MAGALHÃES - Uma esmola para as vítimas da epidemia de Buenos Aires.
RAMIRO - Sim, senhor; dou a esmola; mas fique sabendo que no Rio de Janeiro há uma
epidemia maior do que todas as que possam assolar o universo.
MAGALHÃES - Qual é, meu caro senhor?
RAMIRO - A epidemia da caridade. Há uma chuva de gafanhotos na China, o Brasil, que tem
grandes interesses no Celeste Império, trata logo de minorar os sofrimentos dos sectários de
Confúcio. Arvora-se uma comissão com o respectivo presidente, que sai pelas ruas a
esmolar. Livre-se então quem puder. Amigos, conhecidos, desconhecidos, todos, ninguém
escapa, todos hão de concorrer com o seu óbolo para o saco: em outro tempo dois vinténs
era o óbolo do remediado; a praga dos cartões, porém, matou o cobre, e quando nos
apresentam uma sacola, lá se vão de pancada dois tostões. A caridade, esse sentimento rei,
que o Cristo depositou no santuário da nossa consciência, tornou-se uma virtude oficial.
Esmolam arregimentados, com murças, insígnias, nas portas dos templos, dos teatros, do
passeio, nas cancelas do Jóquei Clube, por toda a parte, enfim, onde a filantropia fique bem
patente. O Evangelho diz que a mão direita não deve saber o que dá a esquerda. O que a
mão direita dá, entre nós, não só o sabe a esquerda, como um terceiro, que se coloca entre o
rico e o pobre como procurador deste. Um filantropo quer comemorar o nascimento de um
filho ou o aniversário natalício da mulher, liberta o ventre de uma escrava de oitenta anos, e
manda publicar logo em todas as folhas diárias: "Ato de filantropia. O Sr. Fulano dos Anzóis
Carapuça, querendo solenizar o dia, etc., etc., libertou o ventre de sua escrava Quitéria." Atos
como este não se comentam. Outros libertam ventres, que ainda podem dar frutos e vivem
desconhecidos na sociedade.
MAGALHÃES - Pois bem, meu amigo, proteste, mas pague.
RAMIRO - Já lhe disse que dou a esmola. O que desejo é que os senhores, mancebos em
cujos peitos pulsam os mais generosos sentimentos, se convençam de que vão no meio em
todo este negócio, como eu. As honras, as condecorações, os agradecimentos oficiais e as
tetéias, são para os graúdos, ao passo que para os pequenos há a consolação de voltarem-se
para o céu e exclamarem - Meu Deus, vós sois testemunha de que eu fiz o bem pelo bem.
Aqui tem dez tostões.
MAGALHÃES - Obrigado. Falou como um Demóstenes.
RAMIRO (Canta.)
Nesta terra caridosa
Os pequenos e miúdos,
Servem todos, sem exceção,
De degrau para os graúdos.