Este fragmento, que segue, e que servirá para inteligência dos precedentes versos, pertence
a um livro já todo escrito no entendimento, mas de que só alguns capítulos estão trasladados
ao papel. A Guerra da Restauração de 1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso e
mais poético deste século. Entre os soldados de D. Pedro havia poetas: militava connosco o
autor de D. Branca, do Camões. de João Mínimo; o Sr. Lopes de Lima, e outros: mas a
política engodou todos os engenhos, e levou-os consigo. Os homens de bronze, os sete mil
de Mindelo, não tiveram um cantor; e apenas en, o mais obscuro de todos, salvei em minha
humilde prosa uma diminuta porção de tanta riqueza poética. Oxalá que esse mesmo
trabalho, ainda que de pouca valia, não fique esmagado e sumido debaixo do Leviatã da
política. Todos nós temos vendido a nossa alma ao espírito imundo do jornalismo. E o mais é
que poucos conhecem uma coisa: que política de poetas vale, por via de regra, tanto como
poesia de políticos.
Fragmento. – O combate da antevéspera estava ainda vivo na minha imaginação: eu cria ver
ainda os cadáveres dos meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do fatal reduto, em
que estava assentado: ainda me soavam nos ouvidos o seu clamor de entusiasmo ao
acometê-lo, o sibilar das balas, o grito dos feridos, o som das armas, caindo-lhes das mãos, o
gemido doloroso e longo da sua agonia, o estertor de moribundos, e o arranco final do morrer.
Os dentes me rangeram de cólera, e a lágrima envergonhada de soldado me escorregou
pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos valentes caíram nesse dia! Eu ia
amaldiçoar os cadáveres dos vencidos, que ainda por aí jaziam; porém, pareceu-me que eles
se alevantavam e me diziam: «lembra-te de que também fomos soldados; lembra-te de que
fomos vencidos!» E eu bem sabia que inferno lhes devia ter sido, no momento de expirarem,
as ideias de soldado e de vencimento, conglobadas numa só, como tremenda e indelével
ignomínia, estampada na fronte do que ia transpor os umbrais do outro mundo. Então orei a
Deus por eles: antes de irmão de armas eu tinha sido cristão; e Jesus Cristo perdoara, entre
as afrontas da Cruz, aos seus assassinos. A ideia de perdão parecia me consolava da perda
de tantos e tão valentes amigos. Havia nessa ideia torrentes de poesia; e eu te devia então, ó
crença do Evangelho, talvez a melhor das minhas pobres canções. (Da Minha Mocidade –
Poesia e Meditação.)