podia com segunda despesa, nem queria desgostar
seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita
vitoriosa (2)
O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes
da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha uma corte de
primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do
marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando ela o remirava com a
luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que o será estranha figura dizer que a
luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude.
Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente
encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros,
receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A
neta do general frígido no caldeirão sarrareno ria dos primos, que, por amor dela,
erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero, e cavaleavam
estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores da província não
desconheciam as graças hípicas do marquês de Marialva.
Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista que lhe trazia o espírito em
ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e conhecia Rita cada vez mais em
flor, e mais enfadada no trato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de
amor sem quebra entre o esposo disforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um lhe
mortificava a memória, e esse, com quanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser
o casamento de Vênus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricara
para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquele marido. Entre
si, dizia ele, que, erguido o u da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria
ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o alfares,
estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fora era entendido com muito superior
inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e das Ordenações do Reino.
Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os
seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado
provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Vila-Real, e duradoura
memória da sua soberba, formosura e graças de espírito. O marido também deixou
anedotas que ainda agora se repetem. Duas contarei somente para não enfadar.
Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar com ela a vaca,
para se não desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher à loja a vitela e a vaca,
dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem
um presente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos
meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escárnio um presente
de doces, que valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo
como ornato da bandeja, E assim é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando se dá um caso
análogo de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: "Aquele é
como o doutor Brocas".
Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da vida do provedor
em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e ameaçava o marido
de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra, Parece
que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa de uma antigüidade que principia
na aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas
vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correais de Mesquita, desprimorando-lhe as
cãs com o fato de ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta.
Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Viseu.
Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e freqüenta o segundo ano
jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As meninas são o
prazer e a vida toda do coração de sua mãe.
O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão,
temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a cada passo se ameaçado na vida,
porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos
perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e
provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e
diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o gênio de seu bisavô Paulo Botelho
Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.
Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de
férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe seu pai outro destino, D. Rita quer que
seu filho seja cadete de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e
justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete.
No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai
maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento.
Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer
forçar a viver monásticamente.
Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; belo homem
com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em gênio. Na plebe
de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna
eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão que
morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerência de sua mãe. O corregedor via
as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto dela e na aversão ao
filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e
a quem obedecia, se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que não andasse com
pessoas mecânicas.
Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um dos seus criados
tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas
vasilhas que estavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram
contra o criado; espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado de um fueiro
que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela
farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se
atrevia ao filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à
porta do magistrado.
Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que o prendesse à
sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada como mãe, mandou, por portas
travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse
o perdão do pai.
O corregedor quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e prometeu
fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas
vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade
postiça da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estúpido juiz.
II
Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia. Se
recordava os chibantes pormenores da derrota em que pusera trinta aguadeiros, o som
cavo das pancadas, a queda atordoada deste, o levantar-se daquele, ensangüentado, a
bordoada que abrangia três a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o
estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se nestas lembranças, como ainda não vi
nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os louros de cada uma, e
esmorece, afinal, estafado de espantar, quando não é de estafar, os ouvintes.
O acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais
prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a
façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em
grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por
pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da revolução francesa não tinham podido
fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto do mundo; mas os livros dos
enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte bebera a peçonha que saiu no sangue
de noventa e três, não eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela
guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam
pertencer à geração nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das
classes manufatureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado,
desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos tratados, estava
no ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes aliançados com a França.
Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam mais a
paixão da novidade que as doutrinas do raciocínio.
No ano anterior de 1800, saíra Antônio de Araújo de Azevedo, depois conde da Barca, a
negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potências
aliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada os dezesseis milhões que o diplomata
oferecia ao primeiro cônsul. Sem delongas, foi o território português infestado pelos
exércitos de Espanha e França. As nossas tropas, comandadas pelo duque de Lafões,
não chegaram a travar a luta desigual, porque a esse tempo Luís Pinto de Sousa, mais
tarde visconde de Balsemão, negociara ignominosa paz em Badajoz, com cedência de
Olivença à Espanha, exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de alguns
milhões à França.
Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles que odiavam o
aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com
Inglaterra. Entre os desta parcialidade, na convulsiva e irrequieta academia, era voto de
grande monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezesseis anos. Mirabeau,
Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e mártires do grande açougue,
eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão. Difamá-los na sua presença era
afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas à cara do difamador. O filho
do corregedor de Viseu defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de
sangue, para que a hidra dos tiranos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a
dava do Hércules popular.
Estes discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória de Saint-Just, afugentavam
da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido em mais racionais princípios
de liberdade. Simão Botelho tornou-se odioso aos condiscípulos, que, para se salvarem
pela infâmia, o delataram ao bispo-conde e ao reitor da Universidade.
Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos poucos ouvintes
que lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por analogia de bossas. O discurso ia no
mais acrisolado da idéia regicida, quando uma escolta de verdeais lhe aguou a
escandescência. Quis o orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os
braços musculosos da corte do reitor com quem as haviam. O jacobino, desarmado e
cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcere acadêmico, donde saiu seis
meses depois, a grandes instâncias dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita
Preciosa.
Perdido o ano letivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu-o da sua presença com
ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever que do coração. intercedeu
pelo filho e conseguiu sentá-lo à mesa comum.
No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As
companhias da relé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais
nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu
recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por fora aao repontar da alva. Aqueles
que assim o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o seqüestrava da
vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a
mesa.
D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela, ao fim de cinco
meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.
Simão Botelho amava. está uma palavra única, explicando o que parecia absurda
reforma aos dezessete anos.
Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente
bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para
amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-
o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como
paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo.
Enganam-se ambos. O amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação
do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o vôo fora do ninho, sempre
com os olhos fitos na ave-mãe, que a está de fronte próxima chamando: tanto sabe a
primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe.
Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor.
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo de litígios, em que
Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora isso, ainda no ano anterior dois
criados de Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte.
E, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e
sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte.
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses,
sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que
ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não
tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua,
lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio.
Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de
Teresa em coisas materiais da vida, como são um patrimônio!
Na spera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa
menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu
gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de
saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra
as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar, na impotência de socorrê-la.
As restantes horas daquela noite passou-as em raivas e projetos de vingança. Com o
amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança com os cálculos.
Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo
transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo
e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse febril. Simão, porém, entre mil projetos,
achara melhor o de ir para Coimbra, esperar notícias de Teresa, e vir a ocultar a Viseu
falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de
Teresa.
Descera o acadêmico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs, e beijar a o do pai,
que para esta hora reservara uma admoestração severa, a ponto de lhe asseverar que de
todo o abandonaria se ele caísse em novas extravagâncias. Quando metia o no
estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendeu-lhe a mão aberta como quem pede
esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel. Sobressaltou-se o moço; e, a poucos
passos distante de sua casa, leu estas linhas:
"Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa. Sofrerei tudo por amor de
ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no céu, sempre tua do coração, e
sempre leal. Parte para Coimbra. irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em
que nome hás de responder à tua pobre Teresa".
A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas aulas, em parte
nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe apenas as dos condiscípulos
sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no cárcere de seis meses, dando-
lhe alentos e recursos, que seu pai lhe não dava, e sua mãe escassamente supria.
Estudava com fervor, como quemdali formava as bases do futuro renome e da posição
por ele merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa. A ninguém confiava o seu
segredo, senão às cartas que enviava a Teresa, longas cartas em que folgava o espírito
da tarefa da ciência. A apaixonada menina escrevia-lhe a miúdo, e dizia que a ameaça
do convento fora mero terror de que não tinha medo, porque seu pai não podia viver
sem ela.
Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado em pontos difíceis das
matérias do primeiro ano, tal conta deu de si, que os lentes e os condiscípulos o
houveram como primeiro premiado.
A este tempo. Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no Porto, licenciou-se
para estudar na Universidade as matemáticas. Animou-o a notícia do reviramento que se
dera em seu irmão. Foi viver com ele; achou-o quieto. mas alheado numa idéia que o
tornava misantropo e intratável noutro gênero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa
da separação um desgraçado amor de Manuel Botelho a uma açoreana casada com um
acadêmico. A esposa apaixonada perdeu-se nas ilusões do cego amante. Deixou o
marido e fugiu com ele para Lisboa, e daí para Espanha. Em outro relanço desta narrativa
darei conta do remate deste episódio.
No s de fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de Tereza. No seguinte
capítulo se diz minuciosamente a peripécia que forçara a filha de Tadeu de Albuquerque a
escrever aquela carta de pungentíssima surpresa para o acadêmico, convertido aos
deveres, à honra, à sociedade e a Deus pelo amor.
III
O pai de Teresa não embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o ajustarem-se
os dois filhos em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro.
O magistrado mofava do rancor do seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a
reputação do magistrado. Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia
despicando; fingia-se invulnerável à detração; mas de dia para dia se lhe azedava a bílis;
e é de crer que, se o não contivessem considerações da família, sofreria menos,
desabafando pela boca dum bacamarte, arma da predileção dos Botelhos Correais de
Mesquita. Seria impossível o reconciliarem-se.
Rita, a filha mais nova, estava um dia na janela do quarto de Simão, e viu a vizinha rente
com os vidros e a testa apoiada nas mãos. Sabia Teresa que era aquela menina a mais
querida irmã de Simão, e a que mais semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua
artificial indiferença, e respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a mão um gesto e
sorrindo. A filha do corregedor sorriu também, mas fugiu logo da janela, porque sua mãe
tinha proibido às filhas de trocarem vistas com pessoa daquele casa.
No dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de
amizade, tornou Rita à janela, e viu Teresa com os olhos fitos na sua, como se a
estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo, afastando-se a um pouco do peitoril
das janelas; e assim, ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando.
Como a rua era estreita, podiam ouvir-se, falando baixo. Tereza, mais pelo movimento
dos lábios que por palavras, perguntou a Rita se era sua amiga. A menina respondeu com
um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidos instantes de se
verem repetiram-se sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas, ousaram
demorar-se em palestras a meia voz. Tereza falava de Simão, contava à menina de onze
anos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser nada sua irmã,
recomendando-lhe muito que não dissesse nada à sua família.
Numa dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi ouvida
de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor chamou Rita, e forçou-a pelo
terror a contar tudo que ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões
da esposa, que viera espavorida dos gritos, correu ao quarto de Simão, e viu ainda
Teresa à janela.
- Olé! - disse ele à pálida menina - Não tenha a confiança de pôr olhos em pessoa de
minha casa, Se quer casar, case com um sapateiro, que é um digno genro de seu pai.
Tereza não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada.
Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto, e Tadeu de Albuquerque
saísse a uma janela, a cólera do doutor redobrou, e a torrente das injúrias, longo tempo
represada, bateu no rosto do vizinho, que não ousou replicar-lhe.
Tadeu interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha de Domingos Botelho
estarem as duas meninas praticando inocentemente, por trejeitos, em coisas de sua
idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa, admoestando-a que não voltasse àquela
janela.
Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação no projeto de
casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho, de Castro-d'Aire, senhor de
casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor
do coração das mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a
filha ao esquecimento daquele pueril amor a Simão. Era máxima sua que o amor, aos
quinze anos, carece de consistência para 50breviver a uma ausência de seis meses.o
pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais
assisados pensadores, tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que
Tadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas
variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos
guia, a não ser esta: "Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando
alternadamente como se hão de desmentir umas às outras". Isto é o mais seguro; mas
não é infalível. está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á que as três da conta,
que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta aos quinze anos? Também o
penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda em causa
independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em
cada noite na sala, não provou o incenso doutros galãs, nem teve ainda uma hora de
comparar a imagem amada, desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos
olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que um coração para
cada homem, e uma mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa
teria em si as quatro mulheres da xima, se o vapor de quatro incensórios lhe
estonteasse o espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. E vamos ao conto.
Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de Albuquerque proferiu
palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que ele fez logo foi chamar
a Viseu o sobrinho de Castro-d'Aire, e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face
de Teresa, procedesse como convinha a um enamorado de feição, e mutuamente se
apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao casamento.
Por parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa, quanto o coração de
Teresa se congelou de terror e repugnância. O morgado de Castro-d'Aire, atribuindo a
frieza de sua prima a modéstia, inocência e acanhamento, lisonjeou-se do virginal
melindre daquela alma, e saboreou de antemão o prazer de uma lenta, mas segura
conquista. Verdade é que Baltazar nunca se explicara de modo que Teresa lhe desse
resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar
assim à melancólica menina:
- É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a ouvir-me?
- Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.
O desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções do fidalgo,
respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima. Ainda assim, quis ele no
momento persuadir-se que a boa vontade não poderia exprimir-se doutro modo, e
continuou:
- Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as nossas casas
se unam.
Teresa empalideceu, e baixou os olhos.
- Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! - prosseguiu Baltasar, rebatido pela
desfiguração de Teresa.
- Disse-me o que é impossível fazer-se - respondeu ela sem turvação - O primo engana-
se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em
ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.
- Quer dizer que me aborrece, prima Teresa? - atalhou, corrido, o morgado.
- Não, senhor: lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo não devo ser esposa
dum amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só minha...
- Muito bem... Posso eu saber - tornou com refalsado sorriso o primo - quem é que me
disputa o coração de minha prima?
- Que lucra em o saber?
- Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... E exato?
- É.
- E com tamanha paixão que desobedece a seu pai?
- Não desobedeço: o coração é mais forte que a submissa vontade duma filha.
Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu não disse ao primo
Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava.
- Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de falar!... Quem pensaria que os
seus dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras!...
- o são palavras, primo - retorquiu Teresa com gravidade - são sentimentos que
merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se eu lhe mentisse, ficaria mais bem vista
de meu primo?
- Não, prima Teresa; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo. Ora olhe: não
duvida declarar quem é o ditoso mortal da sua preferência?
- Que lhe faz saber isso?
- Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me ver vencido por
quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus olhos. Tem a bondade de me
dizer o seu segredo, como o diria a seu primo Baltasar, se o tivesse em conta de seu
amigo intimo?
- Nessa conta é que eu o não posso ter... - respondeu Teresa, sorrindo, e pausando,
como ele, as sílabas das palavras.
- Pois nem para amigo me quer?!
- O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em diante meu inimigo.
- Pelo contrário... - tornou ele com mal rebuçada ironia - muito pelo contrário... Eu lhe
provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com algum miserável indigno de
si.
- Casada!... - interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo a réplica deste modo:
- Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de aguadeiros, distinto
cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerados nas cadeias de Coimbra...
Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente,
lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lhe a esposa.
Ouvira Teresa o tom sarcástico daquelas palavras, e erguera-se respondendo com
altivez:
- Não tem mais que me diga, primo Baltasar?
- Tenho, prima; queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora que está falando
com o namorado infeliz: convença-se de que fala com o seu mais próximo parente, mais
sincero amigo, e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha
prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez conversava da janela com
o filho do corregedor. Não dei valor ao sucesso, e tomei-o como brincadeira própria da
sua idade. Como eu freqüentasse o meu último ano em Coimbra, dois anos, conheci
de sobra Simão Botelho. Quando voltei, e me contaram a sua afeição ao acadêmico,
pasmei da boa fé da priminha; depois entendi que a sua mesma inocência devia ser o seu
anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda fascinada pela
perversidade do seu vizinho Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a
ínfima vilanagem desta terra?! Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo
tal varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava
pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando à canalha a guerra aos
nobres e aos reis, e à religião de nossos país? A prima ignoraria isto porventura?
- Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que conheci Simão, o me
consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família, nem ouço falar mal dele.
- E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costume?
- Não sei, nem penso nisso - replicou com enfado Tereza.
- Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu hei de, enquanto
viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se
as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a
vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora
da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque.
- Então o primo quer me governar!? - atalhou ela com desabrida irritação.
- Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e eu serei
indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Teresa.
Baltasar Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do diálogo. Tadeu,
atônito da coragem da filha e ferido no coração e direitos paternais, correu ao quarto dela,
disposto a espancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicaria
muito a crise, sendo coisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira,
e meditou. Horas depois, chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé de si, em termos
serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casá-la com o primo;
porém, que ele sabia que a vontade de sua filha não era essa. Ajuntou que a não
violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor de seu pai,
se desse de coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvaIar na
sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele
considerava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento,
e a esperar que seu pai morresse, para depois ser desgraçada à sua vontade.
Teresa respondeu, chorando, que entraria num convento, se essa era a vontade de seu
pai; porém, que se não privasse ele de a ter em sua companhia nem a privasse a ela dos
seus afetos, por medo de que sua filha praticasse alguma ação indigna, ou lhe
desobedecesse no que era virtude obedecer.
Prometeu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pai.
Tadeu ouviu-a, e não lhe replicou.
IV
O coração de Teresa estava mentindo. Vão pedir sinceridade ao coração!
Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de
Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor,
desapego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do
seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que não,
e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de
astúcia ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha
que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se
atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros
na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de
que rezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua
distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.
Da carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas descritas, a crítica deduz
que a menina de Viseu contemporizava com o pai, pondo a mira no futuro, sem passar
pelo dissabor do convento, nem romper com o velho em manifesta desobediência. Na
narrativa que fez ao acadêmico omitiu ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que. a
ser transmitida, arrebataria de Coimbra o moço, em quem sobejavam brios e bravura para
mantê-los.
Mas não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho.
Parecia bonançoso ou de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em casamento.
Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro-d'Aire. A tranqüila menina dava
semanalmente estas boas novas a Simão, que, aliando às venturas do coração as
riquezas do espírito, estudava incessantemente, e desvelava as noites arquitetando o seu
edifício de futura glória.
Ao romper d'alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu pai
à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e encontrou o velho
na antecâmara a recebê-la com muito agrado, perguntando-lhe se ela se erguia de bons
humores para dar ao autor de seus dias um resto de velhice feliz. O silêncio de Teresa
era interrogador.
- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes
cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a
tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha
querida filha, que a violência dum pai é sempre amor. Amor tem sido a minha
condescendência e brandura para contigo. Outro teria subjugado a tua desobediência
com maus tratos, com os rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande
patrimônio. Eu, não. Esperei que o tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar
desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente coração.
Não te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão fizesse mal ao
zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que
ele respeitou o teu gênio, velando sempre a honra de te encontrar digna do seu amor.
Teresa não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava, que escassamente lhe
ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.
- Não me respondes, Teresa?! - tornou Tadeu, tomando-lhe cariciosamente as mãos.
- Que hei de eu responder-lhe, meu pai? - balbuciou ela.
- Dá-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que me restam?
- E será o pai feliz com o meu sacrifício?
- Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na
tua alma. Teu primo é um composto de todas as virtudes; nem a qualidade de ser um
gentil moço lhe falta, como se a riqueza, a ciência e as virtudes não bastassem a formar
um marido excelente.
- E ele quer-me. depois de eu me ter negado? - disse ela com amargura irônica.
- Se ele está apaixonado, filha!... e tem bastante confiança em si para crer que tu hás de
amá-lo muito!...
- E não será mais certo odiá-lo eu sempre?! Eu agora mesmo o abomino como nunca
pensei que se pudesse abominar! Meu pai... - continuou ela, chorando, com as mãos
erguidas - mate-me; mas não me force a casar com meu primo! É escusada a violência,
porque eu não caso!
Tadeu mudou de aspecto, e disse irado:
- Hás de casar! - Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás para
sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame
há de aqui pôr pé nas alcatifas de meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não
és minha filha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela primeira vez
insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra nesse quarto, e
espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de Sol.
Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto. Tadeu de
Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:
- o te posso dar minha filha, porque não tenho filha. A miserável, a quem dei este
nome, perdeu-se para nós e para ela.
Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha apenas um
quebra; a absoluta carência de brios. Malograda a tentativa do seu amor de emboscada,
tornou para a terra o primo de Teresa, dizendo ao velho que ele o livraria do assédio em
que Simão Botelho lhe tinha o coração da filha. Não aprovou a reclusão no convento,
discorrendo sobre as hipóteses infamantes que a opinião pública inventaria. Aconselhou
que a deixasse estar em casa, e esperasse que o filho do corregedor viesse de Coimbra.
Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa maravilhou-se da quietação
inesperada de seu pai e desconfiou da incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe
escondeu do sucedido; nem as ameças de Baltasar por delicadeza suprimiu. Rematava
comunicando-lhe as suas suspeitas de algum plano de violência.
O acadêmico, chegando ao período das ameças. não tinha clara luz nos olhos para
decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais arfavam-lhe
entumescidas. Não era sobressalto do coração apaixonado: era a índole arrogante que
lhe escaldava o sangue. Ir dali a Castro-d'Aire e apunhalar o primo de Teresa na sua
própria casa, foi o primeiro conselho que lhe segredou a fúria do ódio. Neste propósito
saiu, alugou cavalo, e recolheu a vestir-se de jornada. preparado, a cada minuto de
espera assomava-se em frenesis. O cavalo demorou-se meia hora, e o seu bom anjo,
neste espaço, vestido com as galas com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe
rebates de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que
cismava na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do
trabalho, e da honra. Contemplou os seus livros com tanto afeto, como se em cada um
estivesse uma página da história do seu coração. Nenhuma daquelas páginas tinha ele
lido, sem que a imagem de Teresa lhe aparecesse a fortalecê-lo para vencer os tédios da
continuada aplicação, e os ímpetos dum natural inquieto e ansioso de comoções
desusadas. "E de tudo acabar assim? - pensava ele, com a face entre as mãos,
encostado à sua banca de estudo. - Ainda pouco eu era tão feliz!... - Feliz! - repetiu
ele, erguendo-se de golpe. - Quem pode ser feliz com a desonra duma ameaça impune7
Mas eu perco-a! Nunca mais hei de vê-la!. . . Fugirei como um assassino, e meu pai será
o meu primeiro inimigo, e ela mesmo de horrorizar-se da minha vingança... A ameaça
ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de Teresa pelos insultos do
miserável, talvez que ela os não repetisse.
Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou menos afrontosas as
bravatas do fidalgo cioso. A5 linhas finais desmentiam formalmente a suspeita do
aviltamento, com que o seu orgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao
seu amor como recompensa dos passados e futuros desgostos, visões encantadoras do
futuro, novos juramentos de constância, e sentidas frases de saudade.
Quando o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho não pensava em matar o homem de
Castro-d'Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite, esconder-se e ver Teresa.
Faltava-lhe, porém, casa de confiança onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo
descoberto. Perguntou ao arreeiro se conhecia alguma casa em Viseu onde ele pudesse
estar escondido uma noite ou duas, sem receio de ser denunciado. O arreeiro respondeu
que tinha, a um quarto de légua de Viseu, um primo ferrador; e não conhecia em Viseu
senão os estalajadeiros. Simão achou aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o
presenteou com uma jaqueta de peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores
valores prometidos, se ele o bem servisse numa empresa, amorosa.
No dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O arreeiro deu conta ao seu
parente do que vinha tratado com o estudante.
Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no mesmo ponto para
Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável beco
da terra. A mendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu,
mandando esperar o caminheiro. Pouco depois. voltou ela com a resposta, e o arreeiro
partiu a galope.
Era a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo a Simão que naquela
noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em casa os parentes. Disse-lhe que às
onze horas em ponto ela iria ao quintal e lhe abriria a porta.
Não esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe da rua para a janela do
seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o ximo. Apertar-lhe a
mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas
esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições, igualmente o enlevavam e
assustavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam na comédia humana são
sentimentos congeniais.
A hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os
encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso
alvoroço que aos mais seródios de coração sucedem em todas as razões da vida, e a
todos os homens, uma vez ao menos.
As onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a distância
convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das salas
remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o surpreendera.
No longo termo de três anos nunca ele ouvira música naquela casa. Se ele soubesse o
dia natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha alegria daquelas salas, sempre
fechadas como em dias de mortório. Simão imaginou desvairadamente as quimeras que
voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da fantasia apaixonada. o baliza
racional para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão
Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e as
pancadas do coração sobressaltado.
V
Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs
do fidalgo e a demais parentela da casa não deixavam respirar Teresa. Moças e velhas,
todas, uma, se repetiam, aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pai
a alegria que o pobre velho tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos. Replicava
Teresa que não queria mal a seu primo, nem sequer estava sentida dele; que era sua
amiga, e se-lo-ia sempre enquanto ele lhe deixasse livre o coração.
O velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes presumidos de
circunspectos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar a filha com os prazeres
congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a que ela repartisse o espírito, concentrado
num ponto, por diversões em que a natural vaidade se preocupa, e a força do amor
contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões
amiúdas, já em sua casa, na dos seus parentes, para deste modo Teresa se mostrar a
muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião de menos valia o único homem com
quem falava, e a quem julgava superior a todos. O fidalgo acedeu, mas com dificuldade: é
que tinha lá um sistema seu de ajuizar das mulheres, vivera trinta anos de vida libertina e
dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na quietação. Os anos de
Teresa eram pela primeira vez festejados com estrondo. A morgada viu então o que era o
minueto da corte e certos jogos de prendas com que os intervalos naqueles tempos se
aligeiravam em delícias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.
Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus hóspedes. Desde
que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da festa parecia tão alienada das
finezas com que as senhoras e homens à competência a lisonjeavam, que Baltasar
Coutinho deu tento do desassossego de sua prima, e teve a modéstia de imaginar que ela
se ofendera da indiferença dele, Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-d'Aire,
compondo o rosto com gesto grave e melanc6lico, dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe
desculpa da frieza que ele disse ser como a das montanhas, que têm vulcões por dentro e
neve por fora. Teresa teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza
de seu primo, e chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha se
fendesse em vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala.
Eram dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do quintal, abrira a porta, e, como
não visse alguém, tornou de corrida para a sala. No momento, porém, de subir a escada
que ligava o jardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala,
chegou a uma das janelas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via. Retirou-se, e
entrou com Teresa na sala, ao mesmo tempo, por diversa porta. Decorridos alguns
minutos, a menina saiu outra vez e o primo também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito
dum cavalo, quando passou ao patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e notou
que sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava uma capa
ou chale que a envolvia toda. O de Castro-d'Aire fez atrás para não ser visto. Teresa,
porém, num relance de olhar temeroso, ainda vira um vulto retirar-se. Teve medo, e
retrocedeu a largar a capa, e entrou na sala, ofegante de cansaço e pálida de medo.
- Que tens, minha filha? - disse-lhe o pai - duas vezes saíste da sala, e vens tão
alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?
- Tenho uma dor: preciso de ir respirar de vez em quando... Nada é, meu pai.
Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor; o não disse a
seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que ele tinha saído.
Também Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o ia procurar, resolução de que
o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim, correu à porta onde a esperava Simão, abriu-
a, e, com a voz cortada pela ansiedade, apenas disse:
- Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas... Vai, vai!
Simão, quando isto ouvia, os olhos fitos num vulto que se aproximava dele, rente com o
muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira, dera um sinal, e entalara as rédeas do
cavalo entre umas pedras, para ficar desembaraçado, se o estudante se não pudesse
haver com o inimigo.
Simão Botelho não se moveu do local, e Baltasar Coutinho parou na distância de seis
passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho do patrão, quando este lhe
disse que não se aproximasse. E, caminhando para o vulto, aperrou duas pistolas, e
disse-lhe:
- Isto aqui não é caminho. Que quer?
O fidalgo não respondeu.
- Parece-me que lhe abro a boca com uma bala - tornou Simão.
- Que lhe importa o senhor quem está?! - disse Baltasar - Se eu tiver um segredo, como o
senhor parece que tem o seu nestes sítios, sou obrigado a confessar-lho!?
Simão refletiu, e replicou.
- Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só mulher.
- Estão nessa casa mais de quarenta mulheres esta noite - redargüiu o primo de Teresa. -
Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.
- Quem é o senhor? - tornou com arrogância o filho do corregedor.
- Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer. Fiquemos cada um com
o nosso incógnito. Boas noites.
Baltasar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si:
- "Que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas?"
Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.
O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar levemente alteração
de ânimo. Viu que Teresa o observava de revés, e soube dissimular-se de modo que a
sossegou. A pobre menina, ansiosa por se ver sozinha, viu com prazer erguer-se para
sair a primeira família, que deu rebate às outras, menos ao de Castro-d'Aire e suas irmãs,
que ficaram hospedados em casa de seu tio, com tenção de se demorarem oito dias em
Viseu.
Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus terrores,
e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido do baile, por ficar doida de alegria com a
sua vinda. No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração
na carta. Isto espantou o acadêmico. A seu ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai de
Teresa devia ser avisado naquela mesma noite.
Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém,
assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu nova carta em que não transluzia
medo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe a fama. Quis parecer a Simão
Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso.
Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos
funestos resultados que podia ter a sua temerária ida, se Baltasar Coutinho era aquele
homem que reservara para melhor relance a vingança da provocação insolente. Mas de si
para si tinha ele que pensar em que tal era mais cobardia que prudência.
O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto belo e
triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava a contemplá-lo, e perguntou-lhe a
causa daquele olhar melancólico com que ela o fitava. Mariana corou, abriu um sorriso
triste, e respondeu:
- Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma desgraça
está para lhe suceder...
- A menina não dizia isso - replicou Simão - sem saber alguma coisa da minha vida.
- Alguma coisa sei... - tornou ela.
- Ouviu contar ao arreeiro?
- Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria, e também conhece
o senhor. E bocadinho que eu ouvi estar meu pai a dizer a meu tio, que é o arreeiro
que veio com vossa senhoria, que tinha suas razões para saber que alguma desgraça lhe
estava para acontecer...
- Por quê?
- Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro-d'Aire.
Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele
julgava mistério entre duas famílias, quando o mestre ferrador João da Cruz entrou no
sobrado, onde o precedente diálogo se passara. A moça, como ouvisse os passos do pai,
saíra lentamente por outra porta.
- Com sua licença - disse mestre João.
Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.
- Ora, meu fidalgo - continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e
apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das
mangas - de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não dei com
a jaqueta...
- Está muito bem, senhor João - atalhou o acadêmico.
- Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez armou-se
aqui à minha porta uma desordem, a troco de um couce que um macho dum almocreve
deu numa égua, que estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete
por aqui, salvo tal lugar.
João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada a da égua, e
continuou:
- Eu tinha ali à o o martelo, e não me tive que não pregasse com ele na cabeça do
macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção, que era chibante, deitou as unhas a
um bacamarte, que trazia entre uma carga, e desfechou comigo, sem mais tirte nem
garte. alma danada! - disse-lhe eu - pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua,
que custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um tiro por eu te
atordoar o macho!?"
- E o tiro acertou-lhe? - atalhou Simão.
- Acertou; mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me aqui por este braço
esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago
uma clavina, e desfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não
tugiu nem mugiu. Prenderam-me, e fui para Viseu e estava três anos, no ano que
o paízinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava muita gente a trabalhar contra
mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca. Estava na enxovia comigo um
preso a cumprir sentença, e disse-me ele que o senhor corregedor tinha muita devoção
com as sete dores de Nossa Senhora. Uma vez que ele ia passando com a família para a
missa, disse-lhe eu: - "Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas sete dores de
Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença para eu explicar a minha culpa a
vossa senhoria". O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou tomar
o meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e contei-lhe tudo,
mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pai ouviu-me, e disse-me: - "Vai-te
embora, que eu farei o que puder". O caso é, meu fidalgo, que eu saí absolvido, quando
muita gente dizia que eu havia de ser enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se
eu não devo andar com a cara onde o seu paizinho põe os pés?!
- Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não há dúvida nenhuma.
- Agora faz favor de ouvir o mais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado de farda em casa do
fidalgo de Castrod'Aire, que é o senhor Baltasar. Conhece-o vossa senhoria? Ora, se
conhece...
- Conheço de nome.
- Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lhas,
Deus louvado. de haver seis meses que ele me mandou chamar a Viseu, e me disse
que tinha trinta peças para me dar, se eu lhe fizesse um serviço. - "O que vossa senhoria
quiser, fidalgo". E vai ele disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto
buliu por dentro comigo, porque. a falar a verdade, um homem que mata outro num
aperto não é matador de oficio, acho eu, não é assim?
- De certo... - respondeu Simão, adivinhando o remate da história. - Quem era o homem
que ele queria morto?
- Era vossa senhoria... O homem! - disse o ferrador com espanto - O senhor nem sequer
mudou de cor!
- Eu não mudo nunca de cor, senhor João - disse o acadêmico.
- Estou pasmado!
- E vossemecê não aceitou a incumbência, pelo que vejo - tornou Simão.
- Não, senhor; e, então, logo que ele me disse quem era, a minha vontade era pregar-lhe
com a cabeça numa esquina.
- E ele disse-lhe a razão por que me mandava matar?
- Não, meu fidalgo; eu lhe conto: Na semana adiante, quando soube que o senhor
Baltasar (raios o partam!> tinha saído de Viseu, fui falar com o senhor corregedor, e
contei-lhe tudo como se passara. O senhor corregedor esteve a cismar um pouquinho, e
disse-me, e vossa senhoria de perdoar por eu lhe dizer o que seu pai me disse, tal e
qual.
- Diga.
- Seu pai começou a esfregar o nariz, e disse-me: -"Eu sei o que é isso. Se aquele
brejeiro de meu filho Simão tivesse honra, não olharia para a prima desse assassino.
Cuida o patife que eu consentia que meu filho se ligasse a uma filha de Tadeu de
Albuquerque Ainda disse mais coisas que me não lembram; mas eu fiquei sabendo tudo.
Ora aqui tem o que houve. Agora apareceu-me aqui vossa senhoria, e a noite passada foi
a Viseu. Perdoará a minha confiança: mas vossa senhoria foi falar com a tal menina; e eu
estive vai não vai a segui-lo; mas, como ia meu cunhado, que é homem para três, fiquei
descansado. Ele contou-me um encontro que vossa senhoria teve à porta do quintal da
menina. Se lá torna, senhor Simão, vá preparado para alguma coisa de maior. Eu bem sei
que vossa senhoria não é medroso; mas duma traição ninguém se livra. Se quer que eu
vá também, estou às suas ordens; e a clavina que deu polícia ao almocreve ainda ali está,
e fogo debaixo de água, como diz o outro. Mas, se vossa senhoria licença que eu
lhe diga a minha opinião, o melhor é não andar nessas encamisadas. Se quer casar com
ela, vá pedir a seu pai licença, e deixe o restopor minha conta; ponto é que ela queria.
que eu, num abrir e fechar de olhos, atiro com ela para cima duma égua de chupeta. que
ali tenho, e o pai e mais o primo ficam a ver navios.
- Obrigado, meu amigo - disse Simão - aproveitarei os seus bons serviços quando me
forem necessários. Esta noite hei de ir, como fui a noite passada, a Viseu. Se houver
novidade, então veremos o que se há de fazer. Conto com vossemecê, e creia que tem
em mim um amigo.
Mestre João da Cruz não replicou. Dali foi examinar mudamente a fecharia da clavina, e
entender-se com o cunhado sobre cautelas necessárias, enquanto descarregava a arma,
e a carregava de novo com uns zagalotes especiais, que ele denominava "amêndoas de
pimpões".
Neste intervalo, Mariana, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse com meiguice a
Simão Botelho:
- Então sempre é certo ir?
- Vou; para que não hei de ir?!
- Pois Nossa Senhora na sua companhia - tornou ela, saindo logo para esconder as
lágrimas.
VI
As dez horas e meia da noite daquele dia, três vultos convergiram para o local, raro
freqüentado, em que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se
detiveram alguns minutos discutindo e gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas
palavras eram ouvidas em silêncio e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um dos dois:
- Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse aqui morto, as
suspeitas caiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês um do outro, tenham o
ouvido aplicado ao tropel do cavalo. Depois apressem o passo até o encontrarem, de
modo que os tiros sejam dados longe daqui.
- Mas... - atalhou um - quem nos diz que ele veio ontem a cavalo, e hoje vem a pé?
- E verdade! - acrescentou o outro.
- Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o terem a jeito de tiro,
mas longe daqui, percebem vocês? - disse Baltasar Coutinho.
- Sim, senhor: mas se ele sal. de casa do pai, e entra sem nos dar tempo?
- Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já Iho disse. Basta de palavreado. Vão
esconder-se atrás da Igreja, e não adormeçam.
Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os três
quarto depois da dez. O de Castro-d'Aire colocou o ouvido à porta, e retirou-se
aceleradamente, ouvindo o rumor da folhagem seca que Teresa vinha pisando.
Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou do outro lado a
passo rápido. o parou: foi direito a todos os pontos onde uma sombra podia figurar um
homem. Rodeou a igreja, que estava a duzentos passos de distância. Viu os dois vultos
direitos com o recanto que formava a junção da capela-mor, e sobre o qual caíram as
sombras da torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não os conheceu, mas eles
disseram entre si, depois que ele desaparecera:
- E o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por ele!...
- Que fará a estas horas por aqui?!
- Eu sei!
- Não desconfias que ele entre nisto?
- Agora! se entrasse, era por nós. Não sabes que ele foi mochila do nosso amo?
- Pois então que medo tens?
- Não há medo; mas também sei que foi o corregedor que o livrou da forca...
- Isso que tem! O corregedor não se importa com isso, nem sabe que o filho cá está...
- Assim será; mas não estou muito contente... Ele é homem dos diabos...
- Deixá-lo ser... Tanto entram as balas nele como noutro...
A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma coisa
era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.
Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto tropel
da cavalgadura.
Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do cavaleiro.
Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.
- Não há novidade - disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria que podia estar em
baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.
O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:
- És tu, João?
- Sou eu. Vim primeiro que tu.
Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.
- Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.
- Nas ocasiões é que se conhecem os homens - redargüiu o ferrador. - Ora vamos... não
há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma espera.
- Tenho - disse Simão.
- Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se me dava de
jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo do cavalo, que de haver mostarda.
Eu disse-lhe que não viesse; mas vossa senhoria veio, e agora é andar com a cara para
frente.
- Olhe que eu não tremo, mestre João! - disse o filho do corregedor.
- Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.
Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo, recuou alguns passos na rua,
e foi prendê-lo à argola da parede duma estalagem.
Voltou, e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado na distância de vinte passos;
e que, se os visse parar perto do quintal de Albuquerque, não passasse do ponto donde
os visse.
Quis o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava como protegido pela defesa
dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu a réplica
- Faça o que eu lhe digo, fidal9o - disse ele com energia.
João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram defronte do quintal de
Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo da parede.
- Vamos sobre eles - disse o ferrador - que passaram para o adro da igreja; nestes
entrementes, o doutor chegará à porta do quintal e entra; depois voltaremos para lhe
guardar a saída.
Neste propósito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou com as pistolas
aperradas na direção da porta.
Em frente do muro do jardim de Teresa haviam uma cascalheira escarpada. que se
esplainava depois numa alameda sombria.
Os dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou, recordaram as ordens do
amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio azado para o espreitarem na saída, e
entraram na alameda quando o acadêmico chegara à porta do quintal.
- Agora está seguro - disse um,
- Se lá não ficar dentro... - respondeu o outro, vendo-o entrar, e fechar-se a porta.
- Mas além vêm dois homens... - disse o mais assustado, olhando para a outra entrada da
alameda.
- E vêm direitos a nós... Aperra lá a cravina...
- O melhor é retirarmos. Nós estamos à espera do outro, e não deste. Vamos embora
daqui...
Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do cascalho. O mais
intrépido teve também a prudência de todos os assassinos assalariados: seguiu o
assustadiço, e deu-lhe razão, quando ouviu após de si os passos velozes dos
perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quando dobravam a esquina do quintal, disse-
lhes:
- Vocês a que fogem, seus poltrões?
Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.
João da Cruz e o arreeiro apareceram, e Baltasar caminhou para eles, brandando:
- Alto aí!
O ferrador disse ao cunhado:
- Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.
- Quem manda fazer alto? - disse o arreeiro.
- São três clavinas - respondeu Baltasar.
- Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saía - disse João da Cruz ao ouvido do
arreeiro.
- Pois nós cá estamos parados - replicou o criado de Simão. - Que nos querem vocês?
- Quero saber o que têm que fazer neste sítio.
- E vocês o que fazem por cá?
- Não admito perguntas - disse o de Castro-d'Aire, aventurando alguns passos vacilantes
para a frente. - Quero saber quem são.
Mestre João disse ao ouvido do cunhado:
- Diz-lhe que, se dá mais um passo, que o arrebentas.
O arreeiro repetiu a cláusula, e Baltasar parou.
Um dos criados deles chamou-o ao lado para lhe dizer que aquele dos dois que o
falava parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e quis esclarecer-se; mas o
ferrador ouvira as palavras do criado, e disse ao cunhado:
- Vem comigo, que eles conhecem-me.
Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de Tadeu de
Albuquerque. Os criados de Baltasar, gloriosos da retirada, como de uma derrota certa,
apressaram o passo, na cola dos supostos fugitivos. O morgado ainda lhes disse que os
não seguissem; mas eles, momentos antes cobardes, queriam desforrar-se agora,
correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes.
Simão Botelho ouvira passos ligeiros, e, compelido pelo susto de Teresa, abrira a porta do
quintal, sem saber ainda de quem fossem os passos. João da Cruz, com ar galhofeiro,
quando os perseguidores se viam, disse ao filho do corregedor, se estavam ajustando o
casamento, que não havia pano para mangas.
Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a o de Teresa, e retirou-se. Queria
ele reconhecer os dois vultos parados a distância, mas João da Cruz, com o tom
imperioso de quem obriga à submissão, disse ao filho do corregedor:
- por onde veio, e não olhe para trás. Simão foi indo até encontrar o cavalo. Montou, e
esperou os dois inalteráveis guardas que o seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o
súbito desaparecimento dos criados de Baltasar, e recearam-se de alguma espera fora da
cidade. O ferrador conhecia o atalho que podia levar os da emboscada ao caminho, e
revelou o seu receio a Simão, dizendo-lhe que picasse a toda a brida, que ele e o
cunhado iriam ter. O acadêmico recebeu com enfado a advertência, admoestando-os a
que o não tivessem em tal vil preço. E acintemente sofreu as rédeas para não forçar os
homens a aligeirar o passo.
- Vá como quiser - disse mestre João - que nós vamos por fora do caminho.
E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos por moitas de
giesta, cosendo-se aos torcicolos duma parede paralela com a estrada.
- O atalho vai acolá onde a serra faz aquele cotovelo - disse o ferrador ao cunhado, - hão
de ali passar, ou passaram. A estrada vai mesmo na quebrada daquele outeirinho. Os
homens é dali que vão atirar, encobertos pelos sobreiros. Vamos depressa...
E um pouco descobertos, e outro curvados à sombra das devesas, chegaram a um valado
donde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o pontilhão de um córrego.
- Já não vamos a tempo - disse aflito o João da Cruz - os homens vão atirar-lhe, porque o
cavalo trupa cá muito atrás.
E corriam sem temor de serem vistos, porque os outros tinham dobrado o outeiro, em
cujo vale corria a estrada.
- Os homens vão atirar-lhe... - disse o ferrador.
- Gritemos daqui ao doutor que não vá para diante.
- Já não é tempo... Ou o matem ou não matem, quando voltarem são nossos.
Tinham já passado o pontilhão, e subiam a ladeira quando ouviram dois tiros.
- Arriba! - esclamou João da Cruz - que não o meter-se à estrada, se mataram o
fidalgo.
Tinham vencido o chá, esbofados e ansiados, com as davinas aperradas. Os criados de
Baltasar, ao invés da conjetura do ferrador, retrocediam pelo mesmo atalho, supondo que
os companheiros de Simão iam adiante batendo os pontos azados à emboscada, ou se
tinham retardado.
- Eles aí vêm! disse o arreeíro.
- Nós cá estamos - respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um cômoro. - Senta-te
também, que eu não estou para correr atrás deles. Os assassinos, a dez passos, viram de
frente erguerem-se os dois vulto, e ladearam cada qual para seu lado, um galgando os
socalcos duma vinha e outro atirando-se a uns silveirais.
- Atira ao da esquerda - disse João da Cruz.
Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadáver. Os balotes
do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal onde se embrenhara.
A este tempo assomava Simão no teso donde lhe tinham atirado, e corria ao ponto onde
ouvira o segundo tiro.
- É vossa senhoria, fidalgo - bradou o ferrador.
- Sou.
- Não o mataram?
- Creio que não - respondeu Simão.
- Este desalmado deixou fugir o melro - tomou João da Cruz - mas o meu está a
pernear na vinha. Sempre lhe quero ver as trombas...
O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o cadáver, dizendo:
- Alma de cântaro, se eu tivesse duas clavinas, não ias sozinho para o inferno.
- Anda daí! - disse o arreeiro - deixa esse diabo, que o senhor doutor está ferido num
ombro. Vamos depressa, que está o sangue a escorrer-lhe.
- Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima da ribanceira, e cuidei que eram vocês -
disse Simão, enquanto o ferrador, com a destreza de hábil cirurgião, lhe enfaixava com
lenços o braço ferido. - Parei o cavalo, e disse: "Olé! novidade?" Logo que me não
responderam, saltei para terra; mas ainda eu tinha um no estribo quando me fizeram
fogo. Quis saltar à ribanceira, mas não pude romper o mato. Dei uma voltar grande para
achar subida, e foi então que dei fé de estar ferido.
- Isto é uma arranhadura - disse João da Cruz - olhe que eu sei disto, fidalgo! Estou afeito
a curar muitas feridas.
- Nos burros, mestre João? - disse o ferido, sorrindo.
- E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não
queria outro dico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe o meu corpo, que está uma
rede de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com ceroto e vinagre sou capaz de ir
ressuscitar aquela alma do diabo que ali está a escutar a cavalaria.
Nisto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha saltado o
companheiro do morto.
João da Cruz, como galo de fino olfato, fitou a orelha e resmungou:
- Querem vocês ver que eles se armam!.
Dar-se-á caso que o outro ainda esteja por ali a tremer maleitas?
O rumor continuou, e logo um bando de pássaros rompeu dentre a folhagem, chilreando.
- O homem está ali - tornou o ferrador. - Passe-me cá uma pistola, senhor Simão!
Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande restolhada se fez entre as moitas de
codessos e urzes.
- Ele estrinça lenha como um porco do monte! - exclamou o ferrador, - Ó cunhado, bate
este mato com alguns penedos; quero ver sair o javali da moita!..
Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando a sebe,
conseguira saltar ao campo por sobre a pedra dum agüeiro.
- Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! - bradou Simão ao ferrador.
- Pois o fidalgo já aí anda!? Então está fechado o cerco. Eu cá vou fazer de furão. Se este
nos escapa, não há nada seguro neste mundo!
Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutínho, quando se atirara desamparado à
brenha, deslocara um joelho, e caíra atordoado. O arreeiro não examinou o efeito do tiro,
porque atirara à ventura, e achava natural que o fugitivo se não molestasse. Quando
volveu a si do aturdimento da queda, o homem arrastou-se até encontrar um cercado de
árvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada. Como os melros cacarejassem,
esvoaçando, o criado de Baltasar retrocedeu para o mato, cuidando que escaparia;
mas o arreeiro jogava enormes calhaus em todas as direções, e alguns acercavam mais
que as balas do seu bacamarte. João da Cruz tirou do bolso da jaqueta um podão, e
começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestas que se emaranhavam em redor do
esconderijo. Já cansado, porém, e vendo o pouco fruto do trabalho, disse ao arreeiro:
- Petisca lume, vai ali dentro buscar um pouco de restolho seco, e vamos pegar fogo ao
mato, que este ladrão há de morrer assado.
O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para fugir, rompendo a
espessura e saltando a parede da tapada para o campo do restolho em que o arreeiro
andava apanhando palha e Simão esperava o desfecho da montaria. Correram a um
tempo o arreeiro e o acadêmico sobre ele, O fugitivo, sentindo-se alcançado, lançou-se de
joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão, e dizendo que o amo o obrigaria àquela
desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia direita ao peito, quando Simão lhe
reteve o braço.
- Não se bate num homem ajoelhado! - disse o moço - Levanta-te, rapaz!
- Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada e estou aleijado para a minha vida!
Neste comenos chegou o ferrador, e exclamou:
- Pois esse tratante ainda está vivo!?
E correu sobre ele com o podão.
- Não mate o homem, senhor João! - disse o filho do corregedor'.
- Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo quer pagar-me
com a forca o favor de o acompanhar... hein?
- Com a forca?! - atalhou Simão.
- Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito?
vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso
contar que desta vez tenho o baraço no pescoço. Não me faz jeito o negócio. Deixe-me
cá com o homem...
- Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha não nos pode
fazer mal.
- O quê! - redargüiu o ferrador - vossa senhoria é doutor, saberá muito, mas de justiça não
sabe nada. e de perdoar o meu atrevimento. Basta uma testemunha para guiar a
justiça na devassa. As duas por três, uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer,
com o fidalgo de Castrod'ALre a mexer os pauzinhos, é forca certa, como dois e dois
serem quatro.
- Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro-d'Aire - exclamou o
homem.
- Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora...
- Isso! - acudiu o ferrador - Chame-me João da Cruz... para este maroto ficar bem certo
de que sou o João da Cruz... Como efeito, não sei o que me parece vossa senhoria
querer deixar com vida uma alma do diabo que lhe deu um tiro para o matar.
- Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis que não resistem.
- E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor doutor.
- Vamos embora - tornou Simão - deixemos por aí esse miserável.
Mestre João cismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou com
descontentamento:
- Vamos lá. .. Quem o seu inimigo poupa nas mãos lhe morre.
Tinham saído do plano e saltado o tapada, e iam descendo para a estrada, quando o
ferrador exclamou:
- Lá me ficou a minha clavina escostada à sebe... Vão indo que eu venho já.
O arreeiro conduzia o cavalo, que pacificamente estivera tosando a relva das paredes
marginais da estrada, quando Simão ouviu gritos. Conjeturou com certeza o que era.
- O João está a fazer justiça! - disse o arreeiro - Deixá-lo lá, meu amo, que ele é
homem que sabe o que faz.
João da Cruz apareceu daí a pouco, limpando com fentos o podão ensangüentado.
- Você é cruel, sr. João - disse o acadêmico.
- Não sou cruel - disse o ferrador - o fidalgo está enganado comigo; é que, diz lá o ditado,
morrer por morrer, morra meu pai, que é mais velho. Tanto faz matar um como dois.
Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um alqueire como três. As obras
devem ser acabadas, ou então o melhor é não se meter a gente nelas. Agora levo a
minha consciência sossegada. A justiça que prove, se quiser; mas o de ser porque
lho digam aqueles dois que eu mandei de presente ao diabo.
Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com
tal homem,
VII
O ferimento de Simão Botelho era melindroso demais para obedecer prontamente ao
curativo do ferrador, enfronhado em aforismos de alveitaria. A bala passara-lhe de revés a
porção muscular do braço esquerdo; mas algum vaso importante rompera, que não
bastavam compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o acadêmico deitou-
se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu para Coimbra, encarregado
de espalhar a notícia de ter ficado no Porto Simão Botelho.
Mais que as dores e o receio da amputação, o mortificava a ânsia de saber novas de
Teresa. João da Cruz estava sempre de sobrerrolda, precavido contra algum
procedimento judicial por suspeitas dele. As pessoas que vinham de feirar na cidade
contavam todas que dois homens tinham aparecido mortos, e constava serem criados
dum fidalgo de Castrod'Aire, Ninguém, porém, ouvira imputar o assassínio a
determinadas pessoas.
Na tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:
"Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa gente. Eu não sei o que
se passa. mas coisa misteriosa que eu o posso adivinhar. Meu pai tem estado toda
a manhã fechado com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o
tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre
viesse pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem tinha modo de lhe
dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse Falou-me em criados
mortos; mas eu não pude entender... Tua mana Rita está-me acenando por trás dos
vidros do teu quarto...
Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham aparecido mortos perto da
estrada. Agora sei tudo. Estive para lhe dizer que tu estás, mas não me deram
tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muitos altos.
Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estás ferido? Serei eu a causa da tua
morte?
Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios: vai
para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação. Tem confiança nesta
desgraçada, que é digna da tua dedicação... Chega a pobre: não quero demorá-la mais...
Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu que não. Deus o queira".
Respondeu Simão a querer tranqüilizar o ânimo de Tereza. Do seu sofrimento falava tão
de passagem, que dava a supor que nem o curativo era necessário. Prometia partir para
Coimbra logo que o pudesse fazer sem receio de Teresa sofrer na sua ausência.
Animava-a a chamá-lo assim que as ameaças do convento passassem a ser realizadas.
Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a
devassa instaurada, respondeu que efetivamente os homens mortos eram seus criados,
de quem ele e sua família se acompanhara de Castro-d'Aire. Acrescentou que não sabia
que eles tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra alguém as mais leves presunções.
Os mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres tinham aparecido apenas
depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro pouco
depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o
mato, nas vizinhanças do local, fora chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar
passo algum.
Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora
seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas freqüentes de Teresa na
noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum indício que
pudesse envolvê-los no mistério daquelas duas mortes. Os criados não mereciam as
penas dum desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão
Botelho não podiam aduzi-las. Aquela hora o supunham eles a caminho de Coimbra, ou
refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a esperança de que ele tivesse sido
ferido, e fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.
Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu
Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe
preparar aposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a
entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que medeava
até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo Teresa, e solicitou a retenção
temporária dela num convento de Viseu.
Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho que a mendiga
lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pai entrou no seu quarto, e a
mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço,
- Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos - disse com
severidade o velho.
- Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite... - disse Teresa.
- E a senhora sabe para onde vai?
- Não sei... meu pai.
- Então vista-se, e não me dê leis.
- Mas, meu pai. atenda-me um momento.
- Diga.
- Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo...
- E daí?
- De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.
- Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem do meu sangue
não aceita para esposa uma mulher que fala de noite aos amantes nos quintais. Vista-se
depressa, que vai para um convento.
- Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.
- Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para
a acompanharem.
Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis escrever a Simão.
Aquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo da Virgem, que ela fizera
confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e desse forças a Simão
para resistir ao golpe, e guardar-lhe constância através dos trabalhos que sucedessem,
Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o
papel e o macete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto, relanceando os olhos
lacrimosos para o painel da Virgem, e, encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar
consigo aquela devota imagem.
- Lá irá ter - respondeu ele. - Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria mais feliz do
que há de ser.
Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:
- Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta casa...
- Qual remédio?! - perguntou Teresa com artificial seriedade.
- Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar...
- Primo Baltasar não me quer - replicou ela, sorrindo.
- Quem te disse isso, Teresinha?
- Disse-mo meu pai.
- Deixa falar teu pai, está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu lhe fale.
- Para quê?
- Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.
- Estás a brincar, prima! - redargüiu Teresa. - Eu hei de ser tua cunhada quando não tiver
coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele;
mas, se quiserem que eu morra por ele, abençoarei' todos os meus algozes. Podes dizer
isto ao primo Baltasar e dize-lho antes que te esqueça.
- Então? Vamos! - disse o velho.
- Estou pronta, meu pai.
Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou a mão de seu pai,
que ele o ousou recusar-lhe na presença das freiras. Abraçou suas primas, com
semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande espanto das
monjas:
- Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.
As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra "coração" uma heresia, uma
blasfêmia proferida na casa do Senhor.
- Que diz a menina?! - perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos óculos, e apanhando
no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.
- Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.
- Não diga - minha senhora - atalhou a escrivã.
- Como hei de dizer?
- Diga: "nossa madre prioresa".
- Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito bem.
- Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem - tornou a nossa
madre prioresa.
- Não?! - disse Teresa com sincera admiração.
- Quem para aqui vem, menina, de mortificar o espírito, e deixar fora as paixões
mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem compete
encaminhá-la e dirigi-la.
Teresa não redargüiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e seguiu o caminho
que a prelada lhe ia indicando.
A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda
enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou
outro.
- Que importa que seja um ou outro? - disse Teresa.
- É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou
bernardas.
- Professe! - exclamou Teresa. - Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte.
- A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.
- Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou Teresa.
- Isso assim é - retorquiu a prioresa - mas, como a menina tem de noviciado um ano,
sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não vida mais descansada
para o corpo, nem mais saudável para a alma.
- Mas a nossa madre - tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual -
disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem...
- É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro
e de serviços para que nem sempre o espírito está bem disposto. Ora vês aí. Mas, em
comparação do que vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não paixões,
nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vive-
mos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma quer querem todas. Más
línguas é coisa que a menina não de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações
de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da
menina, e volto. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e
com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas
santas casas.
Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de noviças:
- Que impostora!
- E que estúpida! - acudiu a outra. - A menina não se fie nesta trapalhona, e veja se seu
pai lhe outra companhia enquanto estiver, que a prioresa é a maior intriguista do
convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as
conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava
na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada;
agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar
indigestões.
Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de Deus
com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no dizer da madre prioresa.
Pouco depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas freiras.
- Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? - disse ela a Teresa.
- Pareceram-me muito bem.
A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho líquido, e regougou:
- Hum!... Está feito, está feito!... Ainda não são das piores; mas, se fossem melhores, não
se perdia nada... Ora vamos a isto, menina; aqui tem duas pernas de galinha e um caldo
que o podem comer os anjos.
- Eu não como nada, minha senhora - disse Teresa.
- Ora essa! Não come nada?! de comer; sem comer ninguém resiste. Paixões... que
as leve o porco-sujo!... As mulheres é que ficam logradas, e eles não têm que perder!...
Que eu, de mim, até ao presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas
quem tem cinqüenta e cinco anos de convento, tem muita experiência do que penar às
outras doidivanas. E, para não ir mais longe, estas duas que daqui saíram têm pagado
bem o seu tributo à asneira, Deus me perdoe, se peco. A organista tem os seus
quarenta bons, e ainda vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser
mestra de noviças, à falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o olho
em cima, estragava-me as raparigas.
Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha,
palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas
as noites era brindada.
- Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a mestra - disse a
prioresa.
- Oh! são para o que eu lhe prestar! foram ambas para a cela da porteira. A esta hora
está a menina a ser cortada por aquelas línguas, que não perdoam a ninguém.
- Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? - disse a prelada.
A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos dormitórios até parar
a uma porta, que não vedava o ruído estridente das risadas.
No entanto, dizia a prelada a Teresa:
- Esta escrivã não é rapariga. tem o defeito de se tomar da pingoleta; depois, não
há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem ocasiões de entrar
no coro a fazer ss que é mesmo uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma
lavada, e amiga da sua amiga. ~ verdade, que, às vezes... (aqui a prelada ergueu-se a
escutar nos dormitórios, e fechou por dentro a porta); é verdade que, às vezes, quando
anda azoratada, por paus e por pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A
mim já ela me assacou um aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a ares, e
andava por a fazer o que fazem as outras. Forte pouca vergonha! que outra falasse,
vá; mas ela, que tem sempre uns namorados pandílhas que bebem com ela na grade,
isso me custa; mas, enfim, não ninguém perfeito!... Boa rapariga é ela... se não
fosse aquele maldito vício...
Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do
vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia ao coro,
e pouco se demoraria. Tinha ela saído, quando a escrivã entrou a tempo que Teresa, com
as mãos abertas sobre a face, dizia em si: "Um convento, meu Deus! Isto é que é um
convento?"
- Está sozinha? - disse a escrivã.
- Estou, minha senhora.
- Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspeda sozinha?! Bem se que é
filha de funileiro!... Pois tinha tempo de ter prática do mundo, que tem andado por que
farte... Eu havia de ir ao coro... Mas não vou, para lhe fazer companhia, menina.
- Vá, minha senhora, que eu fico bem sozinha - disse Teresa, com a esperança de
poder desafogar em lágrimas a sua aflição.
- Não vou, ....... A menina aqui estarrecia de medo; mas a prelada não tarda aí. Ela, se
pode escapar-se do coro, não para muito tempo. Apostar que ela lhe esteve a falar mal
de mim?
- Não, minha senhora, pelo contrário...
- Ora, diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não fala bem de ninguém. Para
ela tudo são libertinas e bêbedas.
- Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma freira,
- E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja viva.
Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados como de amantes ela tem tido!
Faz lá uma pequena idéia, menina!...
A escrivã bebeu um cálice do vinho da sua prelada, e continuou:
- Faz uma pequena idéia! Ela é velhíssima como a sé. Quando eu professei, ela era
velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou freira vinte e seis anos. Calcule a
menina quantas arrobas de esturrínho ela tem atulhado naqueles narizes! Pois olhe, quer
me creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma dúzia de chichisbéus, não falando
do padre capelão, que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira, à nossa custa, entende-
se. É uma dissipadora dos rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela
rouba. Eu tenho imensa pena de ver a menina hospedada em casa desta hipócrita. o
se deixe levar das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que seu pai lhe mandou falar, e
a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas olhe, minha filha, se
quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias e o meu quarto, se para quiser ir
escrever. Se tem alguém que lhe escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome;
eu chamo-me Dionísia da Imaculada Conceição.
- Muit9 agradecida, minha senhora - disse Teresa, animada pelo oferecimento. - Quem
me dera poder mandar um recado a uma pobre que mora no beco do...
- O que quiser, menina. Eu mando logo que for dia. Esteja descansada. Não se fie de
alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a organista são duas falsas. Não
lhes trela, que, se as admite à sua confiança, está perdida. Ai vem a lesma... Falemos
noutra coisa...
A prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:
- Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento quando se tem a fortuna de
ter uma prelada como a nossa... Aí! eras tu, menina? Olha se estivéssemos a falar mal de
ti!
- Eu sei que tu nunca falas mal de mim - disse a prelada, piscando o olho a Teresa. -
está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer das tuas boas qualidades...
- Pois o que eu disse de ti - respondeu sóror Dionísia da Imaculada Conceição - o
precisas de perguntar porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se
pudesse dizer o mesmo das outras que desonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado
numa meada, que é mesmo coisa de pecado!
- Então não vais ao coro, Nini? - tornou a prioresa.
- Já agora é tarde... Tu absolves-me da falta, sim?
- Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um copinho...
- Do estomacal?
- Pudera!
Dionisia cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela deixar a prelada na sua hora de
oração.
Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu
de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos, enquanto se lhe
preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de Manchique.
Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida
conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira falar dos mosteiros como de
um refúgio da virtude, da inocência e das esperanças imorredoiras. Algumas cartas lera
de sua tia, prelada em Monchique, e por elas formara conceito do que devia ser uma
santa. Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer às velhas e
devotas fidalgas de Víseu virtudes, maravilhas de caridade, e até milagres. Que desilusão
tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de fugir dali!
A cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alcova. separada, com cortinas
de cassa.
Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe a menina se
poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que no dia seguinte o faria, posto que o
senhor Albuquerque ordenasse que sua filha não escrevesse; assim mesmo, ajuntou ela,
que lho não proibiria, se tivesse tinteiro e papel na cela.
Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa a meia voz,
Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não teria ela muita razão de queixa,
porque a devota monja, ao segundo Padre-nosso, cabeceava de modo que não atinou
com a primeira Ave-Maria. Levantou-se, cambaleando uma mesura às imagens do
santuário, foi deitar-se, e pegou a ressonar.
Teresa afastou sutilmente as cortinas do quarto, e tirou de entre o seu fato o tinteiro de
tarraxa e o papel.
A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que Teresa pusera os
seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao da cadeira, e escreveu a Simão,
relatando-lhe minuciosamente os sucessos daquele dia. A carta rematava assim:
"Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os
comparo aos que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza,
nem deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada.
Qualquer nova resolução que meu pai tome dír-ta-ei logo, podendo, ou quando puder. A
falta das minhas noticias deves atribuí-la sempre ao impossível. Ama-me assim
desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e
de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como isto é triste, meu querido
amigo!... Adeus".
VIII
Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do braço de Simão,
perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico
achou estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com que seu pai vinha
laureado de todas as feiras e romarias.
- Não ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça, quando eu fui à Senhora
dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosqueou e rapou o casco à navalha - disse o
ferrador. - Pelo que vejo, o sangue do fidalgo deu volta ao estômago da rapariga!...
Estamos então bem aviados! Eu tenho a minha vida, e queria que ela fosse a
enfermeira do meu doente... És, ou não és, rapariga? - disse ele à filha quando ela abriu
os olhos, com semblante de envergonhada da sua fraqueza.
- Serei com muito gosto, se o pai quiser.
- Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para a beira do
senhor Simão. -lhe caldos a miúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre e mais vinagre,
quando ela estiver assim a modo de roxa. Conversa com ele, não o deixes estar a
malucar, nem escrever muito, que não é bom quando se está fraco do miolo. E vossa
senhoria não tenha aquelas de cerimônia, nem me diga à Mariana - a menina isto, a
menina aquilo. É - rapariga, da um caldo; rapariga, lava-me o braço, da as
compressas - e nada de políticas. Ela está aqui como sua criada, porque eu lhe disse
que, se não fosse o pai de vossa senhoria, ela muito tempo que andava por às
esmolas, ou pior ainda. E verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos ali a
suar na bigorna dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei de minha mãe,
que Deus haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu fosse à forca ou pela barra fora,
vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.
- Vossemecê tem uma casinha sofrível - atalhou Simão - pode, querendo, casar a sua
filha numa boa casa de lavoura.
- Assim ela quisesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da casa da Igreja a queria, se
eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda quatro mil cruzados bons; o caso
é que a moça não tem querido casar, e eu, a falar a verdade, sou e mais ela, e
também não tenho grande vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho
como moiro. Se não fosse ela, fidalgo, muitas asneiras tinha eu feito! Quando vou às
feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo sozinho, é desordem
certa. A rapariga conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-
me pela jaqueta, e por bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para beber
mais um quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência com que me deixo
guiar pela moça, que me pede que não por alma da mãe. Eu cá, em ela me pedindo
por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguesia sou.
Mariana ouvia o pai. escondendo meio rosto no seu alvíssimo avental de linho. Simão
estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico, mas sublime de naturalidade.
João da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se nestes termos:
- Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como quem é e como se
fosse teu irmão ou marido.
O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu, natural como todas,
da boca de seu pai.
A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.
- Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana! - disse o acadêmico -
Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez de ir costurar na sua varanda, e
conversar com as pessoas que passam...
- Que se me a mim disso? - respondeu ela, sacudindo o avental, e baixando o cós ao
lugar da cintura com infantil graça.
- Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse... buscar a sua costura, e dê-
me dali um folha de papel e um lápis que está na carteira.
- Mas o pai também me disse que o não deixasse escrever... - replicou ela, sorrindo.
- Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.
- Veja o que faz... - tornou ela, dando-lhe o papel e o lápis - Olhe se alguma carta se
perde, e se descobre tudo...
- Tudo o quê, Mariana? Pois sabe alguma coisa.?
- Era preciso que eu fosse tola... Eu não lhe disse que sabia da sua amizade a uma
menina fidalga da cidade?
- Disse. Mas que tem isso?
- Aconteceu o que eu receava. Vossa senhoria está ai ferido, e toda a gente fala nuns
homens que apareceram mortos.
- Que tenho eu com os homens que apareceram mortos?
- Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens eram criados do
primo da tal senhora? Parece que vossa senhoria desconfia de mim, e está a querer
guardar um segredo que eu tomara que ninguém soubesse, para que meu pai e o senhor
Simão não tenha alguns trabalhos maiores...
- Tem razão, Mariana; eu não devia esconder de si o mau encontro que tivemos.
- E Deus queira que seja o último!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que lhe dê
remédio a essa paixão!... O pior futuro é o que ainda está por passar...
- Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra logo que esteja bom, e a menina
da cidade fica em sua casa.
- Se assim for, prometi dois arráteis de cera ao Senhor dos Passos; mas não me diz o
coração que vossa senhoria faça o que diz...
- Muito agradecido lhe estou pelo bem que me deseja - disse Simão, comovido. - Não sei
o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.
- Basta ver o que o seu paizinho fez pelo meu - disse ela, limpando as lágrimas. - O que
seria de mim, se ele me faltasse, e se fosse à forca como toda a gente dizia!... Eu era
ainda muito nova quando ele estava na enxovia. Teria treze anos; mas estava resolvida a
atirar-me ao poço, se ele fosse condenado à morte. Se o degredassem, então ia com ele;
ia morrer onde ele fosse morrer. Não dia nenhum que eu não peça a Deus que a
seu pai tantos prazeres como estrelas tem o céu. Fui de propósito à cidade para beijar os
pés à sua mãezinha, e vi suas manas, e uma, que era a mais nova, deu-me uma saía de
lapím, que eu ainda ali tenho guardada como uma relíquia. Depois, cada vez que ia à
feira, dava uma grande volta para ver se acertava de encontrar a senhora D. Ritinha à
janela; e muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba que eu estava a beber na
fonte quando vossa senhoria, dois para três anos8 deu muita pancada nos criados,
que era mesmo um rebuliço que parecia o fim do mundo. Eu vim contar ao pai. e ele caiu
ao chão a dar risadas como um doido... Depois nunca mais o vi senão quando vossa
senhoria entrou com o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha para esta desgraça. porque
tinha tido um sonho, em que via muito sangue, e eu estava a chorar porque via uma
pessoa muito minha amiga a cair numa cova muito funda...
- Isso são sonhos, Mariana!...
- São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse. Quando o meu pai
matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro noutro homem; antes de
minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ela, e mais ainda viveu dois meses... A gente
da cidade ri-se dos sonhos, mas Deus sabe o que isto é... vem meu pai... Senhor dos
Passos! Não vá ser alguma má nova!...
João da Cruz entrou com uma carta que recebera da pobre do costume. Enquanto Simão
leu a carta escrita do convento, Mariana fitou os seus grandes olhos azuis no rosto do
acadêmico, e, a cada contração da fronte dele, angustiavase-lhe a ela o coração. Não
teve mão da sua ânsia, e perguntou:
- E noticia má?
- Tu és muito atrevida, rapariga! - disse João da Cruz.
- Não é, não - atalhou o estudante. - Não é noticia, Mariana, Senhor João. deixe-me
ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que sabem avaliar os amigos.
- Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.
- Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor Simão estava aflito
quando lia.
- E não se enganou - tornou o doente, voltando-se para o ferrador. - O pai arrastou Teresa
ao convento.
- Sempre é patife duma vez! - disse o ferrador, fazendo com os braços instintivamente um
movimento de quem aperta às mãos um pescoço.
Neste, lance, um observador pespícaz veria luzir nos olhos de Mariana um clarão de
inocente alegria.
Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe
chegou, dizendo:
- Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.
"E necessário arrancar-te daí - dizia a carta de Simão. - Esse convento de ter uma
evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não puderes
fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te mandarem para outro
convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao
caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para te não assustarem os arrojos da
minha paixão. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a o sacrificar a salvar-te.
Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência;
luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta.
Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra,
chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração".
Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e recomendou-lhe
que o entregasse à pobre com a carta.
Depois ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta que dera.
Mestre João foi à cozinha, e disse a Mariana:
- Desconfio de uma coisa, rapariga.
- O que é, meu pai?
- O nosso doente está sem dinheiro.
- Porquê? O pai como sabe isso?
- E que ele pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ela pesava tanto como uma bexiga de
porco cheia de vento.
Isto bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e não sei como há de ser...
- Eu pensarei nisso, meu pai - disse Mariana. refletindo.
- Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.
- E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho aquele dinheiro dos meus
bezerros: são onze moedas de ouro menos um quarto.
- Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.
Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinômico de escrúpulos,
ou repugnância.
Foi Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído em profundo cismar.
- Pois não toma o caldinho? - disse ela com tristeza.
- Não posso, não tenho vontade, menina; se logo. Deixe-me sozinho algum tempo; vá,
vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente aborrecido.
- Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria chamar.
Dissera isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.
Simão notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação da moça; mas não lhe
disse palavra alguma.
E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias aflitivas que os
romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances todas as crises se
explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem os novelistas que a
matéria é baixa e plebéia. O estilo vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito
em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que tenho dele,
um galã num entre ato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com
que um usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o
assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Dist0 é que os mestres em romances se
escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o
herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de quem o leitor
dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer com ele. A
coisa é vilmente prosáica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente
vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que
escreveu à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse,
diria que o rapaz tinha postadas, em diferentes estações das estradas do país, carroças e
folgadas parelhas de mulas para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bela
fugitiva! A estradas, naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não tenho a certeza
de que houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há, porque me dizem que
tudo.
Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho do corregedor não
tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que ele cismava, quando Mariana lhe
trouxe o caldo rejeitado.
A meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:
Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?
Com que agradeceria os desvelos de Mariana?
Se Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência de ambos?
Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase
lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao arreeiro, a
quem devia o conhecimento do prestante ferrador.
As relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta naquele dia. Má situação!
Lembrou-se de escrever à e. Que lhe diria ele? Como explicaria a sua residência
naquela casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte misteriosa dos dois criados
de Baltasar Coutinho?
Além de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava; e, a mandar-lhe algum
dinheiro em segredo, seria o escassamente necessário para a jornada até Coimbra.
Péssima situação!
Cansado de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes com um sono profundo,
E Mariana entrara ante na sala, e, ouvindo-lhe a respiração alta, aventurou-se a
entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o rosto, em roda do qual zumbia
um enxame de moscas. Viu a carteira sobre uma banqueta que adornava o quarto, pegou
nela, e saiu ante pé. Abriu a carteira, viu papéis, que não soube ler, e num dos
repartimentos duas moedas de seis vintéis. Foi restituir a carteira ao seu lugar, e tomou
de um cabide as calças, colete e jaqueta à espanhola, do hóspede. Examinou os bolsos e
não encontrou um ceitil.
Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e
meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de golpe, conversou longo
tempo com o pai. João da Cruz escutou-a, contrariou-a, mas ia de vencida sempre pelas
réplicas da filha, até que, a final, disse:
- Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou agora levantar a pedra
da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos mil réis. Tanto faz um como outro: teu é
ele todo.
Mariana deu-se pressa em ir à arca, donde tirou uma bolsa de linho com dinheiro em
prata, e alguns cordões, anéis e arrecadas. Guardou o seu oiro numa boceta, e deu a
bolsa ao pai.
João da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a sala do doente.
Acordou Simão.
- Não sabe!? - exclamou ela com semblante entre alegre e assustado, perfeitamente
contrafeito.
- Que é, Mariana?
- Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.
- Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?
- Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.
- Isso espanta-me!... E não me escreveu?
- Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ela soubesse que o senhor aqui esteve, e
cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu... Poderá ser?
- Poderá... Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar da morte dos
homens.
- Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas. O pai disse que não
tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar nisso... Vou-lhe buscar o
caldinho, sim?
- Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma irmã.
Nã0 achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta à doçura que o rosto do
mancebo exprimia.
Veio com o "caldinho" - diminuitivo que a retórica duma linguagem meiga sanciona; mas
contra o qual protestava a larga e funda malga branca, ao lado da travessa com meia
galinha loura, de gorda.
- Tanta coisa! - exclamou, sorrindo, Simão.
- Coma o que puder - disse ela corando. - Eu bem sei que os senhores da cidade não
comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais pequena; e coma sem nojo,
que esta malga nunca serviu, que a fui eu comprar à loja, por pensar que vossa senhoria
não quisera ontem comer por se atrigar da outra.
- Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho vontade.
- Mas coma por eu lhe pedir... Perdoe o meu atrevimento... Faça de conta que é uma sua
irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...
- Que o céu me dava em si a amizade duma irmã...
- Pois aí está...
Simão achou tão necessário à sua conservação o sacrifício, como ao contentamento da
carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjetura de que era
amado daquela doce criatura. Entre si dizia que seria uma crueza mostrar-se conhecedor
de tal afeição quando não tinha alma para lha premiar, nem para lhe mentir. Assim
mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-no os desvelos da gentil moça. Ninguém
sente em si o peso do amor que se inspira e não comparte. Nas máximas aflições, nas
derradeiras horas do coração e da vida, é grato ainda sentir-se amado quem não pode
achar no amor diversão das penas, nem soldar o último fio que se está partindo. Orgulho
ou insaciabilidade do coração humano, seja o que for, no amor que nos dão nós
graduamos o que valemos em nossa consciência.
Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de Teresa. Isto será
culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter opinião, a culpa de
Simão Botelho está na fraca natureza, que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda
incoerências, absurdas e cios no homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e
nesta boa fé dinástíca vai vivendo e morrendo.
Duas horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando a curiosidade do
estudante era já sofrimento.
- Estará seu pai preso?! - disse ele a Mariana.
- Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana - respondera ela.
E Simão replicara:
- E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus trabalhos ficarão aqui?
- Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... mas não digo...
- Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala em sua alma. Diga...
- Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão no começo...
Simão ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o ânimo esta idéia torva, e
afrontosa à singela rapariga: - "Pensará ela em me desviar de Teresa, para se fazer
amar?"
Pensava assim quando chegou o ferrador.
- Aqui estou de volta - disse ele com semblante festivo. - Sua mãe mandou-me chamar...
- Já sei... E como soube ela que eu estava aqui?
- Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa senhoria tinha ido para
Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei; porque a uma pessoa de respeito não
se fazem perguntas. Dizia ela que sabia o fim a que o senhor viera esconder-se aqui.
Ralhou alguma coisa; mas eu, como pude, acomodei-a e não novidade. Perguntou-
me o que estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fora para o convento.
Disse-lhe que vossa senhoria estava adoentado de uma queda que dera do cavalo
abaixo. Tornou ela a perguntar-me se o senhor tinha dinheiro; e eu disse que não sabia.
E, vai ela, foi dentro, e voltou dai a pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. o
tem tal e qual; não sei quanto é.
- E não me escreveu?
- Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá o senhor corregedor - respondeu
com firmeza mestre João - e também me recomendou que não lhe escrevesse vossa
senhoria senão de Coimbra, porque, se seu pai soubesse que o menino cá estava, ia tudo
raso lá em casa. Ora ai está.
- E não lhe falou nos criados de Baltasar?
- Nem um pio!... Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.
- E que lhe disse da senhora D. Teresa?
- Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que está
a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.
Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhando da estranha
liberalidade, Mariana, abraçando o pai no repartimento vizinho da casa, exclamava:
- Arranjou muito bem a mentira!
- Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo o arranjaste tu com essa tua cabecinha! Mas
a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que nem confeitos! Anda lá, que ficaste sem os
bezerros, mas lá virá tempo em que ele te dê bois a troco de bezerros.
- Eu não fiz isto por interesse, meu pai... - atalhou ela, ressentida.
- Olha o milagre! isso sei eu: mas, como diz lá o ditado; quem semeia, colhe.
Mariana quedou pensativa, e dizendo entre si: - Ainda bem que ele não pode pensar de
mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho esperanças nenhumas interesseiras
no que fiz.
Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:
- Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnância os seus favores, e
creio que vossemecê mos faria sem esperança de ganhar com eles; mas, como recebi
esta quantia, há-de consentir que lhe parte dela para os meus alimentos. Motivos de
gratidão a dividas que se não pagam. ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de
si e da sua boa filha. Tome este dinheiro.
- As contas fazem-se no fim - respondeu o ferrador, retirando a mão - e ninguém nos
de ouvir, se Deus quiser. Precisando eu de dinheiro, venh9. Por ora, ainda está a
capoeira cheia de galinhas, e o pão coze-se todas as semanas.
- Mas aceite - instou Simão - e dê-lhe a aplicação que quiser.
- Em minha casa ninguém leis senão eu - replicou mestre João, com simulado
enfadamento. - Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não falemos mais nisso, se quer que o
negócio vá direito até ao fim. E victo-sério!
Nos cinco subsequentes dias recebeu Simão regularmente cartas de Teresa, umas
resignadas e confortadoras, outras escritas na violência exasperada da saudade. Em uma
dizia:
"Meu pai deve saber que estás aí, e, enquanto estiveres, decerto me o tira do
convento. Seria bom que fosses para Coimbra, e deixássemos esquecer a meu pai os
últimos acontecimentos. Senão, meu querido esposo, nem ele me liberdade, nem eu
sei como hei de fugir deste inferno. Não fazes idéia do que é um convento! Se eu pudesse
fazer do meu coração sacrifício a Deus, teria de procurar uma atmosfera menos viciosa
que esta. Creio que em toda a parte se pode orar e ser virtuosa, menos neste convento".
Noutra carta exprimia-se assim:
"Não me desampares, Simão; não vás para Coimbra. Eu receio que meu pai me queira
mudar deste convento para outro mais rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava
aqui; outra positivamente me afirmou que o pai diligencia a minha ida para um mosteiro
do Porto. Sobretudo, o que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que o intento do pai
é fazer-me professar. Por mais que imagine violências e tiranias, nenhuma vejo capaz de
me arrancar os votos. Eu não posso professar sem ser noviça um ano, e ir a perguntar
três vezes; hei de responder sempre que o. Se eu pudesse fugir daqui!... Ontem fui à
cerca, e vi uma porta de carro que para o caminho. Soube que algumas vezes
aquela porta se abre para entrarem carros de lenha; mas infelizmente não se torna a abrir
até ao principio do inverno. Se não puder antes, meu Simão, fugirei nesse tempo".
Tiveram, entretanto, bom e pronto êxito as diligências de Tadeu de Albuquerque. A
prelada de Monchique, religiosa de sumas virtudes, cuidando que a filha de seu primo
muito de sua devoção e amor a Deus se recolhia ao mosteiro, preparou-lhe casa, e
congratulou-se com a sobrinha de tão piedosa resolução. A carta congratulatória não a
recebeu Teresa, porque viera à o de seu pai. Continha ela reflexões tendentes a
desvanecê-la do propósito, se algum desgosto passageiro a impedia à imprudência de
procurar um refúgio onde as paixões se exacerbavam mais.
Tomadas todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar sua filha de que sua tia
de Monchique a queria ter em sua companhia algum tempo, e que a jornada se faria na
madrugada do dia seguinte.
Teresa, quando recebeu a surpreendente nova, tinha enviado a carta daquele dia a
Simão. Em sua aflitiva perplexidade, resolveu fazer-se doente, e tão febril estava das
comoções, que dispensava o artifício. O velho não queria transigir com a doença; mas o
médico do mosteiro reagiu contra a desumanidade do pai e da prioresa, interessada na
violência. Quis Teresa nessa noite escrever a Simão; mas a criada da prelada,
obedecendo às suspeitas da ama, não desamparou a cabeceira do leito da enferma. Era
causa a esta espionagem ter dito a escrivã, numa hora de digestão daquele certo
vinho estomacal, que Teresa passava as noites em oração mental, e tinha
correspondência com um anjo do céu por intervenção duma mendiga. Algumas religiosas
tinham visto a mendiga no pátio do convento esperando a esmola de Teresa; mas
cuidaram que era aquela pobre uma devoção da menina. As palavras irônicas da escrivã
foram comentadas, e a mendiga recebeu ordem de sair da portaria. Teresa, num ímpeto
de angústia, quando tal soube, correu a uma janela, e chamou a pobre, que se retirava
assustada, e lançou-lhe ao pátio um bilhete com estas palavras: impossível a nossa
correspondência. Vou ser tirada daqui para outro convento. Espera em Coimbra notícias
minhas". Isto foi rapidamente ao conhecimento da prioresa, e, logo, às ordens dela, partiu
o hortelão no encalço da pobre. O hortelão seguiu-a até fora da porta, espancou-a, tirou-
lhe o bilhete, e foi do convento apresentá-lo a Tadeu de Albuquerque, A mendiga não
retrocedeu; caminhou a casa do ferrador, e contou a Simão o acontecido.
Simão lançou-se fora do leito e chamou João da Cruz. Naquele aperto queria ouvir uma
voz, queria poder chamar amigo a um homem que lhe estendesse mão capaz de apertar
o cabo dum punhal. O ferrador ouviu a história e deu o seu voto: "esperar até ver". Simão
repeliu a prudencial frieza do confidente, e disse que partia para Viseu imediatamente.
Mariana estava ali; ouvira a confidência, e achara acertada a opinião de seu pai.
Vedando, porém, a impaciência do hóspede, pediu licença para falar onde não era
chamada, e disse:
- Se o senhor Simão quer, eu vou à cidade e procuro no convento a Brito, que é uma
rapariga minha conhecida, moça duma freira, e dou-lhe uma carta sua para entregar à
fidalga.
- Isso é possível, Mariana? - exclamou Simão, a ponto de abraçar a moça.
- Pois então! - disse o ferrador - o que pode fazer-se, faz-se. Vai-te vestir, rapariga, que
eu vou botar o albardão à égua.
Simão sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as idéias, que não atinava a
formar o desígnio mais proveitoso à situação de ambos. Ao cabo de longa vacilação,
disse a Teresa que fugisse, à hora do dia, quando a porta estivesse aberta ou violentasse
a porteira a abrir-lha. Dizia-lhe que marcasse ela a hora do dia seguinte em que ele a
devia esperar com cavalgaduras para a fuga. Em recurso extremo, prometia assaltar com
homens armados o mosteiro, ou incendiá-lo para se abrirem as portas. Este programa era
o mais parecido com o espírito do acadêmico. Em vivo fogo ardia aquela pobre cabeça!
Fechada a carta, começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a
desencontrados impulsos. Encravara as unhas na cabeça, e arrancava os cabelos.
Investia como cego contra as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais
furioso ímpeto. Maquinalmente aferrava das pistolas, e sacudia os braços vertiginosos.
Abria a carta para relê-la, e estava a ponto de rasgá-la, cuidando que iria tarde, ou não
lhe chegaria às mãos. Neste conflito de contrários projetos, entrou Mariana, e muito
alucinado devia de estar Simão para lhe não ver as lágrimas.
O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é gratidão
ao homem que salvou a vida de teu pai, que rara virtude a tua! Se o amas, se por lhe dar
alívio às dores tu mesma lhe desempeces o caminho por onde te ele de fugir para
sempre, que nome darei ao teu heroísmo! Que anjo te fadou o coração para a santidade
desse obscuro martírio?!
- Estou pronta, disse Mariana.
- Aqui tem a carta, minha boa amiga. Faça muito por não vir sem resposta - disse Simão,
dando-lhe com a carta um embrulho de dinheiro.
- E o dinheiro também é para a senhora? - disse ela.
- Não, é para si, Mariana: compre um anel.
Mariana tomou a carta, e voltou rapidamente as costas para que Simão não lhe visse o
gesto de despeito senão desprezo.
O acadêmico não ousou insistir, vendo-a apressar-se na descida para o quinteiro, onde o
ferrador enfreava a égua.
- Não lhe chegues muito com a vara - disse João da Cruz a Mariana, que, de um pulo, se
assentou no albardão, coberto de uma colcha escarlate. - Tu vais amarela como cidra,
moça! - exclamou ele reparando na palidez da filha - Tu. que tens?
- Nada; que hei de eu ter?! dê-me cá a vara, meu pai.
A égua partiu a galope, e o ferrador, no meio da estrada, a rever-se na filha e na égua,
dizia em solilóquio, que Simão ouvira:
- Vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas tem Viseu! Pela mais pintada não dava eu
a minha égua; e, se viesse o Miramolim de Marrocas pedir-me a filha, os diabos me
levem se eu lha dava! Isto é que são mulheres, e o mais é uma história!
X
Apeou Mariana defronte do mosteiro, e foi à portaria chamar a sua amiga Brito.
- Que boa moça! - disse o padre capelão, que estava no raro lateral da porta, praticando
com a prioresa, acerca da salvação das almas, e de umas coretas de vinho do Pinhão
que ele recebera naquele dia, e do qual tinha engarrafado um almude para tonizar o
estômago da prelada.
- Que boa moça! - tornou ele, com um olho nela e outro no raro, onde a ciumosa prioresa
se estava remordendo.
- Deixe lá a moça, e diga quando há de ir a servente buscar o vinho.
- Quando quiser, senhora prioresa. Mas repare bem nos olhos, no feitio, naquele todo da
rapariga!...
- Pois repare o senhor padre João - replicou a freira - que eu tenho mais que fazer.
E retirou-se com o coração mal-ferido, e o queixo superior escorrendo lágrimas... de
simonte,
- Donde é vossemecê? - disse brandamente o padre capelão.
- Sou da aldeia - respondeu Mariana.
- Isso vejo eu... Mas de que aldeia é?
- Não me confesso agora.
- Mas não faria mal se se confessasse a mim, menina, que sou padre...
- Bem vejo.
- Que mal gênio tem!...
- É isto que vê.
- Quem procura cá no convento?
- Já disse lá para dentro quem procuro.
- Mariana, és tu?! Anda cá!
A moça fez uma cortesia de cabeça ao padre capelão, e foi ao locutório donde vinha
aquela voz.
- Eu queria falar contigo em particular, Joaquina - disse Mariana.
- Eu vou ver se arranjo uma grade: espera aí..
O padre tinha saído do pátio, e Mariana, enquanto esperava, examinou, uma a uma, as
janelas do mosteiro. Numa das janelas, através das reixas de ferro, viu ela uma senhora
sem hábito.
- Será aquela? - perguntou Mariana ao seu coração, que palpitava - Se eu fosse amada
como ela!...
- Sobe aquelas escadinhas, Mariana, e entra na primeira porta do corredor, que eu vou
- disse Joaquina.
Mariana deu alguns passos, olhou novamente para a janela onde vira a senhora sem
hábito, e repetiu ainda:
- Se eu fosse amada como ela!...
Mal entrou na grade, disse à sua amiga:
- Olha lá, Joaquina, quem é uma menina muito branca, alva como leite, que estava ali
agora numa janela?
- Seria alguma noviça, que há duas cá muito lindas.
- Mas ela não tinha vestimenta nenhuma de freira.
- Ah! já sei; é a D. Teresinha de Albuquerque.
- Então não me enganei - disse Mariana, pensativa.
- Pois tu conhece-la?
- Não; mas por amor dela é que eu cá vim falar contigo.
- Então que é?! Que tens tu com a fidalga?
- Eu cá, por mim nada; mas com uma pessoa que lhe quer muito.
- O filho do corregedor?
- Esse mesmo.
- Mas esse está em Coimbra,
- Não sei se está, nem se não. Faz-me tu um favor?
- Se eu puder...
- Podes... Eu queria falar com ela.
- Ó dianho! Isso não sei se poderá ser, porque a trazem as freiras debaixo de olho, e ela
vai-se embora amanhã.
- Para onde vai?
- Vai para outro convento, não sei se de Lisboa, se do Porto. Os baús estão
preparados, e ela está morta por sair. E tu que lhe queres?
- Não to posso dizer, porque não sei... Queria dar-lhe um papel... Faze com que ela venha
cá, que eu dou-te chita para um vestido.
- Como tu estás rica, Mariana!... - atalhou, rindo, Joaquina. - Eu não quero a tua chita,
rapariga. Se eu puder dizer-lhe que venha, sem que alguém me ouça, digo-lho. E agora é
boa maré, porque tocou ao coro... Deixa-me ir lá...
Joaquina saiu-se bem da difícil comissão. Teresa estava sozinha, absorvida a cismar,
com os olhos fitos no ponto onde vira Mariana.
- A menina faz favor de vir comigo depressinha? - disse-lhe a criada.
Seguiu-a Teresa, e entrou na grade, que Joaquina fechou, dizendo:
- O mais breve que possa bata por dentro para eu lhe abrir a porta. Se perguntarem por
vossa excelência, digo-lhe que a menina está no mirante.
A voz de Mariana tremia, quando D. Teresa lhe perguntou quem era.
- Sou uma portadora desta carta para vossa excelência.
- É de Simão! - exclamou Teresa.
- Sim, minha senhora.
A reclusa leu convulsiva a carta duas vezes, e disse:
- Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro, e ninguém me empresta
um. Diga-lhe que vou de madrugada para o convento de Monchique, do Porto. Que se
não aflija, porque eu sou sempre a mesma. Que o venha cá, porque isso seria inútil, e
muito perigoso. Que ver-me ao Porto, que hei de arranjar modo de lhe falar. Diga-lhe
isto, sim?
- Sim, minha senhora.
- Não se esqueça, não? Vir cá, por modo nenhum. É impossível fugir, e vou muito
acompanhada. Vai o primo Baltasar e as minhas primas, e meu pai e não sei quantos
criados de bagagem e das liteiras. Tirar-me no caminho é uma locura com resultados
funestos. Diga-lhe tudo, sim?
Joaquina disse fora da porta:
- Menina, olhe que a prioresa anda lá por dentro a procurá-la.
- Adeus, adeus - disse Teresa, sobressaltada. - Tome esta lembrança como prova de
minha gratidão.
E tirou do dedo um anel de ouro, que ofereceu a Mariana.
- Não aceito minha senhora.
- Por que não aceita?
- Porque não fiz algum favor a vossa excelência. A receber alguma paga de ser de
quem cá me mandou. Fique com Deus, minha senhora, e oxalá que seja feliz.
Saiu Teresa, e Joaquina entrou na grade.
- Já te vais embora, Mariana?
- Vou, que é pressa; um dia virei conversar contigo muito. Adeus, Joaquina.
- Pois não me contas o que isto é? O amor da fidalga está perto daqui? Conta, que eu não
digo nada, rapariga!...
- Outra vez, outra vez; obrigada, Joaquina?
Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga; e, se alguma vez
se distraia deste exercício de memória, era para pensar nas feições da amada do seu
hóspede, e dizer, como em segredo, ao seu coração: "Não lhe bastava ser fidalga e rica:
é, além de tudo, linda como nunca vi outra!" E o coração da pobre moça, avergando ao
que a consciência lhe ia dizendo, chorava.
Simão, de uma fresta do postigo do seu quarto, espreitava ao longo do caminho, ou
escutava a estropeada da cavalgadura.
Ao descobrir Mariana, desceu ao quinteiro, desprezando cautelas e esquecido do
ferimento, cuja crise de perigo piorara naquele dia, que era o oitavo depois do tiro.
A filha do ferrador deu o recado, e sem alteração de palavra. Simão escutara-a
placidamente até ao ponto em que lhe ela disse que o primo Baltasar a acompanhava ao
Porto.
- O primo Baltasar!... - murmurou ele com um sorriso sinistro - Sempre este primo Baltasar
cavando a sua sepultura e a minha!...
- A sua, fidalgo! - exclamou João da Cruz. - Morra ele, que o levem trinta milhões de
diabos! Mas vossa senhoria há de viver enquanto eu for João. Deixe-a ir para o Porto, que
não tem perigo no convento. De hora a hora Deus melhora. O senhor doutor vai para
Coimbra, está por algum tempo, e às duas por três, quando o velho mal se precatar, a
fidalguinha engrampa-o, e é sua tão certo como esta luz que nos alumia.
- Eu hei de vê-la antes de partir para Coimbra - disse Simão.
- Olhe que ela recomendou-me muito que não fosse lá - acudiu Mariana.
- Por causa do primo? - tornou o acadêmico ironicamente.
- Acho que sim, e por talvez não servir de nada ir vossa senhoria - respondeu
timidamente a moça.
- Lá, se quer, - brandou mestre João - a mulher, vai-se-lhe tirar ao caminho. Não tem mais
que dizer.
- Meu pai, não meta este senhor em maiores trabalhos? - disse Mariana.
- Não tem dúvida menina - atalhou Simão - eu é que não quero meter ninguém em
trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ela seja, hei de eu lutar sozinho.
João da Cruz, assumiu uma gravidade de que a sua figura raras vezes se enobrecia,
disse:
- Senhor Simão, vossa senhoria não sabe nada do mundo. Não meta sozinho a cabeça
aos trabalhos, que eles, como o outro que diz, quando pegam de ensarrilhar um homem,
não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou um rústico; mas, a bem dizer, estou naquela daquele
que dizia que o mal dos seus burrinhos o fizera alveitar. Paixões... que as leve o diabo, e
mais quem com elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei,
não se há de um homem botar a perder. Mulheres há tantas como a praga, e são como as
rãs do charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona da água. Um homem rico e
fidalgo como vossa senhoria, onde quer topa uma com um palmo de cara como se quer e
um dote de encher o olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca, que ela, se tiver de ser
sua, não lhe de vir dar, tanto andar para trás como para diante: é ditado dos antigos.
Olhe que isto não é medo, fidalgo. Tome sentido, que João da Cruz sabe o que é pôr dois
homens duma feita a olhar o sete-estrelo, mas não sabe o que é medo. Se o senhor quer
sair à estrada e tirar a tal pessoa ao pai, ao primo, e a um regimento, se for necessário,
eu vou montar na égua, e daqui a três horas estou de volta com quatro homens, que são
quatro dragões.
Simão fitara os olhos chamejantes no do ferrador, e Mariana exclamara, ajuntando as
mãos sobre o seio:
- Meu pai, não lhe dê esses conselhos!...
- Cala-te aí, rapariga! - disse mestre João. - Vai tirar o albardão à égua, amanta-a, e bota-
lhe seco. Não és aqui chamada.
- o aflita, senhora - disse Simão à moça, que se retirava, amargurada. - Eu não
aproveito alguns dos conselhos de seu pai. Ouço-o com boa vontade, porque sei que quer
o meu bem; mas hei de fazer o que a honra e o coração me aconselharem.
Ao anoitecer, Simão, como estivesse sozinho, escreveu uma longa carta, da qual
extratamos os seguintes períodos:
"Considero-te perdida, Teresa. O Sol de amanhã pode ser que eu o não veja. Tudo, em
volta de mim, tem uma cor de morte. Parece que o frio da minha sepultura me está
passando o sangue e os ossos.
Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não se conforma com a
desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza de que as contrariedades me não privavam
de ti, o receio de perder-te me mata. O que me resta do passado é a coragem de ir
buscar uma morte digna de mim e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu não
posso com ela.
Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um inferno. Não hei
de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim, Teresa; mas não haverá ai um infame que te
persiga depois da minha morte. Tenho ciúmes de todas as tuas horas. Hás de pensar
com muita saudade no teu espôoo do céu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua alma
para veres ao de ti o miserável que nos matou a realidade de tantas esperanças
formosas.
Tu verás esta carta quando eu estiver num outro mundo, esperando as orações das
tuas lágrimas. As orações! Admiro-me desta faisca de que me alumia nas minhas
trevas.!... Tu deras-me com o amor a religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz,
que é tua; mas a providência divina desamparou-me.
Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a tua lealdade a uma sombra, a
razão por que me atraíste a um abismo. Escutarás com glória a voz do mundo, dizendo
que eras digna de mim.
A hora em que leres esta carta..."
Não o deixaram continuar as lágrimas, nem depois a presença de Mariana. Vinha ela pôr
a mesa para a ceia, e, quando desdobrava a toalha, disse em voz abafada, como se a si
mesma somente o dissesse:
- É a última vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha casa!
- Por que diz isso, Mariana?
- Por que mo diz o coração.
Desta vez, o acadêmico ponderou supersticiosamente os ditames do coração da moça, e
com o silêncio meditativo deu-lhe a ela a evidência antecipada do vaticínio.
Quando voltou com a travessa da galinha, vinha chorando a filha de João da Cruz.
- Chora com pena de mim, Mariana? - disse Simão, enternecido.
- Choro, porque me parece que o não tornarei a ver; ou, se o vir, será de modo que oxa
que eu morresse antes de o ver.
- Não será, talvez, assim, minha amiga...
- Vossa senhoria não me faz uma coisa que eu lhe peço?
- Veremos o que pede, menina.
- Não saia esta noite, nem amanhã,
- Pede o impossível, Mariana. Hei de sair, porque me mataria se não saísse.
- Então perdoe a minha ousadia. Deus o tenha da sua mão.
A rapariga foi contar ao pai as intenções do acadêmico. Acudiu logo mestre João
combatendo a idéia da saída, com encarecer os perigos do ferimento. Depois, como não
conseguisse dissuadi-lo, resolveu acompanhá-lo. Simão agradeceu a companhia, mas
rejeitou-a com decisão. O ferrador não cedia do propósito, e estava preparando a
clavina, e arraçoando com medida dobrada a égua - para o que desse e viesse - dizia ele,
quando o estudante lhe disse que, melhor avisado, resolvera não ir a Viseu, e seguir
Teresa ao Porto, passados os dias de convalescença. Facilmente o acreditou João da
Cruz; mas Mariana, submissa sempre ao que o seu coração lhe bacorejava, duvidou da
mudança, e disse ao pai que vigiasse o fidalgo.
As onze horas da noite, ergueu-se o acadêmico, e escutou o movimento interior da casa:
não ouviu o mais ligeiro ruído, a não ser o rangido da égua na manjedoura. Escorvou de
pólvora nova as duas pistolas. Escreveu um bilhete sobrescritado a João da Cruz, e
ajuntou-o à carta que escrevera a Teresa. Abriu as portas da janela do seu quarto, e
passou dali para a varanda de pau, da qual o salto à estrada era sem risco. Saltou, e tinha
dado alguns passos, quando a fresta, lateral à porta da varanda, se abriu, e a voz de
Mariana lhe disse:
- Então adeus, senhor Simão. Eu fico pedindo a Nossa Senhora que na sua
companhia.
O acadêmico parou, e ouviu a voz intima que lhe dizia: - "O teu anjo da guarda fala pela
boca daquela mulher, que não tem mais inteligência que a do coração alumiado pelo seu
amor."
- Dê um abraço em seu pai. Mariana - disse-lhe Simão - e adeus... até logo, ou...
- Até ao juízo final... - atalhou ela.
- O destino há de cumprir-se... Seja o que o céu quiser.
Tinha Simão desaparecido nas trevas, quando Mariana acendeu a lâmpada do santuário,
e ajoelhou orando com o fervor das lágrimas.
Era uma hora, e estava Simão defronte do convento, contemplando uma a uma as
janelas. Em nenhuma vira da clarão de luz; a do lampadário do Sacramento se coava
baça e pálida na vidraça duma fresta do templo. Sentou-se nas escaleiras da igreja, e
ouviu ali, imóvel as quatro horas. Das mil visões que lhe relancearam no atribulado
espírito, a que mais a miúdo se repetia era a de Mariana suplicante, com as mãos postas;
mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos de Teresa, torturada pela saudade,
pedindo ao céu que a salvasse das mãos de seus algozes. O vulto de Ta deu de
Albuquerque, arrastando a filha a um convento, o lhe afogueava a sede da vingança;
mas cada vez que lhe acudia à mente a imagem odiosa de Baltasar Coutinho instin
tivamente as mãos do acadêmico se asseguravam da posse das pistolas.
As quatro horas e um quarto, acordou a natureza toda em hinos e aclamações ao raiar da
alva. Os passarinhos trinavam na cerca do mosteiro melodias interrompidas pelo toque
solene das Ave-Marias na torre. O horizonte passara de escarlate a alvacento. A púrpura
da aurora, como labareda enorme, desfizera-se em partículas de luz, que ondeavam no
declive das montanhas, e se distendiam nas planícies e nas várzeas, como se o anjo do
Senhor, à voz de Deus, viesse desenrolando aos olhos da criatura as maravilhas do
repontar dum dia festivo.
E nenhuma destas galas do céu e da terra enlevara os olhos do moço poeta.!
As quatro horas e meia, ouviu Simão o tinido de liteiras, dirigindo-se àquele ponto. Mudou
de local, tomando por uma rua estreita, fronteira ao convento.
Pararam as liteiras vazias na portaria, e logo depois chegaram três senhoras vestidas de
jornada, que deviam ser as irmãs de Baltasar, acompanhadas de dois mochilas com as
mulas à rédia. As damas foram sentar-se nos bancos de pedra, laterais à portaria. Em
seguida abriu-se a grossa porta, rangendo nos gonzos, e as três senhoras entraram.
Momentos depois, viu Simão chegar à portaria Tadeu de Albuquerque, encostado ao
braço de Baltasar Coutinho. O velho denotava quebranto e desfalecimento a espaços. O
de Castro-d'Aíre, bem composto de figura e caprichosamente vestido à castelhana,
gesticulava com o aprumo de quem as suas irrefutáveis razões, e consola tomando a
riso a dor alheia.
- Nada de lamúrias, meu tio! - dizia ele. - Desgraça seria vê-la casada! Eu prometo-lhe
antes de um ano restituir-lhe curada. Um ano de convento é um ótimo vomitório do
coração. Não nada como isso para limpar o sarro do vício em corações de meninas
criadas à discrição. Se meu tio a obrigasse, desde menina, a uma obediência cega, tê-la-
ia agora submissa, e ela não se julgaria autorizada a escolher marido.
- Era uma filha única, Baltasar! - dizia o velho soluçando.
- Pois por isso mesmo - replicou o sobrinho. - Se tivesse outra, ser-lhe-ia menos sensível
a perda, e menos funesta a desobediência. Faria a sua casa na filha mais querida,
embora tivesse de impetrar uma licençagia para deserdar a primogênita. Assim, agora,
não lhe vejo outro remédio senão empregar o cautério à chaga; com emplastros é que se
não faz nada.
Abriu-se novamente a portaria. e saíram as três senhoras, e após elas Teresa.
Tadeu enxugou as lágrimas, e deu alguns passos a saudar a filha, que não ergueu do
chão os olhos.
- Teresa... - disse o velho.
- Aqui estou, senhor - respondeu a filha, sem o encarar.
- Ainda é tempo - tornou Albuquerque.
- Tempo de quê?
- Tempo de seres boa filha.
- Não me acusa a consciência de o não ser.
- Ainda mais?!... Queres ir para tua casa, e esquecer o maldito que nos faz a todos
desgraçados?
- Não, meu pai. O meu destino é o convento. Esquecê-lo nem por morte. Serei filha
desobediente, mas mentirosa é que nunca.
Teresa, circunvagando os olhos, viu Baltasar, e estremeceu, exclamando:
- Nem aqui!
- Fala comigo, prima Teresa? - disse Baltasar, risonho.
- Consigo falo! Nem aqui me deixa a sua odiosa presença?
- Sou um dos criados que minha prima leva em sua companhia. Dois tinha eu dias,
dignos de acompanharem a minha prima, mas esses houve um assassino que mos
matou. A falta deles, sou eu que me ofereço.
- Dispenso-o da delicadeza - atalhou Teresa, com veemência.
- Eu é que me não dispenso de a servir, à falta dos meus dois fiéis criados, que um
celerado me matou.
- Assim devia ser - tornou ela também irônica -porque os cobardes escondem-se nas
costas dos criados, que se deixam matar.
- Ainda se não fizeram as contas finais..., minha querida prima - redargüiu o morgado.
Este diálogo correu rapidamente, enquanto Tadeu de Albuquerque cortejava a prioresa e
outras religiosas. As quatro senhoras, seguidas de Baltasar, tinham saído do átrio do
convento, e deram de rosto em Simão Botelho, encostado à esquina da rua fronteira.
Teresa viu-o... adivinhou-o, primeira de todas, e exclamou:
- Simão!
O filho do corregedor não se moveu.
Baltasar, espavorido do encontro, fitando os olhos nele, duvidava ainda.
- É incrível que este infame aqui viesse! - exclamou o de Castro-d'Aire.
Simão deu alguns passos, e disse placidamente:
- In[ame... eu! e por que?
- Infame, e infame assassino! - replicou Baltasar. - Já fora da minha presença!
- É parvo este homem! - disse o acadêmico. - Eu não discuto com sua senhoria... Minha
senhora - disse ele a Teresa, com a voz comovida e o semblante alterado unicamente
pelos afetos do coração. - Sofra com resignação, da qual eu lhe estou dando um exemplo.
Leve a sua cruz, sem amaldiçoar a violência, e bem pode ser que a meio caminho do seu
calvário a misericórdia divina lhe redobre as forças.
- Que diz este patife?! - exclamou Tadeu.
- Vem aqui insultá-lo, meu tio! - respondeu Baltasar, - Tem a petulância de se apresentar
a sua filha a confortá-la na sua malvadez! Isto é de mais! Olhe que eu esmago-o aqui, seu
vilão.
- Vilão é o desgraçado que me ameaça, sem ousar avançar para mim um passo -
redargüiu o filho do corregedor.
- Eu não o tenho feito - exclamou enfurecidamente Baltasar - por entender que me avilto,
castigando-o na presença de criados de meu tio, que tu podes supor meus defensores,
canalha!
- Se assim é - tornou Simão, sorrindo - espero nunca me encontrar de rosto com sua
senhoria. Reputo-o tão cobarde, tão sem dignidade, que o hei de mandar azorragar pelo
primeiro mariola das esquinas.
Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a garganta nas
mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as damas chegaram a interpor-
se entre os dois, Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala, que lhe entrara na
fronte. Vacilou um segundo, e caiu desamparado aos pés de Teresa.
Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados rodearam Simão,
que conservava o dedo no gatilho da outra pistola. Animados uns pelos outros e pelos
brados do velho, iam lançar-se ao homicida, com risco de vida, quando um homem, com
um lenço pela cara, correu da rua fronteira, e se colocou, de bacamarte aperrado, à beira
de Simão. Estacaram os homens.
- Fuja, que a égua está ao cabo da rua - disse o ferrador ao seu hóspede.
- Não fujo... Salve-se, e depressa - respondeu Simão.
- Fuja, que se ajunta o povo e não tardam aí soldados.
- lhe disse que não fujo - replicou o amante de Teresa, com os olhos postos nela, que
caíra desfalecida sobre as escadas da igreja.
- Está perdido! - tornou João da Cruz.
- o estava. -se embora, meu amigo, por sua filha lho rogo. Olhe que pode ser-me
útil; fuja...
Abriram-se todas as portas e janelas, quando o ferrador se lançou na fuga. até cavalgar a
égua.
Um dos vizinhos do mosteiro, que, em razão do seu ofício, primeiro saiu à rua, era o
meirinho geral.
- Prendam-no, prendam-no, que é um matador! - exclamava Tadeu de Albuquerque.
- Qual? - perguntou o meirinho geral.
- Sou eu - respondeu o filho do corregedor.
- Vossa senhoria! - disse o meirínho, espantado; e, aproximando-se, acrescentou a meia
voz: - Venha, que eu deixo-o fugir.
- Eu não fujo - tornou Simão. - Estou preso. Aqui tem a minhas armas.
E entregou as pistolas.
Tadeu de Albuquerque, quando se recobrou do espasmo, fez transportar a filha a uma
das liteiras, e ordenou que dois criados a acompanhassem ao Porto.
As irmãs de Baltasar seguiram o cadáver de seu irmão para casa do tio.
XI
O corregedor acorda com o grande rebuliço que ia na casa, e perguntou à esposa, que
ele supunha também desperta na câmara imediata, que bulha era aquela. Como ninguém
lhe respondesse, sacudiu freneticamente a campainha, e ferrou ao mesmo tempo,
aterrado pela hipótese de incêndio na casa. Quando D. Rita acudiu, já ele estava enfiando
os calções às avessas.
- Que estrondo é este? Quem é que grita? - exclamou Domingos Botelho.
- Quem grita mais é o senhor - respondeu D. Rita.
- Sou eu?! Mas quem é que chora?
- São suas filhas.
- E por quê? Diga numa palavra.
- Pois sim, direi: o Simão matou um homem.
- Em Coimbra?... E fazem tanta bulha por isso!
- Não foi em Coimbra, foi em Viseu - tornou D. Ri-ta.
- A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e mata em Viseu! Aí está um
caso para que as Ordenações do Reino não providenciaram.
- Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje Baltasar Coutinho,
sobrinho de Tadeu de Albuquerque.
Domingos Botelho mudou inteiramente de aspecto.
- Foi preso? - perguntou o corregedor.
- Está em casa do juiz de fora.
- Manda-me chamar o meirinho geral. Sabe como foi e por que foi essa morte?... Mande-
me chamar o meirinho, sem demora.
- Por que se não veste o senhor, e vai a casa do juiz?
- Que vou eu fazer a casa do juiz?
- Saber de seu filho como isto foi.
- Se não sou pai; sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogá-lo. Senhora D. Rita,
eu não quero ouvir choradeiras; diga às meninas que se calem, ou que vão chorar no
quintal.
O meirinho, chamado, relatou miudamente o que sabia e disse ter-se verificado que o
amor à filha do Albuquerque fora causa daquele desastre.
Domingos Botelho, ouvia a história, disse ao meirinho:
- O juiz de fora que cumpra as leis; se ele não for rigoroso, eu o obrigarei a sê-lo.
Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:
- Que significa esse modo de falar de seu filho?
- Significa que sou corregedor desta comarca, e que não protejo assassinos por ciúmes, e
ciúmes da filha dum homem, que eu detesto. Eu antes queria ver mil vezes morto Simão
que ligado a essa família. Escrevi-lhe muitas vezes dizendo-lhe que o expulsava de minha
casa, se alguém me desse a certeza de que ele tinha correspondência com tal mulher.
Não há de querer a senhora que eu vá sacrificar a minha integridade a um filho rebelde, e
de mais a mais homicida.
D. Rita, algum tanto por afeto maternal e bastante por espírito de contradição, contendeu
largo espaço; mas desistiu, obrigada pela insólita pertinácia e cólera do marido. Tão
iracundo e áspero em palavras nunca o ela vira. Quando lhe ele disse: - "Senhora, em
coisas de pouca monta o seu domínio era tolerável; em questões de honra, o seu domínio
acabou: deixe-me!" - D. Rita, quando tal ouviu, e reparou na fisionomia de Domingos
Botelho, sentiu-se mulher, e retirou-se.
A ponto foi isto de entrar o juiz de fora na sala de espera. O corregedor foi recebê-lo, não
com o semblante afetuoso de quem vai agradecer a delicadeza e implorar indulgência,
senão que, de carrancudo que ia, mais parecera ir ele representar o juiz, por vir naquela
visita dar a crer que a balança da justiça na sua mão tremia algumas vezes.
- Começo por dar a vossa senhoria os pêsames da desgraça de seu filho - disse o juiz de
fora.
- Obrigado a vossa senhoria. Sei tudo. Está instaurado o processo?
- Não podia deixar eu de aceitar a querela.
- Se a não aceitasse, obrigá-lo-ia eu ao cumprimento dos seus deveres.
- A situação do senhor Simão Botelho é ssima. Confessa tudo. Diz que matou o algoz
da mulher que ele amava...
- Fez muito bem - interrompeu o corregedor, soltando uma casquinada seca e rouca.
- Perguntei-lhe se foi em defesa, e fiz-lhe sinal que respondesse afirmativamente.
Respondeu que não; que, a defender-se, o faria com a ponta da bota, e não com um tiro.
Busquei todos os modos honestos de o levar a dar algumas respostas que denotassem
alucinação ou demência; ele, porém, respondeu e replica com tanta igualdade e presença
de espírito, que é impossível supor que o assassínio não foi perpetrado muito
intencionalmente e de claro juízo. Aqui tem vossa senhoria uma especialíssima e triste
posição. Queria valer-lhe, e não posso.
- E eu não posso nem quero, senhor doutor juiz de fora. Está na cadeia?
- Ainda não: está em minha casa. Venho saber se vossa senhoria determina que lhe seja
preparada com decência a prisão.
- Eu não determino nada. Faça de conta que o preso Simão não tem aqui parente algum.
- Mas, senhor doutor corregedor - disse o juiz de fora com tristeza e compunção - vossa
senhoria é pai.
- Sou um magistrado.
- É demasiada a severidade - perdoe-me a reflexão, que é amiga. está a lei para o
castigar; não o castigue vossa senhoria com o seu ódio. A desgraça quebranta o rancor
de estranhos, quanto mais o afetuoso ressentimento de um pai!
- Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me fala. Cumpra o seus
deveres, que lho ordena o corregedor, e o amigo mais tarde lhe agradecerá a delicadeza.
Saiu o juiz de fora, e foi encontrar Simão na mesma serenidade em que o deixara.
- Venho de falar com seu pai - disse o juiz; encontrei-o mais irado do que era natural
calcular. Penso que por enquanto nada pode esperar da influência ou patrocínio dele.
- Isto que importa? - respondeu sossegadamente Simão.
- Importa muito, senhor Botelho. Se seu pai quisesse haveria meios de mais tarde lhe
adoçar a sentença.
- Que me importa a mim a sentença? - replicou o filho do corregedor.
- Pelo que vejo, não lhe importa ao senhor ir a uma forca?
- Não, senhor.
- Que diz, senhor Simão! - redargüiu espantado o interrogador.
- Digo que o meu coração é indiferente ao destino da minha cabeça.
- E sabe que seu pai não lhe mesmo proteção, a proteção das primeiras necessidades
na cadeia?
- Não sabia; que tem isso? Que importa morrer de fome, ou morrer no patíbulo?
- Porque não escreve a sua mãe? Peça-lhe que...
- Que hei de eu pedir a minha mãe? - atalhou Simão.
- Peça-lhe que amacie a cólera de seu pai, senão o senhor Botelho não tem quem o
alimente.
- Vossa senhoria está-me julgando um miserável, a quem cuidado saber onde de
almoçar hoje. Penso que o incumbem ao senhor juiz de fora essas miudezas de
estômago.
- De certo não - redargüiu, irritado, o juiz - Faça o que quiser.
E, chamando o meirinho geral, entregou-lhe o réu, dispensando o aguazil de pedir força
para acompanhá-lo.
O carceireiro recebeu respeitosamente o preso, e alojou-o num dos quartos melhores do
cárcere; mas nu e desprovido do mínimo conforto.
Um outro preso emprestou-lhe uma cadeira de pau. Simão sentou-se, cruzou os braços e
meditou.
Pouco depois, um criado de seu pai conduziu-lhe o almoço, dizendo-lhe que sua mãe lho
mandava a ocultas, e entregando-lhe uma carta dela, cujo conteúdo importa saber.
Simão, antes de tocar no almoço, cujo cabaz estava no pavimento, leu o seguinte:
"Desgraçado, que estás perdido!
Eu não te posso valer, porque teu pai está inexorável: As escondidas dele é que te mando
o almoço, e não sei se poderei mandar-te o jantar!
Que destino o teu! Oxalá que tivesses morrido ao nascer!
Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não quis largar a vitima
(3).
Para que saiste de Coimbra? A que vieste, infeliz? Agora sei que tens vivido fora de
Coimbra há quinze dias, e nunca tiveste uma palavra que dissesses a tua mãe!. ."
Simão suspendeu a leitura, e disse entre si:
- Como se entende isto?! Pois minha mãe não mandou chamar o João da Cruz! E não foi
e]a quem me mandou o dinheiro?
- Olhe que o almoço arrefece, menino! - disse o criado.
Simão continuou a ler, sem ouvir o criado:
"Deves estar sem dinheiro, e eu desgraçadamente não posso hoje enviar-te um pinto. Teu
irmão Manuel, desde que fugiu para Espanha, absorve-me todas as economias -
Veremos, passado algum tempo, o que posso fazer; mas receio bem que teu pai saia de
Viseu, e nos leve para Vila-Real, para abandonar de todo o teu julgamento à severidade
das leis.
Meu pobre Simão! Onde estarias tu escondido quinze dias?! Hoje mesmo é que teu pai
teve carta dum lente, participando-lhe a tua falta nas aulas, e saída para o Porto, segundo
dizia o arreeiro que te acompanhou.
Não posso mais. Teu pai já espancou a Ritinha, por ela querer ir à cadeia.
Conta com o pouco valor da tua pobre e e ao dum homem enfurecido como está
teu pai" -
Simão Botelho refletiu alguns minutos, e convenceu-se de que o dinheiro recebido era de
João da Cruz. Quando saiu com o espírito desta meditação, tinha os olhos marejados de
lágrimas.
- Não chore, menino - disse o criado. - Os trabalhos o para os homens, e Deus de
fazer tudo pelo melhor. Almoce, senhor Simão.
- Leva o almoço - disse ele.
- Pois não quer almoçar?!
- Não. Nem voltes aqui. Eu não tenho família. Não quero absolutamente nada da casa de
meus pais. Diz a minha mãe que eu estou sossegado, bem alojado, e feliz, e orgulhoso da
minha sorte. Vai-te embora já.
O criado saiu, e disse ao carcereiro que o seu infeliz amo estava doido. D. Rita achou
provável a suspeita do servo, e viu a evidência da locura nas palavras do filho.
Quando o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado de uma rapariga
camponesa: era Mariana. A filha de João da Cruz, que até àquele momento não apertava
sequer a mão do hóspede. correu a ele com os braços abertos e o rosto banhado de
lágrimas. O carcereiro retirou-se, dizendo consigo: - "Esta é bem mais bonita que a
fidalga!"
- Não quero ver lágrimas, Mariana - disse Simão. - Aqui, se alguém deve chorar, sou eu;
mas lágrimas dignas de mim, lágrimas de gratidão aos favores que tenho recebido de si e
de seu pai. Acabo de saber que minha mãe nunca me mandou dinheiro algum. Era de seu
pai aquele dinheiro que recebi.
Mariana escondeu o rosto no avental com que enxugava o pranto.
- Seu pai teve algum perigo? - tornou Simão em voz perceptível dela.
- Não, senhor.
- Está em casa?
- Está, e parece furioso. Queria vir aqui, mas eu não o deixei.
- Perseguiu-o alguém?
- Não, senhor.
- Diga-lhe que não se assuste, e vá depressa sossegá-lo.
- Eu não posso ir sem fazer o que ele me disse. Eu vou sair, e volto daqui a pouco.
- Mande-me comprar uma banca, uma cadeira, e um tinteiro e papel - disse Simão,
dando-lhe dinheiro.
- Há de vir logo tudo; já cá podia estar; mas o pai disse-me que não comprasse nada sem
saber se sua família lhe mandava o necessário.
- Eu não tenho família, Mariana. Tome o dinheiro.
- Não recebo dinheiro, sem licença de meu pai. Para essas compras trouxe eu demais. E
a sua ferida como estará?
- Ainda agora me lembro que tenho uma ferida! - disse Simão, sorrindo. - Deve estar boa,
que não me dói... Soube alguma coisa de D. Teresa?
- Soube que foi para o Porto. Estavam ali a contar que o pai a mandara meter sem
sentidos na liteira, e está muito povo à porta do fidalgo.
- Está bom, Mariana... Não desgraçado sem amparo. Vá, pense no seu hóspede, seja
o seu anjo de misericórdia.
Saltaram de novo as lágrimas dos olhos da moça; e, por entre soluços, estas palavras:
- Tenha paciência. Não há de morrer ao desamparo. Faça de conta que lhe apareceu hoje
uma irmã.
E, dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoitos e uma garrafa de licor
de canela, que depôs sobre a cadeira.
- Mau almoço é; mas não achei outra coisa pronta - disse ela, e saiu apressada, como
para poupar ao infeliz palavras de gratidão.
XII
O corregedor, nesse mesmo dia, ordenou que se preparassem mulher e filhas para no dia
imediato saírem de Viseu com tudo que pudesse ser transportado em cavalgaduras.
Vou descrever a singela e dorida reminiscência duma senhora daquela família, como a
tenho em carta recebida há meses:
"Já vão cinqüenta e sete anos, e ainda me lembro, como se fossem ontem passados,
os tristes acontecimentos da minha mocidade. Não sei como é que tenho hoje mais clara
a memória das coisas da infância. Parece-me que há trinta anos me não lembravam com
tantas circunstâncias e pormenores.
Quando a mãe disse a mim e as minhas irmãs que preparássemos os nossos baús,
rompemos todas num choro que irritou a ira do pai. As manas, como mais velhas ou mais
afeitas ao castigo, calaram-se logo. Eu, porém, que uma vez, e unicamente por causa
de Simão, tinha sido castigada, continuei a chorar, e tive o inocente valor de pedir ao pai
que me deixasse ir ver o mano à cadeia antes de sairmos de Viseu.
Então fui castigada pela segunda vez, e asperamente.
O criado que levou o jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que Simão já tinha
alguns móveis no seu quarto, e estava jantando com exterior sossegado. Aquela hora
todos os sinos de Viseu estavam dobrando a finados por alma de Baltasar.
Ao dele disse o criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e coberta de
lágrimas. Apontando-a ao criado que a observava, disse Simão: - A minha família é esta.
No dia seguinte, ao romper da manhã, partimos para Vila-Real. A mãe chorava sempre; o
pai, encolerizado por isso, saiu da liteira em que vinha com ela, fez que eu passasse para
o seu lugar, e fez toda a jornada na minha cavalgadura.
Logo que chegamos a Vila-Real, eram tão freqüentes as desordens em casa, à conta do
Simão, que meu pai abandonou a família, e foi sozinho para a quinta de Montezelos. A
mãe quis também abandonar-nos e ir para os primos de Lisboa, a fim de solicitar o
livramento do mano. Mas o pai. que fizera uma espantosa mudança de gênio, quando tal
soube, ameaçou minha mãe de a obrigar judicialmente a não sair da casa de seu marido
e filhas.
Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ela que o filho não respondia:
anos depois, vimos entre os papéis de meu pai todas as cartas que ela escrevera. se
vê que o pai as fazia tirar no correio.
Uma senhora de Viseu escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e caridade com que
ela acudia às necessidades de seu infeliz filho. Esta carta foi-lhe entregue por um
almocreve; quando não, teria o destino das outras. Espantou-se minha mãe do conceito
em que a tinha a sua amiga, e confessou-lhe que não o tinha socorrido, porque o filho
rejeitara o pouco que ela quisera fazer em seu bem. A isto respondeu a senhora de Viseu
que uma rapariga, filha dum ferrador, estava vivendo nas vizinhanças da cadeia, e
cuidava do preso com abundância e limpeza, e a todos dizia que ali estava por ordem e à
custa da senhora D. Rita Preciosa. Acrescentava a amiga de minha mãe que algumas
vezes mandara chamar a bela moça, e lhe quisera dar alguns cozinhados mais esquisitos
para Simão, os quais ela rejeitava, dizendo que o senhor Simão não aceitava nada.
De tempos a tempos recebíamos estas novas, sempre triste, porque, na ausência de meu
pai, conspiraram, como era de esperar, quase todas as pessoas distintas de Viseu contra
o meu desgraçado irmão.
A mãe escrevia aos seus parentes da capital implorando a graça gia para o filho; mas
aquelas cartas não saiam do correio, e iam dar todas à mão de meu pai.
E que fazia este, entretanto, na quinta, sem família, sem glória, nem recompensa alguma
a tantas faltas? Rodeado de jornaleiros, cultivava aquele grande montado onde ainda
hoje, por entre os tojos e urzes, que voltaram com o abandono, se podem ver relíquias de
cepas plantadas por ele. A mãe escrevia-lhe lastimando o filho; meu pai apenas respondia
que a justiça não era uma brincadeira, e que na antigüidade os próprios pais condenavam
os filhos criminosos.
Teve minha mãe a afoiteza de se lhe apresentar um dia, pedindo licença para ir a Viseu.
Meu inexorável pai negou-lha, e invectivou-a furiosamente.
Passados sete meses, soubemos que Simão tinha sido condenado a morrer na forca,
levantada no local onde fizera a morte. Fecharam-se as janelas por oito dias; vestimos de
luto, e minha mãe caiu doente.
Quando isto se soube em Vila-Real, todas as pessoas ilustres da terra foram a
Montezelos, a fim de obrigarem brandamente o pai a empregar o seu valimento na
salvação do filho condenado. De Lisboa vieram alguns parentes protestar contra a
infâmia, que tamanha ignomínia faria recair sobre a família, Meu pai a todos respondia
com estas palavras: - A forca não foi inventada somente para os que não sabem o nome
do seu avô. A ignominia das famílias são as más ações. A justiça não infama senão
aquele que castiga.
Tínhamos nós um tio-avô, muito velho e venerando, chamado Antônio da Veiga. Foi este
quem fez o milagre, e foi assim: Apresentou-se a meu pai, e disse-lhe: - Guardou-me
Deus a vida até aos oitenta e três anos. Poderei viver mais dois ou três? Isto nem é
vida; mas foi-o, e honrada, e sem mancha até agora, e agora de assim acabar;
meus olhos não hão de ver a desonra de sua família. Domingos Botelho, ou tu me
prometes aqui de salvar teu filho da forca, ou eu na tua presença me mato. - E, dizendo
isto, apontava ao pescoço uma navalha de barba. Meu pai teve-lhe mão do braço, e disse
que Simão não seria enforcado.
No dia seguinte, foi meu pai para o Porto, onde tinha muitos amigos na Relação, e de lá
para Lisboa. (4)
Em principio de março de 1805, soube minha mãe, com grande prazer, que Simão fora
removido para as cadeias da Relação do Porto, vencendo os grandes obstáculos que
opuseram a essa mudança os queixosos, que eram Tadeu de Albuquerque e as irmãs do
morto.
Depois..."
Suspendemos aqui o extrato da carta para não anteciparmos a narrativa de sucessos,
que importa, em respeito à arte, atar no fio cortado.
Simão Botelho vira imperturbável chegar o dia do julgamento. Sentou-se no banco dos
homicidas sem patrono nem testemunhas de defesa. As perguntas respondeu com o
mesmo ânimo frio daquelas respostas ao interrogatório do juízo. Obrigado a explicar a
causa do crime, deu-a com toda a lealdade, sem articular o nome de Teresa Clementina
de Albuquerque. Quando o advogado da acusação proferiu aquele nome, Simão Botelho
ergueu-se de golpe, e exclamou:
- Que vem aqui fazer o nome de uma senhora a este antro de infâmia e sangue? Que
miserável acusador está ai, que não sabe, com a confissão do réu, provar a necessidade
do carrasco sem enlamear a reputação duma mulher? A minha acusação está feita: eu a
fiz. Agora a lei que fale, e cale-se o vilão que não sabe acusar sem infamar.
O juiz impôs-lhe silêncio. Simão sentou-se, murmurando:
- Miseráveis todos!
Ouviu o réu a sentença de morte natural para sempre na forca, arvorada no local do
delito. E ao mesmo tempo saíram dentre a multidão uns gritos dilacerantes. Simão voltou
a face para as turbas, e disse:
- Ides ter um belo espetáculo, senhores! A forca é a única festa do povo! Levai dai essa
pobre mulher que chora: essa é a criatura única para quem o meu suplício não será um
passatempo,
Mariana foi transportada em braços à sua casinha, na vizinhança da cadeia. Os robustos
braços que a levam eram os de seu pai, Simão Botelho, quando, em toda a agilidade e
força dos dezoito anos, ia do tribunal ao cárcere, ouviu algumas vozes que se alteravam
deste modo:
- Quanto vai ele a padecer?
- É bem feito! Vai pagar pelos inocentes que o pai mandou enforcar.
- Queria apanhar a morgada à força de balas!
- Não que estes fidalgos cuidam que não é mais senão matar!...
- Matasse ele um pobre. e tu verias como ele estava em casal
- Também é verdade!
- E como ele vai de cara no ar!
- Deixa ir, que não tarda quem lha faça cair ao chão!...
- Dizem que o carrasco já vem pelo caminho.
- Já chegou de noite, e trazia dois cutelos numa coifa.
- Tu viste-o?
- Não; mas disse a minha comadre que lho dissera a vizinha do cunhado da irmã, que o
carrasco está escondido numa enxovia.
- Tu hás de levar os pequenos a ver o padecente?
- Pudera não! Estes exemplos não se devem perder.
- Eu cá de mim já vi enforcar três, que me lembre, todos por matadores.
- Por isso tu, há dois anos, não atiraste com a vida do Amaro Lampreia a casa do diabo!...
- Assim foi; mas, se eu o não matasse, matava-me ele.
- Então de que voga o exemplo?!
- Eu sei de que voga? O frei Anselmo dos franciscanos é que prega aos país que
levem os filhos a verem os enforcados.
- Isso há de ser para o não esfolarem a ele, quando ele nos esfola com os peditórios.
Tão desassombrado ia o espírito de Simão, que algumas vezes esvoaçou nos lábios um
sorriso, desafiado pela filosofia do povo, à cerca da forca,
Recolhido ao seu quarto. foi intimado para apelar, dentro do prazo legal. Respondeu que
não apelava, que estava contente da sua sorte, e de boas avanças com a justiça.
Perguntou por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar. Veio João da
Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a falar em forca e a
pedir que a matassem primeiro. Agudíssíma foi então a dor do acadêmico ao
compreender, como se instantaneamente lhe fulgurasse a verdade, que Mariana o amava
até o extremo de morrer. Por momentos se lhe esvaiu do coração a imagem de Teresa,
se é possível assim pensá-lo. Vê-la-ia porventura como um anjo redimido em serena
contemplação do seu criador; e veria Mariana como o símbolo da tortura, morrer a
pedaços, sem instantes de amor remunerado que lhe dessem a glória do martírio. Uma,
morrendo amada; outra, agonizando, sem ter ouvido a palavra "amor" dos lábios que
escassamente balbuciavam frias palavras de gratidão.
E chorou então aquele homem de ferro. Chorou grimas que valiam bem as amarguras
de Mariana.
- Cuide de sua filha, senhor Cruz! - disse Simão com fervente súplica ao ferrador - Deixe-
me a mim, que estou vigoroso e bom. consolar essa criatura, que nasceu debaixo da
minha estrela. Tire-a de Viseu; leve-a para sua casa. Salve-a, para que neste mundo
fiquem duas irmãs que me chorem. Os favores que me tem feito, agora dispensa-os a
brevidade da minha vida. Daqui a dias mandam-me recolher ao oratório; bom será sua
filha ignore.
De volta, João da Cruz achou a filha prostada na pavimento, ferida no rosto, chorando e
rindo, demente em suma. Levou-a amarrada para sua casa, e deixou a cargo de outra
pessoa a sustentação do condenado.
Terribilíssimas foram então as horas solitárias do infeliz. Até àquele dia, Mariana,
benquista do carcereiro e protegida pela amiga de D. Rita Preciosa, tinha franca entrada
no cárcere a toda a hora do dia, e raras horas deixava sozinho o preso. Costurava
enquanto ele escrevia, ou cuidava do amanho e limpeza do quarto. Se Simão estava no
leito doente ou prostrado, Mariana, que tivera alguns princípios de escrita, sentava-se à
banca, e escrevia cem vezes o nome de Simão, que muitas vezes as lágrimas deliam. E
isto assim, durante sete meses, sem nunca ouvir nem proferir a palavra amor. Isto assim,
depois das vigílias noturnas, ora em preces, ora em trabalho, ora no caminho de sua
casa, onde ia visitar o pai a desoras.
Nunca mais o preso, na perspectiva da forca, viu entrar aquela doce criatura o limiar da
ferrada porta, que lhe graduava o ar, medido e calculado para que as inteiras horas da
asfixia as gozasse o cordel do patíbulo. Nunca mais!
E, quando ele evocava a imagem de Teresa, um capricho dos olhos quebrantados lhe
afigurava a visão de Mariana ao par da outra. E lacrimosas via as duas. Saltava então do
leito, fincava os dedos nos espessos ferros da janela, e pensava em partir o crânio contra
as grades.
Não o sustinha a esperança na terra, nem no céu. Raio de luz divina jamais penetrou no
seu ergástulo. O anjo da piedade encarnada naquela criatura celestial que enlouquecera,
ou voltara para o céu com o espírito dela. O que o salvara do suicídio não era, pois,
esperanças em Deus, nem nos homens; era este pensamento: "Afinal, cobarde! Que
bravura é morrer quando não esperança da vida?! A forca é um triunfo quando se
encontra ao cabo do caminho da honra
XIII
- E Teresa?
Perguntam a tempo, minha senhoras, e não me hei de queixar se me argüírem de a ter
esquecido e sacrificado a incidentes de menosporte.
Esquecido, não. Muito que me reluz e voeja, alada como o ideal querubim dos santos,
nesta minha quase escuridade (5), aquela ave do céu, como a pedir-me que lhe cubra de
flores o restilho de sangue que ela deixou na terra. Mais lágrimas que sangue deixaste, ó
filha da amargura! Flores são tuas lágrimas, e do céu me diz se os perfumes delas não
valem mais aos pés do teu Deus que as preces de muita devota que morre santificada
pelo mundo, e cujo cheiro de santidade não passa do olfato hipócrita ou estúpido dos
mortais.
Teresa Clementina bem a viam transportada da escadaria do templo onde caíra, à liteira
que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento, viu defronte de si uma criada, que lhe
dizia banais e frias expressões de alívio. Se alguma criada de seu pai lhe era amiga,
decerto não aquela, acintemente escolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para
tal expansão em gritos restava à afligida menina! Mas um raio de piedade ferira o peito da
mulher até àquela hora desafeta a sua ama.
Perguntava-se a si mesma Teresa se aquela horrorosa situação seria um sonho! Sentia-
se de novo falecer de forças, e voltava à vida, sacudida pela consciência da sua
desgraça. Condoeu-se a criada, e incitou-a a respirar, chorando com ela, e dizendo-lhe:
- Pode falar, menina, que ninguém nos segue.
- Ninguém?!
- As suas primas ficaram: apenas vêm os dois lacaios.
- E meu pai não?
- Não, fidalga... Pode chorar e falar à sua vontade.
- E eu vou para o Porto?
- Vamos, sim minha senhora.
- E tu viste tudo como foi, Constança?
- Desgraçadamente vi...
- Como foi? Conta-me tudo.
- A menina bem sabe que seu primo morreu.
- Morreu?! Vi-o cair quase nos meus pés; mas...
- Morreu logo, e depois quiseram os criados, à voz de seu pai, prender o senhor Simão;
mas ele com outra pistola...
- E fugiu? - atalhou Teresa, com veemente alegria.
- Afinal foi ele que se deu à prisão.
- Está preso?!
E, sufocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras confortadoras de
Constança.
Serenado algum tanto o violento acesso de gemidos e choro, Teresa sugeriu à criada o
louco plano de a deixar fugir da primeira estalagem onde pousassem para ela ir a Viseu
dar o último adeus a Simão.
A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos perigos que ia
acumular à desgraça do seu amante, e animando-a com a esperança de livrar-se Simão
do crime, com a influência do pai, apesar da perseguição do fidalgo.
Calaram lentamente estas razões no espírito de Teresa. Chorosa, ansiada e a reveses
desfalecida, foi Teresa vencendo a distância que a separava de Monchique, onde chegou
ao quinto dia de jornada.
A preladaestava sabedora dos sucessos, por emissários que se adiantaram ao moroso
caminhar da liteira.
Foi Teresa recebida com brandura por sua tia, posto que as recomendações de Tadeu de
Albuquerque eram clausura rigorosa e absoluta privação de meios de escrever a quem
quer que fosse.
Ouviu a prelada da boca de sua sobrinha a fiel história dos acontecimentos, e viu uma a
uma as cartas de Simão Botelho. Choraram abraçadas; mas a prelada, enxugadas as
lágrimas de mulher ao fogo da austeridade religiosa, falou e aconselhou como freira, e
freira que ciliciava o corpo com as rosetas, e o coração com as privações tormentosas de
quarenta anos.
Teresa carecia de forças para a rebelião. Deixou a sua tia a santa vaidade de exorcismar
o demônio das paixões, e deu um sorriso ao anjo da morte, que, de permeio ao seu amor
e à esperança, lhe interpunha a asa negra que tão de luz refulgente rebrilha às vezes em
corações infelizes.
Quis Teresa escrever.
- A quem, minha filha? - perguntou a prelada.
Teresa não respondeu.
- Escrever-lhe para quê? - tornou a religiosa. - Cuidas tu, menina, que as tuas cartas lhe
chegam à mão? Que vais tu fazer senão redobrar a ira de teu pai contra ti e contra o
infeliz preso?! Se o amas, como creio, apesar de tudo, cuida em salvá-lo. Se não ouves a
minha razão, finge-te esquecida. Se podes violentar a tua dor, dissimula, faze muito
porque o teu pai chegue a noticia de que lhe serás dócil em tudo, se ele tiver piedade do
teu pobre amigo.
Não recalcitrou Teresa. Deu outro sorriso ao anjo da morte, e pediu-lhe que a envolvesse
a ela, e ao seu amor, e à sua esperança, de todo, na negrura de suas asas.
De mês a mês recebia a abadessa de Monchique uma carta de seu primo. Eram estas
cartas um respiradouro de vingança. Em todas dizia o velho que o assassino iria ao
patíbulo irremediavelmente. A sobrinha não via as cartas; mas reparava nas lágrimas da
compassiva freira.
A débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A ciência condenou-a a morte
breve. Disto foi informado Tadeu de Albuquerque, e respondeu: - "Que a não desejava
morta; mas, se Deus a levasse, morreria mais tranqüilo, e com a sua honra sem mancha",
Era assim imaculada a honra do fidalgo de Viseu!... A HONRA, que dizem proceder em
linha reta da virtude de Sócrates, da virtude de Jesus Cristo, da virtude de milhões de
mártires, que se deram às garras das feras, quando predicavam a caridade e o perdão
aos homens!
Quantas carícias inventou a simpatia e a piedade, todas, por ministério das religiosas
exemplares de Monchique, aporfiaram em refrigerar o ardor que consumia rapidamente a
reclusa. Inútil tudo. Teresa reconhecia com lágrimas a compaixão, e, ao mesmo tempo,
alegrava-se tirando das carícias a certeza de que os médicos a julgavam incurável,
Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do convento dos Remédios
de Lamengo lhe dissera que Simão tinha sido condenado à morte.
- E eu vivo ainda!
Depois orou, e chorou; mas os costumes da sua vida em paroxismos continuaram
inalteráveis.
Perguntou à senhora que lhe dera a noticia se a sua amiga do convento dos Remédios
lhe faria a esmola de fazer chegar às mãos de Simão uma carta. Prontificou-se a freira,
depois que ouviu o parecer da prelada. Entendeu esta religiosa que O derradeiro colóquio
entre dois moribundos não podia danificá-los na vida temporal, nem na vida eterna.
Esta é a carta que leu Simão, quinze dias depois do seu julgamento:
"Simão, meu esposo. Sei tudo... Está conosco a morte. Olha que te escrevo sem
lágrimas. A minha agonia começou sete meses. Deus é bom, que me poupou ao
crime. Ouvi a notícia da tua próxima morte, e então compreendi porque estou morrendo
hora a hora. Aqui está o nosso fim, Simão!... Olha as nossas esperanças! Quando tu me
dizias os teus sonhos de felicidade, e eu te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os
nossos inocentes desejos?!... Porque não merecemos nós o que tanta gente tem?...
Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A eternidade apresenta-se-me tenebrosa,
porque a esperança era a luz que me guiava de ti para a fé. Mas não pode findar assim o
nosso destino. se podes segurar o último fio da tua vida a uma esperança qualquer.
Ver-nos-emos num outro mundo, Simão? Terei eu merecido a Deus contemplar-te? Eu
rezo, suplico, mas desfaleço na fé quando me lembram as últimas agonias do teu martírio.
As minhas são suaves; quase que as não sinto. Não deve custar a morte a quem tiver o
coração tranqüilo. O pior é a saudade, saudade daquelas esperanças que tu achavas no
meu coração, adivinhando as tuas. Não importa, se nada além desta vida. Ao menos,
morrer. Se tu pudesses viver agora, de que te serviria? Eu também estou condenada, e
sem remédio. Segue-me, Simão! Não tenhas saudades da vida, não tenhas, ainda que a
razão te diga que podias ser feliz, se me não tivesses encontrado no caminho por onde te
levei à morte... E que morte, meu Deus!... Aceita-a! Não te arrependas. Se houver crime,
a justiça de Deus te perdoará pelas angústias que tens de sofrer no cárcere... e nos
últimos dias, e na presença da..."
Teresa ia escrever uma palavra, quando a pena lhe caiu da mão, e uma convulsão lhe
vibrou todo o corpo por largo espaço. Não escreveu a palavra! Mas a idéia da força parou-
lhe a vida. A freira entrou na cela a pedir-lhe a carta, porque o correio ia a partir. Teresa,
indicando-lhe, disse:
- Leia, se quiser, e feche-a, por caridade, que eu não posso.
Nos três dias seguintes Teresa não saiu do leito. A cada hora as religiosas assistentes
esperavam que ela fechasse os olhos.
- Custa muito morrer! - dizia algumas vezes a enferma.
Não faltavam piedosos discursos a divertirem-lhe o espírito do mundo,
Teresa ouvia-os, e dizia com ânsia:
- Mas a esperança do céu, sem ele!... Que é o céu, meu Deus?
E o apostólico capelão do mosteiro não sabia dizer se os bens do céu tinham comum com
os do mundo as delícias que falsamente na terra se chamam assim. Aquelas sutilezas
espirituais que vêm com algumas espécies de física, assim à maneira dos últimos
lampejos da vital flama, tinha-as a enferma, quando acontecia falarem-lhe as religiosas na
bem-aventurança. Às vezes, se o capelão, convidado pela lucidez de Teresa, entrava os
domínios da filosofia, tratando como tema a imortalidade da alma, a inculta senhora
argumentava em breves termos, com razões tão claras a favor da união eterna das almas,
deste mundo esposas, que o padre ficava em dúvidas se seria herético contestar uma
cláusula não inscrita em algum dos quatro evangelhos.
Maravilhava-se já a medicina da pertinácia daquela vida. Tinha a abadessa escrito a seu
primo Tadeu, apressando-o a ir ver o anjo ao despedir-se da terra. O velho, tocado de
piedade e por ventura de amor paternal, deliberou tirar do convento a filha, na esperança
de salvá-la ainda, Uma forte razão acrescia àquela: era a mudança do condenado para os
cárceres do Porto. Deu-se pressa, pois, o fidalgo, e chegou ao Porto a tempo que a
religiosa, amiga da outra de Lamego, entregava à doente esta carta de Simão:
"Não me fujas ainda, Teresa. não vejo a forca, nem a morte. Meu pai protege-me, e a
salvação é possível. Prende ao coração os últimos fios da tua vida. Prolonga a tua agonia,
enquanto te eu disser que espero. Aman vou para as cadeias do Porto, e hei de ali
esperar a absolvição ou comutação da sentença. A vida é tudo. Posso amar-te no
degredo. Em toda a parte céu, e flores, e Deus. Se viveres, um dia serás livre; a pedra
do sepulcro é que nunca se levanta, Vive, Teresa, vive! Há dias, lembrava-me que as tuas
lágrimas lavariam da minha face as nódoas do sangue do enforcado. Esse pesadelo atroz
passou. Agora neste inferno respira-se; o esparto do carrasco me não aperta em
sonhos a garganta. fito os olhos no céu, e reconheço a providência dos infelizes.
Ontem, vi as nossas estrelas, aquelas dos nossos segredos nas noites da ausência. Volvi
à vida, e tenho o coração cheio de esperanças. Não morras, filha da minha alma!"
Ia alta a noite, quando Teresa, sentada no seu leito, leu esta carta. Chamou a criada, para
ajudá-la a vestir, Mandou abrir a janela do seu quarto, e encostou as faces às reixas de
ferro. Esta janela olhava para o mar, e o mar era nessa noite uma imensa flama de prata;
e a Lua, esplendidíssima, eclipsava o fulgor dumas estrelas que Teresa procurava no céu.
- São aquelas! - exclamou ela.
- Aquelas que, minha senhora? - disse Constança.
- As minhas estrelas!... pálidas como eu... A vida! ai! a vida! - clamou ela, erguendo-se, e
passando pela fronte as mãos cadavéricas - Quero viver! Deixai-me viver, ó Senhor!
- Há de viver, menina! Há de viver, que Deus é piedoso! - disse a criada - mas não tome o
ar da noite. Este nevoeiro do rio faz-lhe grande mal.
- Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver... Não vejo o céu tanto tempo! Sinto-me
ressuscitar aqui, Constança! Por que não tenho eu respirado todas as noites este ar? Eu
poderia viver alguns anos? Poderei, minha Constança? Pede tu, pede muito à minha
Virgem Santíssima! Vamos orar ambas! Vamos, que o Simão não morre... O meu Simão
vive, e quer que eu viva. Está no Porto amanhã, e talvez já esteja...
- Quem, minha senhora?!
- Simão; o Simão vem para o Porto.
A criada julgou que a sua ama delirava, mas não a contrariou.
- Teve carta dele a fidalga? - tornou ela, cuidando que assim lhe alimentava aquele
instante de febril contentamento.
- Tive... Queres ouvir?... Eu leio...
E leu a carta, com grande pasmo de Constança, que se convenceu.
- Agora vamos rezar, sim?... Tu não és inimiga dele, não? Olha, Constança, se eu casar
com ele, tu vais para a nossa companhia. Verás como és feliz, Queres ir, não queres?
- Sim, minha senhora, vou. Mas ele conseguirá livrar-se da morte?
- Livra; tu verás que livra; o pai dele de livrá-lo... e a Virgem Santíssima é que nos
de unir. Mas, se eu morro... se eu morro, meu Deus!
E, com as mãos convulsivamente enlaçadas sobre o seio, Teresa arquejava em pranto.
- Se eu não tenho já forças!... Todos dizem que eu morro, e o médico já nem me receita!...
Então melhor me fora ter acabado antes desta hora! Morrer com esperanças, ó Mãe de
Deus!
E ajoelhou ante o retábulo devoto que trouxera do seu quarto de Viseu, ao qual sua mãe
e avó tinham orado, e em cujo rosto compassivo os olhos das duas senhoras
moribundas tinham apagado os seus últimos raios de luz.
XIV
Anunciara-se Tadeu de Albuquerque na portaria de Monchique, ao dia seguinte dos
anteriores sucessos.
Sua prima, primeira senhora que lhe saiu ao locutório, vinha enxugando as lágrimas de
alegria.
- Não cuide que eu choro de aflita, meu primo - disse ela. - O nosso anjo, se Deus quiser,
pode salvar-se. Logo de manhã a vi passear por seu pé nos dormitórios. Que diferença de
semblante ela tem hoje! Isto, meu primo, é milagre de duas santas que temos inteiras na
claustura, e com as quais algumas perfeitas criaturas desta casa se apegaram. Se as
melhoras continuarem assim, temos a Teresa; o céu consente que esteja entre nós
aquele anjo mais alguns anos...
- Muito folgo com o que me diz, minha boa prima - atalhou o fidalgo. - A minha resolução
é levá-la para Viseu, e se restabelecerá com os ares pátrios, que são muito mais
sadios que os do Porto.
- É ainda cedo para tão longa e custosa jornada, meu primo. Não o senhor cuidar que
ela está capaz de se meter ao caminho. Lembre-se que ainda ontem pensamos em
encontrá-la hoje morta. Deixe-a estar mais alguns meses; e depois não digo que não leve;
mas, por enquanto, não consinto semelhante imprudência.
- Maior imprudência - replicou o velho - é conservá-la no Porto, onde, as estas horas,
deve estar o malvado matador de meu sobrinho. Talvez não saiba a prima?... Pois é
verdade: o patife do corregedor saiu a campo em defesa dele, e conseguiu que o tribunal
da Relação lhe aceitasse a apelação da sentença, passado o prazo da lei; e, não contente
com isto, fez que o filho fosse removido para as cadeias do Porto. Eu agora trabalho para
que a sentença seja confirmada, e espero consegui-lo; mas, enquanto o assassino aqui
estiver, não quero que minha filha esteja no Porto.
- O primo é pai, e eu sou apenas uma parenta - disse a abadessa - cumpra-se a sua
vontade. Quer ver a menina, não é assim?
- Quero, se é possível.
- Pois bem, enquanto eu vou chamá-la, queira entrar na primeira grade à sua mão direita,
que Teresa lá vai ter.
Avisada Teresa de que seu pai a esperava, instantaneamente a cor sadia que alegrava as
senhoras religiosas se demudou na lividez costumada. Quis a tia, vendo-a assim, que ela
não saísse do seu quarto, e encarregava-se de espaçar a visita do pai.
- Tem de ser - disse Teresa. - Eu vou, minha tia.
O pai, ao vê-la, estremeceu e enfiou. Esperava mudança, mas não tamanha. Pensou que
a não conheceria sem o prevenirem de que ia ver sua filha.
- Como eu te encontro, Teresa! - exclamou ele, comovido. - Por que me não disseste
mais tempo o teu estado?
Teresa sorriu-se, e disse:
- Eu não estou tão mal como as minhas amigas imaginam.
- Terás tu forças para ir comigo para Viseu?
- Não, meu pai; não tenho mesmo forças para lhe dizer em poucas palavras que não torno
ao Viseu.
- Porque não, se a tua saúde depender disso?!...
- A minha saúde depende do contrário. Aqui viverei ou morrerei.
- Não é tanto assim, Teresa - replicou Tadeu com dissimulada brandura. - se eu entender
que estes ares são nocivos à tua saúde, hás de ir, porque é obrigação minha conduzir e
corrigir a tua má sina.
- Está corrigida, meu pai. A morte emenda todos os erros da vida.
- Bem sei; mas eu quero-te viva, e, portanto, recobra forças para o caminho, Logo que
tiveres meio dia de jornada, verás como a saúde volta como por milagre.
- Não vou, meu pai.
- Não vais?! - exclamou, irritado, o velho, lançando às grades as mãos trementes de ira.
- Separam-nos esses ferros a que meu pai se encosta, e para sempre nos separam.
- E as leis? Cuidas tu que eu não tenho direitos legítimos para te obrigar a sair do
convento? Não sabes que tens apenas dezoito anos?
- Sei que tenho dezoito anos; as leis não sei quais são, nem me incomoda a minha
ignorância. Se pode ser que mão violenta venha arrancar-me daqui, convença-se, meu
pai, de que essa mão de encontrar um cadáver. Depois... o que quiserem de mim.
Enquanto, porém, eu puder dizer que não vou, juro-lhe que não vou, meu pai.
- Sei o que é! - bramiu o velho. - já sabes que o assassino está no Porto?
- Sei, sim, senhor.
- Ainda o dizes sem vergonha, nem horror de ti mesma! Ainda...
- Meu pai - interrompeu Teresa - não posso continuar a ouvi-lo, porque me sinto mal. Dê-
me licença... e vingue-se como puder. A minha glória neste longo martírio seria uma forca
levantada ao lado da do assassino.
Teresa saiu da grade, deu alguns passos na direção da sua cela, e encostou-se esvaída à
parede. Correram a ampará-la sua tia e a criada, mas ela, afastando-as suavemente de
si, murmurou:
- Não é preciso... Estou boa... Esses golpes dão vida, minha tia.
E caminhou sozinha a passos vacilantes.
Tadeu batia à porta do mosteiro com irrisório enfurecimento pancadas, umas após outras,
com grande medo da porteira e outras madres, espantadas do insólito despropósito.
- Que é isso, primo? - disse a prelada, com severidade.
- Quero cá fora Teresa.
- Como fora? Quem há de lançá-la fora?!
- A senhora, que não pode aqui reter uma filha contra a vontade de seu pai.
- Isso assim é; mas tenha prudência, primo.
- Não há prudência nem meia prudência. Quero minha filha cá fora.
- Pois ela não quer ir?
- Não, senhora.
- Então espere que por bons modos a convençamos a sair, porque não havemos trazer-
lha a rastos.
- Eu vou buscá-la, sendo preciso - redargüiu em crescente fúria. - Abram-me estas portas,
que eu a trarei!
- Estas portas não se abrem assim, meu primo, sem licença superior. A regra do mosteiro
não pode ser quebrantada para servir uma paixão desordenada, Tranqüilize-se, senhor!
descansar desse frenesi, e venha noutra hora combinar comigo o que for digno de
todos nós.
- Tenho entendido! - exclamou o velho, gesticulando contra o ralo do locutório. -
Conspiram todas contra mim! Ora descansem, que eu lhes darei uma boa lição, Fique a
senhora abadessa sabendo que eu não quero que minha filha receba mais cartas do
matador, percebeu?
- Eu creio que Teresa nunca recebeu cartas de matadores, nem suponho que as receba
d'ora em diante.
- Nã0 sei se sabe, nem se não. Eu vigiarei o convento. A criada, que está com ela,
ponham-na fora, percebeu?
- Por quê? - redargüiu a prelada com enfado.
- Porque a encarreguei de me avisar de tudo, e ela nada me tem contado.
- Se não tinha que lhe dizer, senhor!
- Nã0 me conte histórias, prima! A criada quero vê-la sair do convento e já!
- Eu não lhe posso fazer a vontade, porque não faço injustiças. Se vossa senhoria quiser
que a sua filha tenha outra criada, mande-lha: mas a que ela tem, logo que deixe de a
servir, há muitas senhoras nesta casa que a desejam, e ela mesma deseja aqui ficar.
- Tenho entendido - bradou ele - querem-me matar! Pois não matam; primeiro de o
diabo dar um estouro!
Tadeu de Albuquerque saiu em corcovos do átrio do mosteiro. Era hedionda aquela raiva
que lhe contraia as faces encorreadas, revendo suor e sangue aos olhos acovados.
Apresentou-se ao intendente da polícia, pedindo providências para que se lhe entregasse
sua filha. O intendente respondeu que ele não solicitava competentemente tais
providências. Instou para que o carcereiro da cadeia não deixasse sair alguma carta de
um assassino vindo da comarca de Viseu, por nome Simão Botelho. O intendente disse
que não podia, sem motivos concernentes a devassas, obstar a que o preso escrevesse a
quem quer que fosse.
Reduplicada a fúria, foi dali ao corregedor do Porto, com os mesmos requerimentos, em
tom arrogante. O corregedor, particular amigo de Domingos Botelho, despediu com
enfado o importuno, dizendo-lhe que a velhice sem juízo era coisa tão de riso como de
lástima. Esteve então a pique de perder-se a cabeça de Tadeu de Albuquerque. Andava e
desandava as ruas do Porto, sem atinar com uma saída digna da sua prosápia e
vingança. No dia seguinte, bateu à porta de alguns desembargadores, e achava-os mais
inclinados à demência que à justiça a respeito de Simão Botelho. Um deles, amigo de
infância de D. Rita Preciosa, e implorado por ela, falou assim ao sanhudo fidalgo:
- Em pouco está o ser homicida, senhor Albuquerque. Quantas mortes teria vossa
senhoria hoje feito se alguns adversários se opusessem à sua cólera? Esse infeliz moço,
contra quem o senhor solicita desvairadas violências, conserva a honra na altura da sua
imensa desgraça. Abandonou-o o pai, deixando-o condenar à forca; e ele da sua extrema
degradação nunca fez sair um grito suplicante de misericórdia, Um estranho lhe esmolou
a subsistência de oito meses de cárcere, e ele aceitou a esmola, que era honra para si e
para quem lha dava. Hoje, fui eu ver esse desgraçado filho de uma senhora que eu
conheci no paço, sentada ao lado dos reis. Achei-o vestido de baetão e pano pedrês.
Perguntei-lhe se assim estava desprovido de fato. Respondeu-me que se vestira à
proporção dos seus meios, e que devia à caridade dum ferrador aquelas calças e jaqueta.
Repliquei-lhe eu que escrevesse a seu pai para o vestir decentemente. Disse-me que não
pedia nada a quem consentiu que os delitos do seu coração e da sua dignidade e do
pundonor do seu nome fossem expiados num patíbulo. grandeza neste homem de
dezoito anos, senhor Albuquerque. Se vossa senhoria tivesse consentido que sua filha
amasse Simão Botelho Castelo-Branco, teria poupado a vida ao homem sem honra que
se lhe atravessou com insultos e ofensas corporais de tal afronta, que desonrado ficaria
Simão se as não repelisse como homem de alma e brios. Se vossa senhoria se não
tivesse oposto às honestíssimas e inocentes afeições de sua filha, a justiça não teria
mandado arvorar uma forca, nem a vida de seu sobrinho teria sido imolada aos seus
caprichos de mau pai. E, se sua filha casasse com o filho do corregedor de Viseu, pensa
acaso vossa senhoria que os seus brasões sofriam desdouro? Não sei de que século data
a nobreza do senhor Tadeu de Albuquerque, mas do brasão de D. Rita Teresa Margarida
Preciosa Caldeirão Castelo-Branco posso dar-lhe informações sobre as páginas das mais
verídicas e ilustres genealogias do reino. Par parte de seu pai, Simão Botelho tem do
melhor sangue de Trás-os-Montes, e não se temerá de entrar em competências com o
dos Albuquerques de Viseu, que não é de certo o dos Albuquerques terríveis de que reza
Luís de Camões...
Ofendido até ao âmago pela derradeira ironia, Tadeu ergueu-se de ímpeto, tomou o
chapéu e a enorme bengala de castão de ouro e fez a cortesia de despedida.
- São amargas as verdades, não é assim? - disse-lhe, sorrindo, o desembargador Mourão
Mosqueira,
- Vossa excelência lá sabe o que diz, e eusei no que hei de ficar - respondeu com tom
irônico o fidalgo, alanceado na sua honra e na dos seus quinze avós.
O desembargador retorquiu:
- Fique no que quiser; mas na certeza, se isso lhe serve de alguma coisa, que Simão
Botelho não vai à forca.
- Veremos... - resmoneou o velho.
São treze dias decorridos do mês de Março de 1805.
Está Simão num quarto de malta das cadeias da Relação. Um catre de tábuas, um
colchão de embarque, uma banca e cadeira de ninho e um pequeno pacote de roupa,
colocado no lugar do travesseiro, são a sua mobília. Sobre a mesa tem um caixote de pau
preto, que contém as cartas de Teresa, ramilhetes secos, os seus manuscritos do cárcere
de Viseu e um avental de Mariana, o último com que ela, no dia do julgamento, enxugara
as lágrimas e arrancara de si no primeiro instante de demência.
Simão relê as cartas de Teresa, abre os envoltórios de papel que encerram as flores
ressequidas, contempla o avental de linho, procurando esvaídos vestígios das grimas.
Depois, encosta a face e o peito aos ferros da sua janela, e avista os horizontes boleados
pela serras de Valongo e Gralheira, e cortados pelas ribas pitorescas de Gaia, do Candal,
de Oliveira e do mosteiro da Serra-do-Pilar. ~ um dia lindo, Refletem-se do azul do céu os
mil matizes da primavera. Tem aromas o ar, e a viração fugitiva dos jardins derrama no
éter as aromas que roubou aos canteiros, Aquela indefinida alegria, que parece reluzir
nas legiões de espírito que se geram ao sol de março, rejubila a natureza que, toda
pompa de luz e flores, se está namorando do calor que a vai fecundando.
Dia de amor e de esperanças era aquele que o Senhor mandava à choça escravada na
garganta da serra, ao palácio esplendoroso que reverberava ao Sol os seus espiráculos,
ao opulento que passeava as ruas moles equipagens, bafejado pelo respiro acre das
sarças, e ao mendigo que desentorpecia os membros encostado às colunas dos templos.
E Simão Botelho, fugindo a claridade da luz e o voejar das aves, meditando, chorava e
escrevia assim as suas meditações:
"O pão do trabalho de cada dia e o teu seio para repousar uma hora a face, pura de
manchas: não pedi mais ao céu.
Achei-me homem aos dezesseis anos. Vi a virtude à luz do teu amor. Cuidei que era
santa a paixão que. absorvia todas as outras, ou as depurava com o seu fogo sagrado.
Nunca os meus pensamentos foram denegridos por um desejo que eu não possa
confessar alto diante de todo o mundo. Diz tu, Teresa, se os meus lábios profanaram a
pureza de teus ouvidos. Pergunta a Deus quando quis eu fazer do meu amor o teu
opróbrio.
Nunca, Teresa! Nunca, 6 mundo que me condenas!
Se teu pai quisesse que eu me arrastasse a seus pés para te merecer, beijar-lhos-ia. Se
tu me mandasses morrer para te não privar de ser feliz com outro homem, morreria,
Teresa!
Mas tu eras sozinha e infeliz, e eu cuidei que o teu algoz não devia sobreviver-te. Eis-me
aqui homicida, e sem remorsos. A insânia do crime aturde a consciência; não a minha,
que se não temia das escadas da forca, nos dias em que o meu despertar era sempre o
estrebuxamento da sufocação.
Eu esperava a cada hora o chamamento para o oratório, e dizia comigo: falarei a Jesus
Cristo.
Sem pavor, premeditava nas setenta horas dessa agonia moral, e antevia consolações
que o crime não ousa esperar sem injúria da justiça de Deus.
Mas chorava por ti, Teresa! O travor do meu lix tinha sobre a amargura as mil
amarguras das tuas lágrimas.
Gemias aos meus ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas convulsões da morte, em
teus delírios. A mesma morte tem horror da suprema desgraça. Tarde morrerias, A minha
imagem, em vez de te acenar com a palma de martírios, te seria um fantasma levando
das tábuas dum cadafalso.
Que morte a tua, ó minha santa amiga!"
E prosseguiu até ao momento em que João da Cruz, com ordem do intendente geral da
polícia, entrou no quarto.
- Aqui! - exclamou Simão, abraçando-o. - E Mariana? Deixou-a sozinha?! Morta, talvez!
- Nem sozinha, nem morta, fidalgo! O diabo nem sempre está atrás da porta... Mariana
voltou ao seu juízo.
- Fala verdade, senhor João?
- Pudera mentir!... Aquilo foi coisa de bruxaria, enquanto a mim... Sangrias, sedenhos,
água fria na cabeça, e exorcismos do missionário, não lhe digo nada, a rapariga está
escorreita, e, assim que tiver um todo-nada de forças, bota-se ao caminho.
- Bendito seja Deus! - exclamou Simão.
- Amém - acrescentou o ferrador. - Então que arranjo é este de casa? Que breca de
tarimba é esta?! Quer-se aqui uma cama de gente, e alguma coisa em que um cristão se
possa sentar,
- Isto assim está excelente.
- Bem vejo... E de barriga? Como vamos nós de trincadeira?
- Ainda tenho dinheiro, meu amigo.
- de ter muito, não tem dúvida; mas eu tenho mais, e vossa senhoria tem ordem
franca. Veja lá esse papel.
Simão leu uma carta de D. Rita Preciosa, escrita ao ferrador, em que o autorizava a
socorrer seu filho com as necessárias despesas, prontificando-se a pagar todas as ordens
que lhe fossem apresentadas com a sua assinatura.
- É justo - disse Simão, restituindo a carta - porque eu devo ter uma legitima.
- Então já vê que não tem mais do que pedir por boca. Eu vou comprar-lhe arranjos...
- Abra-me o seu nobre coração para outro serviço mais valioso - atalhou o preso.
- Diga lá, fidalgo.
Simão pediu-lhe a entrega de uma carta em Monchique a Teresa de Albuquerque.
- O berzabum parece-me que as arma! - disse o ferrador. - Venha de lá a carta. O pai dela
está cá. Já sabia?
- Não.
- Pois está; e, se o diabo o traz à minha beira, não sei se lhe darei com a cabeça numa, já
me lembrou de o esperar no caminho e pendurá-lo pelo gasnete no galho dum sobreiro. . .
A carta tem resposta?
- Se lha derem, meu bom amigo.
Chegou o ferrador a Monchique, a tempo que um oficial da justiça, dois médicos e Tadeu
de Albuquerque entravam no pátio do convento.
Falou o azuazíl à prelada, exigindo em nome do juiz de fora que dois médicos entrassem
no convento a examinar a doente D. Teresa Clementina de Albuquerque, a requerimento
de seu pai.
Perguntou a prelada aos médicos se eles tinham a necessária licença eclesiástica para
entrarem em Monchique. À resposta negativa redargüiu a abadessa que as portas do
convento não se abriam. Disseram os médicos de Tadeu de Albuquerque que era aquele
o estilo dos mosteiros, e não houve que redargüir à rigorosa prelada.
Saíram, e o ferrador então refletiu no modo de entregar a carta. A primeira idéia
pareceu-lhe a melhor. Chegou ao ralo, e disse:
- Ó senhora freira!
- Que quer vossemecê? - disse a prelada.
- A senhora faz favor de dizer à senhora D. Teresinha de Viseu, que está aqui o pai
daquela rapariga da aldeia que ela sabe?
- E quem é vossemecê?
- Sou o pai da tal rapariga que ela sabe.
- Já sei! - exclamou de dentro a voz de Teresa, correndo ao locutório.
A prelada retirou-se a um lado, e disse:
- Vê lá o que fazes, minha filha...
- A sua filha escreveu-me? - disse Teresa ao João da Cruz.
- Sim, senhora, aqui está a carta.
E depositou na roda a carta em que a abadessa reparou, e disse, sorrindo:
- Muito engenhoso é o amor, Teresinha... Permita Deus que as noticias da rapariga da
aldeia te alegrem o coração; mas olha, filhinha, não cuides que a tua velha tia é menos
esperta que o pai da rapariga da aldeia.
Teresa respondeu com beijos às jovialidades carinhosas da santa senhora, e sumiu-se a
ler a carta, e a responder-lhe. Entregando a resposta, disse ela ao ferrador:
- Não vê ai sentada naquela escadinha uma pobre?
- Vejo, sim, senhora, e conheço-a. Como diabo veio para aqui esta mulher? Cuide que
depois da esfrega que lhe deu o hortelão, a pobrezinha não tinha pernas que a
trouxessem! A mulher pelos modos tem fibras daquela casta!
- Fale baixo - tornou Teresa. - Pois olhe... quando trouxer as cartas, entregue-lhas a ela,
sim? Eu já a mandei à cadeia; mas não a deixaram lá entrar.
- Bem está, e o arranjo não é mau assim. Fique com Deus, menina.
Esta boa nova alegrou Simão. A providência divina apiedara-se dele naquele dia. O
restaurar-se o juízo de Mariana e a possibilidade de corresponder-se com Teresa eram as
máximas alegrias que podiam baixar do céu ao seu cerrado infortúnio.
Exaltara-se Simão em graças a Deus, na presença de João da Cruz, que arrumava, no
quarto, uns móveis que comprara em segunda mão, quando este, suspendendo o
trabalho, exclamou:
- Então vou-lhe dizer outra coisa, que não tinha tenção de lhe dizer, para o apanhar de
súpeto.
- Que é?
- A minha Mariana veio comigo, e ficou na estalagem porque não se podia bulir com
dores; mas amanhã ela cá está para lhe fazer a cozinha e varrer a casa.
Simão, reconcentrando o indefinível sentimento que esta noticia lhe causara, disse com
melancólica pausa:
- É, pois, certo que a minha estréia arrasta a sua desgraçada filha a todos os meus
abismos! Pobre anjo de caridade, que digna tu és do céu!
- Que está o senhor ai a pregar? - interrompeu o ferrador. - Parece que ficou a modo de
tristonho com a notícia!...
- Senhor João - tornou solenemente o preso - não deixe aqui a sua querida filha. Deixe-
ma ver, traga-a consigo uma vez a esta casa; mas não a deixe cá, porque eu não posso
tolher o destino de Mariana. Como de ela viver no Porto, sozinha, sem conhecer
ninguém, bela como ela é, e perseguida como tem de ser?!
- Perseguida! Tó carocha! Não que ela é mesmo de se lhe dar que a persigam!... Que vão
para lá, mas que deixem as ventas em casa. Meu amigo, as mulhereso como as pêras
verdes: um homem apalpa-as, e, se o dedo acha duro, deixa-as, e não as come. É como
é. A rapariga sai à mãe. Minha mulher, que Deus haja, quando eu lhe andava rentanto,
dei-lhe um dia um beliscão numa perna. E vai ela põe-se direita comigo, e deu-me dois
cascudos nas trombas, que ainda agora os sinto. A Mariana!... Aquilo é d'a pele de
Satanás! Pergunte o senhor, se algum dia falar com aquele fidalguinho Mendes, de Viseu,
a troçada que ele levou com as rédias da égua, por lhe bulir na chinela quando ela
estava em cima da burra!
Simão sorriu ao rasgado penegírico da bravura da moça, e orgulhou-se secretamente dos
brandos afagos com que ela o desvelara em oito meses de quase continuada
convivência.
- E vossemecê há de privar-se da companhia de sua filha? - insistiu o preso.
- Eu me arranjarei como puder. Tenho uma cunhada velha, e levo-a para mim para me
arranjar o caldo. E vossa senhoria pouco tempo aqui estará... O senhor corregedor
anda a tratar de o pôr na rua, e que o senhor sai, para mim são favas contadas. E
assim com'assim, viu dizer-lhe tudo duma feita: a rapariga, se eu a não deixasse vir para
o Porto, dava um estouro como uma castanha. Olhe que euo sou tolo, fidalgo. Que ela
tem paixão d'alma por vossa senhoria, isto; tão certo como eu ser João. É a sua sina; que
hei de eu fazer-lhe? Deixá-la, que pelo senhor Simão não lhe de vir mal, ou então
não há honra neste mundo.
Simão lançou-se aos braços do ferrador, exclamando:
- Pudesse eu ser o marido de sua filha, meu nobre amigo!
- Qual marido!... - disse o ferrador com os olhos vidrados das primeiras lágrimas que
Simão lhe vira - Eu nunca me lembrei disso, nem ela!... Eu sei que sou um ferrador, e ela
sabe que pode ser sua criada, e mais nada, senhor Simão; mas... sabe que mais? Eu
desejo que os meus amigos sejam desgraçados como havia de ser o senhor se casasse
com a pobre rapariga! Não falemos nisto, que eu por milagre choro; mas, quando pego a
chorar, sou um chafariz... Vamos ao arranjo: a mesa deve aqui ficar; a cômoda ali; duas
cadeiras deste lado, e duas daquele. A barra acolá. O baú debaixo da cama. A bacia e a
bilha da água sobre esta coisa, que não sei como se chama. Os lençóis e o mais bragal
tem-nos a rapariga. Amanhã é que o quarto de ficar que nem uma capela. Olhe que
a Mariana me disse que comprasse duas aquelas... Como se chamam aquelas
envasilhas de pôr ramos?
- Jarras.
- E como diz, duas jarras para flores; mas eu não sei onde se vende isso. Agora vou
buscar o jantar, que a moça há de cuidar que me não deixar sair da cadeia. Ainda lhe não
disse que não me deixaram entrar ontem à tarde; mas eu, como trouxe uma cartinha
de sua mãe para um senhor desembargador, fui onde a ele, e hoje de manhã tinha
na estalagem a ordem do senhor intendente geral da policia. Até logo.
XVI
Um incidente agora me ocorre, não muito concertado com o seguimento da história, mas
a propósito vindo para demonstrar uma face da índole do ex~corregedor de Viseu,
então exonerado do cargo.
Sabido é que Manuel Botelho, o primogênito. voltando a freqüentar matemáticas em
Coimbra, fugira dali para Espanha com uma dama desleal a seu marido, estudante
açoreano que cursava medicina.
Um ano demorara na Corunha Manuel Botelho com a fugitiva. alimentando-se dos
recursos que sua mãe, extremosa por ele, lhe remetia, vendendo a pouco e pouco as
suas jóias, e privando as filhas dos adornos próprios dos anos e da qualidade.
Secaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse afinal ao filho que deixara
de socorrer Simão por não ter meios; e agora das escassas economias que fazia nada
podia enviar-lhe porque estava em obrigação de pagar os alimentos de Simão à pessoa
que por compaixão lhos dera em Viseu, e lhos estava dando no Porto. Ajuntava ela, para
consolação do filho, que viesse ele para Vila-Real, e trouxesse consigo a infeliz senhora;
que fosse ele para casa, e a deixasse a ela numa estalagem até se lhe arranjar habitação;
que o ensejo era oportuno por estar na quinta de Montezelos o pai, quase divorciado da
família.
Voltou pelo Minho Manuel Botelho, e chegou com a dama ao Porto, quinze dias depois
que Simão entrara no cárcere.
noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem estimaram; mas
o infortúnio de Simão remia as culpas do gênio fatal que o orfanara de pai e mãe, e da
irmã Rita lhe deixara uma lembrança saudosa.
Foi Manuel à cadeia, e, abrindo os braços ao irmão. teve um glacial acolhimento.
Perguntou-lhe Manuel a história do seu desastre,
- Consta do processo - respondeu Simão.
- E tem o mano esperanças de liberdade? - replicou Manuel.
- Não penso nisso.
- Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta de recursos; mas,
se precisa de roupa, repartirei consigo da minha.
- Não preciso nada, Esmolas só as recebo daquela mulher.
Manuel tinha reparado em Mariana, e da beleza da moça inferira conclusões para
formar falsos juízos.
- E quem é esta menina? - tornou Manuel.
- É um anjo... Não lhe sei dizer mais nada.
Mariana sorriu-se, e disse:
- Sou uma criada do senhor Simão e de vossa senhoria.
- E cá do Porto?
- Nã0, meu senhor, seu dos arrabaldes de Viseu.
- E tem feito sempre companhia a meu mano?
Simão atalhou assim à resposta balbuciante de Mariana:
- A sua curiosidade incomoda-me, mano Manuel,
- Cuidei que não era ofensiva - replicou o outro, tomando o chapéu. - Quer alguma coisa
para a mãe?
- Nada.
Estando Manuel Botelho, na tarde desse dia, fechando as malas para seguir jornada para
Vila-Real, foi visitado pelo desembargador Mourão Mosqueira e pelo corregedor do crime.
- Devemos à espionagem da polícia - disse o corregedor - a novidade de estar nesta
estalagem um filho do meu antigo amigo, condiscípulo e colega Domingos Correia
Botelho. Aqui vimos dar-lhe um abraço e oferecer o nosso préstimo. Esta senhora é sua
esposa? - continuou o magistrado, reparando na açoreana.
- Não é minha esposa... - balbuciou Manuel - é... minha irmã.
- Sua irmã... - disse Mosqueira - qual das três? cinco anos que as vi em Viseu, e
grande mudança fez esta senhora, que não me recordo das suas feições absolutamente
coisa nenhuma. E a senhora D. Ana Amália?
- Justamente - disse Manuel.
- Bela lhe afirmo eu que está, minha senhora; mas fez-se um rosto muito outro do que
era!...
- Vieram ver o infeliz Simão? - atalhou o corregedor.
- Sim, senhor... viemos ver meu pobre irmão.
- Foi um raio que caiu na família aquele rapaz!... -ajuntou Mosqueira - mas pode estar na
certeza que a sentença não se executa; diga a sua mãe que mo ouviu da minha boca. O
meu tribunal está preparando para lhe minorar a pena em dez anos de degredo para a
Índia, e seu pai. segundo me disse na passagem para Vila-Real, preparou as coisas na
suplicação e no desembargo do paço, não obstante o morto ter lá parentes poderosos nas
duas instâncias. Quiséramos absolvê-lo e restitui-lo à sua família; mas tanto é impossível.
Simão matou, e confessa soberbamente que matou. Não consente mesmo que se diga
que em defesa o fez. É um doido desgraçado com sentimentos nobilíssimos! Chovem
cartas de empenho a favor do Albuquerque. Pedem a cabeça do pobre rapaz com uma
sem-cerimônia que indigna o ânimo.
- E essa menina que foi a causa da desgraça? - perguntou Manuel.
- Isso é uma heroína! - respondeu o corregedor do crime, - Davam-na já por morta quando
Simão chegou aqui. Desde que soube das probabilidades da comutação da pena, deu um
pontapé na morte, e está salva, segundo me disse o médico.
- Conhece-a muito bem, minha senhora? - disse o desembargador à dama, suposta irmã
de Manuel.
- Muito bem - respondeu ela, relaceando os olhos ao amante.
- Dizem que é formosíssima!
- Decerto - acudiu Manuel - é formosíssima!
- Muito bem - disse o corregedor, erguendo-se. - Leve este abraço ao pai, e diga-lhe que
o condiscípulo está leal e dedicado como sempre. Eu tenho de lhe escrever
brevemente.
- E outro abraço a sua virtuosa, mãe - acrescentou o desembargador.
- Vou desconfiado! - disse o Mosqueira ao colega. - Manuel Botelho tinha,coisa de um
ano, fugido para Espanha com uma senhora casada. Aquela mulher que vimos não é irmã
dele.
- Pois, se nos mentiu, é patife, por nos obrigar a cortejar uma concubina!... Eu me
informarei... - disse o corregedor, ofendido no seu austero pundonor.
E no próximo correio, escrevendo a Domingos Botelho, dizia no período final "Tive o gosto
de conhecer teu filho Manuel e uma de tuas filhas; por ele te mandei um abraço, e por ela
te mandaria outro, se fosse moda ensinarem velhos a meninas bonitas como se dão os
abraços nos pais".
Estava Manuel em casa, e cuidava em trajar uma modesta casa para a açoreana,
auxiliado por sua bondosa e indulgente mãe. Domingos Botelho fora informado da vinda,
e dissera que não queria ver o filho, avisando-o de que era considerado desertor de
cavalaria seis desde que abandonara os estudos, onde estava com licença.
Recebeu depois a carta do corregedor do crime, e mandou imediata e secretamente
devassar se em Vila-Real estava a senhora que indicava a carta. A espionagem deu-a
como certa na estalagem, enquanto Manuel Botelho cuidava nos adornos de uma casa.
Escreveu o magistrado ao juiz de fora, e este mandou chamar à sua presença a mulher
suspeita, e ouviu dela a sua história sincera e lacrimosamente contada. Condoeu-se o
juiz, e revelou ao colega as suas averiguações, Domingos Botelho foi a Vila-Real, e
hospedou-se em casa do juiz de fora, onde a senhora foi novamente chamada, sendo que
ao mesmo tempo o general da província lavrava ordem de prisão para o cadete desertor
de cavalaria de Bragança.
A açoreana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda sambra, e
aparência de intenções sinistras.
- Eu sou pai de Manuel - disse Domingos Botelho. Sei a história da senhora. O infame é
ele. Vossa senhoria é a vítima. O castigo da senhora principiou desde o momento em que
a sua consciência lhe disse que praticou uma ação indigna. Se a consciência lho não
disse ainda, ela lho dirá. Donde é?
- Da ilha do Faial - respondeu trêmula a dama.
- Tem família?
- Tenho mãe e irmãs.
- Sua mãe aceitá-la-ia, se a senhora lhe pedisse abrigo?
- Creio que sim.
- Sabe que Manuel é um desertor, que a estas horas está preso ou fugitivo?
- Não sabia...
- Quer isto dizer que a senhora não tem proteção de alguém...
A pobre mulher soluçava, abafada por ânsias, e debulhada em lágrimas.
- Por que não vai para sua mãe?
- Não tenho recursos alguns - respondeu ela.
- Quer partir hoje mesmo? A porta da estalagem. daqui a pouco, encontrará uma liteira e
uma criada para acompanhá-la a ao Porto. entregará uma carta. A pessoa a quem
escrevo lhe cuidará da passagem para Lisboa. Em Lisboa outra pessoa a levará a bordo
da primeira embarcação que sair para os Açores. Estamos combinados? Aceita?
- E beijo as mãos de vossa senhoria... Uma desgraçada como eu não podia esperar tanta
caridade.
Poucas horas depois. a esposa do médico...
- Que tinha morrido de paixão e vergonha talvez! - exclama uma leitora sensível.
- Não, minha senhora; o estudante continuava nesse ano a freqüentar a Universidade; e,
como tinha vasta instrução em patologia, poupou-se à morte da vergonha. que é uma
morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Fr. Luiz de Sousa, e à morte da paixão.
que é outra morte inventada pelos namorados nas cartas despeitosas, e que não pega
nos maridos a quem o século dotou de uns longes de filosofia, filosofia grega e romana,
porque bem sabem que os filósofos da antigüidade davam por mimo as mulheres aos
seus amigos, quando os seus amigos por favor lhas não tiravam, E esta filosofia hoje
então...(6)
Pois o médico não morreu, nem sequer desmedrou, ou levou R significativo de
preocupação do ânimo, insensível às amenidades da terapêutica.
A esposa, inquestionavelmente muito mais alquebrada e valetudinária que seu esposo,
lavada em pranto, morta de saudades, sem futuro, sem esperanças, sem voz humana que
a consolasse, entrou na liteira, e chegou ao Porto, onde procurou o corregedor do crime
para entregar-lhe uma carta do doutor Domingos Botelho. Um período desta carta dizia
assim:
"Deste-me a noticia duma filha que eu não conhecia, nem conheço. A mãe desta senhora
está no Faial, para onde ela vai. Cuida tu, ou manda cuidar no seu transporte para Lisboa,
e encarrega ali alguém de correr com a passagem dela para os Açores no primeiro navio.
A mim me darás conta das despesas. Meu filho Manuel teve ao menos a virtude de não
matar ninguém para se constituir amante. Do modo como correm os tempos, muito
virtuoso é o rapaz que não mata o marido da mulher que ama. se consegues do
general, que está ai, perdão para o rapaz, que é desertor da cavalaria seis, e me consta
que está escondido em casa dum parente. Enquanto a Simão, creio que não é possível
salvá-lo do degredo temporário... É uma lança em África livrá-lo da forca. Em Lisboa
movem-se grandes potências contra o desgraçado, e eu estou mal visto do intendente
geral por abandonar o lugar... etc.".
Partiu para Lisboa a açoreana, e dali para a sua terra, e para o abrigo de sua mãe, que a
julgara morta, e lhe deu anos de vida, se não ditosa, sossegada e desiludida de quimeras.
Manuel Botelho, obtido o perdão pela preponderância do corregedor do crime, mudou de
regimento para Lisboa, e ai permaneceu até que, falecido seu pai, pediu a baixa e voltou
à província.
XVII
João da Cruz, no dia 4 de agosto de 1805, sentou-se à mesa com triste aspecto e
nenhum apetite do almoço.
- Não comes, João? - disse-lhe a cunhada.
- Não passa daqui o bocado - respondeu ele, pondo o dedo nos gorgomilos.
- Que tens tu?
- Tenho saudades da rapariga... Dava agora tudo quando tenho para a ver aqui ao de
mim, com aqueles olhos que pareciam ir direito aos desgostos que um homem tem no seu
interior. Mal hajam as desgraças da minha vida, que ma fizeram perder, Deus sabe se
para pouco, se para sempre!... Se eu não tivesse dado o tiro no almocreve, não vinha a
ficar em obrigação ao corregedor, e não se me dava que o filho vivesse ou morresse...
- Mas, se tens saudades - atalhou a senhora Josefa - manda buscar a rapariga, tem-na cá
algum tempo, e torna depois para onde ao senhor Simão.
- Isso não é de homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz, se ela lhe falta, morre
de pasmo dentro daqueles ferros. Isto é veneta que me deu hoje... Sabes que mais? Leve
a breca o dinheiro! Amanhã vou ao Porto.
- Pois isso é o que deves fazer.
- Está dito. Quem ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. Por ora, tem-
se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga, se ficar com menos, lá se avenha. Assim
o quer, assim o tenha.
Reanimou-se a fisionomia do mestre ferrador, e como que os empeços da garganta se
iam removendo à medida que planizava a sua ida ao Porto.
Acabara de almoçar, e ficara cismático, encostado à mesa do escano.
- Ainda estás malucando?! - tornou Josefa.
- Parece coisa do demônio, mulher!... A rapariga estará doente ou morta?
- Anjo bento da Santíssima Trindade! - exclamou a cunhada, erguendo as mãos - que
dizes tu, João?
- Estou cá por dentro negro como aquela sertã!
- Isso é flato, homem! Vai tomar ar; trabalha um poucochinho para espaireceres.
João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem e a bigorna, e
começou a atarracar cravos.
Alguns conhecidos tinham passados, palavreando com ele consoante costumavam, e
achavam-no taciturno e nada para graças.
- Que tens tu, João? - dizia um.
- Não tenho nada. Vai à tua vida e deixa-me, que não estou para lérias.
Outro parava e dizia:
- Guarde-o Deus, senhor João.
- E a vossemecê também. Que novidade há?
- Não sei nada.
- Pois então vá com Nossa Senhora, que eu estou cá de candeias às avessas.
O ferrador largava o martelo; sentava-se aos poucos no tronco, e coçava a cabeça com
frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão alheado o fazia, que estragava o cravo, ou
martelava os dedos.
- Isto é coisa do diabo! - exclamou ele; e foi à cozinha procurar a pichorra, que emborcou
como qualquer elegante de paixões etéreas se aturde com absinto. - Hei de afogar-te,
coisa má, que me estás apertando a alma! - continuou o ferrador, sacudindo os braços, e
batendo o pé no soalho.
Voltou ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre a sua possante mula.
Envolvia-se o cavaleiro num amplo capote à moda espanhola, sem embargo da calma
que fazia. Viam-se-lhe as botas de couro cru, com esporas amarelas afiveladas, e o
chapéu derrubado sobre os olhos.
- Ora viva! - disse o passageiro.
- Viva! - respondeu mestre João, relaceando os olhos pelas quatro patas da mula, a ver
se tinha obra em que entreter o espírito - A mula é de rópia e chibança!
- Não é má. Vossemecê é que é o senhor João da Cruz?
- Para o servir.
- Venho aqui pagar-lhe uma dívida.
- A mim? O senhor não me deve nada, que eu saiba.
- Não sou eu que devo; é meu pai, e ele que me encarregou de lhe pagar.
- E quem é seu pai?
- Meu pai era um recoveiro de Carção, chamado Bento Machado.
Proferida metade destas palavras, o cavalheiro afastou rapidamente as bandas do capote
e desfechou um bacamarte no peito do ferrador. O ferido recuou, exclamando:
- Mataram-me!... Mariana, não te vejo mais!...
O assassino teria dado cinqüenta passos a todo o galope da espantada mula, quando
João da Cruz, debruçado sobre o banco, arrancava o último suspiro com a cara posta no
chão, donde apontara ao peito do almocreve dez anos antes.
Os caminheiros, que perpassaram pelo cavaleiro inadvertidamente, ajuntaram-se em
redor do cadáver. Josefa acudiu ao estrondo do tiro, e já não ouviu as últimas palavras de
seu cunhado. Quis transportá-lo para dentro e correr a chamar cirurgião; mas um cirurgião
estava no ajuntamento, e declarou morto o homem.
- Quem o matou? - exclamavam trinta vozes a um tempo.
Nesse mesmo dia vieram justiça de Viseu lavrar auto e devassar: nenhum indício lhes deu
o fio do misterioso assassínio. O escrivão dos órfãos inventariou os objetos encontrados,
e fechou as portas quando os sinos corriam o derradeiro dobre ao cair da lousa sobre
João da Cruz.
Deus terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza de tua
alma! Pensando nas incoerências da tua índole, homem que me explicas a providência,
assombram-me as caprichosas antíteses que a mão de Deus infunde em alentos na
criatura. Dorme o teu sono infinito, se nenhum outro tribunal te cita a responder pelas
vidas que tiraste, e pelo uso que fizeste da tua. Mas, se estância de castigo e de
misericórdia, as lágrimas de tua filha terão sido, na presença do Juiz Supremo, os teus
merecimentos.
Fez Josefa escrever a Mariana, noticiando-lhe a morte de seu pai, mas sobrescritou a
carta a Simão Botelho, para maior segurança. Estava Mariana no quarto do preso,
quando a carta lhe foi entregue.
- Não conheço a letra, Mariana... E a obreia é preta...
Mariana examinou o sobrescrito, e empalideceu.
- Eu conheço a letra - disse ela - é do Joaquim da loja. Abra, depressa, senhor Simão...
Meu pai morreria?
- Que lembrança! Pois não teve há três dias carta dele?... E não disse que estava bom?
- Isso que tem?... Veja quem assina.
Simão buscou a assinatura, e disse:
- Josefa Maria!... É a tua tia que lhe escreve.
- Leia... leia... Que diz ela? Deixe-me ler a mim...
O preso lia mentalmente, e Mariana instou:
- Leia alto, por quem é, senhor Simão, que estou a tremer... e vossa senhoria descora...
Que é, meu Deus?
Simão deixou cair a carta, e sentou-se prostrado de ânimo. Mariana correu a levantar a
carta, e ele, tomando-lhe a mão, murmurou:
- Pobre amigo!... Choremo-lo ambos... choremo-lo, Mariana, que o amávamos como
filhos...
- Pois morreu? - bradou ela.
- Morreu... mataram-no!...
A moça expediu um grito estrídulo, e foi com o rosto contra os ferros das grades. Simão
inclinou-a para o seio, e disse-lhe com muita ternura e veemência:
- Mariana, lembre-se que é o meu amparo. Lembre-se de que as últimas palavras de seu
pai deviam ser recomendar-lhe o desgraçado que recebe das tuas mãos benfeitoras o
pão da vida. Mariana, minha querida irmã, vença a dor, que pode matá-la, e vença-a por
amor de mim. Ouve-me, amiga da minha alma?
Mariana exclamou:
- Deixe-me chorar, por caridade!... Ai! meu Deus, se eu torno a endoidecer!
- Que seria de mim! - A quem deixaria Mariana o seu nobre coração para me suavizar
este martírio? Quem me levaria ao desterro uma palavra amiga que me animasse a crer
em Deus? Não há de enlouquecer, Mariana, porque eu sei que me estima, que me ama, e
que afrontará com coragem a maior desgraça que ainda pode sugerir-me o inferno!
Chore, minha irmã, chore: mas veja-me através das suas lágrimas!
XVIII
Mariana, decorridos dias, foi a Viseu recolher a herança paterna Em proporção com o seu
nascimento, bem dotada a deixara o laborioso ferrador. Afora os campos, cujo rendimento
bastaria para a sustentação dela, Mariana levantou a laje conhecida da lareira e achou os
quatrocentos mil réis com que João da Cruz contava para alimentar as regalias de sua
decrepitude inerte. Vendeu Mariana as terras, e deixou a casa a sua tia, que nascera
nela, e onde seu pai casara.
Liquidada a herança, tornou para o Porto, e depositou o seu cabedal nas mãos de Simão
Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha em que vivia, fronteira à Relação,
na Rua de S. Bento.
- Por que vendeu as suas terras, Mariana? - perguntou o preso.
- Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.
- Não faz?... Para onde há de ir, Mariana, indo eu degredado? Fica no Porto?
- Não, senhor, não fico - balbuciou ela como admirada desta pergunta, à qual o seu
coração julgava ter respondido de muito.
- Pois não?!
- Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua companhia.
Fingindo-se surpreendido, Simão seria ridículo aos seus próprios olhos.
- Esperava essa resposta, Mariana, e sabia que não me dava outra. Mas sabe o que é o
degredo, minha amiga?
- Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão... É uma terra mais quente que
a nossa; mas também há lá pão, e vive-se...
- E morre-se abrasado ao sol doentio daquele céu morre-se de saudades da pátria,
morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores das galés, que têm um
condenado na conta de fera.
- Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso à mulher dum preso, que
cumpriu dez anos de sentença na Índia, e viveu muito bem em uma terra chamada Solor,
onde teve uma tenda; e, se não fossem as saudades, diz ela que não vinha, porque lhe
corria melhor por lá a vida que por cá. Eu, se for por vontade do Senhor Simão, vou pôr
uma lojinha também. Verá como eu amanho a vida. Afeita ao calor estou eu; vossa
senhoria não está; mas não há de ter precisão, se Deus quiser, de andar ao tempo.
- E suponha, Mariana, que eu morro apenas chegar ao degredo?
- Não falemos nisso, senhor Simão...
- Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da morte, a pesar-me na alma, a
responsabilidade do seu destino... Seu eu morrer?
- Se o senhor morrer, eu saberei morrer também.
- Ninguém morre quando quer, Mariana...
- Oh! se morre!... E vive também quando quer... Não mo disse já a senhora D. Teresa?
- Que lhe disse ela?
- Que estava a passar quando vossa senhoria chegou ao Porto, e que a sua chegada lhe
dera vida. Pois muita gente assim, senhor Simão... E mais a fidalga é fraquinha, e eu
sou mulher do campo, vezada a todos os trabalhos; e, se fosse preciso meter uma lanceta
no braço e deixar correr o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz.
- Ouça-me, Mariana que espera de mim?
- Que hei de eu esperar!... Por que me diz isso o senhor Simão?
- Os sacrifícios que Mariana tem feito e quer fazer por mim podiam ter uma paga,
embora mos não faça esperando recompensa. Abre-me o seu coração, Mariana?
- Que quer que eu lhe diga?
- Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?
- Conheço. E que tem isso?
- Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada senhora?
- E dai? Quem lhe diz menos disso?!
- Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade.
- Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!
- Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz o peso da
obrigação.
Mariana não respondeu; chorou.
- E por que chora? - tornou Simão carinhosamente.
- Isso é ingratidão... e eu não mereço que me diga que o faço infeliz.
- Não me compreendeu... Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher. Eu queria que
Mariana pudesse dizer:
- "Sacrifiquei-me por meu marido; no dia em que o vi ferido em casa de meu pai, velei as
noites a seu lado; quando a desgraça o encerrou entre ferros, dei-lhe o pão que nem seus
ricos pais lhe davam; quando o vi sentenciado à forca, endoideci; quando a luz da minha
razão me tornou num raio de compaixão divina, corri ao segundo rcere, alimentei-o,
vesti-o, e adornei-lhe as paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-
o, fiz-me a pátria daquele pobre coração, trabalhei à luz do sol homicida para ele se
resguardar do clima, do trabalho, e do desamparo, que o matariam..."
O espírito de Mariana não podia altear-se à expressão do preso; mas o coração
adivinhava-lhe as idéias. E a pobre moça sorria e chorava a um tempo. Simão continuou:
- Tem vinte e seis anos, Mariana. Viva, que esta sua existência não pode ser senão um
suplício oculto. Viva, que não deve dar tudo a quem lhe não pode restituir senão as
lágrimas que eu lhe tenho custado. O tempo do meu desterro não pode estar longe;
esperar outro melhor destino seria uma locura. Se eu ficasse na pátria, livre ou preso,
pediria a minha irmã que completasse a obra generosa da sua compaixão, esperando que
eu lhe desse a última palavra da minha vida. Mas não comigo à África ou à Índia, que
sei que voltará sozinha à pátria depois que eu fechar os olhos. Se o meu degredo for
temporário, e a morte me guardar para maiores naufrágios, voltarei à pátria um dia. É
preciso que Mariana aqui esteja para eu poder dizer que venho para a minha família, que
tenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar com marido e filhos, a
sua extremosa família será a minha. Se a vir livre e só, irei para a companhia de minha
irmã. Que me responde, Mariana?
A filha de João da Cruz, erguendo os olhos do pavimento. disse:
- Eu verei o que hei de fazer quando o senhor Simão partir para o degredo...
- Pense desde já, Mariana.
- Não tenho que pensar... A minha tenção está feita...
- Fale, minha amiga; diga qual é a sua tenção.
Mariana hesitou alguns segundos, e respondeu serenamente:
- Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida. Cuida que eu ponho muito em
me matar? Não tenho pai, não tenho ninguém, a minha vida não faz falta a pessoa
nenhuma. O senhor Simão pode viver sem mim? Paciência!... Eu é que não posso...
Susteve o complemento da idéia como quem se peja duma ousadia. O preso apertou-a
nos braços estremecidamente, e disse:
- Irá, irá comigo, minha irmã. Pense muito no infortúnio de nós ambos d'ora em diante,
que ele é comum; é um veneno que havemos de tragar unidos, e teremos uma
sepultura de terra tão pesada como a da pátria.
Desde este dia, um secreto júbilo endoidecia o coração de Mariana. Não inventemos
maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de Mariana. Amava como a fantasia
se compraz de idear o amor duns anjos que batem as asas de baile em baile, e apenas
quedam o tempo preciso para se fazerem ver e adorar a um reflexo de poesia
apaixonada. Amava, e tinha ciúmes de Teresa, o ciúmes que se refrigeram na
expansão ou no despeito, mas infernos surdos, que não rompiam em labareda aos lábios,
porque os olhos se abriam prontos em lágrimas para apagá-la. Sonhava com as delícias
do desterro, porque voz humana alguma não iria gemer à cabeceira do desgraçado. Se
a forçassem a resignar a sua inglória missão de irmã daquele homem, resigná-la-ia,
dizendo: - "Ninguém lhe adoçará as penas tão desinteresseiramente como o eu fiz".
E, contudo, nunca vacilou em aceitar da mão de Teresa ou da mendiga as cartas para
Simão. A cada vinco de dor que a leitura daquelas cartas sulcava na fronte do preso,
Mariana, que o espreitava disfarçada, tremia em todas as fibras do seu coração, e dizia
entre si: - "Para que há de aquela senhora amargurar-lhe a vida?"
E amargurava acerbamente a desditosa menina!
Ressurgiram naquela alma esperanças, que não deviam durar além do tempo necessário
para que a desilusão lhe acrisolasse o infortúnio. Imaginara ela a liberdade, o perdão, o
casamento, a ventura, a coroa do seu martírio. A5 suas amigas matizavam-lhe a tela da
fantasia, umas porque não conheciam a atroz realidade das coisas, outras porque fiavam
em demasia nas orações das virtuosas do mosteiros. Se os vaticínios das profetisas se
realizassem, Simão sairia da cadeia, Tadeu de Albuquerque morreria de velhice e de
raiva, o casamento seria um ato indisputável, e o u dos desgraçados principiaria neste
mundo.
Porém, Simão Botelho, ao cabo de cinco meses de cárcere, sabia o seu destino, e
achara útil prevenir Teresa, para o sucumbir ao inevitável golpe da separação. Bem
queria ele alumiar com esperanças a perspectiva negra do desterro; mas froixos e frios
eram os alívios em que não era parte a convicção nem o sentimento. Teresa o podia
sequer iludir-se, porque tinha no peito um despertador que a estava acordando sempre
para a hora final, embora o semblante enganasse a condolência dos estranhos.
E, então, era o expandir-se em lástimas nas cartas que escrevia ao seu amigo;
invocações a Deus, e sacrílegas apóstrofes ao destino; branduras de paciência e ímpetos
de cólera contra o pai; o aferro à vida que lhe foge, e súplicas à morte.
No termo de sete meses o tribunal de segunda instância comutou a pena última em dez
anos de degredo para a Índia. Tadeu de Albuquerque acompanhou a Lisboa a apelação,
e ofereceu a sua casa a quem mantivesse de a forca de Simão Botelho. O pai do
condenado, segundo assustador aviso que seu filho Manuel lhe dera, foi para Lisboa lutar
com o dinheiro e as poderosas influências que Tadeu de Albuquerque granjeara na Casa
da Suplicação e no Desembargo do Paço. Venceu Domingos Botelho, e, instigado mais
do seu capricho que do amor paternal, alcançou do Príncipe Regente a graça de cumprir
o condenado a sua sentença na prisão de Vila-Real.
Quando intimaram a Simão Botelho a decisão do recurso e a graça do Regente, o preso
respondeu que não aceitava a graça; que queria a liberdade do degredo; que protestaria
perante os poderes judiciários contra um favor que não implorava e que reputava mais
atroz do que a morte.
Domingos Botelho, avisado da rejeição do filho, respondeu que fizesse ele a sua vontade;
mas que a sua vitória dele sobre os protetores e os corrompidos pelo ouro do fidalgo de
Viseu estava plenamente obtida.
Foi aviso ao intendente geral da polícia, e o nome de Simão Botelho foi inscrito no
catálogo dos degredados para a Índia.
XIX
A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.
Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica implacável
das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa, não invente
melhor; e, se copia, não minta por amor da arte.
Um romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio, é impertinente, é uma
coisa que não sacode os nervos, nem a gente, sequer uma temporada, enquanto ele nos
lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer, movidos
pela manivela do egoísmo.
A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?
A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro que o
prendem ao barro doente saiu, ou pesam nele e o submergem no charco da culpa
primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo e pô-lo à venda!?
Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu perdi o meu a estudar
a verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la como ela é feia e repugnante.
A desgraça afervora ou quebranta o amor?
Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Fatos e não teses é o que eu trago
para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções ópticas do aparelho visual.
Ao cabo de dezenove meses de rcere, Simão Botelho almejava um raio de Sol, uma
lufada do ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu, que o da abóbada do seu
cubículo pesava-lhe o peito.
Ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de amar.
Seis meses de sobressaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras do coração; e o
coração, para o amor, quer-se forte e tenso, de uma certa rijeza, que se ganha com o
bom sangue, com os anseios das esperanças, e com as alegrias. que o enchem e
reforçam para os reveses.
Caiu a forca pavorosa aos olhos de Simão; mas os pulsos ficaram em ferros, o pulmão ao
ar mortal das cadeias, o espírito entanguido no glacial estupidez dumas paredes
salitrosas, e dum pavimento que ressoa os derradeiros passos do último padecente, e
dum teto que filtra a morte a gotas de água.
O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem remorsos, o espírito
anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses de estagnação da vida?
O coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que falece sufocada pela rebeliões
da alma que se identifica à natureza, e a quer, e se devora na ânsia dela, e se estorce
nas agonias da amputação, para os quais a saudade da ventura extinta é um cautério em
brasa; e o amor, que leva ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer
um refrigério.
Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma hora de desafogo,
como que sentia o patíbulo lascar entre os seus braços, e então convidou o coração da
mulher que o perdera a assistir às segundas núpcias da sua vida com a esperança.
Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Ásia, e o coração
intumescia-se de fel, o amor afogava-se nele. morte inevitável, quando não abertura
por onde a esperança entre a luzir na escuridão íntima.
Esperança para Simão Botelho, qual?
A Índia, a humilhação, a miséria, a indigência.
E os anelos daquela alma tinham mirado as ambições de um nome. Para a felicidade do
amor envidava as forças do talento; mas, além do amor, estava a glória, o renome e a
imortalidade, que não é demência nas grandes almas e nos gênios que se sentem
previver nas gerações vindouras.
Mas grinaldas de amor a escorrerem sangue dos espinhos, essas infiltram veneno
corrosivo no pensamento, apagam no seio a faísca das nobres afoitezas, apoucam a idéia
que abrangera mundos, e paralisam de mortal espasmo os estos do coração.
Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere, com o patíbulo ou o
degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da alma.
A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder, retraía-se,
recriminado pelos ditames da razão.
De além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes queixas te vinham
espremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem podias consolar, pedias palavras ao anjo
da compaixão para ela, e as do demônio do desespero para ti.
Os dez anos de ferros em que lhe quiseram minorar a pena, eram-lhe mais horrorosos
que o patíbulo. E aceitá-los-ia, porventura, se amasse o céu, onde Teresa bebia o ar, que
nos pulmões se lhe formava em peçonha? Creio: - antes a masmorra, onde pode ouvir-se
o som abafado de uma voz amiga; antes os paroxismos de dez anos sobre as lajes
úmidas de uma enxovia, se, na hora extrema, a última faísca da paixão, ao bruxulear para
morrer, nos alumia o caminho do céu por onde o anjo do amor desditoso se levantou a
dar conta de si a Deus, e a pedir a alma do que ficou.
Teresa pedira a Simão Botelho que aceitasse dez anos de cadeia, e esperasse ai a sua
redenção por ela.
"Dez anos! - dizia-lhe a enclausurada de Monchique. Em dez anos terá morrido meu pai e
eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença.
Se vais ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás
memória de mim, quando voltares".
Como a pobre se iludia nas horas em que as débeis forças de vida se lhe concentravam
no coração!
As ânsias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que criara novo, lhe
saía em golfadas com a tosse.
Se por amor ou piedade o condenado aceitasse os ferrolhos três mil seiscentas e
cinqüenta vezes corridos sobre as suas longas noites solitárias, nem assim Teresa
susteria a pedra sepulcral que a vergava de hora a hora.
"Não esperes nada, mártir - escrevia-lhe ele. - A luta com a desgraça é inútil, e eu o
posso lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo,
Caminhemos ao encontro da morte... um segredo que no sepulcro se sabe. Ver-
nos-emos?
Vou. Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está aos meus olhos
coberto de forcas, e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço vociferar as
imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a opulência; nem agora a
realização das esperanças que me dava o teu amor, Teresa!
Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas não aqui.
Apague-se a luz dos meus olhos; mas a luz do céu, quero-a! Quero ver o céu no meu
último olhar!
Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não sabes o que é a liberdade cativa
dez anos! Não compreendes a tortura dos meus vinte meses. A voz única que tenho
ouvido é a da mulher piedosa que me esmola o pão de cada dia, e a do aguazil que veio
dar-me a sarcástica boa-nova de uma graça real, que me comuta o morrer instantâneo da
forca pelas agonias de dez anos de cárcere.
Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. Se teu pai te
chama, vai. Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade desse
dia. E, se não, morre, Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em as
fibras laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória dos
padecentes".
As palavras únicas de Teresa, em resposta àquela carta, significativa da turbação do
infeliz, foram estas: "Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te...
Bem sabes que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jamais
resgatar-te. Se podes, viva; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me
chorares. Consolar-te-á o meu espírito... Estou tranqüila. Vejo a aurora da paz... Adeus,
até ao céu, Simão".
Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão Botelho não
respondia às perguntas de Mariana, Di-lo-íeis arroubado nas voluptuosas angústias do
seu próprio aniquilamento. A criatura posta por Deus ao lado daqueles dezoito anos tão
atribulados chorava; mas as grimas, se Simão as via, tiravam-no da mudez sossegada
para ímpetos de aflição, que afinal o extenuavam..
Decorreram seis meses ainda.
E Teresa vivia, dizendo às suas consternadas companheiras que sabia ao certo o dia do
seu trespasse.
Duas primaveras via Simão Botelho pelas grades do seu rcere. A terceira já enflorava
as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.
Era em março de 1807.
No dia 10 desse mês, recebeu o condenado intimação para sair na primeira embarcação
que levava âncora do Douro para a Índia. Nesse tempo vinham aqui os navios buscar os
degredados, e recebiam em Lisboa os que tinham igual destino.
Nenhum estorvo impedia o embarque de Mariana, que se apresentou ao corregedor do
crime como criada do degredado, com passagem paga por seu amo.
- E a passagem vale-a bem! - disse o galhofeiro magistrado.
Simão assistiu ao encaixotar da sua bagagem, numa quietação terrível, como se
ignorasse o seu destino.
Quis muitas vezes escrever a derradeira carta à moribunda Teresa, e nem sinais de
lágrimas podia já enviar-lhe no papel.
- Que trevas, meu Deus! - exclamava ele, e arrancava a os cheias os cabelos. - Dai-
me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar, ou matai-me, que este sofrimento e insuportável!
Mariana contemplava estarrecida estes e outros lances de loucura, ou os não menos
medonhos da letargia.
- E Teresa! - bradava ele, surgindo subitamente do seu espasmo. - E aquela infeliz
menina que eu matei! Não hei de vê-la mais, nunca mais! Ninguém me levará ao degredo
a noticia de sua morte! E, quando a eu chamar para que me veja morrer digno dela, quem
te dirá que eu morri, ó mártir?!
A 17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação Simão Antônio Botelho, e
embarcou no cais da Ribeira, com setenta e cinco companheiros. O filho do ex-corregedor
de Viseu, a pedido do desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem do regedor das
justiça, não ia amarrado com cordas ao braço de algum companheiro. Desceu da cadeia
ao embarque, ao lado de um meirinho, e seguido de Mariana, que vigiava os caixões da
bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau, e recomendou
ao comandante que distinguisse o condenado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-
o à sua mesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro em ouro, que
sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e, na presença de Mourão
Mosqueira. pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de
degredo o dinheiro que lhe dava.
- É demente o senhor Simão?! - disse o desembargador.
- Tenho a demência da dignidade: por amor da minha dignidade me perdi; quero agora
ver a que extremo de infortúnio ela pode levar os seus amantes. A caridade me o
humilha quando parte do coração e não do dever. o conheço a pessoa que me
remeteu esse dinheiro.
- É sua mãe - tornou Mosqueira.
- Não tenho mãe. Quer vossa excelência remeter-lhe esta esmola rejeitada?
- Não, senhor.
- Então, senhor comandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro com isto ao rio.
O Comandante aceitou o dinheiro, e o desembargador saiu de bordo como espantado da
sinistra condição do moço.
- Onde é Monchique? - perguntou Simão a Mariana.
- É acolá, senhor Simão - respondeu. indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre a
margem do Douro, em Miragaia.
Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto (7),
Era Teresa.
Na véspera recebera ela o adeus de Simão, e respondera enviando-lhe a trança dos seus
cabelos.
Ao anoitecer daquele dia, pediu Teresa os sacramentos, e comungou à grade do coro,
onde se foi amparada à sua criada, Parte das horas da noite passou-as sentada ao pé do
santuário de sua tia, que toda a noite orou, Algumas vezes pediu que a levassem à janela
que se abria para o mar, e não sentia ali a frialdade da viração. Conversava serenamente
com as freiras, e despedira-se de todas, uma a uma, indo por seu às celas das
senhoras entrevadas para lhes dar o beijo da despedida.
Todas cuidavam em reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder aos piedosos artifícios
com que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da manhã,
Teresa leu uma a uma a cartas de Simão Botelho. As que tinham sido escritas nas
margens do Mondego enterneciam-na a copiosas grimas. Eram hinos à felicidade
prevista: eram tudo que mais formoso pode dar o coração humano quando a poesia da
paixão dá cor ao pensamento, e uma formosa e inspirativa natureza lhe empresta os seus
esmaltes, Então lhe acudiam vivas reminiscências daqueles dias: a sua alegria doida, as
suas doces tristezas, esperanças a desveneceram saudades, os mudos colóquios com a
irmã querida de Simão, o céu aromático que se lhe alargava à inspiração sôfrega de
vagos desejos, tudo, enfim, que lembra a desgraçados.
Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de
flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da sua janela ao quarto dela.
As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e Teresa, contemplando-as,
disse: - "Como a minha vida..." - e chorou, beijando os cálices desfolhados das primeiras
que recebeu.
Deu as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a respeito delas, que logo
veremos cumprida.
Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado sobre uma
cadeira. Erguendo-se, quase tirada pela violência, aceitou uma xícara de caldo, e
murmurou com um sorriso: - "Para a viagem..." -
As nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao mirante, e,
sentando-se em ânsias mortais, nunca mais desfitou os olhos da nau, que já estava verga
alta, esperando a leva dos degredados.
Quando viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho, os condenados, Teresa
teve um breve acidente, em que a frouxa claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos
conculsas pareciam querer aferrar a luz fugitiva.
Foi então que Simão Botelho a viu.
E ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre de Viseu, chamando
Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à mendiga, recebeu o pacotinho das
suas cartas. Reconheceu ele que a primeira não era sua, pela lisura do papel, maso a
abriu.
Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à amurada da nau,
com os olhos fitos no mirante.
Viu agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno. Desceu a nau ao mar, e
passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos
das reixas de ferro; mas não era de Teresa aquele rosto: seria antes um cadáver que
subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da
sepultura.
- É Teresa? - perguntou Simão a Mariana.
- É, senhor, é ela - disse num afogado gemido a generosa criatura, ouvindo o seu coração
dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no seguimento daquela por quem se
perdera.
De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu Simão um movimento
impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de Teresa e do vulto de Constança,
que ele divisara mais tarde.
A nau parou defronte de Sobreiras. Uma nuvem no horizonte da barra, e o bito
encapelamento das ondas causara a suspensão da viagem anunciada pelo comandante.
Em seguida, velejou da Foz uma catraia com o piloto-mor, que mandava lançar ferro até
novas ordens. Mais tarde adiou-se a saída para o dia seguinte.
E, no entanto, 5imáo Botelho, como o cadáver embalsamado, cujos olhos artificiais
rebrilham cravados e imotos num ponto, lá tinha os seus imersos na interior escuridade do
miradouro. Nenhum sinal de vida. E as horas passaram até que o derradeiro raio de Sol
se apagou nas grades do mosteiro.
Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os olhos embaciados de
lágrimas. o desterrado, que contemplava as primeiras estrelas, iminentes ao mirante,
- Procura-a no céu? - disse o nauta.
- Se a procuro no céu... - repetiu maquinalmente Simão.
- Sim!... No céu deve ela estar.
- Quem, senhor?
- Teresa.
- Teresa...! Morreu?!
- Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.
Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O comandante lançou-lhe
os braços, e disse:
- Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em Deus! Espere
que o céu se abra para si pelas súplicas daquele anjo!
Mariana estava um passo atrás de Simão, e tinha as mãos erguidas.
- Acabou-se tudo!... - murmurou Simão. - Eis-me livre... para a morte... Senhor
comandante - continuou ele energicamente - eu não me suicido. Pode deixar-me.
- Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao pé do meu.
- É obrigatório recolher-me?
- Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe, não mando.
- Vou, e agradeço a compaixão.
Mariana seguiu-o com aquele olhar quebrado e mavioso do Jau, quando o poeta
desembarcava, segundo a idéia apaixonada do cantor de Camões.
Encarou nela Simão, e disse ao comandante:
- E esta infeliz?
- Que o siga... - respondeu o compassivo homem do mar, que cria em Deus.
Simão recolheu-se ao beliche, e o comandante sentou-se em frente dele, e Mariana ficou
no escuro da câmara a chorar.
- Fale, senhor Simão! - disse o comandante - desafogue e chore.
- Chorei, senhor!
- Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana não criou ainda
um quadro tão atroz. Arrepiam-se-me os cabelos, e tenho visto espetáculos horríveis na
terra e no mar.
Acintemente, o comandante estava provocando Simão ao desabafo. Não respondia o
condenado. Ouvia os soluços de Mariana, e tinha os olhos postos no maço das Cartas,
que pusera sobre uma banqueta.
O capitão prosseguiu:
- Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora, pedi a uma pessoa
relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma freira a triste história. Uma
religiosa ma contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que ela, quando
descíamos na altura do Oiro, proferia em alta voz: - "Simão, adeus até à eternidade!" - E
caiu nos braços duma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram
meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram.
Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro; o
amor que ela lhe tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe
morria. Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é!
- Por pouco tempo... - disse Simão, como se o dissesse a si próprio, ou a própria
imaginação estivesse dialogando consigo.
- Creio, creio, por pouco tempo - prosseguiu o capitão - mas, se os amigos pudessem
salvá-lo, senhor, eu dar-lhos-ia na Índia mais fiéis que em Portugal. Prometo-lhe, sob a
minha palavra de honra, alcançar do vizo-rei a sua residência em Goa. Prometo segurar-
lhe um decente principio de vida e as comodidades que fazem a existência tão saudável
como ela é na Ásia. Não o intimide a idéia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por
vencer-se, e será feliz!
- O seu silêncio, por piedade, senhor... - atalhou o degredado.
- Bem sei que é cedo ainda para planizar futuros. Desculpe à simpatia que me inspira a
indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora atribulada.
- Aceito, e preciso dele... Mariana! - Chamou Simão. - Venha aqui, se este cavalheiro o
permite.
Mariana entrou no quarto.
- Esta mulher tem sido a minha providência - disse Simão. - Porque ela me valeu, não
senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere. Tudo que tinha vendeu para me
sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta criatura. Seja respeitável ao seus olhos, senhor,
porque ela é tão pura como a verdade o deve ser nos lábios dum moribundo. Se eu
morrer, senhor comandante, aceite o legado de a amparar com a sua caridade como se
ela fosse minha irmã. Se ela quiser voltar à sua pátria, seja o seu protetor na passagem. -
E, estendendo-lhe a mão, disse com transporte: - Promete-me isto, senhor?
- Juro-lho.
O comandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão com Mariana.
- Estou tranqüilo pelo seu futuro, minha amiga.
- Eu já o estava, senhor Simão - respondeu ela.
Não se trocam palavras por largo espaço. Simão apoiou a face sobre a mesa, e apertou
com as os as fontes arquejantes. Mariana, de pé, ao lado dele, fitava os olhos na luz
mortiça da lâmpada oscilante, e cismava, como ele, na morte.
E o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.
CONCLUSÃO
As onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de passageiro, e
Mariana, sentada no pavimento, com o rosto sobre os joelhos, parecia sucumbir ao
quebranto das trabalhosas e aflitivas horas daquele dia.
Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre o peito, e os
olhos fitos na luz que balançava, pendente de um arame. O ouvido tê-lo-ia, talvez, atento
a um assobio da ventania: devia de soar-lhe como um ai plangente aquele silvo agudo,
voz única no silêncio da terra e céu.
A meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas que Teresa lhe
enviara, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que era dela. Rompeu a
obreia, e dispôs-se no camarote para alcançar o baço clarão da lâmpada.
Dizia assim a carta:
o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Teresa, à hora
em que leres esta carta, se Deus não me engana, está em descanso.
Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia escrever-te; mas perdoa à tua esposa
do céu a culpa, pela consolação que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da
noite da minha vida,
Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão? Daqui a pouco. perderás de
vista este mosteiro; correrás milhares de léguas, e não acharás, em parte alguma do
mundo, voz humana que te diga:
- A infeliz espera-te noutro mundo, e pede ao Senhor que te resgate. - Se te pudesses
iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com a vida e com esperança de
ver-te na volta do degredo? Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento,
me domina a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma
infelicidade tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até o podê-lo ser mais! Quero
que digas: - Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última esperança. -
- Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse resistir alguns dias à
morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de outro, era inevitável fechar os olhos
quando se rompesse o último fio, este último que se está partindo, e eu mesma o ouço
partir.
Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar um remorso
injusto à tua saudade.
Se eu pudesse ainda ver-te feliz neste mundo; se Deus permitisse à minha alma esta
visão!... Feliz, tu, meu pobre condenado!... Sem o querer, o meu amor agora te fazia
injúria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te
não matar ainda antes de sucumbires à dor do espírito.
A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu ma pintavas nas tuas cartas, que li
pouco! Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de
árvores, flores e aves. A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à
hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu
respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu sorriso, inclinava a
face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece
que cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma se está recordando. Noutra carta, me
falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu ia após da tua
aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos teus prazeres de espírito queria
eu que fosse meu. Era criança há três anos, Simão, e já entendia os teus anelos de glória,
e imaginava-os realizados como obra minha, se tu me dizias, como disseste muitas
vezes, que não serias nada sem o estimulo do meu amor.
Ó Simão, de que céu tão lindo caímos! A hora que te escrevo, tu estás para entrar na nau
dos degredados, e eu na sepultura.
Que importa morrer, se não podemos jamais ter nesta vida a nossa esperança de três
anos? Poderias tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não podia. Os instantes
do dormir eram os escassos benefícios que Deus me concedia; a morte é mais que uma
necessidade, é uma misericórdia divina, uma bem-aventurança para mim.
E que farias tu da vida sem a tua companheira de martírio? Onde tu irás aviventar o
coração que a desgraça te esmagou, sem o esquecimento da imagem desta dócil mulher,
que seguiu cegamente a estrela da tua malfadada sorte?!
Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses
passar rapidamente a minha sombra por diante dos teus olhos enxutos? Sofre, sofre ao
coração da tua amiga estas derradeiras perguntas, a que tu responderás, no alto mar,
quando esta carta leres.
Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos meus dezoito anos!
Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma agonia longa. Todas as
minhas angústias lhe ofereço em desconto das tuas culpas. Se algumas impaciências a
justiça divina me condena, oferece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para
que eu seja perdoada.
Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!"
Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo Mariana, que
levantava a cabeça ao menor movimento dele.
- Que tem, senhor Simão? - disse ela, erguendo-se.
- Estava aqui, Mariana?... Não se vai deitar?!
- Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui.
- Mas de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é necessário o seu
sacrifício.
- Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.
- Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convés?
- Quer ir ao convés, senhor Botelho? - disse o comandante, lançando-se do beliche.
- Queria, senhor comandante.
- Iremos juntos.
Simão ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu cambaleando. No convés
sentou-se num monte de cordame, e contemplou o mirante do Manchique, que avultava
negro ao sopé da serra penhascosa em que atualmente vai a Rua da Restauração.
O capitão passeava da proa à ré, mas com o ouvido fito aos movimentos do degredado.
Receara ele o propósito do suicídio, porque Mariana lhe incutira semelhante suspeita.
Queria o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas pensava consigo: - "O que de
dizer-se a um homem que sofre assim?" - E parava junto dele algumas vezes, como para
desviar-lhe o espírito daquele mirante.
- Eu não me suicido! - exclamou abruptamente Simão Botelho. - Se a sua generosidade,
senhor capitão. se interessa em que eu viva, pode dormir descansado a sua noite, que eu
não me suicido.
- Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara?
- Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor.
Não replicou o comandante, e continuou a passear no convés apesar das rajadas de
vento.
Mariana estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância de Simão. O
comandante viu-a, falou-lhe, e retirou-se.
As três horas da manhã, Simão Botelho segurou entre as os a testa, que se lhe abria
abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair o meio corpo. A cabeça, ao
declinar, pousou no seio de Mariana.
- O Anjo da compaixão sempre comigo! - murmurou ele, - Teresa foi muito desgraçada...
- Quer descer ao camarote? - disse ela.
- Não poderei... Ampare-me, minha irmã.
Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante. Desceu a íngreme
escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu água. que bebeu
insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estarcimento, e as ânsias, com intervalo de delírio.
De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o condenado,
disse que era febre maligna a doença, e bem podia ser que ele achasse a sepultura no
caminho da Índia.
Mariana ouviu o prognóstico, e não chorou.
As onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença acresceram as do enjôo. A
pedido do comandante, Simão bebia remédios, que bolsava logo, revoltos pelas
contrações do vômito.
Ao segundo dia de viagem, Mariana disse a Simão:
- Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas que vão na caixa?
Pasmosa serenidade a desta pergunta!
- Se eu morrer no mar - disse ele - Mariana, atire ao mar todos os meus papéis, todos; e
estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro também.
Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:
- Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?
- Morrerei, senhor Simão.
- Morrerás?!... Tanta gente desgraçada que eu fiz!...
A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do capitão, que tinha
sobeja experiência de ver morrerem centenares de condenados, feridos da febre no mar,
e desprovidos de algum medicamento.
Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascais, sobreveio tormenta
súbita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e, perdido o rumo de Lisboa, navegou
desnorteado. Ao sexto dia de navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o
leme defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as refregas,
desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um formoso dia de
primavera. Era o dia de primavera. Era o dia 27 de março, o nono da enfermidade de
Simão Botelho.
Mariana tinha envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:
- Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já passados!...
- Já acabados... de certo... - disse ela.
Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia assim no seu delírio:
"A casinha, defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. Passeavas comigo à
margem do Mondego, à hora pensativa do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua
abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada
por teu sorriso, inclinada a face ao teu seio, como se fosse o de minha mãe... De que céu
tão lindo caímos!... A tua amiga morreu... A tua pobre Teresa..."
"E que farias tu da vida, sem a tua companheira de martírio?... Onde irás tu aviventar o
coração que a desgraça te esmagou?!... Rompe a manhã... Vou ver a minha última
aurora... a última dos meus dezoito anos. Oferece a Deus os teus padecimentos, para que
eu seja perdoado... Mariana..."
Mariana colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo, quando cuidou ouvir o seu
nome.
"Tu virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no céu... O mais puro anjo serás tu... se és
deste mundo, irmã; se és deste mundo, Mariana..."
A transição do delírio para a letargia completa era o anúncio infalível do trespasse.
Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e ouvira um
gemido estertoroso. Voltando às escuras, com os braços estendidos para tatear a face do
agonizante, encontrou a mão convulsa, que lhe apertou uma das suas, e relaxou de
súbito a pressão dos dedos.
Entrou o comandante com uma mpada, e aproximou-lha da respiração, que não
embaciou levemente o vidro.
- Está morto! - disse ele.
Mariana curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro beijo. Ajoelhou
depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e não orava nem chorava.
Algumas horas volvidas, o comandante disse a Mariana:
- Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo... É ventura morrer quando
se vem a este mundo com tal estrela. Passe a senhora Mariana ali para a câmara que vai
ser levado daqui o defunto.
Mariana tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma caixa buscar os
papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele tinha daquelas lágrimas dela, choradas
no dia da sua demência, e cingiu o embrulho à cintura.
Foi o cadáver envolto num lençol, e transportado ao convés.
Mariana seguiu-o.
Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às pernas com um
pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena triste com os olhos úmidos, e os
soldados que guarneciam a nau, tão funeral respeito os impressionara, que
insensivelmente se descobriram.
Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia estupidamente encarar
aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver, para segurar a pedra na cintura.
Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o
arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos
viram, e ninguém já pôde segurar Mariana, que se atirara ao mar.
A voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens para salvar
Mariana.
Salvá-la!...
Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte mas para abraçar-se ao
cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O comandante olhou para o sítio
donde Mariana se atirara, e viu, enleado no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo
de papéis, que os marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência
de Teresa e Simão.
Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás-os-Montes, a senhora D.
Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele (8). A última pessoa falecida,
há vinte e seis anos, foi Manoel Botelho, pai do autor deste livro.
FIM
Fonte: Amor de Perdição - Camilo Castelo Branco - Livraria Império Editora - Rio de
Janeiro - s/d
Este material se destina ao uso acadêmico.
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