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A MARQUESA DE SANTOS
Paulo Setúbal
UM ACONTECIMENTO ALVOROÇANTE
13 de janeiro de 1813. Toda a gente, na cidadezinha de São Paulo, engalanara-se com
espavento. Não houve matrona que se não enfeitasse de suas velhas jóias. o houve moça
que se não alindasse de galantezas e tafularias. Tudo isso, tanto primor e garridice, para assistir
a um acontecimento alvoroçante, inteiramente inesperado, que viera abalar com ruído, aquela
pequenina sociedade de Província: o casamento do Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça,
Moço Fidalgo da Casa Real, com a encantadora Domitila de Castro, última filha do Coronel João
de Castro Canto e Melo.
Por isso, no casarão da Rua do Ouvidor, onde morava a noiva, burburinhava, dias já,
tremenda fervedura de arranjos e preparativos.
O velho João de Castro sempre se gabara de seus avós. Gloriava-se, freqüentes vezes, de ser
fidalgo de lei. A sua mulher, D. Escolástica Bonifácia, apregoava-se, também, com orgulho,
descendente dos Toledo Ribas. Eram eles, não havia dúvida, gente de sangue limpo, honrada,
com larga parentela na cidade e na Província. E ambos, no casamento da caçula, timbraram em
oferecer aos amigos bela noitada de festança grossa, com bródio e baile, que estivesse à altura
do seu sangue e do seu nome.
Que rebuliço o que ia pela casa adentro! D. Escolástica, muito atarefada, não cessava de
vascolejar, de arejar, de espanejar. Era um destramelar armários, um remexer empoeiradas
arcas, um revirar canastras, um escancarar baús, um arrancar do fundo de tudo isso, para
expor ao sol, os preciosos guardados antigos, as coisas nobres e magníficas, as largas toalhas
de crivo, as rendas de bilro, os panos bordados, a prataria do Reino, as peças de porcelana.
Sobretudo, com muitos mimos, era um esfregar aquelas pesadas louças de friso azul, tão
faladas na cidade, que a boa velha guardava com ciúmes, enternecidamente, para os graves
regabofes da família. Quando, em meio àquela lufa-lufa, um canto de sala parecia mais despido,
ou faltavam, acolá, enfeites mais vistosos, logo a cuidadosa D. Escolástica, com o seu pronto
expediente, gritava para um dos moleques da cozinha:
- Dito! Corra à casa de prima Angélica e diga assim para ela me emprestar o jarrão vidrado da
sala de fora.
Os moleques e os escravos, à busca de jarrões vidrados, corriam à Rua do Ouvidor. Da Rua do
Ouvidor à Rua do Cotovelo. Da Rua do Cotovelo à Rua da Princesa. Enquanto isso, na cozinha,
entre as mucamas, ia largo e febril atarefamento. Despejavam-se pacotes de araruta.
Besuntavam-se forminhas para bons-bocados. Desenferrujavam-se as rosetas de florear
sequilhos. Folheava-se a massa das queijadas. Recheavam-se os pastéis de Santa Clara.
Pingavam-se assadeiras de suspiro. E as raparigotas, brandindo garfos célebres, faziam ecoar
sonoramente, no bojo das terrinas, furioso bater de gemas e de claras de ovo.
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Essa atordoante trabalhadeira, tão desusado empenho em preparar a noite de gala, revelavam
bem o júbilo que dava aos pais o casamento da caçula. Esse casamento, no entretanto, tivera
curiosa trama. Fora um caso violento de paixão. Romance de amor tão fulminante, tão
inesperado, que espantou a todos na cidade.
A história foi assim:
* * *
Domitila, a Titília, como lhe chamavam os de casa, era uma criaturinha perturbante, linda
boneca de dezesseis anos, leve como pluma, botão de rosa pelo amanhecer. Tinha o talhe fino,
a cinturinha breve, ar de graciosa petulância. Que primor de tentações! Os cabelos eram negros,
profundamente negros, encaracolando-se num donaire petulante. Olhos também negros,
negríssimos, dum fulgor líquido, que enchiam de quentura e brejeirice o moreno róseo de seu
rosto. A boca, vermelha, muito úmida, a cavar ao lado, quando ela sorria, uma covinha gaiata,
tentadora, que enlouquecia a rapaziada do tempo.
E não foram poucos os que enlouqueceram! Toda a gente sabia que Pedro Gonçalves de
Andrade, primo e colaço do juiz de casamentos, passava noites inteiras, de violão em punho, a
entoar modinhas e lundus às janelas da rapariga.
E era de ver-se, nos bailes, o Aires da Cunha, sobrinho do Almoxarife da Real Fazenda! O rapaz
grudado acintosamente às saias da pequena, vivia tão junto dela, tão cioso dela, que a cidade
inteira, com maldade, botou-se a linguajar daquele caso..
E a briga do Moraizinho? Foi no Botequim da Princesa, no Largo da Pólvora, em dia de
procissão de São Jorge. O rapazola engalfinhou-se violentamente com o Bento Furquim, um
atrevidaço, namoriscador da pequena. se foi com ele aos bofetões e sopapos, numa fúria.
Tão áspera cresceu a rixa, tão brutal, que acabaria de certo em tiro de trabuco se o bom do Pe.
Bernardo Pureza Claraval, que por ali passava, não acudisse a tempo de separá-los.
Nesse mesmo dia, ao escurecer, depois das vésperas, o bondoso cura procurou o velho João
de Castro. Narrou-lhe a briga do Moraizinho. Avisou-o com prudência:
- Sr. Coronel! Vosmecê precisa tomar tento. Isto não acaba bem...
- Mas que hei de eu fazer, senhor pároco? Que hei de eu fazer?
- Que de fazer? Homessa... Pois é casar a rapariga. Casá-la antes que a rapaziada se
destripe. Aquilo não é gente! Aquilo é demônio, sr. Coronel, aquilo é demônio... Cruzes!
Ora, foi justamente por essa época, nesses tempos em que os rapazes se esmurravam por
causa da fatal menina, que chegou à Província, e veio aquartelar em São Paulo, um magnífico
regimento de cavalaria, o Primeiro Esquadrão do Corpo de Dragões, que tinha sede em Vila
Rica, nas Minas Gerais. O regimento, formado de guapos mocetões, equipados vistosamente,
atravessou a cidade com galhardia, marchando e rufando. Foi estacar diante do Convento de
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São Francisco, onde se alojou. De cambulhada com esse Corpo viera um bonito rapagão
protegido do Príncipe, tratado pelos superiores com benévolas deferências, moço esbelto e
moreno, vinte e dois anos, gentil e simpático. O moço fazia parte do Estado Maior daquele
regimento. Era o Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça. Quis assim o destino, esse
endiabrado armador de arapucas, que o oficialzinho de Minas viesse aquartelar exatamente no
Largo de São Francisco, a dois passos da Rua do Ouvidor, e, portanto, bem rente à flor mais
perturbante da Província, a mais perigosa das desencabeçadoras de rapazes. A graça com que
se enfeitou a tentadora moça, as tafulices com que se alindou para enamorar o recém-chegado,
não as sei eu, nem as quero imaginar. Mas o certo, o que contam crônicas veneráveis, é que
logo após ao seu alojamento, ainda mal conhecedor da terra e dos seus usos, já o rapaz andava
tão perdido pela rapariga, fazia por ela tais loucuras, cortejando-a tão às escâncaras, que o
velho João de Castro, de sobrolho cerrado, chamou confidencialmente a mulher e falou-lhe com
gravidade:
- Você reparou, Escolástica, nos dengos do alferes pela menina? Pois aquilo, no em que
está, é de duas uma: ou o rapaz presta, e preparam-se os banhos, e a coisa termina já na igreja;
ou o rapaz não presta, e mete-se-lhe uma surra, boa roda de pau, para que suma da Província e
nunca mais se intrometa com pessoas de bem! Eu vou hoje ao quartel tirar informações. Não há
de ser um zé-ninguém, um leguelhé qualquer, que eu deixando entrar, sem mais aquela, na
família dos Canto e Melo.
- E dos Toledo Ribas! exclamou a boa senhora, fazendo valer, com aprumo, as culminâncias do
apelido.
As coisas que revelou o comandante do batalhão, as excelências que contou do mineirinho e da
sua prosápia, foram de certo abundantes e rasgadas: João de Castro saiu do quartel de
sobrolho desfranzido.
Dias após, Titília, a pequerrucha, teve a maior alegria de sua vida. O seu alvoroço foi tanto, foi
tão entontecedora a sua felicidade, que a linda doidivanas, com o seu adorável estouvamento,
saiu pela rua afora, trêfega e borboleteante, a contar de casa em casa o supremo
acontecimento:
- Sabe, prima Angélica, a grande novidade?
- ?!
- Fiquei noiva!
- Quê? Vai se casar? Nossa Senhora! Aposto que é com o Moraizinho...
- Pois não é!
- Credo! Então será com o sobrinho do Almoxarife? Quê? Não é? Pois então a maluquinha tem
coragem de se casar com o Pedro das serenatas?
- Qual nada, prima Angélica! Tudo isso eram patacoadas. Tudo passatempo. Eu vou me casar
mas é com o Alferes Felício, aquele moreno, de Minas, que veio no Estado Maior dos Dragões.
Que tal, prima Angélica? E bonito, não é? Pois então dê cá um abraço! E outro! E mais outro! E
até breve, prima Angélica.
Pela cidade inteira, num relâmpago, esparramou-se a notícia do estranho noivado. Foi uma
bomba.
* * *
13 de janeiro, no casarão da Rua do Ouvidor, festejou-se enfim, com desmedido gosto, o
casamento da caçula. Festa magnífica! O mais falado acontecimento social da época. As três da
tarde, sob um sol mormacento, a casa dos Canto e Melo, reluzindo, cheirando a alfazema,
esplêndida de enfeites e de galas. O velho João de Castro estava com o seu pompeante
uniforme de coronel e com as suas vistosas dragonas de cachos. D. Escolástica Bonifácia, com
o seu pesado vestido de gorgorão negro, cadeia de ouro e leque de plumas. Esperavam ambos,
na sala de fora, a chegada dos convidados e da parentela. A primeira cadeirinha que surgiu à
porta foi a de D. Angélica Taques Alvim, da boa prima Angélica, amiga de sempre, mãe de leite
da noiva, que trazia os olhos avermelhados de tanto chorar pela sua Titília. Depois, o genro da
casa, Boaventura Delfim Pereira, o futuro Barão de Sorocaba, padrinho de casamento. Em
seguida, com a sua calva espelhante, o venerando D. José de Sá e Câmera, compadre e amigo
velho, com seus bofes de renda e os seus calções de ganga amarela. Logo após, ostentoso e
solene, corpanzil atarracado, D. Eugênio de Lócio Seibiltz, Ouvidor da Comarca, letrado e
politicão, honrosa amizade de João de Castro.
Quando o Pe. Bernardo Claraval, acompanhado do sacristão, saltou da sege, já o grave casarão
fervilhava de gente. Tudo que havia em São Paulo de prestigioso, tudo que havia de escolhido e
aristocrático, enxameava nas amplas salas de João de Castro. estava o Coronel Francisco
Inácio de Sousa Queirós, barba-piolho, bonita estampa de dominador, bafejado pelo seu poderio
de alto chefe político. O Capitão-Mor Eleutério da Silva Prado, cabelos brancos, muito
respeitado e muito venerado, com aquele trato ameno, modos chãos, ar acolhedor de velho
paulista. O Nicolau Vergueiro, espadaúdo e amplo, sobrecenho franzido, voz rude, sotaque
áspero de português. O magnífico e louro D. Francisco de Assis Lorena, filho do Conde de
Sarzedas, que era o fidalgo de mais proa da Província. A sua aprumada esposa, D. Maria Rita
de Almeida Sousa e Faro, cintilante de jóias, porejando sobranceria e arrogância. O Capitão
Jaime da Silva Teles, fechado e carrancudo, a olhar para as senhoras de soslaio.
Eis que bela liteira, pintada de novo, estaca de súbito em frente a casa do Coronel João de
Castro. Desce o Alferes Felício. Que noivo galhardo! Veio cintilando nos seus galões dourados.
Está pálido e trêmulo. Mas belo e encantador, como um Adonis.
Logo após, conduzida pelo braço de Boaventura Delfim Pereira, entre duas alas, debaixo de
flores, surge a Titília. Vem leve e fina. Está encantadoramente pálida. Encaminha-se radiosa
para o altar. Com o seu vestido branco, a grinalda branca, luvas brancas, os botões brancos de
flor de laranjeira, a longa cauda branca, sustida por dois priminhos, a noiva passa tão
fascinadora, tão esvoaçante e bela, os olhos tão úmidos, a boca orvalhada, que todos, velhos e
moços, matronas e raparigas, parentes e não-parentes, todos, ao vê-la têm uma só exclamação:
- Que linda!
- Que linda!
A própria D. Maria Rita de Almeida Sousa e Faro, do alto do seu orgulho e da sua chocante
arrogância, não pôde reprimir a sua admiração:
- Bela cachopa!
Ouviu a frase certo figurão exótico, chegado pouco da Corte, cavalheiro muito alto e muito
magro, com uns bigodes negros muito retorcidos. O homem virou-se para o marido da dama, o
belo D. Francisco Lorena, e concordou baixinho:
- É verdade. Que rapariga, Sr. D. Francisco! Aquilo, sim, é rapariga e tanto!
Pe. Bernardo realizou o ato. Lágrimas de D. Escolástica. Soluços de prima Angélica. Abraços.
Parabéns. Comovidos apertos de mão.
* * *
Foi então que principiou, com efervescente cordialidade, a festa grandiosa. dentro,
aboletados à mesa, depois do brinde do Ouvidor, os convivas devastavam arrazadoramente os
castelos de fios-de-ovos e as compoteiras de batata roxa. fora, na sala da frente, onde
rompera fragorosa orquestra, ia o torvelinho das danças. Ruidoso saracoteio de rapazes e de
raparigas. Tudo a rir! A papaguear! De quando em quando, no intervalo das marcas, aparecia
na sala uma preta gordalhuda, mucama pimpona e fresca, com a sua saia de refolhos
engomados, carregando colossal bandeja de balas de ovos e doces secos. Como todos a
conheciam - quem não havia de conhecer a Bastiana? - eram ditinhos daqui, piadas dacolá.
- Foi você quem fez o suspiro, Bastiana?
- Não fui. Foi Nhanhã. Mas não ficou bem batido. Antes prove a queijadinha...
Súbito, em meio aos ditos, o Moraizinho, rapazola esbelto e louro, aquele mesmo antigo
apaixonado da Titília, adiantou-se até o meio da sala. Bateu palmas. E no silêncio que se fez:
- Ó Chalaça! Eu estou incumbido, em nome das moças, de pedir a você que cante um lundu...
Reboou larga tempestade de aplausos.
- Bravos! Um lundu! Bravos!
O estranho personagem viera pouco da Corte. Estava de passagem por São Paulo. Era
aquele cavalheiro muito alto, muito magro, com uns bigodes pretos muito retorcidos. Chamava-
se Francisco Gomes da Silva. Tinha a alcunha de Chalaça. Era grande boêmio. Exímio cantador
de modinhas. Diante dos pedidos, não teve ele outro remédio senão pegar no violão. Sentou-se
no meio da sala. E sorrindo:
- Que lundu há de ser?
O Moraizinho de certo conhecia bem o repertório do homem. Bradou sem hesitar:
- O "Lundu do Capoeira"!
O Chalaça afinou o instrumento. Ajeitou-o ao peito. E pôs-se a repicar 'O Lundu do Capoeira".
Que sucesso! O estribilho fazia furor. Toda a gente ria ante os trejeitos e momices do cantador:
Ai, ai, ai
Meu cobre é que lá vai...
Meu cobre é que lá vai...
Naquele baile, a 13 de janeiro de 1813, ninguém poderia jamais supor, nem imaginar de leve,
que aquele figurão exótico, o Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, violinista folião, cantador de
lundus, se tornasse em breve, no cenário do Brasil, personagem do mais alto destaque,
Comandante da Guarda de Honra, Secretário Privado, Conselheiro de Estado, Comendador do
Império, grande favorito do Príncipe. Ninguém poderia também supor, nem imaginar de leve,
que a pequena Titília de Castro, a endemoninhada caçula do Coronel João de Castro, fosse em
breve, entre as adulações e lisonjas de toda uma Corte, a imensa, a tresloucada paixão de D.
Pedro I: fosse essa adorável Marquesa de Santos, de tão reboante fama, a única mulher, na
História das Américas, que encheu um Império com o ruído do seu nome e o escândalo do seu
amor.
7 DE SETEMBRO
Três horas da tarde. O Coronel João de Castro acabara de jantar. Fumava o seu grosso cigarrão
de palha, estirado na rede. Nove anos eram decorridos, nove anos bem tumultuosos na
Província, desde aquela memorável noitada de boda.
Quanta coisa, desde então, sucedera por afora! A política fervera. A bernarda de Francisco
Inácio sacudira a Província. Martim Francisco fora escorraçado da cidade. Os Andradas e os
Queirós ferraram-se de unhas e dentes. José Bonifácio, guindado agora às culminâncias do
poder, tirava desforras espantosas.
Ah, quanto infortúnio, em meio a isso tudo, viera lancetar a alma de João de Castro! Quanto
desgosto viera desmanchar a paz de seu envelhecer. Era exatamente a cismar nisso, afundado
em tristuras e pensares, que o encanecido coronel, naquela tarde, aos balouços da rede, enchia
os compridos ócios da sua sesta modorrenta. Tão vago estava o bom do velho, tão engolfado
em melancolias, que nem deu tento ao ruído duns passos, lentos e pesados, que foram varando
pelo corredor adentro.
- Ora viva, Sr. Coronel! Então que tristeza é essa?
João de Castro, despertando, ergueu bruscamente a cabeça:
- Oh! Pe. Bernardo! Vosmecê! Bons olhos o vejam. Vá entrando...
Era o Pe. Bernardo Pureza Claraval. O enrugado cura, velho amigo da casa, sentou-se
familiarmente numa cadeira de espaldar. Tirou do bolso a boceta de prata. Ofereceu uma pitada
a João de Castro.
- Pensei que vosmecê estivesse à espera do Príncipe.
- Pois estou, Sr. pároco! Vim hoje da chácara, onde deixei a mulher e os filhos, para
cumprimentar a Sua Alteza. Não fuipelo caminho de Santos, ao encontro da comitiva, porque
não sou mais homem para essas estafadas. Além do mais, como o Reverendo bem sabe, o
Príncipe é andejo e sacudido; não é qualquer que o acompanha na estrada!
- Grande estropiador de cavalos eu sei bem que ele é, retorquiu o pároco; a prova disso é que
ainda agora, ao vir de Minas, fez em quatro dias - em quatro dias apenas! - toda a jornada de
Vila Rica à Corte. Olhe que é um bom eito! Isto, sim, é que é viajar!
O padre espirrou com estrépito. Assoou-se a um vasto lenço de alcobaça. Depois, com um
suspiro:
- Assim fosse ele tão bom político como é bom cavaleiro!
- Pois o Reverendo não o acha bom político?
- À minhaque não! E como português, exclamou o padre, como português que se preza de o
ser, como bom vassalo do Sr. D. João
VI, censuro e reprovo o proceder do Príncipe...
- sei, atalhou João de Castro. sei! O Pe. Bernardo, como outra muita gente, cuida que o
Príncipe vai fazer a separação. Não se apoquente, sr. pároco! Nem vosmecê, nem eu,
haveremos de ver a Independência do Brasil. Esses bufos dos liberais, o palavreado do
Clemente Pereira, essas bravatas que andam pela Corte, tudo isso são gabolices.
Patacoadas, Pe. Bernardo! Patacoadas! Tudo bolha de sabão.
- Ou eu muito me engano, redargüiu o padre, ou vosmecê tem catarata nos olhos, sr. Coronel. O
perigo é iminente. A coisa estoura já. Toda a colônia está a ferver. E o pior, o mais grave de
tudo, é que o Príncipe, o próprio Sr. D. Pedro, é o primeiro a acoroçoar a separação. para
ganhar aí meia dúzia de palmas e ter uns fumos de popularidade. Que vanglória!
- Qual, sr. pároco, as coisas não estão assim tão turvas. Vosmecê é que está a atacar
moinhos de vento!
- Moinhos de vento, Sr. Coronel? Moinhos de vento? Mas então vosmecê julga que são moinhos
de vento todos aqueles sucessos que se deram este ano no Rio? Pois é lá caçoada o que ainda
agora, neste momento, se passa na Corte? Mas olhe um pouco.
Ferreteado no seu lusitanismo, a bufar, o velho padre explodiu. Desandou a enumerar as suas
cóleras:
- Mas olhe um pouco! E o "Revérbero", com o Pe. Januário à frente, a escrever cachorradas
contra a Metrópole. E o "Regulador"
- um pasquim - a berrar pela separação. E a Maçonaria, sr. Coronel! E a Maçonaria do
Gonçalves Ledo, peste que se alastrou pelo Brasil inteiro e que não faz outra coisa senão
conjurar contra Portugal. E Fr. Sampaio? Aquele tonto do franciscano vive a pregar sermões de
mil demos, a acolher o Príncipe na sua cela, a tramar com Sua Alteza planos de independência.
E os clubes então! Hein, Sr. Coronel? Que me diz do Clube da Resistência! Vamos lá: que é
que vosmecê diz daquilo? Mas não é só. Infelizmente, não é só. Veja esse tal decreto do
"cumpra-se"! E a convocação da Assembléia! E as representações de 9 de janeiro! E o "fico"! E
o "fico", hein, Sr. João de Castro? Que tal a brincadeira? Ainda vosmecê acha que isso tudo são
moinhos de vento? Pois olhe, Sr. Coronel, confesso-lhe uma coisa: para mim, naquele dia em
que o Clemente Pereira, depois do seu falatório, debruçou-se numa das sacadas do Paço e
gritou à multidão que se estacionava fora: "O Príncipe manda dizer que fica", nesse dia - escute
bem! - nesse dia o Brasil separou-se de Portugal...
- Vosmecê aumenta muito, sr. pároco! Não é assim! As coisas ainda não chegaram a esses
extremos. Creia, Pe. Bernardo, essas arengas e essas discurseiras são tudo fogo de palha.
Tudo é coisa de pouca monta. O principal é tropa e munição. No dia em que aportarem por
fragatas bem recheadas de soldados, não mais independência. Com dois canhões
assentados no Morro do Castelo qualquer fuzileiro faz calar a boca dos patriotas...
- Esta demasiada confiança de vosmecê, como de tantos outros portugueses, é o que nos vai
perder, Sr. Coronel. Não tropa que consiga abafar tanta fervedura. É tudo a conspirar contra
Portugal. Tudo! Demais, para remate, aí está esse Sr. José Bonifácio, esse perigoso Primeiro-
Ministro, que maneja o Príncipe a seu talante, que move os gestos de Sua Alteza, como quem
move um polichinelo de cordel.
- Ora, está, exclamou João de Castro; ora está! O sr. pároco acha que eu exagero pouco
as coisas; pois eu acho que vosmecê enxerga demasiado. Afinal de contas, diga-me lá: que
grande perigo pode haver em José Bonifácio? Tanto se fala nesse homem! Tanto se fala nos
Andradas! No entanto, José Bonifácio é ministro como outro qualquer. Não é melhor nem pior.
Que é que tem o Primeiro-Ministro de diferente?
- Que é que tem? Vosmecê está zombando, Sr. Coronel! José Bonifácio é a primeira cabeça do
Brasil. Ou será que vosmecê ainda não ouviu dizer que o Primeiro-Ministro é um sábio? Pois o
é, Coronel. E grandíssimo! Esse homem, que eu conheci no Reino, lecionando em Coimbra,
espantou Portugal inteiro com a sua ciência. E não foi só Portugal: foi a Europa toda...
Depois de fungar nova pitada, despeitado e azedo, Pe. Bernardo rumou contra José Bonifácio.
- Pois vosmecê ainda não atentou no poderio deste homem? Mas é ver as coisas. Olhe o
caso da bernarda. Vai o Francisco Inácio e escorraça o Martim da Província. Que é que
acontece? José Bonifácio, não sei com que manhas, nem com que artes, faz o Príncipe acolher
o irmão com todo o agasalho, cobri-lo de todas as honrarias, e até - isto é que é! - até convidá-lo
para ministro. está como Ministro da Fazenda. Que escândalo! Mas a coisa não pára aí.
Chega o Príncipe agora em São Paulo. Sabe o primeiro cuidado que teve? No Paço, em
presença de toda a gente, para desafrontar os Andradas, recusa-se a dar a mão e beijar a
Francisco Inácio! Pode haver maior acinte? Impossível! Pois o Príncipe não se contentou com
tudo isso. Monta a cavalo e toca para Santos. E que é que vai fazer Sua Alteza em Santos?
Uma coisa só: visitar a família de José Bonifácio. Ora, com franqueza, isto é demais. E demais
Sr. Coronel! E por isso que eu não me canso de repetir a Vossa Senhoria: a hora da separação
está soando! E está soando porque José Bonifácio é separatista. Com um homem deste
prestigio, com um brasileiro destes a dirigir os negócios da colônia, está bem visto que a causa
da Independência ganhou a sua vitoria.
- Pois seja o que Deus quiser, Pe. Bernardo, atalhou João de Castro, com filosofia. A mim me
não afligem coisas políticas. Não aspiro outra coisa senão a uma velhice em paz. Mais nada!
Tenho sofrido muito, Pe. Bernardo... Tenho sofrido muito!
O velho pároco sentiu o tom melancólico do amigo. Abrandou logo as suas iras portuguesas.
Sabia bem o padre a causa daquelas amarguras. E meneou a cabeça com tristeza:
- Tem razão, Coronel! Tem muitíssima razão! Aquele casamento da Sra. Domitila foi um
desastre.
- Foi um raio, Pe. Bernardo, exclamou o velho com vivacidade. Foi um raio que me caiu em
casa! Nunca imaginei, na minha vida, que aquele casório, festejado com tanto gosto, viesse a
ter um dia o desfecho que teve! Ah, Pe. Bernardo, que desmoronamento! No começo não foi
nada: arrufos, azedumezinhos, coisicas. História de marido e mulher. E iam vivendo. Mas
depois! Depois, Pe. Bernardo, que inferno! Aquilo eram brigas a toda hora, fusquinhas de parte
a parte, bate-bocas, nomes feios, ciumadas, o diabo! Enfim, para coroa disso tudo, lá vai o bruto
e enfia a faca na mulher. Duas facadas! Duas facadas na coxa. Ora, está no que deu um
casamento tão bem começado...
- Numa sangueira, atalhou o padre; numa sangueira de enojar a gente!
- O bugre deixou a menina a se esvair, continuou João de Castro. Deixou a menina quase
morta. Ah, o que padeci! A filha a morrer nos meus braços e a cidade inteira a ferver de
mexericos. Que escândalo tremendo! O maior escândalo de São Paulo. Afinal, sr. pároco,
depois de muita barulheira as coisas foram-se arrumando devagarinho: a menina sarou, o casal
separou-se, ele para lá, ela para cá, e a vida, com a graça de Deus, tornou ao velho ramerrão.
Eis que agora, com a chegada do Príncipe, corre pela cidade um zunzum de enlouquecer um
homem. Diga-me lá, Pe. Bernardo, vosmecê ainda não escutou o falatório?
- Escutei, respondeu o padre com reserva. Escutei!
- Então, Reverendo, aqui entre nós, como amigos, seja franco: que é que vosmecê escutou?
Pe. Bernardo aproximou-se de João de Castro. Pigarreou. E confidencial, a voz baixa,
murmurou sisudamente:
- Anda por muita coisa. O que anda, porém, de boca em boca, muito falado, é que o Príncipe
antes de entrar na cidade, portou casualmente na chácara de vosmecê, onde conheceu a Sra.
Domitila. É verdade?
- É!
- Pois bem; dizem então que Sua Alteza, daí para cá, ficou perdido pela moça. E é um cortejá-
la! E um cortejá-la muito às escâncaras. Com muito desabrimento! Com muito rapapé! Será isso
verdade?
João de Castro ia responder. Nisto, quebrando a pacateza da cidadezinha, irrompeu
bruscamente larga troada ensurdecedora. Era a artilharia do Carmo que disparava com
estrondo. Eram os sinos de Santa Tereza que repicavam bimbalhantes. Roquetes e morteiros
que salvavam. Girândolas e foguetes que espoucavam no ar.
- É o príncipe!
Enquanto ambos prestavam ouvidos ao barulho, passos violentos, muito apressados, ecoaram
de golpe no corredor. Logo após, arfando, surgiu na varanda a Titília de Castro. Tinha o ar de
quem viera correndo. Estava fremente. Bradou aos dois homens com alvoroço:
- Sabem a grande novidade?
João de Castro e Pe. Bernardo olharam para a moça com surpresa. Aquele rompante, aqueles
modos, a exaltação da voz, o desabalo dos gestos, tudo aquilo, assim de imprevisto, veio
desentorpecer, como grossa lufada de ar fresco, a morna pasmaceira dos velhos.
- Que há, minha filha?
- Que há? Nossa Senhora! Pois será que vosmecê ainda não saiba? Nem vosmecê, sr. pároco?
- Mas que é que aconteceu? exclamou o padre com impaciência; vosmecê assusta a gente!
Que há? Vamos! Desembuche.
Diante dos ouvintes, com largo gesto, a filha de João de Castro, rasgadamente, teatralmente,
lançou esta coisa enorme:
- O Príncipe acaba de proclamar a Independência do Brasil!
O coronel e o padre, como tocados por um ferro em brasa, ergueram-se dum salto.
- Quê?
- Quê?
- O Príncipe acaba de proclamar a Independência.
- Vosmecê está doida, atalhou o padre, atordoado. Doida! Isso é lá possível?
- Doida, Pe. Bernardo? Doida, eu? Mas é ver o que vai pela cidade. Um rebuliço. Bandeiras
hasteadas por toda a parte. Foguetes pelo ar. se reuniu o Senado da Câmara. O Largo do
Colégio está assim de povo! Prepara-se já grande manifestação ao Príncipe.
- Mas isso é um sonho, exclamava João de Castro.
- É de assombrar! tartamudeava o pároco. Isto é de assombrar!
Pe. Bernardo agarrou as mãos da moça. E sacudindo-as:
- Como vosmecê sabe de tudo isso?
- Como sei? Pois vi, sr. pároco!
- Viu?
- Vi. Vi com estes olhos!
- Mas viu o quê?
- Vi tudo!
- Mas tudo o quê? Bradava o padre ansiado; tudo o quê, moça? Vamos lá, fale! Desembuche!
Irra...
- Eu vi a proclamação, sr. pároco!
- Viu a proclamação?
- Sim, senhor! Vi! A coisa deu-se assim: eu ia à chácara de meu pai, que o Reverendo bem
conhece, no Ipiranga. Foi quando topei com a Guarda de Honra e a comitiva do Príncipe
sesteando no outeiro...
Não pôde continuar. Ouviram-se passos e palmas no corredor.
- Dá licença?
Domitila correu a ver quem era.
- Oh, Sr. Francisco Gomes da Silva! É o Senhor? Entre! Sem cerimônia.
Era o Chalaça. Era o Secretário Privado de Sua Alteza. Era aquele tipo muito alto, muito magro,
com uns bigodes pretos muito retorcidos. O homem foi entrando com todo desembaraço.
- Viva, sr. Coronel João de Castro! E Vossa Reverendíssima, sr. pároco.
- Seja bem-vindo, Sr. Francisco Gomes!
João de Castro ofereceu-lhe a cadeira de espaldar. E o Chalaça, com um gesto:
- Não se incomode, sr. Coronel! É por um instante apenas. O que me traz aqui não é contra a
Vossa Senhoria que Sua Alteza proclamou a Independência do Brasil. Isto já toda a gente sabe.
O que me traz aqui, sr. Coronel, é dizer a Vossa Senhoria, por ordem de sua Alteza, que hoje,
no Teatro, haverá grande espetáculo de gala para festejar o acontecimento. E o Príncipe, que
sabe prezar os bons vassalos, mandou reservar para Vossa Senhoria, e para a Sra. D. Domitila,
o camarote unido ao camarote real.
João de Castro arregalou os olhos com espanto. Mal pôde murmurar:
- Grande honra, Sr. Francisco Gomes; grande honra! Não sei como agradecer ao Príncipe tanta
mercê. Lá estaremos, sem falta. Mas queira sentar-se, Sr. Francisco Gomes.
- Impossível, sr. Coronel. Ainda tenho de ir à loja do ourives Lessa, à Rua da Boa Vista, a fim de
mandar gravar, numa chapa de ouro, o emblema que vai servir de distintivo aos brasileiros. E
ainda preciso arrebanhar o maestro André Gomes da Silva, o mestre da Capela da Sé, para ir,
já e já, ensaiar o hino da Independência que Sua Alteza compôs e faz questão que seja cantado
hoje à noite no Teatro.
O Chalaça tinha as horas contadas. Despediu-se. Lá se foi à cata do ourives e do maestro.
Mal virou as costas o Secretário Privado do Príncipe, João de Castro e o Pe. Bernardo
entreolharam-se pasmados. Foi Domitila quem quebrou o silêncio.
- Não disse?
- É curioso, sr. pároco, atalhou João de Castro; é curioso que o Príncipe tenha se lembrado de
mandar reservar a mim um camarote ao lado do seu! coisas que espantam a gente. E eu,
francamente, não compreendo esta atrapalhada. Que me diz a tudo isso, Pe. Bernardo?
Pe. Bernardo tirou do bolso a boceta de prata. Sorveu a sua lenta pitada. Depois de fungá-la
bem fungada, com calma e pausa, virou-se filosoficamente para D. Domitila:
- Sra. D. Domitila! Eu sou velho amigo da casa. Tenho, por isso, direito de aconselhar. Ouça lá,
Sra. D. Domitila!, ouça o que lhe digo: cuidado com o Príncipe! Muito cuidado com o Príncipe!
Vosmecê é bonita. Vosmecê é moça. Vosmecê é separada do marido. Vosmecê tem tudo para
tentar um homem. O Príncipe, como toda a gente sabe, é atrevidaço e é mulhereiro. Um patifão
que o respeita sequer as famílias! Olhe o que aconteceu na Corte à filha do armador João
Ciríaco. Olhe o escândalo em casa do Cauper. Olhe o caso da Noemi, bailarina do Teatro São
João. Eu a aviso bem: tome cuidado com Sua Alteza, Sra. D. Domitila! Tome cuidado! O
Príncipe é atrevido...
- Não sei, Pe. Bernardo, não sei se o Príncipe é atrevido. sei que ele proclamou, hoje, a
Independência do Brasil; e isto é o quanto basta para que eu, brasileira, o tenha aqui dentro
do coração!
Sem esperar resposta, a encantadora Titília de Castro, sempre adorável e trêfega, partiu numa
correria a preparar-se para a festa.
UMA NOITE HISTÓRICA
O Teatro, ou melhor, a Ópera, como tão pretensiosamente o apelidara o povo, era um casarão
velho, desgracioso, situado no Largo do Colégio, com frente para a Casa dos Governadores e
saídas para a Rua da Fundição(
1
).
Naquela noite, muito antes da hora marcada para o pomposo espetáculo de gala, fervilhante
burburinho de gente - soldados; crioulos, recoveiros, peões, aguadeiros, trintanários,
palafreneiros - toda uma arraia miúda, mesclada e turbulenta, apinhava-se no Largo do Colégio
e espraiava-se até a Rua da Fundição, berrando, gesticulando, dando vivas, com esse
desenfreado e tumultuoso entusiasmo das patriotadas. De instante a instante, carregadas por
escravos, chegavam cadeirinhas e traquitanas. Abrindo caminho, de instante a instante, tiniam
os guizos chocalhantes de liteiras. Dentro delas, com aprumo e pompa, se iam para a Ópera
as velhas damas, as gentes de prol, os grandes nomes da cidade.
O Bispo D. Mateus, prestigioso e solene, saltou da sege por entre vivas frenéticos da turba. O
Dr. Pacheco e Silva, casaca verde e colarinho de França, entrou com autoridade, fechado e
ríspido, fazendo valer a sua grave culminância de Ouvidor. O Marechal Cândido Xavier,
Comandante das Armas, estava no camarote do Governo, faiscando de dragonas e de
canutilhos, os punhos recamados de bordados de ouro. O Dr. Pimenta Bueno, liberal exaltado, a
gotejar de Suor, lançava a todo o momento, vermelho e rouco, os mais desabafados vivas à
Independência. Belchior Pinheiro, aquele padre famoso que assistira ao grito do Ipiranga,
companheiro e intimo do Príncipe, andava de grupo em grupo, azougado, contando minúcias e
detalhes numa grande fervedura patriótica. Ildefonso Xavier Ferreira, com as suas bochechas
apopléticas e o seu vozeirão de trombone, sacudia os amigos com as tonitruantes virulências do
seu entusiasmo. Até o severo Amaral Gurgel, sempre circunspeto, também se incendiara duma
alegria louca! E ali, na Ópera, rindo-se muito, rindo-se com um riso verdejante, discutia
fragorosamente com os seus correligionários de política: era o Azevedo Marques, era o
Inocêncio Alvim, era o Pe. Vicente Pires da Mota, era o Joaquim Floriano de Toledo.
O teatro atulhou-se rapidamente de espectadores: camarotes, platéia, galerias, corredores,
saguão, tudo apinhado, tudo coalhado, tudo compacto de povo! Era belo o ver-se a provinciana
garridice das donas, os armarinhos e os brocados, os veludos e as plumas e os leques e as
jóias, todas aquelas faceirices que enramilhetavam casquiIhamente os balcões do teatrinho!
Não fora à toa que a Ritinha Cássia e a Domingas Xavier, as duas modistas mais afreguesadas
da época, correram atabalhoadíssimas essa tarde toda, numa trabalheira de ajustar corpetes, de
refranzir sôbre-saias, de enlaçarotar babados. O teatro esplendia. Tudo eram galas.
Súbito, fora, soou áspero toque de clarim. Rufaram tambores com estrépito. Da multidão que
estacionava na Praça partiu um grito só, imenso, atroador:
- Viva D. Pedro!
O Capitão da Guarda, postado à entrada da Ópera, bradou com voz forte:
- Às armas!
A Guarda de Honra, com ummovimento, desembainhou as espadas. Foi então que D. Pedro
apareceu. Tinha, a um lado, o seu Ministro itinerante Saldanha da Gama; de outro, o Brigadeiro
Manoel Rodrigues Jordão. Seguiam-no o Capitão Antônio da Silva Prado e o Dr. Gama Lobo. D.
Pedro galgou majestosamente os degraus do vestíbulo. Aquela ansiosa massa, que enchia
literalmente o saguão, empurrou-se, acotovelou-se, espremeu-se e, enfim, com grande custo,
abriu alas para deixar passar o seu ídolo. O Príncipe, galhardo e triunfante, ao som fragoroso
das músicas, foi, passo a passo, cortando aquele mar de gente, debaixo de flores que
choviam às braçadas, por entre um rugir de palmas delirantes, por entre mil aclamações
frenéticas que partiam de toda parte:
- Viva D. Pedro!
O moço Bragança varou risonhamente a onda ovacionadora. Atingiu o camarote. O Major
Francisco de Castro de Canto e Melo, ajudante-de-ordens, correu as cortinas do camarim real:
D. Pedro, de pé, com o seu uniforme de grande gala, o peito a faiscar de grã-cruzes, um fitão
verde e amarelo a tiracolo, radioso e belo, herói de vinte e quatro anos, surgiu magnificamente
ante os olhos sôfregos da assistência. A turba prorrompeu em furiosos vivas. Que gritaria
atordoante! O velho casarão da Ópera, transfigurado, parecia querer desabar com o estrépito de
tanto aplauso. Longos, longos minutos, a sorrir sorvendo a taça embriagante da glória, D. Pedro
embalou-se naquela tempestade rugidora.
De repente, o maestro André Gomes da Silva, mestre da Capela da Sé, ergueu a batuta. Lançou
os primeiros acordes do Hino da Independência. Foi um delírio! Num momento, como por
milagre, em todas as mãos apareceram cópias: o teatrinho inteiro, unido pela mesma alma,
entoou febrentamente o Hino patriótico; música do Príncipe, composto nessa mesma tarde,
debaixo das violentas emoções do dia, para melhor, e com mais brilho, perpetuar o feito do
Ipiranga. E o Príncipe, e o Ministro e o Brigadeiro, e o Marechal, e o Bispo e todos os homens
graves, e todas as velhas damas, e todos os rapazes, e todas as moças, e todo o povo,
acompanhando os compassos da batuta do mestre da Sé, cantavam o estribilho com ênfase:
Por Vós, pela Pátria,
O Sangue daremos...
Por Glória só temos:
Vencer ou morrer!
Quando terminou o Hino, arrefecidos os últimos ecos das palmas, levantou-se na platéia, arfante
e pálido, o Major Tomás de Aquino e Castro. Trêmulo, a voz vibrante, negra mecha de cabelos a
despencar-lhe do lado, o poeta, fitando o Príncipe, lançou com retumbância os seus versos
memoráveis:
A grandeza do Brasil é já um axioma.
Lembrar que foi colônia causa horror.
Cabral o descobriu, mas Lísio o toma...
E se é Pedro seu Perpétuo defensor,
Será logo o Brasil mais do que foi Roma,
Sendo Pedro seu primeiro Imperador!
O soneto era horrendo. Mas a turba, fascinada e eletrizada, sacudida pela doidice das
patriotadas, glorificou o poeta da Província, hoje poeta histórico, coroando as suas pobres rimas
com louco reboar de aplausos. Foi então que o Cônego Ildefonso Xavier, Chantre da, liberal
exaltado, grande propagandista da Independência, assomou inesperadamente à balaustrada
dum camarote. Era o camarote n.
0
11. Com o gesto largo, a voz de trovão, como se quisesse
bradar para o País inteiro, alçou pela primeira vez no Brasil, estes três vivas, eternamente
memoráveis:
- Viva D. Pedro Primeiro, rei do Brasil!
- Viva D. Pedro Primeiro, rei do Brasil!
- Viva D. Pedro Primeiro, rei do Brasil!
Era a consagração de D. Pedro. Era, em São Paulo, a aclamação do primeiro Rei. D. Pedro, no
camarote recebeu o título, sorrindo. Agradeceu com um gesto. Estava definitivamente Rei dos
Brasileiros(
2
).
* * *
Soaram, nesse momento, as três pancadas de estilo. Ia subir o pano. A Companhia Zachelli,
nessa noite, representava o Convidado de Pedra. D. Pedro, que já conhecia a peça, pôde então,
com demorados vagares, contemplar a sua vizinha de camarote. Que linda que estava!
A endiabrada filha de João de Castro, de tanta fama na cidade, não era mais aquela boneca
de dezesseis anos, menina e moça, botão de rosa prestes a romper. Era mulher feita, mulher
desabrochada, mulher-mulher em pleno verão de sua formosura, em plena inflorescência de
suas graças. E ali, na Ópera, com os seus cabelos trevosos, onde resplendia faiscante borboleta
de pedras; com o seu colo rosado de morena, em cuja pele quente ardia enorme solitário; com
os braços soberbos, onde serpenteavam argolas e braceletes; com o seu atrevido chapéu de
pluma negra; com seu corpete de seda escura, muito justo; com a sua elegante saia de
damasquilho, farfalhosa e tufada, D. Domitila de Castro, magnífica flor dos trópicos,
deslumbrava entre as galas daquela apoteose. D. Pedro, velho sangue erótico dos Braganças,
cravava, de momento em momento, olhos devoradores naquele poema de carne. Que mulher!
Ah, a volúpia daquelas linhas, a quentura daqueles olhos, o arfar daqueles seios, o vermelho
sangrento daqueles lábios.
Caíra o pano. Último intervalo. D. Domitila ficara no camarote. O Chalaça, a um gesto
imperceptível de D. Pedro, aproximou-se dela.
Então, muito discretamente, o ar confidencial, conversaram ambos aos cochichos. D. Domitila,
no começo, riu-se. Depois corou. Corou extremamente. Mas, dos seus olhos, enquanto ouvia o
Secretário Privado, rompia estranho clarão de júbilo.
Nisto, cortando bruscamente aqueles cochichos, soaram as pancadas para o derradeiro ato. O
Chalaça ergueu-se. E, ao despedir-se, misterioso e risonho, perguntou baixinho:
- Combinado?
D. Domitila fez um gesto afirmativo. O Chalaça, com o seu sorrisozinho malévolo, pôs
significativamente o dedo nos lábios:
- Bico!
Terminara o espetáculo. D. Pedro, debaixo de aclamações ululantes, desceu as escadas da
Ópera. A Guarda de Honra, perfilada, apresentou armas. No Largo, quando Sua Alteza
assomou diante da turba, estourou, novamente, de todo o lado, o mesmo irreprimível
entusiasmo:
- Viva D. Pedro!
O Príncipe, por entre tão desmedidos estrépitos, os últimos da noite fragorosa, atravessou o
Largo e recolheu-se ao paço.
* * *
D. Domitila rumou para casa. Mandou recolher a liteira. Despediu os escravos. Entrou. Mas a
filha de João de Castro, por estranha determinação, não fechou a porta naquela noite: cerrou-a
apenas. Não deu a volta à fechadura. No seu quarto, agitada e nervosa, arremessou sobre o
canapé a larga saia de damasquilho. Livrou-se das jóias, do chapéu de plumas, das tafularias
de gala. Vestiu o roupão de seda carmesim, aquele maravilhoso roupão vindo do Reino, todo
enevoado de rendas e enlaçarotado de fitas. Diante do toucador, alvoroçada e arfante,
desmanchou os seus cabelos negríssimos. Repartiu-os ao meio. Fez duas soberbas tranças.
Borrifou-se de água-de-cheiro. Estendeu-se, cheia de abandono, entre os linhos e os
almofadões da sua bela cama de entalhe. Ali deixou-se ficar inquieta, opressa, com grande
ânsia a lhe bailar nos olhos. Os minutos começaram a escoar lentos, lentos. Grande silêncio em
tudo. E a filha de João de Castro, na sua cama, inquieta e opressa. E os minutos a escoarem. E
D. Domitila cada vez mais inquieta e mais opressa.
De súbito, na calçada, ecoam passos leves, abafados. Alguém empurra a porta. Sobe a escada.
D. Domitila, sacudida por violento frêmito, de pé, em meio do quarto, diante de si, como
num sonho, um vulto misterioso. E um vulto alto, com largo sombreiro, envolto numa imensa
capa espanhola, negra como a noite. Quando o personagem, arrancando o sombreiro, faz cair
dos ombros a negra capa espanhola, D. Pedro I, com o seu régio uniforme de gala, com o peito
a faiscar de grã-cruzes, aparece a sorrir, heróico e belo, diante da atordoada e deslumbrada
Domitila de Castro.
- Vossa Majestade! Pois Vossa Majestade veio mesmo?
D. Pedro tomou-lhe ardentemente as mãos. E ali, na alcova, colocando-lhe à boca um
devorante, um sôfrego beijo:
- Vim...
O GRÃO-MESTRE DA MAÇONARIA
O Grande Oriente, a famosa Loja Maçônica da Corte, desempenhou papel preponderantíssimo
nos movimentos políticos do seu tempo. Ali, naquele sobradão da Rua Nova do Conde,
fervilharam idéias extremadas de Independência. Ali reboaram discursos exaltados de patriotas.
Ali se coligaram, sob juramentos formidáveis, em prol da grande causa nacional, os políticos
mais prestigiosos e os homens mais em destaque daquela época. Tão intensa e tão irradiante
foi a ação daquela Loja, que dentro de pouco tempo, agremiando prosélitos entre os mais
poderosos, centralizou em si o mais terrível foco da propaganda, a máxima potência da
campanha.
O Príncipe, com os seus arrebatamentos de moço, foi sempre um seduzido pela Maçonaria. E
mesmo, no íntimo, secretamente, D. Pedro tinha certo temor daqueles homens coligados na
sombra.
Ora, toda aquela formidável alavanca, aquela grande força organizada, obedecia ao gesto dum
homem: o Grão-Mestre José Bonifácio. O prestígio do Primeiro-Ministro, a sua vasta
autoridade no Pais, a aura de popularidade que o bafejava tão radiosamente e, como remate,
esse grão-mestrado da loja Maçônica, despertaram na Corte um desenfreado ciúme.
Despertaram desmedida inveja entre os ambiciosos do poder: urdiu-se então, na treva, a queda
do velho Andrada.
Certa noite, depois de haver soado o toque do Aragão, quando a cidade toda dormia sob a
paz estrelada do céu, três vultos cautelosos, envoltos nas suas grandes e negras capas,
penetraram discretamente no recinto do Grande Oriente. Dentro na Sala dos Juramentos,
ornamentada de caveiras e de punhais, com dísticos sibilinos, por toda a parte, aqueles três
homens, tardos e misteriosos, desembuçaram-se com tranqüilidade. Eram José Clemente
Pereira, Presidente do Senado da Câmara: Joaquim Gonçalves Ledo, grande Vigilante da
Maçonaria; o Coronel Luís Pereira Nóbrega, patriota de larga influência na época.
- Ele prometeu mesmo que vinha? perguntou o Coronel Nóbrega arremessando a capa.
- Homessa! respondeu Clemente Pereira. Prometeu e vem. Garanto que vem!
- Está claro que vem, atalhou Gonçalves Ledo, depois de acender vários candeeiros de azeite.
Ninguém quer cair no desagrado da Loja. E ele, mais do que ninguém, precisa hoje de nosso
apoio; não acha, Clemente Pereira?
Não houve tempo para a resposta. Alguém bateu à porta, com pausa, três pancadas
cabalísticas.
Instantes após, com mostras de grandes deferências, Clemente Pereira introduziu o recém-
chegado na Sala dos Juramentos. Dirigiu-se aos companheiros:
- E o irmão Guatemozim. (3)
Três punhais, com um só gesto, fuzilaram no punho dos três homens; o recém-chegado, que era
o próprio Príncipe D. Pedro, de chapéu na cabeça, respondeu com simples gesto àquele
estranho ritual da confraria. Sem surpresa, familiarmente, sentou-se entre os três:
- Então, que há?
Caiu pesado silêncio. Gonçalves Ledo foi quem começou a falar. A falar gravemente, o ar
circunspeto, pondo muito peso e solenidade no seu dizer:
- Vossa Alteza conhece a exata situação da nossa Loja. Entre nós, como nossos irmãos, ligados
por juramentos sagrados, jornalistas, padres, generais, desembargadores,
grandes políticos. Todos os homens de valor e de influência no Brasil. Os nossos emissários,
correndo as Províncias, levaram por toda a parte os liames da nossa força. Somos hoje, graças
a esse esforço, uma terrível máquina. Terrível e poderosa. Pois bem: toda a Maçonaria, como
Vossa Alteza bem sabe, está hoje nas mãos dum único homem.
- José Bonifácio! atalhou o Príncipe.
- Exatamente, continuou Ledo; a Maçonaria está nas mãos do Primeiro-Ministro de Vossa
Alteza. José Bonifácio, no entanto, só com o ser Ministro, a fama e a popularidade de que goza,
tem hoje uma situação de quase onipotência. Além disso, o velho Andrada é ainda o nosso
Grão-Mestre. É o dono desta força! Ora, perguntamos nós: não teme Vossa Alteza tamanho
prestígio numa só mão? Tanta autoridade num só homem?
O assunto era escabroso. A pergunta melindrosa. Por momentos, ali, naquela sala baçamente
alumiada, o coração dos homens bateu forte.
- Ora, diante de tal situação, prosseguiu Ledo, nós, com os nossos amigos, estamos resolvidos
a substituir o Grão-Mestre da Maçonaria.
O maçom fitou o Príncipe bem nos olhos. E exclamou com um ar profundo:
- Vossa Alteza quer ser o nosso Grão-Mestre?
- Eu?
- Vossa Alteza!
Novo silêncio. Aquela proposta, lançada de brusco, chocou o ânimo do Príncipe. Calaram-se
todos. Foi Clemente Pereira quem quebrou o silêncio:
- no entanto, uma condição. Nós, para alijarmos José Bonifácio do gráo-mestrado, temos
que exigir do futuro Grão-Mestre certas compensações.
D. Pedro não repeliu o que ouvia. Ao contrário! A idéia de encolher um pouco as rédeas do
velho Andrada, de cercear-lhe aquele poderio ameaçante, seduzia vivamente o coração-
borboleta do Príncipe. Depois de meditar um instante, ferretoado, D. Pedro indagou:
- Quais são, meus senhores, essas compensações?
- Poucas, continuou Clemente. Quase nada. Apenas isso: José Bonifácio e Martim Francisco
devem ficar debaixo da imediata fiscalização do Grande Oriente.
- Não compreendo...
- Sim, Alteza. Debaixo de imediata fiscalização do Grande Oriente. No momento em que, por
qualquer motivo, caírem no desagrado da Loja, serão demitidos incontinenti de Ministros.
- Isso é um absurdo, bradou o Príncipe. Como podem os Andradas ficar debaixo da fiscalização
da Loja?
- Muito facilmente, retorquiu Gonçalves Ledo. Vossa Alteza nos dará três folhas de papel, em
branco, com a assinatura de Vossa Alteza.
- Três folhas em branco?
- E com a assinatura de Vossa Alteza. Uma para lavrarmos, se for necessário, a demissão de
José Bonifácio; outra, para a demissão de Martim Francisco; e outra, finalmente, para a
nomeação do Ministro da nossa confiança.
- E para que nenhum de nós possa abusar desses papéis, ajuntou o Coronel Nóbrega, Vossa
Alteza entregará uma folha a Gonçalves Ledo, outra a Clemente Pereira e outra a mim.
- Assim, com essa fórmula, tornou Clemente Pereira, nós conciliaremos tudo: Vossa Alteza será
eleito Grão-Mestre e os Andradas ficarão debaixo de nossa fiscalização.
- E não é só: poremos também, com essa fórmula, um freio a esse ilimitado poderio do paulista,
tornou Nóbrega.
- E ainda não é tudo, exclamou Gonçalves Ledo, o principal é fazer compreender bem a José
Bonifácio que é Vossa Alteza, e não ele, o nosso único chefe.
Encolerizado, com um gesto forte, repetiu exaltadamente:
- O nosso único chefe!
- Afinal de contas, exclamou o Príncipe, erguendo-se, afinal de contas, vosmecês talvez tenham
alguma razão. E preciso, realmente, encolher um pouco as rédeas.
O Príncipe era um leviano. Um assomado. Foi sempre, em toda a sua vida, um fácil e um
impulsivo. Por isso, ali, naquela estranha noite, diante daqueles homens coligados, D. Pedro, o
eterno arrebatado, sempre repentino, sempre a tomar resoluções súbitas, exclamou
estouvadamente:
- Meus senhores! Aceito a proposta. Elejam-me Grão-Mestre da Maçonaria: e eu prometo que
vosmecês, no dia da minha posse, terão as três folhas de papel com a minha assinatura.
- Então, atalhou Gonçalves Ledo, tomando bruscamente duma arma que pendia da parede;
então Vossa Alteza, sobre a cruz desta espada, diga que cumprirá o prometido...
E o Príncipe, sem vacilar, estendendo a mão sobre a cruz:
- Juro!
Nada mais extravagante do que aquilo... Nada mais absurdo, nem mais ilógico: mas a verdade é
que o juramento foi feito.
* * *
Dias após aquela cena incrível, o Príncipe seguia para São Paulo. E de São Paulo veio, como
um raio, a estuporante notícia do 7 de Setembro. Gonçalves Ledo correu imediatamente à casa
do Presidente do Senado da Câmara:
- Clemente Pereira, disse dum lego, o êmulo do grande paulista: não temos um minuto a
perder! Precisamos derrubar o velho Andrada. Agora, depois dos sucessos do Ipiranga, esse
homem vai se tornar perigosíssimo. Não haverá ninguém, no Brasil, mais poderoso do que ele.
- Mãos à obra. Gonçalves Ledo, mãos à obra! E tratar de convocar a Loja e eleger
imediatamente o Príncipe.
E os homens daquela oculta coligação, os temerosos rivais e inimigos dos Andradas, não
descansaram.
Nos começos de outubro, naquele mesmo sobradão da Rua Nova do Conde, D. Pedro foi
empossado, com desusado brilho, no cargo de Grão-Mestre da Maçonaria Brasileira. Antes,
porém, de ser introduzido na Sala do Trono, Gonçalves Ledo, que esperava à porta, conduziu o
Príncipe a uma saleta reservada. Nessa saleta devia Sua Alteza paramentar-se com os fitões e
as insígnas de Grão-Mestre. Sozinhos, a confabular, estavam ai duas pessoas: José
Clemente Pereira e o Coronel Luís Pereira Nóbrega. Havia, sobre pequena mesa, tinteiro, pena,
três folhas de papel em branco. D. Pedro, sem dizer palavra, pegou na pena, molhou-a no
tinteiro, tomou as folhas de papel. Em cada uma delas, com sua caligrafia, tracejou sem tremer:
- PEDRO I, IMPERADOR.
Era a primeira vez que usava o titulo de Imperador. Cada um daqueles três comparsas,
dobrando a sua folha assinada, guardou-a no fundo do bolso, cuidadosamente, com o coração
aos pulos (4),
* * *
Nessa noite, ao saltar no Paço de São Cristóvão, D. Pedro delirava. Nunca a sua estrela fulgira
tanto! A glória bafejava-o triunfalmente. O seu nome, depois do grito do Ipiranga, andava de
boca em boa, abençoado, apoteosado como o de um vencedor. Nunca, em momento nenhum
da História, houve Príncipe mais popular. O País inteiro enlouqueceu pelo seu Libertador. Era
um delírio. Eram, pelBrasil inteiro, entusiasmos doidos.
O Chalaça, que lia nos olhos do amo a cálida ventura que os iluminava, desmanchava-se em
exclamações embebedantes:
- Vossa Alteza é hoje o ídolo do Brasil! O deus! Não pode haver ninguém mais adorado. Há uma
loucura por ai afora.
D. Pedro ria-se, alvoroçado. De repente, em meio àquele júbilo, o Príncipe fitou
estranhadamente o valido. Murmurou confidencialmente:
- Tudo me sorri, Chalaça! Tudo! No entanto, para coroar a minha glória, ainda me falta uma
pequenina coisa.
- Pequenina coisa?
- Pequenina, sim... mas que, afinal, é tudo para mim. Tudo!
- ?
- Falta-me a Titília de Castro!
O Chalaça abriu os braços, espetaculoso, numa grande atitude de espanto:
- Vossa Alteza fala sério?
- Chalaça, meu amigo, escute um pouco. É incrível o que me sucede! Um absurdo! Mas é
verdade: a lembrança dessa mulher não me larga mais. É a minha idéia fixa.
O Chalaça olhava o Príncipe com um olhar parvo. D. Pedro apaixonado? E apaixonado por uma
provincianazinha? Aquilo embasbacara-o.
- É mesmo de espantar, Chalaça! Eu sei que é de espantar. Mas que quer você? Eu, desta vez,
encontrei o meu caso. Nunca acertei tanto. Desde aquela noite de São Paulo, eu não penso
noutra coisa...
Pousou a mão, fortemente, sobre os ombros do favorito:
- É fabuloso! Mas que hei de fazer? Eu sinto que amo essa mulher...
- Nesse caso, atalhou o Chalaça com fino sorriso, nesse caso é Vossa Alteza mandar arrear
um cavalo e fazer partir um próprio para São Paulo: dentro de duas semanas, afianço a Vossa
Alteza, a Domitila estará na Corte!
- Não é tão fácil assim, exclamava D. Pedro. Não é tão fácil... E o escândalo? E os mexericos?
E José Bonifácio?
- Qual escândalo! Qual mexerico! Qual José Bonifácio! É mandar tudo às favas. Vossa Alteza
gosta da mulher? A mulher gosta de Vossa Alteza? Pois então uma coisa a fazer:
despachar um próprio para buscá-la! E despachar já. Despachar hoje. Tudo mais é baboseira.
José Bonifácio que bufe! E os mexericos que fervam! Que é que tem isso! Mocidade é uma
só, Alteza. Toca a divertir! A vida não vai a matar...
Francisco Gomes sabia bem o que dizia. Aqueles incitamentos entraram sonoramente pela alma
de D. Pedro. Um anseio ardente de ser herói de romance, de fazer da sua vida privada uma
novela, acutilou sempre, perdidamente, o coração doidivanas do Príncipe. E ali, ao ouvir os
entusiasmos do favorito, D. Pedro, ardendo pela ventura, murmurava risonhamente:
- Você acha isso?
- Nem há dúvida! E só escrever um bilhetinho. O resto deixe Vossa Alteza por minha conta!
Não foram necessários, para arrastar o Príncipe àquela maluquice, nem grandes, nem cerrados
argumentos: Sua Alteza, como um estudante enamorado, precipitou-se às tontas na aventura.
Por isso, logo no dia seguinte, um portador de confiança corria desabalado pela estrada de São
Paulo à busca da filha de João de Castro. E D. Pedro, aquele galhardo moço de vinte e quatro
anos, no pináculo da glória, enquanto a esperava, pôs-se a preparar, com amor e carinho, a
festa da sua Aclamação.
* * *
A Aclamação! Era o dia 12 de outubro o aniversário natalício de D. Pedro (5). Grandes nuvens,
negras e pesadas, boiavam pelo céu ameaçadoramente. Apesar da manhã enfarruscada,
apesar do tom bruma e cinza que envolvia as coisas, toda a cidade amanhecera festiva e
engalanada. E era uma alegria estrondosa pelas ruas, troar de canhões nas fortalezas, revoar
de bandeiras a cada canto, burburinho de gente por toda a parte.
Às dez horas, precisamente, partia do Paço da Boa Vista o cortejo governamental. Luzida
Guarda de Honra, composta de paulistas e de fluminenses, com os seus batedores e os seus
cavaleiros, montados em ginetes brancos, magnificamente ajaezados, vinha à frente do
séquito imperial, com estrépito, rompendo a marcha a toques de clarim. Logo atrás, tirado por
oito fogosíssimos cavalos, com moços de estribeira de lado a lado, o coche imperial, solene e
dourado, conduzia Sua Majestade o Imperador D. Pedro I, Sua Majestade a Imperatriz D.
Leopoldina da Áustria, e uma linda brasileirinha de três anos, que era a sereníssima Princesa D.
Maria da Glória. Mais dez cavaleiros da Guarda de Honra, com o seu coronel comandante à
frente, todos a faiscar de recamos lampejantes, seguiam imediatamente o coche de Suas
Majestades. Depois, no carro do Estado, graves e formalizados, em grande traje, os primeiros
quatro ministros do Brasil: José Bonifácio, Martim Francisco, Miranda Montenegro, Manuel
Antônio Farinha. Por último, fechando o séquito, uma sege com dois camaristas a serviço de
Suas Majestades.
Quando os Imperadores, atravessando cinco arcos de triunfo, debaixo de flores que tombavam
de todas as varandas, por entre o agitar dos lenços que as damas entusiasticamente sacudiam,
alcançaram o Campo de Sant'Ana, tôda a vasta Praça estava coalhada de tropa: eram os
Caçadores da Corte, o Batalhão dos Henriques, o Regimento de São Paulo, o Esquadrão de
Minas, quadrados de cavalaria, piquetes de lanceiros, bocas-de-fogo. Estuava por toda a parte
uma multidão desordenada, multidão louca e frenética, que aclamava, que berrava, que
delirava, na grande embriaguez da sua vitória. No momento em que D. Pedro e D. Leopoldina,
circundados dos quatro ministros, surgiram na vanguarda do Palacete de Sant'Anna, aquela
imensa turba, com um só entusiasmo, prorrompeu em aclamações ensurdecedoras:
- Viva D. Pedro!
- Viva D. Leopoldina!
Os Imperadores, sorrindo, agradeciam com gestos amáveis. E aquele rubro frenesi da populaça
chegou, de súbito, ao supremo delírio: foi no instante em que D. Maria da Glória, a linda
Princezinha brasileira, loura e frágil, assomou à balaustrada da varanda e agradeceu ao Povo,
com leve e gracioso acenar de dedos, o estrépito das ovações:
- Viva D. Maria da Glória!
Nisto, ao mando de várias vozes, fez-se por toda a Praça, grande e absoluto silêncio. José
Clemente Pereira, à frente do Senado da Câmara, que trazia desdobrado ao vento o seu
estandarte novo, com as suas novas armas, dirigiu ao Imperador, em nome da sua Província, a
arenga da aclamação:
- Senhor! O Povo da Província do Rio de Janeiro, legitimamente representado pelo Senado da
Câmara, vem aclamar, neste faustoso dia, a Vossa Majestade, Imperador Constitucional do
Brasil.
Nesse tom grandíloquo e pomposo, Clemente Pereira lançou aos ventos a sua longa fala
memorável. Quando, apagados os últimos aplausos, tombou novo silêncio, D. Pedro, pálido e
emocionado, apareceu na sacada do palacete. Estendeu a mão sobre a Praça. E belo, e
majestoso, e com largo gesto teatral, exclamou, bem alto, a voz vibrando:
- Aceito o título de Imperador Constitucional do Brasil, porque tal é a vontade geral de todas as
Províncias!
A salva de 101 tiros reboou com estrondo pelo espaço. Catadupa de palmas, rugir de vivas,
furiosa explosão de contentamento estrondejou por toda aquela formidável massa! Alegria tão
louca, tão da alma, dominou de tal forma aquele oceano de gente, que o próprio Imperador,
eletrizado por aquele entusiasmo, tocado por aquela transbordante comoção popular, chorava
como um menino.
José Bonifácio, com a sua impecável compostura, contemplava, de cima, o poviléu agitado. E
via, com um sorriso triunfador, a vitória da batalha por que tanto batalhara. De repente, no meio
daquela populaça que bramia a seus pés, um homem, forte e atarracado, destacou-se de certo
grupo que primava pelo entusiasmo, arrancou o chapéu de feltro, olhou fixamente a José
Bonifácio, e berrou com voz tonitroante:
- Viva D. Pedro I, nosso único chefe!
Os companheiros do grupo, como que combinados, responderam, ao mesmo tempo, com a
mesma entonação:
- Viva D. Pedro I, nosso único chefe!
O homem, forte e atarracado, era Gonçalves Ledo. Os companheiros, os sócios do Grande
Oriente. José Bonifácio, que compreendera bem o significado daquele viva, sorriu
imperceptivelmente. Era a onça acuada que se tocaiava para o pulo.
Nisto, em meio àquele delírio, abriam-se os diques do céu: chuva torrencial, caudalosa, jorrou
sem tréguas sobre aquele formigueiro. Mas - oh milagre do patriotismo! - não houve uma
pessoa, uma só, dentre aquela tumultuosa turba, que arredasse o da Praça da Aclamação.
Sob a água, debaixo do temporal desabalado, continuaram, ininterruptas, as aclamações mais
loucas e mais desenfreadas.
Foi então que D. Pedro 1, Imperador aclamado, desceu as escadas do Palacete de Sant'Ana.
Entrou debaixo do pálio de seda que os procuradores das Vilas carregavam. se foi, com os
pés na água, através da Rua dos Ciganos, a caminho da Capela Imperial. Aí, com soberba
pompa, por entre galas faiscantes, o Sr. Bispo-Capelão, D. Caetano, principiou o Te-Deum.
O HOMEM DO DIA
Terminaram os festejos de 12 de outubro. José Bonifácio, durante semanas a fio, trabalhou sem
descanso, febrilmente. Era de ver-se o "Corta-Orelha", mulato de negra fama, capoeira
perigosíssimo, favorito do Primeiro-Ministro, a correr açodado pela cidade afora. Levava recados
e mais recados. Ia e vinha. Tudo denunciava graves coisas. À noite, em casa do velho Andrada,
reuniam-se em torno dele muitos amigos, muitos correligionários, muitos companheiros de
política. Que era aquilo? Que é que significava aquela fervedura? Ninguém o sabia.
Certo dia, no Paço de São Cristóvão, ao terminar o despacho, José Bonifácio, ar tranqüilo,
comunicou ao Imperador, como se comunicasse a banalidade mais corriqueira, estas
espantosas novidades:
- Ontem, numa reunião do Apostolado, Vossa Majestade foi eleito Arconte-Rei. Quer Vossa
Majestade dar a honra de ser empossado, hoje, nesse alto posto?
D. Pedro franziu o sobrolho. Não havia penetrado o sentido daquele palavreado.
- Arconte-Rei? Apostolado? Que diabo quer isso dizer, Conselheiro?
- Apostolado, respondeu com serenidade o Primeiro-Ministro, o nome da nova Loja Maçônica
que eu, com meus companheiros, acabamos de fundar. Gente muito escolhida. amigos
verdadeiros e dedicados. Veja um pouco Vossa Majestade a lista dos nossos Confrades...
Calmo, sem espavento, José Bonifácio passou às mãos de D. Pedro
várias folhas de papel.
Nelas, enfileirados, sucediam-se os nomes de centenas e centenas de adeptos à nova Loja.
- Vossa Majestade, continuou impassível o Primeiro-Ministro, Vossa Majestade foi eleito
Arconte-Rei (6). Isso significa que foi eleito Chefe Supremo da Loja. Consente Vossa Majestade
em ser empossado, hoje, nesse alto posto?
O Imperador desconcertou-se. Estava rudemente chocado por aqueles modos esquisitos, o
serenos e tão imperturbáveis, do seu Ministro. Perguntou apenas:
- Onde é a sede, Conselheiro?
- Na Rua da Guarda-Velha, Majestade, no antigo edifício do Quartel General (7).
- Pode contar comigo; lá estarei, sr. Ministro, às dez horas em ponto!
- Ah, exclamou o velho Andrada, com leve, imperceptível sorriso de triunfo; eu não esperava
outro gesto da benevolência de Vossa Majestade.
Desceu as escadas do Paço. O Chalaça dobrou-se até os joelhos para deixar passar Sua
Excelência. José Bonifácio tinha o coração embandeirado: acabava de desfechar um tiro de
morte no prestígio do Grande Oriente!
Dez horas da noite. O edifício da Guarda-Velha fervilha de gente. De instante a instante,
discretos e cautelosos, vultos embuçados embarafustam-se pelo sobradão adentro. Grande
aparato de festa. Súbito, em meio àquele burburinho, esvoaçava um cicio respeitoso:
- D. Pedro!
- É D. Pedro. Sua Majestade, pela mão de José Bonifácio, recebe, nessa noite, o malhete e as
insígnias de Arconte. Estava lançado, vitoriosamente, o famoso clube político dos Andradas.
* * *
Na manhã seguinte, ainda cedo, uma sege estava em frente ao pórtico de o Cristóvão. O
Primeiro-Ministro saltou de dentro dela. Galgou pausadamente a vasta escadaria da Quinta.
Ríspido, com o seu ar imperativo e seco, foi logo ordenando ao Chalaça:
- Avise a Sua Majestade!
O Imperador acabava de almoçar. Estranhou receber visita assim tão matutina. E foi logo ao
encontro do Ministro.
- Que há, Conselheiro?
- Coisa de pouca monta, Majestade.
Austero, com seu aspecto venerando, com aquele peso no dizer, com aquela medida no
gesticular, o grande paulista explicou a causa de sua ida ao Paço:
- Circunstâncias muito particulares, Majestade, forçaram-me a vir neste momento, solicitar
demissão do cargo de Ministro. A minha resolução é irrevogável. Agradeço as muitas
deferências que me foram dispensadas. Com os meus agradecimentos, deponho nas mãos de
Vossa Majestade a pasta com que me honrou.
D. Pedro não contava jamais com essa estranha atitude de José Bonifácio. Ergueu-se, surpreso.
- A sua demissão, Conselheiro? Mas é exatamente nesse momento em que a Bahia ferve, em
que o General Madeira pega em armas, em que o Pará e o Piauí se rebelam, em que todo o
Norte nos ameaça, é num momento destes, Conselheiro, que Vossa Excelência toma a
resolução de abandonar o seu posto?
- Vossa Majestade bem sabe, retorquiu serenamente o Ministro que eu nunca fui homem de
abandonar o posto na hora da luta. Mas é Vossa Majestade quem obriga a minha saída do
Governo.
- Vossa Majestade, Sr. D. Pedro! E fácil dizer por que. Na noite em que Vossa Majestade, tão
inexplicavelmente assinou, em branco, aquelas três folhas de papel, entregando uma a
Clemente Pereira, outra a Gonçalves Ledo, outra ao Coronel Nóbrega, nessa noite, Vossa
Majestade lavrou o decreto de minha demissão.
D. Pedro, ao ouvir o seu segredo nos lábios do Ministro, empalideceu. Aquela revelação,
desfechada assim, à queima-roupa, sacudiu-o.
- Os três amigos de Vossa Majestade, continuou impavidamente o ancião, foram os primeiros a
alardear aquele ajuste. Era necessário, para o prestígio deles, que se soubesse no Grande
Oriente da arma terrível que o Sr. D. Pedro lhes colocara nas mãos. Pois bem; agora que os
fatos estão consumados, pergunto eu ao Imperador: Vossa Majestade pensou bem as
conseqüências que podem advir desse ato? Pois Vossa Majestade já pensou que, amanhã, com
a assinatura do próprio punho do Imperador, podem surgir por os decretos mais
comprometedores? As ordens mais abusivas? E como poderá Vossa Majestade, num caso de
escândalo, justificar-se perante o País?
O Imperador era um colegial apanhado em flagrante. Ouvia cabisbaixo a acusação irrespondível
do juiz. A palavra sensata do velho entrou-lhe pela alma vencedoramente. E D. Pedro, aquele
estouvado sincero, impulsivo cheio de coração, exclamou logo:
- Tem razão, Conselheiro! Eu confesso o meu erro. Erro grave de que me penitencio. Mas agora
que hei de fazer? E tarde para remediá-lo.
- Tarde? Pois algum dia, Majestade, será tarde para se afastar um perigo do Trono? Não é
tarde! Não! Vossa Majestade, diante da gravidade do caso, só tem um caminho a seguir: reaver
imediatamente essas assinaturas. Ou então, no caso de recusa, mandar para a Fortaleza da
Lage os falcatrueiros. Eis aí o último conselho que eu, ao retirar-me do Ministério, deixo a Vossa
Majestade. (8)
Fez uma profunda reverência. Imperturbável, com o seu andar pausado, desceu solenemente as
escadarias da Quinta de São Cristóvão.
Só, atordoado com a cena, D. Pedro, o homem das resoluções súbitas, bateu palmas. O
Chalaça ergueu o reposterro.
- Monte o primeiro cavalo que achar na cavalariça, à cidade, procure o Ledo, o Clemente
Pereira, o Coronel Nóbrega; diga-lhes, de minha parte, que venham os três imediatamente ter
comigo.
O Secretário Privado curvou-se. Ia retirar-se. Mas D. Pedro, na sua agitação, não pôde reprimir-
se:
- Veja lá, Chalaça, o que acaba de acontecer: José Bonifácio pediu demissão de Ministro!
- José Bonifácio?
- Pediu a demissão. Saiu daqui agora mesmo! E não tempo a perder: cumprir as minhas
ordens a galope. Preciso já desses homens cá no Paço.
O Chalaça partiu desabalado.
Em breve, dentro de uma sege, os três famosos maçons tocavam pela estrada de o
Cristóvão. Gonçalves Ledo, alvoroçado, com quente alegria a fuzilar-lhe nos olhos, comentava:
- Não resta dúvida, meus senhores! Se José Bonifácio, como nos revelou o Chalaça, pediu de
fato a sua demissão, um de nós vai ser Ministro. E fatal!
- Um ou dois, atalhou Clemente Pereira. Martim Francisco, saindo o irmão, não ficará na pasta.
Então, meu caro, haverá duas vagas no Ministério. Duas vagas, Seu Ledo! Hein! Duas vagas...
Forte contentamento fervia-lhes no peito. Ministro! Ao atravessar o amplo pórtico da Quinta,
cada um daqueles três homens, no fundo do peito, bem no fundo, tinha a certeza de ser o
escolhido. D. Pedro esperava-os. E logo, sem preâmbulos, entrou no assunto.
- Os senhores trouxeram aquelas folhas de papel que eu lhes confiei no dia de minha posse?
- Trouxemos, Majestade! Acudiu Ledo, sem pestanejar, bebendo as palavras do Imperador.
D. Pedro retorquiu sem vacilar: - Eu ordeno aos senhores que me restituam, e já, essas três
folhas de papel.
Se a abóbada do Paço houvesse, naquele momento, desabado sobre aqueles três homens, por
certo não os esmagaria tanto como aquela brusca resolução. Gonçalves Ledo, que escancarava
os olhos, mal teve ânimo de ousar uma palavra:
- Mas Vossa Majestade...
- Eu não os mandei chamar para discutir. Mandei chamá-los unicamente para lhes ordenar que
me devolvam as folhas de papel que eu assinei em branco. Ou os senhores as restituem, ou
sairão daqui, com o Capitão da minha guarda, para a Fortaleza da Lage: é escolher...
Havia na voz do Imperador uma inflexão tão voluntariosa, no seu olhar um clarão tão áspero,
que os três homens não tiveram outro caminho: meteram as mãos no bolso e entregaram a D.
Pedro as terríveis folhas de papel. O Imperador recebeu-as. Não pronunciou palavra. E
despediu-os com um gesto, secamente.
Pelo parque da Quinta, o belo parque verdejante, sonorizado de pássaros, os três maçons, tão
alvoroçados havia um momento, tinham agora o ar tristonho de vencidos. Que desapontamento!
* * *
Enquanto, calados e taciturnos, os políticos rodavam pela estrada poeirenta de São Cristóvão, lá
fora, na Corte, deflagrava a notícia de que José Bonifácio se demitira do Governo.
Que rebuliço!
Ainda ontem, nos momentos agitados da campanha separatista, José Bonifácio era o gigante.
Era o super-homem. Era o predestinado. Agora, mal proclamada a Independência, a
politiquice o derrubava do seu posto. a inveja e a intriga o arrojavam da pasta de Ministro.
Não! Não podia ser! Logo, nos clubes, nos jornais, nos cafés, na Câmara, no Apostolado, nos
quartéis, em toda a parte onde se discutia, onde se pensava, onde se fazia política, avolumou-se
grossa vaga de descontentes. Do povo, do seio da turba, da alma daquela multidão fanatizada,
partiu um imenso brado coletivo, pedindo que José Bonifácio permanecesse no Ministério. Que
movimento surpreendente! As listas populares, suplicando a D. Pedro que não concedesse a
demissão dos Andradas, voavam de mão em mão, num rodopio, arrebatadas, disputadas por
toda a gente, subscritas por milhares e milhares de assinaturas. O Conselho dos
Procuradores das Províncias, a corporação mais alta e de mais autoridade no momento,
arrastado por essa torrenciosa caudal de simpatias, endereçou a Sua Majestade grave e solene
moção, pedindo, "em nome das Províncias e para a felicidade da Nação", que fossem
conservados os Andradas no Ministério. Nesse impressionante documento histórico faltou,
por chocante coincidência, a assinatura de um Procurador: o de Gonçalves Ledo.
O Senado da Câmara reuniu-se também para deliberar. Ao saber do movimento, José Clemente
Pereira correu agitadamente à assembléia. Tentou, com a sua autoridade de Presidente, evitar
um pronunciamento a favor dos Andradas. Mas a causa de José Bonifácio era tão simpática, tão
sinceramente popular, que Clemente Pereira, apupado e assobiado, saiu do recinto debaixo de
sarcástica vaia. Até a tropa, sacudida pelo mesmo frêmito, num movimento temeroso, lançou
altissonante proclamação, bela e enérgica, insistindo pela reintegração do velho Andrada no
Governo. Assim, batida por grosso vendaval de entusiasmo, na efervescência de rubra
patriotada, toda a população do Rio de Janeiro, desde os titulares mais emproados até o poviléu
mais rastejante, tudo se foi, ululando, pedir ao Imperador que José Bonifácio permanecesse
no Ministério.
D. Pedro contemplou, da varanda do Paço, a onda fragorosa que aclamava o Primeiro-Ministro.
D. Pedro foi sempre um romântico. Um sonhador à cata de glória. E teve, nessa hora, um
daqueles gestos muito seus, gestos de arrebatar multidões: saiu ele próprio do Paço, e, em
pessoa, ovacionado e apoteosado, veio buscar o Ministro que se demitira.
Que loucura! O Imperador, à frente da multidão, por entre vivas apopléticos, alcançou o Largo
do Rodo onde morava José Bonifácio. A casa do velho Andrada foi logo invadida por atordoante
burburinho de gente.
- Viva José Bonifácio!
O Primeiro-Ministro, porém, mal pedira a sua demissão, deixara o casarão do Largo do Rocio e
se recolhera à sua chácara do caminho velho do Botafogo. O povo, por entre aclamações, cada
vez mais desenfreadas, na culminância da sua ebriez, foi, através da cidade, ondeando e
tumultuando, caminho de Botafogo.
No Largo da Glória, porém, toda aquela massa, aquela desbordante procissão de exaltados,
topou, de chofre, com José Bonifácio que voltava da chácara. E ali, em plena praça, diante dos
olhos extáticos da turba, desenrolou-se esta cena estupendíssima: o filho dos reis e o filho do
povo, o Imperador e o Ministro, o moço e o ancião, ambos trêmulos, ambos vibrantes, ambos
sufocados pela mesma emoção, abraçaram-se comovidíssimos, chorando, na mais linda e na
mais enternecedora das reconciliações (9)
À noite, no Teatro de São João, para coroa daquilo tudo, houve espetáculo de gala. José
Bonifácio, o homem do dia, teve enfim, no camarote imperial, ao lado de D. Pedro I e da
Imperatriz D. Leopoldina, a sua grande, a sua bela, a sua magnífica noite de triunfo.
O Teatro atulhou-se de povo. A Corte inteira, palpitante e sôfrega, correu a ver a vitória do
grande homem. Aquilo era a glória! O momento supremo! A apoteose! O velho Andrada sorria.
De súbito, ficando a esmo a assistência, o olhar do velho, bruscamente, cruzou-se com um olhar
negro. Era um olhar coruscante. Um olhar atrevido de mulher. José Bonifácio, estranhamente e
inexplicavelmente, sentiu, ante o áspero fulgor daqueles olhos, um estremeção violento. Quem
seria aquela mulher, aquela trigueira elegante, cabelos cor da noite, que o fixava com tanta
arrogância?
Era D. Domitila de Castro. Era a encantadora favorita de D. Pedro 1, a perigosíssima paulista,
que assistia, lá embaixo, anonimamente, à noite triunfal do seu grande inimigo.
O "CORTA-ORELHA"
Martim Francisco, o seco Ministro da Fazenda, repetia a José Bonifácio, mais uma vez ainda, as
causas da crise financeira.
- É natural esta situação, mano! Naturalíssima! Ora veja: o Sr. D. João VI, quando aqui aportou,
que é que nos trouxe? Dívidas e mais dívidas.
- Isso não! aparteou, sorrindo, o Primeiro-Ministro; trouxe também muitíssimos fidalgos, todos
encalacrados.
- É verdade! Trouxe dívidas e fidalgos encalacrados. Pois bem! Dentro de poucos anos, com
uma administração vigilante, D. João conseguiu arrecadar tanto dízimo por esse Brasil afora,
que foi necessário escorar várias salas do Paço, onde estavam os cofres, a fim de que não
desabassem com o peso de tanto ouro! (10)
- É verdade, concordou José Bonifácio. Foi espantosa a arrecadação!
- Mas D. João, continuou Martim, D. João ao partir, apesar do atropelo do embarque, não se
esqueceu de atulhar as suas fragatas com todo o nosso dinheiro. E aqui nos deixou com a maior
sem-cerimônia muitíssimas responsabilidades. E que responsabilidades!
Com o lápis em punho, debruçado sobre a mesa, Martim começou então a enfileirar sobre uma
folha de papel a dívida do Brasil.
- Veja: dois mil e cem contos aos ingleses Young e Finie; mil contos ao Visconde do Rio Seco;
mil contos ao exército; mil e cem contos à marinha; doze milhões ao Banco Nacional, mil.
Não pôde acabar a enumeração. O "Corta-Orelha" suspendeu bruscamente o reposteiro.
Penetrou no gabinete onde discutiam os dois Andradas.
O "Corta-Orelha"! Joaquim Inácio da Costa Orelha, por corrutela o "Corta-Orelha", era um
mulataço entroncado, a cara larga, trinta e dois branquíssimos dentes, ar encarvoado de
chimpanzé. Capoeira famigerado, tipo acabado de facínora, ninguém melhor do que ele sabia
as tricas da Corte. Enfronhava-se de tudo. Andava por tudo. Esmerilhava tudo. E por 1822,
capanga já célebre, o jeitoso mulato tinha este ofício do mais alto destaque: era guarda-costa do
velho Andrada. (11) Naquela noite, vendo-o surgir inesperadamente, os dois homens olharam-
no surpresos. O capoeira, despachado e palrador, foi logo explicando ao que vinha:
- Vassuncês me desculpem se eu venho cortá o fio da conversa. Mas eu acabo de saí, agorinha
mesmo, do Teatro da Constituição, onde se deu um caso dos diabos! Caso crêspo! Vassuncês
carecem sabê...
- Meu Deus! Que caso tão importante será esse? perguntou Martim galhofando. Que é que
sucedeu? Vamos lá, Seu "Corta-Orelha", desembuche a coisa.
- Eu vo principiá do princípio...
Sem rodeios, como se contasse a história mais sabida e mais velha da Corte, o capoeira
começou dizendo:
- Vassuncês decerto sabem - isto é coisa que anda na bôca do povo - que o Imperador não
sai da chácara de Mataporcos...
- Da chácara de Mataporcos? indagou José Bonifácio com surpresa.
- Ché! vendo que vassuncê no escuro, continuou o capoeira com um risinho. Pois então
vassuncê ainda não sabe que o Imperador ferrô uma raparigona de arromba, montô casa e botô
a bicha de cama e mesa?
- Já ouvi falar nessa história, aparteou Martim. E explicou a José Bonifácio:
- E a Titília de Castro. A filha do Coronel João de Castro, aquela de São Paulo, que o Alferes
Felício esfaqueou na coxa.
- Conheço muito! Sei muito bem quem é. Mas então?
- Pois é essa, continuou o "Corta-Orelha"; é essa a dona de Mataporcos. Dizem que o Imperador
anda maluqueando por ela. Foi em São Paulo, na Independência, que conheceu a tar. E ficô
zonzo. Ficô tão zonzo que mandô buscá a dita.
Os dois irmãos entreolharam-se. A novidade era grave.
- E agora, em Mataporcos, prosseguiu o mulato, é uma romaria. Um bandão de gente! Tudo a
adular a bicha. O Ferreira França não sai de lá...
- O Ferreira França? exclamou Martim. Um desembargador!
- D. Pedro, continuou o "Corta-Orelha", esse vive lá. Aquilo toda a noite, é pagodeira grossa: o
Miquelina toca violão, o Chalaça canta lundus; e é ceiata, e vinhaça, e é risada, e é um
turumbada! O Imperador - vassunces bem sabem! - é louco por patuscada. E fica lá, noite e
mais noite, naquela pândega dos diabos.
- É o mesmo estouvado! aparteou, sorrindo, Martim Francisco. Não muda.
- Eu sei de tudo isso, explicou o capoeira, por causa do Tenente Morais. O Tenente Morais é
íntimo de lá!
- O Tenente Morais?
- O Moraizinho! Vassuncê não se alembra então do Moraizinho? Se alembra! Pois é hoje
tenente. Está no Batalhão do Imperador. É íntimo! Vive lá.
- Isso pouco importa, atalhou José Bonifácio; vamos tornar ao nosso caso, que é importante.
O "Corta-Orelha" reatou o fio da narrativa:
- Pois acontece que a dona, querendo conhecê a Corte, apareceu hoje no teatro da
Constituição. Aquilo como vassuncês sabem, é teatro particular, teatro de povo fino. Gentinha
miúda, meio cá, meio lã, não que pisa ali! O diretor, quando viu na porta aquela dona
desconhecida, uma dona sozinha, de vestido de seda, cheirando água-de-cheiro, joiarada
fuzilando no pescoço, maginô logo - pudera - que aquilo fosse coisa de contrabando. E sem
mais aquela, muito seco, foi barrando a bicha na porta:
- Dona, aqui só entra família. Tenha paciência! Vassuncê não pode entrá.
- Nossa Senhora! A mulher ficou vermelha que nem lacre. O sangue queria jorrá da cara dela!
Mas não disse palavra. Mordeu o beiço e virô no pé. O Chalaça viu aquilo. Correu logo, afobado,
ao camarote do Imperador. Econtou a história tim-tim por tim-tim. Eta, mundo... D. Pedro ficô
onça! E como é home de rompante, que deslinda as coisas na hora, mandô chamá ali mesmo o
Intendente de Policia. O Intendente branqueô ouvindo as ordens:
- Mande descê o pano! Mande suspendê o espetáculo! Mande despejá a Companhia!
E bravo, pisando duro, saiu do Teatro espumando de raiva. O Intendente cumpriu as ordens; fêz
pará a representação, mandô descê o pano e avisô o povo que não havia mais espetáculo.
Principiô um zunzum do inferno! Que foi? Toda a gente queria sabê o que houve. Num instante,
pelo teatrinho, correu o caso. O povo então ficô sabendo o motivo daquela brabeza; a dona,
expulsa do Teatro, era a rapariga de São Paulo. Era a tar Domitila de Castro. Foi um estouro! E
a cidade inteira, a esta hora, tá fervendo. E só diz-que-diz-que. Não se fala de outra coisa.
- Que escândalo! bradou Martim Francisco.
- Cos diabos, exclamou também José Bonifácio. Que escândalo pavoroso! Este senhor D.
Pedro! ora veja se isto é coisa que se faça. Mandar suspender um espetáculo! Fechar um
Teatro! Pôr uma Companhia no olho da rua! E tudo isso por causa da amante... Um Imperador!
- É a tara, mano! E o sangue dos Braganças. E haverá quem possa corrigir um filho da Sra. D.
Carlota Joaquina? Impossível.
- De fato, concordou o velho Ministro; que tara pesada!
- E este senhor D. Pedro, então, continuou Martim, foi sempre perdido por mulheres. É o seu
fraco. Isso desde muito menino. Ora veja o caso da Noemi, a bailarina do Teatro São João.
Pode haver escândalo maior? E ultimamente depois de casado, aquela história com as filhas
de Pedro José Cauper, o guarda-roupa de el-Rei? A Sra. D. Leopoldina, coitada, quase morreu
de ciúme. Que há de se fazer? O homem vive atrás de rabo-de-saia.
- Mas é preciso pôr um paradeiro a isso, atalhou Jo Bonifácio. Este caso da Domitila é caso
gravíssimo. Não pode continuar assim.
- Difícil coisa, ponderou Martim. Difícil e melindrosa.
- Pois eu vou falar com D. Pedro, continuou o Primeiro-Ministro. E farei tudo que puder para
liquidar essa loucura do Imperador.
- Desculpe, Sr. Ministro! atalhou o "Corta-Orelha". Mas eu digo uma coisa a vassuncê: não mexa
com vespeira! A gente não pode mangá com essas diabas. Veja vassuncê o que fez a Sra. D.
Carlota Joaquina, mulher de D. João...
E como essa história de D. Carlota Joaquina com D. Gertrudes Pedra, em que o "Corta-Orelha"
se tornara célebre, fora uma das histórias mais escandalosas do tempo de D. João VI. Martim
Francisco, não podendo reprimir um tic de curiosidade, pediu ao famoso capoeira.
- Ó "Corta-Orelha" que diabo de história é essa? Eu, com franqueza, ainda não sei ao certo
como se deu aquilo. Conte-nos um pouco essa façanha...
O "Corta-Orelha" não se fez de rogado. E ali, na presença dos dois Ministros, com grande
desfaçatez, desenrolou pitorescamente o caso da Rainha:
- D. João VI - coitado! - era um marido bobo. Marido de boa-fé. A mulher - Nossa Senhora! -
uma jararaca. Eta peste! Vivia só xingando o Brasil. Pois um dia, não se sabe por que mandinga
D. Carlota Joaquina se embeiçô pelo Conde de S. José. Vassuncés decerto conhecem o
Conde!?
- Está claro, respondeu Martim; é o Fernando Carneiro Leão. Gentil-homem e moço da Câmara.
- Isso! É ele mesmo. Nesse tempo, isso há dez anos, o Conde já era home feito. Home dos seus
trinta e pico. Um sujeitão bonito. moreno. Valente como o diabo! E a coisa pegô fogo. Não se
falava, na Corte, senão do Conde e da Rainha. Aquilo era um sem-vergonhismo tão grande, que
até dava reiva na gente. Todo mundo sabia. Só o Rei, o pobre, não sabia de nada. Mas falatório
vai, falatório vem, e caso foi pará no ouvido de D. Gertrudes Pedra, mulher do Conde. Chi! Que
barulheira! Foi uma ciumada do inferno. A mulherzinha tinha pêlo na venta. Principiô a botá a
boca na Rainha de todo o jeito. Que aquilo não era Rainha, era moça. Moça à-toa! Que D.
Carlota precisava era duma boa tunda de pau pra não andá desencabeçando marido das outras.
E dizia tudo o que vinha à boca. A Rainha, quando soube dos bufos de D. Gertrudes, ficô numa
brabeza sem conta. Batia o pé, gritava, espumava. Foi um fim de mundo. Um dia, se que eu
esperasse, um criado de galão veio me procurá: era um chamado da Rainha. Eu fui. D. Carlota,
por esse tempo, morava no Largo de São Domingos; e o Rei separado dela, na casa de Tomás
Soares. Cheguei. Fui logo recebido. A Rainha me disse tudo o que queria. Disse claro, sem
rodeio. O negócio era crespo. Mas que fazê? Eram ordens.
Martim Francisco e José Bonifácio ouviam, vexados, os pormenores daquele escândalo. E
ambos, no fundo do pensamento, comentavam com tristeza:
- Que vergonha!
Mas o "Corta-Orelha", com toda a naturidade, prosseguiu no seu narrar:
- Chegô o dia da festa dos ourives. Houve, como todo ano, a procissão de Nossa Senhora das
Dores. Eu fui me escondê na Chácara do Catete, onde morava o Conde. Tinha muita árvore na
chácara. Lugar bom pra espera. Muito no jeito! Quando a procissão acabô, noitinha, D.
Gertrudes voltô pra casa. Vinha de carruage. No momento em que fronteô o arvoredo onde eu
tava de tocaia - pum! - lasquei um tiro e finquei pelo mundo. No outro dia, quando toparam o
corpo, foi um alarido. Quem seria? Quem não seria? D. João - coitado! - fez chamá o
Intendente, que era o Desembargadô Fragoso, mandô que descobrissem o assassino, custasse
o que custasse. A policia deu logo na pista. Eu fui preso. Enquanto eraprisão, não era nada.
A gente ia aturando. Mas quando principiaram as lambadas no couro - credo! - pedi que queria
falá co Intendente. E então confessei tudo! Contei o crime. Contei o motivo. Contei a mandante.
O intendente, quando ouviu o nome da Rainha, branqueô. Mas escreveu tudo. Depois pegô a
papelada e levô ao Rei. D. João, o pobre, leu aquela historiada. Leu e ficô tonto. Não sabia o
que fazê! Mas enfim, depois de pensá bem, achô mais certo mandá queimá a papelada. Foi o
que fez. Mas D. Gertrudes Pedra, apesar disso, lá está nos sete palmos...
- E você pensa, aparteou José Bonifácio sorrindo, que a Domitila, se eu bulir nos amores dela,
seja capaz de fazer comigo o mesmo que D. Carlota fez com D. Gertrudes? Qual! Não tenha
receio.
- Não sei, Sr. Ministro, respondeu o mulato meneando a cabeça. Não sei. Mas uma coisa eu
garanto: é muito arriscado a gente mexê com vespeira e não saí mordido!
- Não é tanto assim, exclamou José Bonifácio. Você, "Corta-Orelha", incumba-se de vigiar de
perto o que se passa entre D. Pedro e a Domitila. Caso essa história tome maiores proporções,
essa dona volta para a Província. Você verá que gente capaz de mexer com vespeira e
não sair mordida: é questão de jeito.
UMA TRAMA NA SOMBRA
Enquanto no gabinete do Primeiro-Ministro, o "Corta-Orelha" ia narrando as suas proezas, dois
homens que também haviam estado no Teatrinho Constitucional, descendo tranqüilamente pela
Rua das Noites Belas, foram desembocar no Passeio Público.
Um, alto e magro, era o Chalaça. Outro, espadaúdo e atarracado, era João Pinto da Rocha.
Ambos favoritos, ambos íntimos, ambos muito validos de D. Pedro.
O Imperador, com a facilidade dos seus verdes anos, circundou-se continuamente de amigos
detestáveis. Eram todos gente da ralé.
Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, esse tão apregoado dizedor de graçolas, o popular truão
do Primeiro Império, viera de Portugal com a fuga de D. João VI. Aqui, para tentar fortuna,
experimentara tudo: fora barbeiro, fora ourives, fora seminarista, fora até criado de galão. Mas o
destino, por um desses caprichos de espantar a gente, reservara a esse boêmio, tocador de
violão, uma sorte brilhantíssima.
D. Pedro, numa das noitadas de Príncipe estróina, topara certa vez com aquele exótico figurão,
muito alto e muito magro, a cantar modinhas e lundus no Botequim da Cometa. Ninguém mais
patusco, nem mais folião. E o Príncipe, num dos seus repentes, afeiçoou-se àquele tipo sabedor
de tão boas piadas e chalaças: e no dia seguinte a esse encontro providencial, o Sr. Francisco
Gomes da Silva, fechando a loja de barbeiro, aboletava-se no Paço de São Cristóvão, onde o
Príncipe lhe mandara dar ótimo agasalho e ótima tença. Por essa época, Secretário Privado
do Imperador, Intendente Geral das Cavalariças, Comandante da Imperial Guarda de Honra, o
Chalaça era personalidade relevantíssima, o mais adulado de todos os fâmulos de D. Pedro.
(12)
Todos o cortejavam. Todos, propriamente, não. Havia um homem, ríspido e severo, que jamais
tivera um sorriso para o Chalaça. Alguém, sempre seco e áspero, que o tratava com uma
superioridade de doer: era José Bonifácio. Por isso, no fundo do peito, bem no fundo, o truão
odiava de morte o Primeiro-Ministro.
E com ele, odiando o velho Andrada, com o mesmo ódio, estava o seu amigo João Pinto da
Rocha. Este também era grande favorito. Viera de Londres, falido, aventurar-se no Brasil. Aqui,
caindo na agrado de Targini, o grande homem do Tesouro, abiscoitara imediatamente um
lugarzinho opíparo na Alfândega, onde, sem o menor trabalho, sugava na úbere do Estado a
bagatela de um conto e trezentos. (12)
Martim Francisco, porém, que era Ministro exemplaríssimo, guarda cioso dos dinheiros públicos,
cortou cerce aquela imprudência. Ao ver-se sem emprego, sem eira nem beira, o homenzinho
desandou a botar a boca nos Andradas. E falou tais coisas, disse tais impropérios que o
Intendente de Polícia, envolvendo-o no processo das devassas, trancafiou-o na Fortaleza da
Lage. (14)
Uma boa estrela, contudo iluminava o berço de João Pinto. Ao sair da prisão, ainda fremente de
cólera, o perseguido dos Andradas, não se sabe como, caiu nas boas graças do Imperador. E,
dum dia para outro, aquele falido de Londres, o expulso da Alfândega, penetrou no Paço de São
Cristóvão como grande favorito de Sua Majestade. Foi logo, por mercê de D. Pedro, nomeado
guarda-roupa e gentil-homem.
Os dois validos, nessa noite de estio, atravessando o largo portão do Passeio Público, se
foram, pela grande rua do centro, até ao terraço fronteiriço ao mar. Era uma noite clara e morna.
Uma dessas noites tropicais, embalsamadas de perfumes selvagens, toda lantejoulada de
estrelas. No Passeio Público, inteiramente deserto, se ouvia, pelo silêncio daquela hora, o
rumor da água da Cascatinha, espiralada, que vinha tombar murmurante sobre rochas toscas,
empilhadas com desalinho rústico e estudado.
- Mas que escândalo, Chalaça, ia exclamando João Pinto. Isto que acaba de acontecer no
Teatrinho é muito grave. Mandar suspender um espetáculo para desafrontar a amante,
caramba!
- Qual grave, qual nada! Isto cá no Brasil, meu caro, anda tudo à matroca. É largar mão. D.
Pedro que se há de fazer? - não pode passar sem uma aventurazinha. Não pode! Aquilo está na
massa do sangue. Nasceu assim, de morrer assim. Pois é deixá-lo. Que se estrompe com
a Domitila.
Num dos bancos de pedra, que circundavam o terraço, sentaram-se os dois validos. E diante
deles, sob o olhar indiferente de ambos, estendeu-se, quieto e solitário, o vasto parque do
Passeio Público.
O Passeio Público! Ah, não era mais o Passeio, sob D. Pedro I, aquela mesma envaidecedora
maravilha, aquele jardim curioso e bizarro, com que Luís de Vasconcelos, o Vice-Rei, havia em
1783 aformoseado a Corte. não existiam, devastados pelo rolar do anos, aqueles famosos
enfeites de conchas e de escamas, obras-primas de Xavier das Conchas, que fizeram tanto
tempo a delícia dos coevos. Muita coisa se fora. Muita! Mas ainda restavam tantas...
Caramanchões cobertos de madressilvas e de jasmineiros. A pirâmide de azulejo, recamada de
heras, com a sua frase enlanguescente. "Saudade do Rio". E aquele menino célebre, todo nu,
despejando um filetezinho de água, a dizer a toda gente: "Sou útil até brincando". Ainda
estavam os lagos artificiais, grandes e crespos, com pássaros de pedra pousando à tona das
águas. E os dois magníficos jacarés de bronze, vomitando jorros de água pela goela
escancarada, que Valentim Fonseca da Silva, o mais afamado entalhador da época, ajeitara
pitorescamente entre penhascos e musgos.
Os dois amigos, ali, no terraço, puseram-se a conversar, muito confidenciais. O Chalaça estava
azedo.
- Este País vai à garra! Está perdido. O Imperador - como você sabe - nem governa mais.
Largou tudo nas mãos de José Bonifácio. O paulista, depois daquele triunfo, parece o único
homem do Brasil. E o dono disto. Agora então, com a Domitila aí, de ser maior o descalabro.
D. Pedro vai deixar o velho fazer o que quiser. O principal é viver em paz com a Domitila. O
resto que às favas! E José Bonifácio, que é rancoroso e vingativo, continuará a envolver o
mundo inteiro nas devassas. Veja o que se passa em São Paulo...
- É verdade, concordou João Pinto; as notícias vindas de São Paulo são de espantar a gente.
Os Andradas instauraram por o regime do terror: ou é andradista ou inimigo. Para os
andradistas, tudo; para os inimigos, cadeia! E não se poupa inimigo algum. Tanto faz ser gente
de prol como arraia miúda. E processo, é devassa, é polícia, é o diabo!
- O Pe. Antônio Feijó, interrompeu o Chalaça, que é um padre ás direitas, um homem rijo e
honesto, escreveu ao Imperador uma carta indignada.
- A causa, afinal, de toda esta perseguição em São Paulo, é vingança. Não é? Tudo aquilo é
para desagravar o irmão que foi escorraçado de lá. Mas deixe estar, Chalaça; esta situação
não continua assim. Ou cessam as devassas, ou estoura já, por aí, nova bernarda.
- Não estoura coisa nenhuma, João Pinto! Coisíssima nenhuma. Esse homem compreendeu
que isto é um País de moles. Basta haver um Ministro carrancudo, como farromas de
independente, que fale alto, que berre, para que tudo amoite. Afinal, João Pinto, o que se passa
aqui no Rio, em plena Corte, nas barbas de D. Pedro é pior, mil vezes pior, do que está se
passando em São Paulo. Amargo, deixando extravasar o seu velho ódio contra José Bonifácio,
o Chalaça pôs-se a apostrofar as arbitrariedades do Ministro:
- Mas então, João Pinto, você se esqueceu do que fez o Andrada contra João Soares Lisboa,
o redator do "Correio do Brasil"?
- Não há dúvida; foi uma violência tremenda!
- Violência inqualificável, João Pinto! Pois então, meu caro. só porque um jornalista diz aí meia
dúzia de coisas atacando o Governo é isso motivo para se agarrar o homem, trancafiá-lo no
porão dum navio, e expulsá-lo daqui sem mais aquela? Haverá maior abuso? Impossível! Mas
não é isso. E o caso do May? Que me diz você daquilo? Hein? O homem, era sabido,
criticava toda gente. A "Malagueta" não perdoava ninguém. Um dia, porque buliu com José
Bonifácio, só porque deu uma alfinetada no Grande Homem, pronto! Foi o bastante para que lhe
varejassem a casa e lhe metessem uma tunda de mestre. Isto é coisa que se faça?
- Tudo isso ainda não é nada, atalhou João Pinto. E as perseguições? Aqui é que bate o ponto!
No dia seguinte à reentrada de José Bonifácio no Ministério, o Intendente de Polícia madrugou
no Largo do Rocio. E as ordens do Primeiro-Ministro foram de arrepiar. Aquilo era só: prenda o
Ledo! Prenda o Clemente! Prenda o Nóbrega! Prenda fulano! Prenda sicrano! E prendeu-se
toda a gente. Tudo que era inimigo dos Andradas amanheceu no cárcere. Foi uma varredura.
- O Clemente Pereira e o Nóbrega, esclareceu o Chalaça, saíram do Brasil no primeiro barco:
José Bonifácio fulminou os seus inimigos com o desterro. estão em França, passando
misérias. E o Pe. Januário? O pobre homem ia longe, fugindo para Minas, quando foi
reconhecido no caminho. E agora aí está na Fortaleza da Lage, trancafiado num calabouço, com
sentinela à porta.
- E o Ledo? Que é feito dele?
- O Ledo, para não ser preso, andou dum lado para Outro, num corre-corre. Até que uma noite,
disfarçado em negra quitandeira, com O rosto e os braços pintados de preto, balaio na cabeça,
foi se esconder em Niterói, em casa do Barão de São Gonçalo. E daí, graças à proteção do
Cônsul da Suécia, o Lourenço Westin, partiu para Buenos-Aires. está no exílio. Ora, meu
caro, isto tudo é uma pouca-vergonha.
- Uma pouca-vergonha! confirmou João Pinto. Mandar prender todos os seus inimigos, homens
de responsabilidades, e mandar todos
eles para o desterro! Caramba...
- Mas não foram os seus grandes inimigos, atalhou o Chalaça. Foi todo o mundo. José
Bonifácio não se esqueceu de ninguém. o perdoa a ninguém. Nunca, nem em Lisboa, ao
tempo de Pina Manique, houve um período de tanto arrocho. Estamos em pleno regime do
terror!
- Eu que o diga, exclamou João Pinto. Não se pode nem piar. É abrir a boca, é dizer uma
palavrinha contra José Bonifácio - zás - Fortaleza da Lage! E tunda! E couro sem e sem
piedade. A coisa chegou ao extremo. Não há quem possa mais.
Entre os dois amigos caiu súbito silêncio. se ouviram por um instante, o escachôo
murmurante da Cascatinha e o balouço quebrado das ondas do mar. O Chalaça levantou-se.
Pôs as mãos sobre os ombros do amigo. E fixando-o:
- Ó João Pinto! Escute lá... Vamos fazer, nós dois, uma coligação?
- Ora essa! E para que, Chalaça?
Francisco Gomes fixava o amigo com insistência. Estranha chispa fuzilava-lhe nos olhos.
- Para derrubarmos os Andradas!
- Derrubarmos os Andradas? Nós?
- E por que não? Você tem medo, João Pinto?
- Meu caro Chalaça, tornou o antigo falido, com um ar escarnecedor, eu não quero ser
escorraçado do Brasil. Olhe o que aconteceu ao Ledo. Olhe o que aconteceu ao Clemente
Pereira. Este negócio de viajar num porão de navio, Chalaça, de ir em França a roer o pão seco
do desterro - é duro. É muito duro.
- Não seja poltrão, João Pinto, volveu o Chalaça. Escute lá. Nós contamos, neste momento, com
um elemento formidável, poderosíssimo, com que o Ledo não contava. Um elemento decisivo
nesta história!
- ?
- Decisivo!
Chegou-se rente do amigo. E segredou-lhe este cicio mágico:
- A Domitila de Castro!
João Pinto quis falar. Mas o Chalaça atalhou com um gesto:
- E ou não é certo que o Imperador tem paixão por essa mulher?
- Isso é coisa que não se discute! O homem não sai de Mataporcos noite e dia. É um apego!
Basta ver o escândalo de hoje no teatrinho. Nem se discute!
- Pois então, meu caro João Pinto, o caso é muito simples: ouça lá o meu plano.
No Passeio Público, aos cochichos, muito amigos e muito íntimos, aqueles dois perigosos
intrigantes, unidos pelo mesmo ódio aguilhoados pelo mesmo despeito, tramaram longamente,
longamente... Afinal, quando se separaram, noite alta, ambos, com vivo fulgor de júbilo nos
olhos, haviam assentado levar a cabo essa arrojadíssima tarefa: derrubar José Bonifácio do
poder!
DUAS ALMAS DANADAS
O dia seguinte amanhecera claro, de sol forte, com alegrias redourantes a faiscar por tudo. A
chácara de Mataporcos, escondida entre a folhagem, discreta como um ninho de beija-flor,
dorme, chiante de cigarras cantadeiras, entre a galhaça abrigadora das árvores patriarcais.
São onze horas. Um cavaleiro, que vem trotando pelos ziguezagues do caminho, faz o animal
parar em frente à porta da casa. Apeia-se. Amarra as rédeas. E grita para dentro:
- Ó de casa! Um negrinho, encarvoado e magricela, corre a ver quem é.
- Olá, moleque: a Sra. D. Domitila está?
Nisto, no varandim da casa, tão pitorescamente enroscado de trepadeiras, surge uma
encantadora mulher. Tem dois olhos muito grandes e muito negros. Veste esbelto vestido de
linho branco, elegantíssimo, que lhe põe uns ares sadios de frescura e graça. Mal avista o
recém-chegado, ela exclama com jubilosa efusão:
- Ó Sr. João Pinto! Entre! Faça o favor.
João Pinto sobe a pequena escada do varandim.
- Então, que milagre foi esse? Vosmecê por aqui! Algum recado urgente de Sua Majestade?
- Exatamente, Sra. D. Domitila; um recado de Sua Majestade. Urgente, não direi. Mas, em todo
caso, agradável.
- Pois então faça o favor de entrar.
Entram. Dentro, na ampla sala de jantar, João Pinto começa sem preâmbulos:
- O Sr. D. Pedro manda avisar Vossa Senhoria, Sra. D. Domitila, que virá esta noite, mais o
Chalaça e o Miquelina, a fazer cá uma ceiata alegre.
- Oh, diz D. Domitila com alvoroço, oh, Sr. João Pinto, que notícia bem-vinda! D. Pedro não
podia ter idéia mais feliz. E a que hora virá Sua Majestade?
- Às nove, Sra. D. Domitila.
- Muito bem! Esperá-lo-ei com muito gosto.
E sedutora, com aquele seu fresco sorriso, a linda senhora pergunta ao hóspede:
- Toma um cafezinho, Sr. João Pinto?
- Se não for incômodo, Sra. D. Domitila.
- Incômodo? Ora essa!
Vira-se para a mucama que surgira à porta.
- Zefa! Traga uma xícara de café para o Sr. João Pinto. Bem quente, ouviu?
Enquanto esperam o café, põem-se ambos a conversar amistosamente.
- Então, Sr. João Pinto, que novidades há?
- Poucas, Sra. D. Domitila. Muito poucas! Só São Paulo, a sua querida Província, é que está em
polvorosa.
- Mas que é que sucede em São Paulo? Toda gente fala de São Paulo! Ainda agora
esteve Moraizinho...
- O Moraizinho?
- O Sr. João Pinto não conhece o Moraizinho? Conhece! É o Tenente Morais. Aquele do
Batalhão do Imperador.
- Ah, já sei! Um rapaz louro...
- Exatamente! É muito meu amigo. Ele esteve aqui a me contar da fervedura que vai pela minha
Província.
- Pois é verdade, continuou João Pinto. Causa lástima o que por lá acontece. Causa lástima!
- Mas enfim, Sr. João Pinto, que há de tão grave por São Paulo?
- Pois Vossa Senhoria ainda não sabe? Ah, Sra. D. Domitila, aquilo está perdido! Os Andradas
revolucionaram tudo.
- Mas será mesmo certo o que andam contando dos Andradas?
- Certíssimo! José Bonifácio, sob o pretexto de apurar responsáveis da bernarda de Francisco
Inácio, mandou trancafiar na cadeia todos os inimigos políticos da família. Aquilo por lá, hoje em
dia, é só devassa! E é processo! E é perseguição! E é o diabo!
- Pois é de pasmar!
- É de pasmar e de indignar, exclama o valido.
- E o Imperador, Sr. João Pinto, que diz de tudo isso?
- O Imperador? Oh, Sra. D. Domitila, retorna João Pinto com maldoso sorriso; bem se percebe
que Vossa Senhoria ainda não conhece bem as tricas da Corte. O Imperador não sonha, nem
de leve, com o que se está passando! E o Primeiro-Ministro quem governa. É o Primeiro-
Ministro quem põe e quem dispõe. E o Primeiro-Ministro neste momento, o dono absoluto do
Brasil!
E meneando a cabeça, com ar de grande tristura, murmura desolado:
- Este senhor José Bonifácio, Sra. D. Domitila, tem uma alma de déspota. É o homem mais duro
do Brasil!
- Dizem, realmente, que o Primeiro-Ministro é um homem de ferro.
- De ferro? Não, Sra. D. Domitila, vocifera João Pinto, exaltado.o! É homem de maus bofes.
Homem de más entranhas. Isso sim! Veja Vossa Senhoria o que aconteceu ao Ledo. E ao Pe.
Januário. E ao Clemente Pereira. E a tantos outros.. Haverá maior crueza do que aquilo?
- É verdade, concorda D. Domitila; o desterro daqueles homens foi desapiedado. Mas que se há
de fazer?
- E Vossa Senhoria, atalha João Pinto vivamente, com muita e maldosa tonalidade na voz: e
Vossa Senhoria, mais do que ninguém pode afirmar que José Bonifácio é violento e mau.
- Eu? exclama a paulista, admirada. E por quê?
- Oh, Sra. D. Domitila, respondeu João Pinto com perversidade. Por Deus Não queira se fazer
de ingênua.
D. Domitila olha o valido com surpresa.
- Afianço-lhe, Sr. João Pinto, que não compreendo. Absolutamente, não compreendo!
João Pinto, diante da afirmativa categórica, esboça um sorrisozinho embaraçado.
- Não entendo, Sr. João Pinto, insiste D. Domitila. Não entendo o que vosmecê acaba de
insinuar!
João Pinto torna a sorrir o seu sorriso embaraçado. E com o ar confuso, ar de quem se
coagido a uma revelação que o desgosta:
- Eu digo isso, Sra. D. Domitila, só por causa do incidente no Teatrinho da Constituição.
D. Domitila cora de súbito. Forte onda de sangue, chofrando-lhe no rosto, purpureja-a toda. Mas
João Pinto continua:
- Todo o mundo, na Corte, não faz outra coisa senão comentar aquele caso. Foi, de fato, um
caso que ficou muito mal à Vossa Senhoria. Mas que se há de fazer?
João Pinto levanta-se. E com a voz áspera:
- Mas que se há de fazer? Foram ordens de José Bonifácio.
D. Domitila ouve a revelação inesperada. E de sobrolho franzido:
- Quê? Que é que vosmecê está dizendo? Ordens de José Bonifácio?
- Sim, minha senhora, ordens de José Bonifácio!
Mau, a destilar veneno na alma da favorita, João Pinto exclama dum jacto:
- Ora! Por que havemos nós de estar aqui com panos quentes? A verdade é esta: o "Corta-
Orelha", que é o grande favorito do Primeiro-Ministro, contava ontem à noite, no Botequim da
Cometa, e isto para quem quisesse ouvir, que Vossa Senhoria não pôde entrar no Teatro
porque José Bonifácio o proibira. E proibira porque acha Vossa Senhoria uma mulher
escandalosa! Eis aí!
D. Domitila, ao ouvir a rudeza daquela palavra, empalidece. Os lábios tremem-lhe.
Nisto, interrompendo as revelações do áulico, surge na varanda o velho João de Castro:
- Oh, Sr. João Pinto! Bons olhos o vejam...
- Viva, Coronel! Deus o salve e guarde!
Mal os dois homens se saúdam, D. Domitila, agitada, exclama com azedume:
- Sabe, meu pai, quem foi o mandante daquilo que me fizeram ontem no Teatro?
- ?
- Foi José Bonifácio!
- Quê!
- José Bonifácio! Pergunte aqui ao Sr. João Pinto...
- É verdade, confirma João Pinto. Foi o Primeiro-Ministro. Foi ele quem ordenou ao diretor do
Teatrinho que não permitisse a entrada da Sra. D. Domitila.
João Pinto, astuto e jeitoso, repete a João de Castro, com cores vivas, tudo o que soubera do
"Corta-Orelha". O Coronel, com sombria carranca de tempestade, ouve o favorito. E depois de
ouvi-lo, diz pausadamente:
- Pois eu, minha filha, já suspeitava desse homem. Digo mais, minha filha: tinha a certeza! Ah! É
que eu conheço bem José Bonifácio. Aquilo é bisca! É traste!
E passeando pela sala, já irado:
- Grande canalha!
- De fato, Sr. Coronel, exclama João Pinto; José Bonifácio não podia descobrir, para vexar a sua
filha, ultraje maior. Que audácia!
- Que cachorrismo, berra, todo cólera, o velho João de Castro. Que cachorrismo sem nome! Ah!
Sr. João Pinto, este paulista precisa é duma roda de pau! Isto é que é.
E assim, exaltados, a descompor o velho Andrada, aqueles dois homens lançam, no coração da
mulher ofendida, candente fagulha de ódio e de despeito.
* * *
A essa mesma hora, enquanto João Pinto atiçava com habilidade as iras da favorita, o
Imperador D. Pedro, no Paço de São Cristóvão, conversava jovialmente com o Secretário
Privado:
- Tudo combinado, Chalaça?
- Tudo, Majestade. O João Pinto foi a Mataporcos avisar a Sra. D. Domitila; e eu, por minha
vez, já avisei ao Miquelina. (15)
- Muito bem!
- De forma que, prosseguiu o Chalaça, o Miquelina, às nove em ponto, estará em Mataporcos
com o violão. E eu acabo de passar pelo Botequim da Cometa. Encomendei à Maria Pulchéria
um cuscus de frango, bem fumegante. Remexi também na adega do Paço, e, com grande
prazer, descobri umas garrafas daquele vinho velho do Sr. D. João VI. Aquele branco de 1760.
Assim, com esses comes e bebes, com o Miquelina no violão e eu no lundu, vamos ter hoje urna
funçanata opípara. Vossa Majestade verá!
D. Pedro sorriu.
- Bravos! Muito bem! O programa é de arromba.
E batendo nos ombros do favorito, disse, como a justificar aquela patuscada:
- É preciso, Chalaça! É preciso que a gente se divirta um pouco. Esta trapalhada de
Constituinte, com estes deputados a botarem falatório, me tem deixado bambo! Cáspite...
Levantou-se, muito bem-humorado, a assobiar gaiatamente uma solfa. Abriu um grande armário
negro, de carvalho entalhado, e retirou de dentro uma caixa de xarão incrustada de prata.
- Veja lá este mimo! Vou hoje levá-lo à Titília.
O Chalaça, tomando da caixa, mirou e remirou a lembrança. Era um colar de enormes
ametistas, com a efígie do Imperador gravada em cada pedra - curiosíssimo, verdadeira
maravilha de arte.
- Que lindo, exclamou o valido. Vossa Majestade não podia oferecer prenda de mais gosto.
Depois de examinar detidamente o mimo, depois de gabá-lo com imensos gabos, o favorito
tomou um aspecto compungido:
- Ainda bem que Vossa Majestade, com essa prova de estima, atenua um pouco o vexame de
ontem. Coitadinha! Expulsa dum Teatro...
D. Pedro, sentindo o gume daquela exprobação, replicou assomado:
- Mas ainda agora, por uma portaria, mandei fechar o Teatro. Ontem, logo que soube do
desacato, mandei incontinenti suspender o espetáculo. Mandei despejar os micos. Que mais
posso fazer para desagravá-la?
O Chalaça sorriu.
- Não nada mais certo do que o rifão do Brasil: papagaio come milho, periquito leva a
fama. Vossa Majestade despeja os cômicos, suspende o espetáculo, fecha o Teatro, e assim,
com essas medidas, obriga uns pobres-diabos a pagarem por si os pecados dos outros.
- Como? pergunta D. Pedro surpreso. - Que é que você está a dizer?
- Oh, Majestade, continuou maldosamente o Chalaça, o diretor do Teatro - Vossa Majestade
bem - proibindo a entrada da Sra. D. Domitila no Teatro, nada mais fez do que cumprir
ordens.
E sarcástico:
- Ordens superiores!
D. Pedro ouviu aquilo. Estranha chispa fuzilou de súbito no olhar do Imperador.
- Ordens superiores? Homessa! Ordens de quem, Chalaça?
- Majestade, perdoe-me! Mas eu não ouso.
- De quem partiram essas ordens, Chalaça?
O Secretário, diante daquela atitude, não teve outra saída senão gaguejar:
- De José Bonifácio.
- De José Bonifácio?
- De José Bonifácio!
- Você está louco! Não é possível...
- Não é possível, Majestade? bradou o Chalaça numa efervescência. Pois então Vossa
Majestade acredita que haja outro, aqui na Corte que tenha a coragem de desacatar
publicamente a favorita do Imperador? José Bonifácio, o Primeiro-Ministro, é quem teria a
ousadia de fazer o que fez. Quer Vossa Majestade a prova do que eu digo? Nada mais fácil: é
ouvir o "Corta-Orelha"! Ouvindo-o, Vossa Majestade saberá que tudo aquilo, toda aquela
história do Teatro, foi obra exclusiva do paulista!
E rindo-se:
- Foi para moralizar! Foi pelo decoro do Trono! Ah! Ah! Ah!... Estes velhos, estes velhos!
O Imperador, com funda ruga na testa, sente, como alfinetados no seu orgulho, as risadinhas do
Chalaça. E pôs-se a passear dum lado para outro. Afinal, irritado e brusco, despediu com um
gesto o favorito. E ao despedi-lo:
- Isto, se for verdade, há de custar caro, muito caro, ao Primeiro-Ministro.
No céu de José Bonifácio, no céu azul da sua política, principiou, desde esse instante, a flutuar
grossa nuvem negra, pejada de borrasca...
UMA NOITADA ALEGRE
Meia-noite. Na chácara de Mataporcos, sempre tão discreta, esfervilha grande patuscada
foliona. Estruge dentro férvida alegria. muitas garrafas abertas. A fumarada dos cigarros
enevoa o ar. E o Chalaça, vermelho, o olhar incendiado, ergue a todo instante o seu copo de
genebra:
- Sra. D. Domitila! À sua...
Todos bebem à saúde da favorita. D. Domitila é a chama da festa. Linda, com seu vestido de
seda clara, a adorável paulista enche aquela noitada com as graças perturbantes da sua
mocidade. Tudo nela é tentação. Tudo volúpia. D. Pedro, junto dela, enamoradamente, devora-a
com os olhos. Embebeda-se dos feitiços mágicos daquela mulher.
O Chalaça, esse, com a sua facúndia picaresca, pontilha de galhofas a noitada. E está,
careteiro e bufo, a contar anedotas, a ridicularizar todos e tudo. E aquele bando alegre ouvindo-
o, ri-se a perder! E o Miquelina? Ah, o Miquelina... O pardo incomparável, aquele genial tocador
de violão, é a suprema delícia da pagodeira Ele, que faz "chorar o pinho". E chorar tão
quebradamente, com tanta alma, com um langor tão brasileiro e doce, que o Imperador,
batendo-lhe no ombro, exclama com entusiasmo:
- Deixe estar, Miquelina, você, à custa do violão, aindade ser Comendador do Império! Hein,
Miquelina? Que tal?
O mulato, escutando a pilhéria, sorri, lisonjeado, numa tonteira de felicidade. E com mais
requinte, com mais ardência, põe-se a repinicar no violão um lundu catita, lundu brejeiro e
saltitante, que o Chalaça, com o seu forte sotaque lisboeta, vai acompanhando reboladamente:
Ai, ai, ai,
Meu cobre é que lá vai,
Meu cobre é que lá vai...
Súbito, em meio àquela folia, alguém, inesperadamente, bate à porta. Todos entreolham-se.
Quem será? Mas o Chalaça, com largo gesto dominador, pacifica os ânimos:
- Não se assustem! Isso é comigo.
E sai. Momentos após, em plena sala, triunfante, erguendo alto vasta cesta recheada de pratos
e garrafas, o Chalaça brada gloriosamente:
- Cuscus!
- Cuscus? exclama D. Domitila, rindo-se com uma risada gostosa. Um cuscus, Sr. Francisco
Gomes? Que idéia!
- Sim, senhora. Um cuscus feito pela Maria Pulchéria. Pela Maricota Corneta! E aqui estão as
garrafas de vinho branco! E aquele branco que trouxe D. João VI, 1760! Vamos ao 1760!
Os comparsas do rega-bofe, com grande alacridade folgazona, agrupam-se barulhentos em toro
do cuscus. O prato fumega. Derrama-se, pelo ambiente, um odor apetitoso. O vinho branco do
Sr. D. João VI jorra. D. Pedro, o copo em punho, brinda rumorosamente:
- Você foi um herói, Chalaça! O cuscus está soberbo! Por isso, minha gente, vamos lá: à saúde
do nosso herói!
Todos batem os copos:
- À saúde, Chalaça!
- À saúde!
E a funçanata continua, noite afora, álacre e desordenada.
D. Domitila, sôfrega por saber notícias da Corte, não se cansa de interrogar o Chalaça. E a todo
instante:
- Sr. Francisco Gomes!
- Sra. D. Domitila!
- Conte um pouco, Sr. Francisco Gomes, como foi o baile que O General Avilez ofereceu a D.
Pedro...
O Chalaça abre os braços e revira os olhos para o céu:
- Ah! Sra. D. Domitila, foi a mais bela coisa que se viu no Rio de Janeiro. Que baile! Imagine
Vossa Senhoria que a brincadeira custou cinqüenta e três contos!
- ?!
- Cinqüenta e três contos fortes, minha senhora! Mas foi uma maravilha. Cada dama, ao entrar,
recebia um medalha de prata. Houve medalhas desde o número 2 até o número 324! A medalha
1 era de ouro: foi oferecida à Sra. Princesa D. Leopoldina, hoje nossa Imperatriz...
D. Domitila ouve encantada. Acha aquilo tudo muito lindo. E provinciana, ansiosa por se
enfronhar naquelas elegâncias, quer todos pormenores:
- E a que horas começou o baile?
- Às nove em ponto. Logo após a entrada dos príncipes no Teatro. Lembro-me perfeitamente. O
General Avilez e a Sra. Condessa de Belmonte foi o primeiro par que saiu dançando.
- Que é que dançaram, Sr. Francisco Gomes?
- Uma contradança inglesa. O baile foi todo assim: primeiro, uma contradança inglesa; depois
uma francesa; por fim, uma espanhola. Cada uma delas, porém, era alternada com uma valsa.
D. Domitila bebe as palavras do valido. Todas aquelas coisas têm para ela um encanto novo,
um chiste mágico.
- E a ceia, continuou o Chalaça - a ceia, Sra. D. Domitila! O palco foi transformado num jardim.
Dentro dele, em forma de grande estrela dourada, armaram a mesa, toda a refulgir de
candelabros de prata. Vossa Senhoria nem avalia o efeito desse arranjo. Foi de deslumbrar a
gente!
O Chalaça vai por aí afora. Narra tudo. Comenta tudo. Jornal vivo, interessantíssimo.
Mas D. Domitila é insaciável.
- E a Maria Graham, Sr. Francisco Gomes? Vosmecê conheceu a Maria Graham?
- Mas muito, Sra. D. Domitila! Muitíssimo! Era uma inglesa feiarrona, muito ruiva, seca como um
espeto.
- E muito distinta, atalha D. Pedro. Muito distinta e muito inteligente. Foi uma hóspede ilustre que
tivemos.
- Pois essa Graham, prossegue o Chalaça, que andou correndo este mundo e o outro, veio dar
no Brasil. Ficou muito admirada, quando saltou no Rio, ao ver que o povo não andava nu.
Pensava que aqui tudo era bugre. Só bugre de tanga e pena. Imagine, Sra. D. Domitila!
- Foi por isso, exatamente, afirma D. Pedro, que todas as famílias timbraram em recebê-la com
aquele carinho.
- Ah, foi um rebuliço, exclamava o Chalaça. A Sra. Baronesa de Goitacases deu uma festa. E
que festão! Todo o mundo de sege. A casa ficou assim de povo! Logo depois, na chácara de
Botafogo, a Viscondessa da Cachoeira convidou-a para um sarau. Um sarau lindíssimo.
Compareceu tudo que havia de fino no Rio. E a Sra. Viscondessa do Rio Seco, para não ficar
atrás, ofereceu também um jantar. Ah, foi coisa de fazer época!
O Chalaça, bebendo copázios de vinho branco, descreve o jantar da Sra. Viscondessa. E cada
vez mais vermelho, o olhar chamejante, desanda numa loquacidade irrefreâvel:
- Ah, Sra. D. Domitila, isso ainda não é nada. Festa, e festa grossa, foi a chegada do Duque de
Luxemburgo.
- Do Duque de Luxemburgo? indaga logo a paulista com curiosidade.
- De no meio da sala, o valido põe-se a descrever os arcos de os enfeites do Paço, as
iluminações públicas, a alegria de D. João VI.
E D. Pedro, com o copo na mão:
- Vamos lá, Chalaça: arremede aí o jeito do Duque!
E o Chalaça, bamboleando-se, ajeitando-se, revirando os olhos, numa destrambelhada
encenação, imita o andar do Duque, o timbre da voz, o modo de cortejar, o diabo! E o bando
todo a estourar de riso...
- Por sinal, Sra. D. Domitila, recorda o Chalaça, veio no séquito do Duque um músico
talentosíssimo. Que pena Vossa Senhoria não ter ouvido...
- É verdade, aparteia D. Pedro, foi o Neukomm. Discípulo de Haydn. Que grande artista!
- E eu que gosto tanto de música! exclama a linda senhora.
- Pois aqui, na Corte, há muito artista de valor. Vossa Senhoria já ouviu o Pe. José Maurício?
- O Pe. José Maurício? Aquele que D. João VI, diante de toda a Corte, condecorou com o hábito
de Cristo? Ah, Sr. Francisco Gomes, eu tenho imenso desejo de conhecer esse homem!
- E por que vosmecê não vai ouvi-lo? indaga D. Pedro.
- É muito fácil, intervém o Chalaça: no próximo domingo, na Capela Imperial, deve realizar-se
uma grande missa. Não vai tocar o Pe. José Maurício, como também vai pregar um
franciscano moço, de vinte e poucos anos, que dizem ser um orador formidável.
- E o Pe. Francisco Mont'Alverne, explica D. Pedro. Dizem, realmente, que é um talento. Fr.
Sampaio, ainda poucos dias, gabou-me extraordinariamente esse moço. Se vosmecê gosta
de boa música e de bom sermão, deve ir domingo à Capela Imperial. Terá assim ocasião de ver
a Corte e de ouvir grandes artistas. Garanto que não se arrependerá. Vale a pena.
O Chalaça, que enchia novamente o seu copo, estaca de repente bita idéia atravessa-lhe o
cérebro. Um sorriso leve, sorrisozinho enigmático, esvoaça-lhe no lábio.
- Eu até creio que Sua Majestade, por especial mercê, vai consentir que a Sra. D. Domitila
assista à missa de domingo em uma das tribunas imperiais.
O Imperador fita o valido. Calam-se todos. um relâmpago de silêncio. Aquilo é dum
atrevimento... Mas D. Pedro, engolindo o último trago do 1760, exclama risonhamente:
- Boa lembrança, Chalaça! Muito boa lembrança.
Vira-se para a favorita. E com um gesto condescendente.
- Fica vosmecê autorizada, Sra. D. Domitila, a assistir à missa de em uma das tribunas
imperiais.
Domitila cora. Repentino clarão fuzila-lhe no olhar. Pérfida, voz em que ia muito espinho, a
paulista responde:
- Grande mercê, Majestade! Mas não sei se a deva aceitar... São capazes de proibir minha
entrada na Capela Imperial!
D. Pedro sente a machucante ironia daquela frase. Sem pestanejar, autoritário e ríspido, ordena
ao Chalaça:
- Sr. Francisco Gomes! Determine ao Sousa Lobato, de minha parte, que faça a Sra. D. Domitila
de Castro assistir à missa de domingo de uma das tribunas imperiais. Vosmecê, Sra. D. Domitila
no próximo domingo, irá ouvir, entre as Damas da Imperatriz, a música do Pe. José Maurício.
Estranho frêmito sacode a paulista. Os seios arfam-lhe. Toda uma onda de felicidade purpureja-
a.
- Bravos! Bravos! grita ruidosamente o Chalaça. E para festejar essa mercê com que Sua
Majestade acaba de agraciar a Sra. D. Domitila, você pegue no violão, Seu Miquelina, e
remate esta noitada com um lundu...
E o pardo, tonto da vinhaça, tomando o violão, ajeitando-o, corre os dedos pelas cordas:
- Que lundu há de ser?
- O "Lundu do Capoeira"! pede D. Domitila. É para recordarmos, Sr. Francisco Gomes, aquela
noitada de São Paulo... Lembra-se?
- Se me lembro! Lembro-me perfeitamente. Foi o Moraizinho quem me fez cantar esse lundu.
- Alto lá! interrompeu a paulista. O Moraizinho, não senhor: o Tenente Morais.
- É verdade, concordou o Chalaça, rindo. O Tenente Morais! Ia me esquecendo que o
Moraizinho, aquele rapazola de São Paulo, está hoje nessa culminância. Mas isto pouco
importa. Vamos ao lundu. Isso sim!
O Miquelina, com a sua mestria, põe-se a repinicar o violão. E o Chalaça, com seu vozeirão de
português, lá vai, meloso e dengoso, acompanhando os requebros picantes da música.
Ai, ai, ai,
Meu cobre é que 1á vai,
Meu cobre é que lá vai...
Instantes depois, noite alta, aquela companhia alegre se desfez. E D. Pedro, ao despedir-se
da favorita, que lhe beija a mão com a mais graciosa reverência:
- Até domingo, na Capela Imperial!
E ela, com um sorriso, antegozando o seu grande triunfo:
- Até domingo, na Capela Imperial!
Saem todos. D. Pedro e o Chalaça, esporeando os cavalos, tocam a toda brida pela estrada. E o
Miquelina, a pé, com o violão ao peito, se vai, devagar, pelo caminho silencioso de
Mataporcos lançando ao vento, sob a faiscação das estrelas, a mágoa chorosa do seu pinho.
A MISSA DA CAPELA IMPERIAL
A Capela Imperial... Ah! a mais bela coisa do Rio de Janeiro, nos começos do século passado,
foram, sem dúvida alguma, as solenidades da famosa Capela. D. João VI, curiosa mistura de rei
e de frade, mandou decorá-la suntuosamente. Vieram trabalhar nela os nomes mais brilhantes
da época. José de Oliveira pintou as paredes. Manuel da Cunha, o teto. Raimundo da Costa e
Silva, a "Ceia". E José Leandro, o célebre José Leandro, figura culminante do tempo, a grande
tela do Altar-Mor. D. João VI, como todos os braganças, adorava as pompas religiosas. Com
generosidade de nababo, gastando a mancheias, el-Rei mandava buscar na Europa artistas
reputadíssimos, compositores, e músicos, castrati de larga fama, a fim de abrilhantar com eles
as festas de sua Capela. Naquele recinto, com efeito, nos dias de gala, fremiu muita vez o gênio
do Pe. José Maurício. Flamejou o talento magnífico de Neukomm. Ecoou a larga inspiração de
Marcos Portugal. Ali, nas grandes cerimônias da religião, retumbou muita vez a voz de Mazziotti
e de Tanners, os dois famosos contraltos italianos. Ali foram admirados e louvados, com grande
entusiasmo para o bairrismo dos brasileiros, o tenor Cândido Inácio, que era a mais doce e a
mais sonora garganta de Minas, assim como o baixo João dos Reis, cuja voz poderosa, da mais
larga ressonância, fazia tremer nos caixilhos as vidraças da Capela.
Havia, portanto, razões de monta, e de sobejo, para que D. Domitila de Castro ansiasse por
assistir à missa de domingo. O que mais a seduzia, porém, não era, seguramente, o ir ver, entre
os entalhes dourados da Capela, os painéis de José Leandro; nem escutar a música do padre
mulato que enchia a Corte com a fama de seu gênio; nem tampouco ouvir a flamância de
Mont'Alverne, o apregoado orador franciscano, cuja glória, que subira tão alto, começava então
a crescer. O que a seduzia, o que a espicaçava mais agudamente, tornando-a tão alvoroçada
por assistir àquela missa era poder - enfim um dia! - contemplar a Corte bem de perto, misturar-
se com orgulho às Damas do Paço, roçar por entre aquelas fidalgas emproadas, e mostrar, do
alto de uma tribuna, acintosamente, as graças e os feitiços de sua mocidade e do seu fascínio.
Ah! Os requintes que pôs a perturbante senhora em se alindar para tão suspirado triunfo! As
águas-de-cheiro! Os pós de França! As luvas de doze botões! O leque de marfim e ouro!
Madame de Saissait, a modista francesa da Rua do Ouvidor, preparou-lhe um vestido
ousadamente bizarro, à Zamperini, moderníssimo, cor de cenoura, de corpete muito teso, com
imensa e donairosa sobre-saia, caindo em ondas largas, bordadas a fio de prata. E que apuro
de detalhes... Desde O penteado alto, com o trepa-moleque de safiras, até o escarpim
pequenino de fivela dourada, tudo nela era encantador. E quando, diante do toucador, depois de
empoada e perfumada, a cintilar de jóias, D. Domitila se remirou no seu espelho de Veneza,
correu-lhe à epiderme um arrepio voluptuoso, seus lábios sorriram o sorriso da vaidade. Estava
magnífica! Olhos úmidos e negros, boca sangrenta, talhe ondeante, todo pluma, aqueles vinte e
quatro anos, quentes e sazonados, irradiavam frescura e trescalavam juventude.
Entretanto, no Paço da Cidade, antes de principiar a missa, ia grulhante vozerio de damas e de
camareiras. O assunto era o tombo de D. Pedro. Não se falava noutra coisa. É que D. Pedro, há
dias já, caíra do cavalo e quebrara uma costela. Por isso, a Viscondessa do Rio Seco, muito
enlaçarotada, muito recamada de diamantes, indagava ansiosamente de D. Francisca de
Castelo Branco, açafata do Imperador:
- O Imperador já se levantou, D. Francisca?
- Levantou-se hoje, Sra. Viscondessa. Mas ainda não pode vir a missa. O tombo foi violento.
Sua Majestade não sai dos aposentos. Ainda está com o aparelho.
E enquanto esfervilhavam comentários ao tombo imperial, tombo esse tão apimentadamente
satirizado na Corte, o Chalaça corria dum lado para outro, muito açodado, a cochichar pelos
cantos, misteriosamente:
- Sabe, Sra. Marquesa, que José Bonifácio está furioso?
E a Sra. Marquesa de Aguiar, com toda a sua chocante, enfunada sobranceria:
- Furioso! E por que, Sr. Francisco Gomes?
E o Chalaça, baixinho, com um murmúrio:
- Eu vou contar a Vossa Excelência, Sra. Marquesa. Mas a Vossa Excelência! Veja lá, Sra.
Marquesa: não me comprometa! É só a Vossa Excelência que eu vou contar o escândalo.
- Escândalo?! Mas que há? perguntou a camareira assustada. Que escândalo é esse, Sr.
Francisco Gomes?
- Calcule, Sra. Marquesa, que o Sr. D. Pedro ordenou ao Sousa Lobato que hoje, na Capela
Imperial, para assistir à missa, conduzisse a uma tribuna.
E cortando a frase com ar desolado:
- Imagine quem, Sra. Marquesa, quem?
- Não atino...
- A Domitila de Castro!
- A Domitila?!
- A Domitila, Sra. Marquesa! A paulistinha. A tal!
A Marquesa abria os olhos. Não queria acreditar. Aquilo era de um tal descaro.
- É espantoso, não é, Sra. Marquesa?
- É de indignar a gente, Sr. Francisco Gomes!
- Mas é a pura verdade, minha senhora! exclamava o Chalaça sucumbido. É a pura verdade!
Em breve, pelo Paço inteiro, correu a notícia do escândalo. o houve dama que não ouvisse
do Chalaça (isto entre nós, muito entre nós, sem que ninguém o saiba!) o caso da Domitila de
Castro. Foi um zunzum. Grandes abespinhamentos. As damas do Paço, feridas no seu orgulho,
iraram-se com a afronta.
Nisto, em meio às zangas das senhoras, o enorme relógio de mogno, que era um velho enfeite
do Paço, bateu sonoramente dez pancadas. Eis que o Sr. Visconde do Rio Seco, Porteiro-Mor,
ergue respeitosamente o reposteiro: surge no salão a Imperatriz D. Leopoldina. Todas as damas
dobrando airosamente o joelho, saúdam Sua Majestade. Simples, amável, com um sorriso para
todas, a Sra. D. Leopoldina, ladeada pela sua Camareira-Mor, D. Maria Flora Ribeiro de
Andrada e Silva, irmã de José Bonifácio, atravessa com lentidão o passadiço e entra
solenemente na Capela Imperial. Num instante, pelas tribunas imperiais, onde as colchas da
Índia, despencando, riam pelo riso quente de suas cores, espalha-se fidalgamente o bando
suntuoso. Por toda a parte, onde o olhar pousasse, era um gosto o contemplar as cores
estonteantes dos vestidos, a garridice das plumas, os gorgorões pesados das matronas, a
riqueza dos grandes leques marchetados. E chispando pelas cabeleiras e incendiando os colos,
e fuzilando nas orelhas, e enroscando-se pelos braços, fulgia sobre aquela florida ninhada de
camareiras e damas, um dardejar de broches, de borboletas cravejadas, de pingentes, de trepa-
moleques, de bichas, de camafeus, de pedraria de toda a cor.
D. Leopoldina, alta, loura, gargantilha de pérolas ao pescoço, assoma à balaustrada de sua
tribuna. Logo, em meio às pompas do recinto, tangem com estrépito os sinos da capela: o Sr.
Bispo-Capelão D. José Caetano, mitrado e solene, debaixo do pálio, com o báculo de ouro na
mão, avança gravemente até o Altar-Mor. Aí, sobre um almofadão de veludo escarlate. Sua
Excelência ajoelha-se por um instante. Todos o acompanham. Faz-se grave silêncio.
Naquele momento de concentrada religiosidade, uma linda morena, elegantíssima, vestida à
Zamperini, atravessa a nave com sobranceria, fronte erguida, derramando em tono de si, ao
ritmo do seu andar, todos os feitiços do seu donaire. Por toda a Capela, onde fulgem galas e
resplendores, perpassa brusco frêmito. E as damas, ao verem surgir a criatura magnífica,
exclamam baixinho, umas às outras, com o vasto leque de plumas a esconder o cochicho:
- É ela!
Radiosa, triunfal, banhada de felicidade, D. Domitila de Castro, seguida de Sousa Lobato, galga
a escada que conduz às tribunas imperiais. Ao aproximar-se de uma delas, onde várias
damas, Sousa Lobato, com discreta reverência, murmura:
- É a Excelentíssima Sra. D. Domitila de Castro. Por mercê de Sua Majestade, o Imperador, a
Sra. D. Domitila vem assistir hoje, desta tribuna, à missa da Capela.
Todos os olhares, ávidos por saborearem a cena, fixam-se sôfregos no balcão em que
aparecera a paulista. Então, diante do olhar bisbilhoteiro de todas aquelas damas, em plena
Corte, em plena Capela Imperial, na grande missa de Suas Majestades, a Sra. D. Ana Francisca
Maciel da Costa, Dama da Imperatriz, Baronesa de Goitacases, fita a recém-vinda com bravia
altivez. Contempla-a desdenhosamente. Mede-a de alto a baixo. E ereta, esmagadora, com
fulminante sobranceria, D. Ana Francisca tem a chocante coragem desta suprema irreverência:
abandona com acinte, teatralmente, a tribuna imperial! Sousa Lobato, lívido, não pode reprimir
um grito de espanto:
- Oh!
Todas as fidalgas ali presentes, arrastadas por aquele rasgo de intrepidez, acompanham a
atitude da velha dama: e a porejarem proa, um muxoxo de desdém no lábio, também
abandonam, com estardalhaço, a tribuna imperial.
Sozinha, focalizada, alvo de todas as curiosidades, ali, no alto da tribuna, D. Domitila traga por
alguns momentos a impiedosa amargura daquela humilhação. Que instante de agonia! Mas foi
um instante só. Logo após, sopitando a cólera surda que a sacode, refreando aquele estuar de
sangue que lhe burburinha nas veias, a paulista readquire súbita serenidade. E mais orgulhosa
do que nunca, a fronte erguida, a favorita de D. Pedro, como se nada houvesse acontecido, tão
sobranceira como aquelas sobranceiras damas, assiste atrevidamente à missa da Capela
Imperial.
Mas que hora de tortura... A música do Pe. Maurício, a voz de Mazziotti, a oratória de
Mont'Alverne, os quadros de José Leandro, nada consegue empolgar o espírito irado da favorita.
Durante toda aquela hora, no seu peito de mulher ofendida, só esfervilham idéias ferozes de
vingança, desejos selvagens de revide.
* * *
Termina a missa. D. Domitila desce as escadas da tribuna. Atravessa a nave. Toma a sege que
a espera à porta. O boleeiro toca a largo trote. E estaca, de repente, à esquina do primeiro
quarteirão.
- Que há! interroga D. Domitila.
O Chalaça, com um salto, embarafusta-se pela sege adentro. Grita para o boleeiro:
- Toque!
E virando-se para D. Domitila, com voz alterada:
- Vi tudo! Já sei de tudo!
- E agora, Sr. Francisco Comes? Que hei de eu fazer?
- Que há de fazer? Pois então Vossa Senhoria não reparou qual foi a dama que a desfeiteou?
- Foi a Baronesa de Goitacases!
- E Vossa Senhoria sabe quem é a Baronesa, não sabe?
- Não. Quem é a Baronesa?
- Ah, como Vossa Senhoria desconhece a Corte! A Baronesa, minha senhora, é a amiga mais
querida dos Andradas. E íntima de José Bonifácio. Afianço a Vossa Senhoria, Sra. D. Domitila,
que foi o Primeiro-Ministro que açulou a Baronesa a fazer o que fez!
- Será possível?
- Afianço! Foi José Bonifácio quem preparou a Vossa Senhoria este pratinho.
D. Domitila desorientou-se. Não sabia o que fazer.
- E então, Sr. Francisco Gomes? Que devo eu fazer?
- Ora essa! Pois então Vossa Senhoria não quem é o seu grande inimigo? Quem é que a
persegue por toda a parte? Quem proibiu a entrada de Vossa Senhoria no Teatro? Quem
manda desfeiteá-la em plena Capela? Pois é unicamente um homem - José Bonifácio! Portanto,
minha senhora, não que refletir: é virar imediatamente a sege. E tocar para São Cristóvão.
Já! E ir contar ao Imperador tudo que sucedeu...
- Vossa Senhoria acha?
- E ir e já. Nada de delongas. e conte tudo! E mais do que isso: exija, Sra. D. Domitila,
exija do Imperador uma reparação completa. Isso que acaba de acontecer a Vossa Senhoria
ultrapassa tudo. Vá, Sra. D. Domitila! Vá! Não perca tempo. Aceite o meu conselho...
O Chalaça salta da sege. D. Domitila ordena ao boleeiro:
- Paço de São Cristóvão!
A sege voa. Quando quebra a primeira esquina, com os cavalos a dispararem debaixo do
chicote desapiedado do cocheiro, o Chalaça sorri.
Que sorriso!
* * *
Minutos depois, no Largo do Rocio, o Chalaça batia palmas em casa do Primeiro-Ministro. O
'Corta-Orelha", ao ruído das palmas, correu a ver quem era:
- Oh, Sr. Francisco Comes!
- Como vai você, "Corta-Orelha"?
- Assim, assim, Sr. Francisco Comes. Sempre pronto para o servir.
- Pois então avise o sr. Ministro que eu preciso dizer-lhe uma palavrinha.
José Bonifácio trabalhava na papelada do Estado. Foi com surpresa que o Ministro soube da
visita do valido. Mandou que entrasse imediatamente. E com certa afabilidade:
- Viva, Sr. Francisco Comes!
- Deus o guarde e salve, sr. Ministro!
- Então que há? Vosmecê por aqui! Alguma coisa urgente?
O Chalaça tomou uns ares sérios. Uma atitude espetaculosa, desolada:
- Ah! Sr. José Bonifácio! Vossa Excelência é a única pessoa que pode intervir, com autoridade,
num caso grave que acaba de suceder. É um caso que compromete grandemente o Trono.
- Mas vosmecê assusta-me, atalhou o Primeiro-Ministro. Que teria acontecido, Sr. Comes, assim
tão grave?
O Chalaça ergueu-se. Bateu a porta. Deu a volta à chave. E baixo, como temendo que as
paredes o ouvissem:
- Vossa Excelência sabe, naturalmente, que a Titília de Castro é hoje a paixão do Imperador.
Isso não é segredo para ninguém. Pois bem: o Sr. D. Pedro - imagine Vossa Excelência! -
teve a imprudência de mandar a amante, hoje, assistir à missa da Capela Imperial.
- Que me diz, Sr. Gomes?
- E ainda, sr. Ministro, o que é mais sério: teve a coragem de mandá-la subir, com muitos
rapapés, como se a lambisgóia fosse grande senhora, às tribunas imperiais, em meio a todas as
Damas do Paço!
- Será possível? exclamou José Bonifácio de sobrolho franzido.
- E nas tribunas imperiais, bem em frente à Imperatriz, teve o arrojo de exibir a amante aos
olhos de todo o mundo!
- !!
- Eu venho da missa. Vi toda a cena. As damas estão furiosas. uma revolta geral. Ora, Sr.
Ministro, é inútil estarmos a comentar a gravidade do caso. No entanto, como Vossa Excelência
é tão acatado pelo Imperador, pensei em vir à sua casa contar o incidente.
- Fez muito bem, exclamou o Ministro. É um caso que demanda providências. Eu vou falar ao
Imperador. E vou falar hoje mesmo.
- Tem razão, sr. Ministro! Falar hoje! Falar já! É preciso malhar o ferro enquanto quente.
José Bonifácio bateu palmas. O "Corta-Orelha" surgiu:
- Vossa Excelência chamou?
- Mande atrelar a sege!
O mulato desapareceu. E o Chalaça, radioso, com um brilho vivíssimo nos olhos:
- Eu também vou à Quinta, sr. Ministro. E pediria a Vossa Excelência, se não fosse incômodo,
um lugarzinho no seu carro.
- Pois não, Sr. Gomes!
Logo depois, aboletados ambos na sege, o Primeiro-Ministro e o Secretário Privado, tocando a
galope, disparavam pelo caminho de São Cristóvão
A PRIMEIRA DAMA
D. Domitila de Castro, trêmula e chamejante, galgou sufocada as escadarias de São Cristóvão.
João Carlota, o criado de serviço, mal a viu surgir, correu apressadamente a avisar Sua
Majestade. (16)
D. Pedro, desde o tombo do cavalo, ainda não abandonara os aposentos. E a favorita, naquele
domingo alegre, de sol forte, tão sonoro de pássaros, foi encontrá-lo na antecâmara, afundado
na sua fofa "preguiçosa", ainda encastoado de amarras e de ligaduras. Sua Majestade lia grossa
papelada. Era o processo das devassas de São Paulo.
Foi com viva alegria, alegria de convalescente, que D. Pedro ouviu o João Carlota, na porta da
antecâmara, anunciar alto com a sua voz rouquenha de beirão:
- A Sra. D. Domitila de Castro!
D. Domitila entrou. João de Castro deixou tombar o veludo do reposteiro. D. Pedro, com largo
júbilo:
- Oh, minha Titília!
D. Domitila aproximou-se da "preguiçosa". Beijou as mãos do Imperador. Mas, ao beijá-las, tinha
o lábio tão seco, tão queimante e, ao mesmo tempo, a fisionomia tão descomposta, que D.
Pedro não pôde sem exclamar:
- Mas que é isso, minha Titília? Vosmecê está doente?
Fitou-a com sofreguidão. E vendo-a revolucionada e trêmula:
- Mas que há, minha Titília?
- Que há? respondeu, vibrando, a indignada senhora. Saiba Vossa Majestade o que acaba de
suceder-me na missa.
- Na missa?
D. Domitila, a voz cortante, exclamou com um gesto de cólera:
- Fui desacatada, Majestade! E desacatada em plena Capela Imperial!
E D. Pedro, com dois olhos ásperos.
- Mas por quem?
- Pela Baronesa de Goitacases.
- Pela Goitacases?!
- Exatamente. Ao ver-me entrar, recebeu-me a emproada dama com grande empáfia: e em
plena Capela, à vista de todo o mundo, abandonou com insolência a tribuna imperial. Teve
vergonha de assistir à missa ao meu lado! As damas, vendo aquilo, seguiram-lhe o exemplo. E
eu, Sr. D. Pedro, eu fiquei só, na tribuna. Sozinha, diante do olhar de toda a Corte, pisada e
humilhada. Fiquei só, durante a missa inteira, a sentir que as fidalgas de Vossa Majestade,
afastando-se orgulhosamente de mim, apontavam-me com desdém:
- A moça do Imperador!
D. Pedro fremia. E num daqueles assomos, numa daquelas rajadas que sacudiam com ímpeto o
cordame vibrátil dos seus nervos, segurou as mãos da enfurecida senhora e exclamou com
fúria:
- Minha querida Titília, eu juro, e juro-o pela minha honra, que vingarei a vosmecê! Deixe estar!
D. Domitila, lendo nos olhos de D. Pedro a cólera sincera que Os incendiava, pôs-se a beijar-lhe
sofregamente as mãos. Súbito, como se os seus nervos houvessem afrouxado, a linda senhora
desandou a chorar e a soluçar.
- Ah, eu sabia que Vossa Majestade não me havia de abandonar! Com as lágrimas a despencar,
tanto mais bela quanto mais chorosa, foi dizendo atabalhoadamente:
- Tudo isto é obra do velho Andrada. Foi ele quem preparou tudo. José Bonifácio resolveu
matar-me de vergonha... O Primeiro-Ministro quer mostrar com isso, aos olhos do mundo, que
Sua Excelência é o todo-poderoso. Por todo o Rio se cochicha, com risinhos, que Vossa
Majestade obedece ao Primeiro-Ministro. Que Vossa Majestade executa e o Primeiro-Ministro
reina. E é contra isto, Majestade, que eu clamo! E contra isto que...
D. Pedro ouvia os desabafos da favorita. O seu olhar fuzilava. E havia por todo ele tal expressão
de despeito, que D. Domitila sentiu bem que havia tocado, com um ferro em brasa, no ponto
dolorido de Sua Majestade.
Nisto, quebrando a cena, como ignorando a presença da favorita, surgiu bruscamente na
antecâmara o vulto esguio do Chalaça.
- Perdão! disse com ar de embaraço. Perdão!
Ia retirar-se. Mas D. Pedro conteve-o com um gesto:
- Que há, Chalaça?
- O Primeiro-Ministro está lá fora, a espera.
D. Pedro sentiu calafrios. Forte assomo de cólera estrungiu-lhe na alma. Um desejo louco de
esmagar o Ministro sacudiu-lhe os nervos.
- Titília, exclamou, apontando para o fundo do aposento: ali, atrás daquele reposteiro, uma
porta que dá para meu quarto (17). Esconda-se lá! Depressa!
E para o Chalaça:
- Faça entrar o Primeiro-Ministro!
D. Pedro, com grande calma aparente, tomou da papelada das devassas. Começou a folhear
tranqüilamente o calhamaço. José Bonifácio, com o seu aspecto venerando, sempre sisudo e
grave, penetrou no aposento em que estava Sua Majestade. D. Pedro apontou-lhe uma cadeira:
- Sente-se, sr. Ministro!
A cena, entre ambos, naquele ambiente carregado de eletricidade, foi rápida e fulminante. José
Bonifácio começou:
- Os bons amigos, Majestade, são aqueles que dizem a verdade. E eu, que me honro de ser
devotado amigo do Imperador, careço de dizer-lhe uma verdade que, receio, talvez vá magoá-lo.
- Não importa, Sr. José Bonifácio. Pode falar sem rebuço. A respeito de que vem Vossa
Excelência conversar comigo?
- D. Domitila de Castro.
- Domitila de Castro? Ah! E que é que acontece, sr. Ministro?
- Por toda a Corte, Majestade, não se fala de outra coisa a não ser desse caso. muito
cochicho. muito comentário picante em torno dessa história. Demais - Vossa Majestade me
perdoe - mas de concordar que tem sido afoito: o despejo do Teatrinho Constitucional, por
exemplo, foi imprudente.
D. Pedro escutou aquilo sem irritação visível. José Bonifácio continuou:
- Além disso, Majestade, o caso que acaba de suceder hoje, na Capela Imperial, é gravíssimo.
O velho Andrada fitou o Imperador bem nos olhos. E com destemor, severo e áspero, disse as
coisas claras:
- As Damas da Imperatriz têm razão em se mostrar agastadas. Nada mais justo do que a atitude
que tiveram. Afinal de contas, Majestade, colocar a Domitila nas tribunas imperiais, é querer o
Imperador nivelá-las a essa mundana. E afrontá-las com a companhia duma decaída.
O Imperador mordeu o bio. bita palidez espalhou-se-lhe no rosto. Os seus olhos
chamejaram.
- E que pensa, sr. Ministro, que eu deva fazer?
- Vossa Majestade, que tem a obrigação do exemplo, deve, como Esposo, como Pai, como
Imperador, terminar de vez com essa ligação. E preciso, Majestade, para o respeito e para o
decoro do Trono, que Vossa Majestade obrigue essa mulher a sair imediatamente da Corte.
- Sr. José Bonifácio! atalhou D. Pedro, com voz vibrante, que cortava: o respeito e o decoro do
Trono são coisas que competem ao Imperador, e não aos Ministros, de vigiar. E essa mulher, de
que Vossa Excelência fala com tanto desdém, veio à Corte por minha ordem. Permanece na
Corte por minha ordem. E é por minha ordem - fique sabendo! - que ela não sairá da Corte!
- É pena que Vossa Majestade não queira ouvir a palavra dum amigo. E maior pena ainda, muito
maior, é ver que Vossa Majestade, na cegueira da paixão, deixa-se arrastar pelos caprichos de
uma mulherinha.
Saiba Vossa Excelência, sr. Ministro, que a Sra. D. Domitila de Castro não sairá do Rio: é mais
fácil - ouça-o bem! - é mais fácil os Ministros deixarem as pastas do que a mulherinha deixar a
Corte.
José Bonifácio ergueu-se de pronto. A frase não lhe caíra no chão. Sentiu bem o veneno que ela
continha. De pé, a cabeça erguida, com os seus nobres cabelos brancos aureolando-lhe a
fronte, o velho paulista exclamou com dignidade:
- A Domitila continuará na Corte, Sr. D. Pedro. Mas o Primeiro-Ministro demite-se. Vossa
Majestade, com seus vinte e quatro anos, prefere os amavios enganadores dessa mundana aos
conselhos sensatos dos homens de bem. Mas eu, José Bonifácio de Andrada e Silva, não posso
assistir, como Ministro, a esse desmoronar...
D. Pedro, rompendo as ligaduras que o atavam, levantou-se a chamejar. Punhos cerrados,
sobrecenho franzido, tudo nele era fúria. E exclamou num berro:
- O senhor está demitido! O senhor não é mais Ministro! O senhor não é mais nada! Ouviu?
Mais nada!
O velho sorriu. Sorriu com alta superioridade esmagadora. E retorquiu sem pestanejar:
- Alargue um pouco mais o decreto de Vossa Majestade. Eu e Martim Francisco, desde este
instante, deixamos de ser Ministros. E mais ainda: D. Maria Flora deixa também de ser a
Primeira Dama da Imperatriz.
E ereto, a fronte escampada, com aquele orgulho tranqüilo de homem honrado, José Bonifácio
disse apenas:
- Os Andradas, Majestade, são paulistas de velha raça: eles não se apartam da estrada da
honra!
Sereno, imperturbável, o velho José Bonifácio, a passos lentos, saiu majestosamente do
aposento do Imperador. (18)
Quando a porta se fechou sobre o Ministro caído o reposteiro do fundo se franziu. E de trás dele,
radiosa e palpitante, D. Domitila de Castro precipitou-se nos braços do Imperador. E com um
beijo longo, um beijo fundamente agradecido:
- Como eu te amo, D. Pedro.
O Imperador, naquela hora, sentiu a delícia suprema de poder, com um gesto, fulminar um
homem. De poder gozar, com a mulher amada, a volúpia duma grande vingança. Desabafado,
D. Pedro bateu palmas. O Chalaça apareceu:
- Chalaça! Os Andradas estão demitidos. Quero que amanhã, sem falta, saia o decreto da
demissão. Providencie ainda hoje os papéis.
O Chalaça abriu a boca. Largo sorriso esparramou-se-lhe no lábio. Que triunfo!
- E também comunicar, de minha parte à Sua Majestade, a Imperatriz, que a Sra. D. Maria
Flora Ribeiro de Andrada, irmã de José Bonifácio, deixou hoje o cargo de Primeira Dama do
Paço.
E D. Pedro, fitando a favorita, continuou:
- Comunique mais à Imperatriz que eu nomeio para Primeira Dama, em substituição à D. Maria
Flora, a Sra. D. Domitila de Castro...
O Chalaça empalideceu. Escancarou os olhos. E sacudido de espanto, pôde apenas exclamar:
- Primeira Dama? A Sra. D. Domitila?
Domitila, na glória daquela surpresa, sentiu, por um segundo, que o coração se lhe estourava no
peito. Numa tonteira, bêbada de felicidade, a primeira Dama atirou-se com tal volúpia ao
pescoço do "bem-amado, beijando-o tanto, tanto, que o Chalaça, ante aquela incontida explosão
de ardência e de carinho, achou de boa prudência afastar-se da cena.
E retirou-se discretamente.
UMA SENTENÇA INTERESSANTE
O Barão de Mareschal, ministro diplomático da Áustria, levantou-se pelas onze, como de
costume. (19) Tomou a sua canequinha de café, acendeu o charuto, abriu o "Diário
Fluminense". Mas ao correr os olhos pelo jornal do Governo, sempre tão enfadonho e
sensaborão, o austríaco, naquela manhã, não pôde reprimir uma exclamação:
- Donnerwetter!
Mareschal acabava de ler esta coisa inconcebível: a nomeação da Sra. D. Domitila de Castro e
Meio, "senhora paulista das mais altas e das mais apreciáveis virtudes", para o cargo de
Primeira Dama da Imperatriz.
Aquele ministro rabugento, que o Imperador da Áustria mandara ao Brasil para servir na Corte
da filha, o amigo íntimo e fiel de D. Leopoldina, sentiu dentro de si áspera rajada de indignação.
Amarrotou o jornal e arremessou-o longe. Azedo, o ministro gritou para o criado:
- Faça atrelar a sege!
Enfiou às pressas o seu fato de pano inglês, retorceu ao espelho, com cosmético cheiroso, as
pontas retorcidas do seu bigode grisalho e, já na rua, frisado e elegante, ordenou ao boleeiro:
- São Cristóvão.
Afundado na sege, uma ruga na testa, o velho diplomata partiu para o Paço. se foi a
raciocinar sobre a gravidade daquele caso. A favorita, não havia dúvida, culminara nas boas
graças. Aquela nomeação era afrontosa. E, sobretudo, achincalhante ao decoro da Imperatriz.
Chamar a amante, a amante pública, para Primeira Dama da mulher! Oh, era de revoltar... E
Mareschal, imaginando a cruciante mágoa da Ama e amiga, ia conjeturando como bom
diplomata, a .maneira mais jeitosa e mais polida com que pudesse consolá-la daquele ultraje.
Ao chegar à Quinta, Mareschal fez-se logo anunciar. A espera foi rápida. D. Francisca de
Castelo Branco, Viscondessa de Itaguaí, ergueu o reposteiro de veludo. D. Leopoldina
apareceu. Vinha toda de claro, à caçadora, botas altas, chapéu largo, chicotinho de prata
dependurado no pulso. Mareschal beijou-lhe respeitosamente a mão. E Sua Majestade, com um
sorriso jovial:
- Viva, Barão! Bons olhos o vejam! Então, que é isso? Não há quem mais o aviste pela
Quinta!
E sem esperar resposta:
- E é hoje que eu vou à caça, hoje, exatamente, que o meu caro Mareschal aparece!
- Vossa Majestade vai caçar?
- Vou. Vou até o sítio do Vahia. Levo comigo dois batedores e o Kloss. O Kloss é um excelente
picador! D. Pedro está contentíssimo com ele.
E, com irradiante bom humor, mudou bruscamente de assunto:
- Já leu o "Tamoio" de hoje?
- Ainda não, Majestade.
- Pois leia. Está feroz! Eu me rio bastante daquelas coisas. Mas D. Pedro não suporta!
- De quem é o artigo?
- De um dos Andradas, certamente. Aqueles homens, depois que saíram do Governo, fazem
oposição a tudo. Não perdoam coisa alguma. E D. Pedro anda furioso com isso.
- A oposição deles é um tanto justificável, comentou Mareschal. Que queda tremenda! José
Bonifácio, dum dia para outro, sai do ministério. Martim Francisco também. Até a irmã, pelo que
eu acabo de ler, deixou de ser Primeira Dama!
- É verdade. Deixaram todos o poder.
- A propósito, continuou Mareschal, curioso e discreto: li a nomeação da Sra. Domitila de Castro
para substituir D. Maria Flora.
- É verdade. Foi hoje nomeada minha Primeira Dama.
- Parece que se espanta, Barão?
- Espantar? Espantar, propriamente, não me espanto. Mas, com franqueza, não compreendo
muito a razão dessa escolha.
- Pois é fácil compreender.
Com tocante ingenuidade, o coração nos lábios, D. Leopoldina narrou isto ao amigo e
confidente:
- Esta senhora pertence a distinta família de São Paulo. Gente muito conceituada na Província.
O irmão mais moço desta dona, Francisco de Castro Canto e Melo, foi até ajudante-de-ordens
do Imperador. D. Pedro, na jornada de 7 de Setembro, recebeu em São Paulo grande agasalho
da parte dos Canto e Melo. Acontece que essa dona, chegando agora na Corte, mostrou muito
desejo de ouvir o Mont'Alverne. D. Pedro, sabendo disso, consentiu que ela viesse ouvir o
franciscano na Capela Imperial. As damas do Paço, porém, ao verem a desconhecida na
tribuna, mostraram-se muito abespinhadas e tiveram a coragem de desacatá-la em plena
Capela! Imagine um pouco... D. Pedro, ao saber do caso, encolerizou-se muitíssimo. E quis,
como era natural, desafrontar essa senhora de tão grosseiro vexame. Sua Majestade, por isso,
rogou-me para que a aceitasse como minha Primeira Dama. Eu acedi de boa vontade. É uma
pessoa agradável, de sangue limpo, e, com franqueza, uma provincianazinha bonita. O que é
boa qualidade para Primeira Dama... Não acha, Barão? (20)
Mareschal ouviu aquilo estupefato. E D. Leopoldina, sem esperar resposta, estendeu a mão ao
velho amigo.
- Adeus, meu caro Barão. Nós aqui a tagarelar, e o Kloss à minha espera! Nestes tempos de
complicações no Governo, é difícil haver um dia de folga. E eu não quero esperdiçar o de hoje.
Vou à minha caça. Adeus, Barão!
Mareschal, curvando-se, beijou a mão que a Imperatriz lhe estendia. E ela, ao sair, com um
sorriso:
- E notícias da Áustria?
- Tudo em paz, Majestade...
Mareschal desnorteado, foi descendo vagarosamente a escadaria de São Cristóvão. E já estava
a subir na sege, quando uma voz bradou com insistência:
- Sr. Barão! Sr. Barão!
Era o Chalaça.
- Perdoe, Barão! Mas eu preciso ir à cidade e não tenho sege. Vossa Excelência permite que eu
vá em sua companhia?
- Oh, Sr. Gomes, com prazer...
Com um gesto polido, apontando a portinhola da carruagem, ofereceu amavelmente:
- Faça o favor! Entre.
Aboletaram-se. E foram ambos, o diplomata e o favorito, a palrar pelo caminho. A conversa
caiu logo em política. O Chalaça comentava:
- Acho muito grave a situação, Barão! Os Andradas estão intratáveis. Não oposicionistas
mais intransigentes.
- Vossa Senhoria diz isso, Sr. Gomes, por causa dos ataques que fizeram ao título de Marquês,
que D. Pedro conferiu a Lorde Cochrane?
- Pois veja lá, Barão, esse caso do Cochrane, por exemplo. Haverá maior injustiça? José
Bonifácio, o próprio José Bonifácio, quando Ministro, mandou buscar o Lorde no Chile para vir
salvar o País, como ele então dizia. Vem o homem, derrota os portugueses, Pacifica o Norte,
consolida a Independência. Salva, enfim, o Brasil. Pois bem: D. Pedro, para premiar tão bons
serviços, confere a Cochrane o título de Marquês do Maranhão. Haverá nada mais justo? Pois
foi suficiente para os Andradas fazerem na Assembléia aquele berreiro do inferno.
- Foram exagerados, o dúvida. Mas eu penso que a oposição deles de passar. É uma
nuvem apenas.
- Não é tão fácil assim, Barão, atalhou o Chalaça. Esses homens são perigosos. Veja um pouco
os artigos do "Tamoio". Vossa Excelência não o "Tamoio"? Pois é ler! Não nada mais
violento. D. Pedro, toda a manhã, ao dar com aquelas coisas, tem acessos de cólera...
A sege disparava. O Chalaça, discutindo política, trazia à baila os últimos sucessos. Era o caso
do Rio Maior. O caso do Marechal Pinto França. O discurso irritante de Muniz Tavares. Mil
coisas!
E se foram até a cidade. Ao penetrarem, porém, no Largo da Carioca, a sege que os levava
foi obrigada a parar em frente à botica de mestre David Pamplona. Aí, com surpresa de ambos,
aglomerava-se negra massa de populares. E havia gritos estranhos.
- Fora os "pés-de-chumbo"!
- Fora a canalha!
- Morra Portugal!
De instante a instante engrossava aquela onda. O boleeiro, vendo que não podia passar, virou a
sege e embicou pela Rua das Violas.
- Que será isto, Sr. Gomes?
- Não posso compreender, Barão. Mas estou ansioso por saber a razão deste motim. E vou
saltar aqui, no Botequim da Corneta, para saber notícias frescas.
O Chalaça saltou no botequim. Ao entrar, o Secretário Privado topou logo com o "Corta-Orelha".
O mulato, num grupo, discutia com imponência. Tinha ares de grande eminência política. O
favorito fez-lhe um aceno. O capoeira acorreu imediatamente. Os dois abancaram-se,
camaradas, em torno duma mesa.
- Que diabo de motim é esse em frente à botica do mestre Pamplona?
- Vossa Senhoria ainda não sabe?
- Não sei.
- Pois é história crêspa.
E arrancando do bolso um amarfanhado exemplar do "Sentinela", jornalzinho de oposição,
violentíssimo, passou-o às mãos do Chalaça.
- Leia isto primeiro.
O Chalaça começou a ler. Havia no jornal uma carta atrevida, transbordante de insultos, em que
se diziam, numa linguagem nua, os mais copiosos desaforos aos oficiais portugueses
incorporados ao exército do Brasil. O Chalaça leu-a toda. E ao fim da leitura:
- Então?
- Então, explicou o "Corta-Orelha", dois oficiais portugueses (21), pensando que o David
Pamplona fosse o homem que escreveu a carta, entraram hoje na botica do diabo. Esbordoaram
o bicho sem dó. Deixaram o tar amarrotado de pancada, quase morto. O povo, quando soube do
caso, arrevoltô-se. Tudo quanto é brasileiro pulô a favor do Pamplona. E por isso o motim
fervendo. Aquilo é só: "abaixo os pés-de-chumbo!", "morra Portugal!" foi uma comissão a
casa de José Bonifácio. E José Bonifácio prometeu que hoje, na Assembléia, vai tratá do caso.
Que é que vassuncé diz, seu Chico Gomes?
O Chalaça ouviu o capoeira. E arguto, sabendo bem da velha e incurável animosidade entre
brasileiros e portugueses, compreendeu, num relance, o que de grave havia no incidente. Mas
sem o menor indício de inquietação, bateu amistosamente no ombro do mulato:
- Ora, seu "Corta-Orelha"! Isto é motim sem importância. Amanhã - você verá - todas as coisas
estão concertadas. Um caso à-toa!
Levantou-se. Mas o "Corta-Orelha" ofereceu-se logo, serviçal e pressuroso.
- Qué que eu vá buscá uma sege prá vassuncê?
- Não é preciso. Eu vou aqui, à Rua do Piolho, falar ao Cônego Caetano...
- Ah! cortou o capoeira, piscando os olhos maliciosamente; vassuncê vai sabê notícia do
divórcio?
O Chalaça ficou passado. Mas o "Corta-Orelha" continuou, com uma risadinha sarcástica:
- Não se assuste, seu Chico Gomes! Toda a gente sabe. se fala, na Corte, do divórcio da
paulista. O negócio foi arranjado muito em segredo. Muito escondido. Mas ché! Segredo nisso?
Impossível!
O Chalaça cortou cerce a conversa:
- Deixe de falatório, homem! Você lá entende dessas coisas?
E se foi exótico, muito alto e muito esguio, a caminho da Rua do Piolho, onde morava o
Reverendíssimo Dr. José Caetano Ferreira de Aguiar, vigário do Rio de Janeiro.
* * *
O divórcio de D. Domitila! Um divórcio no Primeiro Império! Pode-se imaginar escândalo
maior? Todo o velho Rio, aquele Rio de chafarizes e de rótulas, arrepiou-se de horror.
O processo correu vertiginosamente. Fez-se tudo às lufadas. Tudo debaixo do maior sigilo.
Agora, depois de concluídas as provas, subira a papelada para a sentença. E o Cônego
Caetano era o juiz.
O Chalaça entrou ansioso. O padre recebeu-o com efusão. Abriu a boceta de rapé, sorveu uma
pitada e foi logo entrando em assunto:
- Tudo pronto, Sr. Gomes! Os autos vieram conclusos ontem. E ontem mesmo lavrei a sentença.
Vossa Senhoria disse-me que Sua Majestade se interessava muito em ver este caso liquidado o
quanto antes...
- De fato, Cônego, Sua Majestade interessa-se vivamente!
- Pois eu, de minha parte, prosseguiu o padre, melífluo, fiz tudo o que pude para contentar o
Imperador. E quer que lhe diga a verdade? Não me foi nada difícil. A prova dos autos é
abundante. Está tudo muito bem documentado. Vossa Senhoria quer ler a sentença?
Levantou-se, abriu a gaveta dum velho armário, retirou do fundo um calhamaço de papéis.
Folheou com pausa. Afinal, achando o que queria, passou às os do Chalaça a peça
rebuscada. Francisco Gomes leu, jubiloso, a sentença. Era simples e dizia:
"Vistos estes autos etc. Requer a Autora, D. Domitila de Castro Canto e Meio, ser divorciada
perpetuamente do seu marido, o Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça, principalmente
porque este tem tal ódio a ela, Autora, que a quis matar, dando-lhe duas facadas, sendo uma
delas mortal; e mais, porque o Réu tem cometido adultérios. Prova a Autora a sua intenção, por
maneira que se manifesta o seu direito para o divórcio, que pede, porque prova, pelas
testemunhas inqueridas a fl. 16, que tendo ela boa conduta e, amando seu marido, este atentara
contra a vida dela, Autora, dando-lhe duas facadas, do que resultou a Autora ficar em perigo de
vida. Prova mais a Autora, pelas certidões de fís. 12 a fls. 20, que o Réu lhe tem cometido
adultérios, e que, do seu punível coito, o Réu teve duas filhas que reconheceu como suas. Por
tudo, e o mais dos autos, julgo provada a ação, e hei a mesma Autora divorciada perpetuamente
do Réu, seu marido, com divisão de bens competentemente. Pague o Réu as custas. J. Caetano
Ferreira de Aguiar."
O Chalaça, com fina adulação, felicitou muitíssimo o juiz:
- Vossa Reverendíssima apanhou atiladamente os pontos. Muito atiladamente! O Imperador vai
ficar agradecido a Vossa Reverendíssima.
E o padre, dócil e modesto:
- Pois eu, no que puder, aqui estou para servir a Sua Majestade!
- Vossa Reverendíssima não ficará esquecido. Afianço-o a Vossa Reverendíssima!
E risonho, o coração intumescido de gosto, o Chalaça despediu-se com muitos agradecimentos.
Ah, a prova dos autos! Por elas, D. Domitila de Castro tornara-se a vítima. Sim, a vítima! Era ela
que, ferida na sua dignidade, se divorciava do marido, porque o marido era um adúltero. Não
podia haver nada mais risível.
O CONSELHO DE MINISTROS
No Terreiro do Paço, desgraciosa e pesadona, erguia-se a vasta mole do Palácio Imperial. Era
aí, como dizia o povo, o Paço da Cidade. Típico, verdadeiramente típico, o cenário que o
enquadrava. Em frente, animando o panorama, o mar crespo, engaivotado, dum azul vaporoso.
Dum lado, como enfeite de arte, o clássico chafariz colonial. Nos fundos, ligado por singelo
passadiço, o convento dos carmelitas, transformado em Capela Imperial. De outro lado, rígido e
massudo, o casarão da Câmara e Cadeia. Foi aí, no recinto da Câmara, nesse antigo aljube da
Corte, que se instalou, em 1823, a Assembléia Constituinte.
Naquele dia, ao voltar da casa do padre, o Chalaça deu com desusada massa de povo,
barulhenta e arruaceira, a bramir nas imediações da Constituinte. A agitação era desordenada.
Tumulto bravio e ameaçador. Só se ouviam exclamações coléricas:
- Morra o "pé-de-chumbo"!
- Abaixo a canalha portuguesa!
Eis que chega um popular. Vem flamante:
- Antônio Carlos está soberbo! Exige a prisão imediata dos agressores...
- Que está dizendo?
- Imediatamente! E disse mais, com toda a razão, que o insulto não foi feito ao Pamplona: foi
a todos os brasileiros!
Que delírio! Daquela horda de amotinados, tocados com ferro em brasa no seu bairrismo, partiu
vasta exclamação de júbilo:
- Viva Antônio Carlos!
- Viva!
O Chalaça viu aquela efervescência. Compreendeu logo as vantagens que iriam tirar os
Andradas dessa rusga entre brasileiros e portugueses. Nada mais fácil do que, naquele
momento de tempestuosa paixão, fazer vibrar o nacionalismo dos brasileiros. O perigo era
iminente.
O valido, saltando em São Cristóvão, galgou a quatro e quatro as escadarias do Paço. Mas não
conseguiu falar com o Imperador. Sua Majestade, fechado no Salão de Despachos,
conferenciava reservadamente com o Ministro da Guerra.
A notícia do motim havia estourado na Quinta. Por isso, formigando por saguões e
corredores, ia grande alvoroço de gente, entra e sai cortesãos, vaivém de oficiais. Estavam
todos sôfregos por notícias.
O Chalaça pôs-se a passear pela antecâmara. Eis que o João Carlota entra afobado:
- A Sra. D. Domitila de Castro!
- Faça entrar...
A encantadora paulista, numa elegância de sedas e de rendas, derramando em torno sadio
aroma de água-de-cheiro, penetrou, como radiosa primavera, na antecâmara onde estava o
Chalaça. Trazia ao lado, como escudeiro, o Moraizinho. O lindo moço, muito esbelto e muito
louro, faiscava na sua farda de Tenente. O Secretário recebeu-os com júbilo:
- Deus a salve e guarde, Sra. D. Domitila! E você, Moraizinho? Como vai isso? Bons olhos o
vejam!
Ambos apertaram amistosamente a mão do valido.
- Viva Chalaça!
D. Domitila, com o seu sorriso capitoso, com aquela sua graça envolvente, foi indagando muito
interessada:
- Então, Chalaça, que há?
D. Domitila, desde que se alçara às culminâncias de Primeira Dama, não mais tratava o
Secretário Privado com aquela deferência de antigamente: Sr. Francisco Gomes! Agora era
simplesmente Chalaça. Chalaça, você.
- Então, Chalaça, que há? Que história de motim é essa?
- Pois Vossa Senhoria ainda não sabe? É um motim grave..
- Conte-me as notícias! Eu soube apenas do espancamento do Pamplona. E agora, vindo pelo
Terreiro do Paço, vi grande algazarra na Praça. E "vivas". E "morras". O caso, ao que parece,
está tomando vulto.
- É um caso muito sério, Sra. D. Domitila! Imagine que os Andradas levaram o "caso Pamplona"
ao conhecimento da Assembléia. E agora, diante do barulho que estão fazendo, não se trata
mais dumas simples bordoadas num boticário: trata-se - imagine um pouco! - dum ultraje feito à
Nação. Foram os portugueses que espancaram os brasileiros. E estão eles, na tribuna, a
incendiar com o seu palavrório o bairrismo dos nacionais.
- E D. Pedro? indagou D. Domitila. Que diz D. Pedro de tudo isso?
O Chalaça não pôde responder. O sr. Ministro da Guerra, com ar preocupado, atravessou a
antecâmara. O Tenente Morais perfilou-se.
O Ministro, ao avistar D. Domitila, saudou-a com afável sorriso. A paulista dirigiu-lhe uma
palavra:
- Sua Majestade ficou só, sr. Ministro?
- Ficou, Excelentíssima.
Numa reverência, muito gentil, o Ministro desapareceu sob o reposteiro que o Chalaça,
pressuroso, suspendia.
D. Domitila, sempre cativadora, sempre com o seu fino sorriso a esvoaçar-lhe nos lábios, virou-
se para o Tenente:
- Adeus, Moraizinho! Vou falar ao Imperador. Não se esqueça de levar a Mataporcos todas as
notícias do motim.
E estendeu-lhe a mão. O Moraizinho seguiu, com os olhos muito nguidos e muito compridos,
aquela mulher embriagante que sumia sob o reposteiro.
Instantes após, seguida do Chalaça, D. Domitila beijava, com leveza e graça, a mão do
Imperador. E com um interesse ansioso:
- Então? Que há? É um motim muito grave? É?
- - Vosmecê não se assuste, redargüiu D. Pedro. Os Andradas é que estão envenenando o
caso. Aqueles homens são adversários implacáveis.
E ali, em presença de ambos, Sua Majestade, depois de narrar o espancamento do Pamplona,
explicou a situação:
- O caso, como estão vendo, é muito simples. Umas bordoadas, nada mais. Era prender os
agressores, duas semanas de xadrez, e pronto. Estava liquidada a história. Mas surgiu,
infelizmente, uma complicação séria. É o que vai embaraçar a solução do acidente. Imagine que
os militares, à vista do motim, tomaram decididamente o partido dos seus camaradas. E agora,
coligados e solidários, fizeram sentir ao Ministro que o admitem punição alguma aos
espancadores.
- Nesse caso, aparteou a paulista, a situação tornou-se melindrosa...
- Melindrosíssima! resmungou o Imperador.
E com um sorriso mau, sorriso ressumante de fel:
- O que é preciso é dar uma lição aos Andradas. E fazer calar a boca desses desordeiros. Aquilo
é uma corja. Não há quem os ature! E sopitoso, com ar sombrio:
- Hoje, à noite, conselho. Mandei reunir o Ministério. Vou dizer aos Ministros, bem
claramente, tudo que penso e tudo que quero.
D. Domitila atalhou sorrindo, com um jeito brejeiro e trêfego:
- Se houver necessidade dum Ministro, Vossa Majestade não se esqueça do Desembargador!
O Chalaça soltou uma gargalhada. Gargalhada sonora, saída da alma.
- Quem? O Desembargador? O Ferreira França? Meu Deus!
O próprio D. Pedro achou graça no pedido. E rindo-se:
- Que idéia! Mas vosmecê não sabe, então, que o Ferreira França é o juiz mais sem autoridade
da Corte? (22)
D. Domitila não se perturbou. Antes, com uma vozita cativante:
- Que gente sem coração! Não digam isso do meu pobre amigo. Coitado do Desembargador!
Um homem tão agradável! Ainda ontem, em minha casa, ele dizia a meu pai: a minha maior
ambição, sr. Coronel, é ter uma ocasião, qualquer que seja, para mostrar ao Imperador o quanto
eu sou dedicado a Sua Majestade!
- Pois a ocasião de chegar, disse D. Pedro, continuando a rir. de chegar! Quem espera
sempre alcança.
Nisto, afogueado e anelante, o João Pinto rompe pelo salão adentro. E estacando diante do
grupo:
- Grandes novidades! À sessão da Constituinte foi tumultuosíssima. Os populares invadiram o
recinto. E que berreiro! Que gritaria do inferno! Todo o mundo clamava por justiça.
- Quê?
- O pior é que a maioria dos deputados está com os Andradas. Tudo contra o Governo! Os
paulistas arrastaram a Constituinte inteira. E os deputados, acuados pelo povo, exigem a
punição dos espancadores...
- Meu Deus! bradou D. Domitila, assustada. E agora? Como vai ser?
- Agora, continuou João Pinto, para liquidar a questão, vêm marchando para São Cristóvão
vários regimentos de infantaria. Parece que esses regimentos, diante da atitude dos deputados,
querem fazer calar os papagaios da Constituinte.
Mal acabara de contar essas retumbantes coisas, que já, ao longe, reboando na distância,
começou a ecoar confuso rumor de cometas e tambores. Pelas janelas do salão, donde se
descortinava o horizonte, todos os do grupo, com o olhar sôfrego, divisaram as fardas
empenachadas dos regimentos que vinham tingindo de vermelho o caminho da Quinta. Todos,
ao contemplarem embaixo aquele ondear de uniformes, aquele marchar estrepitoso de
soldados, compreenderam nitidamente a gravidade do momento. D. Pedro, os dentes rilhantes,
exclamou, sombrio e ameaçador:
- Ah! Estes Andradas! Estes Andradas! É preciso acabar com essa corja...
A situação tomou um aspecto angustioso. D. Domitila sentiu bem o melindroso do instante.
Levantou-se de pronto:
- Vou-me embora. O imperador precisa de todos os seus momentos.
D. Pedro estendeu-lhe a mão. A favorita beijou-a com a mais brejeira gentileza. E saiu. Saiu,
deixando no coração-borboleta do Imperador luminosa impressão de sedas e de jóias.
* * *
Nessa noite, em São Cristóvão, houve conselho. O assunto a deliberar era dos mais graves. A
situação, no momento, das mais críticas. Os ministros, ao penetrar no Salão dos Despachos,
vinham sombrios e taciturnos. Tinham todos, a lhes sulcar a testa, fundo vinco de preocupação.
As oito, precisamente, o Ministério estava completo. O reposteiro verde, que caía sobre a porta
do fundo, franziu-se de súbito: D. Pedro surgiu. Com uma solenidade que lhe era pouco
habitual, assumiu, seco e ríspido, a presidência do Conselho.
- Meus senhores! A Constituinte deixou de ser a Assembléia dos representantes da Nação. E
agora, na mão dos Andradas, um antro de facciosos. Uma casa de arruaceiros. Esses homens,
depois de apeados do poder, pensam em levar o país à desordem e ao terror. Sacrificam
tudo, até o bem da Pátria, pela ambição política. Ora, para os grandes males, grandes remédios.
Assim sendo, eu vejo, para resolver a situação criada pelos deputados, este único alvitre:
dissolver a Constituinte.
Os Ministros arrepiaram-se. Nenhum tugiu. A deliberação era de alta responsabilidade. E todos,
no fundo do peito, sentiram bem o atrevimento e a gravidade da medida. Dissolver a
Assembléia! Sufocar a mais velha aspiração dos brasileiros! Voltar, de novo ao regime absoluto!
Dissolver a Assembléia... Oh, era seríssimo!
Mas Sua Majestade fingiu não compreender o silêncio de morte que caíra entre aqueles
homens. Abriu a sua grande pasta de couro. Tirou de dentro um decreto lavrado. E
apresentando-o ao velho desembargador Tinoco, Ministro da Justiça, ordenou autoritariamente:
- Senhor Desembargador! Queira referendar, como Ministro da Justiça, o decreto da dissolução.
D. Pedro molhou a pena no tinteiro. Depois, com um gesto incisivo, gesto de mando, apresentou
a pena ao Ministro. D. Pedro, aquele moo tão liberal e tão constitucional na aparência, era, no
fundo, tão despótico e tão absoluto como a longa fieira dos seus avós.
Todos os olhares fixaram-se avidamente na pessoa veneranda de Sebastião Luís Tinoco. Uma
angústia, um peso na consciência, uma repugnância, sufocava a todos. O Ministro da Justiça
ouviu a ordem.
E ali, como um autômato, pegando na caneta, curvou-se sobre a mesa para referendar o
decreto.
Súbito, no momento em que ia lançar a primeira letra do seu nome, violento assomo de revolta
sacudiu-o. Arremessou a caneta ao chão. Resoluto e impávido, o velho exclamou com
dignidade:
- Senhor, a pena treme! Não posso assinar este decreto! (23)
Foi um alívio! Um desabafo! Carneiro de Campos, Primeiro-Ministro, recobrou o animo.
Levantando-se, com pausa e acerto, ousou ponderar várias coisas criteriosas. E terminou:
- Dissolver a Assembléia, Majestade, é voltar ao regime absoluto. É retrogradar. Ora, como
Ministro do Império, eu acho essa medida um erro. Sou contra a medida.
João Vieira de Carvalho, Ministro da Guerra, levantou-se também. E singelo, sem oratória:
- Voto contra! O povo pediu a Constituição, foi-lhe prometida essa Constituição. Não se pode,
portanto, faltar à palavra.
D. Pedro tornou-se sombrio. A sua vontade, o desejo que o acutilava, era o de esganar, ali,
aqueles três homens. Impulsivo, com aquele seu despotismo ingênito, sem poder jamais tolerar,
como nunca tolerou, que alguém se antepusesse à sua vontade, bradou, em pleno conselho,
borrascosamente:
- Pois aqueles, dentre os senhores, que não estiverem de acordo com as minhas idéias, têm
um caminho a seguir. Um único e bem claro...
Os três ministros, diante da alusão, não hesitaram: todos os três, movidos pelo mesmo ímpeto,
pediram imediatamente a demissão de suas pastas. Foi-lhes concedida ali mesmo, sem
titubear.
E o Conselho de Ministros, a um gesto de D. Pedro, dissolveu-se, naquela noite, taciturnamente.
O Imperador fremia de cólera. Aquela recusa espetaculosa acirrou-lhe ainda mais o
autoritarismo. Mas não se entibiou um minuto. Naquela mesma noite, em companhia do
Chalaça, recompôs o Ministério:
- Primeiro-Ministro, o Paranaguá.
- Ótimo, bradava o Chalaça. Não pode ser melhor!
- Guerra, o Rio Comprido.
- Muito bem lembrado!
- Fazenda, o Maricá.
De repente, cruzando os braços, sem saber como resolver um grande embaraço:
- E Justiça, Chalaça? E Justiça? Quem me há de referendar o diabo deste decreto?
O Chalaça sorriu. Maldoso, com um clarão pérfido nos olhos:
- Vossa Majestade tem um homem a calhar.
- ?!
- A calhar!
- Não atino...
O Chalaça então, com um gesto de triunfo, lembrou com ênfase:
- E o Ferreira França! É o candidato da Sra. D. Domitila.
- É verdade! Nem me lembrava mais... A Titília teve uma grande idéia! Vamos lá, Chalaça, corra
a casa do homem.
E nessa mesma noite, horas mortas, o Desembargador Clemente Ferreira França referendava,
como Ministro da Justiça, o decreto da dissolução...
A NOITE DA AGONIA
Abriu-se a Assembléia Constituinte. Antônio Carlos foi o primeiro a subir à tribuna. Calmo e
rigoroso, fez o histórico dos acontecimentos. E propôs, ao terminar, que se mandasse uma
deputação à Sua Majestade a fim de rogar ao governo que "comunicasse à Assembléia a razão
daqueles estranhos movimentos militares".
Seguiram com a palavra, apoiando a idéia, vários deputados. O último a falar foi Martim
Francisco. No momento em que o ex-Ministro discursava, chegou à mesa, com surpresa da
Assembléia, inesperado ofício do Ministro do Império. O orador interrompeu o discurso.
O Secretário, em meio a pesado silêncio, o ofício: O Ministro, por ordem de Sua Majestade,
comunicava à Constituinte que os oficiais do exército, queixando-se de insultos sofridos na sua
honra, faziam sentir à Assembléia que não toleravam a falta de decoro com que a Augusta
Pessoa do Imperador era tratada por "certos redatores de periódicos e seu incendiário partido".
Grande tumulto. Os oradores sucedem-se na tribuna. Discute-se violentamente o ofício. Às três
da tarde, depois dos mais encarniçados debates, tomou-se afinal a deliberação de também
oficiar ao governo. Redigiu-se a resposta. Era altiva e áspera. Dizia, secamente, que os
deputados ignoravam quais eram os "insultos", quais eram os "redatores de periódicos", qual o
"partido incendiário". Partiu às pressas um correio para São Cristóvão. E a Assembléia, reunida
em sessão permanente, esperou...
Foi então que aqueles homens, naquele momento de angústia, deixaram na história belo
exemplo de coragem. Que situação constrangedora! Dum lado o Imperador, com seus canhões,
decidido a toda violência. Do outro lado um punhado de homens, sem uma arma, decididos a
todo sacrifício. Por isso, aquela noite inteira, noite incerta, de inenarrável aflição, que a
posteridade denominou, com tanta justeza, a Noite da Agonia, foi para todos os deputados,
naquela cruel expectativa, um desfiar de alarmas e de sobressaltos.
Chegou, pela madrugada, a resposta do governo. Era de chocante rudeza. Clara e sem rodeios:
os periódicos, de que se queixavam os militares, eram o ''Tamoio" e o ''Sentinela". Os redatores
e chefes do partido incendiário eram o Sr. José Bonifácio de Andrada e Silva, o Sr. Martim
Francisco Ribeiro de Andrada e o Sr. Antônio Carlos Ribeiro Machado.
Ia rompendo o dia... Os partidários de José Bonifácio viram então, bem claro, a delicadeza da
situação. o se tratava mais do "caso Pamplona". O "caso Pamplona" era assunto morto.
Agora se tratava dos Andradas. O governo queria expulsá-los da Constituinte. Foi isto o que
se deduziu da resposta. Foi isto o que o governo, logo depois, mandou dizer, oficialmente, no
próprio recinto da Assembléia.
Mas os deputados resolveram não abandonar os Andradas. Sustentariam, custasse o que
custasse, a causa do Patriarca. Nicolau Vergueiro, apesar da angústia da situação, sugeriu, e foi
unanimemente aprovado, que a Assembléia, usando dos seus direitos, exigisse a vinda imediata
do Ministro do Império à Constituinte. Havia urgência de explicações verbais. Partiu, incontinenti,
novo correio para São Cristóvão.
Às onze horas, no Terreiro do Paço, ecoa o estrépito de uma sege. O clarim reboa seco. A porta
da Assembléia clama alguém com entono:
- O sr. Ministro do Império!
Francisco Vilela Barbosa, o futuro Marquês de Paranaguá, hirto e solene, com o seu fardão
bordeaux, com o seu chapéu de bico, com sua espada dourada, penetra vistosamente na
Assembléia. Um deputado, quebrando o silêncio, grita com ênfase:
- Aqui, na Assembléia, não há necessidade de espada! O Ministro que deixe fora a sua.
Mas Vilela Barbosa, sem se perturbar, sorridente e fino, respondeu com uma frase de efeito:
- Esta espada não é para ofender a augusta Assembléia: é para defender a minha Pátria!
Posso, portanto, entrar com ela.
E Paranaguá, o homem que D. Pedro escolhera para presidir o gabinete, a figura mais em foco
naquela tormenta agitada, dirigiu-se emproadamente à mesa do Presidente. Foi então, debaixo
dum silêncio absoluto, que começou o interrogatório.
* * *
No entanto, minutos antes da chegada do Primeiro-Ministro, o porteiro da Assembléia
aproximou-se discretamente do velho Andrada. E em voz baixa.
- Está uma pessoa do Paço em casa de Vossa Excelência. E quer falar-lhe em particular. E
negócio urgente.
- Pessoa do Paço? Em minha casa?
E intrigado:
- Quem é que trouxe esse recado?
- O "Corta-Orelha".
José Bonifácio saiu imediatamente. Tomou a sua pobre sege de boléia. Mandou tocar às
pressas para o Rocio.
Em casa, ao penetrar no seu gabinete, o Andrada não pôde reprimir um gesto de surpresa.
- Oh!
E que, diante do Patriarca, luminosa e clara, sorria a favorita de D. Pedro I.
- Vossa Senhoria, Sra. D. Domitila?
- Eu mesma; sr. Conselheiro! Mas não se assuste. Poucas palavras, bem rápidas, decidem o
negócio que me traz à sua casa.
E D. Domitila de Castro, sem perda de tempo:
- Sr. Conselheiro: a sorte da Assembléia Constituinte está nas mãos de Vossa Excelência.
E fitando-o bem nos olhos, com desassombro:
- Se Vossa Excelência quiser salvá-la e, ao mesmo tempo, se quiser salvar os seus amigos e a
si próprio, um caminho a seguir. Um só! E é este: fazer uma aliança comigo. Não quero,
como brasileira, assistir a queda do partido de Vossa Excelência e a vitória do partido português.
Por isso sou eu quem vem, espontaneamente, oferecer a minha aliança a Vossa Excelência.
Aceite-a, Sr. José Bonifácio! E o quanto basta para que Vossa Excelência, de aman em
diante, seja novamente o dominador do Brasil. Vamos, Conselheiro! Não hesite. Estenda-me a
sua mão! E, com este gesto, faça triunfar a sua causa...
José Bonifácio ouviu, perplexo, a proposta da sua grande inimiga. Sabia perfeitamente, mais do
que ninguém, que aquela coligação - a dele com a Domitila - seria a arma decisiva para
esmagar os seus detratores políticos. Mas aquilo o repugnou. Era indigno dele. E desdenhoso, a
fronte erguida, com os seus formosos cabelos brancos, o ancião respondeu sem hesitar:
- Vossa Senhoria enganou-se! Eu e os meus amigos defendemos uma causa sagrada. E a
nossa causa, que é a causa do Brasil, não carece de auxílios "dessa" laia!
Por sua vez, fitando-a bem nos olhos, com esmagadora arrogância:
- Saiba Vossa Senhoria, Sra. D. Domitila, que eu prefiro, mil vezes, cair vencido e esmagado, a
coligar-me com gente de sua igualha!
E bateu palmas. A favorita mordeu o lábio. O "Corta-Orelha", ao som das palmas, surgiu à porta.
José Bonifácio ordenou, ríspido:
- Esta senhora quer se retirar. Vá acompanhá-la até a sege.
D. Domitila mediu o Patriarca de alto a baixo. Toda ela dardejava cólera. E exclamou,
ameaçadora e terrível:
- Dentro de duas horas, sr. Conselheiro, Vossa Excelência saberá o quanto lhe vai custar o seu
ultraje.
Com um meneio orgulhoso de cabeça, luminosa e clara, a favorita de D. Pedro, num farfalhar de
sedas, partiu indignada a caminho de São Cristóvão.
* * *
Na Quinta, estava reunido o Conselho. O Marquês de Paranaguá, de volta da Constituinte,
acabara de narrar ao Imperador, detalhadamente, tudo quanto se passara na Assembléia. E D.
Pedro, cruzando os braços:
- Mas afinal, Sr. Vilela Barbosa, esses deputados não compreendem que eu quero a exclusão
dos Andradas da Constituinte? Vossa Senhoria não disse as coisas claras? Bem claras?
- Disse, Majestade. Disse com todas as letras. Mas que quer Vossa Majestade? Os homens se
fazem de desentendidos. Ou antes: os homens entendem tudo muito bem; mas o que querem é
sustentar a causa dos Andradas!
- Nesse caso, meus senhores, sóum remédio: é assestar bocas-de-fogo contra o Terreiro do
Paço e varrer à bala esses turrões. Não há outro caminho.
E a andar de um lado para outro:
- Não há outro caminho! É dissolver a Constituinte...
Caiu súbito silêncio. Dissolver a Constituinte! Ninguém ousava uma palavra. Nisto, abrindo a
porta, surgiu em pleno Conselho a Sra. D. Domitila de Castro. Vinha opressa, muito pálida,
trazendo na cintura um grande ramo de café. E enérgica, a voz vibrante, toda incitamento:
- Sr. D. Pedro! A Assembléia inteira foi arrastada por José Bonifácio. Todos os deputados estão
contra Vossa Majestade. E preciso dissolver a Constituinte! E não tempo a perder; é preciso
dissolver aqueles arruaceiros antes que eles levantem o povo contra Vossa Majestade.
D. Pedro, diante daquela rajada impetuosa, sacudiu a hesitação que o perreava. Virou-se
bruscamente para os circunstantes:
- Meus senhores! A cavalo e a postos!
Ergueram-se todos. Então, num gesto dramático, D. Domitila, arrancando da cintura o seu
verdejante ramo de café, adornou com ele o chapéu do Imperador:
- Que seja este o emblema dos bons brasileiros! Que triunfe, com ele, a causa do Imperador.
(24)
D. Pedro, à frente dos canhões e da soldadesca, esporeando o seu enfunado ginete, partiu a
caminho da Assembléia Constituinte.
Os deputados continuavam em sessão permanente. Esperavam o desfecho dos
acontecimentos. A situação era dolorosa. Que fazer?
Eis que, em meio à ansiedade, ecoa súbito rufar de tambores. Partiu de todos os lados um grito
só:
- Tropa!
Instantes após, sob o comando do Major Morais, o esquadrão de São Paulo, que o povo
apelidara, chistosamente, o "esquadrão da Domitila", postava-se em frente à Constituinte. Os
soldados estenderam-se em linha de combate. Os artilheiros assestaram os seus canhões. E o
Major Morais, com o seu ramo de café, galopou ufano para a Assembléia.
Martim Francisco estava com a palavra e exclamava:
"O Sr. Martim Francisco: Daqui só iremos, sr. Presidente, para onde a força armada nos mandar.
O nosso lugar é este. E aqui que devemos deliberar.
O Sr. Antônio Carlos: Se nos for permitido deliberar..
O Sr. Lopes da Gama: Eu creio que nem podemos deliberar: estamos cercados.
O sr. Presidente: Enquanto estivermos cercados, seguramente não podemos deliberar..."
Foi quando Major Morais assomou à porta da Assembléia. Solene, empenachado, metido no
seu uniforme de calção vermelho, passou àsos do Secretário, que fora recebê-lo, o decreto
de Sua Majestade. E ali, debaixo de um silêncio de morte, com todos os deputados de pé, como
se compreendessem bem que estavam vivendo um notável momento histórico, o secretário leu,
com pausa, gravemente este célebre
DECRETO: - Havendo Eu convocado, como tinha direito de convocar, a Assembléia-Geral e
Legislativa a fim de salvar o Brasil dos perigos que lhe estavam iminentes e havendo dita
Assembléia perjurado ao tão solene juramento que prestou à Nação, de defender a integridade
do Imperador, sua independência, e minha dinastia: Hei por bem, como Imperador e Defensor
Perpétuo do Brasil, dissolver a mesma Assembléia...
Grosso sussurro de ironia perpassou pela Assembléia. Vários deputados pediram a palavra.
"O Sr. Alencar: Não sei para que pedir a palavra!
O Sr. Antônio Carlos: Nós já não temos mais o que fazer aqui..."
Então, diante das baionetas, debaixo daquela ostentosa coação, os deputados, um por um,
começaram a abandonar o recinto. Os dois irmãos Andradas saíram juntos. Na rua, ao pisarem
a calçada, o Major Morais deteve-os:
- Estão presos!
Antônio Carlos, ouvindo a ordem, virou-se para um formidável canhão, ameaçadoramente
assestado contra a Assembléia, tirou o chapéu, e, com um gesto largo, saudou-o numa
reverência:
- Respeito a Sua Majestade o Imperador!
Foram ambos detidos. Faltava, porém, José Bonifácio. O Major Morais, tornando-se para o
oficial a seu lado, deu-lhe uma ordem enérgica. O oficial fez continência e partiu a galope.
Momentos depois, na sua pobre casa de moradia, o velho Andrada, o Patriarca da
Independência do Brasil, era preso sumariamente.
Conduziram-no, como se fosse um criminoso qualquer, para a Fortaleza da Lage. Ai, numa
enxovia imunda, sobre o roto pedaço de tapete, o nobre ancião, branco e venerando, dormiu a
primeira noite da sua queda política. Os inimigos dele, que eram os triunfadores do dia,
rejubilaram-se fragorosamente com esse feito. Mas a Pátria, a alma do Brasil, soluçante e
desgrenhada, passou aquela noite inteira, junto ao cárcere do paulista, chorando essa ingratidão
inominável.
A SENHORA VISCONDESSA
A chácara de Mataporcos, nessa noite, acendeu os fachos da alegria. O júbilo foi
desbordante. D. Domitila delirava. Ria-se. Papagueava. D. Pedro, esquecido nos braços da
mulher amada, pagava-se, com beijos, das canseiras da tarde. Ah, se houvesse vencido, à
frente de canhões fumegantes, exércitos tremendos, Sua Majestade por certo não estaria mais
radioso do que estava aquela noite, em que, simplesmente, havia destroçado e encarcerado três
homens de ação e de talento. Mas não foi somente a queda dos Andradas que enchera de louca
felicidade a chácara de Mataporcos. Houve mais. Para coroar a glória daquele dia, D. Pedro,
alvissareiro, disse jovial mente à favorita:
- Tenho grande notícia para dar a vosmecê!
D. Domitila encarou-o com surpresa.
- Grande notícia?
- Adivinhe...
Que é que poderia ser? D. Domitila não atinava. D. Pedro, tomando-lhe ambas as mãos,
murmurou:
- O Cônego Caetano.
D. Domitila apertou com violência as mãos do Imperador. E alvoroçada:
- Deu sentença no divórcio?
- Sim, senhora! Deu sentença.
E risonhamente.
- Favorável a vosmecê!
- Oh! exclamou D. Domitila, eis a mais bela notícia da noite!
- Hoje vosmecê é livre. O Cônego Caetano desatou o nó...
Radiosa, D. Domitila precipitou-se nos braços que o Imperador lhe abria.
- Oh, meu Amo e meu Senhor! Oh, meu adorado D. Pedro!
E foi um transbordar de carinhos.
Súbito, D. Domitila cessou de rir. E doce, veludosa, pôs maciamente a mão no ombro do
Imperador:
- Eu tenho, também, um segredo para contar a Vossa Majestade. É um lindo segredo.
D. Pedro, desta vez, foi quem a encarou surpreendido. Um segredo? Que é que poderia ser? D.
Domitila enlaçou-o com aqueles seus braços enfeitiçadores. E rente do Imperador, bem ao
ouvido, sussurrou-lhe uma frase rápida. Uma frase ! D. Pedro estremeceu. Os olhos
faiscaram-lhe. Enternecido, num largo clarão de felicidade, indagou ansioso:
- Verdade? Vosmecê tem certeza?
- Absoluta!
D. Pedro apertou a favorita ao peito, apertou-a muito, aconchegadamente. Nisto, quebrando
aquele enternecimento, surge a mucama da casa à porta e anuncia o Chalaça.
- Diabo, exclamou D. Pedro; o Chalaça? A estas horas?
O Chalaça entrou. Abancou-se. E foi logo dizendo ao que vinha:
- O Boaventura Delfim Pereira esteve no Paço à procura de Vossa Majestade... (25)
- O Boaventura?
- É verdade, Majestade. Veio a propósito dum caso curioso. imagine Vossa Majestade que o
Alferes Felício.
- Quem? atalhou D. Domitila.
- O Felício Mendonça, respondeu o Chalaça, o antigo marido de Vossa Senhoria. O Felício, ao
saber da sentença do divórcio, teve o descaro de mandar uma carta ao Boaventura. Uma carta
malcriadíssima! Carta em que diz da Sra. D. Domitila tudo quanto lhe deu na telha de dizer.
Encheu duas páginas de insultos. Eu nunca li tanto desaforo junto.
E passou às mãos do Imperador a carta dos desaforos. D. Pedro começou a ler. Era pavoroso!
Tudo quanto se pode imaginar de mais ultrajante. Não havia adjetivo, por mais injurioso, que
não estivesse ali, nu, com todas as letras. D. Pedro, à medida que lia, ia empalidecendo. Aquilo
era duma audácia... D. Pedro não pôde reprimir o seu furor:
- Cão!
Amarrotou o papel com ira. E tornando-se para o Chalaça:
- Vamos!
* * *
Fora a noite está trovejante. Noite de breu. Nenhuma estrela.
Temporal iminente. D. Pedro, envolto na sua capa negra, seguido pelo
Chalaça, esporeou o cavalo e partiu desabalado. Mas não rumou para São Cristóvão.
Debruçado na sela, a chicotear o animal, D. Pedro meteu-se a galope através da estrada do
Periperi (26)
Eis que a chuva desandou pesada, encharcadora. Mas D. Pedro, indiferente àquela caudal,
continuou a disparar pelo caminho trevoso. Foi uma corrida desassisada. Afinal, sob a água,
debaixo do estrondear ziguezagueante do céu, chegaram os cavaleiros ao Periperi. Grande
alarma. Os escravos, com tochas na mão, acorreram pasmados. Quem seria o doido que
aportava assim, àquela hora, de modo tão estranho, à feitoria? Um dos viajantes, rude e
autoritário, disse apenas:
- Vão chamar o feitor.
Felício Mendonça acordou estremunhado. Levantou-se dum salto. Quê? Gente na feitoria? Com
um temporal daqueles? E correu a ver quem era. No pátio, o feitor deparou com um vulto
estranho, alto, envolto numa capa negra, gotejante. Os dois homens, à luz avermelhada das
tochas, entreolharam-se frente a frente. O vulto negro, arrancando a capa, desembuçou-se de
golpe. Felício Mendonça recuou, transido. Os olhos saltavam-lhe das órbitas.
- Vossa Majestade?
D. Pedro, sem dizer palavra, meteu-lhe uma bofetada em plena cara. Uma bofetada ! Mas
brutal, arrasadora. Felício Mendonça rolou no chão. E D. Pedro, embuçando-se rápido na sua
capa negra, pulou para riba do cavalo. O Chalaça seguiu-o. E ambos, como sombras, tocaram
de novo a caminho de São Cristóvão. (27)
Raiava o dia quando saltaram ambos na Quinta da Boa Vista. Antes de se recolher, o
Imperador chamou o valido e determinou-lhe estas grandes coisas:
- Eu quero que a Titília, no próximo sábado, seja recebida no Paço como Primeira Dama. E
quero que seja recebida com todas as honras. Portanto, você providencie tudo.
- Fique tranqüilo, Majestade. Providenciarei tudo para sábado. A Sra. D. Domitila será recebida
com todas as honras.
- Não é isso, continuou o Imperador. mais ainda: você imediatamente ao Ministro do
Império, de minha parte, e diga que lavre um decreto nomeando a Titília Viscondessa.
O Chalaça fez um gesto de espanto:
- Viscondessa?
- Viscondessa, sim senhor!
D. Pedro pôs a mão sobre o ombro do valido. E como a explicar tão estrondosa mercê:
- E ainda é pouco, Chalaça! Ainda é muito pouco para quem vai ser, dentro em breve, a mãe
dum filho do Imperador.
Mãe! D. Domitila ia ser mãe? O valido não achava palavras para responder. E D. Pedro:
- Quero que a Titília seja Viscondessa. Viscondessa de Santos... Ouviu bem? Viscondessa da
Pátria dos Andradas!
E rindo um riso chocarreiro:
- É só para moer José Bonifácio.
* * *
Viscondessa de Santos! A mercê estourou como um petardo. A Corte ouriçou-se toda. Ferveram
comentários. Não se bisbilhotava sobre outra coisa. Não se discutia outra coisa. Foi um rebuliço.
Toda a gente quis ir ao Paço assistir à recepção da paulista. Toda gente quis bem de perto, o
dia triunfal da Senhora Viscondessa! E o dia chegou...
É sábado. Oito horas da noite. Fora, na Quinta da Boa Vista, o pátio está coalhado de seges. A
do Sr. Visconde do Rio Seco, que é riquíssimo, traz o brasão de armas gravado em ouro e
cravejado de pedras. A do Sr. Conde de Palma, aquele que serviu de condestável na Coroação,
tem uma soberba parelha de alazães puro-sangue. A envidraçada, com o boleeiro fardado de
azul, é da Sra. Condessa de Belmonte. Os trintanários de Pedro Dias Pais Leme, Barão de São
João Marcos, trazem na libré o escudo do amo com os cinco melros negros. está a caleça
dourada dos Barões de Santo Amaro. D. Ana Romana de Aragão Calmon, a fidalguíssima
Condessa de Itagipe, veio numa linda cadeirinha de entalhe. um coche, o solene, puxado
por quatro machos: é de Sir Chamberlain, embaixador inglês.
Dentro, no Paço, os criados de serviço, uniformizados de grande gala, com os canhões e as
golas recamados de bordaduras, boldrié de cinto, espadim ao lado, e os nove botões de prata
gravados com a Coroa Imperial, perfilam-se cintilantes ao longo das escadarias. Há, por tudo,
largo faiscar de candelabros acesos. Vistosa ostentação de panos e de tapeçarias. Pelos
salões, onde as casacas de riço verde se entrecruzam com os uniformes de canutilhos
dourados, burburinham as senhoras fidalgas. A Sra. Marquesa de Aguiar, Camareira-Mor,
farfalhante de sedas, cintila de pedrarias. A velha Baronesa de Itanhaem, cabelos brancos,
vestido de gorgorão negro, abana-se com o seu vasto leque de plumas. A Sra. Marquesa de
Paranaguá, Dama da Imperatriz, tem no pescoço a mais bela gargantilha de diamantes que
viu a Corte. D. Maria Benedita Delfim Pereira, a futura Baronesa de Sorocaba, passa numa
névoa de escumilhas e de rendas. D. Mariana Laurentina da Silva e Souza Veloso de Barbuda,
Marquesa de Jacarepaguá, exibe um magnífico vestido Império, muito berrante, chegado de
França pela última corveta.
A Imperatriz, muito tisnada de sol, traz nos cabelos, penteados à austríaca, enorme trepa-
moleque de rubis. Sua Majestade ri-se. Conversa festivamente com as Damas de Honra. E todo
mundo repara com pasmo o bom humor da Sra. D. Leopoldina.
Sussurram cochichos. zunzuns maldosos pelos grupos. O assunto único é o escândalo da
noite. Toda a gente está assombrada. Mas alfineta a todos beliscante curiosidade por assistir à
cena que se vai desenrolar.
Eis que, erguendo o reposteiro, Valentim Faria de Sousa Lobato, Porteiro da Imperial mara,
anuncia com entono:
- A Sra. Viscondessa de Santos!
Tomba um silêncio de morte. Corre súbito calefrio pela sala. Os olhares cravam-se na entrada.
E então, diante da bisbilhotice devorante da Corte, surge a Sra. Viscondessa de Santos. Vem de
branco, maravilhosa e deslumbradora. Adorna-lhe a fronte atrevido diadema de pedrarias.
Faísca-lhe ao colo, ousado e chocante, o seu grande colar de ametistas com a efígie de D.
Pedro. Tomba-lhe do vestido, roçagante e majestosa, longa cauda de seda.
É o grande momento. D. Pedro devia conduzi-la até o salão onde estava a Imperatriz. Mas não
teve ânimo. Pálido, a voz sumida, o Bragança vira-se discretamente para D. Francisca Castelo
Branco.
- Minha boa Francisca! Apresente a Viscondessa à Imperatriz.
D. Francisca levanta-se amavelmente. E a sorrir, com a mais graciosa reverência, aponta, com
um gesto polido, o salão em que estava D. Leopoldina:
- É por aqui, Sra. Viscondessa.
D. Pedro, os nervos sacudidos, trêmulo, avança até o varandim do salão. Tem necessidade de
respirar. E encostado à balaustrada vibrante, a alma opressa, Sua Majestade solta o olhar pelo
parque afora...
Ah! se o seu olhar pudesse lobrigar o que se passava ao longe, lá, muito ao longe, no fundo do
horizonte, Sua Majestade haveria de ver, sobre as águas solitárias do Atlântico, a massa negra
e confusa dum brigue que deixava a barra. Era o "Lucônia". Dentro dele, junto à amurada, D.
Pedro haveria também de ver a sombra indecisa de um velho, dum velho muito branco e muito
venerando, que, com os olhos cheios de lágrimas, contemplava doridamente as serras do Brasil
que se iam esfumando na distância.
Era José Bonifácio que partia para o exílio.
A VIAGEM Ã BAHIA
As coisas públicas andavam tumultuosas. A dissolução da Assembléia Constituinte tivera
sangrenta repercussão. O Norte, de armas em punho, protestou contra aquela violência
ditatorial. Estourou por lá a "Confederação do Equador". O General Lima e Silva, para sufocá-la,
inundou de sangue as Províncias coligadas. D. Pedro foi inexorável. Não teve um gesto de
demência. Os cabeças do movimento, desde o pobre Frei Caneca até o mísero Ratcliff, todos
estrebucharam na forca. E mal ia amortecendo aquela onda revolucionária, já o Sul, de bandeira
desfraldada, rebelava-se também contra D. Pedro. Arrebentou a Guerra Cisplatina.
Nisto, em meio a tais efervescências, desencadearam-se na Corte boatos alarmantes sobre a
Bahia. As últimas notícias vindas de Portugal fizeram referver as velhas dissenções entre
brasileiros e portugueses. Temia-se, a qualquer instante, o estrondar de nova bernarda. D.
Pedro, ao ter conhecimento da borrasca iminente, resolveu embarcar-se de pronto para a
poderosa Província. Uma proclamação rápida, alinhavada às pressas, anunciou à Nação a
viagem de Suas Majestades Imperiais. Partiria também, com os soberanos, a sereníssima
Princesa D. Maria da Glória. E a notícia de que a própria Imperatriz D. Leopoldina, que jamais
houvera antes visitado uma Província, iria desta vez com o Augusto Esposo, mostrava bem alto
a honra e a atenção com que se pretendia frisantemente distinguir a Bahia.
Foi por isso que o porto do Rio de Janeiro, de um dia para outro, viu esfervilhar dentro dele
atordoante lufa-lufa. Formigueiros de gente atropelavam-se pela praia no afã de atulhar de
pompas e magnificência a aparatosa travessia dos dois Monarcas americanos. Principiaram, na
velha nau "D. Pedro I", imensos arranjos e consertos. Eram carpinteiros que levantavam
tabiques às carreiras. Pintores que refaziam as tintas desbotadas dos beliches. Decoradores
que colgavam telas às paredes. Tapeceiros que acolchoavam a nau de panos raros e veludos
de preço. Dos dois Paços, tanto do Paço da Cidade como do Paço de São Cristóvão, chegavam
a todo instante corroçadas de enfeites e de alfaias. Eram reposteiros, brocados, colchas da
Índia, candelabros de prata, cristais, baixelas, toda uma requintada profusão de luxo e de
conforto.
Enquanto, com esse férvidos trabalhos, a desmantelada nau ia se alindando com brilho, cá fora,
pelos ângulos da Corte, ia esta borbulhante curiosidade: quais seriam os camaristas do
Imperador? E as camareiras da Imperatriz? E as damas da Princesa? E os guarda-roupas? E o
veador? E as açafatas? Era um conjeturar mil coisas. No entanto, como bem se avalia, o que
mais fundamente espicaçava a bisbilhotice dos palacianos era isto:
- A Viscondessa de Santos irá?
Ninguém sabia. O único acontecimento certo, o que ninguém ignorava, era que o Embaixador
Extraordinário da Inglaterra, Sir Charles Stuart, que Canning enviara ao Brasil para negociar o
reconhecimento da Independência, mandara embandeirar a sua fragata e, com toda a
legação, preparava-se para acompanhar Suas Majestades às terras do Norte. O que ainda se
sabia, e até andava publicado, era que a Legação da França, para também solenizar aquela
reboante visita, mandara, por seu turno, aprestar a fragata "Arethuse", a fim de partir para a
Bahia na larga esteira dos Imperadores. Não se podia imaginar, portanto, séquito mais
imponente e mais vistoso: a Inglaterra e a França a comboiarem a nau imperial!
Mas era só. Tudo mais boatos e suposições. Por isso, de boca em boca, ansiosamente bailava
esta pergunta:
- A Viscondessa irá?
Mareschal, ao saber da súbita viagem, correra à casa de Paranaguá. O austríaco e o Ministro,
por esse tempo, andavam amigos íntimos. Nada mais explicável do que essa camaradagem.
Paranaguá, no Ministério, mais de uma vez opusera-se tenazmente a certos pedidos da Sra.
Viscondessa. Fora o bastante - está visto! - para incorrer nas iras da onipotente senhora: era
tido e havido como declarado inimigo político de D. Domitila. Mareschal, esse publicamente e
ostensivamente, fazia alarde da sua repugnância à favorita. Amigo fidelíssimo de D. Leopoldina,
o austríaco, aproveitando-se da sua posição de enviado especial de Francisco Leopoldo,
declarara guerra aberta à nova Pompadour chegada de São Paulo. Essa malquerença à
paulista, tão inoportuna, apertara a amizade dos dois homens.
Mareschal embarafustou-se pelo gabinete do Ministro:
- E a Viscondessa, meu caro Marquês? A Viscondessa irá?
Paranaguá abriu os braços num gesto de desconsolo:
- É exatamente nisso que eu estava a imaginar, Barão! Será que D. Pedro vai ter a coragem de
levá-la?
- Coragem? bradava Mareschal! Afronta! Diga afronta, Marquês! Porque afinal, vamos , não
pode haver nada mais injurioso para a Sra. D. Leopoldina!
Paranaguá sorria. E, como Ministro experimentado, Ministro que conhecia bem as maluquices
do seu Imperador, comentava com amargor:
- Seria, realmente, dum descaro! Mas que quer, Barão? D. Pedro enlouqueceu. A paixão cegou-
o. Vossa Excelência não viu o negócio do palacete? Haverá coisa mais despropositada? Mandar
construir um palacete para a amante, em São Cristóvão, bem em frente ao Paço! Debaixo dos
olhos da mulher! Aquilo é de arrepiar...
E Mareschal:
- Mas que D. Pedro construa o palacete, vá! Que eleve o Boaventura a Comendador do Império,
vá! Que faça do Cônego Caetano um senador; que arranje o bispado para D. Romualdo; que
nomeie o Magessi Presidente da Cisplatina, vá! Tudo ainda passa. Mas levar a amante ao
Norte, levar a amante ao lado da mulher e da filha, isso não! Isso é demais!
Paranaguá concordava. Era, de fato, revoltante. Não podia haver escândalo maior nem mais
acintoso. E o velho Marquês, meneando a cabeça, rematou com uns restos de esperança:
- Mas D. Pedro talvez não a leve. É muita audácia. E tudo, na vida, tem limite.
Mas a verdade é que ninguém sabia ao certo. Todos os da Corte, até os que privavam de perto
com D. Pedro, julgavam também que, ao menos desta vez, Sua Majestade não tivesse o
despejado arrojo de exibir aos baianos, ao lado da mulher e da filha, aquela comprometedora
dama, de tão malquista nomeada, que o Brasil inteiro, revoltado, apontava como a favorita do
Imperador. Mas a ilusão durou pouco.
Em breve, pelo Paço, divulgou-se a lista dos que receberam a cobiçada mercê de partir com os
Imperadores. Pouca gente, sim; mas todos fidalgos do melhor estofo. Ao serviço da imperatriz,
entraram apenas três senhoras: para Primeira Dama (oh!) a Sra. Viscondessa de Santos; para
Dama efetiva, a Sra. Viscondessa de Itaguaí; e para Dama honorária a Sra. Condessa de
Lorena. Veador: Francisco Martins Teles. Ao serviço da Princesa entrou apenas uma dama: A
Sra. Baronesa de Itapagipe. O serviço do Imperador, porém, fora um pouco mais extenso.
Camaristas: o Marquês de Cantagalo, o Visconde de Lorena, o Barão do Rio Pardo e José
Saldanha da Gama.
Um dia, enfim, com a nau "D. Pedro I" transformada em ninho de luxo, verdadeira maravilha de
graça, toda aquela Corte, garrida e barulhenta, embarcou-se alvoroçadamente para a reboante
viagem da Bahia. O grave Barão de Souzel, Comandante da esquadra, uniformizado de branco,
recebeu Suas Majestades no portaló: depois, com um gesto, ordenou ao Capitão Bibiano que
largasse. E os dois Imperadores, e a Princesinha, e os fidalgos de serviço, e os convidado -
mais de trezentos tripulantes afora a maruja! - tudo isso, debaixo das salvas estourantes das
fortalezas, largou emproadamente a barra do Rio de Janeiro. A nau "D. Pedro I" rompia a
marcha; a "Niterói" e a "Ipiranga" seguiam-lhe ao encalço. E as fragatas das embaixadas, com
os pavilhões a panejar ao vento, se iam também, balouçantes e donairosas, na espumarada
do cortejo magnífico.
A vida de bordo correra branda e fácil. Cordialidade urbana e distinta entrelaçada a todos. Era
um cavaquear afável, um discreto cortejar às damas, um intérmino banquetear-se ao som
enlanguescente das músicas.
A Imperatriz nunca descia para comer. Na mesa imperial, florida como um jardim, D. Pedro
sentava-se à cabeceira. Tinha, à direita, a Princesa D. Maria da Glória. À esquerda, a Sra.
Viscondessa de Santos.
Os demais sentavam-se indistintamente. O Imperador era servido pelo seu camarista e guarda-
roupa particular. A Princesa D. Maria da Glória, pelo veador da Imperatriz. As senhoras, pelos
moços da mantearia. Os guarda-roupas eram os que passavam as iguarias às camareiras. Mas
isto o faziam por gentileza e não por obrigação. O Imperador, por um requinte de amabilidade,
trinchava para oferecer às damas... (28)
Era linda a camaradagem que se estabelecera a bordo. D. Leopoldina, à hora cálida, sentada
debaixo do toldo, no tombadilho, cercada das suas camareiras e damas, deliciava-se em jogar
gamão com D. Francisca de Castelo Branco. E que urbanidade! Que rir e que folgar!
D. Pedro, por seu turno, despeado de protocolos, jovialíssimo, tratava a todos com encantadora
afetuosidade. E por uma simpatia particular, que dava na vista, Sua Majestade não largava um
momento do Visconde de Barbacena. Mal saía do beliche, cedo, o Imperador indagava de
Caldeira Brant:
- Chalaça, onde está o Barbacena? Vá buscar o Barbacena.
D. Domitila, de seu lado, soubera ganhar, com habilidade, a estima ingênua de D. Maria da
Glória, a doce princesinha de sete anos. E de braços dados com ela, indo e vindo, passeavam
ambas pela ponte, numa estreita cordialidade, a rir como duas íntimas amigas. Era chocante.
A favorita tornara-se, decisivamente, a mulher suprema do Império. Era a Pompadour do Brasil.
Não havia cabeça, por mais alta, que não se curvasse ante o seu prestígio. A Imperatriz, a pobre
D. Leopoldina, no toldo, debruçada sobre o tabuleiro de gamão, nem sonhava o que ia de
cortejos e mesuras à afortunada paulista!
Os camaristas bajulavam-na despejadamente. As damas sorriam-lhe com rastejante afabilidade.
Os lacaios corriam risonhos para servi-la. O Chalaça incensava-a com cínico descaro. E o
Moraizinho, que fora propositadamente destacado para a nau 'D. Pedro I", não se despregava
dela, escudeiro esbelto e louro, a segui-la por todo o lado com uns olhos muito lânguidos e
muito compridos.
A viagem foi encantadora. Tudo mar de rosas. Por isso, quando a nau ancorou na baía crespa
de São Salvador, marchetada de vela brancas, todos os tripulantes palravam entusiasticamente
da travessia:
- Que viagem!
- Dias incomparáveis!
O Visconde de Queluz, Presidente da Província, viera a bordo para receber os Augustos
Hóspedes. D. Pedro e D. Leopoldina, com a Princesinha ao lado, haviam descido dos
beliches a fim de tomarem a galeota imperial que os esperava. Mas D. Pedro antes de largar,
corria os olhos pelos companheiros. E diante de todos, com um sangue-frio pasmoso, indagava
naturalmente:
- E a Viscondessa? Onde está a Viscondessa?
O Chalaça correu à cata da Viscondessa. D. Domitila surgiu. Vinha, deliciosa e fresca, com um
moderníssimo vestido de linho claro. Trazia uma rosa encarnada florindo-lhe na cinta. E a sorrir,
borboleteante, debaixo do olhar devorador de toda a nau, saltou gloriosamente para a galeota
imperial, onde D. Pedro a reclamava.
NO ALTO MAR
São Salvador, a aquele momento, ainda não havia assistido a regozijos públicos como
aqueles. Nem a chegada de D. João VI, que fora recebido com pompas retumbantes, provocara
entusiasmo tão fremente como o com que os baianos acolheram os Imperadores. Foi uma
apoteose. Tudo embandeirado! Tudo enguirlandado! Tudo recamado de flores! Eram arcos de
Triunfo, dísticos laudatórios, coretos, a cada canto, colchas de damasco a despencarem das
varandas, ondear de flâmulas e de bandeiretas, e, redourando tudo, uma alegria larga, ruidosa,
esparramada pela cidade em festa.
A galeota ancorou debaixo de ensurdecedores estrondos de morteiros. Suas Majestades
saltaram no Arsenal de Marinha. O Senado da Câmara, com o estandarte, balouçando ao vento,
esperava reverente os imperiais visitantes. O Presidente entregou ao Imperador, solenemente,
as chaves da cidade. E D. Pedro, entrando debaixo do pálio, cujos varais os vereadores
carregavam, foi cintilando de grã-cruzes, pela ladeira da Preguiça acima, ao som reboante
das charangas, sob larga chuva de rosas que tombavam das sacadas.
Imperatriz D. Leopoldina partiu, carregada por escravos, numa cadeirinha de talha dourada,
riquíssima, acolchoada de brocado cor-de-rosa. A Princesinha D. Maria da Glória, mui donairosa
e taful, lá foi também em outra cadeirinha, estofada de branco, linda como um andor.
Os baianos agasalharam os Monarcas com requintes de fidalguia. Os aposentos da Imperatriz
foram lindamente preparados na Relação. Os da Princesa, no Passadiço. Os do Imperador,
rasgados e solenes, ficavam no próprio Paço.
Mas a maravilha, a obra-prima, eram as opulentas instalações da Sra. Viscondessa de Santos.
Os aposentos da paulista, também no Paço, ocupavam um andar inteiro. E era de vê-los. O
salão, nobre e largo, mobiliado com magnificência, era todo de jacarandá trabalhado. O quarto
de dormir, recoberto de tapeçarias de preço, tinha coisas deslumbradoras: cama riquíssima,
cortinado de rendas, colchas da Índia, cortinas de seda, finíssimas cambraias bordadas,
toucador sortido de todos os enfeites. E não era só. Havia ainda sala de jantar, quartos para seu
irmão, quartos para seus apaniguados, quartos para suas criadas. Não se podia imaginar, para
vencer o coração do Imperador, gentileza mais inteligente.
No dia seguinte à chegada, logo pela manhã, estacou em frente ao pórtico do Paço um
elegantíssimo coche. Vinha tirado por quatro machos, fogosos e soberbos, cobertos de manta
de veludo carmesim, bordada a ouro. O fraco de D. Pedro era guiar. E Sua Majestade, a fim de
conhecer São Salvador, quis ele próprio, naquela manhã, sair guiando a carruagem.
Era o seu primeiro passeio. O povo apinhou-se em frente ao Paço. Todos queriam ver a D.
Pedro I. Todos queriam ver o glorioso fundador do Império!
Sua Majestade pulou agilmente para a boléia do coche. E então, sem pesar conveniências,
afrontando severos preconceitos da Província, D. Pedro, com a linda Viscondessa de Santos a
seu lado, partiu pela cidade afora, risonho e triunfante, a ostentar, ante os olhos estatelados
dos baianos, a despudorada felicidade daquele amor. O povo, que enxameava na Praça, ao vê-
lo romper, moço e belo, estalando airosamente o chicote, prorrompeu em aclamações
entusiásticas:
- Viva D. Pedro!
de cima, do alto da janela, ao contemplar Sua Majestade que ali partia, vitoriado, levando a
amante sob os aplausos da turba, o Visconde de Barbacena que conversava com o Visconde de
Queluz, meneou a cabeça com tristeza:
- Ora, veja aquilo, meu caro João Severino! Veja aquilo... E diga-me um pouco se isto não é um
País perdido!
* * *
Noite. Mar alto. Luar suave... A nau "D. Pedro I" singra as vagas espumarentas do Atlântico.
Luzes retardatárias, alanternando os óculos dos beliches, pontilham de vermelho a imensidade
que ruge A Bahia estourante de festejos, ficou lá, muito longe, aninhada no cocuruto do morro,
olhando o sinuoso do seu recôncavo azul engaivotado de velas brancas.
E a nau desliza. um silêncio profundo a bordo. Todos os passageiros recolhidos. O guarda-
roupa de serviço, Pedro de Castro Canto e Melo, irmão de D. Domitila, cabeceia de sono no
camarim vazio do Imperador. No convés, porém, sobre a maca de palhinha, recoberta de
almofadões de veludo, conversam dois vultos solitários. Quem será esse par de românticos que
vai, tão aconchegado, sob o luar dormente, num idílio de noivos em lua-de-mel?o é difícil
de adivinhar. E D. Pedro e D. Domitila. Ambos, diante daquelas águas imensas, onde branqueja
e espumarada corcoveante das vagas, se vão, numa intimidade enlanguescente, a evocar os
dias luminosos da Bahia, tão belos e tão bem vividos. E que relembrar delicioso... Era o beija-
mão, em que a pequenina Maria da Glória deslumbrara, com seu vestidinho de boneca, tufado
como os das grandes damas. Era o espetáculo de gala, no teatro abarrotado de gente, onde
esplendera cintilando de jóias, o colo magnífico da Viscondessa de Queluz. Era o baile, o
grande baile oferecido à Corte, em que o Visconde de Barbacena dançara a quadrilha com a
Sra. de Itapagipe.
- Ah, exclamou D. Pedro, ao ouvir o nome do Barbacena. Resolvi mandar o Barbacena para o
Sul. Vai como generalíssimo das tropas.
- Que milagre! retorquiu, a sorrir, D. Domitila. Como foi que Vossa Majestade se lembrou do
Barbacena?
- Milagre? Mas o Barbacena é tão meu amigo!
- Por isso mesmo...
Habilidosa, a paulista enveredou a conversa para um assunto grave. O assunto máximo da sua
vida.
- Por isso mesmo... Vossa Majestade lembra-se pouco dos amigos! E não apenas dos amigos:
Vossa Majestade lembra-se pouco, muito pouco, daqueles que deviam ser caros ao coração de
Vossa Majestade.
D. Pedro pôs-se a rir. Os amuos da Viscondessa eram sempre muito saborosos.
- Meu Deus! Que é que está vosmecê aí a dizer?
- Peço que Vossa Majestade não graceje, retorquiu D. Domitila, tornada séria. Digo e repito:
Vossa Majestade lembra-se pouco dos que deviam ser caros ao coração de Vossa Majestade.
- Vosmecê me espanta, querida Titília! Diga lá, duma vez, que é que vosmecê quer dizer com
isso?
D. Domitila, sob a claridade da lua, olhou fixamente nos olhos de D. Pedro. Meditou um instante.
E logo após, já arrependida:
- Não vale a pena dizer! É um caso meu. Não falemos mais nisso. É uma bobice...
E apontando o fundo do horizonte, donde surgia uma grande lua redonda, D. Domitila mudou
bruscamente de assunto:
- Repare Vossa Majestade a lua! vem ela subindo.
Mas D. Pedro, já agora curioso, enlaçou-a carinhosamente:
- Venha cá, minha briguenta! Não gosto de ver vosmecê com esses modos... Vamos lá: diga o
que vosmecê está querendo.
- Não vale a pena! Foi uma bobice minha. Não se fala mais nisso. Acabou-se!
- Não seja caprichosa, prosseguiu D. Pedro, insistente. Diga lá, por quem é que vosmecê quer
que eu me interesse? Vamos! Diga...
- Vossa Majestade quer realmente saber?
- Mas se estou a pedir a vosmecê...
E então, macia e súplice, juntando as mãos, a Viscondessa exclamou:
- Pela nossa filha!
D. Pedro ficou pasmo. E D. Domitila:
- Pela nossa filha, sim! Pela nossa filhinha! Pela Isabel Maria...
- Mas vosmecê fala sério? bradou enfim D. Pedro. Que mais posso eu fazer pela nossa filha?
Vosmecê bem sabe como eu a quero! A Bela é a minha paixão. Não pode haver pai mais
extremoso...
A Viscondessa cortou-lhe a frase. E rude, com um gesto forte:
- Vossa Majestade está enganado! A nossa filha não tem pai...
- Mas vosmecê enlouqueceu, Titília! Que despropósito é esse?
- Torno a dizer, Majestade, esta dura verdade: a nossa filha não tem pai! Sim, a Bela será
sempre, aos olhos do mundo, uma filha de pais incógnitos. E como ficou escrito no assento do
vigário. Filha de pais incógnitos!
D. Pedro ergueu-se da maca. Estava nervoso. Aquelas palavras doeram-lhe o coração. Mas D.
Domitila, que jogava a sua grande cartada, prosseguiu certeira, cheia de veneno, ferindo a tecla
dolorida:
- Todos podem usar o nome de seus pais. Todos! Mas a pobrezinha não. Nunca usará. E por
quê? Porque nasceu filha de D. Pedro I! Por esse crime, é necessário esconder o nome do pai.
Pois como pode o Imperador dizer que a filha é sua? Impossível! Seria um escândalo...
E dolorosa, com pungente ironia, mãe que pula rugindo em prol do filho:
- Escândalo! Escândalo! Ah, como se fosse escândalo, como se fosse nódoa, vir um pai a
público e confessar como é do seu dever:
esta é minha filha! E meu sangue! E minha carne!
D. Pedro ouvia aquele desabafo. E, pai amorosíssimo, tocado pela quentura daquelas frases:
- Vosmecê talvez tenha razão, minha Titília! É uma injustiça. Injustiça que também me repugna
a mim. Mas que se há de fazer?
- Que se de fazer? Uma coisa só: mandar reformar o assento da paróquia. Nem outro
caminho para um homem de coração.
- Não é tão fácil assim. Ao contrário! É coisa muito melindrosa! Como se de modificar o
assento da paróquia?
- Não nada mais simples: hasta uma palavra ao Bispo. Uma palavra de Vossa Majestade,
uma só, e o assento se modificará.
Terníssima, numa súplica irresistível, D. Domitila, com veludo na voz, pôs-se a bombardear o
coração de D. Pedro:
- Seja meu amigo, Majestade. Salve a nossa filhinha! Dê-me esse gosto! É a minha aspiração!
O meu sonho! Seja meu amigo...
Como resistir? A súplica era tão sentida! A voz tão embriagante! D. Pedro não se conteve. E
num dos seus arrebatamentos de impulsivo:
- Fique sossegada, minha Titília: a Isabel Maria será reconhecida, publicamente, como filha do
Imperador!
D. Domitila ouviu a promessa. Entrou-lhe pela alma uma alegria candente. E a Viscondessa de
Castro, num assomo de júbilo, saltou ao pescoço de D. Pedro. E ali, sob o luar, diante da
imensidade rugidora, a amante colocou à boca do amante um desses beijos longos, eternos, um
desses beijos de sorver a alma e de sugar a vida! Nisto, um grito lancinante, grito selvagem,
saído bruto da alma, cortou de súbito o silêncio:
- Oh!
Ambos desenlaçaram-se bruscamente. E trêmulos, agoniados, os dois amantes defrontaram ali,
de pé, no tombadilho, banhada por um clarão de luar, com a figura revolta de D. Leopoldina. A
Imperatriz, fremindo, o olhar em fogo, contemplava aquela cena brutal, apunhalante, que ali
topara de chofre, por acaso.
Mas logo, recobrando-se, com esmagadora serenidade, Sua Majestade, sem pronunciar
palavra, imperatriz e não mulher, rumou orgulhosamente à solidão do seu beliche. entre
aquelas alcatifas, sozinha, o coração sangrando, fundo despeito roendo-lhe a vaidade, a pobre
D. Leopoldina, chorando aos borbotões, lançou-se desgrenhadamente sobre os almofadões do
seu leito vazio.
Desde esse dia, durante todo o resto da viagem, a Imperatriz enclausurou-se no seu
apartamento. E nunca mais, até que a nau ancorasse no Rio, nunca mais Sua Majestade
apareceu na ponte, debaixo do toldo, para jogar o seu gamão.
PROMESSA É DIVIDA
Francisco Pedro do Amaral, o "Chico Amaral", famoso pintor dos Palácios Imperiais, despediu-
se da Sra. Viscondessa. (29) E de pé, chapéu na mão:
- Pois é como eu digo, Sra. Viscondessa. O palacete está acabado. Uns retoquezinhos sem
importância, uns acabamentos aqui e ali, e Vossa Excelência poderá inaugurá-lo. Ah, ficou
magnífico. Creia, Sra. Viscondessa, que a casa do negociante Harrison, no Botafogo, não se
compara, nem de leve, com a moradia de Vossa Excelência. O Sr. Montigny, que é arquiteto do
Imperador, afirma a toda gente que o palacete de Vossa Excelência é o mais bonito da Corte!
- Pois eu fico muito contente em saber a opinião do Sr. Montigny, retorquiu a Viscondessa.
- A do Sr. Montigny e a de todos os artistas do Rio. Vossa Excelência pode inaugurar sem medo
o seu palacete. E olhe, Sra. Viscondessa: a inauguração é uma das coisas mais esperadas da
cidade. Anda uma ânsia por aí! Todo o mundo já está se preparando para a festa...
D. Domitila sorriu. E estendendo a mão ao pintor:
- Pois ainda hoje, como combinamos, irei até a Rua Nova. Quero ver o que falta para essa tão
falada inauguração.
- Lá estarei à espera de Vossa Excelência!
Francisco Amaral partiu. Mal virou as costas, o Chalaça, com ruidosa jovialidade, penetrou no
gabinete de D. Domitila. E com gestos desabalados:
- Grande notícia, Sra. Viscondessa! Grande e ótima notícia!
- Jesus! exclamou D. Domitila. Que haverá de tão bom?
- Saiba Vossa Excelência disto: o Sr. D. Pedro determinou que eu fosse buscar, para uma
conferência reservada... imagine quem?
- Sei lá!
- D. José Caetano!
- O Bispo?
- Pois não, respondeu o Chalaça. O Bispo!
A Viscondessa esboçou um sorriso. E curiosa:
- Você sabe para que é, Chalaça?
O Chalaça revirou os olhos.
- Ora... Então não hei de saber? Sei de tudo! Vossa Excelência, desta vez, não me disse nada.
Mas eu reconheci, de longe, o dedinho de Vossa Excelência no caso. E olhe, Sra. Viscondessa,
que vai ser um sucesso! O maior de todos! Imagine o barulho na Corte quando se espalhar a
notícia do "reconhecimento".
E com grandes trejeitos:
- Não resta dúvida! Vossa Excelência consegue tudo. É mesmo de espantar. Não o que a
Sra. Viscondessa não consiga.
- Vamos! Deixe-se de comentários, Chalaça. Vá para a casa do Bispo e acabe com esse
negócio o quanto antes.
- Vou já, Sra. D. Domitila, vou já!
- Pois vá! E venha contar-me o que sucedeu. Este negócio, Chalaça, é o negócio mais sério da
minha vida. Ouviu bem? O mais sério da minha vida.
O Chalaça levantou-se. E já na porta, prestes a sair:
- É verdade! O Chico Amaral esteve aqui há pouco?
- Esteve.
- E que coisas conta do palacete?
- Quase pronto. Diz o Chico Amaral que ficou bonito...
- Então, pelo que vejo, vamos ter festança grossa! Olhe que a Rio Seco encomendou em
Paris o vestido mais caro que veio ao Rio. Tudo por está fervendo. se fala na
inauguração!
- Vá-se embora, Chalaça! exclamou D. Domitila com impaciência. Deixe de tagarelar. Este
negócio do Bispo é que é o importante. Tudo mais é bobice...
Foi com surpresa, e grande, que D. José Caetano de Sousa Coutinho, Bispo-Capelão do Rio de
Janeiro, recebeu, naquele dia, a visita do Secretário Privado. O Bispo, além de conspícuo
homem de letras, era prelado de vida exemplaríssima. Infundia em todos, pela sua doçura
evangélica, o mais reverencioso respeito.
O Chalaça explicou logo a causa da sua visita:
- Sua Majestade tem um assunto grave para tratar com Vossa Excelência. Eis porque, Sr. Bispo,
D. Pedro roga a Vossa Excelência que se digne de marcar dia e hora para uma conferência
reservada.
- É negócio urgente, Sr. Comendador?
- É urgente, Sr. Bispo.
- Nesse caso eu vou já, tornou singelamente D. José Caetano. Sua Majestade está em São
Cristóvão?
- Em São Cristóvão, Sr. Bispo.
- Pois vamos então para São Cristóvão!
E o Sr. Bispo, momentos depois, sulcava com o Chalaça a velha estrada da Quinta. D. Pedro,
que esperava ansioso, recebeu-o imediatamente. Entraram ambos para o Salão dos
Despachos. E trancaram-se lá dentro, a sós, muito secretamente.
Logo, pelo Paço, estourou a notícia da chegada de D. José Caetano. Quê? O Bispo em São
Cristóvão? O João Carlota correu para o Chalaça:
- O Bispo, Sr. Francisco Gomes? O Bispo no Paço?
- O Bispo, sim senhor, tornou o Chalaça tranqüilo. Foi o Bispo que veio visitar D. Pedro.
- Hum, rosnou o criado com aquele seu velho faro. Hum... Então é coisa crespa!
Havia imensa razão para aqueles espantos. A vinda do Bispo ao Paço era, realmente, coisa de
pasmar. D. José Caetano (toda a gente o sabia) abespinhara-se com D. Pedro. Num beija-mão,
em dia de anos do Imperador, não se havia guardado ao Bispo, por inexplicável descortesia, o
lugar que era devido a Sua Excelência. D. José Caetano melindrara-se. Afastou-se do Paço. D.
Pedro, que notara aquela ostensiva abstenção, mandou oficiar a Sua Excelência. Mas o Bispo
respondeu com dignidade. Não iria mais a beija-mãos: o homem podia tolerar tudo, mas o Bispo
não podia ser apoucado. E continuou, inabalável, a não mais subir as escadarias oficiais. (30)
Não havia, portanto, dúvida alguma: mesmo um negócio de monta poderia trazer D. José
Caetano àquela conferência. E o Chalaça, que sabia bem de tudo, esperava na antecâmara,
agitado, o desfecho da conferência. De repente, no Salão dos Despachos, ecoaram as palmas
de D. Pedro. O Chalaça precipitou-se para atender o Amo.
Ao suspender o reposteiro, Francisco Gomes defrontou com uma cena borrascosa. D. Pedro, de
pé, o sobrolho franzido; D. José Caetano, em frente ao Imperador, um vinco na testa, o aspecto
resoluto. D. Pedro ordenou secamente ao valido:
- O chapéu do Sr. Bispo!
O Chalaça saiu. E ao tornar, trazendo o chapéu, ainda escutou o remate da cena.
- Pois saiba Vossa Excelência que eu mandarei reformar o assento da paróquia. Por bem ou por
mal, Sr. Bispo, o reconhecimento se fará!
- Faça Vossa Majestade como entender, retorquia o Bispo serenamente. Com a minha
anuência, porém, Vossa Majestade não tocará nos livros da Igreja.
- Com anuência, ou sem anuência, eu farei reformar o assento da paróquia.
Desrespeitoso, D. Pedro virou-se para o Chalaça:
- Acompanhe o Sr. Bispo!
O Bispo, tranqüilo e digno, sem um gesto brusco, deixou gravemente o salão onde fora
recebido. (31)
O Chalaça acompanhou Sua Excelência até a escadaria do Paço. Ao voltar, fervendo de
curiosidade, encontrou Sua Majestade a fremir de cólera.
- Você viu o topete de D. Caetano? Pois teve o atrevimento dizer-me aqui, cara a cara, que
não consente na modificação do assento!
- Disse isso a Vossa Majestade?
- Com todas as letras! Não fez a menor cerimônia.
E D. Pedro, cruzando os braços, num grande exaltamento:
- Mas já se viu que desaforo! Ah, deixe estar que eu ensino aquele Bispo! Ensino...
Com aquele seu eterno arrebatamento, irado e tempestuoso, D. Pedro sentou-se à mesa, tomou
duma larga folha de papel, escreveu meia dúzia de linhas. E passando o papel ao valido:
- Eisuma declaração. Declaração pública, sem rodeios, feita pelo meu próprio punho. Corra à
casa do Ministro do Império e diga que assine comigo esse papel. à casa de dois outros
Ministros, quaisquer que sejam, e também lhes diga que assinem como testemunhas.
O Chalaça correu os olhos pela declaração. Era um reconhecimento categórico, expresso, da
filha da Viscondessa. Dizia assim:
Declaro que tive uma filha de mulher nobre, e limpa de sangue, a qual ordenei que se chamasse
Isabel Maria de Alcântara Brasileira, e a mandei criar em casa do Gentil-Homem de minha casa
Imperial, João de Castro Canto e Melo. E para que isto todo tempo conste, faço esta expressa
declaração, ficando o origina em mãos do mesmo Gentil-Homem da Imperial Câmara para ser
devidamente entregue à dita MINHA FILHA (32).
- Você leve esse documento à paróquia. com ordens terminantes ao Vigário para inscrevê-lo
no livro dos assentos.
- Mas se o Vigário se recusar a inscrever? perguntou timidamente o Chalaça.
- Que pergunta! O Vigário tem que inscrever sem discutir: é uma ordem do Imperador! E se por
acaso desobedecer, o que eu não acredito, o remédio é simples.
- sei, atalhou o Chalaça, se o Vigário desrespeitar as ordens do Imperador, é trancafiar o
Reverendo na cadeia!
- Está visto, exclamou D. Pedro. Nem mais nem menos.
O Chalaça saiu precipitado. Mandou atrelar a sege do Paço e tocou para casa do Visconde de
São Leopoldo, Ministro do Império.
O Visconde leu a declaração. E abriu a boca.
- Mas que é isso, Comendador! Uma declaração destas...
- É isso mesmo, Sr. Visconde. E faça o favor de assinar que eu tenho pressa!
O Visconde de São Leopoldo refletiu um minuto. Coçou a barba-piolho. Tornou a ler a
declaração. E enfim, meneando a cabeça, desconsoladamente, entrou para o seu gabinete.
Voltou logo depois com o papel na mão:
- Eis aqui, Comendador! Está assinado.
O Chalaça partiu a galope para a casa do Barão de Lages, Ministro da Guerra. João Vieira era
grande amigo de D. Domitila. Ao ler o documento pôs-se a rir:
- Esta paulista! Esta paulista! Ora veja isto seu Chalaça. E entregou ao Chalaça o papel
assinado.
- Não há quem possa com a Viscondessa! Isto vai ser uma bomba.
O Chalaça voou à casa do Inhambupe. O Visconde leu. E depois de assinar:
- Este Sr. D. Pedro!
O Secretário Privado guardou no bolso, com cautela, o precioso documento. E meteu-se pela
estrada do Engenho Velho à cata do Vigário.
O Reverendo Manuel Joaquim Rodrigues Dantas, vigário de São Francisco Xavier do Engenho
Velho, lia, com enlevo, o "Pro Milone" de Cícero quando o moleque da casa veio quebrar-lhe
bruscamente a pitoresca leitura.
- Padrinho! Lá fora tá um homem...
- E o que é que quer?
- Não sei. Disse que veio com um recado do imperador.
Assustado, o tranqüilo sacerdote viu entrar-lhe pela sala adentro a figura exótica do Chalaça.
- Deus o salve e guarde, Sr. Reverendo!
- Boas-tardes, Sr. Francisco Gomes! Boas-tardes! Faça o favor: sente-se!
Aboletando-se numa cadeira, o Chalaça, risonho e amável, serenou com boas palavras o
espantadíssimo padre. Informou-o da missão que o trazia ao Engenho Velho e rematou:
- É uma ordem do Imperador, Sr. Vigário! Faça o favor, portanto, de cumprir. Vamos reformar o
assento. E vamos fazer isto já.
O Vigário correu os olhos pelo documento. Quase não queria acreditar no que estava lendo. E,
na sua surpresa, quis protelar o caso:
- Muito bem, Sr. Francisco Gomes. Vossa Senhoria faça o obséquio de deixaresse papel. Eu
vou falar com o sr. Bispo...
- Desculpe, Sr. Vigário, atalhou o Chalaça: mas não são essas as instruções que eu trouxe. O
Imperador determinou que Vossa Reverendíssima fizesse já isso.
Olhou o pároco bem nos olhos. E ordenou-lhe brusco:
- Trate, portanto, de mandar buscar o livro. Vamos fazer o registro já. Eu quero sair daqui com a
certidão. São essas as ordens do Imperador.
E com pausa, deixando cair a frase bem destacadamente, palavra por palavra:
- São essas as ordens do Imperador!
O Vigário Dantas compreendeu bem. A situação era embaraçante. Pensou. Leu de novo a
declaração. Tornou a pensar. Tornou a ler... E afinal, não vendo saída para aquela entalada,
acabou por se resolver.
- Está bem! Vamos até a sacristia. Eu vou cumprir as ordens do Imperador.
Meia hora depois, com o coração aos pulos, o Chalaça partia desabalado a caminho de
Mataporcos.
- Então, perguntou D. Domitila, sôfrega; então, Chalaça? Que há? O Bispo que é que resolveu?
- O Bispo não consente, Sra. Viscondessa! Recusou-se de pé firme a atender D. Pedro.
- Não consentiu? exclamou a paulista com espanto.
- Mas não se assuste, Sra. Domitila, atalhou o Chalaça, rindo-se. Não se assuste.
Arrancando do bolso larga folha de papel, o valido entregou a à D. Domitila:
- Vossa Excelência leia!
A Viscondessa leu o papel que o Chalaça lhe apresentava. Dizia assim:
"Certifico que no dia 28 do corrente mês de maio de 1826, chegou à casa de minha residência,
junto à Matriz de São Francisco Xavier do Engenho Velho, o Oficial menor Graduado da
Secretaria dos Negócios do Império, o Comendador Francisco Gomes da Silva, dizendo-me que
Sua Majestade, o Imperador, ordenava que eu fizesse uma nota no assento do batismo da
inocente Isabel, que foi batizada nesta Matriz, em 31 de maio de 1824, declarando-me
juntamente que o mesmo Augusto Senhor RECONHECIA por sua filha a mesma sobredita
inocente, a Senhora Isabel Maria de Alcântara, e logo me entregou um atestado em que
justificava isto mesmo, feito por um Ministro D'Estado e assinado por outros abaixo declarados e
eram eles: o Visconde de Inhambupe, Ministro dos Estrangeiros; o Barão de Lages, Ministro da
Guerra, o Visconde de São Leopoldo, Ministro do Império. Em conseqüência, pois, da referida
ordem de Sua Majestade, o Imperador, e intimado pelo citado Comendador Francisco Gomes
da Silva, e do referido atestado. passei a reformar o assento em questão, o que tudo afirmo in
fide Parochi. O Vig. M. J. Roiz Dantas".
A Viscondessa de Santos mal podia ler o venturoso papel. Brusca felicidade entontecia-a.
Alegria louca revirava-lhe a alma. E com uma voz estrangulada, D. Domitila, tomando ambas as
mãos do Chalaça, exclamou num assomo:
- Vamos a São Cristóvão, Chalaça! Vamos a São Cristóvão! É preciso que eu me atire aos pés
de Sua Majestade!
E a Sra. Viscondessa de Santos, iluminada e radiosa, se foi, a caminho de São Cristóvão,
agradecer ao Imperador aquela estrondosa mercê.
UM BAILE RETUMBANTE
12 de outubro. É o dia de anos do Imperador. Um sol de ouro surgiu festivamente num céu
muito alto, muito azul, pincelado de nuvenzinhas fugidias. Vai pelo fulgor dessa manhã olímpica,
derramada em tudo, a gorgear no chilreio dos pássaros, a tremeluzir no orvalho das frondes, a
boiar na luz fina do sol, uma alegria seivosa, oxigenante, que enche de festa e riso a alma da
gente. No palacete de São Cristóvão, porém, a Sra. Viscondessa de Santos, apesar da man
tão linda e tão soalheira, ainda não se animou a deixar os seus aposentos. Na penumbra
quebrantadora do seu quarto, como gata voluptuosa, a espreguiçar-se entre as fofezas do leito,
a favorita de D. Pedro cisma.
É o dia da inauguração do palacete. É o dia do baile! É o dia do baile mais esperado e mais
comentado na Corte! E D. Domitila, naquele seu delicioso quebrantamento, os olhos
semicerrados, um sorriso vago nos lábios cor de sangue, vai sonhando, afundada entre as
cambraias, com as glórias e os louros dessa ambicionada noite de triunfo.
Nisto, cortando a doçura amolecente daqueles ócios, uma voz de açafata, macia e tímida,
murmurou de leve na antecâmara:
- Sra. Viscondessa!
D. Domitila abriu os olhos.
- Que há?
- O jornal!
- Ah, o jornal? Entre...
A Viscondessa abriu sofregamente o ''Diário Fluminense". Começou a procurar as notícias do
seu baile. E logo, às primeiras linhas, um grito de surpresa, grito brusco, irrompeu-lhe vibrante
na alma.
É que a Sra. Viscondessa topara de chofre. no jornal do governo, estampado em letras
ostentosas, este decreto inesperado, retumbante, de sacudir de escândalos o País:
DECRETO
Havendo eu reconhecido por minha filha a D. Isabel Maria de Alcântara, Brasileira, e querendo
fazer-lhe honra e mercê: Hei por bem conceder-lhe o titulo de DUQUESA DE GOIÁS, com o
tratamento de Alteza. Palácio do Rio de Janeiro, 5
0
da Independência do Império. IMPERADOR.
José Feliciano Fernandes Pinheiro.
D. Domitila saltou do leito. Saltou trêmula, a ofegar. E correu cambaleante ao quarto da menina.
Tomou a pequerrucha ao colo. Beijou-a. Abraçou-a. E tornou a abraçar. E tornou a beijar. Era
um transbordar de meiguices irreprimíveis! Na sua felicidade, com os olhos úmidos, exclamava,
atarantadamente, numa embriaguez:
- Duquesa! Minha Duquesinha! Minha Duquesinha do coração!
Os criados, que acudiam prestes a ver esse alvoroço, olhavam-na surpresos. Ninguém
compreendia o que significava aquele inundante borbotoar de abraços e de beijos. Mas a Sra.
Viscondessa, como para explicar aquilo, dizia-lhes num transporte:
- De hoje em diante - tomem bem nota! - esta menina não é mais a "Dona Bela", como vocês
chamam. Agora é Sua Alteza! Entenderam! Agora é Sua Alteza e Senhora Duquesa! Ouviram
bem? É a Sra. Duquesa de Goiás!
Vaidosa, embriagada com a sonoridade do título, apertava ao colo, com um anseio ainda mais
quente, com uma ternura brotada bem no fundo da alma, a graciosa Duquesinha de três anos.
Súbito, quebrando a cena, irrompe pelo quarto adentro o velho Coronel João de Castro. D.
Domitila, ao dar com o pai, tomou a filhinha nos braços, exultante:
- Apresento-lhe, meu Pai, Sua Alteza, a Excelentíssima Sra. Duquesa de Goiás!
João de Castro beijou a pequenita, sorrindo. E bobo de felicidade:
- Já li, minha filha, já li... Não há quem não tenha lido! Toda agente, na cidade, não fala de outra
coisa! Que triunfo!
E amoroso, aconchegado, pai feliz, João de Castro abraçou enternecidamente a filha. Depois,
com venturosa expressão de beatitude, o velho Coronel, pousando solenemente a mão sobre o
ombro da filha, com ufania:
- Mas há outra surpresa, minha filha! Há outra surpresa!
D. Domitila olhou o pai, intrigada. E João de Castro:
- Adivinhe, se for capaz...
- !!
- Pois então, ouça, exclamou, espetaculoso, abrindo os braços. Ouça lá, minha filha: acabo de
ser agraciado com o título de Visconde!
- Vosmecê?
- Eu, minha filha. Eu mesmo! Visconde de Castro!
- Visconde de Castro! Vosmecê?
D. Domitila abria os olhos, aturdida, chocada por tão magníficos sucessos. E o velho Castro:
- Mas não fui eu, minha filha, o agraciado. O Boaventura, o vosso cunhado, também recebeu
o título de Barão.
- Que me diz, meu pai?
- Sim, senhora! Foi agraciado com o título de Barão de Sorocaba! Mas ainda não é tudo, minha
filha. Ainda mais! D. Pedro, para honrar a minha velhice, concedeu, hoje, a todos meus
filhos, a mercê de Moços Fidalgos da Casa Imperial!
D. Domitila mal podia acreditar no que estava ouvindo. Aquela onda de graças e honrarias,
inundando assim, alagadoramente, os Canto e Melo, baralhava o espírito da feliz Viscondessa.
E exclamava, às tontas:
- Como D. Pedro é nosso amigo! Como D. Pedro é nosso amigo!
Em meio àquelas violentas alegrias, eis que um criado, surgindo à porta, anunciou, gravemente,
com todos os títulos:
- O Sr. Comendador Francisco Gomes da Silva!
D. Domitila e o pai, ambos frementes, correram a recebê-lo. O Chalaça, um sorriso no lábio,
elegante e perfumado, casaca verde, enorme flor na botoeira, sobraçava, ao entrar, negra caixa
de carvalho chapeada de ouro. E efusivo, com a sua larga ruidosidade, o valido dirigiu-se ao
velho Castro:
- Meus parabéns, sr. Visconde! Meus parabéns, Sr. Visconde de Castro! Não pode haver mercê
mais justa. O título assenta admiravelmente a Vossa Excelência, sr. Visconde...
O velho João de Castro, embalado, gozando a delícia de ouvir aqueles repetidos "Vossa
Excelência" e "Senhor Visconde", agradecia, sorrindo, lisonjeado. E o áulico, sempre labioso:
- Hoje é o dia dos Canto e Melo, Sra. D. Domitila! Hoje é o dia do supremo triunfo. Eu acabo de
chegar das fortalezas, onde fui levar um ofício ordenando aos capitães que façam salvar, em
continência militar, todas as vezes que passar a Sra. Duquesa de Goiás! Imagine um pouco...
D. Domitila não cabia em si. E ria-se! Ria-se à toa, perdidamente. O Chalaça, tomando então da
caixa de carvalho, ofereceu-a à encantadora paulista:
- Hoje, senhora D. Domitila, devem chover neste palacete, em honra da Duquesinha, mimos e
prendas de toda a Corte. E o Sr. D. Pedro, que participa da alegria da casa, quis ser o primeiro a
enviar um presente a Vossa Excelência. Por isso, Sra. D. Domitila, Sua Majestade mandou-me
aqui para trazer esta lembrança.
- Que honra, Chalaça! Sua Majestade quer matar-me de felicidade!
D. Domitila, curiosa, apertou o botáozinho de ouro que havia sobre a tampa da caixa. A tampa
saltou. Dentro, ao invés duma jóia, como julgara a paulista, havia apenas um pergaminho,
grosso e largo, onde as cores do Império, verde e amarelo, se entrecruzavam numa vistosa
tarja.
- Mas que é isto, Chalaça?
- Leia, Sra. D. Domitila!
Como se não bastassem tantas e tão violentas emoções, como se não bastasse aquele mar de
felicidade, a filha de João de Castro, sufocada, leu o estranho pergaminho. E o que estava
escrito nele dizia assim:
"Dom Pedro, por Graça de Deus, e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e
Defensor Perpétuo do Brasil: faço saber aos que esta Minha Carta virem que, querendo dar um
público testemunho do alto apreço em que tenho os serviços prestados pela Viscondessa de
Santos, D. Domitila de Castro Canto e Meio, Primeira Dama da Imperatriz Minha Muito Amada e
Prezada Mulher, tratando da Minha Muito Amada e Querida Filha a Duquesa de Goiás, desde
que Me Dignei entregar-lhe, e querendo fazer-lhe honra e mercê em atenção a tão distintos
serviços, que sobremaneira tem penhorado Meu Coração, Hei por bem acrescentá-la em
grandeza com o Título de MARQUESA DE SANTOS em sua vida. E Quero e Mando que a
referida Viscondessa, D. Domitila de Castro Canto e Melo, se chame MARQUESA DE SANTOS
daqui em diante, e que, com o dito título, goze de todas as Honras, Privilégios, Isenções,
Liberdade e Franquias, que hão e têm, e de que usam e sempre usarão as Marquesas na
Monarquia Portuguesa, hoje separada deste Império e que de Direito lhes pertencerem. Palácio
do Rio de Janeiro, aos doze de outubro, Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de
1826. IMPERADOR. Visconde de São Leopoldo (33).
O Chalaça ia acompanhando, com um sorriso, as fortes emoções da favorita. Quando D.
Domitila, opressa e trêmula. findou a leitura do pergaminho, Francisco Gomes virou-se, com um
gesto amplo, para o velho João de Castro e exclamou com ênfase:
- Senhor Visconde! Seja o primeiro a felicitar a Sra. Marquesa de Santos!
João de Castro abriu os braços: e a nova Marquesa, estrangulada de bilo, caiu entontecida
nos braços do pai.
* * *
É noite. O palacete da Sra. Marquesa de Santos flameja de luzes. Pelos salões, enguirlandados
de rosas, burburinha um frêmito de festa. O baile ferve. De momento a momento, estacando
com estrépito, os coches despejam convidados. E os escravos, com suas jaqueta azuis de
debrum escarlate, precipitando-se às portinholas douradas, curvam-se numa reverência ante a
passagem dos Grandes do Império. A Sra. Marquesa de Santos, pálida, arfante, levemente
olheirosa, vestindo um elegantíssimo vestido de seda rosa, enevoado de bretanhas, uma pluma
atrevida na fronte, recebe, com a mais acolhedor gentileza, as fidalgas cortesanias dos seus
convivas. A flor mais alta da sociedade, os nomes mais aprumados e mais retumbantes da
Corte, Ministros e Dignitários, Diplomatas e Desembargadores, Generais e Políticos, tudo
perpassa, com a espinha dobrada, diante do sorriso triunfante da mulher vencedora.
está o Marquês de Caravelas, fardão bordeaux, com seu espadim dourado de Primeiro-
Ministro. A Viscondessa do Rio Seco, trigueira e fina, exibe, com vaidade, o seu riquíssimo
vestido chegado de Paris. O Sr. Conde de Palma, o peito a faiscar de crachás, muito efusivo,
conversa ruidosamente com a Marquesa de Gabriac, Embaixatriz da França. O velho Marquês
de Maricá, barba-piolho e calva filosófica, discute Platão com o venerando e erudito Visconde de
Cairú. O Barão de Santo Amaro, camarista Honorário de Sua Majestade, cochicha num canto,
sisudo e grave, com o encarquilhado Marquês de Inhambupe, Ministro dos Estrangeiros. O
Visconde de São Leopoldo, com as suas maneiras adocicadas, comenta política com o
Baependi, aquele afável, gentilíssimo Manuel Jacinto Nogueira da Gama. D. Lídia Mafalda de
Souza Queirós e Ribeiro de Rezende, a educadíssima senhora Marquesa de Valença,
contempla, com o "lorgnon", bem demoradamente, a "Morte do Doge Mascantoni", famosa tela
da Sra. Marquesa de Santos.
Na sala do cravo, o vaidoso Marcos Portugal, aquele emproado compositor chegado do Reino,
vai prelecionando com sonoridade sobre as excelências da música italiana. E o pintor Debret,
com o seu nariz pontudo e as suas suíças grisalhas, narra pitorescamente ao seu amigo e
companheiro, Nicolau Taunay, artista de talento que o Conde de Barca mandara vir da França,
aquela viagem de arte que fizera à Itália em companhia do grande David.
A Sra. Marquesa de Santos, soberba e refulgente, com o seu olhar sutil, a reparar em tudo,
adeja de sala em sala, encantadora, a distribuir sorrisos para todos, com frases de mel a cada
passo. O Moraizinho, o Tenente esbelto e louro, encostado a um batente de porta, vai seguindo
com os olhos a Sra. Marquesa. seguindo-a por todo o canto, romanticamente, com aqueles seus
olhos muito languidos e muito compridos...
Nisto, com espanto de toda a gente, o Marquês de Paranaguá, velho e casquilho, todo cortesão,
surge inesperado naquele burburinho de festa. D. Domitila, ao ver aparecer o elegante Ministro,
o seu grande e feroz inimigo, corre alvoroçada para recebê-lo.
- Oh, Sr. Marquês! Que honra...
Mas o Sr. Marquês viera por um instante. Um instante só! E explicou desolado:
- Uma enxaqueca, Sra. Marquesa! Uma enxaqueca impiedosa! Mas eu, apesar disso, não quis
me furtar o prazer de vir felicitá-la. Vim por um instante. Um instante só...
A Sra. D. Domitila, desfazendo-se cm agradecimentos, com o seu melhor sorriso, vai, com
muitas mesuras e rapapés, conduzindo o altaneiro Ministro até o salão. A assistência, entre
risinhos e cochichos, goza aquele delicioso bocado de cena. É um pratinho incomparável. Mas a
senhora Marquesa, com redobrada amabilidade, em pleno salão, bem alto, para que todos a
ouvissem:
- Já viu a Duquesa, Sr. Marquês?
- Ainda não tive essa honra, Sra. Marquesa! E estou ansioso por tê-la.
Então, em pleno salão de festa, diante de toda a Corte, sob o olhar mexeriqueiro daquele mundo
fútil, a pérfida paulista, com a mais cândida naturalidade, virou-se para a pequenina Bela:
- Duquesa! Venha dar a mão a beijar ao Sr. Marquês...
A Bela, fina e donairosa, encaracolada como um querubim, estende a mãozinha ao orgulhoso
político: e Paranaguá, o emproado e belo Paranaguá, faiscante, com o seu fardão de Ministro,
dobrando-se, beija reverente os dedos da pequerrucha. O Chalaça, a um canto, sorri levemente.
Nisto, rompendo numa valsa lânguida, a orquestra desmancha a graça de tão saboroso quadro.
O baile referve de novo.
Que baile! Toda a noite é um delírio. As contradanças sucedem-se ininterruptas. Até que em
meio àquela ruidosidade, Luís Lacombe, o mestre de dança da Corte, bate palmas e anuncia
alto:
- Quadrilha!
Aplausos! Todos se movimentam. Os cavalheiros saem a convidar damas. A Sra. Marquesa de
Santos, com a sua gentileza cativadora, não repousa: e escolhe o Marquês de Gabriac para
cavalheiro da Sra. Baronesa de Lages; e leva gentilmente o velho Inhambupe para o salão; e
força o Cairú a dançar com a Rio Seco; e arranja os pares; e determina os vis-à-vis, e incentiva,
e aviva, e é a chama daquele entusiasmo! Duas vastas fileiras de pares já se estendem dos dois
lados do salão. Luís Lacombe, que vai marcar, brada com entono:
- Attention!
Todos a postos. Há um relâmpago de silêncio. A orquestra, com o maestro de batuta em punho,
vai romper. Eis que, inesperadamente, todos os convivas, sacudidos, bradam com pasmo:
- Sua Majestade!
É que, na ampla porta do salão, surgira o Imperador. Em grande gala, o peito faiscando de grã-
cruzes, D. Pedro viera, herói de novela, em pessoa, ao baile da Sra. Marquesa! E muito
cortesão, dobrando-se diante da triunfadora paulista, o soberano - oh supremo escândalo! -
exclamou com um sorriso:
- Vamos dançar esta quadrilha, Sra. Marquesa! (34)
UMA CENA DO PAÇO
Por do sol. Hora macia e quieta. Uma doçura angelizante abranda as coisas. Erram pelo
crepúsculo tristezas suaves. E a tarde, cor de cinza, vai tombando devagar, muito triste e muito
lenta, aveludando o ar, esfumando o horizonte, diluindo os contornos...
Na Quinta da Boa-Vista, encostada a uma janela, a Imperatriz D. Leopoldina, cismarenta,
derrama vago olhar nostálgico pela melancolia do parque. Ensombra-lhe o semblante uma
expressão dorida, um tom esmaecido de saudade que punge. Em que cisma, tão merencória, a
desventurada filha de Francisco Leopoldo? Talvez, na paz enevoante daquele crepúsculo, ante
seus olhos pisados e olheirentos. perpassem, numa sucessão dolorosa, visões de antigas
felicidades, pedaços ensolarados de sua vida, sonhos que duraram um relâmpago, ilusões que
se desmancharam em lágrimas, todo esse trecho de existência, tão duramente vivido, que vem
desde o seu noivado refulgente de Arquiduquesa até aquela cruciante realidade de Imperatriz. E
D. Leopoldina cisma...
É em Viena. O Marquês de Marialva, Embaixador Extraordinário de D. João VI, acaba de
chegar, espaventosamente, para representar o Rei nas festas dos esponsais.
E Marialva, o famoso Marialva, que é um dos sangues mais velhos e mais puros da Península,
deslumbra a faustosa Corte da Áustria com as suas esbanjadas magnificências de nababo. Com
torrenciosa prodigalidade, mais esplêndido do que o próprio Buckinghan, o fidalgo esplendoroso
esparrama a mancheias por todo o Paço, desde o grande Metternich até o último dos
camareiros, presentes de opulentíssima suntuosidade, punhados de diamantes brasileiros,
grossos fios de pérolas, pedras de toda a cor, pilhas de barras de ouro.
O baile nos jardins de Augarten, esse baile tão celebrado nas memórias da diplomacia galante,
em que Marialva gastara, afora as ordens de Lisboa, toda a herança que recebera do pai, fora
verdadeiro de fadas, sonho refulgente das Mil e Uma Noites, tão rico e tão lindo que jamais se
havia presenciado cm Viena outro tão deslumbrador.
Depois... que maravilha! Na Capela do Paço, entre os brilhos imponentes daquela grande Corte,
o Cardeal Carmelengo, vestido de brocado vermelho, abençoou aquela aliança de Braganças e
de Habsburgos. E poucos dias após, em Liorne, os adeuses da partida... Ah, a travessia a bordo
do "D. João VI"! E o esplendor da nau! E os camarins forrados de seda e lhama! E a chegada
ao Rio! E as festas! E a alegria de D. João VI!
Depois... D. Leopoldina derrama novamente o seu olhar nostálgico pela melancolia do parque.
Depois - como era horrível - o escândalo com a "outra", os triunfos da "outra", a paixão pela
"outra", e aquela vida miserável de Imperatriz abandonada, humilhada, espezinhada, mais infeliz
do que a última das açafatas.
E era de ver-se ali, ao crepúsculo, apoiada à janela, a pobre D. Leopoldina! Daquela Imperatriz
jovial, sangüínea, a transbordar viço e saúde, que amava loucamente os cavalos de raça, as
caminhadas rudes, os dias de sol forte, as caçadas extenuantes por montes ásperos, de toda
aquela exuberante e fresca mocidade, restava agora, tristonha e enervada, uma criatura sem
cor, enfermiça, ferida de melancolias pungentes. Era um enlanguescer, um desflorir, um
murchar-se dia a dia...
Eis que plange um sino doloroso. D. Leopoldina, como que despertando-se, presta ouvidos
àqueles dobres fúnebres. E virando-se para D. Francisca de Castelo Branco, Marquesa de
Itaguaí.
- É Nosso Pai...
A Marquesa, por seu turno, deixa um instante as rendas de bilro e presta atenção ao sino. E
confirma logo:
- É Nosso Pai...
Era o Nosso Pai. Um sacerdote, paramentado de roxo, cercado por seis soldados da guarda
imperial, com os irmãos do Santíssimo à frente, vestidos de opa vermelha, um carregando a
cruz, outros os castiçais, ia, debaixo de pálio, pelas ruas afora, enquanto o sacristão badalava
uma campainha lúgubre.
D. Leopoldina, atenta ao dobre dos sinos, indaga com naturalidade:
- Para quem será, Marquesa, esse Nosso Pai?
D. Francisca de Castelo Branco, ao ouvir a pergunta, cora. Mas como é interrogada pela
Imperatriz, responde imediatamente:
- É para o Sr. Visconde de Castro.
Cai entre ambas fundo silêncio. A frase faz gelar D. Leopoldina. Novamente, apoiando-se à
janela, Sua Majestade derrama O olhar nostálgico pela tediosa melancolia do parque. Tudo tão
triste! Tudo
tão enervante! Que tarde...
De repente, como se brusca idéia a assaltasse, D. Leopoldina, branda e merencória, torna para
D. Francisco de Castelo Branco:
- Marquesa! Eu preciso dizer uma palavra a D. Pedro. indagar se Sua Majestade pode me
receber.
D. Francisca sai. E a Imperatriz, a mão no rosto, com a sua dolorosa expressão de Verônica,
recomeça a contemplar a tristeza contagiante do pôr do sol. Instantes depois, quase sem ruído,
a Marquesa reaparece no aposento:
- Sua Majestade não está no Paço.
- E onde está Sua Majestade?
- Em casa do Sr. Visconde de Castro.
A resposta é cruel. Silêncio de morte tomba no aposento. D. Francisca não ousa palavra. A
Imperatriz, com duro punhal cravado no peito, encosta-se de novo ao peitoril da janela.
A tarde enfim se apaga. E vem a noite. Noite dormente, noite luminosa e cálida. D. Leopoldina,
com a sua nevrose, recolhe-se taciturna aos aposentos. No outro dia, ainda cedo, Sua
Majestade, com os olhos vermelhos, olhos de vigília, chama D. Francisca de Castelo Branco:
- Marquesa! Eu preciso dizer uma palavra a D. Pedro. Vai indagar se Sua Majestade pode me
receber.
A Marquesa sai. Corre aos aposentos de D. Pedro. Fala um instante como o Chalaça. Volta
depois:
- Sua Majestade não está no Paço!
D. Leopoldina não teve um gesto. Encerrou-se no seu gabinete, calada e sofredora. E esperou.
Que dia sem fim!
A tardinha, com a voz agoniada, D. Leopoldina murmura para D. Francisca de Castelo Branco:
- Marquesa! Eu preciso dizer uma palavra a D. Pedro. indagar se Sua Majestade pode me
receber.
D. Francisca sai. Dentro em pouco, confusa e embaraçada, a Marquesa torna à presença da
Imperatriz:
- Sua Majestade não está no Paço!
- Ainda não voltou?
- Ainda não voltou...
D. Leopoldina, pela terceira vez, ouve a frase desolante. A pobre Imperatriz, com lancinante
desespero, não se pode reprimir: e duas lágrimas, bem grossas e bem sentidas, resvalam-lhe
dolorosas pelo rosto.
- Marquesa, vá chamar o Secretário particular de Sua Majestade.
D. Francisca vai à procura do Chalaça. Tornou com Francisco Gomes da Silva. Mas quando
tornou, D. Leopoldina não era mais a mesma. Estava incrivelmente transmudada. Não chorava.
Tinha o ar decidido e firme. Dirigiu-se, como Imperatriz, ao favorito.
- Ordeno-lhe, sr. Comendador, que esvazie imediatamente os armários do Sr. D. Pedro, que
encha as malas de Sua Majestade com todos os seus guardados, e que faça transportar tudo
isso, ainda hoje, para a casa da Sra. Marquesa de Santos.
Com um gesto incisivo, D. Leopoldina despede secamente o truão:
- Vá cumprir as minhas ordens! (35)
O Chalaça saiu a correr. Desceu a quatro e quatro as escadarias da Quinta. Embarafustou-se
numa sege. Mandou tocar a galope para a casa do velho João de Castro.
Largo pano preto, com uma cruz branca, balouçava lugubremente no amplo portal da moradia
do Visconde. Dentro, na sala de visitas, sobre negro ataúde, cercado por quatro tocheiros, o
cadáver do velho Castro. D. Domitila, debruçada sobre o corpo do pai, chorava.
O Chalaça entrou naquele ambiente de angústias. Aproximou-se discretamente do Imperador.
D. Pedro, a um canto da sala, começou a escutar, com surpresa, o que o Secretário ia contando
baixinho. Ao saber do que ocorria, Sua Majestade tornou-se sombrio. E saiu imediatamente.
Rumou para São Cristóvão.
* * *
D. Leopoldina, nos aposentos, estava com as suas malas abertas, pilhas de roupa branca pelos
móveis, vestidos espalhados pelos divãs.
D. Pedro empurrou com violência a porta do quarto. Entrou. E ao dar com aquela desordem,
aqueles preparativos, aquelas malas escancaradas:
- Que é isto?
D. Leopoldina tinha uma serenidade decidida, imperturbável. Respondeu friamente:
- Não é nada. Sou eu que me vou embora do Paço.
- Vossa Majestade vai-se embora do Paço?
- Vou para o Convento da Ajuda. No meio de monjas é que deve morar uma Imperatriz sem
marido.
D. Pedro nunca houvera visto, até aquele instante, D. Leopoldina tão resoluta. Era de pasmar! A
Imperatriz continuou:
- mandei que as malas de Vossa Majestade fossem transportadas para a casa da Sra.
Marquesa de Santos. Vossa Majestade, que não se coíbe de passar dias inteiros em companhia
dessa mulher, naturalmente irá morar, de hoje em diante, definitivamente, em casa da adúltera.
- Vossa Majestade enlouqueceu? Mas Vossa Majestade não vê o escândalo?
D. Leopoldina fitou-o cara a cara, sobranceira e escarnecedora:
- E Vossa Majestade que tem a ousadia de me falar em escândalo? Pois o que faz o Imperador
todos os dias, nestes últimos anos, senão escândalos? e mais escândalos? Que é Vossa
Majestade, neste momento, com a sua amante pública, senão o mais escandaloso de todos os
homens?
D. Pedro escutou aquilo com fúria. Tinha o olhar congesto, o aspecto revolto.
- Vossa Majestade se contenha! Vossa Majestade se contenha!
- Basta, Sr. D. Pedro, basta! Eu estou farta de suportar tantas humilhações! Vossa Majestade
esqueceu-se de que sou filha de Imperador; de que sou mulher de Imperador; de que sou mãe
do futuro Imperador. E não se pejou, para humilhar-me, de fazer da sua amante a Sra.
Marquesa de Santos! Não se pejou de reconhecer, por um decreto, menoscabando assim em
público a honra de sua esposa, o fruto ilícito desses amores. Não, Sr. D. Pedro! Não! É demais.
A taça transbordou. viver com a divorciada! Mas deixe-me a mim, Imperatriz sem marido, ao
menos a felicidade de viver em paz, num convento, longe de tanto horror...
D. Pedro não se conteve. Dentro de sua alma, despertou-se o bruto, o homem das cavalariças,
aquele domador de potros que vivia adormentado no sangue de Sua Majestade. E agarrando a
Imperatriz pelo pulso, num ímpeto de calceteiro, D. Pedro ergueu a mão no ar... Ergueu a mão
pronto para desabar a tapona! Foi uma cena de relâmpago, hedionda. D. Leopoldina,
soberbíssima, sentiu referver-lhe nas veias todo o velho sangue dos Habsburgos. E, com os
olhos chispantes, magnífica de cólera:
- Vamos! Dá na tua mulher! Espanca a mãe de teus filhos! Faze esse ato heróico! Vamos, Sr. D.
Pedro! Bate na Imperatriz do Brasil! Vamos, bate!
E fitou-o de alto a baixo. Fitou-o com formidável, esmagado arrogância. D. Pedro abaixou o
braço...
- Não, Sr. D. Pedro, não foi para "isto" que Vossa Majestade foi buscar-me na Áustria! Vir ao
Brasil, a este fundo pedaço da América, sozinha, sem parentes, para ser assim ultrajada pelo
marido! Para ser humilhada como sou, todos os dias; oh, Sr. D. Pedro, não, não foi para isso
que Vossa Majestade me arrancou do palácio do meu Pai!
E como se não pudesse represar a onda que lhe subia da alma, D. Leopoldina sentiu as
lágrimas saltarem-lhe dos olhos, caírem-lhe aos borbotões, num grande desabafo aliviador.
D. Pedro, aquele impulsivo, aquele arrebatado, comoveu-se de pronto. E diante da mulher que
soluçava, diante daquele sentido despencar de lágrimas, invadiu-lhe a alma, transbordando-a, o
velho sentimentalismo da raça. E já arrependido, e já vencido, e já com os olhos molhados:
- Perdão, Leopoldina...
Atirou-se bruscamente aos pés da mulher. E com a voz estrangulada:
- Minha Leopoldina! Minha boa Leopoldina! Perdão... Eu tenho sido indigno de ti!
D. LEOPOLDINA
No dia seguinte, logo pela manhã, D. Pedro mandou chamar o Marquês de Paranaguá. Vilela
Barbosa correu a São Cristóvão. Ao defrontar com Sua Majestade, o Ministro da Marinha notou
que algo de estranho havia revolucionado, naquela noite, a alma do Imperador. Havia em D.
Pedro, nos seus modos, no vinco de sua testa, um ar de noite mal dormida. Sua Majestade
principiou sem delongas:
- Mandei chamá-lo, Marquês, para comunicar a deliberação que acabo de tomar.
D. Pedro pousou a mão sobre os ombros do Ministro:
- Vou partir para o Sul!
- Para a zona da guerra?
- Exatamente, continuou D. Pedro. Para a zona da guerra.
- E o Barbacena? atalhou Paranaguá, surpreso. Vossa Majestade não mandou para lá, ainda
agora, como generalíssimo, o Marquês de Barbacena?
- É verdade. O Barbacena foi para lá como generalíssimo. Mas eu quero ver, eu mesmo, com os
meus olhos, como andam as operações.
Paranaguá, ouvindo notícia tão estranha, mostrou-se realmente espantado. Mas D. Pedro
continuou:
- Eu sei que aqui muita coisa para resolvermos: o tratado de comércio com a Áustria, o
tratado com a Inglaterra, o casamento de D. Miguel com a Maria da Glória. Tudo isso, não
dúvida, são coisas muito sérias. Mas que se há de fazer, Marquês? Eu preciso partir...
Havia nesse "eu preciso" singular entonação de voz. E D. Pedro, num assomo de intimidade,
murmurou ao velho Ministro:
- Eu preciso partir, meu caro Paranaguá! Preciso! A minha vida doméstica, umas tantas coisas
privadas que me preocupam, tudo exige, terminantemente, que eu me afaste um pouco da
Corte. Quando eu voltar, após boa temporada de ausência, será mais fácil, bem mais fácil,
romper certos liames que ora me prendem, do que rompê-los já, bruscamente, com violência...
Por isso, meu velho Paranaguá, não discutamos mais. É preciso, e está acabado!
- Vossa Majestade queira dar ordens!
- Vossa Excelência faça aprestar as naus necessárias para eu partir.
- A "D. Pedro I" está no porto, bem equipada, pronta para velejar. Eu vou providenciar
incontinenti sobre outros barcos. Quando Vossa Majestade quer zarpar?
- O quanto antes. Amanhã, se fosse possível.
- Pois eu vou tomar todas as providências para Vossa Majestade partir o mais depressa.
- Então vá, meu caro Marquês. Vá! Foi para isso que eu o mandei chamar.
Paranaguá partiu.
* * *
E logo, por todos os cantos da Corte, espalhou-se a notícia da viagem do Imperador. Foi geral a
surpresa. Ninguém podia compreender tão súbita deliberação.
O Chalaça, quando soube das ordens de Sua Majestade, correu intrigado à casa da Marquesa
de Santos. D. Domitila, de luto fechado, chorava ainda a morte do pai. E a Marquesa, ao ouvir a
brusca novidade, não pôde também conter o seu espanto:
- Mas que houve? Qual o motivo de resolução tão repentina?
- Eu não compreendo, Sra. Marquesa. Nem há aí, pela Corte, muita gente que compreenda.
- Mas o Imperador, argumentava D. Domitila, o Imperador mandou para o Sul, como
comandante-em-chefe, o Marquês de Barbacena, não é?
- Mandou, Sra. Marquesa; o Caldeira Brant lá está, há bons vinte dias, dirigindo as operações.
- Há apenas vinte dias? E já Sua Majestade vai ao encalço de Caldeira Brant! É muito esquisito!
D. Domitila ficou um instante pensativa.
- Muito esquisito! É um enigma. E você, Chalaça, que é que pensa disso tudo?
- Eu, Sra. Marquesa, para lhe dizer a verdade, bem francamente, eu acho essa partida um mau
sinal.
- Eu também, tornou a Marquesa. Uma partida assim, tão inesperada, sem avisar ninguém, é
coisa fora de propósito. Enfim, que se há de fazer? É esperar pelos acontecimentos.
- Isso mesmo, Sra. Marquesa. E esperar pelos acontecimentos. O que for, soará...
Francisco Gomes partiu. E a paulista ficou, com o seu luto fechado, a matutar nas causas da
inexplicável viagem.
Os preparativos começaram. As naus aprestaram-se e municiaram-se. O Barão de Souzel, que
dirigia os trabalhos, assumiu o comando da frota.
Chegou, enfim, o dia do embarque.
D. Leopoldina recebeu o marido nos aposentos. Foi tocante aquele adeus de despedida! Ambos
estavam ternos e afetuosos. Conversaram longamente. Longamente e comovidamente. A
Imperatriz sentia dentro d'alma uma tristeza mordente, qualquer coisa de vago, espedaçante.
Presságios de mau agouro a torturarem-lhe a alma:
- Não sei o que me diz o coração que estamos nos despedindo para sempre!
- Mas que tolice, volvia D. Pedi-o com um sorriso jovial. Que idéia sem fundamento!
- É uma tolice, eu bem sei, é uma idéia sem fundamento, é tudo quanto Vossa Majestade quiser.
Mas o certo é que eu sinto dentro de mim, estranhamente, certa voz a me dizer que eu não verei
mais a Vossa Majestade...
E sem razão, ferida de intraduzível mal, doente da alma, a imperatriz chorava. Tomou dum
mimo e entregou-o timidamente a D. Pedro.
- Guarde isto! É uma lembrança minha.
D. Pedro mirou o presente. Era um simples anel de ouro, feito com dois aros sobrepostos: ao
abrirem-se viam-se neles dois corações entrelaçados. D. Pedro sentiu o coração apertar-se-lhe.
Sentiu um na garganta. A despedida foi realmente cruciante. O cronista das intimidades de
São Cristóvão narra essa despedida assim: - "Eu morro; você quando vier do Rio Grandenão
me de achar. Aqueles que na vida foram desligados, sejam unidos depois da morte. Ele a
abraçou. Choraram ambos muito. Ela lhe disse que tudo lhe perdoava e nenhum rancor lhe
tinha..."
Na tarde desse dia, a frota, debaixo de salvas das fortalezas, largava a barra da Corte, levando
Sua Majestade para os azares da guerra do Sul.
* * *
O dia primeiro de dezembro era o aniversário da Coroação do Imperador. O dia dois de
dezembro aniversário natalício do príncipe D. Pedro, herdeiro do Trono. Na Corte, todos os
anos, festejavam-se ambas essas datas com imensa pompa e brilho. Em 1826, porém, com
surpresa de toda a gente, Valentim Faria de Sousa Lobato fez afixar, no "Diário Fluminense", o
aviso de que não haveria, nem a primeiro nem a dois, o beija-mão protocolar. É que D.
Leopoldina, - desde a partida do Imperador, enfermara. E enfermara gravemente. O médico da
Imperial Câmara, Dr. Vicente Navarro de Andrada, Barão de Inhomerim, correu ao Paço logo ao
primeiro alarma. E depois de examinar a Sua Majestade, diagnosticou com autoridade:
- É aborto.
Era, de fato, aborto. E por isso a Quinta da Boa-Vista, em poucas horas, regurgitou de gente. A
Corte inteira, o mundo oficial, altas patentes, áulicos, palacianos, damas, grandes titulares, tudo
correu pressuroso a indagar da saúde de Sua Majestade. Os íntimos, os amigos fiéis e privados,
esses, como sombras, trançando pelos aposentos particulares de D. Leopoldina, andavam nas
pontas dos pés, falando baixo, o aspecto compungido, vigiando com desvelo a imperial doente.
A Marquesa de Aguiar, Camareira-Mor, instalou-se definitivamente no Paço. O Barão de
Mareschal postou-se, dia e noite, à porta da antecâmara. Paranaguá, abandonando os negócios
públicos, passava horas inteiras em São Cristóvão. E D. Francisca de Castelo Branco, a boa, a
inseparável, a devota camareira, essa não arredava um instante dos aposentos imperiais,
dedicando-se, como uma escrava, de corpo e alma, pela vida da Ama.
Mas, dia a dia, por fatalidade, o estado da Imperatriz agravava-se alarmante. O Barão de
Inhomerim, mais o Cirurgião-Mor do Império, o Dr. Guimarães Peixoto, assistiram efetivamente
um parto prematuro de Sua Majestade. Desde esse fatal insucesso, começou a minar a vida da
Imperatriz, impiedosa e implacável, tremenda septicemia puerperal. Os boletins médicos,
afixados com abundância, denunciavam aflitivamente, num crescendo desolador, a ascencional
gradação do intoxicamento. O "Diário Fluminense" informava assim ao público da Corte.
"Com o maior sentimento ainda não podemos felicitar nossos leitores pela suspirada melhora de
Sua Majestade a Imperatriz. Os boletins, acima, mostram a infeliz continuação dos seus
dolorosos incômodos e enchem de amargura os nossos corações pela triste recordação do
perigo, que o Céu afasta para longe de nós. Entretanto, nota-se a mesma ansiedade no público,
o mesmo concurso na Imperial Quinta, e maior impaciência por mais gratas notícias."
D. Leopoldina tornara-se uma soberana realmente querida do povo. Os infortúnios conjugais dos
últimos tempos, os desregramentos do Imperador, tudo havia contribuído para nimbar o nome
de D. Leopoldina dum halo de simpatia. Para torná-la, aos olhos românticos do povo, a melhor e
a mais doce das imperatrizes. E o povo, que não discerne, mas sente, amava com sinceridade
aquela boa Soberana. Era de ver-se, por isso, durante aqueles dias de tristeza e de amargura a
comovida sensibilidade popular. Todo o Rio de Janeiro, desde os mais graduados até os mais
humildes, enchia as Igrejas da Corte com votos, com rezas, com promessas, com lágrimas pela
saúde de Sua Majestade. Os sinos não deixavam um momento de tanger. Mas embalde subia
ao céu, ao gemer dos sinos, a piedosa devoção do povo pela sua Imperatriz. A pobre D.
Leopoldina, ardendo em febre, o cérebro num excitamento esbraseado, rolava na cama, a
delirar, a delirar... E o seu delírio era de rasgar os corações:
- Minha boa Francisca! Minha Francisca! Repare um pouco... É veneno! É veneno o que está
naquele copo verde. Não me deixe envenenar... Foi ela quem preparou a bebida. Foi ela! Foi
ela!
Agarrava nas mãos de D. Francisca de Castelo Branco:
- Foi feitiçaria! feitiçaria podia virar a cabeça de meu marido! Do meu Imperador! Jesus! Foi
ela. Ela e a filha! Acudam! Eu quero D. Pedro! Depressa! D. Pedro...
E rolava nos lençóis e erguia-se, e gesticulava, e chamava por D. Pedro. Era uma agonia sem
fim, pungente e desesperadora.
Os médicos, desapontados e impotentes, sentiram por fim que a ciência falhara. D. José
Caetano, o Bispo, veio então para a Eucaristia. D. Leopoldina recebeu os sacramentos.
Desgraçadamente, naquele corpo cambaleante de moribunda, a febre não cessava de queimar.
E a angústia, e o excitamento, e as visões alucinadas, continuavam impiedosamente a torturá-
la. Era um delirar sem tréguas:
- Eu morro! Eu morro! Tragam o médico! Eu quero o médico! Todos os presente, com o coração
opresso, choravam compungidos. Nisto, em meio àquela angústia, a Marquesa de Aguiar,
ante pé, aproximou-se do velho Paranaguá. E num cicio:
- Venha comigo!
Paranaguá, sem dizer palavra, seguiu a Marquesa. Na antecâmara, porém, o Ministro estacou
de brusco. Estacou petrificado. A Camareira-Mor, apontando então a Sra. Marquesa de Santos,
que ali surgira toda de preto, num luto elegantíssimo, explicou o incidente:
- A Sra. Marquesa de Santos quer entrar nos aposentos da Imperatriz. Eu pedi à Sra. Marquesa
que esperasse um instante para falar a Vossa Excelência.
D. Domitila, a fronte erguida, virou-se com arrogância para Paranaguá:
- Não compreendo, Sr. Marquês, a razão pela qual me fazem esperar nas antecâmaras. Parece
que todos andam esquecidos do meu cargo: eu sou, neste Paço, a Primeira Dama da
Imperatriz!
Paranaguá, indignado, teve uma atitude de arrojo:
- Tenha paciência, Sra. Marquesa: Vossa Excelência não pode entrar!
D. Domitila olhou o Ministro com ira. Os seus olhos esbraseavam. Toda ela era fúria.
- Não posso entrar?
- Não pode!
De pé, no meio da porta, trancando a passagem, Paranaguá lançou em rosto da favorita esta
coisa enorme:
- o pode! E queira retirar-se. Queira retirar-se já, Sra. Marquesa! Eu não admito que Vossa
Excelência, com a sua presença, venha ultrajar os últimos momentos da Imperatriz.
E o Ministro, com um gesto autoritário, apontou à Marquesa de Santos a porta da saída... D.
Domitila empalideceu. Os lábios tremeram-lhe. Os seios arfaram-lhe como ondas encapeladas.
Fitou o atrevido com bravia arrogância e rugiu entredentes:
- Vossa Excelência pagará.
E a Sra. Marquesa de Santos, aturdida, partiu com um grande ódio esfervilhando-lhe no
coração.
Dentro, nos aposentos imperiais, a rolar na cama, a pobre D. Leopoldina continuava na sua
agonia. Lá estava, nos estertores. Fugiam-lhe os últimos lampejos. A vida esvaía-se-lhe gota a
gota. Era o fim.
No dia seguinte, o médico imperial, num boletim largamente tarjado de negro, afixava estas
linhas irreparáveis:
"11 de dezembro. Pela maior das desgraças se faz público que a enfermidade de Sua
Majestade a Imperatriz resistiu a todas as diligências médicas, empregadas com todo o cuidado
por todos os médicos da Imperial Câmara. Foi Deus servido chamá-la a si pelas dez horas e um
quarto. Barão de Inhomirim".
UM BEIJA-MÃO TRÁGICO
Os vastos salões do Paço de São Cristóvão, severamente recobertos de crepes fúnebres,
transbordam de gente. De instante a instante, erguendo o reposteiro, João Carlota dobra-se
reverencioso ante os Grandes titulares do Império. As damas, de luto fechado, vestido de veludo
negro, sem jóias nem adereços, passam de olhos vermelhos, numa grande expressão de dor.
Os cortesãos, solenes, entram com o aspecto compungido, um grande ar de desolação.
Todo esse mundo oficial e palaciano, que ali atulha salões e corredores, espera, debaixo de um
silêncio tumular, que soe a hora do beija-mão. É o beija-mão derradeiro. O beija-mão trágico.
Dolorosa angústia aperta a todos. Erra pelo ar, como se a alma daqueles crepes voasse pelo
ambiente, uma tristeza funda, tristeza espessa, que os sentidos sentem.
Súbito, do velho e enorme relógio de mogno, tombam pesadamente, uma por uma, doze lentas
badaladas. (36)
É a hora.
Valentim Faria de Sousa Lobato, no seu oficio de Porteiro Imperial, escancara as amplas portas
que dão para o aposento onde repousa o corpo da Imperatriz. O aposento, trescalante de
aromas, está florido como um jardim. Dentro, sobre largo estrado almofadado, recoberto por
finíssima colcha cor de pérola, jaz o cadáver embalsamado da Sra. D. Leopoldina. Loura,
plácida, vestida de grande gala, com todas as suas insígnias e fitões, muito esmaiada e muito
doce, um sorriso gelado no lábio, a Imperatriz repousa a cabeça, serenamente, sobre duas
vastas almofadas de seda verde e ouro.
Começa o beija-mão... O primeiro a atravessar aquela câmara, assim pungentemente enfeitada,
é o Príncipe Herdeiro, aquele galante e ingênuo principezinho de apenas um ano, que entra
carregado por José de Andrade Pinto, camarista de Sua Majestade: todo de negro, sem
compreender a grande desgraça, o órfão pequenino, o que vai ser, dentro em breve, o glorioso
Imperador do Brasil, beija, pela última vez, a mão da augusta Mãe. Pálida, sufocando os
gemidos, seguida pelo camarista José Alves Pereira de Ribeiro Cirne, entra a Sra. D. Maria da
Glória. E a leve, a graciosa rainhazinha de Portugal, branca e dolorosa, atira-se com desespero
sobre o cadáver de D. Leopoldina. Depois, seguida pelo Sr. Visconde da Cachoeira, a Princesa
Januária, num transe de nervos, põe-se a gritar, comovedoramente, em altos brados: "Mamãe!
Mamãe! Eu quero Mamãe! Acordem Mamãe!" E abraça a mãe com frenesi.
Diante do cadáver em grande gala, naquela câmara trágica, estranhamente decorada de verde
e ouro, começam a desfilar, hirtos e fúnebres, os altos personagens da Corte. D. José Caetano,
o Bispo-Capelão, resplendendo de sedas escarlates. A Sra. Marquesa de Aguiar, a Camareira-
Mor, com os seus gorgorões faiscantes de vidrilhos, toda debulhada em lágrimas. O velho
Mareschal, com os bigodões ornamentais, comovido como um menino. D. Francisca de Castelo
Branco, Marquesa de Itaguaí, dolorosa, os cabelos em desalinho, a abafar os soluços que lhe
borbotavam da garganta.
E o desfile continua, vagaroso, protocolar, repassado de emoção e de silêncio. E o Sr. Marquês
de Caravelas, rijo e austero, com o seu espadim de Primeiro-Ministro; é o Sr. Marquês de
Paranaguá, impecável, muito pálido, o lenço de seda negra afundado no peitilho da camisa; é o
Sr. Conde de Lages, os olhos piscos, forçando uma severidade que lhe custa; é o Sr. Visconde
de Inhambupe, sombrio e doloroso; é o arcado e encarquilhado Visconde de Cairú, com o
pescoço espremido num imenso colarinho de palmo...
No outro dia, noite fechada, deu-se início ao enterro. Eram oito horas. Principiou o desfilar
daquela marcha fúnebre. Era um cortejo tétrico impressionante, quase bárbaro. À frente,
cavalgando cavalos árdegos, seis porteiros da Câmara carregavam insígnias e pendões. Em
seguida, uniformizados, com o barrete negro, orlado de arminho branco, vinha o sr. Corregedor
da Corte. E de lado a lado, em imensas filas, uns atrás dos outros, todos os Dignitários, todos os
Grandes do Império, todos os Cortesãos, todos os Criados da Imperial Câmara. Iam silenciosos,
fúnebres, enrolados na suas longas capas trevosas, montados em ginetes de luxo, recobertos
de mantas pretas, bordadas a ouro. Os criados de cada um, trajando libré de luxo, levando nas
telizes as armas dos amos, alumiavam com tochas aquele cortejo sombrio. Atrás do coche
mortuário, que quatro grandes fidalgos circundavam, vinha o carro do Estado, vazio, grave como
um cortesão. Logo depois, puxado por seis cavalos, um outro coche carregando a Coroa.
Fechava a marcha a Guarda de Honra.
E assim, por entrelinhas de soldados que se estendiam, ininterruptas, desde o Paço da Boa-
Vista até o Convento da Ajuda, desfilou, sob a noite preta, alumiado por estranhos fogaréus de
tochas, aquele enterro impressionador.
E naquela noite memorável, em 14 de dezembro de 1826, foi sepultada, no Convento da Ajuda,
a filha de Francisco Leopoldo, a cunhada de Napoleão Bonaparte, a primeira Imperatriz do
Brasil.
DUAS CENAS NUMA NOITE
Enquanto, sob o dorido planger dos sinos, os músicos da Imperial Capela entoavam o
"Responso" das encomendações, fora, no Botequim da Cometa, ia áspero tumulto de
capoeiras e mulatos. Toda aquela gentalha discutia assanhadamente a morte da Imperatriz.
- Foi veneno!
- E veneno da Domitila! (37)
Aqueles tipos eram a mais sórdida ralé do Saco da Gamboa. E os valentões, exaltados,
principiaram a exorbitar:
- É preciso vingar a Imperatriz!
Aquela idéia pegou fogo. E foi se avolumando. E cresceu. E em breve, no Botequim da Cometa,
era o desejo mais empolgante daquela malta bêbeda.
- Morra a Domitila! Morra a Domitila!
Em meio aos roncos, em meio àquela trovejante efervescência, o velho "Corta-Orelha", trepando
ao balcão, urrou para a canalha:
- Vamos apedrejar a casa da Marquesa!
Com seus ares de grande homem, o capoeira saiu para a rua, temeroso, a brandir alto um
grosso porrete de caviúna.
- Pra casa da Domitila, rapaziada! Mata a Domitila!
A choldra acompanhou o chefe. E de todos os lados, arrastada por aquele mando, a caterva
rompeu em uivos:
- Mata! Mata!
Formou-se, de pronto, vasto magote de arruaceiros. E a massa ululante pôs-se em movimento..
- Abaixo a Domitila!
- Abaixo a moça!
- Abaixo a envenenadora!
Àquela hora da noite, no entanto, o palacete da favorita, recolhido e quieto, repousava
taciturnamente entre as suas grandes árvores silenciosas. Dentro, numa alcovazinha
aconchegada, estendida sobre o fofo canapé, cismava a Sra. Marquesa de Santos.
Aqueles chorosos dobres de sino, aquelas pompas fúnebres, aquela dorida plangência que se
infiltrava em tudo, não conseguiram entenebrecer a alma da paulista. Ao contrário! D. Domitila
tinha agora a ambição largamente enfunada. E no seu peito, no mais secreto cantinho do
coração, ela sentia bem que a morte de D. Leopoldina, assim tão súbita, abrira no seu destino,
de golpe, um horizonte lindo e vasto! Que faltava agora para ser ela a Imperatriz de verdade?
Um quase nada.
E na sua fantasia, ali, à meia-luz, o rosto apoiado na mão, leve sorriso na comissura do lábio, a
Marquesa de Santos ia erguendo castelos no ar...
De repente, quebrando a trama dos devaneios, D. Domitila começou a escutar um ruído
longínquo. Ruído confuso e estranho. Era uma atoarda incompreensível. E ia engrossando...
engrossando... E eis que a Marquesa estremece. Põe-se a escutar melhor... Com espanto, D.
Domitila distingue, bem claramente, os berros da multidão:
- Morra a Domitila!
- Morra a envenenadora!
Assustada, a pobre Marquesa espia timidamente por uma frincha da janela: em frente a sua
casa, vociferando, grande malta negra atulha sombriamente a rua. E os gritos não cessam:
- Mata! Mata!
D. Domitila, naquele rápido espiar pela frincha da janela, reconhece a figura agressiva do
"Corta-Orelha". O mulato escalando o gradil do muro, estava prestes a saltar para dentro do
jardim. Espavorida, a Marquesa de Santos foge precipitada para os fundos da casa. Mal os
primeiros passos, porém, sente que a casa toda, desde os alicerces até o teto, estremece
fragorosamente! Estremece sacudida, sob estrondante saraivada de pedras e paus. E a
multidão, aos berros:
- Mata! Mata!
se ouve, à entrada, o estrupido dos arruaceiros a forcejarem a porta. E a cada estrondo, e a
cada porretada, responde o ulular da malta:
- Morra a envenenadora!
- Morra a assassina!
D. Domitila sente que vai sucumbir. O furor da populaça prostra-a. Gelado, o suor corre-lhe em
bátegas.
Eis que, a um sacolejão violento, a porta do fundo escancara-se.
D. Domitila recua espavorida! Diante dela, porém, desembuçando-se rápido, surge o
Moraizinho, desgrenhado:
- Venha! Venha depressa!
Envolve-a, célere, na sua capa negra. E escudeiro fiel, conduz a aturdida senhora por entre as
alamedas do pomar.
Fora, na rua dos fundos, o moço pula agilmente para o cavalo que o espera. Ergue a
encantadora favorita. E esporeando o ginete, com a Marquesa à garupa, dispara como um
doido, fantasticamente, pelas ruelas escuras da Corte.
D. Domitila, embuçada na capa, agarra com fúria aos ombros do cavaleiro:
- Para onde vamos?
- Para o paço!
- Para o paço?
- Para o Paço da Cidade. E lá que está o Chalaça.
Minutos depois, estupefato, o Chalaça recolhia ao Paço, ainda trêmula e descorada, a Sra.
Marquesa de Santos.
O Tenente Morais, sem descansar, volveu, num galope, à cata do Intendente de Polícia.
Providenciou. Mandou piquetes de cavalaria. Limpou a cidade. (38)
Noite alta, quando tudo estava novamente apaziguado, o Moraizinho tornou ao Paço. A
Marquesa esperava-o, ansiosa:
- Que há?
- Tudo em paz! não mais capoeiras pela rua. O Intendente mandou varrer tudo a pata de
cavalo.
Então, com grande expressão teatral, juntando as mãos, D. Domitila exclamou agradecida:
- Oh, meu amigo! Meu querido Moraizinho! Devo-lhe a minha vida. Você foi o meu salvador...
- Foi um herói, atalhou o Chalaça. Você foi um autêntico herói, Moraizinho. E por isso, pelo seu
ato de bravura, você merece um gole de genebra. Espere aí, meu amigo, que eu vou buscar
copos par bebermos à sua saúde.
Saiu. Sozinho, diante daquela mulher que enchera a sua vida, que fora a sua ambição mais alta,
debaixo daquele olhar negro e coruscante, o Tenente Morais, confuso e embaraçado, não
ousava uma única palavra. Mas D. Domitila, aquela perigosa enlouquecedora de homens,
chegou-se, toda macia, toda seda e pluma, até bem rente do seu velho e platônico apaixonado.
Pousou-lhe as mãos no ombro. Fitou-o com um olhar incitador. De repente, num ímpeto brusco,
a Marquesa de Santos atirou-se, aveludadamente, ao pescoço do seu romântico. E toda
ardência, num cálido transporte de carinhos, cobriu-o duma rajada de beijos longos,
entontecedores.
O Chalaça, que entrava sem ruído, trazendo a genebra e os copos, estacou assombrado à porta
do salão.
E escondendo-se atrás do reposteiro, com leve sorriso sarcástico no lábio, o truão, desolado,
revirou os olhos para o céu:
- Meu Deus... Até o Imperador!
* * *
Nessa mesma noite, a essa mesma hora, bem longe da Corte, que cena diferente... E em
Massiambu. Em frente à barraca de campo do Imperador, a fogueira crepita. Ecoa, pela vasta
solidão do pampa, o andar monótono da sentinela. D. Pedro, sozinho, o cotovelo fincado na
mesa, a mão na fronte, alheio aos mapas de guerra esparsos à sua frente, olha a fogueira. Olha
a fogueira e sonha. Saudade mordente, tristeza que punge, confrange o coração enamorado do
Monarca.
Aqueles dias de febre, aqueles aprestos de campanha, aquelas proclamações trombeteadas
com estrondo, tudo aquilo não conseguira desviar a idéia fixa que torturava o seu cérebro
escandescido. Nada, absolutamente nada, conseguira sufocar a sua paixão absorvente. A
ausência acendera-lhe a saudade. A distância agravara-lhe os desejos. A solidão acirrara-lhe o
desespero. Tudo nele eram recordações. Tudo ânsia mórbida por voltar. E ali, na barraca,
solitário e absorto, olhos na fogueira, vago sorriso a despontar-lhe no lábio, o Imperador sonha...
De repente, quebrando a solidão, ecoa pelo silêncio da noite áspero trotar de cavalo. Quem
será? O ajudante-de-campo, perfilado e ereto, entra na barraca:
- Acaba de chegar um correio da Corte.
- A estas horas?
- Veio estropiando cavalos pelo caminho. Trouxe ordens expressas de entregar urgentemente
esta carta para Vossa Majestade.
E passou a carta às mãos do Imperador. D. Pedro tomou-a. Correu os olhos pelo sobrescrito.
Ah, o coração quase lhe estourou no peito! Despediu com um gesto o ajudante-de-campo e
rasgou sofregamente o envelope.
Era uma carta da Marquesa. D. Domitila contava a D. Pedro a rude humilhação por que passara:
Mal V. Majestade se foi embora e nem havia ainda desembarcado, os servidores do Paço
começaram a me insultar. Que covardes! O Paranaguá, o Paranaguá tão amigo de V.
Majestade, foi de uma brutalidade sem nome: enxotou-me do Paço! V. Majestade ouviu bem?
Enxotou-me! E eu, a Primeira Dama da Imperatriz, eu, que fora cumprir os meus deveres junto
ao leito da Enferma, eu saí enxovalhada do Paço! Saí enxovalhada de São Cristóvão,
enxovalhada publicamente como se eu fosse a última das últimas! Oh! Sr. D. Pedro quando V.
Majestade voltará? (39)
D. Pedro leu aquilo. O sangue ferveu-lhe nas veias. E leu a carta de novo. Releu-a outra vez. E
mais outra. E assim, todo nervos, a passear azedo pela barraca, D. Pedro atravessou a noite em
claro. Naquele cérebro de apaixonado atropelavam-se as idéias mais desencontradas. Rugia-
lhe um vendaval no peito. Irrefreável desejo de partir, de voar para a Corte, de correr em amparo
da mulher amada, estrugia-lhe forte no coração.
E o amor, aquele amor que o desatinava, falou nele enfim, mais alto do que a razão. Por isso,
logo ao romper do dia, ainda com os olhos febrentos da vigília, Sua Majestade chamou o
ajudante-de-campo. E o ajudante-de-campo ouviu estatelado:
- Motivos imperiosos me chamam à Corte. Amanhã sigo para Pedro. E de lá, no primeiro barco,
para o Rio. Providencie tudo a minha viagem.
Pelo acampamento, espalhou-se célere a notícia do regresso de Majestade. Ah, foi um
desapontamento! Mas o apaixonado, no tresvario da paixão, abandonando soldados, afrontando
com desasombro o ridículo daquele recuo, se foi, cavalheiresco e romântico, acudir a mulher
do seu amor, aquela que, lá do seu infortúnio, lhe enviara uma simples carta lacrimosa.
- D. Pedro partiu.
Durante a viagem, numa hiperexcitação mórbida, Sua Majestade enraivecia à toa. Tudo era
motivo para que os seus nervos se exaltassem. porque um peão, o que puxava a tropilha, ia
caminhando pachorrento e lerdo, o Imperador cortou-lhe a cara com uma chicotada. Em
Desterro, quando chegou a nau que devia conduzi-lo, D. Pedro jantava. Sua Majestade, naquela
sua ânsia por voltar, largou a comitiva, os amigos, o jantar, tudo! Embarcou-se imediatamente. A
nau nem sequer teve tempo de refrescar. Voltou aos trancos, panos abertos a todos os ventos,
os marinheiros com meia ração de água, os oficiais passando a arroz e carne seca... (40)
Enfim, a 15 de janeiro, pelas duas horas da tarde, Sua Majestade desembarcou no Arsenal de
Marinha. Foi um desembarque taciturno. Não houve pompa. o Ministério veio recebê-lo. D.
Pedro, austero e ríspido, não teve um sorriso, não teve um gesto amável. A secura do viúvo
impressionou a todos.
Chegando em São Cristóvão, ainda quebrado das fadigas da travessia, o Soberano, como
primeiro ato, mandou lavrar um decreto Depois, com imperceptível sorriso diabólico nos lábios, o
Imperador bateu palmas. O Chalaça apareceu.
- Vá entregar este decreto ao Sr. Marquês de Paranaguá. V:; depressa!
O Chalaça partiu. O velho e elegante Ministro, abancado à sua ampla secretária de carvalho
negro, recebeu com amabilidade a estranha visita do Secretário Privado.
- Que há, Sr. Comendador?
- Sua Majestade mandou-me aqui para entregar a Vossa Excelência este papel.
Paranaguâ recebeu o envelope com o timbre do Estado Rasgou-o. Leu o decreto. Aflorou-lhe ao
lábio um sorriso pungente. Sorriso escarninho e doloroso.
- Sabe o que é isto, Sr. Comendador?
- Não, Sr. Marquês.
- Leia!
O Chalaça, com a sua figura exótica, retorcendo os seus bigodes muito negros e muito
retorcidos, leu, com imperturbável serenidade este incrível decreto de Sua Majestade:
Tendo-Me representado repetidas vezes o Marquês de Paranaguá que as suas moléstias o
privavam de poder perfeitamente desempenhar o honroso emprego de Ministro e Secretário do
Estado: Hei por bem atendê-lo dando a sua demissão. Palácio do Rio de Janeiro, em 15 de
janeiro de 1827, sexto da Independência do Brasil. - Imperador (41).
UMA AVENTURA DO CHALAÇA
Mirando-se ao espelho do toucador, o Chalaça dava o último retoque ao do plastron. Nisto,
alguém empurrou a porta. Era João Pinto da Rocha. Francisco Gomes, em frente ao espelho,
perguntou tranqüilamente ao amigo:
- Então, João Pinto? Tudo pronto?
Tudo. Amanhã às sete horas, rigorosamente, o banquete será servido.
- Veja lá a sua responsabilidade, João Pinto! Não se esqueça de que este é o primeiro banquete
que se dá no Paço depois da morte da Imperatriz. Veja, portanto, o que você vai nos apresentar.
- Não tenha medo, Chalaça. Vai ser um banquete de arromba. Coisa linda. Você verá!
João Pinto sentou-se num canapé e pôs-se a tagarelar:
- A vinda da Marquesa ao banquete é que está escandalizando a toda a gente. Ninguém quer
acreditar. Foi uma bomba! E com razão. Afinal de contas o Sr. D. Pedro, depois que enviuvou, é
apontado como um modelo; como o homem mais morigerado da Corte. Vive a vida dum recluso.
Passa a maior parte do tempo na Fazenda de Santa Cruz. Todo mundo, diante disso, está
convencido de que o Sr. D. Pedro acabou de vez com seus velhos amores. Vai agora, na
primeira festa que há, a dama principalmente convidada é logo a Sra. Marquesa de Santos! Ora,
isso é francamente coisa de espantar.
- É isso mesmo, exclamou o Chalaça. É coisa de espantar. Mas que quer você? D. Pedro é o
temperamento mais extraordinário que existe. O homem mais ilógico do mundo. Ao ver aqueles
modos reconcentrados, aquele isolamento, aquele luto, toda a gente - não dúvida - toda a
gente acredita que Sua Majestade mudou inteiramente de vida...
- Toda a gente!
- Pois bem, continuou o Chalaça, a verdade, nua e crua, é esta: todas as noites, embuçado na
sua capa negra, o Sr. D. Pedro vai, muito às escondidas, esquecer a sua viuvez nos braços
da Domitila!
- Que está você dizendo, Chalaça?
- Nos braços da Domitila!
- Será possível? fez João Pinto, arregalando os olhos.
- É o que lhe conto, meu amigo! E não arregale assim os olhos. É a pura verdade! E o mais
engraçado, comentou o Chalaça a piscar os olhos, muito ridicularizante - o mais engraçado é
que D. Pedro leva o seu mistério a ponto de esconder essa farsa até de mim!
- Até de você?
- Até de mim! Eu, naturalmente, finjo que não sei. E desempenho com habilidade o meu papel
de ingênuo. Sou como toda a gente: acredito piamente na estranha reviravolta de D. Pedro, isto
é, nas suas atuais virtudes de viúvo inconsolável.
E rindo-se:
- Digo mais: acredito piamente - e isso como todo mundo - que o Sr. D. Pedro anda louco por se
casar com uma princesa da Europa...
- Bem, atalhou vivamente o João Pinto; bem, Chalaça, agora vamos falar sério. Diga-me com
franqueza: que tal esse casamento? Sai ou não sai?
- Sei lá! perguntar ao Barbacena! O Barbacena é quem está incumbido de arranjar a noiva.
O Barbacena é agora o homem do dia.
- Realmente, exclamou João Pinto, como este Barbacena tem estrela! É assombroso! E dizer-se
que este homem, depois da derrota de Ituzaingó, ainda está nas boas graças do Imperador?
Cáspite...
- Que quer você, retorquiu o Chalaça, filosófico. O mundo foi sempre assim: mais vale cair em
graça do que ser engraçado. Este Barbacena é um caso típico. D. Pedro tem paixão pelo
homem! Tudo para D. Pedro é o Barbacena. E só o Barbacena. E que se de fazer? D. Pedro
acha que o Caldeira Brant é um gênio. E não quem o demova disso. Depois da derrota de
Ituzaingó o Sr. D. Pedro ainda recebe o Barbacena de braços abertos. É inacreditável! E não
fica aí... Faz mais: manda o homenzinho para a Europa à cata de noiva. Não pode haver missão
mais importante. E Caldeira Brant está, com carta-branca para tudo, cheio de honrarias, a
brilhar nas Cortes...
- Brilhar nas Cortes é coisa de menor importância. O homem que brilhe à vontade! O principal é
que ele arranje a noiva.
- Não arranja coisa nenhuma! É um sujeito incapaz. Você verá o fracasso! Aliás, até agora, a
coisa por lá tem andado péssima.
E com um piscar de olhos:
- Não há jeito de se fisgar uma noiva para D. Pedro.
- Verdade?
- Imagine você que duas princesas foram pedidas: uma de Turim, outra da Baviera. E as
duas, meu amigo, as duas disseram não!
- De forma que... atalhou João Pinto.
- De forma que, concluiu o Chalaça, o nosso Imperador já levou duas tábuas! Duas, meu amigo!
E ambos, ante a idéia das tábuas, soltaram uma gargalhada.
- Mas afinal, volveu João Pinto, você que pensa de tudo isto? Vamos lá, Chalaça, francamente:
O Imperador casa ou não casa?
- Casa! Isso não há dúvida. Casa! Mas...
E aqui, com uma voz muito baixa, muito intencional, o Chalaça cochichou em segredo:
- Mas casa aqui, no Brasil. Casa por capricho! Casa por maluquice! Você verá. E um
pouquinho mais de força e a bomba estoura...
- Você está doido Chalaça!...
- O tempo o dirá, João Pinto! O tempo o dirá.
E o Chalaça virou-se de novo para o espelho. Compôs a flor da botoeira. Borrifou-se de água-
de-cheiro. E depois de puxar, com um repelão, os punhos engomados da camisa:
- Bem, João Pinto, basta de tagarelice. Adeus! Até amanhã. Eu vou-me à casa da Marquesa.
Vou visitar a deusa! E apertando vigorosamente a mão do amigo:
- Veja o banquete de amanhã! Nada de fiasco. Não me sair, oh, João Pinto, um novo
Barbacena!
E partiu alegremente. Ao descer, porém, as escadarias da Quinta, o Chalaça topou com o
Moraizinho. A Sra. Marquesa de Santos, depois daquela famosa noite de tropelias, conseguiu
colocar o Tenente no Paço a serviço de Sua Majestade. O Chalaça, parando, estendeu a mão
ao agraciado:
- Você já sabe que amanhã há banquete no Paço?
- Já sei. Chalaça!
- E você sabe, que é um homem feliz como os Lobatos, sabe que tem o seu talher à mesa?
(42)
- Já sei. E estou honradíssimo.
- Pois então, meu caro Tenente, é envergar a fatiota de gala e comparecer faiscante. Até
amanhã!
Com um gesto amável, sorrindo, o Chalaça despediu-se do moço e desceu as escadarias do
Paço a caminho do palacete da Rua Nova.
* * *
Fora, atravessando o parque umbroso da Quinta, o Chalaça ia radioso, festivo, a assobiar
brejeiramente uma solfa gaiata. Que alegria cantante e linda sonorizava o peito do truão! Havia
um pássaro de ouro a gorjear-lhe na gaiola da alma. O Chalaça, depois da cena do Moraizinho,
transmudara-se radicalmente. Tornara-se o grande cortejador da Sra. Marquesa. Raro o dia em
que o valido não surgia no palacete da D. Domitila. Aparecia sempre com uma lembrançazinha,
qualquer coisa graciosa, um mimo. Aquela assiduidade junto à bela favorita, aquele empenho
em lhe ser agradável, o esforço que punha em cativá-la com as mais finas gentilezas, revelavam
até certo ponto intenções alarmantes, comprometedoras... E a endiabrada Marquesa, muito fina
e muito astuta, recebia, com polida complacência, esse cortejar velado. Aquele tipo lhe era
indispensável. O íntimo de D. Pedro, o famoso e adulado confidente, podia prestar os mais
decididos serviços aos planos da grande ambiciosa.
Por isso, naquela bonita noite de verão, noite romântica de luar, foi com um sorriso encantador
que a Sra. Marquesa de Santos acolheu o perfumado amigo do Imperador:
- Seja sempre bem-vindo, meu caro Chalaça!
- Deus a salve e guarde, Sra. Marquesa!
Brejeira, a irradiar graças e feitiços, D. Domitila começou risonhamente:
- Recebi ontem, com as rosas, o convite para o banquete. E nem sei o que mais deva
agradecer: se o convite, se as rosas.
- Oh, Sra. Marquesa, as rosas...
- Lindas! estão na jarra do meu toucador. É pena que emurcheçam tão breve. Se não, meu
caro Chalaça, havia de me florir com elas para ir ao banquete.
- A Sra. Marquesa não precisa florir-se... atalhou o Chalaça madrigalesco; Vossa Excelência,
mesmo sem uma flor, será fatalmente a primavera da festa!
- Sempre caçoista, tornou D. Domitila com um sorriso. Sempre a dizer chalaças!
E tomando bruscamente um ar de desconsolo:
- Primavera! Pobre primavera... Uma primavera que escandaliza as festas em que vai! Não é
verdade, Chalaça?
- Escandalizar, Sra. Marquesa, escandalizar, propriamente, não escandaliza. O povo anda a
comentar, de fato, o convite feito Vossa Excelência. Mas o povo é sempre o mesmo linguarudo,
comenta tudo e todos! E não dar trela nem ouvidos a esse velho maledicente...
- Mas há, realmente, muito comentário?
- Muito! Um comentário enorme, respondeu o Chalaça; foi um choque!
- Mas por que Chalaça? Por quê? Qual a razão para tanto alarma?
O Chalaça sorriu. E melífluo, com a sua voz açucarada, explicou ingenuamente a D. Domitila
aquilo que a paulista já estava cansada de saber:
- É que todo mundo está convencido que houve completo ma pimento entre Vossa Excelência e
Sua Majestade...
- Ora veja que tolice, aparteou a Marquesa. Não houve rompimento algum. Tudo é pura
invencionice. O Imperador, depois que enviuvou, anda muito recluso. Não recebe ninguém. Nem
a mim! Mas isso não significa que sejamos inimigos. Longe disso...
- Pois olhe, Sra. Marquesa, continuou o valido, eu, que sou íntimo do Paço, eu também julguei
que Vossa Excelência estivesse arrufada com o Imperador.
- Eu? Que idéia... E por quê?
O Chalaça ergueu-se. Aprumou-se. Consertou o do plastron. E maldoso, com o seu
sorrisozinho diabólico, murmurou:
- É que Sua Majestade, ultimamente, anda fazendo certas visitas... Certas visitas noturnas,
bastante enigmáticas.
D. Domitila encarou no valido com surpresa. Aquilo era uma revelação grave:
- Sua Majestade anda a fazer visitas noturnas?
- Afianço-o a Vossa Excelência! exclamou o Chalaça, positivo firme. Digo mais: a pessoa que D.
Pedro visita, é pessoa muito conhecida de Vossa Excelência!
D. Domitila não pôde dominar-se.
- Chalaça, meu bom Chalaça, deixe-se de gracejos! Vamos lá... Diga a verdade: é certo o que
você acaba de revelar?
- Se é certo? Oh, Sra. Marquesa!
Diante do espanto da favorita, o Chalaça, brutalmente, contou-lhe tudo:
- Vossa Excelência quer ter a certeza? Pois é muito fácil: mande rondar a casa da Sra.
Baronesa de Sorocaba.
- A casa da Baronesa? Da minha irmã?!
- Exatamente: da irmã de Vossa Excelência!
A Marquesa ouviu, sucumbida. Aquilo era inacreditável. Era hediondo.
Mas o Chalaça, o hábil trapaceiro, veio logo, com mãos de veludo, fechar a dolorosa ferida que
abrira com tão funda punhalada:
- Mas não se magoe, Sra. Marquesa. Nem se entristeça por tão pouco. Essas aventurazinhas de
D. Pedro são bagatelas à toa. Coisa sem mais valia! A grande aventura, a aventura séria, a
definitiva, essa, Sra. D. Domitila, essa o Sr. D. Pedro não fará com a Baronesa de Sorocaba:
fará com a Marquesa de Santos!
- Comigo?
- Com Vossa Excelência!
E olhando-a bem nos olhos, frente a frente, o Chalaça perguntou abruptamente:
- Por que Vossa Excelência não se casa com o Imperador?
- ?!
- Sim, Sra. Marquesa! Vossa Excelência! Essa, sim, que é a grande aventura.
- Você está zombando, Chalaça, interrompeu D. Domitila, lisonjeada. Isso é pilhéria sua! Ora
veja lá... Quem sou eu para pensar nesse casamento? Você está zombando...
- Não, senhora! Falo a sério. Muito a sério. E digo-lhe mais, Sra. Marquesa: Vossa Excelência
tem a faca e o queijo na mão. E só querer.
D. Domitila sorria. Aquilo era o seu desejo mais torturante. O sonho que a embalava noite e dia.
A mais alta, a mais ferretoante ambição de sua existência. Casar-se com D. Pedro... Ser a
Imperatriz! Ser a mulher suprema! D. Domitila fitou com olhos lampejantes o seu terrível amigo:
- Vamos lá, Chalaça! Não graceje... Falemos com calma. Responda-me lealmente: você acha
viável esse casamento? Vamos, diga tudo o que você pensa. Seja meu amigo! Ajude-me a
raciocinar.
O Chalaça chegou-se rente à favorita. E sereno, com segurança e lógica, aquela alma
endemoninhada começou a dizer o que pensava.
- O Imperador precisa casar-se. Isto é indiscutível. E o Caldeira Brant está por Londres à
cata da noiva. Mas aquilo vai ser uma complicação dos diabos.
- Porquê?
- Não é coisa simples, não, fisgar uma noiva para D. Pedro. Ao contrário! É tarefa muito
melindrosa. Aquelas princesinhas da Europa não querem saber da América. Isto por aqui, é um
fim de mundo. É um desterro. E, além do mais, pelos gabinetes de lá, se espalhou a notícia
de que no Rio uma senhora muito perigosa por quem D. Pedro faz todas as maluquices do
mundo
D. Domitila sorria.
- Não sorria, não, Sra. Marquesa! Não sorria! A verdade é esta: o espantalho das Cortes da
Europa é a Sra. Marquesa de Santos. D. Pedro já teve duas desilusões. E duas desilusões bem
amargas. Na terceira, como Vossa Excelência está vendo aqui, D. Pedro explode. E explode,
e grita, e manda tudo ás favas, e faz um estardalhaço dos diabos! Ora...
Aqui o Chalaça parou. Aquele seu velho sorrisozinho diabólico espicaçante, aflorou-lhe
subitamente ao lábio:
- Ora, nesse momento, na ocasião oportuna, é alguém, um íntimo, um amigo de todos os
dias, assoprar a idéia. É instigar o Imperador. E dar um empurrâozinho. Zás, nó cego...
D. Domitila ouvia embalada. Um clarão de júbilo incendiava-lhe as pupilas. O Chalaça dizia a
pura verdade. Nada mais certo do que aquilo que ele dizia. D. Domitila tomou as mãos do
valido. E com alacridade:
- E esse intimo, esse amigo privado, esse que irá instigar o Imperador, esse será você, meu
Chalaça! Será você, meu querido amigo, meu grande amigo! Não é verdade?
- Naturalmente, Sra. Marquesa, dizia o truão, alagado de contentamento. Naturalmente...
Nisto, fitando a favorita com olhar súplice:
- E que hei eu de merecer, Sra. Marquesa, por essa dedicação?
A Marquesa encarou-o. Que estranha fisionomia a do Chalaça. Que havia nela de tão esquisito?
D. Domitila, surpresa, recuou um pouco. Mas logo, com um sorriso, blandiciosa e grata:
- Você terá todas as recompensas, Chalaça! Tudo que você quiser! Tudo! Você será Marquês.
Afianço que você será Marquês! E Ministro! Primeiro-Ministro do Império! Hein, Chalaça? Você,
com o espadim dourado, a presidir o Conselho... Ou então, se você preferir, será Embaixador.
Embaixador em Paris! Que me diz, Chalaça? Olhe só para isto: o Sr. Marquês Gomes da Silva é
o nosso Embaixador em Paris! Que tal?
- Não, Sra. Marquesa. Eu não quero nada disso.
D. Domitila olhou-o com espanto.
- Mas então que quer você, Chalaça?
O Chalaça não respondeu. Estava confuso. Um embaraço estranho tolhia-o.
- Mas então que quer você, Chalaça?
E o Chalaça, aquele tagarela, aquele que não tinha papas na língua, sentiu-se ali perreado,
mudo.
- Vamos, Chalaça! Que é que você deseja? Vamos! Eu farei tudo que você quiser!... Tudo.
- Tudo?
- Tudo!
Havia na voz da favorita tal expressão, tal firmeza, que o truão se ergueu de brusco. E,
desabafando o que lhe ia na alma, jorraram-lhe estas palavras como labaredas:
- Não, Sra. D. Domitila, não! Eu não quero honras nem posições. A minha ambição, a minha
ânsia, o meu desejo mais louco, desejo que me acompanha dia e noite, é unicamente... o,
Sra. Marquesa! Vossa Excelência não me acredita. Não pode acreditar. Mas que hei de fazer? É
a minha loucura! A minha loucura!
Eis que, tomado de súbito atrevimento, o Chalaça enlaça violentamente a Sra. Marquesa de
Santos. E buscando-lhe os lábios, num ímpeto de selvagem, brada como um louco:
- É que eu a quero, Sra. Marquesa! É que eu a quero! Eu a quero!
Cego, naquele desvario, o valido, com a alma desordenada, tenta colar os lábios queimantes,
lábios que ardiam em febre, à boca úmida e vermelha da favorita.
D. Domitila, espavorida, debate-se com fúria:
- Oh, miserável! Miserável!
O Chalaça, diante da resistência, tenta derrubá-la sobre o de canapé veludo. Agarra-a com
rudeza.
- Arrede-se! grita a Marquesa, bracejando. Arrede-se, atrevido!
E com todas as forças dos seus pulmões, num uivo de cólera, a favorita brada pelo criado.
Francisco Gomes, caindo em si, afasta-se rápido. O criado aparece:
- Vossa Excelência chamou?
- Mande atrelar a sege. É para levar o sr. Comendador.
O criado parte. D. Domitila, pálida e esgazeada, os seios arfantes, vira-se com grande
sobranceria para o atrevido:
- Queira retirar-se!
O Chalaça fita-a com um olhar de ódio. Todo ele, agora, é amor-próprio ferido. Surda cólera
espumeja dentro daquela alma despeitada. E num assomo teatral:
- Vossa Excelência acaba de perder a coroa do Brasil!
- Não seja pretensioso, atalha D. Domitila, com orgulho; eu acabo, neste momento, de conhecer
o homem mais indigno da Corte!
- Engana-se! Vossa Excelência, neste momento, acaba de conhecer o seu inimigo mais
rancoroso! E por isso, Sra. Marquesa, eu juro-lhe - e juro-lhe pela minha honra - que Vossa
Excelência há de se arrepender!
- Veremos!
O criado entra. E perfilado, seco, da porta do gabinete:
- A sege está atrelada.
O Chalaça, então, com vasta reverência, um pérfido sorriso no lábio, curva-se gentilmente
diante da Marquesa. E despede-se com o mais fidalgo cavalheirismo:
- Até amanhã, no banquete, Sra. Marquesa!
E saiu com o coração apunhalado.
O BANQUETE
O Chalaça, erguendo o reposteiro de veludo, penetrou familiarmente nos aposentos do
Imperador.
- São sete horas, Majestade. Todos os convidados já chegaram.
- Todos?
- O único que faltava era o Sr. Visconde do Rio Seco. E esse acaba de entrar.
- Diabo, exclamou D. Pedro. Eu hoje me sinto mal. Estou com os nervos revirados. Tenho
qualquer coisa por dentro que anda me azucrinando. E ter ainda que aturar um banquete!
Que cacetada...
E depois de passear pelo aposento, irascível, com sinais evidentes de mau humor:
- Foi o Mareschal quem me deixou neste estado de irritação em que estou...
- ?
- Sim, o Barão. Que sujeito impertinente! Esteve aqui, falou como um papagaio, comentou o
meu casamento, elogiou a diplomacia austríaca, mil coisas. Terminou por censurar a vinda da
Marquesa de Santos ao banquete de hoje...
Estacando diante do Chalaça, cruzando os braços, D. Pedro exclamou:
- Ora veja isto: censurar a vinda da Marquesa ao Paço!
O Chalaça abaixou os olhos. E, com voz arrastada, com modos de quem se também na
obrigação de falar, ponderou com reserva:
- De fato, Sr. D. Pedro, esse convite à Marquesa está dando o que falar à Corte. Escandalizou a
toda a gente.
- Oh, fez D. Pedro, embasbacado. Que diz você? Escandalizou a toda a gente? Ora essa! E por
quê, Chalaça?
Pérfido, como se contasse a coisa mais corriqueira da Corte, Francisco Gomes explicou:
- E que corre pela cidade, de boca em boca, abertamente, o caso da Marquesa com o
Moraizinho...
D. Pedro olhou o valido. Olhou-o estuporado. Aquilo, dito assim tão banalmente, como coisa tão
sabida, chocou-o rudissimamente.
- O caso da Marquesa com o Moraizinho?
- Vossa Majestade ainda não sabe?
D. Pedro, cada vez mais surpreso, fitava o truão. O Chalaça, com ingênua naturalidade,
desenrolou então, matreiramente, o que já vinha tão bem guardado debaixo da língua:
- Pois andam num grande namoro! Parece que a Sra. Marquesa depois que Vossa Majestade a
abandonou, procura esquecer as suas mágoas nos braços do Tenente. E não pense Vossa
Majestade que isto seja falatório do povo. Não. Eu, eu que aqui estou a falar a Vossa Majestade,
eu vi, em pessoa, certa cena escabrosa...
- Você?
- Vi com estes olhos. Foi naquela noite de tropelias em que o Moraizinho fugiu com a Marquesa
à garupa. Pois bem: naquela noite, por mero acaso, topei com os dois, em pleno Paço,
abraçados, a se beijarem...
D. Pedro escutava a fremir. Aquela tremenda revelação atordoara-o. Os seus nervos tremiam
corno um cordame de nau onde estrugisse o vento. Mas o Chalaça, alma diabólica, lá continuou,
insidiosamente, a distilar veneno no peito do namorado:
- Ainda ontem, aqui no Paço, houve grande balbúrdia. O João Carlota e o Plácido andavam num
corre-corre, a vasculhar os móveis e a revirar os tapetes. Que é que podia ser aquilo? Fui
indagar do caso. E soube que o Tenente Morais havia perdido uma medalha de ouro, que ele
guardava como lembrança muito preciosa. Eis que hoje, pela manhã, o João Carlota trouxe,
para eu admirar, a medalha do Moraizinho. Vossa Majestade quer ver?
O Chalaça apresentou a D. Pedro a graciosa prenda. O Imperador mirou-a. Havia, na parte de
cima, um botão pequenino. D. Pedro apertou-o. A medalha abriu-se. Dentro, com indizível
espanto, D. Pedro contempla o retrato da Marquesa circundado por um trancelim de cabelos. Os
cabelos eram negríssimos... (42)
O Imperador não disse palavra. Passeou uns minutos pelo aposento, agitado, com grande
cólera reconcentrada. Depois, sem comentários, seco e áspero, tornou-se brusco para o
Chalaça:
- Bem... Vamos ao banquete!
E saiu enervado, o olhar duro, fundo despeito remordendo-lhe o coração. fora, na sala
encarnada, a refulgir de candelabros profusos, zumbia o vozeio amável dos convidados.
Palrava-se e ria-se. Quando D. Pedro, bonacheirão e democrático, assomou à entrada do salão,
houve um relâmpago de silêncio. Todos levantaram-se. Cada um, com o melhor sorriso,
curvando-se, veio beijar a mão que o Imperador estendia. De novo, pelo salão dourado,
recomeçou o zumzum dos cortesãos. Que ambiente encantador! As senhoras deslumbravam.
Os colos cintilavam de jóias. As sedas farfalhavam rumorosamente. Havia, entrecruzando-se,
fardões bordeaux e casacas de riço claro. Eis que, em meio ao bulício, o João Pinto anunciou:
- O banquete está servido!
Correu um arrepio pela sala. As damas fitavam avidamente o Imperador. Quem iria ser o par de
Sua Majestade? O Sr. D. Pedro, de pé, alvo de todas as curiosidades, circunvagou, por um
instante, o olhar pela assembléia. E Sua Majestade, atravessando o salão, curvou-se, com
surpresa geral, diante da Sra.
Baronesa de Sorocaba:
- Baronesa, o seu braço...
Solene, com as suas grã-cruzes a fuzilarem no peito, o Monarca, de braços dados com a Sra.
Baronesa, enveredou para a sala do banquete.
A Marquesa de Santos, ao ver aquilo, mordeu o lábio.
Cada cavalheiro, em seguida, ofereceu o braço à sua dama, assim, formando extensa cauda, o
formoso cortejo seguiu os passos de Sua Majestade. D. Pedro, a quem um secreto aguilhão
espicaçava, pode então, da cabeceira da mesa, contemplar os pares que chegavam: e logo,
entre os primeiros, o Imperador avistou a Sra. Marquesa de Santos, a refulgir de pedrarias,
soberba e magnífica, de braços dados com o Tenente Morais. D. Pedro ao ver aquilo, mordeu
lábio...
O Chalaça, ao longe, sorria imperceptivelmente.
Todos sentaram-se. As luzes dos candelabros, tombando aos jorros, faziam chispar os cristais
lavrados de Veneza. A mesa trescalava rosas. Um clarão de júbilo faiscava no olhar de todos os
comensais. A orquestra, a um gesto de João Pinto, prorrompeu numa valsa lânguida. Os criados
serviram a sopa.
De repente, por mero acaso, D. Pedro, que estava profunda mente casmurro, ergueu um olhar
entediado á parede fronteiriça. Grande e ruiva, na moldura dourada dum quadro, D. Leopoldina,
do alto da parede, com leve sorriso, assistia ao festim rumoroso. Ao dar, porém, com aquele
olhar fixo, perfurante, com aquele retrato que o fitava impressionadoramente, o Imperador sentiu
correr-lhe pelo corpo gélido calafrio. Os seus nervos arrepiaram-se. E D. Pedro, gelado, desviou
os olhos do retrato.
No entanto, na mesa, todos sorriam. Ia um confuso vozeio. Fidalga cordialidade insinuara-se
pela sala.
Os criados principiaram a servir o peixe. D. Pedro, sem querer, estranhadamente, movido por
irresistível fascinação, tornou a levantar os olhos para a parede fronteiriça. D. Leopoldina, no
alto, grande e ruiva, com o seu leve sorriso, estava a contemplar a ruidosidade do banquete.
Um suor frio começou a borbulhar na fronte do Imperador. E Sua Majestade, sem saber por que,
inexplicavelmente, pôs-se a recordar que ali naquela mesma sala, que era a Sala do Docel, fora
armada a peça mortuária... Fora ali que se dera o último beija-mão... Fora ali que estivera
exposto o cadáver da Imperatriz... E bruscamente, sem razão, um tremor convulsivo apoderou-
se de Sua Majestade. As têmporas latejaram-lhe. Baça nuvem passou-lhe pelos olhos. Esquisita
tonteira enfumaçou-lhe o cérebro.
O Moraizinho, que sorria prazenteiro para a Sra. Marquesa de Santos, parou subitamente de
sorrir. E com o garfo suspenso:
- Sra. Marquesa! Repare como o Imperador está pálido...
Realmente! D. Pedro estava cadavérico, olheiras escavadas, fúnebre. Havia qualquer coisa de
anormal em Sua Majestade. D. Domitila, chocada, fitou aquela lividez de morte. Nisto, com
assombro de toda a gente, D. Pedro levantou-se da mesa. Levantou-se, olhou os convivas,
retirou-se da sala a passos largos. Foi um choque! O riso morreu no lábio de todos. O banquete
gelou. Que foi? Que aconteceu? Ninguém podia explicar. Passou-se um minuto de cruel
expectativa E outro. E mais outro. E cinco. E dez... Então, num assomo, a Marquesa de Santos,
audaciosamente, ergueu-se da mesa:
- Vou ver o que aconteceu à Sua Majestade!
E desassombrada, num farfalho de sedas caras, embarafustou-se pelo Paço adentro. Correu
todos os salões. Nada de D. Pedro! A Marquesa atreveu-se até aos aposentos particulares de
Sua Majestade.
Aí, muito curiosa, ergueu o reposteiro. Estupefata. sem compreender o que via, a Sra. Marquesa
topou o Imperador, de joelhos, chorando e soluçando, a beijar convulsivamente o retrato de D.
Leopoldina!
- Majestade!
D. Pedro virou-se brusco. E ao dar com a Marquesa, aquele homem absurdo, tomado de
repentina cólera, pôs-se a gritar como um louco:
- Saia, Sra. Marquesa! Saia daqui! Saia!
E agarrando o retrato da defunta, numa fúria de alucinado, beijava-o carinhosamente,
perdidamente, com as lágrimas a rebentarem-lhe dos olhos.
E eis que D. Pedro, num baque bruto, rola de súbito pelo chão.
D. Domitila solta um grito de espanto. Todos os convivas correm atônitos a ver o que é. D.
Pedro, estendido no soalho, rijo e duro, o olhar escancarado, a boca espumando, retorcida, jaz
imóvel como um cadáver. Que foi?
D. Francisca de Castelo Branco, a velha açafata, ao ver Sua Majestade assim, brada
imediatamente para o Chalaça:
- O médico! Depressa... É o ataque!
Era, de fato, um ataque de epilepsia.
A RUPTURA
Foram as cartas de Barbacena, chegadas pelo último paquete, que conseguiram afinal lançar
um clarão de júbilo na alma neurastenizada do Imperador. Recluso, os nervos em desordem,
Sua Majestade, desde aquela triste noite do banquete, passou larga enfiada de dias enjaulado
nos seus aposentos. Nem o andamento das coisas públicas, nem os negócios alarmantes de
Portugal, nem as preocupações com o casamento da filha Maria da Glória, nada disso, que era
tão grave no momento, pôde empolgar o espírito doente daquele pobre monarca, cm cuja alma
tombara, como cerração espessa, imenso tédio. Mas as boas noticias da Europa, recebidas
naquela tarde, adoçaram e iluminaram o coração magoado de D Pedro. Mal o Imperador
acabou de ler as cartas reservadas de Barbacena mandou incontinenti buscar á sua presença o
amigo e íntimo. O Chalaça que ansiava por ver o Amo, correu pressurosamente. D. Pedro foi
logo ao encontro do confidente com muitas exclamações:
- Notícias da Europa, Chalaça! Notícias palpitantes!
- Noiva, Majestade?
- Noiva, Chalaça! E noiva linda, e moça e sangue real dos melhores! E a Princesa Mariana
Ricarda, filha do Rei da Sardenha. Tudo parece ajeitado. O Imperador da Áustria, juntamente
com o Metternich, está ultimando as negociações. E caso liquidado! A coisa estoura já. Você
quer ver? Leia as cartas do Barbacena...
D. Pedro passou às mãos do Chalaça uma das missivas confidenciais. Barbacena, a quem o
ofício diplomático obrigava ser cauteloso e comedido, lançava, mesmo assim, estas grandes e
alvissareiras coisas:
Senhor! Tive a honra de participar a Vossa Majestade Imperial, pelo paquete do Brasil e
Buenos-Aires, a minha chegada a Falmouth em 20 do corrente. E aproveito o paquete de hoje
para levar ao conhecimento de Vossa Majestade Imperial o que foi feito até esta data.
Em primeiro lugar felicitarei a Vossa Majestade por não se verificar o seu casamento com uma
princesa da Baviera, pois as princesas desta Casa parecem estéreis ou pelo menos as duas
casadas o têm sido, o que induz a supor ser mal de família. A Imperatriz da Áustria tomou tanto
a peito este negócio, que, sendo inseparável do Imperador, foi ela, entretanto, por esse motivo,
sozinha, a Munich; porém, a Princesa mais velha está justa a casar. e a segunda, que tem
quinze anos, parece que o seu coração está penhorado de maneira a não convir.
Em conseqüência desta resposta. lembrou-se o Imperador da Áustria da Princesa Mariana
Ricarda, filha do Rei da Sardenha, sobrinha do atual, e também sobrinha de Sua Majestade o
Imperador da Áustria: tem vinte e quatro anos, mui gentil figura, e costumes exemplares: reúne
quanto Vossa Majestade deseja!
Não cabia em tempo vir a resposta da Sardenha, quando Metternich escreveu a Estherhazy
(44), mas diz no seu ofício QUE TEM TODA A ESPERANÇA DE CONSEGUIR O DESEJADO
CASAMENTO.
Faltam diversos diplomas de que mando nota ao Comendador Francisco Gomes; mas não creio
que isso atrase a conclusão das negociações, uma vez que o Imperador da Áustria se mostra
tão empenhado em satisfazer os desejos de Vossa Majestade. Deus guarde a Vossa Majestade
Imperial por longos anos, com perfeitíssima saúde, como todos desejam e principalmente quem,
como eu, é com o mais profundo respeito.
De V. M. I.
Marquês de Barbacena (45).
O Chalaça, ao terminar a leitura, prorrompeu também em exclamações otimistas. Não restava a
menor dúvida! Era negócio líquido, liquidíssimo. No próximo paquete, certamente, arrebentava
aí a notícia do casamento. D. Pedro podia se considerar noivo. Estava noivo: era coisa decidida!
- É o que me parece, opinava D. Pedro, alegríssimo. Tudo leva a crer, Chalaça, que o meu
casamento sai já. Até o mano Miguel, falando ao Barbacena, é dessa opinião. Veja o tópico
desta outra carta...
E D Pedro, risonho e alvoroçado, apontava o tópico ao valido:
Falando-lhe sobre o principal objeto desta minha comissão, disse-me D. Miguel que não tinha a
menor dúvida sobre o SIM definitivo da Sardenha. (46)
- Está vendo, Chalaça?
- Ótimo, exclamava o áulico. Agora sim, Majestade! Agora o casamento sai. Com Metternich e o
Imperador da Áustria a conduzirem o barco, não perigo de fracasso. E Vossa Majestade o
que acha da noiva?
- Do meu agrado, respondeu D. Pedro exultante. Do meu inteiro agrado. A escolha foi
felicíssima...
E D. Pedro, um sorriso luminoso no lábio, batendo amistosamente no ombro do amigo,
exclamava com efusão:
- Pois bem, Chalaça, vamos ser previdentes: é preciso enfeitar o Paço! É preciso renovar as
velharias. Temos que receber a nova Imperatriz com todas as honras. Quero que haja grandes
festas, e luminárias, e baile, e beija-mão, e Te-Deum, e espetáculo de gala, e tudo que for
possível.
Francisco Gomes ouvia, a sorrir, aqueles projetos entusiásticos. Diabólico. acirrado por
insopitâvel desejo de vingança, o despeitado Comendador não perdeu o ensejo para mostrar as
garras. Por isso, diante daqueles planos, o Chalaça tomou uns ares graves. E ponderou
sisudamente:
- Festas, bailes. luminárias, Te-Deum, tudo isso se fará com grande pompa. Nada mais fácil.
Mas o principal não é isso...
- Como?
- Para mim, Majestade, o principal, o urgente, é que Vossa Majestade tome uma providência
enérgica, providência violenta, é verdade, mas absolutamente necessária...
- Providência enérgica?
- Sim, Majestade. E é isto: afastar a Marquesa da Corte! Mandar embora a Domitila, Majestade!
Afinal de contas, pensando bem, Vossa Majestade de concordar que será profundamente
desagradável à nova Imperatriz dar de encontro com a Marquesa no Paço. É uma indelicadeza.
É indelicadeza que se deve poupar à noiva de Vossa Majestade. É, portanto, necessário,
absolutamente necessário, fazer a Marquesa ir-se embora da Corte.
D. Pedro concordava. Era, realmente, necessário. Não ficava bem. Mas... E havia sempre, em
Sua Majestade, certa dubiedade, certas restrições. Não tinha coragem de levar avante a
medida. E D. Pedro discutia. E ponderava. Nisto, suspendendo o reposteiro, João Carlota
anunciou:
- O Sr. Barão de Mareschal!
- O Barão? exclamou D. Pedro, num alvoroço. Que entre, que entre!
E D. Pedro, em pessoa, foi receber o diplomata.
- Viva, Barão!
Mareschal beijou a mão de D. Pedro. E exclamando com alacridade:
- Quer me parecer que Vossa Majestade recebeu notícias boas'
- Recebi... Recebi... E Vossa Senhoria, Barão?
Também eu! Notícias excelentes. Tanto do meu Imperador como de Barbacena.
- Bravo! E o que diz Francisco Leopoldo?
- Diz que as negociações caminham muito bem. Tudo vai às maravilhas. Barbacena, por sua
vez, conta certo com o êxito da sua missão. E comunicou-me que Metternich, até o próprio
Metternich apesar das suas reservas, espera o mais completo resultado. Veja Vossa Majestade
esta carta.
D. Pedro leu a carta de Barbacena a Mareschal. A carta dizia coisas destas:
Meu querido barão e amigo do coração. Cheguei a Falmouth no dia 20 do corrente e fácil é de
imaginar qual seria a minha aflição encontrando a notícia da morte do grande homem Mr
Canning, que me honrava com seu favor e amizade. Nunca o Imperador, meu Amo, esteve em
tão alta consideração, e afeto, no espírito de seu augusto sogro, como presentemente está. As
carta de um verdadeiro filho produziram o desejado efeito e suposto não esteja de todo ultimado
o ajuste com a Sardenha, diz o príncipe de Metternich, QUE ESPERA O MAIS FELIZ
RESULTADO. Em suma, espero hoje, mais do que nunca, desempenhar a minha comissão
muito a contento do meu Amo.
Poderei, no próximo paquete, adiantar mais algumas notícias.
Desejo a Vossa Excelência a melhor saúde e sou com a maior consideração e afeto.
De Vossa Excelência amigo do coração e obrigadíssimo criado
Marquês de Barbacena.
D. Pedro lia aquelas boas novas com grande gosto. E exclamava:
- Não resta dúvida! É mesmo coisa decidida.
Mareschal aproveitou-se daquele bom humor para vir, mais uma vez ainda, com a sua velha
cantilena:
- Vossa Majestade permita-me uma palavra de amigo. Creia Vossa Majestade que eu falo
visando apenas uma solução feliz para este negócio de casamento. A mim me parece que, para
melhor impressionar as Cortes da Europa, para solidificar ainda mais reputação de Vossa
Majestade, seria de bom alvitre, de muito boa prudência, que Vossa Majestade fizesse a
senhora Marquesa de Santos retirar-se em tempo para a Província. Não julga Vossa Majestade
que isso seja uma medida de alcance?
O Chalaça, desta vez, correu em socorro de Mareschal. E muito judiciosamente, com muitos e
bons argumentos, reforçava as ponderações do diplomata.
- A estadia desta senhora aqui na Corte, não dúvida, tem sido o maior empecilho para o
arranjo da noiva.
- É a pura verdade! concordava Mareschal. É a pura verdade!
- É preciso, para o bom êxito das negociações, que a Marquesa se vá embora. É preciso.
E repetia, com insistência:
- É preciso, Majestade...
- Eu também penso como o Comendador, atalhava Mareschal; é medida imprescindível.
Imprescindível e urgente.
D. Pedro, porém, apesar daquele cerrado assédio, hesitava. Sua Majestade, o apaixonado de
ontem, não se sentia com ânimo suficiente para tomar uma deliberação assim violenta. E
titubeava...
- Eu vou pensar! Não é negócio muito simples, não, isso de se mandar embora uma mulher,
como essa, que se meteu na vida da gente. Não é assim tão fácil! É necessário muita cautela.
muito jeito, senão, meus amigos, rompe pela Corte um escândalo dos diabos. É preciso
cautela...
E não havia meio do Imperador se resolver. O Chalaça, porém, que persistia na idéia, tentou
continuar a investida. Mas o João Carlota, erguendo subitamente o reposteiro, anunciou ao
Imperador:
- O Sr. Barão de Sorocaba está na antecâmara. E pede, com insistência, para falar à Vossa
Majestade. Diz o Barão que é negócio urgentíssimo.
Mareschal, ao ouvir o anúncio, levantou-se. E despediu-se com jovialidade:
- Peço licença para me retirar. Vim hoje. por um instante, para cumprimentar à Vossa
Majestade. Quis ser o primeiro a felicitar o Imperador D. Pedro I pelo seu noivado com a
Princesa Mariana Ricarda!
E depois de beijar a mão do Imperador, saiu feliz, orgulhoso, por constatar a vitória da
diplomacia austríaca.
* * *
O Barão de Sorocaba entrou. Tinha o aspecto excitado. D. Pedro e o Chalaça olharam-no com
surpresa.
E o Barão:
- Eu venho pedir justiça, Majestade!
- Justiça? acudiu o Imperador; mas que há, Barão?
Boaventura Delfim Pereira desabafou a sua angústia:
- Que há? Um caso grave, Majestade: a minha mulher acaba de ser vítima de uma emboscada!
- A Baronesa de Sorocaba?
- Exatamente, Majestade. Não sei que criminoso, não sei que alma de facínora, disparou contra
a Baronesa, à traição, um tiro de pistola. Vossa Majestade bem pode imaginar a minha
indignação: uma tentativa de assassínio contra minha mulher!
- Mas como, indagava D. Pedro, como? Um atentado contra Baronesa? Um tiro? Uma
emboscada? Explique melhor, Barão!
O Barão desenrolou perante o Imperador o sucesso:
- Hoje, como Vossa Majestade sabe, houve a procissão Nossa Senhora da Glória. A Baronesa,
como em todos os anos, foi assistir á festa. Saiu de sege. Tudo normal pelo caminho. Ao galgar
o morro, porém, logo à subida da rampa, sem ninguém saber como nem por que, partiu de
súbito um tiro contra a sege. A bala espatifou vidraças. Chegou a ferir o boleeiro. E minha
mulher, que foi a alvejada, escapou por milagre.
D. Pedro e o Chalaça entreolharam-se. Havia no olhar de ambos uma chispa eloqüente. A
mesma idéia assaltou a ambos. O Barão continuou:
- Sair uma pessoa à rua, ir passando sossegadamente na sua sege, e de repente, sem motivo,
um tiro de pistola! Um atentado: Isto é de indignar!
D. Pedro ordenou ao Chalaça:
- Vá chamar o Capitão da Guarda.
E dirigindo-se ao Barão:
- Fique tranqüilo, Barão. Eu vou punir com toda a energia, esse atentado contra a vida da Sra.
Baronesa. Vá, de minha parte, ao Intendente de Polícia. Diga-lhe que instaure imediatamente o
processo. Diga-lhe mais que eu quero - ouviu bem, senhor Barão? - eu quero esse crime
deslindado em todos os seus detalhes.
O Chalaça tornou a entrar. Vinha seguido pelo Capitão da Guarda.
- Capitão! Siga o Barão de Sorocaba até a Intendência de Polícia. E determine ao
Desembargador Aragão, de minha parte, que cumpra rigorosamente as ordens que acabo de
transmitir ao Barão.
O Capitão, perfilado, ouviu o imperador em continência. E Barão, agradecido, saiu á cata do
intendente de Polícia.
Quando caiu o reposteiro, a sós os dois, D. Pedro cruzou o braços diante do Chalaça:
- Que diz você de tudo isto?
- Oh, exclamou o favorito, sem vacilar: foi a Domitila!
D. Pedro, que tinha a mesma convicção, concordou imediata mente:
- Foi a Domitila!
E num daqueles seus impulsos de arrebatado, D. Pedro explodiu:
- Não resta dúvida, Chalaça: é preciso acabar com a Domitila E acabar com isto já, antes que
estoure por aí novo escândalo. A coisa chegou ao extremo. É preciso pôr um ponto final a isto.
E agitado, a dar largas passadas pelo aposento:
- Não dúvida: a Domitila vai-se embora! É negócio resolvido. Não mais protelação. A
Marquesa, dentro de dois dias, sairá da Corte.
Abancando-se á mesa dos despachos, carrancudo e azedo, Sua Majestade começou a escrever
uma carta à Sra. D. Domitila.
Era a ruptura.
O BILHETE FINAL
A Sra. Marquesa de Santos amanhecera com a alma enevoada. Tudo nela era agitação e
sobressalto. Os olhos, vermelhos e febrentos, revelavam as vigílias que a atormentavam; e os
seus modos, irascíveis e irrequietos, a tempestade que lhe desmantelara os nervos. Sentada no
seu gabinete, indiferente à alegria daquela fresca man de sol, que cascateava ouro sobre as
árvores do seu pomar, a Sra. Marquesa repassava, com azedume, os últimos acontecimentos. A
cena com o Chalaça... O banquete... A Baronesa de Sorocaba... O ataque epiléptico... A
reclusão de D. Pedro... E mergulhada em cismas, numa hipersensibilidade mórbida, D. Domitila
sentiu violento estremeção, quando o criado, á porta da entrada, anunciou com todas as letras:
- O Sr. Comendador Francisco Gomes da Silva!
Depois da noite fatal, em que se desenrolara entre ambos aquela cena vertiginosa, nunca mais
havia a Sra. Marquesa trocado palavra com o valido. Inimigos rancorosos, começaram ambos,
desde esse dia, a se odiar de morte. E por isso, naquela manhã, a súbita aparição do Chalaça
no palacete da Rua Nova, embasbacara a Sra. Marquesa de Santos. No entanto, fingindo uma
calma que lhe custava, tornou-se tranqüila para o criado:
- Que entre!
Francisco Gomes, muito respeitoso, um sorriso cortesão no lábio, entrou polidamente no
gabinete da favorita. D. Domitila, porém, desdenhosa e rude, sem se dignar oferecer uma
cadeira, perguntou com secura:
- Que é que você quer?
O Chalaça, risonho, afetando a cortesanice mais afável, curvou-se diante da ríspida senhora:
- Sua Majestade mandou-me aqui para entregar esta carta a Vossa Excelência.
E passou às mãos da Marquesa a carta do Imperador.
D. Domitila, apesar da ira que lhe espumejava no coração, ainda não tivera ensejo de narrar a
D. Pedro o atrevimento do Chalaça. O dia seguinte àquela cena incrível, fora o dia do banquete.
E depois daquele banquete, tão sinistro egubre, D. Pedro, recolhido aos seus aposentos, não
recebera a ninguém. Tornara-se assim impossível revelar ao Imperador as audácias do seu
valido. Naquele dia, portanto, foi com ânsia que a paulista rasgou o envelope da carta
inesperada. Começou a ler...
O Chalaça, de pé, ia contemplando, diabolicamente, as emoções que se pintavam no rosto da
Sra. Marquesa. D. Domitila ao ler, empalideceu horrivelmente. É que D. Pedro, com duro
autoritarismo, determinava à Sra. Marquesa de Santos - ordem tremenda! - que abandonasse
imediatamente a Corte. A carta, entre outras coisas, dizia isto:
urgente que vosmecê, debaixo de pretexto de saúde. peça licença para ir estar em outra
Província do Império. a fim de Eu poder completar o meu casamento, ao qual de frente se opõe
a sua residência nesta Corte. De onde se torna indispensável que vosmecê saia imediatamente
da Corte. O caso é muito sério. E esta minha comunicação deve ser tomada pela Marquesa
como um aviso que lhe convém aproveitar. E fique certa que esta é a minha derradeira
resolução. Assim como a derradeira carta que lhe escrevo, a não me responder com aquela
obediência e respeito, que lhe cumpre como minha súdita, e, principalmente, como minha
criada".(47)
D. Domitila, pálida, mordia o lábio, despeitadíssima. O Chalaça, venturoso, saboreava aquele
triunfo imenso. Nunca, em toda a sua vida, o truão imaginaria alcançar, sobre a deusa
onipotente, vitória assim tão esmagadora. Mas D. Domitila, sempre sobranceira, dominando os
nervos, contemplou o valido com grande soberba:
- A carta está entregue. Pode retirar-se.
O Chalaça, antes de partir, quis ainda remoer com desapiedade a alma atribulada da favorita. E
então, fitando estranhamente D. Domitila, com a voz muito intencional, muito maldosa:
- O Senhor Desembargador Aragão, Intendente de Polícia, descobriu quem mandou atentar
contra a vida da Baronesa de Sorocaba. É bom que Vossa Excelência, para seu governo, saiba
disso.
A Marquesa empalideceu ainda mais. Contudo, sopitando ainda a nova emoção que a sacudia,
respondeu com serenidade:
- Está bem. Pode retirar-se!
O Chalaça despediu-se com as mais rasgadas mesuras.
E mal o Secretário Privado desapareceu sob o reposteiro, a atarantada senhora gritava
ansiadamente para o criado:
- Mande atrelar a sege!
D. Domitila correu ao toucador. Instantes depois, com um farfalho de sedas, a elegantíssima
paulista mandava tocar a toda brida para São Cristóvão. Ah, no seu peito, fervilhando e
espumando, rugiam ódios insopitâveis.
Era preciso, absolutamente preciso, que D. Pedro soubesse de tudo. Que soubesse do
atrevimento daquele Dou Juan. Que soubesse, bem ao certo, quem era aquela alma negra de
intrigante. Ah, com que paixão, com que volúpia, D. Domitila haveria então de esmagar o
desaforado truão, pisá-lo debaixo dos pés, arrasá-lo, moê-lo, como quem mói uma víbora
peçonhenta. E ia revolvendo, dentro do peito, planos tremendos de vingança.
Nisto, a sege estacou em frente ao pórtico da Quinta. D. Domitila saltou. Subiu agitadamente as
amplas escadarias. João Carlota, na antecâmara, atendeu-a. E D. Domitila, com modos secos,
ordenou autoritariamente ao criado:
- Preciso falar à Sua Majestade. Vá avisar. Diga que é negócio urgente.
João Carlota, embaraçado, postou-se em meio da porta e respondeu com um arzinho de mofa:
- Impossível, Sra. Marquesa!
- ?!
- Impossível, tornou o criado; tenho ordens terminantes para não admitir a entrada de Vossa
Excelência.
- Ordens terminantes? perguntou a Marquesa com pasmo. E de quem o essas ordens, João
Carlota?
- De Sua Majestade, Sra. Marquesa!
D. Domitila tremeu. O sangue, numa ondada purpúrea, chofrou-lhe no rosto. Houve um instante
de silêncio. E naquele instante, como por milagre, uma idéia súbita acudiu-lhe ao cérebro. Era a
salvação. A Marquesa disse apenas:
- Está bem. Nesse caso, João Carlota, eu quero falar com o Tenente Morais. Vã chamá-lo.
- O Tenente Morais?
João Carlota olhou a Marquesa. E com aquele mesmo ar de mofa, aquele ar escarnecedor:
- Vossa Excelência está muito atrasada! O Tenente foi hoje despedido do Paço.
- Que diz, João Carlota?
- Despedido, sim senhora. E, ao que parece, despachado para São Paulo...
D Domitila arregalou os olhos. Desconcertada, a favorita sentiu que o sangue se lhe escoava
das veias. Aquilo era demais! Arrasada, o coração ferido de despeito, D. Domitila desceu,
aturdida, as escadarias do Paço.
Na sege, a Marquesa de Santos, apesar das iras que a sufocavam compreendeu, numa visão
bem nítida, o descalabro de sua vida. Aquilo era a derrota. Era a expulsão. Era o ponto final.
Ao saltar da sege, no entanto, D. Domitila, com espanto, avistou a caleça do Intendente de
Polícia estacada diante de sua casa. Que seria aquilo?
À O Desembargador Teixeira de Aragão, dentro, sentado no gabinete, o aspecto severo.
esperava pacientemente a Sra. Marquesa. D. Domitila, ao chegar, transmutou-se logo. E gentil,
com encantador sorriso, apressou-se em cumprimentá-lo efusivamente:
- Oh, Sr. Desembargador! Que prazer em vê-lo nesta sua casa. A que devo eu a honra de tão
inesperada visita?
O Intendente de Polícia, com modos frios, o falar cortante, respondeu pausadamente:
- Um caso muito sério, Sra. Marquesa.
E fixando-a bem nos olhos:
- É o caso da tentativa de assassínio da Sra. Baronesa de Sorocaba.
- Ah! E então?
- Então, Sra. Marquesa, pelas provas que eu colhi, ficou bem documentado que foi Vossa
Excelência a mandante desse crime...
- Sr. Desembargador!
- É inútil, Sr. a Marquesa, o querer Vossa Excelência, com esses espantos, teatralizar um caso
perfeitamente provado. O mulato, que disparou os tiros é um apaniguado de Vossa Excelência.
E ele confessou tudo. (48) Portanto, Sra. Marquesa, não discutamos esse ponto. Mas ouça o
que lhe digo. Se Vossa Excelência quiser evitar escândalo, este imenso escândalo que está
trovejando sobre a sua cabeça, trate de cumprir as ordens que Sua Majestade enviou a Vossa
Excelência na carta de hoje: partir para São Paulo, a sua Província, e nunca mais pensar em
voltar à Corte.
D. Domitila ouviu, esmagada, o Intendente de Polícia. Compreendeu, num relance, a
enormidade da sua catástrofe. A sua queda inevitável. Então, com aquela sua habilidade sutil,
com aquela finura de mulher habilidosa, D. Domitila respondeu com sobranceira:
- Essa história do tiro, que Vossa Excelência acaba de contar, é pura fantasia, sr.
Desembargador.
O Intendente quis falar. Mas D. Domitila, com gesto brusco, cortou-lhe a frase:
- Pura fantasia... E é coisa de somenos importância. O principal, o fim único de tudo isto, eu o
compreendo bem, é fazer com que eu me retire da Corte. Sua Majestade vai se casar. E pensa,
com os meus inimigos, que eu, vivendo na Corte, seja capaz de molestá-lo. Fique Sua
Majestade descansado. o serei eu quem perturbar a felicidade do Imperador. Vossa
Excelência pode tranqüilizá-lo. Senhor desembargador! Amanhã, queira afirmá-lo a D. Pedro,
amanhã impreterivelmente, eu parto para São Paulo.
D. Domitila abancou-se à sua secretária. Escreveu meia dúzia de linhas. Depois, com
arrogância e desdém, apresentou o papel ao desembargador:
- Faça o favor de entregar este bilhete a D. Pedro. Leia!
Teixeira de Aragão lançou rapidamente os olhos por aquelas linhas. O bilhete dizia apenas isto:
Minha presença não lhe de mais ser fastidiosa, nem Vossa Majestade casando e nem
deixando de casar: só desta maneira terão sossego os meus inimigos.
Marquesa de Santos.
No outro dia, logo ao alvorecer, certa tropilha de mulas, carregando baús e canastras, trotava
pela estrada de São Paulo. Atrás, montada em rico silhão de veludo, ia uma senhora, formosa e
morena, elegantemente vestida de amazona. Ao lado dela, num alazão, um moço louro, muito
esbelto. Ambos, parados numa curva do caminho, contemplaram por instantes com olhos
longos e mortiços, a cidade que ficava ao longe, lá para as bandas do mar. Era a Sra.
Marquesa
de Santos, a grande paixão de D. Pedro I, que ia, seguida pelo Moraizinho, a caminho do seu
desterro...
AS TÁBUAS QUE LEVOU D. PEDRO...
O Marquês de Barbacena, o neto ilustre daquele ilustre Felisberto Caldeira Brant, contratador de
diamantes e ouro desembarcou no Rio de Janeiro, de volta da sua melindrosa missão
diplomática em princípios de março de 1828. Alto e louro, tipo magnífico de homem, o fidalgo
mineiro ostentara, durante meses pelas mais emproadas Cortes da Europa, a sua bela e
simpática estampa de plenipotenciário. Jorge IV recebera-o com grande acolhimento. Luís XVIII
com muitas e decididas gentilezas. Francisco Leopoldo, com as mais significativas honras e
magnificências. Tratara, em Saint James, com o famoso Wellington. Em Paris, com o inofensivo
Barão de Damas. Em Viena, com o perigosíssimo Metternich. Recebera, no Hotel Crillon, a
Duquesa de Clarence. Conferenciara, mais duma vez, com o Duque de Orleans. Comera, ao
lado do fidalguíssimo Duque de São Carlos, amigo íntimo e confidente do Rei de Espanha, os
jantares opulentos do Barão de Rothschild. Ao deixar a Áustria, como prova de subida honra, o
Imperador Francisco Leopoldo, com as suas próprias mãos, entregou-lhe, numa caixa lavrada, a
Grã-Cruz da Coroa de Ferro. E o grande Metternich, a mais temível cabeça diplomática do
tempo, mimoseou-o, num gesto suntuoso, com um jogo de cristais e de porcelanas, maravilha
de realização, que mandara fabricar, especialmente para o mineiro, na Imperial Fábrica de
Viena.
Ao saltar no Rio, ainda atordoado dos cambaleios da nau, Caldeira Brant dirigiu-se
imediatamente para São Cristóvão. D. Pedro, que ardia em desejos de ouvir o diplomata,
recebeu-o com grande ânsia.
- Vamos, Marquês, ao meu caso. Vossa Excelência não pode calcular a minha irritação. Eu
ando com os nervos sacudidos. Não compreendo, francamente, o fracasso do meu casamento.
É inconcebível! Que é que estão fazendo os meus amigos lá pela Europa? E Metternich? E meu
sogro? Eu tenho a impressão de que ninguém age. Vamos lá, Marquês! Diga-me que há.
Explique-me bem esse negócio...
Barbacena sentia, por aquele escachôo de frases, o quanto de azedume refervia no coração do
Monarca. E sem poder disfarçar, nem atenuar, os insucessos humilhantes das negociações,
se foi, ponto por ponto, a enumerar as catástrofes:
- Em Turim, conforme eu comuniquei a Vossa Majestade, não foi possível o casamento. Não
houve meio de se convencer uma das princesas a vir para o Brasil. E a razão mais
preponderante, ao que me informou Metternich, foi o não quererem as princesas separar-se dos
pais. Aquilo é um apego... É uma adoração...
- Bem, bem, atalhou D. Pedro, isso em Turim. Mas a Baviera? Que é que houve em Munich?
- Obstáculos de toda espécie. A Imperatriz da Áustria, que não se havia nunca separado do
Imperador, foi, em pessoa, persuadir uma das princesas. Mas tudo em vão. A idéia de vir para
tão longe, de vir morar na América, neste fim do mundo, amedrontou as princesas. Que é que
se havia de fazer? No entanto, ao que parece, ahouve ajuda de Deus: as princesas dessa
casa são todas estéreis. Isso, como Vossa Majestade vê, é muito grave.
- É pasmoso, atalhou D. Pedro, com severidade. É pasmoso. Eu não entendo a diplomacia
austríaca.
E depois de dar umas passadas pelo salão:
- Vamos ao resto... E a Sardenha? Vossa Excelência, nas cartas, dava grandes esperanças.
Parecia que o casamento nessa casa estava muito bem encaminhado. Tudo levava a acreditar,
segundo as informações de Vossa Excelência, que as negociações teriam o melhor êxito.
Que é que aconteceu afinal?
- Eu tive, realmente, toda a esperança de ver o casamento ajustado nessa casa. A moça queria.
O Rei queria. A Áustria queria. Como, diante disso, não se ter certeza do triunfo?
- Pois bem, aparteava D. Pedro; e então?
- Então, quando menos se esperava, a Rainha-Mãe surgiu com um rol de exigências. Queria
saber da Constituição do Brasil, da dotação da Imperatriz, da sorte dos filhos em caso de
sucessão, mil coisas. O Marquês de Rezende, chamado especialmente, deu todas as
explicações. E a Rainha-Mãe, com o direito canônico em punho, pôs-se a estudar o caso. Eis
senão quando, em todas as gazetas da Alemanha, rebenta a notícia de que a Sra. Marquesa de
Santos havia caído, novamente, nas boas graças de Vossa Majestade. Foi uma bomba! Por
mais que eu afirmasse por toda a parte, por mais que eu bradasse em todos os gabinetes que
aquilo era falso, tremendamente falso, não houve quem me acreditasse. Foi um verdadeiro
pânico. O fato, porém, é que a princesa da Sardenha, aterrorizada, foi, de joelhos e em
lágrimas, suplicar ao Pai que não a mandasse para o Brasil.
- Inconcebível! bradava D. Pedro indignado. E o que mais me enfurece, Marquês, é ver meu
nome a rolar assim de Corte em Corte! É ver a minha honra, que afinal é também a honra do
Brasil, assim arrastada e envilecida.
- Que quer Vossa Majestade? coisas, continuou Barbacena, que ninguém espera, que
ninguém nunca pediu, mas que afinal acontecem e vêm comprometer seriamente uma pessoa.
Veja Vossa Majestade o caso de Nápoles. É um caso aborrecido, não há dúvida, mas onde não
houve culpa de ninguém. O ministro napolitano em Viena, querendo ser agradável à Áustria,
procurou confidencialmente Metternich - repare Vossa Majestade que leviandade! - e
comunicou-lhe que o Amo, Rei de Nápoles, veria com bons olhos o casamento da filha com
Vossa Majestade. Despachou-se imediatamente um correio para Nápoles a fim de sondar. O
Rei, que não autorizara coisa alguma ao seu Ministro, mandou responder, singelamente, que a
filha não pretendia casar-se.
- Quer isso dizer, exclamou D. Pedro, abrindo os braços, num amplo gesto de desolação; quer
isso dizer que eu fui recusado até por uma princesa que não foi pedida?
- Infelizmente essa é a verdade.
- Incrível! Incrível! dizia D. Pedro pondo a mão na cabeça. Mas onde está a diplomacia da
Áustria? Onde está a finura de Metternich?
E passeava dum lado para outro aturdido.
- O Duque de Orleans, continuou Barbacena, com quem eu estive em Paris, tocou-me, ao de
leve, no casamento de Vossa Majestade. Eu, aproveitando a ocasião, muito discretamente, dei a
entender que seria de grande alcance um novo enlace entre Braganças e Orleans. Mas o
Duque, ouvindo a insinuação atalhou de pronto Mais la Marquise? La Marquise de Santos?
E
ficamos por aí...
- De forma que, meu caro Marques acentuou D Pedro desolado, não foi possível conseguir uma
noiva para o Imperador do Brasil?
- Ainda não foi possível... Mas eu garanto a Vossa Majestade que se de conseguir! Ah, isso
eu garanto. Matternich, ultimamente, lembrou-se de ajustar o casamento de Vossa Majestade
com uma das três princesas de Wurtemberg. É uma casa protestante. Apesar disso, e contra a
minha vontade, fez partir um emissário para . A mais velha respondeu que já estava
comprometida com um príncipe do Norte. Metternich pretendia enviar um outro emissário para
pedir a segunda; e talvez, havendo recusa, a terceira. Mas eu me opus terminantemente. Era
demais! Era menosprezar o decoro de Vossa Majestade. Eis o motivo que determinou o meu
embarque imediato para o Brasil. Eu quis, de viva voz, expor a Vossa Majestade, sem rebuços,
todo o ocorrido.
D. Pedro, com grandes gestos desabalados, prorrompeu numa torrente de exclamações:
- É hediondo seu Barbacena! É dum ridículo espantoso! Afinal de contas, sr. Marquês, que
papel representei eu em toda essa farsa? Pode haver coisa mais humilhante do que tudo
isso?
E exasperado, numa ira justificadíssima, D. Pedro bramia:
- Ora veja um pouco! Veja se isto são desculpas: em Turin não se realizou o casamento porque
as princesas não querem deixar os papás. Em Baviera, porque são estéreis. Em Wurtemberg,
porque são protestantes. Em Sardenha, por causa da Rainha-Mãe. Em poles, por causa da
leviandade do Ministro. Nos Orleans, por causa da Marquesa de Santos. E em toda a parte,
afinal, por um pretexto infantil, absurdo, sem nem cabeça! Mas a verdade, nua e crua, o que
ressalta de toda essa trapalhada, é apenas isto: eu estou sendo ridículo! Profundamente
ridículo! E o que mais admira, sr. Marques, e que nisto tudo não houvesse ninguém,
absolutamente ninguém, que fosse suficientemente hábil para evitar a um Monarca tão
grosseiras humilhações.
Aqui Barbacena pulou. E de pé, gesticulando largo, Caldeira Brant exclamou:
- Vossa Majestade me perdoe! Mas seria injustiça, e clamorosa, responsabilizar os servidores
de Vossa Majestade pelo fracasso dessas negociações. Vossa Majestade não se esqueça que
esse negócio o foi comedido a mim. Nem ao Itabaiana nem ao Rezende, nem ao Pedra
Branca. A nenhum dos Ministros acreditados juntos às Cortes da Europa. Vossa Majestade
incumbiu do seu casamento, exclusivamente, a Francisco Leopoldo. Foi Francisco Leopoldo,
por intermédio de Metternich, quem deu todos os passos. Foi Francisco Leopoldo quem
negociou junto às Cortes. Foi Francisco Leopoldo quem falou aos Reis. Foi Francisco Leopoldo
quem arrastou o nome de Vossa Majestade de déu em déu. E é ele, portanto, unicamente ele, o
responsável por todas as catástrofes.
D. Pedro não respondeu. Barbacena, aproveitando o ensejo. desabafou.
- E sabe Vossa Majestade o que mais? Pois Vossa Majestade escute o que vou revelar. Escute
e pasme: Vossa Majestade está sendo traído!
- Traído?
- Traído, sim!
- ?!!
- Sim, Majestade: traído por Metternich, por Francisco Leopoldo, por toda a Corte de Viena!
D. Pedro arregalou os olhos. Barbacena, sem hesitar, desenrolou tudo:
- Eu nunca pude me conformar com os insucessos de Viena. Nunca! Sempre achei aquilo tudo
estranho, impossível, absurdo. Não havia meio de compreender tantas e tão sucessivas
derrotas. E eu para saber ao certo o que se passava, lancei mão de tudo. Consegui insinuar-me
a muito custo, a poder de diamantes e pérolas, na confiança de uma pessoa mui próxima do
coração de Metternich...(49) Soube então de tudo. A verdade é essa, unicamente essa: A Corte
de Viena opõe-se formalmente a que Vossa Majestade contraia novas núpcias. E se opõe
assim, de unhas e dentes, a fim de que a Casa da Áustria não venha, em hipótese alguma, a
perder um dia a sucessão à Coroa do Brasil. Francisco Leopoldo quer, a toda a força, garantir
ao neto o trono da América. O único interessado, portanto, em que Vossa Majestade não ache
noiva é Francisco Leopoldo; e foi exatamente a Francisco Leopoldo que Vossa Majestade
confiou esse negócio! (50) Eis por que o nome de Vossa Majestade anda rolando, pelas
Cortes da Europa, de fracasso em fracasso...
D. Pedro ouviu, boquiaberto. Aquela explicação, de fato, era a única aceitável. Não havia outra
coisa mais razoável para esclarecer tão desastrosos insucessos. Barbacena parecia ter razão...
E D. Pedro, o homem das resoluções bruscas, pôs a mão sobre os ombros de Caldeira Brant:
- Pois bem, Barbacena! Vossa Excelência, nesse caso, vai voltar imediatamente para a Europa.
Barbacena ergueu-se com espanto. Era inacreditável o que acabava de ouvir! D. Pedro
continuou:
- Vai voltar imediatamente para a Europa. E o fim principal dessa viagem - veja bem, Marquês -
é ir Vossa Excelência, em pessoa, negociar o meu casamento. Eu vou dar a Vossa Excelência
as minhas instruções. Vossa Excelência volta com poderes plenos.
Barbacena ouviu, fulminado, aquela deliberação nunca imaginada. E exclamou:
- Não pode haver, para um vassalo de Vossa Majestade, honra maior do que essa. E eu hei de
empregar, para desempenhar-me dignamente dessa missão, todo o meu zelo, toda a minha
habilidade, toda a minha vida!
Foi assim que o Marquês de Barbacena voltou mais uma vez à Europa; voltou, mais uma vez
ainda, a correr Cortes faustosas dos grandes Reis, a fim de descobrir uma princesinha que,
abnegadamente, se resolvesse a ser Imperatriz do Brasil.
E partiu...
* * *
No seu beliche, durante os longos ócios da travessia, o diplomata não cansava de ler e de reler
as instruções que D. Pedro, do seu próprio punho, lhe enviara. O Monarca, a fim de evitar a
demora das consultas, especificara ao amigo as condições necessárias para que a noiva fosse
do seu agrado. E estipulava, enumeradamente, quatro requisitos, dos quais dois eram
essenciais. As instruções rezavam assim:
O meu desejo, e grande fim, é obter uma princesa, que, por seu nascimento, formosura, virtude,
instrução, venha fazer a minha felicidade e a do Império. Quando não seja possível reunir as
quatro condições, podereis admitir alguma diminuição na primeira, e na quarta, contanto que a
segunda e a terceira sejam constantes.
Barbacena, munido de três cheques em branco, emitidos por D. Pedro, com poderes plenos
para dispor de toda a legítima que o Imperador herdara de D. João VI, singrava
apreensivamente as águas atlânticas, ansioso de fisgar, com este anzol dourado, a princesinha
encantada. E D. Pedro, ardendo de impaciência, ficou-se à espera...
Os dias começaram a correr. Foram longos e entediantes. Até que enfim, por uma corveta
inglesa, chegada de Falmouth, chegaram á Corte notícias alvoroçantes. Foi um raio de sol na
alma sucumbida do Monarca. Barbacena, depois de lançar hábil golpe de vista sobre as
princesas casadouras, lembrava, como boa possibilidade, a casa reinante de Dinamarca.
A Carta secreta dizia assim:
Achei a princesa dos Países-Baixos casada; a de Orleans é uma criança, e Vossa Majestade,
na véspera de minha partida, mostrou repugnância em tal união, por causa da idade.
A princesa de Saxe Weimar não pode responder sem primeiro consultar o Imperador da Rússia,
que está muito longe e absorvido com a guerra com a Turquia.
Resta, portanto, a Casa da Dinamarca que felizmente detesta Metternich e muito estimaria fazer-
lhe uma pirraça. O Rei tem filhas feias, mas as sobrinhas - ouço dizer - são bonitas.
Conseguindo, como espero, um casamento com a Dinamarca, terá o Marquês de Rezende a
honra de acompanhar a Augusta Noiva. Vossa Majestade conhecerá que não é possível
avançar mais em tão poucos dias... (51)
A Dinamarca! E D. Pedro, com exasperante sofreguidão, ficou esperar o desfecho das
negociações.
Os dias continuaram a correr.
Certa manhã, o Monarca recebeu as notícias almejadas. Eram ótimas. Barbacena escrevia:
Senhor!
Poucas horas depois de expedir a minha última carta, recebi aviso do meu comissário na
Dinamarca com as mais lisonjeiras informações sobre a formosura, elegância, caráter e
educação d. princesa. E como da parte da Dinamarca existe decidida aversão pela Áustria, e
como toda a cautela parece filha do receio que a Áustria venha estorvar esse casamento, estou
com as mais fundadas esperanças de concluir este negócio muito à satisfação de Vossa
Majestade. expedi resposta aos quesitos; e vindo o "sim" partirá o Marquês de Rezende para
a Dinamarca.
D. Pedro delirou. Vivo entusiasmo embandeirou-lhe a alma. E romântico, velho romântico, D.
Pedro erguia castelos sobre castelos.
Ah, devia ser linda! E elegante, e fina, e loura.
E o Imperador pôs-se a esperar, impaciente, as notícias que viriam pelo primeiro barco.
E as notícias chegaram. Eram deste teor:
Senhor!
Aprovando os primeiros passas do Rezende e do Itabaiana, na escolha do agente em
Dinamarca, tive o maior cuidado em recomendar, como condição sine qua non, a perfeição física
e moral da princesa. Sei agora, no entanto, que a princesa é, com efeito, elegante; mas,
infelizmente, tem os olhos, pestanas e sobrancelhas albinos, como todas as princesas da
Dinamarca, o que basta para tornar repulsiva ainda a maior beleza deste mundo. Os albinos são
o que nós, no Brasil, chamamos preto aço; e quereria Vossa Majestade semelhante noiva?
Certamente não!
Vou, portanto, suspender as minhas diligências daquele lado e continuar em outro.
Que desapontamento! D. Pedro, ao ler aquilo, largou um grande murro na mesa.
- Este Barbacena é um animal!
Indignadíssimo, sem poder agir, isolado aqui neste fundo pedaço da América, D. Pedro, de
braços cruzados, tinha ímpetos de desistir do casamento, de estrangular Barbacena, de acabar
com tudo!
E os dias corriam.
Dias longos, entediantes, de revirar os nervos. E a cada paquete que entrava a barra, estourava
nova tentativa de Barbacena. Era sempre assim:
Não perco um instante em tomar informações e lançar minhas vistas sobre outras casas.
Muitíssima pressa tenho eu na conclusão do casamento e neste mesmo instante se me
apresenta outra porta à qual vou bater. E essa porta, que se me apresenta, é a da Holanda, de
onde recebi aviso de se haver anulado o ajuste do casamento da Filha do Rei com o príncipe de
Suécia. Pelo retrato que mostrei a Vossa Majestade e pelas informações uníssonas que tenho
recebido, nenhuma união seria tão feliz como essa.
A Holanda! E de novo, no peito do viúvo, entrava fugidio clarão de esperança. D. Pedro punha-
se então a esperar pela Holanda. E era nova ânsia! E nova agitação! E novo desespero!
Os dias continuavam a correr.
E quando, ao anúncio de um barco que chegava, D. Pedro, pressuroso, corria a receber a
correspondência, já Barbacena, nas suas imensas cartas, nem mais tocava uma palavra sobre a
Holanda! E passava, bruscamente, sem explicação, a nova Casa reinante:
O falecido Grão-Duque de Baden deixou três filhas lindíssimas. E qualquer delas muito
estimaria casar-se com Vossa Majestade.(52)
Baden! Recomeçava o exasperante martírio de nova espera. E os dias a correrem. Aqueles dias
longos, entediantes, de revirar os nervos. Entrava um paquete. E sempre a mesma comédia:
O Pedra Branca, aproveitando o dia de anos da Rainha, para vir a Londres sem dar suspeitas,
comunicou-me que o Grão-Duque de Baden recusava o seu consentimento.
E D. Pedro, a cada missiva, não se continha. E vociferava:
- Este Barbacena é um animal!
E de novo, ao ancorar de outro navio, lá vinha Barbacena com nova probabilidade:
O meu fito, agora, vai às sobrinhas da Duquesa de Clarence...
Era decepção sobre decepção. D. Pedro, nesses dias aflitivos, fora, de fato, um soberano
infelicíssimo. Tudo conspirava contra ele. Aquela estrela radiosa, que iluminara propiciamente a
sua vida, tinha agora um clarão mortiço, bruxuleio de mpada que se apaga. Os seus nervos
andavam desafinados por tantos padecimentos. E com razão. A Guerra do Sul terminara por
uma derrota vergonhosa. A Argentina, aproveitando habilmente o momento, impusera
impiedoso tratado de paz que o mortificara cruamente. O mano Miguel, esse, com uma felonia
de arrepiar, não se recusara a esposar D. Maria da Glória, como usurpara, descaradamente,
o trono da rainhazinha. E coroando essa enfiada de golpes, para mais torturar a alma sofredora
do Monarca, aquelas cruciantes decepções que estouravam a cada paquete. Foi assim, em
meio de tantas provações, que, para o maior desapontamento, chegou esta arrasadora carta do
diplomata:
Brilhante casamento, no caso atual das coisas, não se consegue. Não se consegue sem tempo,
paciência, e muita habilidade, visto que princesas na Alemanha, onde a influência de
Metternich é decisiva. Digo que na Alemanha, porque as da Itália se recusaram; na
França, Grã-Bretanha e Rússia não há; na Dinamarca são horrendas; e o parentesco da Suécia
não convém. É preciso parecer, em suma, que se não pensa por ora em casamento...
Esta carta foi a gota que faltava para transbordar a taça. D. Pedro leu-a e releu-a com furor. E
sem poder mais refrear os seus nervos, há tanto tempo acicatados, o Imperador, numa daquelas
suas desatinadas explosões, bradou para o Chalaça, que o escutava perplexo:
- Pois que vão todas para o diabo que as carregue! Essas princesinhas de meia-tigela que se
fiquem pela Europa! Eu não quero mais saber desses vidrinhos de cheiro! E nem de
Metternich! Nem de Barbacena! Nem de Wellington! Nem do diabo! Eu não posso mais,
caramba! Eu estouro! E para acabar com tudo isto, com toda esta trapalhada do inferno,
um meio, Chalaça, um só: é casar-me com a Marquesa de Santos! Afinal de contas, pensando
bem, aquela mulher é a única que eu amo! Aquela mulher, por uma fatalidade, é a minha
paixão!
E clamava, agitadíssimo, como um desatinado:
- É a minha única paixão! Minha única paixão!
Debruçando-se então sobre a sua secretária, pálido e trêmulo, quase a chorar de tão
emocionado, D. Pedro tracejou estas linhas, que, na sua eloqüente simplicidade, foram o
grandioso triunfo da paulista:
Minha Marquesa do Coração!
Impossível esquecer-me de Vosmecê um momento. Eu não agüento mais esta separação.
Venha! Venha, minha Marquesa, depressa, que aqui espera Vosmecê, de braços abertos, o seu
fiel, constante, e verdadeiro
Imperador
E passou ás mãos do Chalaça, que empalidecera, aquela carta absurda.
- Tome lá, Chalaça. Mande um correio partir imediatamente para São Paulo. Que voando!
Que estropie quantos cavalos puder pelo caminho! Mas que a Marquesa, dentro de uma
semana, esteja de novo aqui na Corte. Vamos acabar, uma vez por todas, com essas histórias
da casamento na Europa.
E um próprio de confiança, na tarde desse mesmo dia, partiu desabalado para São Paulo, a fim
de levar à mulher que enlouquecera o Imperador, á deliciosa, à inesquecível favorita, aquela tão
pequenina, mas tão surpreendente carta.
SUPREMO TRIUNFO
No momento em que o Marquês de Paranaguá abrindo a tabaqueira de ouro, fungava a sua
pitada, entrou o Chalaça. O velho Ministro, com leve sorriso no lábio, pensou com seus
botões:
Vamos ter notícias... O Chalaça deve saber coisas!
O valido, naquela tarde, acabava de chegar da fazenda de Santa Cruz. Viera daquela grave
vivenda conventual, tão amada de D. João VI, aonde fora, em companhia do Sr. D. Pedro,
aguardar o retorno vitorioso da Marquesa. Vinha, portanto, carregado de notícias. E que
notícias. As mais palpitantes...
- Vossa Excelência não avalia, bradou o favorito, logo ás primeiras frases, não avalia o que foi a
chegada da Domitila. Um triunfo, sr. Marquês! Verdadeiro triunfo!
- Que me diz, sr. Comendador? Vamos lá! Conte-me um pouco essa história.
O Chalaça não viera para outra coisa. Desenrolou, com minúcias e detalhes, as ocorrências do
grande acontecimento:
- Imagine Vossa Excelência, sr. Marquês, que todos nós, de manhã cedo, partimos de Santa
Cruz ao encontro da Marquesa. Éramos um bando. O Imperador ia radiante. Conversava com
todos. Ria-se. Eu nunca o vi tão alegre. Parecia um colegial em tempo de férias. Quando
chegamos em Itaguaí, ah, foi cômico! Realmentemico! Imagine isto, sr. Marquês: o povoado
inteiro estava embandeirado!
- ?
- Sim, senhor! Embandeirado para receber a Marquesa. Era dia de grande gala!
Paranaguá soltou uma risada. O Chalaça continuou:
- O Imperador, como o sol ia alto, resolveu sestear na vila. Mas eis que na estrada, ao longe,
surge um magote de cavaleiros. Todos nós começamos a olhar. O Imperador, que sondava o
horizonte com uns óculos de alcance, bradou:
- É a Marquesa!
Metemo-nos todos, a galope, pelo caminho.
Era, de fato, a Marquesa. Vinha num belo zaino, vestida com um amazona elegante, muito
corada de sol. D. Pedro saltou do cavalo. A Marquesa também. Todos os circunstantes se
descobriram. E D. Pedro, radioso:
- Seja bem-vinda, Sra. Marquesa!
Ela beijou risonhamente a mão do Imperador. Todos os da comitiva, tomados de súbito
entusiasmo, prorromperam em palmas e brados:
- Viva a Marquesa de Santos!
- Viva a Marquesa de Santos!
Na vilota de Itaguaí, ao mesmo tempo, começaram a espocar rojões pelo ar, morteiros, e o
diabo! Até os sinos da capelinha puseram-se a repicar. Um triunfo, Marquês! Um verdadeiro
triunfo!
- D. Pedro perdeu a cabeça, exclamava Paranaguá, atarantado. Perdeu a cabeça
definitivamente.
- O imperador chegou hoje da Fazenda Santa Cruz. Veio especialmente para dar beija-mão
amanhã. E para dar beija-mão em honra da Duquesa de Goiás! Veja, sr. Marquês, como as
coisas mudam. Antigamente ao tempo de D. Leopoldina, as filhas da Marquesa nem sequer
apareciam nas festas. E agora? D. Pedro, para afrontar a Corte, beija-mão, em pleno Paço,
em honra da bastarda! E amanhã à noite, para festejar a pequerrucha, a Marquesa, por sua vez,
resolveu oferecer um grandioso jantar aos seus amigos. O Imperador, com aqueles seus rasgos,
já mandou à Marquesa, de presente, uma riquíssima baixela de prata.
Paranaguá ouvia aquelas coisas com terror. D. Pedro havia chegado ao máximo. Aquele
despudor irritava. O Chalaça continuou:
- O que Sua Majestade pretende, com o beija-mão de amanhã, não é honrar a duquesinha: é
festejar oficialmente a reentrada da favorita na Corte!
- Veja o que faz a paixão, comentava amargamente o velho Marquês. Dar um beija-mão para
receber a amante! Que maluquice!
- Mas ainda não é tudo, atalhou vivamente o Chalaça; o que andam preparando por aí, e
preparando muito ás escondidas, isso sim, Marquês, isso é de arrepiar a gente! Vai ser uma
bomba...
E o valido, baixando a voz:
- O casamento de D. Pedro com a Marquesa é coisa decidida! Estoura já...
Paranaguá abriu os olhos. Impossível! O Chalaça estava delirando! Que absurdo! Sua
Majestade não enlouquecera tanto. Sua Majestade, apesar da cegueira, não levaria tão longe o
seu capricho. Impossível. Mas o Chalaça sorria.
- Não impossível para D. Pedro, meu caro Marquês! D. Pedro é capaz de tudo! Capaz de
todas as doidices deste mundo. Vossa Excelência quer ter a prova do quanto é sério este
negócio de casamento? Imagine, sr. Marquês, que o Barbacena acaba de ser demitido das suas
funções de plenipotenciário...
- Que diz, Comendador?
- É o que digo, Marquês: foi demitido! E mais ainda: para substituir o Barbacena foi nomeado o
Conde de Palma. E o Conde, que deve partir aman pela escuna ancorada no porto, leva
ordens para romper as negociações. Aquilo é acabar com o casamento lá, e realizar o
casamento cá.
Aquelas revelações aturdiram o Ministro.
- Mas onde vamos parar, Comendador? Isto é uma vergonha!
O Chalaça não respondeu. Levantou-se, pegou no chapéu, estendeu a mão ao Ministro:
- Vamos esperar os acontecimentos, Marquês. Amanhã, depois do beija-mão, é que se pode
resolver alguma coisa. Por isso, até amanhã! Até amanhã, no beija-mão da Duquesa de Goiás!
E saiu...
* * *
É o dia do beija-mão. Dia tropical, glorioso, orgíaco de luz. O sol, com uma gargalhada de ouro,
flameja pelo azul. Tudo a rir! A natureza, essa esbanjadora e caprichosa, parece que porfiou em
colorir, com a sua mais faustosa riqueza de tintas, o dia triunfal da Sra. Marquesa de Santos. E
é de ver-se o rebuliço que fervilha pela Quinta da Boa Vista... Nunca, na Corte, houve tão
ardente alvoroço por um beija-mão! Nunca, para acudir ao Paço, houve tão quente curiosidade!
Toda a nobreza do tempo, ávida por assistir àquele acontecimento único, correu, gulosamente,
à Quinta de São Cristóvão.
Os salões estão burburinhando de gente. É a mais alta, é a mais legítima fidalguia do Primeiro
Império. E fervem comentários. O nome da Marquesa anda de boca em boca.
Num canto do salão, aplumada, refulgente, D. Maria Carolina de Sousa Coutinho, Marquesa de
São João Marcos, murmura, desoladamente, com um revirar de olhos:
- É coisa assentada... D. Pedro casa-se com a Marquesa!
A Viscondessa de Mirandela, enrugando os lábios, com uma careta de desdém.
- Credo!
E D. Francisca Mônica Carneiro da Costa e Gama, a orgulhosa Marquesa de Baependi,
juntando as mãos:
- A Domitila! A divorciada!
- Não é à toa, cochicha a Viscondessa da Cachoeira, que traz no pulso um bracelete cravejado
de enormíssimas safiras; não é à toa que o Paço hoje regurgita de gente. Todos querem ver a
futura Imperatriz. Reparem um pouco na Goitacases... Até a Goitacases veio hoje ao beija-mão!
Realmente! Até D. Ana Francisca Rosa Maciel da Costa, a velha Baronesa de Goitacases,
aquela mesma famosa, enfunadíssima Dama que desacatara D. Domitila na Capela Imperial,
abalou-se tremulamente de casa para vir ao beija-mão. Queria ver - ver com os seus olhos! - o
incrível escândalo daquele triunfo!
Mas não é só. A flor mais nobre da aristocracia brasileira resplandece em São Cristóvão. É
soltar os olhos pela sala...Que deslumbrante! D. Ilda Mafalda de Sousa Queiroz, a rutilante
Marquesa de Valença, vestido de gorgorão negro, cadeia de ouro e mitenes de seda, corre
pelos grupos o seu lorgnon de madrepérola. A graciosa Baronesa Nogueira da Gama, a
pequenina D. Maria Francisca Calmon, filha da austera Condessa de Itapagipe, enfeita
lindamente o Paço com a garridice primaveril dos seus vinte anos. A Viscondessa do Rio Seco,
recamada de laçarotes, grande fortuna da época, traz no decote um áspero faiscar de jóias
dardejantes.
Os cavalheiros, agrupados pelos salões, comentam maldosamente. O assunto e sempre o
mesmo, um único, inesgotável: a Marquesa de Santos.
No vão duma janela, amigos e íntimos, Pedro de Araújo Lima, Marquês de Olinda, murmura,
com triste meneio de cabeça, ao distintíssimo Marquês de Valença:
- O Pais está perdido, meu caro Estêvão de Rezende! Ora veja este beija-mão! Pode haver
escândalo maior?
Mas o Marquês de Valença, ao ver aproximar-se D. Francisco de Assis Mascarenhas, Conde de
Palma, faz um gesto significativo ao amigo:
- Chut! Aí vem o Palma...
E o Conde de Palma, aquele gentil e maneiroso descendente dos Castelo Branco da Costa
Lencastre, condes de Sabugal, envaidecido pela sua retumbante nomeação de plenipotenciário,
vara gloriosamente o salão, azougado, distribuindo sorrisos de triunfador. Ao vê-lo passar,
banhado de júbilo, o velho Paranaguá, tocando ao de leve no ombro do Visconde de Gericinó,
Ildefonso Caldeira Brant, exclama com um sorriso:
- Lá vai, meu honrado Visconde, o substituto do seu irmão!
Gericinó franze o sobrolho. E dando largas a uma ira represada custo:
- Mas que injustiça, sr. Marquês!
- Não se irrite, Visconde, atalha Paranaguá filosófico. Isto é da vida! Eu, que aqui estou, depois
duma existência inteira de serviços ao País, já fui também arrasado pela cólera da deusa. Agora
chegou a vez de Barbacena. E que se há de fazer?
Eis que aparece o Chalaça. E com um gesto amplo, apontando o salão:
- Nunca vi, meus senhores, um beija-mão assim! mesmo a paulista, com a sua reentrada, é
que poderia fazer tanta velharia desentocar-se de casa! Reparem um pouco.
Nisto, bruscamente, ecoa o pesado rolar dum coche no pátio da Quinta. Rompe súbito fragor de
tambores e de cometas. Os porta-estandartes, a um berro do Capitão, abatem as bandeiras
imperiais. Todos os archeiros, em continência, apresentam armas. Sousa Lobato, porteiro da
Imperial Câmara, corre precipitado à portinhola dourada do coche. Esvoaça imediatamente, de
boca em boca, um cicio palpitante:
- A Marquesa! A Marquesa!
Grande ânsia. A alma dos cortesãos freme nos olhos. Todos querem ver.
Eis que, debaixo do mais grandioso silêncio, com o Porteiro Imperial à frente, abrindo alas, a
Sra. Marquesa de Santos, conduzida pelo braço de Ribeiro Cirne, surge triunfalmente, como
numa apoteose, ante o olhar devorador da Corte inteira.
No mesmo instante, escancarando a ampla porta que para a Sala do Trono, Sousa Lobato
exclama com ênfase:
- Sua Majestade, o Imperador, dá beija-mão!
Altaneira, a fronte erguida, fazendo ondular a espraiada cauda do seu vestido de seda fosca, os
lábios frescos e sangrentos como duas amoras, o olhar faulhante de soberania, a Sra. Marquesa
de Santos, lantejoulada de diamantes, um colar de duzentas pérolas enrodilhado o colo,
atravessa com majestade por entre aquela fidalguia de enfunada proa. E penetra, com orgulho,
vencedoramente, em plena Sala do Trono. D. Pedro, moço e belo, fronte escampada e
dominadora recamado de grã-cruzes, o fitão verde e amarelo a tiracolo, do alto do trono, sob o
amplo docel de damasco verde e ouro, sorri, jovialmente, democraticamente, com a mais
acolhedora afabilidade. A um lado do Trono, sentadas em filas, a Duquesa de Goiás e as
Princesinhas. de outro lado, fofa e solene, com seu vasto espalhar de veludo carmesim, uma
grande poltrona vazia. A Sra. Marquesa de Santos, derramando graças e feitiços, numa
reverência encantadora, curva-se lindamente ante o Monarca. Beija a testa da filha. Beija a mão
das princesinhas.
D. Pedro, em seguida, num desafio ostentoso à Corte, oferece a favorita, com um gesto amável,
a poltrona ao lado. D. Domitila senta-se. É a única mulher sentada. E diante dela, sob o seu
olhar de vitoriosa, desfila, dobrada e rastejante, a Corte inteira.
E aquelas aristocráticas Damas, a chisparem de jóias, farfalhando sedas, resplandescentes de
plumas e rendas, perpassam ali, diante do Trono, com uma donairosa reverência ao Monarca,
com um bajulante sorriso à triunfadora. E os velhos titulares, aqueles austeros portadores de
nomes venerandos, graves e solenes, barba-piolho, a casaca abrolhada de rútilas insígnias,
beijam reverentes a mão augusta do Amo: e polidos, com a mais dobrada mesura, curvam-se
respeitosos ante a grande dama. E a Sra. Marquesa de Santos, ali, naquele beija-mão único, ao
lado do Imperador, gloriosa, alvo de todos os olhares, no pináculo daquele triunfo retumbante,
sente gostosamente, no íntimo, que é ela, exclusivamente ela, em tão adorável instante, a
mulher mais alta, a mulher suprema do Brasil.
E vaidosa, e para impressionar mais fundamente, a Sra. Marquesa de Santos não se demora.
Não quer banalizar o seu sucesso. Mal termina o beija-mão, a vitoriosa paulista levanta-se.
Chega-se ao Trono. Faz uma reverência. Beija, ao de leve, a mão de D. Pedro. E, com luminoso
sorriso, fazendo valer os seus trinta e dois branquíssimos dentes, exclama alto, para ser ouvida:
- Conto com Vossa Majestade, hoje à noite, para o jantar com a Duquesa...
D. Pedro sorri. E romanesco, namorado escandaloso e impávido, desce ostentosamente os
degraus do Trono. Por entre o assombro de toda a Corte, atravessando alas de palacianos, D.
Pedro, com a mais acintosa cortesanice, acompanha pessoalmente a Sra. Marquesa de Santos
até o topo da escadaria. Nesse momento - oh! glória embebedante! - a música rompe, as
bandeiras imperiais se abatem de novo, os archeiros apresentam armas: e a gloriosa Vencedora
debaixo de tão alucinantes honrarias, sai iluminada do Paço de São Cristóvão...
Fora, ante aquela alegria derramada, sob a luz maravilhosa, debaixo daquela cascata de ouro
que irisa tudo, a Sra. Marquesa de Santos, tonta de felicidade, vai saboreando a olímpica delícia
daquele triunfo.
Ah, podiam correr os anos. Podia agora desmaiar a sua estrela! Ah, nunca mais, na vida
daquela mulher afortunada, haveria de se apagar a lembrança daquele beija-mão fulgurante,
daquele beija-mão tão rápido - quinze minutos apenas! - em que ela, a pequenina Titília de
Castro, a endiabrada caçula do Coronel João de Castro, foi, de fato, a Imperatriz do Brasil.
A SUPREMA DERROTA
Era tarde, noite alta, quando o Imperador voltou do banquete que a Sra. Marquesa de Santos
oferecera em honra da Duquesinha de Goiás. Ao saltar em São Cristóvão, D. Pedro topou com
o Chalaça, muito inquieto, à espera de Sua Majestade. O Imperador estranhou agitação do
valido:
- Que é isso? Você ainda de pé? Alguma coisa grave?
- Alguma coisa, não, Sr. D. Pedro: mas muita coisa e muito grave.
D. Pedro fitou o valido:
- Que é que aconteceu?
- Chegaram esta tarde, pela corveta que entrou no porto, cartas importantíssimas do Barbacena.
- Do Barbacena?
- Cartas importantíssimas, Sr. D. Pedro!
E diante de Sua Majestade, abrindo os braços, o Chalaça exclamou teatralmente.
- Vossa Majestade está noivo!
D. Pedro deu um salto. A notícia ferreteou-lhe os nervos como um aguilhão em fogo.
- Que é que você diz, Chalaça? Noivo? Noivo de quem?
- Da Princesa Amélia de Leuchtenberg, filha do Príncipe Eugênio de Beauharnais...
- Da Princesa Amélia? Você está louco?
- Não estou louco, não, Majestade! O tratado matrimonial foi assinado a trinta deste.
- Já foi assinado?
- Pelo Marquês de Barbacena, como plenipotenciário de Vossa Majestade; pelo cavaleiro Planat
de la Faye, como representante da Duquesa de Leuchtenberg.
D. Pedro pôs a mão na cabeça, sucumbido:
- Mas isto é um sonho!
- Não é sonho, Majestade: é a realidade nua e crua. O tratado matrimonial foi ratificado pela
Grã-Duquesa. falta Vossa Majestade ratificá-lo também. Barbacena mandou todos os
papéis. Estão aí. Chegaram agora pela corveta.
D. Pedro estava estupefato. Depois de tantos e tão humilhantes fracassos, depois de perdidas
todas as esperanças, quando o Barbacena estava demitido, quando a Marquesa de Santos,
chamada de São Paulo, retornava triunfalmente à Corte, eis que é nesse momento, exatamente
no dia da reentrada da favorita que estoura, bruscamente e brutalmente, a noticia do ajuste do
casamento! Oh, era de arrasar um homem...
Subindo a quatro e quatro as escadarias da Quinta, Sua Majestade correu sôfrego ao Salão dos
Despachos. O Chalaça espalhara sobre a mesa a papelada do Barbacena. D. Pedro, com a
alma em fogo começou a ler, uma por uma, aquelas revelações formidáveis.
A primeira carta dizia:
"Senhor!
Mal podendo sustentar a pena por causa duma violenta febre que sofro, darei no entanto a
Vossa Majestade, na efusão do meu coração, as notícias de ontem e os meus parabéns de
hoje. tem Vossa Majestade, junto a esta, o retrato da linda Princesa, que aconselhada por
seu tio, Rei da Baviera, ousa afinal atravessa os mares para ir se unir a Vossa Majestade. O
Visconde de Pedra Branca, aproveitando-se da boa vontade da Grã-Duquesa de Leuchtenberg
e sabendo da indisposição do Rei da Baviera, seu irmão contra Metternich, dirigiu suas
diligências para a Princesa Amélia. filha da Grã-Duquesa, sobrinha do Rei da Baviera e da
Imperatriz da Áustria, e CONSEGUIU, ENFIM, O CONSENTIMENTO DA MÃE QUE E TUTORA,
E DO DITO REI DA BAVIERA, QUE É SEU IRMÃO.
A fim de ver a Princesa, escolhi para ir a Munich o Veador Ernesto Frederico de Verna
Magalhães, o qual, além do segredo que sabe guardar, temeria faltar à verdade e comprometer-
se com Vossa Majestade, garantindo a formosura duma Princesa que tal formosura não
possuísse. Junto remeto a Vossa Majestade a carta original que dele recebi ontem com o
retrato.
No momento afortunado em que tiver a honra de entregar a Vossa Majestade os dois sagrados
depósitos uma filha e uma noiva - confiados à minha fidelidade, beijarei contente a augusta Mão
de Vossa Majestade e direi um eterno adeus à vida pública. Deus guarde a V. M. I. como todos
desejam e principalmente eu. que, com o mais profundo respeito, sou de V. M. I. obrigadíssimo
e fiel criado
Marquês de Barbacena" (54)
D. Pedro deixou tombar a carta.
Estava noivo!
Mas oh! que estranho tipo foi esse D. Pedro! Que homem ilógico! Ao ler a carta, ele, o
escandaloso apaixonado da Marquesa, sentiu uma alegria doida apoderar-se-lhe da alma. Os
seus olhos chamejaram. Súbita emoção sacudiu-o todo.
O Chalaça, que acompanhava a alegria do Amo, passou às os de Sua Majestade a carta do
Verna Magalhães:
- Eis aqui, Majestade, as informações sobre a noiva!
D. Pedro leu as informações que mandara a Barbacena o enviado especial de Munich:
Tenho a honra de participar a Vossa Excelência que, tendo felizmente alcançado o objeto de
minha missão, vi a Princesa no quarto do aio de seu irmão, e posso afirmar a Vossa Excelência,
debaixo de palavra de honra, que Sua Alteza Real me pareceu muitíssimo mais formosa do que
o retrato que a Vossa Excelência euentreguei, retrato esse que foi tirado em duas sessões e
está justamente trajada como eu tive a honra de a ver. E além disso. a sua tenra idade, pois
ainda não conta dezessete anos, e a alta opinião das virtudes da Duquesa, sua augusta mãe,
assim como o desvelo desta na educação dos filhos, o que em Munich é constante, são uma
garantia mais do que suficiente de que Sua Alteza reúne todas as qualidades.
D. Pedro tomou o retrato da noiva. Lançou sobre ele, ardendo de curiosidade, os seus olhos
ávidos. Pôs-se a examiná-lo carinhosamente, detalhe por detalhe, com essa mesma volúpia de
joalheiro, que, com o olhar chispante de gozo, vai descobrindo as fúlgidas maravilhas de uma
jóia perfeita.
D. Amélia era linda. A neta de Josefina Beauharnais herdara, com o sangue atávico da francesa,
todas as graças e feitiços da raça: fina, leve, elegantíssima, os olhos muito quentes, os cabelos
muito crespos, o sorriso muito cândido, e, com os seus dezessete anos, viçosos e frescos, era
toda ela uma orvalhada primavera de carne.
O Chalaça exclamava com efusão:
- É linda! É lindíssima!
D. Pedro mirava e remirava o retrato. Devorava com olhos cúpidos aquela criaturinha angelical,
tão fina, que sorria na gravura como um anjo. E concordava, triunfante:
- E é realmente linda! É lindíssima! O Barbacena teve dedo...
- Aqui está, Senhor, continuou o Chalaça, o tratado matrimonial. O Barbacena mandou todos os
documentos.
D. Pedro, num crescendo de contentamentos, pegou da papelada. O Barbacena relatava assim:
Hoje, depois de me haver encontrado em Canterbury com Mr. Le Chevalier Planat de la Faye,
representante da Duquesa de Leuchtenberg, tenho a honra de remeter a Vossa Majestade,
devidamente assinado por nós ambos, o tratado matrimonial feito a 30, esperando que Vossa
Majestade o ratifique. Também remeto uma cópia do protocolo contendo ajustes e medidas
externas ao tratado, a fim de que Vossa Majestade tenha conhecimento de tudo.
D. Pedro, à vista daqueles papéis selados, lendo e relendo, numa onda de felicidade, o contrato
do seu casamento, vendo enfim, depois de tanta luta, a realização do seu grande sonho,
exclamou para o Chalaça, rumorosamente, num transporte de entusiasmo:
- O Barbacena é na verdade um grande diplomata! Eu sempre disse... Um grande diplomata!
- Vossa Majestade precisa ler ainda esta carta, atalhou bruscamente o Chalaça: e pese Vossa
Majestade o embaraço em que se acha o Barbacena com as notícias chegadas na Europa.
D. Pedro, refreando os seus transbordamentos, murmurou sisudamente:
- Já sei... São notícias da Marquesa!
- Exatamente. Eis a carta!
D. Pedro, com um vinco na testa, leu a última carta do Barbacena:
Depois da chegada do paquete Swaiping, começaram a espalhar-se incríveis notícias sobre a
Marquesa de Santos, havendo apenas dúvida se a mesma estava em Santa Cruz ou no Rio de
Janeiro.
Desde ontem, porém, tomaram considerável corpo porque Lord Stangford confirma a notícia da
vitória da Marquesa!
No dia seis - imagine Vossa Majestade! - todas as gazetas de Londres anunciavam o casamento
de Vossa Majestade com a Marquesa de Santos.
Qual será o resultado desta notícia?
Não sei! Mas afianço que a Áustria saberá tirar partido disso...
D. Pedro, aquele moço absurdo, incrível temperamento de meridional arrebatado, aquele
mesmo namorado sem juízo, que, momentos antes, escandalizara a Corte com acintosa
ostentação dos seus amores, D. Pedro, já agora esquecido de tudo, mas fascinado pela só idéia
de possuir uma noiva linda e noiva, bradou para o Chalaça, com um murro na mesa, esta
sentença irrecorrível:
- A Marquesa volta já para a Província! Volta já! Está tudo acabado...
* * *
Uma semana depois, em Munich, foi celebrado, com magníficas solenidades, o casamento do
Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil, com a Sereníssima Princesa Amélia Augusta Eugênia
Napoleon de Leuchtenberg, filha do Príncipe Eugênio de Beauharnais. Nesse mesmo dia,
debaixo de um sol de ouro, trotando pela estrada poeirenta de São Paulo, a Sra. Marquesa de
Santos deixava irremediavelmente a Corte: ia, com olhos molhados, a caminho de sua terra
natal, cumprir, mais uma vez ainda, sobre o coração do maior político da Província, o seu
estranho destino de mulher enfeitiçadora...
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