- Sim, vá falando e não me olhe com esses olhos de motejo. Pensa que eu não sei de tudo? O
único cego ali é o pobre do marido, que não merecia que lhe fizessem isso. Eu estou cá no meu
canto, mas sei do que se passa, e toda a gente sabe, infelizmente... Não é por falta de eu pedir
a Nossa Senhora do Rosário, minha madrinha... mas os pecados vêem-se, saltam aos olhos
até. Já me aconselhei com o padre Mendes, sem dizer de quem se tratava, está claro, e pedi-lhe
que rezasse para que isso acabasse em bem... Ele é um sacerdote, deve ser atendido...
enquanto que eu, pobre pecadora...
- Mas a senhora está louca, d. Joana?! balbuciou o médico, mal disfarçando a sua ira; não a
entendo!
Com medo de uma descarga de censuras, d. Joana despediu-se. Ia ainda dar uma volta pela
Pedra do Sal.
O dr. Gervásio mal a cumprimentou; sentia-se colado de espanto àquele chão poeirento. Os
seus amores, que ele julgava bem ocultos, tinham varado as sacristias e ido do Botafogo
elegante até aos casebres do Castelo e da Conceição! Quis desmentir a velha; mas os seus
olhos claros, de um castanho louro, não o deixaram falar, cortando-lhe pela raiz qualquer
protesto. Ela não falara só pela boca, que a tinha sincera; mas também pelos olhos, em cuja
limpidez aparecera toda a verdade.
O médico viu-a, com ódio, ir arrastando, na sua peregrinação de fé, as pernas inchadas,
rebolando os quadris largos, bem fornidos e que ainda os franzidos da saia exageravam.
Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ela tornasse, para lhe dizer ainda alguma
coisa do pecado.
O que lhe repugnava, sobretudo, era a solicitada intervenção do padre. Desde então deixou de
reparar nas coisas, para pensar em si. E os seus sentimentos eram de espécie confusa e
tristonha.
Em outros tempos, de mais verdes anos, a divulgação de tais amores não o desgostaria,
talvez... Ser amante de uma mulher bonita e cobiçada não é coisa que fique mal a um homem...
Por ela, sim, devia ter cuidados e mistério; mas esse mesmo dever de discrição absoluta não
seria abafado pela voz do egoísmo, sempre a mais imperiosa nos homens, e pela da vaidade,
se outras circunstâncias não lhe exigissem segredo? As almas fortes dos homens têm dessas
pequenices, e a dele, sabia-o bem, era como as dos outros, amigas, sem propósito, de causar
inveja aos menos afortunados...
Cansado, nervoso, picado pelo sol, o dr. Gervásio seguiu à-toa, desceu o morro, andou pelas
ruas, mal respondendo aos cumprimentos dos conhecidos, que ia encontrando à proporção que
se aproximava do seu centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquele giro, se
lhe esboçava na lembrança. Aquelas riquezas, aquele movimento, aquelas casas, aquele rumor
de população atarefada, baixa e mesclada, aquelas altas ruas despenhadas em escadarias
imundas e barrancos, tudo se dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde
surgia a voz melada, untuosa da tia Joana, oferecendo promessas, confidenciando com
estranhos. sobre os seus amores e os seus adorados segredos.
Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou à rua do Ouvidor,