Download PDF
ads:
HISTORIA DAS INSTITUIÇÕES
DO
DIREITO ROMANO,
PENINSULAR E PORTUGS
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Composto e impresso na Typographia França Amado,
rua Ferreira Borges, 115 — Coimbra.
ads:
MARNOCO E SOUZA
Lente da Faculdade da Direito
HISTORIA DAS INSTITUIÇÕES
DIREITO ROMANO,
PENINSULAR PORTUGUÊS
PRELECÇÕES FEITAS AO CURSO DO 2.ºANNO JURIDICO DO ANNO DE 1904 A 1905
TERCEIRA EDIÇÃO
COIMBRA
FRANÇA AMADO, EDITOR
1910
PRENOÇÕES
SUMMARIO : 1. A funcção organica do direito e as institui-
ções jurídicas. 2. Evolução das instituições jurídicas.
8. Leis da evolução jurídica. 4. Conceito da historia das
instituições jurídicas. 5. Extensão da historia das insti-
tuições jurídicas. Theoria de Flach. 6. A historia das
instituições jurídicas e a sociologia jurídica. 7. Conceito
da historia das instituições do direito romano, do direito
peninsular e do direito português. 8. Relações da his-
toria das instituições jurídicas com a historia geral do
direito. 9. Importancia da historia das instituições jurí-
dicas. 10. Methodos da historia das instituições jurídi-
cas. A) Methodos de investigação: a) Methodo historico
propriamente dicto. 11. b) Methodo historico-compara-
tivo. 12. c) Methodo colonial. 13. d) Methodo ethno-
graphico. — 14. B) Methodos de exposição: a) Methodo
chronologico. —15. b) Methodo monographico. 16. Sys-
tematização classica da historia das instituições jurídicas.
17. Systematização que adoptamos.
1. A funcção organica do direito e as instituições
juridicas. O direito deixou modernamente de ser
considerado uma categoria absoluta e abstracta, e
entrou no donio da realidade phenomenica, adqui-
rindo o valor sociologico de ser uma força especifica
organizadora das manifestões da vida social.
O direito exerce a sua funcção organica, como
nota Icilio Yanni, estabelecendo uma ordem nas
relações humanas, limitando as acções, coordenan-
— 6 —
do-as amas com as outras e subordinando-as aos
interesses geraes do grupo. E assim se torna
tambem um instrumento de cultura, pois, garan-
tindo as varias manifestações da actividade humana,
permitte á sociedade elevar-se a fórmas cada vez
mais perfeitas.
Ha uma certa escola que nega a funão organica
do direito, em nome do predominio do elemento
economico na vida social. É certo que a evolução
economica determina a evolução jurídica, mas o
direito o se encontra de tal modo dependente da
vida economica que não consiga moderal-a, regulal-a
e afastar os seus inconvenientes. É isto o resultado
dos phenomenos sociaes exercerem uma reciproca
acção modificadora entre si, em virtude da mutua
dependencia em que elles se encontram, como fun-
cções do mesmo organismo.
É da funcção orgauica do direito que derivam as
instituões judicas. O direito, no exercício desta
funcção, tem de regular as relações sociaes que
precisam de ser asseguradas por meio da coacção.
Estas relações são aquellas, como nota De Greef,
que ainda não se encontram sufficientemente incor-
poradas no organismo moral, ou que, em razão da
sua natureza especial, serão sempre submettidas,
em caso de violação ou de obscuridade na interpre-
tação, a uma interveão da foa collectiva.
As relões da vida social no todo ou em parte
reguladas pelo direito constituem as relações jurí-
dicas.
As diversas relações judicas agrupadas em torno
de algumas grandes unidades systematicas consti-
tuem as instituições juridicas.
As instituições jurídicas o, na linguagem figu-
rada de Von Ihering, a ossatura do direito, a que
— 7 —
se liga toda a sua substancia composta das regras
de direito 1.
2. Evolão das instituições juridicas. As ins-
tituões judicas o permanecem immutaveis e
invariaveis atras dos tempos e dos logares, mas
soffrem continuas transformões, em harmonia com
as condões de existencia e de desinvolvimento da
vida social. O complexo destas transformações
constitue a evolução das instituições jurídicas.
Facil é de comprehender como se a evolução
das instituições jurídicas, desde o momento em que
se note que as necessidades e as exigencias da vida
collectiva variam constantemente. As sociedades
humanas assumem varios typos de organização e
dentro de cada typo apresentam gráos differentes
de desinvolvimento. Ora do diverso modo como se
encontra organizada uma sociedade, derivam neces-
sidades e exigencias especiaes, a que o direito se
tem de adaptar. Dahi as varias fórmas que as ins-
tituições jurídicas vão revestindo.
A transformação das instituições jurídicas não se
pode considerar illimitada, visto haver condições
communs e constantes nas diversas rmas de orga-
nização social, a que deve corresponder uma parte
do direito com caracteres de permanencia. Assim,
a relação entre os contrahentes pode ser intendida
e disciplinada pelo direito do modo mais diverso,
desde a fórma rigorosa dum vinculo obrigando a
1
De Greef, Iníroduction à la sociologie, tom. II, pag. 284;
lcilio Vanni, Lezioni di filosofia dei diritto, pag. 215; Puglia,
Funzione organica del diritto, na Scienza del diritto privato, tom.
III, pag. 57 e seg.; Von lhering, L'Esprit du droit romain, tom. I,
pag. 37 e seg.
— 8 —
pessoa do devedor e dando logar à execução pessoal,
como no direito romano, até á rma duma obriga-
ção patrimonial, incidindo sobre os bens do devedor
e o sobre a sua pessoa, como no direito moderno,
mas ha de ser sempre elemento permanente e immu-
tavel do direito contraclual a obrigação da execução
do contracto, sem a qual elle se não pode com-
prehender.
Não se deve intender a evolução das instituões
juridicas no sentido de que ellas devam atravessar
as mesmas phases em todos os povos, como uma
successão regular e uniforme. È este, um erro
muito commum aos evolucionistas, que, tendo em
vista a unidade, interpretaram a evolução jurí-
dica dum modo exclusivista e inadequado, julgando
que todas as instituições em de passar por phases
fataes e preestabelecidas.
Com algumas anecdotas, diz Tarde, sempre as
mesmas e constantemente repelidas sobre os Selva-
gens, admittiu-se a unidade inicial de todas as socie-
dades, o mesmo estado social e jurídico em todos
os povos, concebendo-se depois phases fataes e
regularmente repetidas para o desinvolvimento do
direito.
Não se pode deixar de combater esta unidade
forçada, esta regularidade geometrica introduzida
em phenomenos tão complexos e variaveis, como
são os phenomenos sociaes. Estudando a historia
do direito, verifica-se que certas instituições ou
certas phases do desinvolvimento duma instituão
são proprias sómente dum ou de alguns povos ou
de determinada raça, e o communs às outras
raças ou aos outros povos. Ha tambem instituições
que se apresentam com caracteres de uniformidade
em todos os povos, mesmo nas diversas phases do
— 9
seu desinvolvimento, sendo isso devido- á identi-
dade das condições e das necessidades que ellas
traduzem, e accidentalmente tambem á influencia da
imitação 1.
3. Leis da evolução jurídica. Tres são as leis
da evolução jurídica formuladas por D'Aguanno: a
da tradição; a do ambiente; e a da lacta pelo
direito.
a) Lei da tradição. A lei da tradição corres
ponde nos organismos sociaes á lei da hereditarie
dade nos organismos individuaes. O organismo
juridico dum povo começa por apresentar fórmas
imperfeitas e rudimentares, e vai-se desinvolvendo
lenta e gradualmente á custa duma continua sobre
posição de elementos sociaes. As transformações,
por isso, por que passam as instituições jurídicas,
são unicamente parciaes, por mais progressivas que
pareçam, visto ellas não se poderem comprehender
sem o substractum em que venham a enxertar-se os
elementos da reforma.
Dabi deriva que as instituições jurídicas vivem
em grande parte do passado, encontrando-se, por
exemplo, o direito romano em quasi todos os artigos
dos codigos modernos, mesmo no codigo civil alle-
mão, apesar do horror que elle manifesta pelo
romanismo. O fundo das legislações dos povos
modernos é constitdo por o patrimonio judico
accumulado por um grande numero de gerões.
b) Lei do ambiente. O ambiente modifica o
organismo social, e por isso, as instituições juridi-
1
Icilio Vanni, Lezzioni di filosofia del diritto, pag. 228 e seg.;
Cogliolo, Evoluzione del diritto privato, pag. 26; Tarde, Trans-
formations du droit, pag. 165 e seg.
10
cas que nelle se encontram. E assim se com-
prehende que em cada povo as instituições jurídicas
revistam fórmas diversas, em correspondencia com
as condições do seu estado social.
Se uma legislação se não conformar exactamente
com as necessidades da sociedade para que ella foi
elaborada, impossível será sustenta-la na prática.
De todos é conhecido o insuccesso da tentativa feita
no Jao para ahi introduzir o Codigo de Napolo,
que era nessa epocba considerado a legislão mais
perfeita do mundo.
Como muito bem diz Gustave Le Bon, o direito é
a expressão das necessidades que elle deve reger.
O seu valor é, por isso, inteiramente relativo. Leis
excellentes para um povo, podem ser más para outro.
c) Lei da lucta pelo direito. Esta lei foi formu-
lada por Von Ihering, que demonstrou que a evolu-
ção jurídica implica sempre uma lucta, tanto por
parte do individuo, para fazer reconhecer o direito,
como por parte do poder civil, para o fazer respei-
tar. Deste modo, Von Ihering afastou-se da dou-
trina da escola historica, que sustentava que o direito
se desinvolvia, em virtude duma força propria ou
immanente, tão suavemente como a linguagem.
Von Ihering, porem, imbdo das idêas hegelia-
nas, considera esta lucta como representando o
eterno werden da ideia, concepção metaphysica,
inteiramente inadmissível. D'Àguanno intende esta
lucta, dum modo positivo, concebendo o desinvolvi-
mento historico do direito como um resultado do
attrito entre os novos interesses que surgem e os
outros que já não são patrimonio da maioria 1.
1
D'Aguanno, La genesi e l'evoluzione del diritlo civile, pag. 124;
Von Ihering, La lutte pour le droit, pag. 6 e seg.; Gustave Le
Bon, L'Homme et les sociélés, tom. II, pag. 376.
— 11 —
4. Conceito da historia das instituições. É por
as instituões jurídicas estarem sujeitas a transfor-
mações, em harmonia com as condições de existen-
cia e de desinvolvimento da vida social, que ha
logar para a historia das instituições.
É difficil determinar precisamente o objecto da
historia, desde o momento em que o ha factos
historicos pela sua natureza, assim como ha factos
biologicos e psychologicos. Parece, porem, qne se
deveriam considerar factos historicos os factos pas-
sados, por opposição aos factos actuaes, que fazem
objecto das sciencias descriptivas da humanidade.
Mas ultimamente Seignobos demonstrou brilhan-
temente qne é impossível sustentar esta opposiçio
na pratica. Ser presente ou passado não é uma
differença de caracter interno, podendo caracterizar
a natureza de um facto, é simplesmente uma diffe-
rença de posão relativamente a um certo observa-
dor. A revolução de 1830 é um facto passado para
nós, embora presente para as pessoas que a fizeram.
Do mesmo modo, a sessão de hontem da camara é
um facto passado. Não ha, pois, factos historicos
por sua natureza, ha simplesmente factos historicos
por posição. É historico todo o facto que se não
pode observar directamente, porque deixou de existir.
a evolução é que pode determinar rigorosa-
mente o objecto da historia. A historia é um ins-
trumento aperfeiçoado e poderoso adaptado ao estndo
da sciencia social. Ora, o que ha de mais impor-
tante na sciencia social é a evolução. É necessaria,
diz De Greef, para a observação duma cousa tão
extensa, continua, movei e complexa, como a evolu-
ção, uma vista de longo alcance, como a historia.
— 12 —
De modo que as instituições jurídicas estudam-se
na historia sob o aspecto da sua evolução. E assim
DÓS podemos definir a historia das instituições ju-
dicas como a disciplina que expõe as transformações
por que têem passado as instituições jurídicas e as
procura explicar em harmonia com as condições de
existencia e desinvolvimento das sociedades.
E deste modo a historia das instituições judicas
deixou de ser considerada como o estudo das mani-
festões de idêas eternas e immutaveis no seio da
humanidade, contrariamente ao que se julgava,
quando o direito era concebido como uma categoria
absoluta e abstracta. Então a missão da historia do
direito era descobrir e constatar essas idêas, que se
iam definindo com o desinvolvimento das
instituições 1.
5. Extensão da historia das instituições jurídicas.
Theoria de Flach. — A historia das instituições tem
sido estudada até agora principalmente sob o ponto
de vista descriptivo e nacional.
Ultimamente, porem, Flach mostrou que é impos-
sivel estudar a historia das instituições dum pais,
sem conhecer, pelo menos, nos seus traços geraes
a historia das instituições de todos os outros. E,
effectivamente, assim como não se pode estudar a
historia nacional dum pais sem conhecer as grandes
linhas da historia geral da civilização, o mesmo
1
Seignobos, La méthode historique appliquée aux sciences
sociales, pag. 2 e seg.; Salvemini, La storia considerata come
scienza, na Rivista italiana di sociologia, tom. VI, pag. 17 e seg;
De Greef, Introduction à la sociologie, tom. I, pag. 33; Salvioli,
La nuova fase della storia del dirilto, na Rivista di storia e filo-
sofia del dirilto, vol. I, pag. 3 e seg.
— 13 —
deve acontecer relativamente á historia das institui-
ções, não se podendo fazer o seu estado, sem
conhecer a historia das instituições dos diversos
paises, DOS seus caracteres fundamentaes.
Se povos da mesma raça, diz Flach, conservam,
na sua ngua, nas suas tradições, na sua litteratura
um fundo commum, depois de seculos de separão
profunda, qual será a razão porque elles não hão
de conservar tambem nas suas leis restos dum
passado afastado ? Como negar tambem que nações
vizinhas, involvidas em luctas encarnadas, succes-
sivamente conquistadoras e conquistadas, unidas
mais tarde, pelas relações que o commercio, a arte,
a cultura intellectual estabelecem entre os homens,
tenham exercido uma acção duradoura sobre as leis,
umas das outras?
Em harmonia com esta orientação, a historia das
instituições transforma-se numa historia da legisla-
ção comparada. É, segundo este criterio, que Flach
escreveu a sua bella obra Origines de l'ancienne
France 1.
6. A historia das instituões judicas e a socio-
logia jurídica. A funcção scientifica da historia
das instituições jurídicas é differente da funcção
scientifica da sociologia jurídica. A historia das
instituições judicas tem cumprido a sua missão,
desde o momento em que apresenta as transforma-
ções destas instituições e as explica em harmonia
com as condições de existencia e de desinvolvimento
das sociedades.
1
Alexandre Alvarez, Une nouvelle conception des études juri-
diques, pag. 157; Flach, Les origines de 1'ancienne France,
Introd., n.º VI.
— 14 —
A sociologia apodera-se depois dos materiaes
accumulados pela historia e procura verificar se
entre os factos humanos expostos ha relações de
constancia e de permanencia que lhe permitiam for-
mular leis sociaes.
Por exemplo, emquanto se investiga e expõe a
organização que o instituto da família teve num
certo pais e num certo tempo e se indicam as con-
dões que determinaram esta organização e as
transformações por que ella depois passou, faz-se
historia. Mas, se se confrontam entre si as famílias
de varios tempos e de varios togares, a fim de
verificar os elementos constantes que nellas ha e
assim estabelecer os caracteres desta instituição e
formular as leis que têem dominado a sua estru-
ctura e vida, então faz-se sociologia juridica.
De modo que a sociologia jurídica estuda as insti-
tuições jurídicas de um modo geral, abstrahindo
das condições especiaes das diversas sociedades, e
procura determinar os caracteres proprios destas
instituições, bem como as suas leis reguladoras 1.
7. Conceito da historia das instituições de direito
romano, do direito peninsular e do direito português.
Não nos cumpre, porem, expôr as instituições
do direito de todos os povos, mas unicamente do
direito romano, do direito peninsular e do direito
português. Por isso, para fazer uma idêa precisa
desta cadeira, torna-se necessario restringir a ampli-
tude do conceito da historia das instituões. Essa
restricção deriva, como é natural, das noções de
1
Salvemini, Rivista italiana de sociologia, tom. cit., pag. 21 e
seg.; Réné Worms, L'organisation scientifique de l'histoire, na
Revve internationale de sociologie, tom. II, pag. 641 e seg.
— 15 —
direito romano, de direito peninsular e de direito
português.
E' facil dar a noção do direito romano e do direito
português. O mesmo, porem, não acontece a res-
peito da noção do direito peninsular, parecendo a
inadmissível um direito peninsular contraposto ao
direito português, visto o direito português se dever
considerar tambem um direito peninsular, consti-
tuindo, como constitue, o direito vigente num povo
da Península Iberica.
Direito peninsular é evidentemente aquelle que
tem vigorado nas varias reges da Península Ibe-
rica. Deste direito, porem, unicamente nos importa
aquelle que serviu de precedente historico ao direito
português. E' por isso que se contrapõe o direito
português ao direito peninsular. Tem de se acom-
panhar a historia do direito da Península até ao
ponto em que começa o direito português.
Deste modo, podemos dar o seguinte conceito da
historia das instituões do direito romano, do direito
peninsular e do direito português: a disciplina que
expõe as transformações por que passaram as insti-
tuições jurídicas da sociedade romana, das sociedades
da Península Iberica a d constituição de Portugal,
e da sociedade portuguesa, procurando explil-as,
em harmonia com as condições de existencia e de
desinvolvimento destas sociedades.
8. Relações da historia das instituições com a
historia geral do direito. A divisão da historia
do direito em historia geral do direito e em historia
das instituições do direito é nova. Desde Leibnitz
que se costuma dividir a historia do direito cm
interna e externa.
— 16
Hinojosa ainda perfilha a divisão classica, consi-
derando historia externa a historia das fontes do
direito em sentido lato, isto è. a exposição das
fórmas por que se revela e realiza o direito, tanto
no costume, como na legislação e na sciencia, e
historia interna a que estuda a origem, florescimento
e decadencia das instituições jurídicas. Intendida
deste modo, a divio classica corresponde perfeita-
mente á divisão da historia do direito em historia
geral do direito e em historia das instituições do
direito.
Nem todos os escriptores comprehendem a distin-
cção entre a historia externa e a historia interna
deste modo, julgando uns que a historia interna é o
proprio direito exposto evolutivamente, e a historia
externa a historia dos factos que determinaram essa
evolão oo nella inflram, e intendendo outros que
a historia interna é a historia das fontes do direito,
e a externa a dos factos que a influenciaram, não
comprehendendo por isso esta divisão o estudo do
proprio direito, deixando-se assim o principal pelo
accessorio.
Foi, para evitar todas estas divergencias que se
encontram nos escríptores e que se tinham feito
sentir profundamente entre nós, que o decreto de 24
de dezembro de 1901 adoptou a nova divisão da
historia do direito.
Ha intimas relações entre a historia geral do
direito e a historia das instituições do direito, visto
a primeira ser o fundamento da segunda, assim como
esta é o complemento natural e logico daquella 1.
1
Hinojosa, Historia generale del derecho. espanol, tom. I, pag.
2; Relatorio da reforma da Faculdade de direito, de 1886, pag. 9 e
seg.; Rafael Altamira, Historia del derecho espanol ( Cuestiones
preliminares), pag. 44 e seg.
— 17 —
9. Importancia da historia das instituições jurí-
dicas. A importancia da historia das instituições
jurídicas modernamente é que foi reconhecida.
Por largo tempo se julgou que esta disciplina não
podia ter importancia, nem scientifica, nem
pratica.
Não podia ter importancia scientiGca, porque
a philosophia do direito, fundada sobre o estudo da
natureza racional do homem, é que constituía a
verdadeira sciencia judica, devendo como tal ins-
pirar e orientar o legislador. Não podia ter impor-
tancia pratica, visto admittir-se que as instituições
jnridicas, só pelo facto de serem consagradas pelo
legislador, se destacavam, apesar da sua origem
tradicional, do passado, para adquirirem uma exis-
tencia independente.
O resultado natnral desta orientação foi o serem
considerados os estudos da historia das instituões
jurídicas como uma curiosidade scienlifica e um
luxo de erudão sem valor algum. A antiga legis-
lão dum pais estudava-se, com um methodo pura-
mente descriptivo, que expunha os diplomas por
uma ordem chronologica, desprovida de todo o
espirito critico.
O tríumpho do methodo experimental, arruinando
a concepção philosophico-metaphysica do direito e
levando a considerar as instituições jurídicas como
organismos que se desinvolvem e transformam em
harmonia com as condões sociaes, veio resgatar a
historia das instituições do desprezo a que tinha
sido votada. Reconheceu-se que se não podia com-
prehender a natureza das instituições jurídicas sem
estudar a fórma como ellas se constituiram e des-
2
— 18 —
involveram, e que por isso era na historia das
instituições que se encontravam os elementos mais
preciosos para a elaborão da verdadeira sciencia
jurídica e da verdadeira philosopbia do direito.
Assim, como o naturalista, diz Papa D'Amico, pro-
cura, por meio do estudo nas estratificações e fórmas
vivas, determinar e seguir o processo de desinvol-
vimento dos organismos, assim o jurisconsulto
moderno tenta, com a analyse historica, reconstruir
as instituições jurídicas e desentranhar dos segre-
dos da evolução a sua verdadeira natureza.
Ao lado da importancia scientifica da historia das
instituões jurídicas, foi admittida tambem a impor-
tancia pratica desta disciplina, visto não se poder
intender o estado actual das instituições jurídicas,
sem conhecer as phases que ellas atravessaram no
passado, pois o presente, ainda depois das revolu-
ções sociaes mais profundas, liga-se ao passado por
vínculos taes, que se não podem quebrar sem o
tornar um enigma. E' por isso que Hinojosa affirma
ser indubitavel até ao ponto de ter passado à
categoria de verdade universalmente admittida e
proclamada, que, para conhecer e applicar com
acerto o direito vigente, se torna necessario estudar
os seus fundamentos historicos. Cada direito ou
legislação particular é parte da vida intellectual do
povo em que domina, é o producto de elementos
cuja acção se refere a epochas anteriores.
Outra razão da importancia pratica da historia
das instituões jurídicas, resulta do facto das refor-
mas a introduzir nos institutos jurídicos se não
poderem realizar sem o conhecimento da evolução
historica desses institutos, que mostra as tendencias
do seu desinvolvimenlo, as rmas que melhor con-
vèem ao espirito dum povo, os defeitos e vícios a
— 19 —
corrigir, e os elementos de organização a conservar e
aperfeiçoar.
Não é com o raciocínio poro, diz Salvioli, mas com
a historia das legislações passadas, confrontadas com
as presentes, que o jurista poderá explicar, reduzir a
systema e reformar o direito vigente 1.
10. Methodos da historia das instituições jurí-
dicas. A) Methodos de investigão: a) Methodo
historico propriamente dicto. — Os methodos da
historia das instituições jurídicas podem classificar-se
em dous grupos:
A) Methodos de investigação;
B) Methodos de exposição.
Os methodos de investigação recolhem os mate-
riaes de estudo. Os methodos de exposição coorde-
nam esses materiaes pela fórma mais logica e
systematica.
Os methodos de investigação são os seguintes:
a) Methodo historico propriamente dicto;
b) Methodo historico-comparativo;
c) Methodo colonial;
d) Methodo ethnographico.
Vejamos rapidamente em que consiste cada um
destes methodos.
1
Alexandre Alvarez, Une nouvelle conception des études juri-
diques et de la codification du droit civil, pag. 156 e seg.; Rafael
Altamira, Historia del derecho espanol (Cuestiones preliminares),
pag. 161; Hinojosa, Historia general del derecho espanol, tom. I,
pag. 3 e seg.; Salvioli, Manuale di storia del diritto italiano, pag.
2 e seg.; Papa D'Amico, L'oditrno indirizzo scientifico del diritto
commerciale, no Circulo Giuridico, tom. 26, pag. 34; Sr. Dr.
Pedro Martins, Historia geral do direito romano, peninsular e
português, pag. 10 e seg., onde o assumpto se encontra
proficientemente tractado.
— 20
O methodo historico propriamente dicto estuda a
historia das instituões judicas de cada povo sepa-
radamente. E' o methodo seguido pela escola histo-
rica, que, considerando como fonte do direito o
espirito, o caracter e a consciencia nacional, foi
levada naturalmente a fazer o estudo das institui-
ções judicas de cada povo isoladamente.
A escola historica, diz Savigny, quando formula
o seu programma, admitte que a substancia do
direito deriva do passado inteiro duma nação, não
duma maneira arbitraria e determinada pelo acaso,
mas surgindo das proprias entranhas da nação e da
sua historia. Deste modo protestava a escola
historica contra as doutrinas da revolução fran-
sa, que, tendo considerado o direito identico em
todos os povos, tentou, sem respeito algum pelas
differeas de civilizão, destruir as autonomias
nacionaes e incorporar os povos na Republica e no
Imperio.
Parece que a doutrina da escola historica devia
leval-a a excluir o direito romano, como um intruso,
do estudo da historia das instituões jurídicas dos
povos modernos. Mas os sectarios desta escola
procuraram cobril-o, como diz Von Ihering, com o
manto protector do principio da nacionalidade, mos-
trando que este direito se tornou o direito dos
povos modernos no decurso do tempo. E, apesar
da explicão o ser inteiramente satisfactoria, o
certo é que a escola historica se cobriu de gloria
precisamente na cultura do direito romano 1.
1 Ladislas Zaleski, Le pouroir et le droit, pag. 56; Tanon,
L'evolution du droit et la conscience sociale, pag. 26; Von
Ihering, L'esprit du droit romain, tom. I, pag. 4 a Seg.
21
11. b) Methodo historico-comparativo. O me-
thodo historico propriamente dicto era muito aca-
nhado e deficiente e por isso foi alargado e
transformado, principalmente por obra de Leist,
Post, Schrader, Berhhöft, Da reste, etc, no sentido
de se abranger na historia das instituições o estado
de todos os povos e de todos os tempos. . E, sob a
influencia deste methodo, o direito romano foi
completamente renovado por uma serie de estudos
e de investigações que ampliaram os seus limites
até á comprehensão de todo o mundo antigo. O
período pre-romano e oriental, foi assim desvendado
por uma serie de obras sobre o direito egypcio,
assyro-chaldaico, indiano, grego, e hebraico. Foi-se
ainda mais longe, ultrapassando os confins
historicos e dando uma idêa do direito antes de
toda a historia e de toda a civilização, de modo a
surprehender as suas origens e a esboçar as suas
primitivas fórmas.
Os proprios escriptores do direito romano, que
foram e são os mais enthusiasticos defensores do
methodo historico classico acabaram por ceder.
Tambem elles se convenceram que o grande e glo-
rioso monumento do Corpus Juris,, este edifício
immensamente complicado, para o qual a sua admi-
ração não tem limites, representa o produclo
lento e natural de adquisições progressivas.
Os sectarios do novo methodo não deixaram de
tirar deite todos os resultados aproveitaveis, pois,
comparando as fórmas prehistoricas e historicas do
direito com as fórmas contemporaneas, formularam
as leis geraes do desinvolvimento das instituições e
construíram uma theoria geral do direito. E' notavel
— 22
sobretudo a theoria de Post, defendendo a doutrina
de que o direito baseado sobre os princípios moraes
não passa dum sonho e duma mera chimera. Cada
guerra que acaba por ama conquista, cria para o
povo vencido um direito que está em contradicção
com a sua morai 1.
18. c) Methodo colonial. — O methodo colonial,
devido a Achille Lona, procura fazer desapparecer
uma das difficuldades que apresenta o estado das
instituições formadas e desinvolvidas em povos,
diversos pelos caracteres etimologicos, pelo gráo de
civilização, pelas crenças, etc. Por isso, o melhodo
colonial compara as condições sociaes e
economicas das colonias e ds mãe-patria, e
procura por esta fórma estudar o desinvolvimento
historico das diversas instituições, confrontando
povos identicos pela raça, religião, estado mental,
e differentes unicamente pela rma da occupão
do territorio. Por conseguinte, em ultima analyse, o
methodo colonial basea-se sobre o confronto entre
as condições economicas e sociaes das colonias e
da mãe-patria.
Este melhodo permitte explicar phases de evolu-
ção economica que, doutro modo, se não podem
comprehender. Assim, na Inglaterra do seculo XVII
dominava soberanamente o capitalismo, com
todas as instituições que o acompanham, a renda,
o lucro, o salario, etc Os colonos ingleses,
capitalistas e trabalhadores, abandonam a mãe
patria, estabelecem-se na America, e fazem surgir
nesta parte do mundo uma constituição social
inteiramente diffe-
1 Zaleski, Le pouvoi et le droit, pag. 57; Morasso, L'evolu-
zione del diritto, pag. 5; Tarde, Transformation du droit,
pag. 2 e seg.
— 23 —
rente da capitalista, visto os trabalhadores Dão se
sujeitarem ao regimen do salariado, apesar dos offe-
recimentos tentadores dos capitalistas, e
preferirem o regimen da explorão livre do solo,
em face dos immensos terrenos que podiam
occupar e cultivar por conta propria.
Mas, como se explica que homens, com a mesma
constituição anthropologica, com o mesmo
desinvol-vimento intellectual, com as mesmas ias
e tendencias, se encontrem, na mesma epocha, em
condões economicas tão diversas? A
comparação destas condições da America do
seculo xvII com as da Europa primitiva explica
satisfatoriamente o facto, mostrando-nos como na
Europa primitiva se encontram as mesmas
instituições que nos apparecem nas primeiras phases
da evolução das colonias, determinadas pelo
regimen da terra livre, que torna impossível uma
retribuão especial do capital, em virtude do
direito de opção de que gnsa o trabalhador.
E, se penetrarmos mais profundamente no desin-
volvimento das colonias, è facil de vêr que estas
reproduzem, por uma fórma abreviada e quasi em
escoo, a evolução economica e social da mãe-
patria. A escravidão, a servidão, as corporações
das artes e ofticios, o capitalismo, com as
consequencias jurídicas que são proprias destas
fórmas de organização, tudo isso se succede nas
colonias, com um caracter mais ou menos nitido,
mais ou menos perfeito. A evolução das colonias é
muito mais rapida do que a da e-patria, mas
apresenta as mesmas phases, podendo assim
esclarecer e elucidar muitos pontos duvidosos da
vida jurídica das sociedades 1.
1
Groppali, Lezzioni di sociologia, pag. 96 e seg,; Loria, Ana-lisi
della proprietá capitalista, tom. II, pag. 8 e Mg.; Loria,
— 24 —
13. d) Methodo ethnographico. O methodo
ethnographico é aquelle que procura reconstituir a
historia das instituões jurídicas por meio do estudo
das sociedades selvagens.
Sobre o valor deste methodo ha tres opiniões.
Segundo uma delias, seguida, entre outros, por
Posada, Lubbock, Kovalewski, ele., o methodo
ethnographico é legitimo, em virtude das analogias
e similhanças que apresentam as sociedades selva-
gens com as sociedades primitivas. A historia,
embora imperfeitamente, dá-nos algumas noticias
dos tempos primitivos. Ora, os factos e as insti-
tuições que resultam destas noticias encontram-se
verificados nas sociedades selvagens. A prehistoria
confirma esta concluo, pois mostra que o homem
da edade de pedra é analogo ao selvagem moderno.
Por conseguinte, por meio do estudo dos costumes
e das instituições dos povos que se consideram
selvagens, pode-se fazer uma idéa das fórmas da
vida jurídica da humanidade nas primeiras phases
da sua existencia.
Segundo outra opinião, seguida por Giddings,
Schiattarella, Topinard, etc, o methodo ethnogra-
phico não se pode considerar legitimo, visto os
selvagens actuaes o serem retardactarios da civi-
lização, mas degenerados da especie humana, em
via de extincção. As taras de degenerescencia que
Virchow encontrou nos selvagens modernos, as
riquezas da sua linguagem, que são vestígios duma
civilizão extincta, a impossibilidade de estes povos
Importance sociologique da études économiques sur les colonies,
nos Annales de l'lnstitut Internationale de sociologia, vol. IV, pag.
137 e seg.
— 25 —
progredirem, quando abandonados a si mesmos, o
facto de elles viverem em reges relativamente
estereis, inhospitas e inaccessiveis, para onde os
impelliram povos mais fortes, não permittem outra
conclusão.
Ora, sendo assim, o estudo das raças selvagens
de nada pode servir para a reconstituão das insti-
tuições jurídicas primitivas.
Segundo uma terceira opino, seguida principal-
mente por Amadori-Virgilii, o metbodo ethnogra-
phico é legitimo como um processo do metbodo
historico-comparativo. o se pode empregar como
um metbodo independente, mas como um metbodo
auxiliar, para completar e integrar os resultados do
methodo bistorico-comparativo. Quando o metbodo
historico-comparativo nos fornece os vestigios das
instituições, podemos recorrer aos dados ethnogra-
phicos para os desinvolver, completar e esclarecer.
Por exemplo, a coemptio romana demonstra a exis-
tencia duma fórma de casamento por compra. O
methodo ethnographico permitte, por meio do
estudo das sociedades selvagens, determinar os
caracteres desta instituição.
E' esta sem duvida a verdadeira funcção que se
deve attribuir ao metbodo etbnographico, quando se
queiram evitar os exageros e erros a que este
methodo tem conduzido alguns sociologos 1.
1
Amadori Virgilii, l'lstituto famigliare nelle sociètà primor-
diali, pag. 26 e seg.; Groppali, Lezioni di sociologia, pag. 33 e
seg.; Posada, Théories modernes sur les origines de la famille, de
la société et de l'Élat, pag. 29 e seg.; Giddings, Principes de
sociologia, pag. 190 e seg.; Topinard, L'anthropologie et la science
sociale, pag. 147 e seg.
— 26 —
14. B) Methodos de exposão: a) o methodo
chronologico. Os methodos de exposição são os
seguintes: a) o methodo chronologico; b) o methodo
ethnographico.
O methodo chronologico divide a evolução jurídica
em períodos e estada o desenvolvimento historico
das instituões dentro de cada peodo. O methodo
chronologico costuma a seguir-se no estudo da histo-
ria das instituições de direito publico e a rejeitar-se
no estado da historia das instituições de direito
privado.
Ultimamente, porem, Ciccaglione procurou defen-
der o emprego do methodo chronologico no estado
da historia de todas as instituições jurídicas, como
o unico legitimo e admissível. Ou se acceita o
methodo chronologico e nesse caso deve seguir-se,
tanto na historia das instituições do direito publico,
como na historia das instituições do direito privado,
ou se rejeita e nesse caso não se deve applicar nem
á historia das instituições do direito publico, nem á
historia das instituições do direito privado.
É impossível expor as transformações do direito
publico sem a divisão em períodos; ora, como as
instituições politicas e sociaes exercem uma influencia
consideravel sobre as instituões de direito privado,
necessario se torna tambem conservar tal divisão na
historia destas ultimas instituições.
O methodo chronologico torna mais claro o desin-
volvimento do instituto a aos nossos dias, evitando
as confusões que facilmente podiam dar-se com a
exposão rapida das phases do direito privado, que
tem uma evolução mais lenta e menostida do que
o direito publico. Nem se diga que este methodo
— 27 —
origem a repetições, porquanto ellas podem ser
facilmente evitadas, estudando em cada período
unicamente as transformações experimentadas pela
instituição 1.
15. b) Methodo monographico. O methodo
monograpbico estuda separadamente e em todo o
decurso da sua evolução cada uma das instituições
jurídicas. É o methodo que tende a predominar no
estudo da historia das instituições do direito
privado, sendo seguido por Gierke, Salvioli, Nani,
Viollet, etc.
Este methodo harmoniza-se mais intimamente com
a natureza especial do processo de desinvolvimento
que é proprio de cada uma das manifestações da
vida jurídica, e tem a vantagem de nos fazer com-
prehender a evolução da instituição no seu con-
juncto.
A evolução das instituições do direito privado
faz-se mais lentamente do que a evolução das insti-
tuições de direito publico, e por isso a divisão em
peodos da historia daquellas instituições não pode
deixar de ser arbitraria e prejudicial. São tambem
imposveis de evitar as repetições com o methodo
chronologico, pois torna-se necessario retomar em
cada período o fio da evolução de cada uma das
instituições jurídicas.
Não deixa, porem, o melhodo monograpbico tam-
bem de ter os seus inconvenientes, emquanto quebra
a unidade organica da vida jurídica, impossibilita a
vista do conjuncto da historia e difficulta a explica-
1
Ciccaglione,
Lezioni di storia del diritto italiano,
pag. 7.
— 28 —
ção das influencias reciprocas que se dão entre as
diversas instituições 1.
16. A systematização classica da historia das
instituições juridicas. A systematização
classica da historia das instituições juridicas
obedece á divisão do direito em publico e privado,
denominando até alguns escriptores, como Edouard
Cuq, as instituições de direito publico, instituições
politicas, e reservando a denominação de
instituições jurídicas para as instituições de direito
privado. Esta systematização é viciosa, visto ser
falsa a divisão do direito em publico e privado.
Quatro criterios têem sido apresentados para
fazer esta divisão: a) o sujeito das relações jurí-
dicas ; o) o fim das normas reguladoras dessas re-
lações; c) as consequencias da violação das regras
jurídicas; d) a natureza do direito.
Nenhum destes criterios, porem, consegue diffe-
renciar os dois ramos do direito, como é facil de
demonstrar.
a) Sujeito do direito. Segundo este criterio,
adoptado por Kirchmann, o direito publico tem por
sujeito o Estado, o direito privado, o individuo.
Este criterio é deficiente, pois, por um lado, o
Estado pode ser sujeito de direito privado (num
grande numero de relações sobre a propriedade e
os contractos), e, por outro, tambem o individuo
pode ser sujeito de direito publico (quando o indi-
viduo se considera nas suas relações com o
Estado).
b) Fim das normas jurídicas. Segundo este
criterio, adoptado, eotre outros escríptores, por
1
Rafael Altamira, Historia de derecho espanol
(Cuestions preliminares), pag. 158.
— 29 —
D'Aguanno, o direito publico tem por fim a utili-
dade da sociedade, e o direito privado tem por fim
a utilidade dos indivíduos. Este criterio é tambem
imperfeito, pois, sendo a sociedade um organismo
composto de indivíduos, facil é de ver o que inte-
ressa ao individuo o pode deixar de interessar á
sdciedade, e o que interessa á sociedade o pode
deixar de interessar lambem ao individuo, visto os
interesses das partes e do todo deverem ser neces-
sariamente correlativos e harmonicos.
Em todas as normas jurídicas, pois, se coorde-
nam os dois interesses: o interesse privado e o
interesse publico. É, por isso, que alguns escri-
ptores, como Cogliolo, ainda procuraram sustentar
neste campo a distincção entre o direito publico e
o privado, considerando publico o que tem por fim
directo e immediato a utilidade publica e derivada-
mente a particular, e privado o que tem por fim
directo e immediato a utilidade particular e deriva-
damente a publica.
Mas nem mesmo, deste modo, se pode sustentar a
provecta distincção entre direito publico e privado,
visto no direito privado se encontrarem as disposi-
ções de ordem publica, que se referem directa e
immediatamente á utilidade do Estado.
c) Consequencias da violação das regras jurídicas.
Segundo este criterio, seguido principalmente
por Thon, ao direito privado pertencem as normas
garantidas por uma acção privada, e ao direito pu-
blico as normas asseguradas por uma acção publica.
Este criterio tambem é insuficiente para basear a
distinão entre o direito publico e o direito privado,
pois, admittido que umas normas são garantidas por
uma acção publica e outras por uma acção privada,
ainda fica por saber a razão duma tal difierença.
— 30 —
d) Natureza do direito. Segundo o criterio da
natureza do direito, o direito publico distingue-se
do direito privado por ser um jus necessarium,
contrariamente a este que é um jus voluntarium.
E' tambem inadmissível, pois ha muitos direitos pri-
vados que têem um caracter de necessidade, como
as obrigações provenientes dos delictos e quasi
delictos, e ha direitos publicos que não têem um
caracter de necessidade, como o voto eleitoral 1.
17. Systematizão que adoptamos. Sendo O
direito uma norma reguladora da actividade social,
ha de fatalmente adaptar-se ás differentes manifesta-
ções desta, devendo, por isso, haver tentas categorias
de instituões juridicas, quantas são as funões da
sociedade, systematizadas pela classificação sociolo-
gica. Mas, como não nos é possível percorrer todas
estas instituões, e algumas delias já devem ser
conhecidas, visto o se poder fazer a historia das
fontes sem a exposição das instituições politicas,
restringimos, no plano deste corso, o quadro que
naturalmente resulta da classificão sociologica do
seguinte modo:
Consideraremos, em primeiro logar, o sujeito da
relação jurídica em si mesmo, estudando a historia
da personalidade ou capacidade jurídica. Eviden-
temente, que não seria possível comprehender os
diversos institutos jurídicos sem o conhecimento das
1 D'Aguanno, La riforma intregrale delia legislazione civile na
Scienza del diritto privato, tom. I, pag. 688; Brugi, Introduzione
enciclopedica alle scienze giuridiche e sociali, pag. 130; Cogliolo,
Filosofo del diritto privato, pag. 113 e seg.; Ahrens, Cours de
droit naturel ou de philosophie du droit, tom. I, pag. 278;
Korkounov, Cours de théorie génêrale du droit, pag. 253 e seg.
— 31 —
normas relativas ao sujeito do direito. Como muito
bem diz D'Aguanno, todos os institutos jurídicos
assentam sobre a presonalidade, não no sentido de
que devem ser regulados em vantagem exclusiva do
individuo, mas no sentido de que não podem sub-
sistir sem as pessoas, que lhes o vida, em bene-
ficio do individuo e da sociedade.
Em seguida, estudaremos as instituições do direito
economico visto a funcção economica ser a base
de toda a vida social. Não podemos expor todas
as instituições do direito economico, porque isso
tomar-nos-hia todo o tempo. Preoccupar-nos-hemos
principalmente com dous institutos, que têem uma
importancia fundamental no organismo juridico
o direito de propriedade e o direito das obrigações.
Exporemos o direito das obrigões depois do direito
de propriedade, porque as obrigões com raras
excepções, lêem por fim adquirir a propriedade ou
algum direito a ella inherente.
Entraremos, depois, no estudo das instituições
do direito familiar, que apparece natural e histori-
camente depois do direito economico, visto á con-
servão do individuo se seguir immediatamente a
conservação da especie.
Occupa o quarto logar no nosso plano o estudo
do direito successorio, que constituo um direito
mixto, de caracter economico e familiar, como
intende De Greef, visto se encontrar intimamente
connexo com o regimen da propriedade e com a
organização da familia.
Este systema é o geralmente seguido na Alma-
nha. Mereceu, porém, as criticas acerbas de Antonio
Menger, que intende que se deve expor o direito de
familia antes do direito de propriedade, visto as
instituições familiares constituírem um dos funda-
— 31—
mentos de toda ã sociedade civil, nio tendo por
fim, como a propriedade, estabelecer um privilegio
em favor de certos grupos da população.
Relativamente á propriedade, a maioria da nação
tem nm interesse passivo, visto este instituto se
propôr estabelecer o antagonismo entre possuidores
e proletarios.
As criticas de Antonio Menger podem até certo
ponto admittir-se, quando se tracta da exposição das
instituições do direito vigente. O mesmo, porem,
não se pode dizer, quando se trata da exposição
historica das instituões judicas, em que se torna
necessario attender á ordem por que ellas foram
apparecendo. E esta ordem ime a systematizão
que adoptamos 1.
1
De Greef, Introduction à l'étude de la sociologie, tom. II, pag.
367; Antonio Menger, Il diritto civile e il proletariato, pag. 28 e
seg.
PARTE PRIMEIRA
A PERSONALIDADE
.
CAPITULO I
PESSOAS SEM CAPACIDADE JURIDICA
§1.º
Escravos
SUMMARIO : 18. Classificação das pessoas sob o aspecto da
historia da capacidade jurídica. Doutrina de Nani. 19.
Conceito da escravidão. 20. Origem historica da escra-
vidão. — 21. A escravidão no direito primitivo. — 22. A
escravidão na Hespanha primitiva. 23. A escravidão
romana. Desinvolvimento historico da instituição. — 24.
Condição juridica do escravo. A) Condição jurídica do
escravo relativamente ao senhor : a) Quanto á pessoa — 25.
b) Quanto a bens. 26. B) Condão jurídica do escravo
relativamente á sociedade. 27. Influencia do christia-
nismo sobre a condição jurídica do escravo. 28. Fontes
da escravidão. 29. Fórmas da sua extincção. 30. A
manumissão. —.31. A escravidão entre os germanos.
32. A escravidão goda. Diversas categorias de escravos.
33. Condição jurídica dos escravos. — 34. Fontes da
escravidão. 35. Cessação da escravidão. — 36. Natureza
da servidão na Reconquista. Doutrinas de Herculano e
Munoz y Romero. — 37. A escravidão neste período.
38. Desinvolvimento historico da escravidão em Portugal.
39. A escravidão nas colonias. — 40. A abolição da
escravidão e o regimen do trabalho colonial. 41. Con-
dição jurídica do escravo entre nós. 42. Fontes da
escravidão e fórmas da sua extincção.
18. Classificação das pessoas sob o aspecto da historia
da capacidade juridica. Doutrina de Nani. A
personalidade ou capacidade juridica é a sus-
ceptibilidade de direitos e obrigações.
A escola metaphysica intendia que tal susceptibili-
dade pertencia ao homem, considerado em si mesmo,
— 36 —
independentemente da sociedade e do poder social.
Esta doutrina da escola metaphysica é uma conse-
quencia logica e necessaria do seu racionalismo
abstracto, em virtude do qual o direito é conside-
rado como um attributo do individuo, pertencendo-lhe
unicamente por tal ser a sua natureza, independen-
temente da realidade concreta.
A escola positiva veiu arruinar, pela base, esta
theoria, mostrando que o conceito de personalidade
não se pode comprehender fóra da sociedade, se-
guindo até as diversas phases do seu desinvolvimento.
E, effectivamente, o homem, abstractamente conside-
rado, não tem direitos a fazer valer e a reclamar, esta
necessidade unicamente surge, qnando elle se estuda
no meio social e nas relações que dahi derivam.
0 verdadeiro sujeito do direito, logge de corres
ponder ao typo abstracto da metaphysica, o qual
não passa duma verdadeira phantasia, é variamente
determinado pela influencia dos elementos sociaes,
apresentando caracteres diversos, conforme os esta
dios da evolução historica. O direito não pode
admittir princípios absolutos, immutaveis, iguaes
para todos os povos e para todos os tempos, visto
ser uma formação natural, um organismo que se
desinvolve e transforma, em harmonia com as con
dições de existencia das sociedades.
Ora é por a capacidade jurídica não ter um
caracter absoluto e immutavel que se podem agru-
par historicamente as pessoas em tres classes, como
faz Nani: pessoas sem capacidade juridica; pessoas
com capacidade jurídica limitada; pessoas com capa-
cidade jurídica privilegiada 1.
1
Schiattarella,
Saggio di un conceito scientifico della persona-
litá giurídica,
pag. 149; Giuseppe Cimbali,
Herbert Spencer,
Restauratore del diritto naturale,
pag. 10; Auzilloti,
La scuola
— 37 —
10. Conceito da escravidão. Na categoria das
pessoas que não gozaram de capacidade jurídica
encontram-se os escravos e os servos da gleba.
É' sabido que a palavra escravos
unicamente entrou na terminologia juridica, quando
grande numero de eslavos, sclavi, foram trazidos
como prisioneiros de guerra para a Allemanba e
para a França, e vendidos pelos commerciantes
christãos, frequentemente, mesmo aos
mahometanos.
Antes disto, a palavra adoptada para designar
esta categoria de pessoas era a de serviu. Mas,
como, em seguida ás invasões, o servo melhorou
gradualmente de condão, a palavra perdeu a sua
significação primitiva. Dahi a opposição que depois
se veio a estabelecer entre a servidão e a escravio.
A escravidão é assim uma palavra nova, designando
uma instituição antiga.
E' difficil dar uma noção de escravio, em vir-
tude das diversas modalidades que a instituão tem
apresentado nos povos que a tom admittido. A defi-
nição, porem, dada pelos jurisconsultos romanos é
a que melhor traduz o caracter fundamental desta
instituição. A escravidão, segundo elles, é uma
instituão pela qual uma pessoa, contrariamente à
natureza, se torna propriedade duma outra.
O escravo fica inhibido de dispor como quizer,
da sua pessoa e dos seus actos, nos limites estabe-
lecidos pelo direito, e por isso não gosa do domínio
de si proprio. E' propriedade de outrem 1,
del diritto naturale nella filosofia giuridica contemporanea,
pag. 18; Nani, Stovia del diritto italiano, pag. 24 e seg.
1 Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 295; Fustel de
Coulanges, L'alleu et le domaine rural, pag. 374 e seg.
— 38 —
20. Origem historica da escravio em geral. — A
origem da escravio só recentemente é que foi
completamente esclarecida. Todos sabem que Aris-
toteles combateu a opinião daquelles que julgavam
ser a escravio contraria á natureza humana e que
apresentavam esta instituição como introduzida pela
lei e pela violencia.
A natureza, segundo elle, o cria senão seres
desiguaes. Na especie humana, ha indivíduos tão
inferiores, naturalmente, aos outros, quanto o corpo
é inferior á alma, o animal ao homem. Estes seres
o aptos unicamente para os trabalhos manuaes, e,
por isso, são justa e naturalmente escravos. De
modo que, segundo este modo de ver, a escravidão
tiraria a sua origem da propria natureza do homem.
Tal opino, porem, unicamente se pode considerar
como um artificio imaginado pela mente do grande
philosopho para justificar uma instituão o profun-
damente radicada no seio da civilizão hellenica.
A esta doutrina que procurava dar á escravidão
uma origem natnral, contrapôs-se outra, que se
propôs dar a esta instituição uma origem historica.
A escravio ter-se-hia originado, segundo esta dou-
trina, como consequencia da guerra e da conquista.
O escravo é primeiramente um inimigo vencido,
embora depois esta classe social venha a augmentar
em virtude doutras causas, que fizeram entrar nella
os descendentes dos escravos, os devedores adju-
dicados aos credores, em compensação dos seus
debitos, os delinquentes entregues á parte offen-
dida, etc.
Esta opino, porem, não explica, dum modo sufi-
cientemente claro, o apparecimento da escravidão,
— 39 —
Visto o indicar as causas e os motivos que
levaram a transformar o vencido em escravo.
Letourneau procurou preencher a lacuna que apre-
senta esta doutrina, mostrando as condições em que
se verificou esta transformação. Para que surja a
idêa da escravio, diz Letourneau, são necessarias
certas condições, que se podem resumir numa só,
a possibilidade de tirar do escravo um partido van-
tajoso. Faltando esta possibilidade, torna-se prefe-
rível matar o vencido a escravizal-o. A doutrina
de Letourneau, porem, tem um caracter restricto,
porquanto o explica o apparecimento da escravi-
dão nas colonias, depois da sua abolição, ha seculos,
na Europa.
Os estudos feitos sobre as colonias, mostrando que
estas reproduzem, por uma rma abreviada, quasi
em escorço, a evolução economica da mãe patria, é|
que vieram ultimamente lançar luz vissima sobre
a origem da escravidão, resolvendo esta questão
dum modo completo. Segundo a nova doutrina,
seguida por Loria, a escravidão tem uma causa eco-
nomica e nesta causa encontra a sua verdadeira
explicação. A escravidão apparece-nos como uma
condão absolutamente necessaria para desinvolver
a producção nos países onde vigora o regimen da
economia dissociada e independente. por meio
da cooperão foada que involve a escravidão, é
que é eno possível obter um lucro, em virtude da
impossibilidade do trabalho salariado 1.
1
Letourneau, L'évolution de l'esclavage, pag. 490 e seg.; D'A
guano, La genesi e 1'evoluzione del diritto civile, pag. 175 e seg.;
Loria, Analisi delia proprietá capitalista, tom. II, pag. 17
e seg.
— 40 —
21. A escravidão no direito primitivo. Não
deve admirar por isso que a escravidão o seja
uma condição indispensavel das sociedades primi-
tivas, havendo até muitas delias qne o possuem
escravos. E' necessario um certo desinvolvimento
economico e social para qne possa ter logar a
escravidão.
Do contrario, em logar de ser reduzidos á escra-
vidão, os captivos são mortos e devorados, como
acontece em algumas raças selvagens, onde as
viclorias são coroadas e sanccionadas por festins
cannibalescos. Muitas vezes, porem, o conser-
vados como alimentos de reserva, e utilizados em
alguns serviços, emquanto não lhes chega a vez de
serem retalhados. Mas este aproveitamento não
sanguinario dos eaptivos unicamente pode trium-
phar com o desinvolvimento da pastoricia e da
agricultura, que permittem descarregar sobre elles
certas occupações uteis mas desagradaveis.
Em muitos povos primitivos, o desinvolvimento
da escravidão foi contrariado pela condição humi-
lhante da mulher, sujeita aos mais duros trabalhos,
podendo o homem arrogar-se sobre ella todos os
direitos que depois lhe vieram a pertencer sobre
os escravos. As primeiras pessoas reduzidas á
escravidão foram ate as mulheres e as creanças,
sem dnvida porque ellas eram mais faceis de
dominar e guardar do que os captivos do sexo
masculino.
E' provavel até, segundo Letourneau, que os pri-
meiros escravos varões tenham sido creanças captu-
radas com suas mães, e creadas em casa dos
captores. Para que os adultos possam ser redu-
— 41 —
zidos à condição de escravos, tornam-se necessa-
rias sociedades numerosas, occupando um territo-
rio assás vasto e dispondo de efficazes meios de
coerção.
Com os progressos da agricultura, constituem-se
duas categorias de escravos: os domesticos, que
participam da vida commum da familia dos senhores
; os ruraes, que passam a maior parte do tempo longe
dos senhores, empregados nos campos e na guarda
dos rebanhos. A condição destes ultimos era mais
precaria, visto serem assimilados aos animaes
domesticos, que ainda não se utilizavam como forças
mecanicas, sendo todos os trabalhos executados pelas
mulheres e pelos escravos, que encontramos
frequentemente atrellados á charrua 1.
22. A escravidão na Hespanha primitiva. — A dis-
tincção entre homens livres e escravos existiu no
período pre-romano do direito peninsular, como dis-
tincção provavelmente commum a todos ou á maior
parte dos povos que abrange este período. E' certo
que o muito poucos e escassos os testemunhos
relativos á escravio no período pre-romano, mas
isto explica-se facilmente pela nenhuma intervenção
desta classe nos negocios publicos, proporcionando,
assim, raras occasiões aos escripto-res e aos monu-
mentos para ser mencionada.
Ha, porem, alguns testemunhos que tornam indu-
bitavel a existencia da escravidão neste período.
Effectivamente, Plinio fallando dos astures, diz que
havia entre elles 240:000 homens livres, o que se
não pode comprehender sem a existencia da escra-
1
Letourneau, L'
évolution de l'esclavage,
pag. 491.
— 42 —
vidão. Apiano refere-se aos escravos de Viriato. E'
provavel tambem que se refira á escravidão um
edicto de Emilio Paulo do anno 189 antes de
Christo, que foi encontrado em 4867 numas
escavações perto de Cadiz, gravado em bronze.
Segando esse edicto, o proconsul Emilio Paulo
decreta que os servos (servei) dos Hastenses, que
habitavam na torre Lascutana, ficassem livres, e
manda que continuem a occupar as terras e o
oppido que naquelle tempo possuíam. Madwig
julga que o edicto se refere á creação duma nova
communidade municipal, com escravos fugitivos da
cidade de Hasta, intendendo por elles uma classe
de homens identica á classe servil dos romanos.
Segundo Mommsen e Rodriguez Berlanga, os
servos dos Hastenses da torre Lascutana não eram
verdadeiros escravos, no sentido que esta palavra
tinha entre os romanos, mas indivíduos de
condição inferior na ordem politica e jurídica,
collocados em certa situação de dependencia,
similhante á dos ilotas de Sparta.
Hinojosa, apreciando as divergencias destes escri-
ptores, julga menos engenhoso mas mais
verosímil o intender que se trata de verdadeiros
escravos publicos ou privados de Hasta, que, por
effeito dama dessas revoluções sociaes, tão
frequentes na historia da antiguidade, fugiram de
Hasta, refu-giando-se na torre Lascutana, fazendo-
se fortes aqui e recorrendo ao protectorado romano
para arrostar com o poder dos seus primitivos
senhores.
Havia escravos publicos, propriedade do
Estado ou das cidades, e privados, que os seus
senhores dedicavam á cultura dos campos, ao
trabalho das minas, ao servo domestico, ás
funcções administrativas inferiores, etc. A sua
condição jurídica devia
— 43 —
ser o desgraçada como a de todos os escravos da
antiguidade, posto houvesse uma classe delles exclu-
sivamente dedicada á agricultura, que parece ter
gosado duma certa liberdade relativa 1.
23. Desinvolvimento da escravidão entre os
romanos. A escravidão apparece-nos em Roma,
desde a fundação da cidade, como consequencia
das condições economicas em que os romanos se
encontravam. Os romanos' tinham entrado nesta
epocha no periodo agrícola, e a escravidão foi um
meio de que elles lançaram mio para obter, DO
regimen de economia dissociada e independente que
então dominava, a cultura das terras.
A fonte que alimentou primeiramente a escravi-
o foi a conquista. O prisiomeiro de guerra ficava
entregue à completa discrição do captor, que com-
prebendou a conveniencia de lhe conservar a vida,
fazendo o trabalhar em beneficio proprio. Os juris-
consultos romanos procuraram até justificar a escra-
vidão, partindo da sua principal origem. O vencedor,
diziam elles, tendo o direito de matar o vencido,
tem, com mais forte razão, o direito de o fazer
propriedade sua.
Os romanos, no principio, tiveram um numero
muito reduzido de escravos. Não conhecendo ainda o
systema das grandes explorões agrícolas e levando
uma vida simples, os romanos não precisavam evi-
dentemente dum pessoal muito numeroso para a
cultura ou para o serviço domestico.
1
D. Joaquim Costa) Estudios ibericos, pag. LXXV e seg.;
Hinojosa, Historia general del derecho espanol, tom. I, pag. 69 e
seg.; Rafael Altamira, Historia de Espana y de la civilisacion
espanola, tom. I, pag. 60 e seg.
— 44 —
Com o desinvolvimento da grande propriedade e o
abandono da cultora directa, com o uso de occupar
os escravos em trabalhos industriaes, uso corrente
entre os gregos, mas muito tarde adoptado pelos
romanos, e com a expansão do luxo, originando
novas necessidades, até eno desconhecidas, que a
actividade servil satisfazia, o numero dos escravos
foi augmentando extraordinariamente, a ponto de,
no fim da republica e no começo do imperio, os
escravos possuidos por um só senhor altingirem
proporções enormes. Plínio falia dum romano do
tempo de Augusto, que, apesar das perdas que tinha
soffrido com as guerras civis, ainda assim deixou
para cima de quatro mil e cem escravos.
Era frequente o numero de escravos possuídos por
um só senhor elevar-se a dez mil e a vinte mil 1
Foi, com o desinvolvimento destas condições, que
appareceu, nos ultimos tempos da Republica, o tra-
fico da escravatura, cuja invenção alguns estrangeiros
se comprazem em attribuir aos portugueses. Roma
converteu-se então num dos principaes mercados de
escravos. Este commercio tornou-se tão lucrativo,
que personagens elevadas não lhe resistiram, como
o austero Gao, que comprava escravos jovens para
os vender depois com grandes interesses *.
24. Condição juridica do escravo. A) Condição ju-
rídica do escravo relativamente ao senhor, (a Quanto
à pessoa. A condição judica do escravo romano
pode encarar-se sob dois aspectos: relativamente ao
1
Joachim Marquardt, La vie privée des romains, tom. I,
pag. 160 e seg.; Von lhering, L'esprit du droit romain, tom. I,
pag. 171 e seg.; Letourheau, L'êvolution de 1'esclavage, pag. 383
e seg.
— 45 —
senhor e relativamente á sociedade. O primeiro
aspecto ainda se pode desdobrar em dons, segundo
se considera a condição juridica do escravo quanto
á pessoa on quanto aos bens.
Parece que, primitivamente, o poder que o pater-
familias tinha sobre os escravos era o mesmo que
tinha sobre os filhos a manus. Mas, dentro em
breve, differenciou-se delle, moldando-se pelo do-
nio que pertencia ao pater-familias sobre as cousas
inanimadas dominica, herilis protestas. O escravo
ficou sendo assim considerado como uma consa, de
que o senhor podia dispor como intendesse.
E' vulgar o dizer-se que a situão do escravo era
detestavel na antiga Roma e que esta situão unica-
mente se modificou com o Imperio, cuja legislão
traduz sentimentos muito humanos a respeito deste
assumpto. Scbweppe chegou mesmo a sustentar qne
a posição do escravo negro dos tempos modernos
era mais suave do qne a do escravo da antiga
Roma.
Von Ihering, destruiu completamente este pre-
juizo, mostrando que, na epocha antiga, os usos
asseguravam ao escravo uma condição que a legisla-
ção nunca lhe de garantir posteriormente. Varios
factos contribuiram para isto. O escravo da antiga
Roma pertencia, geralmente, a um povo vizinho, não
apresentando inferioridade ethnica, intellectual ou
moral relativamente ao seu senhor, que muitas vezes
até excedia, sob o ponto de vista da educação.
Com a expansão das suas conquistas, os romanos
começaram a alimentar a escravio com elementos
da Asia e da Africa, augmentando eno extraordi-
nariamente a separação entre os senhores e os
escravos, visto entre elles se cavar o abysmo que
existe entre a civilização e a barbarie. Este estado
— 46 —
de cousas, diz Von Ihering, não sómente devia tor-
nar mais difficil toda a approximão entre senhores
e escravos, mas tambem devia desencadear e pro-
vocar, por ama fatalidade psychologica, a rudeza e
o arbítrio que se podiam encontrar no fundo do
caracter do senhor.
Por outro lado, como a fonte principal da escra-
vidão era a guerra, os romanos não podiam deixar
de ter uma certa considerão por qnem tinham
encontrado no campo da batalha, como adversario
digno de respeito, occupando talvez na sua patria
uma posição elevada. E, como se admittia o prin-
cipio da reciprocidade relativamente ao modo de
tractar os prisioneiros de guerra, os romanos esta-
vam profundamente interessados em o proceder
para com elles por uma forma cruel e deshumana,
que depois lhe podia ser egualmente applicada.
Demais, os escravos, na epocba antiga, eram muito
poucos, como vimos, podendo, por isso, o senhor
conhecel-os pessoalmente, estar ao corrente das suas
aventaras e interessar-se por elles, originando-se
assim laços de affeição, que não podiam manifestar-se,
qnando augmentou o seu numero, a não ser relati-
vamente a alguns que tivessem attraido, por qualquer
circumstancia, a attenção do seu senhor.
A tudo isto accrescia a communidade de trabalho
e de vida domestica, não se encontrando o senhor e
os escravos em situações inteiramente oppostas, pois
todos os dias o trabalho dos campos os reunia e
approximava, visto então dominar o systema de cul-
tura directa. E o senhor, que apreciava a capaci-
dade do escravo no trabalho, não podia deixar de o
estimar na vida domestica, onde elle era admittido
ao culto dos deuses, partilhava das alegrias e des-
gostos da família e prestava relevantes serviços.
— 47 —
Em presença destas condões, é facil de ver como
a opinião pnblica se devia insurgir contra a cruel-
dade e a deshumanidade para com os escravos, vendo
nellas abusos do poder dominical, tão condemnaveis
sob o ponto de vista moral, como sob o ponto de
vista do interesse publico, e devendo até o censor
pedir contas ao senbor da sua conducta tyrannica.
Dava-se, assim, um certo numero de circumstancias
que actuavam no sentido de reduzir o poder domi-
nical theoricamente illimitado a uma pratica racional.
Com a mudança destas circumstancias, em virtude
do desinvolvimento do povo romano, a condição dos
escravos peora consideravelmente, ficando inteira-
mente dependentes dos caprichos e da crueldade dos
seus senhores, nada havendo que os podesse subtrair
ás violencias, à prostituição e á morte.
A historia conserva o nome dum tal Vedius Pollio,
amigo de Augusto, que fazia lançar escravos á agua
para alimentar os seus peixes !
Sob a influencia da philosophia estoica, que se
propôs erguer a natureza humana da sua decadencia,
chegando Seneca a defender os escravos e a procla-
mar o principio da unidade da natureza humana, a
legislão intervem no sentido de limitar os excessos
do poder dominical.
E' neste movimento que se filiam: a lei Petronia,
prohibindo aos senhores expor os escravos no circo
para combater com as feras, a não ser a titulo de
pena e com auctorização dos magistrados; um edito
de Claudio, applicando a pena de homicídio ao senhor
que mata o seu escravo enfermo ou doente; um
senatus-consulto do tempo de Adriano, retirando aos
senhores o direito de punir os crimes graves com-
mettidos pelos seus escravos; duas constituões de
Antonino rio, uma punindo o senhor que mata um
— 48 —
escravo, como se tivesse morto um cidao, e outra
obrigando por ordem dos magistrados, o senhor a
vender o escravo que porventura maltractasse.
Os imperadores justificam estas, e outras restri-
ões impostas ao exercido do poder dominical, com
o fundamento de que o interesse do Estado exige que
o proprietario não abuse da cousa que lhe pertence.
No fundo, porem, elles inspiravam-se incontesta-
velmente nas idêas e nos sentimentos de humanidade
que nos apparecem nos escriptos dos philosophos
estoicos. Os imperadores chrisos continuaram este
movimento anteriormente iniciado no sentido da pro-
teão physica dos escravos, não modificando, porem,
profundamente a sua condão legal 1.
25. b) Quanto aos bens. O escravo não podia
ter patrimonio, nem creditos, nem dividas, e era
um meio de adquisição para o seu senhor, sendo
para este o producto do seu trabalho e as liberali-
dades que recebesse.
Os romanos, porem, admittiram uma instituição
que contribuiu profundamente para dar ao escravo
um certo grau de independencia economica. Essa
instituição foi o peculio, que era um patrimonio que
de facto o senhor consentia ao escravo ter como
proprio.
À origem delia filia-se no desejo que tiveram os
romanos de fazer nascer nos escravos o espirito de
1
Bry, Principes de droit romain, pag. 30 e seg.; Edouard
Cnq, La institutions juridiques des romaint, tom. I, pag. 166 e
seg., tom. II, pag. 127 e seg.; Von Ihering, l'eSprit du droit
romain, tom. II, pag. 167; Elio Costa, Corto di storia del
diritto romain, tom. I, pag. 342 e seg.; Girard, Manuel élémen-
mentaire de droit romain, pag. 89.
49 —
economia e o amor do lucro, o que evidentemente
exigia a participação destes no fruclo do sen tra-
balho. Os primeiros elementos do pecolio provi-
nham do presentes ou antecipações dos senhores,
das proprias economias, do dos da mulher, sendo
certo que este existia de facto entre os escravos.
Depois, o escravo podia desinvolver e augmentar o
peculio á custa da sua actividade, considerando-se
um grande peculio uma prova evidente de uma
notavel capacidade.
A posse do peculio estava garantida de facto ao
escravo, visto o retirar-lho, sem motivos justificados,
ser considerado pela opinião publica como uma
acção infamante.
Em todo o caso, de direito, o peculio era uma
parte do patrimonio do senhor, pois pertencia a uma
pessoa incapaz de ser sujeito de relações jurídicas.
A funcção principal do peculio era servir como
preço de resgate, concedendo o senhor em troca
delle a liberdade ao escravo, chegando mesmo a
fixar antecipadamente a somma necessaria para este
effeito. Alem desta funcção principal, o peculio
ainda tinha a vantagem de tornar mais suave a
posição do escravo, permittindo-lhe adquirir um
vicarius, isto é, um novo escravo que ficava ao seu
serviço, e obter certas concessões da parte do
senhor, á custa dos bens que entravam neste patri-
monio.
Era frequente, mesmo, o senhor abandonar o
escravo á sua propria actividade, mediante uma
simples participão nos lucros que elle realizasse 1.
1
Von Ihering, L'esprit du droit romain, tom. II, pag. 174 e seg.;
Emílio Costa, Corso di istoria del diritto romano, tom. I, pag.
346 e seg.; Edouard Cuq, Institutions juridiques des ro-mains,
tom II, pag. 131 e seg.
4
—50 —
26. B) Condição juridica do escravo relativa-
mente á sociedade. O escravo considerado rela-
tivamente á sociedade, umas vezes apparece-nos
como ama cousa, outras vezes como uma pessoa,
sendo esta contradião a consequencia da natureza
não poder deixar de protestar contra a assimilação
do homem a uma cousa, que, em principio, se
encontra no direito romano.
O escravo apparece-nos como uma cousa na ordem
economica, porque o tinha o direito de propriedade
nem podia obrigar-se, nem podia deixar uma succes-
são; na ordem familiar, porque não tinha família,
constituindo a sua união uma instituição de facto,
quasi sem effeitos jurídicos (contubernium); na,
ordem moral, porque as violencias commettidas con-
tra filie ficavam impunes, se o senhor o promo-
vesse a sua reparão, como fazia relativamente aos
prejuízos que lhe fossem cansados nos animaes ou
nos moveis; na ordem judiciaria, porque elle appa-
recia em juizo como objecto do processo e podia
ser submettido á tortura, quando indicado como
testemunha, contrariamente ao que acontecia com os
homens livres.
O escravo, porem, apparece-nos como pessoa em
alguns casos. Na ordem economica, porque, desde
os mais recuados tempos, se admittiu o principio de
que o escravo podia representar o senhor em alguns
actos jurídicos, tornando-o proprietario e credor,
o o podendo, porem, tornar devedor, mesmo com
o seu consentimento. Esta restricção era a conse-
quencia duma concepção grosseira do interesse do
senhor, prejudicial mesmo para este, visto não lhe
permittir utilizar o escravo como intermediario, na
— 51 —
vida commercial, onde os lucros não se podem rea-
lizar sem compromissos constantes. O direito pre-
torio veio acabar com esta restricção, permittindo ao
escravo obrigar o seu senhor, qnando procedesse
em harmonia com o seu consentimento.
Na ordem familiar, a personalidade do escravo
tambem se manifesta, pois, apesar da união de doas
escravos de sexo differente não constituir um verda-
deiro casamento, ainda assimo se recusava ao
parentesco que dahi derivava o nome de cognatio,
nem á mulher o titulo de uxor. Havia quem julgasse
que se podia adoptar um escravo, fazendo delle um
filho, o herdeiro do nome e dos bens dama família.
A cognatio servilis era mesmo tida em consideração
para estabelecer os impedimentos ao casamento depois
da manumissão.
Na ordem moral, a personalidade de escravo
tambem se affirma na punição dos seus crimes e
em todas as disposições que nós vimos terem sido
estabelecidas no sentido de proteger os escravos
contra os maus tractos dos seus senhores. Estas
disposições não se comprehenderiam, desde o mo-
mento em que ellas o obedecessem á idêa da
personalidade dos escravos, visto o direito romano
admittir no proprietario duma cousa o jus utendi et
abutendi.
Na ordem judiciaria, a personalidade do escravo
revela-se no facto do escravo poder estar em juizo
contra o seu senhor, para obter a emancipação no
caso de fideicomisso ou de resgate pelo peculio
convencionado, e de poder accusar o seu senhor
por ter supprimido um testamento que lhe dava a
liberdade e por ter fabricado moeda falsa.
Desde modo, o direito romano não pôde esquecer
completamente a personalidade do escravo, admit-
— 52 —
tindo assim princípios em inteira opposição com a
sua concepção fundamental, de que era elemento
da capacidade jurídica a liberdade. A propria
divisão que os romanos faziam das pessoas em
pessoas livres e escravas affirma, pelos seus ter-
mos, simplesmente, o caracter da personalidade
dos escravos 1.
27. Influencia do christianismo sobre a condão
judica do escravo. A influencia que o christia-
nismo exerceu sobre a condão jurídica do escravo,
ê ainda boje uma questão historica bastante deba-
tida. Alguns escriptores, como Troplong, attribuem
uma acção decisiva ao christianismo, não só nas
providencias que foram tomadas no tempo do Im-
perio para melhorar a condão judica do escravo,
mas tambem na abolão da escravidão, que julgam
ter sido realizada por influencia desta religião. A
propria lei Petronia, que se attribue ao tempo de
Nero, foi considerada por Troplong como um
resultado do movimento das idêas christãs.
Renan snbmetteu esta opinião a uma analyse
critica rigorosa, como as sabia fazer o saudoso
auctor da Vie de Jesus, mostrando que o christia-
nismo, com o seu idealismo exaltado, unicamente
desinvolveu a tendencia philosophica que se fazia
sentir ha muito nas leis e nos costumes. Essa ten-
dencia era devida à escola estoica, que considerava
a escravidão como um abuso, visto ella representar
1
Bry, Príncipes de droit romain, pag. 32 e seg.; Girard,
Manuel élémentaire de droit romain, pag. 92 e seg.; Edouard
Cuq, Institutions juridiques des romains, tom. I, pag. 167, tom. II
pag. 129 e seg.; Brugi, Instituzioni di diritto privato giustinianeo
pag. 51 e seg.
— 53 —
ama violação dos direitos da natureza, e procurava
restringi-la por diversos modos.
O christianismo primitivo foi um movimento essen-
cialmente religioso, não atacando o que não se
encontrava ligado com a idolatria. Não admira,
pois, que nos doutores christãos não appareça a
ia de protestar contra o facto consummado da
escravio, pois isso constituiria um modo de vêr
inteiramente contrario ao seu espirito. A terrível
sorte dos escravos não os impressionou, visto, por
algumas horas que dura a vida, nada importar a
condição social do homem.
E' certo que Jesus proclamou o principio de que
todos os homens são irmãos, mas Paulo apressou-se
a condemnar os que se prevalecessem desta maxima
para se emancipar dos seus senhores. Disse tambem
que vinha resgatar os homens da servidão, mas os
Padres da Igreja não deixaram de declarar que isto
se deve intender unicamente da servidão do peccado.
O numero de escravos possuídos pela Igreja foi
consideravel e a historia prova que elles foram
duramente tractados por ella, peorando até muito a
sua condição pela difficuldade de alienar os bens que
pertenciam ás corporações ecclesiasticas. Os Padres
da Igreja faliam da ignominia da escravidão e da
baixeza dos escravos, nos mesmos termos em que o
faziam os pagãos.
Parece até que, no tempo de Constantino, o favor
pela liberdade retrogradou. Se o movimento que
parte dos Antoninos tivesse sido continuado na se-
gunda metade do seculo III e no seculo IV, ter-se-hia
chegado até á suppressão da escravidão. Quando
Justiniano quiz fazer conhecer as poucas garantias
de que gosavam os escravos, viu-se ainda obrigado
a referir a constituão de Antonino Pio I
— 54 —
E' difficil, pois, sustentar que o espirito do chris-
tianismo fizesse opposição decidida á escravidão.
Fallava de igualdade, mas era da igualdade perante
Deus, não procurando em nenhum tempo realizar
esta igualdade na condição dos homens, com prejuízo
da organização social.
Ultimamente, porem, alguns escriptores, como
Emílio Costa, tambem procuraram annullar a in-
fluencia benefica da philosophia estoica sobre o
melhoramento da condição do escravo, attribuindo
esse melhoramento unica e exclusivamente á acção
das condições economicas. O movimento das idêas
da escola estoica o se comprehenderia sem a
existencia dum meio economico favoravel. Mas
dahi não se pode concluir que a philosophia estoica
não tivesse uma influencia profunda sobre a
modificação do estado jurídico do escravo. As
idêas, as doutrinas e as crenças são determinadas
pelos factores economicos, mas não deixam de ter
influencia propria no desinvolvimento social e
politico I,
28. Fontes da escravidão. A escravidão em
Roma tinha duas causas: A) o nascimento; B) certos
factos posteriores.
A) Nascimento. Eram escravos os indivíduos
que nasciam de mulher escrava. No direito antigo,
1 Troplong, De l'influence du christianisme sur le droit civil da
romains, pag. 149 e seg.; Belime, Philosophie du droit, tom II,
pag. 29 e seg.; Emilio Costa, Corto di storia del diritto romano,
tom. I, pag. 347 (not. 11); Renan, Maré Aurèle et la fin du monde
antique, pag. 605 e seg.; Wallon,. Histoire de l'esclavage dam
l'antiquité, tom. III pag. 420 e seg.; Paul Allard, Études d'histoire
et d'archéologie, pag. 4 seg.
— 55 —
applicava-se este principio, com todo o rigor, coo-
siderando-se escravo o que nascesse de mulher
escrava no momento do parto, qualquer que tivesse
sido a sua condão no período da gestação, pois só
no momento do parto é que o filho adquiria exis-
tencia distincta. Este principio, porem, foi modifi-
cado em favor da liberdade, considerando-se livres
os filhos que nascessem de mulher que tivesse
sido livre em qualquer momento do período da
gestação.
B) Certos factos posteriores. As causas de escra-
vidão posteriores ao nascimento podiam ser: a) do
direito das gentes; b) do direito civil.
a) Causas do direito das gentes. Por direito das
gentes, uma cansa determinava a perda da liber
dadeo captiveiro. Segundo o direito internacional
antigo, a guerra quebrava todas as relações jurídicas
entre os belligerantes, e, por isso, estes considera
vam-se como privados de personalidade e como
objectos de occupão. Daqui derivava que os pri
sioneiros de guerra ficavam sendo escravos. Este
principio era reciproco de modo que se tornavam
escravos, tanto os cidadãos romanos que cahiam nas
mãos do inimigo, como os inimigos que eram feitos
prisioneiros dos romanos.
O captiveiro, como fonte da escravidão, exigia
duas condições: devia tractar-se duma guerra entre
nões e não duma lucta com piratas ou salteadores;
a guerra devia ser legalmente declarada (justum
bellum), não sendo necessaria esta condição senão
relativamente aos povos que entravam na esphera
das relões de Roma, visto, com respeito aos bar-
baros, o estado de guerra ser o estado normal.
b) Causas do direito civil. Relativamente á perda
da liberdade por causas do direito civil, torna-se
— 56 —
necessario distinguir: a) o direito antigo.; B) o direito
recente.
a) Segundo o direito antigo, tornavam-se escravos
jure civili: 1) os que se recusavam a fazer-se ins-
crever no censo; 2.°) os que se fartavam ao servo
militar; 3.°) os que, noventa dias depois da con-
demnão, não pagavam ao seu credor; 4.°) os que
fossem surprehendidos em flagrante delicto de furto
(fur manifestus).
Em todos estes casos, o direito romano, orien-
tando-se pela idêa elevada de que o individuo, uma
vez livre em Roma, não devia ahi ser escravo,
permittia a escravidão no estrangeiro, estabelecendo
até que no caso de venda, a venda se realizasse
trans Tiberim, isto é, na Etruria. Estas cansas da
escravidão desappareceram, as duas primeiras com
a snppressão do censo no tempo de Vespasiano e
com o recrutamento voluntario no tempo do imperio,
a terceira com desuso, e a ultima com a sua elimi-
nação pelo pretor.
B) Segundo o direito recente, eram cansas da perda
da liberdade: 4) a condemnão ad metallum (tra-
balho das minas) e ad bestias (aos animaes ferozes),
tendo depois Constantino abrogado a condemnão
ad bestias e Justiniano abolido este effeito da con-
demnão ad metallum; 2.°) o facto da mulher livre
manter relações com o escravo doutrem, apesar da
prohibão do senhor, visto em tal caso ella se tornar
escrava deste, em virtude do senatus-consulto Clau-
diano, abrogado depois por Justiniano; 3.°) a ingra-
tidão do liberto, qne permittia ao patrono reclamar
perante o magistrado a sua reducçáo á escravio,
quando os actos fossem suficientemente graves para
motivar essa reclamação; 4.°) o facto do homem
livre se fazer vender como escravo por um supposto
— 57 —
senhor, afim de partilhar com o sen cumplice o preço
da venda, pois, em tal caso, não era admittida a
acção de reclamação de liberdade 1.
20. Formas da sua extincção. A escravidão
podia extingnir-se: A) por vontade do senhor; B)
sem a vontade do senhor.
A) Por vontade do senhor, a escravidão extin-
guia-se pela manumissão, que dentro em breve
estudaremos dum modo especial.
B) Sem a vontade do senhor, a escravidão podia
extinguir-se: a) em virtnde do jus postliminii; b) e
em virtude de disposições legaes e especiaes.
a) Em virtude do jus postliminii, os prisioneiros
de guerra que chegavam a subtrahir-se ao captiveiro
e conseguiam penetrar no territorio romano recu-
peravam a liberdade. Eram-lhes restituídos, com
effeito retroactivo, todos os direitos activos e passi-
vos que tinham antes de ter caido no poder do
inimigo, julgando-se que nunca os tinham perdido.
O postliminium, a principio, fundava-se simplesmente
na idêa de que as leis estrangeiras e suas conse-
quencias se consideravam não existentes para a
cidade. mais tarde é que appareceu a lei Cor-
nelia, com a ficção de que o captivo que recuperava
a liberdade se julgava nunca a ter perdido. A inter-
pretão benigna desta lei levou até a considerar os
mortos no captiveiro como mortos no momento de
serem aprisionados, isto é, no pleno exercio dos
seus direitos.
1
Serafini, lnsttituzioni di diritto romano, vol. I, pag. 123 e
seg.; Bry, Príncipes de droit romain, pag. 27 e seg.; Girard,
Mamuel élémentaire de droit romain, pag. 95; Eugéne Petit,
Trai émentaire de droit romain, pag. 61 e seg.
— 58 —
b) Em virtude de disposições legaes especiaes, extin-
guia-se a escravidão, em varios casos, entre os quaes
indicaremos: o da escrava que era prostituída por
quem a tinha comprado com a condão de a o
prostituir; o do escravo que denunciava o homicida
do proprio senhor; o do escravo que se adquiria
com a condição de ser emancipado num certo termo,
se, chegado esse termo, não era emancipado, etc. 1.
30. Manumissão. A manumiso é o acto ju-
dico pelo qual o senhor concede ao escravo a liber-
dade ou o domínio de si proprio. Chamava-se
manumissio, porque significava a renuncia do senhor
ao poder que tinha sobre o escravo, que primitiva-
mente se denominava manus. Gomo no antigo
direito havia uma só especie de domínio, o dominio
civil (dominium ex jure Quiritium) e este, quando
recaia sobre res mancipi, em que se comprehendiam
os escravos, se podia transferir validamente por
um modo solemne, dahi resultou que a manumiso,
para ser juridicamente efficaz, devia realizar-se por
uma forma solemne.
A) Formas da manumissão. As formas solemnes
da manumissão eram tres: per vindictam; per cen-sum,
e per testamentum.
a) Manumissio per vindiciam. A manumissão
per vindictam era uma symbolica reivindicação da
propriedade. O senhor e o escravo compareciam
perante o pretor; ahi, um amigo, adsertor in liber-
tatem, tocando o escravo com uma vara, affirmava
1
Serafini, lnstituzioni di diritto romano, tom. I, pag. 127; Bry,
Príncipes de droit romain, pag. 33 e seg.; Edouard Cuq,
Institutions juridiques det romains, tom. I, pag. 572 e seg.
— 59 —
que este era livre; o senhor o o contradizia e o
magistrado concedia ao escravo a liberdade. Assim,
a manumissão do escravo per vindictam correspondia
ã in jure cessio, em que se creava um direito novo,
parecendo sanccionar um direito anterior. O sym-
bolismo que acompanhava a manumissio per vindictam
foi-se esbatendo, como aconteceu em todos os actos
jurídicos, não persistindo desta forma de processo
senão a apresentação do escravo ao magistrado e a
concessão por parle deste da liberdade.
b) Manumissio per censum. A manumissão per
censum consistia na apresentão do escravo pelo
senhor ao censor, para que este o fizesse inscre-
ver nos registos do censo como cidadão romano.
Esta forma de manumissão, que unicamente podia
ter logar de cinco em cinco annos, desappareceu
com a suppressão da instituição do censo por Ves-
pasiano.
c) Manumissio per testamentum. O testador podia
manumittir o escravo, instituindo-o herdeiro. Origi-
nariamente, para que esta manumissão fosse valida
exigia-se uma declarão de liberdade. Justiniano,
porem, estabeleceu que a simples instituição de her-
deiro implicava sempre a manumiso. O testador
podia, alem disso, manumittir o escravo com uma
disposão a titulo particular, concedendo-lhe directa-
mente a liberdade ou encarregando o herdeiro de o
manumittir. Neste ultimo caso, para que o escravo
obtivesse a liberdade, tornava-se necessario que o
herdeiro o manumittisse, podendo, porem, o escravo
obriga-lo a isso, attribuindo até Justiniano á sentença
que reconhecia o direito deste o effeito juridico da
manumiso. O escravo manumittido directamente
pelo testador tornava-se liberto de si proprio e cha-
mava-se libertus orcinus, visto o seu senhor estar no
— 60 —
inferno (Orcus); o manumittido por intermedio do
herdeiro ficava sendo liberto deste.
Constantino introduziu ainda uma nova forma
solemne da manumissão manumissio in ecclesia,
in sacrosanctis ecclesis feita na Igreja perante os
ecclesiasticos.
As manumises solemnes eram as unicas capazes
de transferir para o manumittido o pleno domínio
civil de si mesmo, isto é, a liberdade e a qualidade
de cidadão. Se o senhor usasse de uma forma menos
solemne, escrevendo, por exemplo, ao escravo uma
carta na qual o declarasse livre (per epistolam), ou
manifestando a sua vontade por meio duma simples
declarão feita na presença de amigos (inter amicus),
ou permittindo ao escravo assentar-se á sua mesa
(inter «pulas, per mensam), o escravo não adquiria
o dominio de si proprio, mas permanecia juridi-
camente escravo, obtendo uma mera liberdade de
facto, embora, depois o direito pretorio sanccio-
nasse este estado, impedindo que o senhor podesse
reduzil-o de novo à escravidão. Isto era uma con-
sequencia logica do systema do direito romano, pois
as res mancipi unicamente se podiam transferir por.
um acto solemne. O mesmo acontecia, quando se
fazia uso das rmas solemnes da manumissão, mas
esta era realizada por quem não tinha a proprie-
dade sobre o escravo, visto ninguem poder trans-
ferir para outrem o dominio que não tem. Os meios
particulares de manumittir foram assimilados por
Justiniano aos modos solemnes, produzindo, por
isso, os mesmos effeitos jurídicos.
B) Effeitos da manumiso. Segundo o antigo
direito, os escravos manumittidos por quem tinha o
dominio e com as formalidades estabelecidas pela
lei, tornavam-se livres e cidadãos, os outros ficavam
— 61
sendo escravos. Havia neste tempo uma especie
de liberdade, a liberdade plena, assim como havia
ama especie de dominio, o domínio civil. Com
a introducção doutra especie de dominio, o dominio
do direito das gentes, conhecido pelo nome de in
bonis esse ou dominio bonitario, o podia deixar de
se admittir nma duplice liberdade, visto esta não
ser segundo a concepção romana, mais do que o
dominio de si proprio. Foi a esta orientação que
obedeceu a lei Junia Norbana, promulgada, sem
duvida, no tempo de Augusto, estabelecendo que os
escravos manumittidos sem as fórmas solemnes, e
os mannmittidos com as fórmas solemnes por quem
tinha sobre elles unicamente o dominio bonitario,
isto é, adquirido por simples tradição, ficassem assi-
millados aos latinos das colonias, sendo livres de
direito, mas o cidaos. Estes libertinos foram
chamados latinos jnnianos.
A lei Aelia Sentia (757) creou uma terceira espe-
cie de libertinos, os dediticios, que eram constituí-
dos pelos mannmittidos, que, durante a escravidão,
tinham soffrido castigos infamantes. Não se consi-
deravam estes libertinos dignos de ser cidadãos on
latinos, e por isso a lei assimilou-os aos peregrinos
dediticios, qne, depois de vencidos, se entregavam á
discrão, com todos os seus bens. Estes libertinos
gosavam da peior das liberdades, pessima libertas.
Estas differenças, nos efieitos da manumissão, desap-
pareceram no tempo de Justiniano, que attribuiu a
este acto o mesmo resultado juridico — a liberdade
legal com o direito de cidade.
C) Restricções ao direito de manumissão. A liber-
dade de manumissão que pertencia ao senhor deu
origem a varios inconvenientes, visto ao lado duma
população ingenua dizimada por guerras civis, a
— 62 —
classe dos libertinos ir augmentando continuamente
de numero, espalhando no seio da sociedade elemen-
tos de perturbação e de corrupção. As leis Aelia
Sentia e Fufia Canina (dum anno incerto do reinado
de Augusto) propuseram-se remediar estes inconve-
nientes, restringindo a liberdade que tinha o senhor
de manumittir.
A lei Aelia Sentia feriu de nullidade a manumiso
feita por um senhor menor de vinte annos, a não
ser que houvesse um motivo legitimo, prohibiu a
manumissão realizada com o fim de defraudar os
credores, oppôs-se á manumissão do escravo, sem
motivo justificado, antes de elle ter attingido a idade
de trinta annos, considerando-o, no caso de ella se
realizar, libertino latino, e creou, como vimos, a
classe dos libertinos dediticios.
A lei Fufia Caninia restringiu as manumissões tes-
tamentarias, com o fim de acabar com o abuso fre-
quente do senhor dar a liberdade por testamento a
todos os seus escravos, embora elles não fossem
dignos deste beneficio, prejudicando os herdeiros,
que, deste modo, ficavam privados duma parte con-
sideravel da fortuna. Esta lei estabeleceu, por isso,
que o senhor o pudesse manumittir por testamento
senão uma quota parte do numero de escravos e
nunca mais de cem. Estas restricções desappare-
ceram no tempo de Justiniano, que unicamente
conservou a necessidade da justa causa para a
manumissão feita pelo senhor menor de vinte annos,
e a nullidade da manumissão realizada com o fim
de defraudar os credores 1.
1
Bonfante,
lnstittuzioni di diritto romano,
pag. 36; Serafim,
Instituzioni di diritto romano,
tom. I, pag. 127; Eune Petit,
Traité
èlèmentaire de droit romain,
pag. 72 e seg.
— 63 —
31. A escravidão entre os germanos. A escra-
vidão apparece-nos tambem entre os germanos, como
uma instituão muito antiga, a que fazem referencia
os primeiros documentos historicos relativos a este
povo. Os escravos, porem,o deviam ser muito
numerosos, visto as condões da agricultura destes
tempos, em que era desconhecida a cultura intensiva,
não exigir grande quantidade de trabalhadores.
A condição dos escravos era menos dura entre os
germanos, do que entre os romanos. Os senhores
germanos tinham o direito de vida e de morte sobre
os escravos, mas Tacito mostra como elles procediam
com brandura no exercio deste direito. Se algumas
vezes matavam um escravo, era num impeto de ira,
como quem tirava vingança dum inimigo, e não por
applicação de fria e cruel disciplina, como acontecia
em Roma.
Os escravos eram empregados entre os germanos,
mais na cultura dos campos, do que nos serviços
domesticos. Aquelles que eram empregados na cul-
tura dos campos tinham um domicilio independente
e cultivavam a terra para si, sendo obrigados a
pagar simplesmente uma prestão em fructos. Esta
circumstancia suavizava a escravidão consideravel-
mente, visto o escravo fazer seus os fructos que
excediam a prestão que tinha de pagar ao senhor,
embora tudo o que elle possuísse tivesse depois
de ser entregue pela sua morte ao proprietario da
terra.
A escravidão tinha por fontes: o nascimento, se-
guindo os que nasciam duma escrava a condão da
mãe, embora o pae fosse um homem livre; a guerra,
sendo os prisioneiros de guerra reduzidos á escravi-
— 64 —
o; a voluntaria entrega ou oblação, podendo mu
homem livre offerecer-se como escravo, quer directa-
mente, quer indirectamente como garantia dama
obrigação, sendo desta causa da escravidão que
discorre Tacito a proposito do jogo.
Podia-se sahir da escravidão mediante a manumis-
são, que era solemne ou menos solemne. A primeira,
que tinha logar, armando o escravo na assemblêa
geral dos homens livres (concilium), dava completa
liberdade ao manumittido. A segunda era feita sem
intervenção da assemba geral dos homens livres,
mas com a cooperação dos membros capazes da
familia, e elevava o manumittido á condição de
liberto, dando-lhe uma liberdade muito restricta e
limitada 1.
38. A escravio goda. Diversas categorias de
escravos. No periodo godo continua a distinão
entre homens livres e escravos. Os escravos con-
servaram a mesma denominação romana servi
bem como os senhores domini. Havia, porem,
diferentes categorias de escravos: a) Escravos
idoneos. — São os escravos que, pela sua habilidade
industrial, mereciam maior consideração. É por isso
que estes escravos eram um pouco mais favorecidos
na applicão das penas, permittindo-se até ao senhor
algumas vezes remir, com a composição, o castigo
corporal do idoneo.
1
Ciccaglione, Lezion di diritto italiano, tom. I, pag. 58 e
seg.; Nani, 8toria del diritto italiano, pag. 83 e seg.; Perez
Pujol, Historia de las institucionet sociales de la Espana goda,
tora. I, pag. 476 e seg.; Hinojosa, Historia general del derecho
espanol, tom. I, pag. 333.
— 65 —
b) Escravos inferiores. o os escravos que,
pela soa inhabilidade; não mereciam tamanha consi-
derão, como os anteriores. São denominados no
codigo wisigothico vis, infimos e rusticos. Daqui
deduziu Herculano que os escravos inferiores deviam
ser os operarios ruraes. Parece, porem, que a
palavra rustico o pode ter este alcance, pois o
codigo wisigothico, não distingue a ancilla idonea
da inferior, quando tracta das escravas domesticas
(liv. III, tit. IV, I. 15), mas tambem ordena que se
tenha em conta o artificio, a edade, e a utilidade
do escravo para determinar o seu merito (liv. III,
tit. I, 1. 4).
c) Escravos fiscaes. Eram escravos a quem se
confiavam os cargos de exactores da fazenda e de
administradores dos bens do príncipe. Chamavam-se
servi fiscales e família fisci. Podiam occupar não só
funões inferiores no paço, mas dignidades elevadas,
e tinham o direito de possuir, embora com dominio
imperfeito, terras e escravos ínfimos (mancipia),
que rigorosamente pertenciam, como elles, ao fisco.
E, se não podiam alienar estes bens livremente,
podiam ainda assim vendê-los a outro servo fiscal
conservo applicando o seu producto em bene-
ficio das igrejas e dos institutos de caridade.
d) Escravos da Igreja. Herculano intende que
na legislação wisigoda não ha disposições que aucto-
rizem a considerar, como uma categoria distincta,
os escravos da Igreja e do clero. As disposições
dos concílios relativas ás famílias ecclesiasticas
(phrase com que em especial se designavam os
escravos da Igreja), diz Herculano, o disposões
particulares da Igreja e o leis civis; nem se vê,
nessas regras do proceder entre o clero e os servos
que lhe pertenciam, condições diversas das que
5
— 66 —
regulavam os direitos e deveres entre os senhores
particulares e os seus escravos; e, se, em relação á
sociedade civil e ao poder politico, elles gosavam
de algumas exempções, estas não representavam um
privilegio seu, mas referiam-se á immunidade da
corporação sacerdotal a que eram sujeitos.
Gama Barros afasta-se da opinião do illustre his-
toriador e, a nosso ver, com razão. Efectivamente,
o codigo wisigothico estabelece regras especiaes
para os bens da Igreja, as quaes não podiam deixar
de se applicar aos escravos delia, como entrando
naquelles bens. Dahi deriva qne o codigo wisigo-
thico não pode deixar de auctorizar a admissão
duma classe especial de escravos, constituída pelos
escravos da Igreja.
Accresce qne no concilio III de Toledo, S89,
aquelle em que Reccaredo abjurou o arianismo, se
prohibiu, canon 21, que os escravos das Igrejas,
dos bispos ou do clero em geral fossem empregados
em quaesquer trabalhos, publicos ou particulares,
pelos juizes ou exactores publicos, e se determinou
que pudessem ser occupados no serviço dos seus
donos e da Igreja. Parece lambem que as famílias
ecclesiaslicas não eram obrigadas a concorrer para
o serviço militar, salvo em caso de invasão repen-
tina para se repellir logo, de prompto, a entrada
dos inimigos. Os escravos da Igreja tambem o
podiam ser emancipados senão em harmonia com
as condições estabelecidas nos canones, que prohi-
biam as manumises que não fossem compensadas,
em servos ou em outros valores, pela fórma que
elles prescreviam.
Tudo isto demonstra que a condição dos escravos
da Igreja era differente da dos outros escravos, o
— 67 —
que auctoriza a admissão duma categoria especial
para elles 1.
33. Condição jurídica dos escravos. Hercula-no,
occupando-se da condição jurídica dos escravos neste
período do direito peninsnlar, sustentou que os
escravos godos se distinguiam dos romanos em serem
considerados como pessoas civis, visto o codigo
wisigothico os denominar sempre pessoas.
Esta doutrina do grande historiador tambem não
parece exacta, pois no codigo wisigothico ha tres
leis, das muitas que tractam dos escravos, que lhes
chamam personae, a lei 18, do liv. v, tit. IV servi-
les personae a lei 18, do liv. IX, tit. I provilis
interdum servi persona a lei 9, do liv. XII, tit. II
quamvis humilis servilisque persona. E, em todas
estas leis, a expressão persona não designa o homem
que tem capacidade jurídica, mas sim o homem que
está sujeito á condição servil, visto tal expressão se
encontrar sempre modificada pelos termos servus e
servilis.
Se o argumento de Herculano tivesse valor, então
deveríamos admittir que os escravos entre os roma-
nos tambem eram pessoas, visto elles nos monu-
mentos legislativos serem chamados do mesmo modo
personae. Esta conclusão briga, porem, com a propria
doutrina de Herculano. A expressão appa-rece assim
nestes monumentos com a significação de homem e é
tambem do mesmo modo que nós a devemos intender
no codigo wisigothico.
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 235, e seg.;
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la Espana
goda, tom. IV, pag. 256 e seg.; Sr. Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal, tom. II, pag. 45 e seg.
— 68 —
Como diz Munoz y Romero, para que os escravos
pudessem ser considerados como pessoas e não
como cousas, tornava-se necessario que elles o
pudessem ser vendidos como os animaes. A expres-
são, por isso, ainda que não houvesse outros ele-
mentos de interpretação, tinha só por esta razão de
ser intendida em sentido diverso, do que lhe
attribue Herculano. Os escravos entre os wisigodos
não podiam ser objecto de venda, mas tambem
de doação, troca e herança.
Se não se póde admittir a differença tão profunda
que Herculano pretendeu estabelecer entre a escra-
vidão goda e a escravidão romana, nem por isso se
pode deixar de reconhecer a superioridade da
condição legal do escravo godo sobre o escravo
romano.
Sob o ponto de vista da pessoa, não não se
permittia castigar o escravo com pena de morte,
infligindo-se punão rigorosa ao senhor que, de
qualquer modo, mutilasse o escravo sem intervenção
do magistrado (cod. wis., liv. VI, tit. v, 1. 13), mas
tambem se sanccionou o principio de que a escravi-
o se podia prescrever, em diametral opposão com
a doutrina do direito romano, em face da qual a
escravidão era o imprescriplivel como a liberdade.
O escravo fugitivo commettia, segundo este direito,
o furto de sua propria pessoa e não podia invocar
a usucapião ou a prescripção de longo tempo para
adquirir a liberdade. A Lex Antiqua Wisigothorum,
segundo o Palimpsesto da Corbie, reconheceu, pelo
contrario, que não podiam ser reduzidos á escra-
vio os escravos fugitivos que não tivessem sido
recuperados pelos seus senhores durante cincoenta
annos. Esta lei passou para o codigo wisigothico,
onde se reconheceu, alem disso, a prescripção da
— 69 —
liberdade por trinta annos para aquelle que vivia
como ingenuo durante este tempo, sem contradicção
alguma (cod. wis., liv. III, tit. II, 1. 3 e 7).
Sob o ponto de vista economico, o escravo podia
alienar as cousas de pequena valia que entravam
no peculio, sem consentimento do senhor, reconhe-
cendo-se por isso relativamente a estas cousas um
verdadeiro direito de propriedade (cod. wis., liv. v,
tit. IV, 1. 13). A Lex Antiqua Wisigothorum deixava
suspensa a compra feita pelo escravo sem conheci-
mento do senhor, ficando, por isso, ao arbitrio deste
confirmá-la ou revo-la. Esta lei, porem, não pas-
sou para o codigo wisigothico. O escravo godo
tinha, alem disso, o direito de successão quanto á
metade dos bens adquiridos pelo libertino que fosse
seu parente, desde o momento em que este não deter-
minasse o contrario (cod. wis., liv. v, tit. VII, 1.13).
Sob o ponto de vista familiar, os wisigodos
admittiram a regra de que o consorcio entre escra-
vos de donos diversos não podia ter logar sem o
consentimento destes, mas o codigo wisigothico
estabeleceu uma excepção expressa a esta regra,
deixando subsistir o vinculo matrimonial, quando
algum dos senhores deixava passar um anno sem
separar o casal (cod. wis., liv. x, tit. I, 1. 17).
Havia assim um certo respeito pela indissolubilidade
do casamento, embora ainda se chame contubernio
á união dos escravos, como faziam os romanos
(cod. wis., liv. x, tit. I, 1. 17).
Sob o aspecto moral, apparecem muitas dis-
posições, accusando uma certa considerão pelo
escravo. Entre ellas, deve-se mencionar a de dar
ás declarações dos escravos para se provar a
derradeira vontade de homens livres (cod. wis.,
liv. II, tit. v, 1. 12). Assim, a pessoa que, encon-
— 70 —
trando-se em viagem ou no exercito,o pudesse
escrever as suas ultimas disposições e não tivesse
comsigo homens livres, podia communucá-las a ser-
vos cuja fidelidade fosse attestada pelo sacerdote e
pelo magistrado.
Sob o aspecto judiciario, havia casos em que os
escravos podiam testemunhar livremente, como
quando se tractava do homicídio e o havia pessoas
livres que pudessem esclarecer o facto, exigindo-se,
porem, que o individuo admittido a depôr estivesse
exempto de culpa e não fosse de extrema indigencia
(cod. wis., liv. II, tit. IV, 1. 9). O direito de recorrer
á tortura para extorquir o testemunho do escravo,
encontrava-se bastante limitado (cod. wis., liv. III,
tit. IV, 1. 10 e 13; liv. IV, tit. I, 1. 3; liv. VI, tit. I, I.
3; liv. VII, tit. VI, I. 1).
Sob o aspecto administrativo, o melhoramento da
condição do escravo affirma-se principalmente no
facto dos escravos fazerem parte do exercito ás
ordens do senhor. As leis de Wamba obrigam a
todos que devem ir nas expedições militares a leva-
rem comsigo a decima parte dos proprios escravos
armados e equipados (cod. wis., liv. IX, tit. II, 1. 9).
Nem se diga que esta pratica se encontra unica-
mente nos ultimos tempos da monarchia goda, por-
quanto ha outras leis, que no codigo wisigothico
em a epigraphe de antigas, e algumas disposições
do Palimpsesto da Corbie que fallam de escravos no
exercito, donde parece deduzir-se que desde os
tempos de Eurico, os escravos serviam no exercito
ás ordens dos seus senhores.
Besta agora averiguar quaes foram as causas que
produziram este melhoramento da condição legal do
escravo entre os wisigodos. Alguns escriptores
attribuem este melhoramento á influencia do chris-
— 71 —
tianismo. Mas, as razões que apresentamos a
respeito deste assumpto, continuam a o nos per-
mittir adoptar tal doutrina. A condição do escravo
no codigo wisigothico é ainda bem dura, apesar do
predomínio do clero neste codigo ser bem mani-
festo. Se a Igreja tivesse feito decidida opposição
á escravidão, a influencia que ella teve entre os
wisigodos devia ter determinado a abolição desta
instituição. Os escravos da Igreja eram duramente
tractados, como demonstra o canon 15 do concilio
de Aferida, de 666, que reconhece que alguns pres-
byteros imputando as suas doeas e meleficios dos
escravos das Igrejas, os punham a tormento e mal-
tratavam com grande impiedade.
Herculano attribue o melhoramento da condição
legal do escravo godo á influencia das ideias ger-
manicas. É esta, sem duvida, a doutrina que nos
parece mais acceitavel, desde o momento em que,
como vimos, a condição do escravo entre os germa-
nos era muito menos dura do que entre os romanos,
tendo até estes povos um elevado conceito da perso-
nalidade humana. Era, pois, natural que as idêas
germanicas suavizassem o estado legal do escravo
entre os wisigodos 1.
34. Fontes da escravio. As causas da escra-
vidão entre os wisigodos eram: A) o nascimento;
B) certos factos posteriores.
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 254 e seg.;
Gama Barros, Historia da administração publica em Portugal,
tom. II, pag. 37 e seg.; Munoz y Romero, Del Estado de las
personas en los reinos de Asturias y Léon, pag. 51 e seg.; Perez
Pujol, Historia de las instituciones sociales de la Espana goda,
tom. IV, pag. 247 e seg.
— 72 —
A) Nascimento. O filho seguia a condão dos
paes, e, se não fossem ambos escravos, a do proge-
nitor, que a tinha peior (cod. wis., Mv. x, tit. I, I.
17). Foi, sem duvida, o interesse do senhor que
levou o direito wisigothico a admittir esta doutrina,
inteiramente opposta ao systema do direito romano.
Exceptuava-se porem, o caso do senhor proceder
de , apresentando como livre quem era escravo,
no intuito de lhe obter casamento como pessoa
livre, a fim de depois fazer valer os direitos de
senhor sobre a prole nascida deste consorcio.
B) Certos factos posterior. Os factos posteriores
ao nascimento que originavam a escravidão podiam
ser: a) do direito das gentes; b) do direito civil; c)
do direito penal.
a) Causas do direito das gentes. As causas do
direito das gentes que podiam originar a escravidão,
reduziam-se ao captiveiro, visto o prisioneiro de
guerra ficar inteiramente á disposão do vencedor.
Neste ponto o se afastaram os wisigodos da dou-
trina do direito romano, não se comprehendendo
eno outro modo de regular as relões entre ven-
cedores e vencidos. Não faltam, pórem, factos que
accusam excepções a esta regra tão rigorosa, mos-
trando a generosidade com que ás vezes procediam
os vencedores para com os vencidos.
b) Causas do direito civil. As causas do direito
civil que originavam a escravidão eram: a) o casa-
mento e uno sexual; B) o consentimento voluntario.
a) Casamento e união sexual. O casamento e
a união sexual determinavam a escravidão nos
seguintes casos: l) Casamento da mulher na ausen-
cia do marido, sem ter a certeza da sua morte, se
elle voltasse, pois tanto a mulher como o segundo
marido eram entregues ao primeiro, que os podia
— 73 —
vender ou fazer delles o que quizesse (liv. III, tit. II,
1. 6); 2) União da mulher livre com escravo ou
liberto seus proprios, pois ambos eram outados e
queimados, a não ser que ella se refugiasse em
logar sagrado, visto em tal caso ficar sendo escrava
da pessoa a quem o rei a quizesse dar (cod. wis.,
liv. III tit. II, I. 2); 3) União duma pessoa livre com
um escravo, desde o momento em que reincidissem
tres vezes, depois do magistrado ter procedido á sua
separação, visto neste caso o consorte de
condição livre passar a ser escravo do senhor do
consorte servil (cod. wis., liv. III, tit. II, 1. 3). Do
mesmo modo, a liberta que se unia a escravo
alheio se não se separava delle, depois de tres
intimações feitas perante tres testemunhas pelo dono,
ficava reduzida á condição de escravo do mesmo
dono. O mesmo acontecia ao liberto que se ligava
á escrava doutrem (cod. wis., liv. u, 1. 4).
(3) Consentimento voluntario. O homem livre
tinha o direito de vender a propria liberdade, po-
dendo, em todo o tempo, remil-a, restituindo o
preço recebido (cod. wis., liv, v, tit. IV, 1. 10).
c) Causas do direito penal. O codigo wisigo-
thico impõe, em muitos casos, a escravidão como
pena do delido. É o que se a respeito do rapto,
adulterio ou estupro (cod. wis., liv. III, tit. III I. 1 e
2; liv. III, tit. IV, I. 1 a 3, 5, 9, 14); da invasão
armada em casa alheia (liv. vI, tit. Iv, 1. 2); do
testemunho falso (liv. II, tit. Iv, 1. 6); da venda da
pessoa livre contra a vontade desta .(liv. v, tit. Iv,
1. 11); da insolvencia do devedor ou do criminoso
(liv. v, tit. vI, 1. 5; liv. vII, tit. I, 1. 5); do aban-
dono da mulher, casando o marido com outra
(liv. III, tit. II, 1. 6); das consultas de adivinhos
(liv. vI, tit. II, I. 1); da falsificação da moeda
— 74 —
(liv. vn, tit. vI, 1. 2); da falta de cumprimento dos
deveres cívicos em defêsa do rei ou do reino (liv. Ix,
tit. II, I. 8 e 9); da accusação falsa de certos crimes
capitaes (liv. vI, tit. I, 1. 2).
Gama Barros apresenta ainda como causa da
escravidão entre os godos o abuso da força, mas
esta não é ama causa legal da escravidão, visto o
codigo wisigothico procurar reprimir tal abuso por
diversas maneiras (cod., liv. v, tit. 4, 1. 11) 1.
35. Cessão da escravio. A escravidão
extinguia-se: A) por vontade do senhor; B) sem a
vontade do senhor.
A) Por vontade do senhor, a escravidão
extinguia-se pela manumissão. A manumissão era
de duas especies: absoluta e condicional.
Absoluta, quando o senhor não impunha ao liberto
nenhuma condão ou obrigação de serviço,
ficando, por isso, elle com uma liberdade
completa. Era a unica admittida pela Igreja para
se poder entrar nas ordens cle-ricaes. A
mannmissão condicional era aquella em que o
senhor estabelecia restriões á liberdade do liberto.
Uma das condições que ordinariamente se
impunham, era a do liberto não poder alienar o
peculio servil, sendo, portanto, nullos todos os con-
tractos feitos sobre elle, sem consentimento do
patrono. A falta do cumprimento de qualquer destas
condições repunha o liberto na situação primitiva
(cod. wis., liv. v, tit. vII, passim).
As fórmas da manumissão do direito romano em
parte conservamse e em parte modificam-se. É
por
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Portu-
gal, vol. II, pag. 33 e seg.; Viollet, Histoire du droit civil français,
pag. 296 e seg.
— 75 —
isso que a manumissão se podia effectuar por escri-
pto especial, verbalmente, na presença de testemu-
nhas, on por testamento. No caso da manumissão
por escripto especial, deviam intervir no instrumento
duas ou tres testemunhas. Se a manumissão era
verbal, parece que se tornava indispensavel ou a
presença dum sacerdote ou diacono, ou de duas ou
tres testemunhas, devendo depois reduzir-se a escri-
pto o acto. Se a manumissão era por testamento,
esta tinha de ser comprovada por tres ou cinco tes-
temunhas, dentro do praso de seis meses (cod. wis.,
liv. v, lit. VII, 1. 1, 2, 9, 44 e 15).
B) Sem a vontade do senhor, a escravidão extin-
guia-se, em virtude de disposição de lei, nos seguin-
tes casos:
a) Tortura injusta. O escravo que, depois de
soffrer a tortura, era reconhecido sem culpa, mas
ficava invalido, passava á condição de liberto, sob o
patrocinio do dono, recebendo este do accusador
a indemnização correspondente (cod. wis., liv. vI,
tit. I, l. 4);
b) Remissão. O ingenuo que se sujeitava por
contracto á escravidão, podia remi-la em Lodo o
tempo (cod. wis., liv. v, tit. Iv, 1. 10);
c) Regresso á patria. O escravo vendido para
fóra do reino e que depois voltava à patria ficava
livre (cod. wis., liv. Ix, tit. I, 1. 10);
d) Prescripção. O escravo fugitivo podia adqui-
rir a liberdade por prescripção de cincoenta annos
(cod. wis., liv. x, tit. II, 1. 2 e 7);
e) Condição de escravo dos judeus. A legislação
excepcional contra os judeus dava em muitos casos a
liberdade aos seus escravos, probibindo a Sisebu-
tus e Ervigius que os judeus tivessem por qualquer
modo escravos christãos (cod. wis., liv. xII, tit. II,
— 76 —
1. 11, 13 e 14; liv. xII, tit. III, 1. 12 e 18; liv. xII, tit.
II, I. 14 e tit. III, I. 12) 1.
38. Natureza da servidão na Reconquista. Doutrina
de Herculano e Munoz y Romero. A servidão entre
os mosarabes devia conservar a mesma natureza
que tinha entre os godos antes da conquista, visto
o ser provavel que esta instituição da sociedade
civil se alterasse quando todas as outras persistiam.
Aconteceu o mesmo na reacção asturiana ? Eis um
dos problemas que mais largamente tem sido
discutido.
Alexandre Herculano intende que a servio se
distinguiu na Reconquista por estar vinculada ao
solo, revestindo por isso o caracter da adscripção á
gleba. Escravos propriamente taes eram unicamente
os arabes prisioneiros de guerra. Herculano funda-
menta a sua opino no estudo dos acontecimentos
poticos e sociaes da epocha, que deveriam produ-
zir, como consequencia necessaria, a transformação
da escravidão originaria, isto é, bispano-goda, na
servidão da gleba.
Era impossível na monarcbia neo-goda a escra-
vidão originaria. Os senhores, levando os escravos
armados ao combate, sem crença, sem ardor, sem
interesses moraes, ou materiaes que defender, como
nos tempos gothicos, seria um facto que não pode-
ria, de modo algum, dar em resultado a fundão e o
engradecimento da monarcbia de Oviedo. A trans-
formão do escravo em servo da gleba impunha-se
1
Gama Barros,
Historia da administração publica em Portugal,
tona. II, pag. 47 e seg.; Herculano,
Historia de Portugal,
tom.
III
pag. 257 e seg.; Perez Pujol,
Historia de las institu-tiones sociales
de la Espana goda,
tom.
I
v, pag. 223.
— 77 —
como meio de o interessar na prosperidade do
Estado nascente e de afronxar os ínstinctos de
emancipação, que se deveriam tornar tanto mais
energicos, quanto a oppreso e os vexames fossem
mais violentos e menos sanccionados pelas antigas
instituições, agora imperfeitamente observadas ou
totalmente esquecidas.
É certo que os cbronistas affirmam que Affonso II
restabelecera as instituições gotbicas no civil e no
ecclesiastico, mas daqui nada se pode concluir a
respeito da escravidão originaria no período neo-
godo. Existe uma doação de Affonso II á de
Oviedo em que, depois de varios bens de raiz e
ornamentos ecclesiasticos, se incluem os servos des-
tinados ao culto, que por aquelle acto concede á
cathedral. Entre estes, encontram-se ura presbytero,
um diacono, muitos que se denominam clerigos, o
ultimo dos quaes declara o rei que houvera por
compra. Afora estes dôa muitos servos seculares
adquiridos de diversas pessoas. Estatue-se naquelle
diploma que, se algum fugir ou negar obediencia â
igreja, o prendam e obriguem por força a servil-a.
Outro diploma expedido poucos dias depois vem
até certo ponto illustrar o anterior. Todos esses
servos que parecem unidos ás propriedades doadas
á cathedral, são chamados famílias de ambos os
sexos; e acerca delles se confirma a determinação
do primeiro, isto é, que sejam compellidos pela foa
a conservarem-se no servo e obediencia da igreja,
Assim, se, por um lado, a servidão parece completa
nesta epocha, por outro, como explicar a existencia
de sacerdotes, diaconos e clerigos escravos comprados
a particulares e doados pelo rei á igreja, contradicção
flagrante não só com a Indole, mas com a letra da
legislação wisigothica e com os antigos canones?
— 78 —
Não indica isto que a especie de organização que
D. Affonso II introduzia nos seus Estados, a pouco
mais se extendera do que a regularizar o poder
temporal e o episcopado, ficando ainda em grande
parte incerta a condição das classes inferiores? O
que nós vemos nestes documentos e nontros analogos
é que essas familias de servos abrangiam todos os
colonos foados sujeitos á solução de censos
especiaes e á de servos pessoaes mais ou menos
oppressivos, impostos nas terras que lhes eram dis-
tribdas, e que as propriedades concedidas á de
Oviedo eram aquellas em que elles viviam e que
agricultavam ou deviam de futuro agricultar.
Não se encontra entre milhares de documentos de
compras e vendas ou antes de escambo, porque a
isto se reduziam a maior parles deites, um unico
em que um ou mais desses servos originales ou de
creatione sejam exclusivamente trocados por pro-
priedades, por alfaias, por animaes ou por generos,
como acontece com os servos mouros. Nos con-
tractos de transmiso em que elles figuram como
objecto de contracto, achamo-los sempre vinculados
com as villas, com as decanias, com a terra emfim.
Todos os monumentos conspiram em nos apresentar
os servos confundidos com os adscriptos, de cuja
existencia especial e distincta não encontramos, aliás,
nenhum vestígio.
A doutrina de Herculano foi combatida por Munoz y
Homero, que, na Colleccion de fueros municipales, tinha
seguido a opinião geralmente admittida a respeito do
caracter da servidão na Reconquista, de que a
servidão neste período da evolução do direito
peninsular continuou, dum modo analogo, ao que era
entre os godos. Segundo Munoz y Romero, a opi-
no de Herculano não se conforma com a afirmão
— 79 —
que o mesmo escriptor faz de que o serviço dos
senhores e dos nobres era prestado por membros
das famílias adscriptas. Se os homens e famílias
podiam, contra a sua vontade, ser separados da gleba
onde estavam estabelecidos, para o servo domes-
tico, não podem chamar-se adscriptos, porque esta
expressão traz comgo a idêa da inamovibilidade do
colono da terra que cultiva.
Munoz y Romero o se contentou com a refuta-
ção da doutrina de Herculano feita por esta rma
indirecta, pois apresenta ama serie de factos que,
em seu entender, resultam dos documentos e caracte-
rizam a condão do escravo. Estes factos consistem
na venda, doão e troca dos indivíduos sem depen-
dencia dum contracto acerca do solo em que elles
habitam: em serem arrebatados nas guerras priva-
das os colonos de herdades privilegiadas ou nobres,
ou ecclesiasticas, reduzidos á escravidão dos rapto-
res e vendidos por estes como escravos; na entrega
dos servos chrisos aos sarracenos como preço de
resgate de nobres captivos; em exercerem os servos
os diversos misteres do serviço domestico e os
officios mecanicos, sendo parte de taes misteres
incompatíveis com o cultivo do solo; em viverem
alguns nos coutos de igrejas e mosteiros obrigados
a serviços geraes, isto é, a quaesquer que lhes
mandassem fazer.
Alexandre Herculano não deixou a critica da sua
doutrina sem resposta, publicando em 1858 um
notavel estudo sobre o estado das classes servas na
Península, desde o vIII até ao xII seculo. Desfaz
completamente a incoherencia que lhe attribue Munoz
y Romero, mostrando que não ha a impossibilidade
de accumular os trabalhos da vida rural com os
industriaes e mecanicos ou com os servos pessoaes
— 80 —
feitos a outro individuo. Entre as nações onde o
progresso das industrias fez predominar quasi exclu-
sivamente o principio economico da divio do tra-
balho, effectivamente o se tal associação: o
official mecanico, o operario fabril, o creado domes-
tico não associa de ordinario a occupação a que se
entregou com o grangeio dos campos. Mas, assim
como a divisão e subdivisão dos misteres se vae
multiplicando com o desinvolvimento industrial,
assim quanto mais atrazado se acha um povo, mais
o homem varia de occupações, porque é obrigado
a variar e porque justamente a imperfeição das
industrias, a simplicidade e a grosseria dos
artefactos favorecem a accumulação e a variedade
das occupações individuaes.
Munoz y Homero, porem, encarregou-se até de
combater a sua propria opinião. Ao lado da servi-
dão pessoal dos servos originarios, admitte a exis-
tencia da servidão da gleba, a existencia simultanea
de adscriptos, de que fórma uma classe á parte.
Depois de enumerar as prestações agrarias que
pagavam esta especie de colonos-servos, Munoz
adverte que, além duma quota de fructos e de
variadas foragens, esses colonos foados estavam
adstrictos a servos pessoaes, que consistiam nos
amanhos de predios diversos da propria gleba, em
construcções de edifícios, e em fazer todo quanto
se lhes ordenasse. Suppoz Munoz que havia contra
dião em dizer-se que os servos originarios eram
todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a
serviços pessoaes fóra da respectiva gleba, e todavia
não acceita essa doutrina contradictoria, mas,
am disso, acceita-a, depois de affirmar a sua
impossibilidade, para desta inferir a continuão na
monarchia ovetenseleosa da servio wisigothica.
— 81 —
Os documentos invocados por Munoz não mostram
qne elles se referem a servos de raça e o a pri-
sioneiros de guerra, a sarracenos captivos nas
continuas luctas entre os reis de Oviedo e Lo e
os principes musulmanos ou aos filhos e descenden-
tes desses captivos. Ainda no meado do seculo XII
a sorte dos mosarabes, aprisionados com as armas
na mão pelos soldados dos pncipes christãos, era
analoga á dos crentes do islam, sendo como elles
reduzidos á escravidão. o é crivei que a sua
sorte fosse melhor nos seculos anteriores. Ainda
suppondo que os documentos citados por Munoz se
devessem intender, em geral, como elle pretende
que se intendam, ninguem poderia affirmar que os
nomes gothicos a que ahi se allude não fossem
sempre e em todos elles de captivos mosarabes ou
de filhos seus e não de mouros convertidos ou não
convertidos.
Munoz não se encarrega de interpretar dum modo
accorde com a sua doutrina os documentos apresan-
tados por Herculano, e por isso poder-se-hiam
considerar os diplomas a que elle recorre apenas
como manifestações das violencias, das excepções,
e como mais uma prova da falta de caracteres
constantes, de regras geraes absolutas nos factos
sociaes duma epocha de barbaria e de transforma-
ção. Mas, este expediente não satisfez a consciencia
de Herculano, e por isso o grande historiador exa-
mina um por um os documentos a que recorre
Munoz, mostrando como são falsas as conclusões
que delles pretende tirar.
E, na nova interpretação que aos documentos,
e em evidencia mais uma vez a necessidade de
nunca esquecer a população mosarabe. Por ella se
explica facilmente a existencia de prisioneiros chris-
— 82 —
tãos em poder de christãos, tanto mais quanto é
certo que os mosarabes deviam constituir a maioria
dos habitantes da Peninsula, ainda dons ou tres
seculos depois da invasão dos arabes e da tentativa
de Pelaio, pela simples razão de que a grande
massa da população dum vasto pais não pode sub-
stitnir-se como o poder supremo, sobretudo quando
se tracta duma nação civilizada e não de tribus
selvagens, sempre insignificantes em numero e que
a atrocidade fria e permanente dos vencedores chega
a destruir no decurso dos seculos 1.
37. Escravidão neste período. Em harmonia
com a doutrina de Herculano, a fonte principal da
escravidão na Reconquista era o captiveiro. Effecti-
vamente, tanto os captivos sarracenos, como os
captivos chrisos, se tornavam escravos dos vence-
dores, em virtude do exercício dum direito que,
desde a mais remota antiguidade, se considerou
inseparavel da victoria.
Esta antiga regra de direito, que attribuia a
propriedade do prisioneiro de guerra ao vencedor,
ainda se encontra admittida implicitamente por um
documento do seculo xI. Numa doação de
Bermudo III á sé de Santiago em 1032 falla-se dum
tal Galiariz, que, entre outras rapinas que fez,
roubou seis homens alheios e os vendeu como
1
Alexandre Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 265
e seg. e nota xvI; Munoz y Romero, Del estado de las personas en
los reinos de Asturias y León, pag. 13 e seg.; Alexandre
Herculano, Opusculos, tom. III, pag. 235 e seg.; Gama Barros,
Historia da administração publica em Portugal, nos seculos XII a
XV, tom. II, pag. 33 e seg.; Sr. Alberto Sampaio, As titias do norte
de Portugal, pag. 101 e seg.
— 83 —
captivos. Daqui se deduz claramente que o prisio-
neiro de gaerra se vendia sem offensa dos usos e
costumes, pois a venda não seria condemnavel se
se tratasse de captivos.
Gama Barros nota contra Herculano que não é
esta a conclusão que resulta do documento, mas a
de que a venda se considera condemnavel por ter
sido feita de homens que não eram do vendedor.
Mas, se é exacta a interpretação de Gama Barros,
porque é que o documento se refere expressamente
á venda de homens alheios como captivos e não
falia simplesmente da venda de homens alheios?
Evidentemente, a rao não pode ser outra senão a
de que só os captivos podiam ser vendidos.
No seculo xII continuou vigorando o mesmo di-
reito a respeito dos prisioneiros de guerra. No
seculo xIII é que se restringe o direito de reduzir á
escravidão os captivos, estabelecendo-se que
ficassem sujeitos a ella os captivos que fossem ini-
migos da fé (Part. Iv, tit. 21, I. 1).
A sorte dos captivos dependia inteiramente da
vontade dos guerreiros a quem fossem distribdos.
As condições da Reconquista, profundamente agitada
por luctas continuas e dominada pela recrudescencia
da barbarie, não podiam ser favoraveis aos captivos,
que deviam encontrar, como futuro mais provavel
da escravio, todas as oppressões e todos os vexa-
mes dos seus senhores.
Em todo o caso, apesar de escravos, uns e outros,
os captivos christãos deviam ser mais favorecidos do
que os captivos sarracenos, visto sobre estes pesar
nefastamente a inferioridade moral do homem que
professava uma religião contraria á dominante. O
senhor havia de ser necessariamente mais duro,
severo e intractavel para com o escravo que obede-
— 84 —
cia ao Koran, do que para com aqtielle que seguia o
Evangelho. É por isso que, como nota Gama Barros, s
vemos dous resultados oppostos no influxo que a
Reconquista exerceu na servidão. Por um lado, contribuiu
para o melhoramento da condão do escravo christão; por
ontro, concorreu, com o elemento agareno, para manter
a escravidão pura 1.
38. Desinvolvimento historico da escravidão em
Portugal. A escravidão persiste, por largo tempo em
Portugal. Alimentavam-na os captivos tanto arabes como
mosarabes. Alexandre Herculano cita o facto duma
correria de Affonso Henriques nos territorios musulmanos
do Occidente, em que, alem de avultados despojos os
guerreiros portugueses tinham trazido e conservavam
captiva certa porção de mosarabes. Sabendo disto S.
Theotonio, saia ao encontro do rei e de todo o exercito,
ameaçando os com a colera celeste, se não puzessem em
liberdade aquella gente. Então o rei e os seus guerreiros
soltaram todos os captivos mosarabes, deixando os ir
livremente na presença do sancto. Só no seculo xIII,
com a Lei das Sete Partidas, é que se restringe o direito
de reduzir á escravidão os captivos na guerra, ficando
então sujeitos a ella só os captivos que fossem inimigos
da fé, como já dissemos (Part. IV, tit. 21, I. 1). O direito
canonico fundamentava esta orientação, declarando os
infleis servos dos christãos. Daqui por diante a
escravidão mantem-se unicamente á custa dos mouros.
As Ordenações Affon-sinas mostram-se muito pouco
favoraveis á emanci-
1
Alexandre Herculano, Opúsculos, tom. III, pag. 286 e seg.;
Gama Barros, Historia da administração publica em Portugal,
tom. II, pag. 58 e seg.
— 85 —
pação destes escravos, probibindo que se forrasse
mouro ou moura captivo, a não ser por preço que
traga da sua terra, ou por resgate doutro cbristão
que jaz captivo. Se se fizesse o contrario, o dono
perdia o mouro ou moura em beneficio do rei, e o
escravo o que tivesse dado pela sua rendição (Ord.
Aff., liv. Iv, tit. CXI).
O numero de escravos mouros ia-se redozindo
successivamente, em virtude da diminuição das
guerras com os sarracenos, devendo a escravidão
desapparecer do territorio português dentro em
breve, se outra fonte muito mais rica a não viesse
alimentar. Essa fonte foi o trafico da escravatura
dos negros, que, a partir do meado do seculo xv,
abre um dos períodos mais vergonhosos e sombrios
da historia da escravidão.
Parece que foi em 1434, pouco depois do des
cobrimento da costa do Ouro, que um capitão
portugues, Antonio Gonçalves, desembarcando alli,
trouxe comsigo alguns negros, que veiu vender a
famílias mouras do sul da Hespanha. Mas com
a descoberta da America, em 1493, é que o com-
mercio dos escravos começou a disinvolver-se muito,
sendo principalmente a costa occidental de Africa
que fornecia delles toda a America, então em começo
de colonizão e exploração. Na cidade de Loanda
ainda existe, perto do caes da alfandega, uma cadeira
de pedra, donde o Bispo de Angola abençoava as
levas de escravos que eram enviados para o desterro
alem do Atlantico.
Os portugueses praticaram largamente o trafico da
escravatura. É costume dos estrangeiros censurar-
nos por o termos inventado. Mas, como diz Oliveira
Martins, se é certo que inventamos o trafico da
escravatura, tambem não de haver duvida de que
— 86 —
a descoberta pareceu feliz, porque todos, a nosso
exemplo, foram basear negros ao armazem da
Africa, para explorar as suas colonias americanas.
Entretanto, a bem da historia, deve dizer-se que
não inventamos cousa alguma. Sempre que houve
escravos, os escravos se venderam, porque é pro-
prio da escravidão tornar o homem um objecto
venal.
Além disto, antes de nos acharmos em relações
marítimas com a Negricia, achavam-se em relões
continentaes, de um lado, os berberes de Marrocos,
do outro, os arabes do Mar Vermelho, e para uns e
ontros a Negricia era desde tempos immemoriaes
um mercado de escravos. O trafico da escravatura
recebeu a uma alta sancção, a do papa Nicolao V,
que não teve duvida alguma em approvar este cruel
commercio, verificando-se assim mais uma vez que
a egualdade dos homens perante Deus o passa,
na theoria da Igreja, dum platonismo sem applica-
ção alguma na vida social.
A escravidão apresentou-se então como uma
necessidade para as colonias, visto a impossibili-
dade da associão por meio do trabalho salariado
tender a produzir a dissolução, chegando a tornar-se
necessaria em algumas a importação de generos
alimencios. E o certo é que a escravidão colonial
reflectiu-se, dum modo funesto, na Europa, onde os
Estados e os soberanos se serviram de escravos para
differentes necessidades publicas. Nos seculos xvI,
xvII e XVIII, o papa tinha escravos turcos para as
suas galeras. Luiz XIV fazia comprar para o mesmo
servo, provavelmente turcos ou negros, e mesmo
judeus e russos catholicos. No seculo xvIII, o ma)
foi-se alargando, extendendo-se gradualmente como
uma mancha vergonhosa, a ponto de a escravidão
— 87 —
attingir grande desinvolvimento, na Europa, che-
gando um documento official da epocha a
affirmar que na França não havia burguês ou
operario que não tivesse o seu escravo negro.
Em Portugal, tambem se alastrou a escravidão
no continente como consequencia do
desinvolvimento da escravidão colonial. É por
isso que o alvará de 19 de setembro de 1761
prohibiu carregar no Ultramar e descarregar nos
reinos de Portugal e dos Algarves gente de r;
ficando esta livre ipso jure pelo facto do
desembarque, sem dependencia de manumissão
ou outra cousa, que não fosse a certidão do
mesmo, que logo devia ser passada pelos
officiaes da Alfandega do logar ou porto, e paga
com o quadruplo dos emolumentos pelos, até alli,
senhores, dos, até alli, escravos. E, coherente com
esta disposição, o alvará impôs as penas do crime
do carcere privado e captiveiro de homem livre
aos que comprassem, vendessem, ou retives-sem
violentamente em seu serviço os individuos dum
e doutro sexo objecto de tal diploma.
Estas providencias prepararam o terreno para a
abolição da escravidão no reino, que teve logar
com o Alvará de 16 de janeiro de 1773. Este
diploma estabeleceu:
a) Quanto ao preterito, que os escravos ou
escravas nascidos, quer de concubinatos, quer de
legítimos matrimonios, cujas mães ou avós são
ou houverem sido escravas, fiquem no captiveiro
em que se acham durante a sua vida sómente.
Aquelles, porem, cuja escravidão vier das visa
vós ficavam livres e desembargados, embora as
mães e as avós tivessem vivido em captiveiro;
b) Quanto ao futuro, que todos os que
nascessem do dia da publicação da lei em diante,
nascessem
— 88 —
inteiramente livres, embora as es e avós tivessem
sido escravas, ficando babeis para todos os officios,
honras e dignidades, sem a nota distinctiva de liber-
tos, que os romanos estabeleceram e que agora se
tornava perfeitamente inconciliavel com a civilização
moderna 1.
39. Escravidão nas colonias. — A partir deste
momento em diante, a escravidão fica sendo admit-
tida unicamente nas nossas colonias. Mas já nesta
epocba se esbava o movimento generoso em favor
da abolão da escravidão nas colonias. A Inglaterra
tornou-se, dentro em breve, o centro deste movi-
mento, fundando-se neste pais orna sociedade cha-
mada dos Amigos dos Negros, tendo como seu mais
illustre representante Wilberforce.
Foi a França que traduzia, pela primeira vez,
uma ia tão nobre e elevada num texto legislativo,
abolindo em 1794 a escravidão em todas as colonias
francesas e conferindo a todos os negros a qualidade
de cidadãos franceses, com todos os direitos asse-
gurados pela constituão. O momento, porem, não
era ainda opportuno para se tomar esta medida, em
virtude da crise terrível que atravessavam a mãe-
patria e as colonias, e por isso não deve admirar
1
Paul Viollet, Histoire du droit civil [rançais, pag. 320 o seg.;
Salvioli, Manuais di storia del diritto italiano, pag. 175 e seg.;
Herculano, Historia de Portugal, tom III, pag. 309 e seg.; Lia
Teixeira, Curso de direito civil português, part. II, pag. 77 e seg.;
Mello Freire, Institutiones juris civilis lusitani, tom. II, pag. 6 e
seg.; Oliveira Martins, O Brazil e as colonias portuguesas, pag.
57; Memoria acerca da extincção da escravatura t trafico da
escravatura no territorio português (publicação do ministerio da
marinha, 1889), pag 8 e seg.
— 89 —
que Napoleão restabelecesse em 1802 a escravi-
dão colonial, que foi abolida definitivamente
em 1848.
Na Inglaterra, o movimento abolicionista conti-
nuou gloriosamente, pronunciando-se o parlamento
em 1807 em favor da abolição do trafico da escra-
vatura, seguindo-se tratados com outras nações para
levar a effeito este notavel progresso social, e reali-
zando-se em 1833 a suppressão da escravidão nas
Antilhas inglesas. Os ingleses, desde que aboliram
o trafico da escravatura, exigiram de Portugal a
prohibição deste commercio, qoe effectivamente con-
seguiram em 1810, ficando restringido a certos
limites da costa de Africa.
Logo que obtiveram esta prohibão, inauguraram
o corso aos negreiros, estabelecendo cruzeiros para
capturar os navios que se occupavam neste com-
mercio. Esta medida, porem, o conseguiu acabar
com o commercio dos escravos, visto tal commercio
passar a ser feito por meio de contrabando e por
uma fórma ainda mais infame, apresentando os
navios com carregamentos de escravos um especta-
culo repugnante, cruel e vergonhoso. A unica
medida que podia satisfazer completamente os inte-
resses da humanidade e os interesses ingleses,
cujas plantões definhavam, desde que fóra suppri-
mido o trafico da escravatura, era a abolição da
escravio por todas as nões coloniaes da Europa.
A escravidão, porem, unicamente foi abolida nas
nossas colonias pelo Decreto de 29 de abril de 1858,
que determinou que o estado de escravidão ficasse
inteiramente abolido nas províncias ultramarinas,
sem excepção alguma, no dia em que se completas-
sem vinte annos, contados da data deste decreto,
devendo, as pessoas que em tal dia possuíssem
— 90 —
escravos ser indemnizadas do valor delles pela rma
que uma lei dispusesse. O Decreto de 25 de fevereiro de
1869 aboliu o estado de escravidão em todos os
territorios da monarchia portuguesa, desde o dia da sua
publicação, estabelecendo ao mesmo tempo que todos
os indivíduos dos dous sexos que neste dia se
encontrassem em tal estado passassem á condão de
libertos, devendo acabar o seu serviço, como taes, em 29
de abril de 1878.
A lei de 29 de abril de 1875 determinou que a
condição servil acabasse um anno depois da sua
publicação nas províncias ultramarinas, estabelecendo
até ao dia 29 de abril de 1878 a tutela publica para os
que adquirissem a liberdade. A tutela publica ficou
entregue a um magistrado chamado curador geral e
obrigava os indivíduos sujeitos a ella a contractarem os
seus serviços por dous annos, devendo estes contractos
ser feitos de preferencia com os antigos patrões, se
estes quizessem. As disposições desta lei foram
reguladas pelo Decreto de 20 de setembro de 1875.
A 10 de outubro deste anno, em S. Thomé, vieram á
cidade alguns libertos queixar-se ao governador, dos seus
senhores, pelos castigos que lhes infligiam, sendo este
exemplo de tal modo seguido, que nos dias 6 e 7 de
novembro se reuniram na cidade tres a quatro mil
libertos. No dia 8, dirigi-ram-se pacificamente ao
palacio do governador, pedindo justiça, e o governador
tomou a deliberação de declarar abolido o servo
obrigatorio dos libertos, sendo este seu acto approvado
pelo governo da metropole, por Carta de lei de 3 de
fevereiro, que extinguiu, a partir da sua publicação, na
província de S. Thomé e Principe a condição servil do
decreto de 1869.
— 91 -
Antecipou-se, pois, com relação a S. Thomé e
Príncipe o Effeito da lei de 29 de abril de 1875, e
do regulamento de 20 de setembro deste anno, com
que terminou brilhantemente o movimento abolicio-
nista entre s. Ficaram definitivamente emancipa-
dos perante as nossas leis todos os indígenas da
Africa, os quaes passaram a gosar dos mesmos
direitos, regalias e privilegios que os filhos da
metropole.
Daqui derivou uma crise terrível para a nossa
colonia de S. Thomé, porque, abolido o servo
obrigatorio dos libertos, raros foram aquelles que
se contractaram para continuar a trabalhar nas
roças dos seus senhores. O preto trabalha inter-
mittentemente ou excepcionalmente aguilhoado pelas
necessidades immediatas, que são muito poucas, e
não por instincto ou por habito, com o fito duma
capitalização illimitada como o europeu 1.
40. A abolição da escravidão e o regimen do
trabalho colonial. A escravidão foi orna necessi-
dade para as colonias, que sem ella se teriam de
dissolver, em virtude da impossibilidade de associa-
ção por meio do trabalho salariado.
Mas, se a economia da cooperação forçada por
meio da escravidão deu resultados favoraveis ao
desinvolvimento agrícola e industrial das colonias,
1
Oliveira Martins, O Brazil e as colonias portuguesas, pag. 97 ;
Sr. Biker, Ilha de S. Thomé, na Revista portuguesa colonial e
marítima, tom. I, pag. 236 e seg. e 307 e seg.; Nani, Storia del
diritto privato italiano, pag. 16 e seg.; Memoria acerca da extin-
cção da escravidão e do trafico da escravatura no territorio por-
tuguês (publicação do ministerio dos estrangeiros, Lisboa, 1889),
pag. 35 e seg.
— 92 —
é certo que ella continha no seu seio os germens
da dissolão, mantendo num estado atrazado os
processos de explorão agrícola, favorecendo o
esgotamento e a esterilização de terrenos que doutro
modo seriam perpetuamente fecundos, e exigindo
enormes despesas de vigilancia, determinadas pela
reluctancia com que o escravo trabalhava, extrema-
mente aggravadas pela impossibilidade de adaptar
o numero de trabalhadores ás condições da offerta
e procura.
Supprimida a escravidão, recorreu-se primeiro á
immigrão africana, pois, tendo a escravidão reve-
lado claramente a aptidão para o trabalho e a força
de resistencia da raça negra, julgou-se que esta ra
poderia fornecer o trabalho necessario às fazendas,
sob uma nova fórma. Mas, como esta immigração
serviu unicamente para encobrir a continuação da
escravidão, alguns governos prohibiram-na comple-
tamente. Então as fazendas recorreram à immigração
chinesa ou indiana, coolies, isto é, de trabalhadores
indianos ou chineses, mais livres de direito do que
de facto, e muitas vezes sujeitos ao mesmoo
tratamento dos escravos.
Esta immigração attenuou os effeitos da crise que
se succedeu ao desapparecimento da escravidão nas
colonias, mas introduziu a corrupção asiatica nas
colonias, visto os coolies pertencerem ás camadas
mais baixas da sociedade indiana e chinesa, deu
origem a crises monetarias profundas, por causa
da drainagem dos metaes preciosos, produzida pela
partida dos coolies, no termo do seu contracto,
sobrecarregou os fazendeiros com grandes encar-
gos, entre os quaes figura, como o sendo o
menor, o de mandar vir da índia os alimentos
especiaes que estes immigrantes unicamente con-
— 93 —
sumiam, e contribuiu para perpetuar o estado de
cousas creado pela escravidão, como o esgotamento
e a esterilização dos terrenos, o amor pela rotina e
a aversão pela introduão das machinas e processos
aperfeiçoados de cultura, que seriam adoptados para
remediar a deficiencia da mão de obra. Accresce
que, como muito bem observa o Sr. Almada Negrei-
ros, a introduão dos coolies não tem produzido
resultado algum em Africa, principalmente nas par-
tes pantanosas, onde os trabalhos de cultura o e
deverão ser feitos pelos naturaes do pais.
Tambem se pensou na immigrão europeia, e
apresentaram-se varios systemas para a obter, sendo
os mais celebres os de Poulet-Scrope, Uniako e
Wakefield. Todos os systemas que se defendem
para obter trabalhadores nas colonias por meio da
immigrão europeia têem agora pouca importancia,
desde que hoje o problema se propõe principalmente
com relão ás colonias africanas, estando perfeita-
mente averiguado que na Africa e especialmente na
Africa equatorial, o trabalho dos campos o pode
ser realizado por europeus, tanto por causa do
ardor do sol, como pela humidade doentia produzida
pelas chuvas. E' certo que ha algumas reges da
Africa, de condições climatericas favoraveis, onde
os europeus podem trabalhar, mas nessas regiões
não se podem estabelecer fazendas, cujos productos
exigem terrenos humidos e um grande calor, que
são incompatíveis com o nosso organismo e com as
nossas condições de vida.
Mas, se o trabalho dos negros é tão necessario,
a difiiculdade está em obté-lo, desde o momento em
que os negros não trabalham voluntariamente, quer
por causa do fatalismo inherente á sua raça, quer
por causa da indolencia propria da sua organisação;
— 94 —
e desde o momento em que hoje se não pode de modo
algum acceitar a escravidão, constituindo até a sua
abolão a corôa de gloria da colonizão moderna.
Tem-se tentado resolver esta difficuldade da colo-
nização moderna, obrigando o negro ao trabalho
regular, até que elle o procure espontaneamente.
Para conseguir este resultado, preconizam-se meios
indirectos, como a repressão da vadiagem, o des-
involvimento das necessidades da raça preta, a
diffusão da instrucção e educação, mostrando que
o trabalho é sempre nobre e nunca aviltante, etc.
Estes meios depois de longo tempo é que pode-
riam fornecer trabalho ás colonias, e por isso não
deve admirar que nos nossos territorios ultramarinos
não estejam inteiramente apagados os vesgios da
escravidão, visto os contractos de serviçaes se faze-
rem sem liberdade alguma e sem o conhecimento
das condições em que vão prestar o trabalho, não
sendo esses contractos cumpridos, os serviçaes repa-
triados, e ficando os pretos sujeitos a um regimen
oppressivo e explorador similhante ao da escravidão.
A estes abusos em procurado r cobro alguns de-
cretos, como o de 29 de fevereiro de 1903, regulando
o servo da emigrão de operarios, serviçaes e tra-
balhadores para a província de S. Thomé e Pncipe.
Se se não póde passar sem a immigrão africana,
devem os immigrantes ser submettidos a um regimen
que respeite a sua liberdade. Não é esta a opinião
de muitos escriptores, que chegam a considerar a
falta do cumprimento do contracto de trabalho um
crime, para o fallar naquelles que, como Aspe
Fleurimont, não têem duvida em defender claramente
a escravidão 1.
1
Almada Negreiros, La main d'auvre en Afrique, pag. 4 e
seg.; Leroy-Beaulieu, La colonisation chez les peuples modernes,
— 95 —
41. Condição juridica do escravo. Os escravos
parece que foram tractados no Continente com grande
benevolencia, não se fazendo grande differença entre
elles e os servaes livres. Segundo Azurara, os de
tenra edade aprendiam officios, e aquelles que mos-
travam apties para se dirigirem eram libertados e
casados com mulheres do seu pais, recebendo um bom
dote, como, se os senhores que lhes davam a alforria,
fossem realmente seus paes. Nas colonias, só exce-
pcionalmente é que se encontraria esta benevolencia.
Os escravos eram incapazes de todos os actos
relativos ao direito publico e privado, como, de
servir qualquer officio publico (Dec. de 20 de dezem-
bro de 4693), de serem tutores, ainda que fossem
nomeados em testamento (Ord., lív. IV, tit. CII, § 4),
de serem testemunhas, salvo nos casos exceptuados
em direito ou se eram tidos por livres (Ord., lív. m,
tit. LVI, § 3; lív. IV, tit. LXXXV, pr.).
Além disso, as leis prohibiram aos escravos, sob
certas penas, viver em casa separada, mesmo com
licença do senhor (Ord., liv. v, tit. LXX, pr.), fazer
ajuntamentos, bailes e tangeres com outros (Ord.,
liv. v, tit. LXX, § 1), andar nas ruas de Lisboa
depois de noute cerrada (Ord., liv. v, tit. LXXIX, §
4), trazer espada, ou pão feitiço, não indo com seu
senhor (Ord., liv. v, tit. LXXX, §7), jogar dados ou
cartas (Ord., liv. v, tit. LXVI, § 44).
Aos negros mulatos ou índios, ainda forros, e a
outros similhantes se prohibiu aprender o officio de
pag. 712 e seg.; Arlhur Girault, La main d'ceuvre aux colonies, na
Revue d'économie politique, tom. x, pag. 147 e seg.; Aspe
Fleurimont, La colonisatíon française, na Revue internationale
de sociologie, tom. x, pag. 614 e seg.
96 —
ourives de ouro e usar delle, sob pena de 50 cru-
zados, em que lambem incorria quem para isso
cooperava (Ato. de 20 de outubro de 1621).
0 senhor podia castigar os escravos moderada-
mente, não maltratá-los, sendo responsavel pelo
castigo excessivo (Ord., liv. V, tit. xxxvI, § I).
Sendo o escravo preso por mandado do seu senhor,
ou por caso leve, nio devia ser posto em ferros,
nem com mais aperto do que bastasse para a sua
segurança (Dec. de 30 de dezembro de 1693 e Alv.
de 3 de outubro de 1658). O senhor podia vender o
escravo; e, sendo mouro, podia ser constrangido a
vendê-lo pelo justo preço, para ser trocado por
christão que estivesse captivo (Ord., liv. Iv, lit. xI
§ 4).
O escravo que fugia ao senhor era punido, bem
como qualquer pessoa que lhe desse ajuda para
fugir (Ord., liv. v, til. LXIII), intendendo Cabedo
que o escravo fugitivo em nenhum tempo pres-
crevia 1.
42. Fontes da escravidão e formas da sua extin-
ão. Os praxistas reproduziram a doutrina do
direito romano a respeito das causas da escravidão.
Por isso, se a mãe era livre no tempo da concepção,
no do parto ou em qualquer momento intermedio,
isso bastava para o filho ser livre e ingenuo. Mello
Freire insiste neste ponto, mostrando que entre s
o foi admittido o direito wisigothico sobre este
assumpto.
1
Borges Carneiro, Direito civil
de Portugal,
tom. I, pag. 96 e
seg.; Mello Freire, Insititutiones
juris civilis lusitani,
tom. II pag. 3 e
seg.
— 97 —
Tambem se cabia na escravidão pelo captiveiro e
pela condemuação a pena capital. (Ord., liv. Iv, tit.
81, § 6). Neste ultimo caso, os escravos eram
chamados escravos da pena, ficando, como taes,
privados de todos os actos de direito civil.
A consecução da liberdade pelo escravo cha-
mava-se alforria. A alforria podia ser obtida por
beneficio da lei on do senhor.
Por beneficio da lei, conseguiam a liberdade os
qne professavam em religo, os pretos e escravos
resgatados com o dinheiro da Redempção dos capti-
vos (Prov. de 28 de março de 1676 e 29 de janeiro
de 1721), e os que manifestassem diamante de 24
quilates, recebendo neste caso os seus senhores
200$000 ou 400$000 is de indemnização (Lei
de 24 de dezembro de 1734). Isto não faltando nos
modos estabelecidos no direito romano.
O dec. de 14 de dezembro de 1854, regulando os
direitos dos senhores sobre os escravos no Ultramar,
permittiu que se libertassem indemnizando os senho-
res e deu liberdade a todos os escravos que perten-
ciam á fazenda nacional.
O senhor podia conceder a liberdade por testa-
mento, fideicommisso ou por outros modos legaes.
A alforria podia ser revogada pelo padroeiro, desde
o momento em que se desse a ingratidão do liberto
(Ord., liv. Iv, tit. 63, § 7) 1.
1
Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, tom. I, pag. 99 e
seg.; Mello Freire, Institutionn juris lusitani, tom. II, pag. 3; Liz
Teixeira, Curto de direito civil português, part. I, pag. 100
e seg.
— 98 —
§2.] Servos da
gleba
SUMMARÍO : 43. Conceito da servidão da gleba.
44. Origem da servidão da gleba. 45.
Comparação entra a condição do escravo e a
condição do servo da gleba. 46. A servidão
da gleba entre os visigodos. — 47. A servidão da
gleba na Reconquista : Existencia da instituição.
48. Condição juridica desta classe social.
49. Fontes da servidão da gleba. 50. Formas
da sua extincção. 51. A pretendida influencia
do christianismo na emancipação dos servos da
gleba. 52. Verdadeiras causas da trans-
formação da servidão da gleba no colonato livre.
53. Progressos introduzidos na servidão da
gleba — 54. Complemento da evolução no direito
português. 55. Ultimos vestígios da servidão
da gleba.
43. Conceito da servidão da gleba. É muito
difficil determinar rigorosamente o conceito da ser-
vidão da gleba, visto nesta instituão terem entrado,
com o desinvolvimento economico e social, pessoas
da mais diversa condição, como os colonos e outros
semi-livres residentes nas terras dos senhores feu-
daes, variamente denominados e sujeitos ás mais
diversas prestações. Parece-nos que o unico modo
de fazer luz no meio destas dificuldades é, de nos
reportarmos à origem da servidão da gleba, pois
doutro modo impossível nos será distinguir esta ins-
tituição de outras que com ella apresentam estreita
analogia, através da evolução historica.
Ora a servidão da gleba apparece-nos, originaria-
mente, como uma escravidão de natureza especial.
O servo da gleba é o escravo a quem o seu senhor
concede um lote de terreno para ser cultivado por
— 99 —
elle e pelos seus descendentes, mediante o paga
mento duma prestação annual em fructos, a que
muitas vezes se ajunctava a prestação de certos
serviços pessoaes. O servo da gleba, por isso, em
logar de estar submettido a todas as vontades do
senhor, fica unicamente obrigado a certos e deter
minados serviços, especialmente ruraes; e, em
lugar de trabalhar, em commum, por grupos nas
diversas partes da propriedade do senhor, sem
proveito para si, trabalha isoladamente sobre um
lote de terreno que lhe é confiado.
As relações que vinculavam o servo da gleba
ao senhor e á terra, transformam-se com a
evolução de modo que, por um lado, attenua-se o
domínio que tinha o senhor sobre a pessoa do
servo da gleba,e, por outro, consolida-se a
dependencia deste relativamente á terra,
tornando-se um instrumento necessario delia, e
desinvolvendo-se, com este facto, a idêa, de que tal
classe social possuía certos direitos sobre o
pequeno donio que cultivava.
É, no termo desta evolução, que Henri Sée difle-
rencia o servo da gleba do escravo antigo, pelo
facto de elle possuir já um patrimonio e uma família
legitima 1.
44. Origem da servidão da gleba. São varias
as theorias que têem apparecido para explicar a
origem da servidão da gleba. Segundo uma dessas
theorias, a servidão tem uma origem romana, deri-
vando da transformação da escravidão, em virtude
1
Glasson, Histoire du droit et da institutions de la France,
tom. II, pag. 542; Salvioli, Manuale di storia del diritto italiano,
pag. 283 e seg.; Henri Sée, Les classes rurales et le regime
domanial en Franee au moyen áge, pag. 70 e seg.
— 100 —
das condões economicas do Imperio. Quando o
regimen dos grandes donios agrícolas cultivados
por legiões de escravos (latifundia) esgotou o solo
da Italia e o enfraquecimento do Imperio romano
tornou mais difficil a segurança interna e externa,
o modo de cultura não podia deixar de mudar. Para
evitar a ruina, os proprietarios lerritoriaes viram-se
obrigados a dividir os seus dominios e a transformar
os escravos em servos, que explorassem as parcellas
em que taes dominios eram fraccionados. Tal é a
doutrina de Molinari.
A esta doutrina parece adherir Fustel de Coulan-
ges, quando affirma que a transformão economica
da escravidão na servidão da gleba foi o resultado,
o duma medida geral, mas o effeito duma pratica
que insensivelmente se tornou habitual e que come-
çou na sociedade romana.
Os documentos, porem, unicamente nos levam a
admittir a existencia entre os romanos dos escravos
ruraes, cuja condição differe da dos servos da gleba.
O escravo rural toma parte na cultura dos campos,
mas sem possuir um lote determinado de terreno,
que lhe tenha sido confiado pelo senhor.
Segundo outra theoria, a servidão da gleba teve
por origem o colonato romano. Esta doutrina tam-
m o parece muito exacta e verdadeira, pois os
colonos romanos eram homens livres, contrariamente
ao que acontecia com os servos da gleba, que eram
escravos, embora escravos de natureza especial. Ê
certo que o colonato soffreu uma evolução no
sentido de se fundir com a servidão da gleba, mas
isso não auctoriza, por forma alguma, a filiar a ori-
gem duma instituição na outra.
Segundo outra theoria, defendida por Glasson, a
servidão da gleba teve uma origem germanica, pois
— 101 —
entre os germanos, como sabemos, segundo teste-
munha Tacito, os escravos ruraes encontravam-se
numa condição muito differente dos escravos roma-
nos, tendo um domicilio fixo e cultivando um lote
de terreno, mediante o pagamento duma certa pres-
tão em cereaes ou em gado. A condição destes
escravos, mantida depois das invasões é que parece
ter originado, segundo Glasson, a servidão da
gleba. Mas, como se explica então o apparecimento
da servio da gleba nas colonias americanas, apesar
de ahio se ter dado uma invasão germanica ?
Segundo outra theoria, seguido por Doniol, a ser-
vidão da gleba foi a continuação no Occidente,
através das influencias romanas, de modos parti-
cularmente proprios á sociedade que se chama
barbara. Entre a servidão e a escravio ha unica-
mente a differença de duas civilizações inteiramente
oppostas pelo seu fundo proprio, pela epocha e
pelo territorio que occuparam. A servio foi, para
o mundo occidental, o modo da não-liberdade como
condição organica do trabalho, do mesmo modo
que a escravidão o tinha sido para o mondo antigo.
Esta theoria tambem briga com o apparecimento
da servidão da gleba nas colonias, visto este facto
demonstrar que uma tal instituição não é peculiar
do mundo europeu occidental. Mas, ainda que assim
o fosse, a theoria nem por isso seria acceitavel,
visto o explicar a rao por que no seio da socie-
dade enroa occidental surgiu a servio da gleba,
e o outra fórma da organização do trabalho.
Segundo outra theoria, apresentada por Loria, a
origem da escravidão deriva das condões econo-
micas da Europa medieval. A productividade da
terra da Europa medieval era egual á do período
das colonias em que appareceu a servidão. Se a
— 102 —
terra da maxima fertilidade dava um producto egual
a oito ou nove vezes a semente, isto era simples-
mente uma excepção, e se podia conseguir com
um anno de pousio. A terra de media fecundidade
dava mente seis vezes a semente. A servidão da
gleba appareceu precisamente para remediar este
estado economico, visto tal instituão augmentar a
efficacia da produão, emquanto interessa o traba-
lhador nos resultados delia, assegura a sua condição
contra o arbítrio do senhor, e augmenta o seu bem
estar. Desapparecem assim as causas que
deprimem a efficacia do trabalho sob o dominio da
escravidão 1.
45. Comparação entre a condição do escravo e
a condição do servo da gleba. o pode haver
duvida alguma de que o servo da gleba se encon-
trava numa condição mais vantajosa do que o
escravo. Permittia-se-lhe cultivar uma parcella de
terra sob condições duras, mas que lhe deixavam
pelo menos uma parte de liberdade e de proprie-
dade. Talvez o servo tivesse de trabalhar mais do
que o escravo, mas sabia que uma grande parte
deste trabalho era para elle, gosando assim os
fructos dos seus esforços.
É certo que o servo da gleba não deixava de ser
escravo, devendo como tal obediencia ao seu senhor.
Mas, se de direito a condão não mudava, o mesmo
1
Fustel de Coulanges, L'alleu e domaine rural, pag. 374 e seg.;
Glasson, Histoire du droit et des institutions de la France, tom. II
pag. 543; Molinari, Servage, no Dictionnaire d'économie politique
de Coquelin, tom. II, pag. 610; Loria, Analisi delia proprieà
capitalista, tom. II, pag. 120 e seg.; Doniol, Serfs et vilains, pag.
72 e seg.
— 103 —
não acontecia de facto, onde a transformação realizada
era enorme. Não o limite das suas obrigações
se encontrava fixado, parecendo monstruoso ultra-
passal-o, mas tambem na cultura do sen lote de
terreno era livre e senhor de si proprio. não se'
encontrava confundido no grupo servil, tendo a sua
individualidade, os seus interesses proprios, o seu
domicilio independente e a sua família juncto de si.
Esta transformação que se dá para o homem,
tambem tem logar para a mulher. o se encon-
tra vinculada ao serviço pessoal do senhor, conver-
tendo-se os deveres da servidão continua numa
obrigão determinada, como a dum dia de trabalbo
por semana ou a duma teia annual. Muitas vezes
nem mesmo esta obrigação tinha.
Os filhos dos servos não conservavam nenhumas
relações com os senhores, quando no systema da
escravidão pertenciam a estes e tinham de trabalhar
para elles 1.
46. A servidão da gleba entre os wisigodos.
É incontestavel que a servidão da gleba existiu entre
os wisigodos, embora nem sempre seja facil reco-
nhecê-la na legislação deste povo, visto ella designar,
com os mesmos nomes, a servidão da gleba e a
servidão pessoal.
Das leis wisigotbicas, segundo o manuscripto de
Holkham, se deduz a existencia da servidão da
gleba, pois ahi falla-se de escravos que pagam tributo
ou renda ao dono. As Fórmulas wisigotbicas refe-
rem-se a escravos que se transferiam com o dominio
1
Fustel de Coulanges, L'alleu et le domaine rural, pag. 387
e seg.
— 101 —
do solo e a escravos que se compravam e vendiam
independentemente da terra. Paulo Emeritense, fal-
tando do bispo Massona, diz que este, ao regressar
do sen desterro, encontroa no caminho homens da
Igreja de Merida, que o bispo intruzo enviava ás
escondidas com carros para levar a praia e os orna-
mentos snbtraidos das basílicas, episcopal e de Santa
Eulalia. Interrogados por Masona acerca da sua pro-
cedencia responderam: somos servos teus; levamos
cousas de Santa Eulalia e luas; es, infelizes, vamos
captivos, separados das nossas cousas, dos nossos
filhos, de nossas mulheres e expulsos da patria onde
nascemos. Parece que esta passagem tambem se
refere aos servos da gleba, separados da terra que
cultivavam por vontade do senhor.
Relativamente á condição juridica dos servos da
gleba entre os wisigodos, não encontramos normas
especiaes nos monumentos legislativos que elles nos
legaram. O que acontece com os wisigodos -se
com os outros povos barbaros, no mesmo período de
desinvolvimento historico. Fustel de Coulanges ex-
plica esta omissão, notando que os servos da gleba,
sendo escravos, ficavam inteiramente dependentes
da vontade do seu senhor relativamente á posse do
terreno que este lhes concedia. Não se pode pensar
que, no momento da concessão, interviesse um acto
escripto. Nenhum contracto era possível entre um
senhor e o seu escravo. O senhor contentar-se-hia
com indicar ao servo as suas obrigações e isto faria
lei para o futuro.
Indubitavelmente, que o senhor podia retirar ao
servo o lote de terra que lhe confiava, embora não
o fizesse, visto não ter nenhum interesse nisso.
Não apparece tambem no codigo wisigothico lei
alguma que considere hereditaria a posse da gleba
— 105 —
pelo servo, sem duvida porque, não lhe pertencendo
a terra que occupava, esta era devolvida pela morte
ao proprietario.
Mas, embora este fosse o direito, é certo que na
pratica os filhos do servo haviam de sncceder na
posse da terra, em virtude do interesse que os
senhores e os escravos encontravam em tal systema.
Os senhores tinham necessidade de cultivadores, os
servos tinham o desejo natural de continuar numa
terra que conheciam, onde tinham nascido e que
amavam por a terem cultivado. É necessario ter
sempre presente a idêa de que a servidão da gleba
se formou e desinvolveu, não em virtude duma lei,
mas fóra de toda e qualquer lei.
O servo o podia abandonar a terra que lhe foi
confiada, sendo os servos fugitivos energicamente
perseguidos (cod. wis., liv. Ix, tit. 1). Teria, porem,
o direito de entregar ao dono a terra que lhe foi
confiada ? Fustel de Coulanges julga que este direito
o era impossível, embora o servo nada lucrasse
com o exercio delle, por então cair na servidão de
todos os dias e de todas as horas, sem proveito nem
compensação. Este direito, porem, não se harmoniza
muito bem com a condão jurídica do servo da
gleba, que fundamentalmente era a do escravo.
É claro que o servo não podia vender a sua gleba,
visto ninguem poder alienar aquillo que lhe não
pertence (cod. wis., liv. v, tit. Iv, 1. 19). Fustel de
Coulanges procura averiguar, porem, ainda se o
servo teria a faculdade de ceder o goso do seu lote
de terreno, como o pode fazer um rendeiro. E,
notando que as leis francas são omissas sobre este
assumpto, cita uma lei do codigo wisigothico que
auctoriza o servo a vender a sua terra, comtanto
que o faça a um outro servo do mesmo dono (cod.
— 106 —
wis., liv. v, tit. VII, 1. 16). Pastel de Coulanges não
se contenta com a interpretação que dá a esta lei,
procura lambem justifi-la, notando que podia ser
indifferente ao proprietario que os seus servos tro-
cassem ou vendessem os seus respectivos lotes, desde
o momento em que o fizessem uns aos outros; mas
era inadmissível que o terreno passasse para a posse
dum adquirente que não fosse seu servo.
Em todo o caso, Fustel de Coulanges reconhece
que deve ser muito raro e quasi incomprehensivel
que o servo vendesse a sua gleba, pois sem ella,
ficaria numa situação muito precaria. É que Fustel
de Goulanges interpretou um pouco levianamente o
texto do codigo wisigothico que cita, pois este texto
não se refere á alienação da gleba, mas à alienação
dos proprios bens dos servos, e o tracta de todos
os servos, mas sim unicamente dos servos fiscaes.
Effectivamente, como vimos, os servos fiscaes podiam
vender os seus bens a outros servos fiscaes e appli-
car o producto em beneficio das igrejas e dos insti-
tutos de caridade 1.
47. A servidão da gleba na Reconquista. Exis-
tencia da instituição. Não pode haver duvida
alguma a respeito da servidão da gleba, perfeitamente
caracterizada, na Reconquista. o inumeraveis os
textos neo-wisigothicos que possuímos a seu res-
peito. É provavel até, como muito bem opina o Sr.
Alberto Sampaio, que esta instituição continuasse
eno a desinvolver-se, pois não era a menos ade-
quada a esses tempos.
1
Fustel de Coulanges, L'alleu et le domaine rural, pag. 389 e
seg.; Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espana goda, tom. Iv, pag. 347 e seg.
— 107 —
É frequente nas doações de bens fazer-se meão
dos servos que lhes pertenciam. Numa doação do
rei Ordonho de 816 á de Oviedo falla-se duma
villa de nome Bares cum família sibi pertinenti:
Numa doação de 919 feita por Gundesindus e mais
três coherdeiros ao mosteiro de Lorvão doa-se a
villa de Gondelim com tudo o que nella se contem,
incluindo um servo Astrurio, que herdaram dos seus
antepassados, e a descendencia delle, para que vivam
na referida villa e sejam servos do mosteiro.
Num documento de 1003 do mosteiro de Cellanova
encontra-se bem caracterizada a indissolubilidade
da adscripção. Certo homem livre, estranho ao
senhorio do mosteiro entrou em territorio deste e,
ligando-se ahi a ama mulher, possuiu as terras a
que ella era adscripta e adquiriu ainda outras.
Revoltando-se ambos contra o mosteiro, buscaram
para si e para os predios o senhorio do conde D.
Oveco; mas os monges intentaram pleito judicial, e a
sentença foi que ou o homem, chamado Fagildo,
deixaria a mulher e os predios, ou serviria com ella
e com elles ao mosteiro. Em resultado do litigio,
Fagildo obriga-se a permanecer com a consorte no
senhorio de Cellanova, ao qual elles ambos e a sua
descedencia servirão fielmente com as propriedades
que já possuírem ou que de futuro vierem a possuir,
as quaes por nenhuma forma poderão alienar.
Ha ama acta de litigio de 1011 tambem terminante
e decisiva relativamente á servidão da gleba. Liti-
gando-se a propriedade de certo predio, um dos
contendores invocava a seu favor o facto de elle ter
sido de Asperigo, servo de seu avô. Ora servo
com herdade só podia ser adscripto.
Um patrimonio juncto ao rio Leça, de que tractam
os diplomas de 1037 e 1039, apparece-nos clara-
— 108 —
mente agricultado pelos adscriptos Gutina e Gudesteo
ahi designados. É frequente tambem fazer-se con-
fusão entre o servo e o predio, designando-se este
pelo nome daquelle. Numa doação de 1076, Rodric
Didaz e sua mulher offerecem ao mosteiro de S.
Sebastião a metade das villas de Penacova e Fresci-
nosa e mais quator solares populatos in campo.
Estes são referidos do modo seguinte: Isti sunt
Stephano, et Dominico, Vincenti, et Nunus Stefan et
Garcia Zisla 1.
48. Condão judica desta classe social. Os
servos da gleba encontravam se, assim, ligados ao
solo que cultivavam, dum modo indissoluvel, não
podendo ser separados da terra a que estavam
adscriptos, vendidos ou doados sem ella. O costume
tinha consagrado esta ligação por uma forma
peremptoria, e por isso os servos da gleba conser-
vavam a posse hereditaria e inalienavel da terra
que cultivavam. No concilio ou côrtes de Leão de
1020, falla-se da herèditatem servi, como dum
facto assas trivial para exigir providencias que o
regulem e limitem.
Aos servos da gleba incumbia a cultura á sua
custa da terra a que estavam adscriptos, devendo
entregar ao senhor uma parte mais ou menos con-
sideravel de fructos. Am disso, os servos da gleba
eram obrigados ao serviço domestico dos senhores,
e a trabalhos mecanicos da industria, como, por
exemplo, a serem cozinheiros, padeiros, tecees,
carpinteiros, etc. Os serviços que elles tinham de
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Portu-
gal, tom. II, pag. 387 e seg.; Alberto Sampaio, As villas do norte de
Portugal, pag. 107.
— 109—
desempenhar dependiam em grande parte do artrio
do senhor, pois nos documentos é frequente armula
et totum servitium facere. O mesmo aconteceu além
dos Pyreneus, pois apparecem ahi muitos
documentos, uns anteriores ao seculo Ix, ontros
deste seculo, e outros posteriores a elle, registando
para cada familia de adscriptos certos e determinados
serviços, alguns até bem abjectos. Daqui se deduz
claramente que o encargo dos servos pessoaes o
tem valor algum para distinguir a escravidão da
servio da gleba, contrariamente ao que sustentou
Munoz y Romero.
Os servos da gleba occupavam uma situação
intermedia entre a liberdade e a escravio. A soa
condição era a de cousas relativamente ao terreno
a que estavam adscriptos. Constituíam uma parte
integrante do predio a que pertenciam. Eram con-
siderados como pessoas, emquanto podiam contractar,
adquirir e possuir bens fóra dos predios que tinham
forçosamente de cultivar. Não podiam, porem, dis-
por livremente destes bens, sem o consentimento
dos seus senhores, porque em muitas escripturas
antigas vemos que se doavam os adscriptos conjun-
tamente com os bens que tinham ou que pudessem
adquirir elles e os seus descendentes. É muito
claro a este respeito o documento de 1003 do mos-
teiro de Cellanova, citado no numero anterior.
Os servos da gleba o podiam contrahir matri-
monio sem o consentimento tacito ou expresso dos
seus senhores. Desde o momento em que não se
verificasse este requisito, o casamento era conside-
rado nullo. É por isso que vemos em alguns
documentos muitos servos serem distrdos do logar
onde tinham casado e obrigados a abandonar as
suas mulheres.
— 110 —
Não offerecem duvidas os casamentos dos serros
da gleba, quando os contrahentes são de proprie-
dades do mesmo dono. As difficuldades apparecem
relativamente aos casamentos contraídos entre ser-
vos de donos differentes. Como é que neste caso
se procedia relativamente à prole? Herculano sus-
tentou que os filhos de servo e de serva de diffe-
rentes senhores não se dividiam entre estes, o que
se dividia eram os serviços pessoaes e em certos
casos as prestações agrarias.
Esta doutrina de Herculano unicamente poderia
ter applicão, quando os casamentos se tivessem
realizado entre servos que habitavam num mesmo
logar ou em localidades proximas. Mas o mesmo
não poderia acontecer, quando se tractasse dum
servo que, fugindo do campo que cultivava, ia casar
a varias leguas de distancia e ahi tinha successão.
Neste caso, não se podiam exigir prestações agra-
rias, pois o terreno cultivado pertencia a outro
dono, nem se podiam reclamar serviços pessoaes,
por causa da distancia a que se encontrava o senhor
do pae. Herculano procurou sair desta difficuldade
apresentada por Munoz y Romero, mas por uma
forma pouco satisfactoria, perdendo-se em conje-
cturas mais ou menos arbitrarias.
Parece mais provavel que se verificasse a divisão
dos filhos nos termos da legislação wisigothica,
segundo a qual os filhos de servos de differentes
donos se deviam dividir entre elles por metade.
Se, porem, houvesse um sò filho, este devia ser
conservado em companhia da mãe até aos doze
annos, e então o senhor da serva tinha de pagar ao
do servo metade do que elle valesse, segundo o arbi-
tramento de homens que merecessem credito, pro-
cedendo-se de egual modo, quando o numero dos
— 111 —
filhos fosse impar (cod. wis., liv. III, tit. II, 1. 5;
liv. x, tit. I, l. 17).
Da applicão desta regra do codigo wisigothico
existem alguns exemplos. Citaremos unicamente o
rol das famílias da igreja de Lago, elaborado no
tempo do rei D. Fernando I (1037-1035), onde se
vê que um tal Ranimiro qne pertencia ao conto de
Santo Estevão, na villa de Ameneto, casou com uma
serva do rei, tendo seis filhos, qne foram divididos
em duas turmas, pertencendo a Santo Estevão,
Nundulfo, Miguel e Pedro 1.
49. Fontes da servidão da gleba. As cansas da
servidão da gleba eram: a) o nascimento; b) o con-
sentimento voluntario; c) o casamento; d) a pena.
a) Nascimento. Em virtude deste facto, eram
servos da gleba os filhos nascidos de paes qne se
encontravam nesta condição. Nos tombos dos mos-
teiros e das Igrejas, faz-se a genealogia de cada um
dos servos, desde o primeiro dos seus ascendentes,
com um tal desinvolvimento e cuidado, que parece
que se procura fundamentar, por esta forma, o
direito que havia sobre elles.
b) Consentimento voluntario. Muitos indivíduos
sujeitavam-se á servio da gleba pela sna propria
vontade. Comprehende-se perfeitamente qne este
facto desse nesta epocha, desde o momento em
qne se note que, no estado de gnerra e de anarchia
da sociedade asturiana e leonesa, a miseria devia
ser a condão economica de muito indivíduos, qne,
1
Munoz y Romero, Del estado de las personas en los reinos
de Asturias y León, pag. 57 e seg.; Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal, nos seculos XII a XV, tom. II,
pag. 75 e seg.; Herculano, Opusculos, vol. III, pag. 318 e seg.
— 112 —
privando-se da sua liberdade, procuravam obter
uma subsistencia menos precaria. Esta pratica har-
monizava-se com o direito wisigothico, que permittia
ao homem livre vender a sua propria liberdade.
0 fanatismo religioso tambem levava muitos indi
víduos a offerecer as suas pessoas e bens ás Igrejas
e mosteiros. Estes servos, que se chamavam oblati,
ficavam em condição superior á dos outros.
c) Casamento. Os homens livres que se casa
vam com servas e as mulheres ingenuas que se
consorciavam com servos, constituiam-se por este
facto na mesma servidão em que se encontravam a
mulher ou o homem a quem se tinham unido.
d) Pena. A, servidão era estabelecida como
pena no caso de transgreso de pactos de prestação
de serviços, ou do não cumprimento das disposições
testamentarias, ou da impossibilidade de pagar a
composição em dinheiro, devida naquelle tempo por
um delicio, ou da violação do asylo ecclesiastico 1.
50. Formas da sua extincção. A manumissão
era o modo mais natural de extinguir a servidão da
gleba. Apparece concedida em doações e testamen-
tos, e em instrumento especial. Podia ser restricla
ou completa, como no tempo dos wisigodos.
Quando era restricla, impunham-se condições mais
on menos onerosas ao libertino, sendo estas tão
diversas e variadas, como a vontade humana. Era
frequente dar a liberdade ao pae e conservar os
filhos na servio, ou concedê-la aos filhos e negá-la
1
Munoz y Romero,
Del estado de las personas en los reinos
de Asturias y Lion,
pag. 58 e seg.; Gama Barros,
Historia da
administração publica em Portugal, nos seculos XII a XV,
tom. II,
pag. 69 e seg.
— 113 —
ao pae. Munoz refere um exemplo sem data, extrdo
do inventario de servos pertencentes ao mosteiro de
Sobrado, de se ter conferido carta de liberdade a
um pae, conservando-se á filha a condição de
serva.
Estabelecia-se tambem algumas vezes a condão
do libertino continuar a prestar, ao seu antigo senhor
ou aos seus descendentes, os servos a que estava
obrigado como servo. A doão da villa de Corne-
lia na e da igreja de S. Thomé, que em 915 o rei
Ordonho fez á de S. Thiago, mostra a existencia
de libertinos que estavam obrigados para sempre a
alguns serviços.
Costumava-se tambem dar a liberdade aos servos
da gleba por uma forma indirecta, convertendo-os
em colonos voluntarios e fixando e diminuindo as
prestões a que estavam obrigados 1.
51. A pretendida influencia do christianismo na
emancipão dos servos da gleba. A servidão da
gleba manifesta, no fim do período historico que
estamos estudando, uma tendencia pronunciada para
se transformar no colonato livre, embora não se
possa precisar a epocha em que esta transformão
se converteu depois em facto geral, no seio dos
Estados da Reconquista.
Ha quem attribua tal transformação á influencia
do christianismo, que proclamava a egualdade. dos
homens perante Deus, para quem o senhor e o servo
eram o mesmo. D'Avenel, porem, demonstrou exu-
1
Munoz y Romero, Del estado las personas en los reinos
de Asturias y Léon, pag. 81 e seg.; Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal, nos seculos XII a XV, tom II,
pag. 80 e seg.
— 114 —
berantemente que o christianismo não teve influencia
alguma sobre a emancipação dos servos da gleba.
O clero regular ou secular não procedia para com
os servos da gleba, dum modo differente dos senho-
res leigos. Não manifestou maior interesse pelo
melhoramento da sua condão, nem maior enthu-
siasmo pela sua emancipão, que era concedida,
simplesmente, conforme as circumstancias o recla-
mavam.
O direito canonico consagrou um principio favo-
ravel ao desinvolvimento da servidão. Effectivamente
a respeito do nascimento como fonte da servio, o
direito canonico abandonou o systema romano,
segundo o qual o filho seguia a condição da mãe e
consagrou o systema germanico segundo o qual o
filho seguia a condição daquelle dos paes que a
tivesse peior, bastando, por isso, a servidão dum
dos paes para produzir a servidão dos filhos. Semper
qui nascitur deteriorem partem sumit, declara termi-
nantemente o Decreto de Graciano (C. XXXII, q. xv,
can. 15). E, assim, das duas soluções a respeito
dos filhos do servo, o direito canonico consagrou
precisamente a contraria à liberdade.
É certo que o christianismo proclamou a egualdade
dos homens, mas essa egualdade è a egualdade
perante Deus, não procurando a Igreja em tempo
algum realizar tal egualdade na vida social. Nem se
recorra á distinção entre o que é devido ao chris-
tinianismo e o que é devido á Igreja, porquanto o
christianismo actuou na vida social precisamente por
intermedio da Igreja.
Os proprios sectarios da opino que combatemos,
chegam a reconhecer até certo ponto que a sua
doutrina não tem grande valor. Está neste caso,
por exemplo, Munoz y Romero, que não tem duvida
— 115 —
em affirmar que a servidão da gleba teria continuado
ainda por muito tempo na Hespanha, apesar da
doutrina do christianismo, tão liberal e generosa,
se outras causas o tivessem vindo actuar duma
maneira mais efficaz e decisiva 1.
52. Verdadeiras causas da transformão da ser-
vio da gleba no colonato livre. As verdadeiras
cansas da transformação da servidão da gleba no
colonato livre são: a) a multiplicão dos municípios;
b) a existencia dos escravos mouros; c) o desinvol-
vimento da população; d) a preso das idêas eco-
nomicas. Vejamos como cada uma destas causas
actuou na transformação da servidão da gleba.
a) Multiplicação dos municípios. A multiplicação
dos munipios contribuiu poderosamente para a
transformação da servidão da gleba no colonato
livre, porque elles procuravam attrair a população,
dando asylo aos culpados e designadamente aos
servos fugidos aos seus senhores, visto assim se
poderem povoar logares expostos a continuas inva-
es e depredões dos serracenos. Daqui derivava
a difficuldade de obrigar o servo a conservar-se na
gleba, sobretudo, se no conselho vizinho havia terras
a distribuir aos novos habitantes, e a necessidade de
o procurar reter, por meio do movei do interesse,
admittindo assim o principio da liberdade pessoal.
Deve observar-se, porém, que nem todos os foraes
concediam a liberdade aos servos profugos, mas
só aquelles que se referiam a logares que, encon-
1
D'Avenel, La fortune privit à travers sept siècles, pag. 163 e
seg.; Munoz y Romero, Del estado de las personas en los reinos
de Asturias y Léon, pag. 85 e seg.; Lanessao, La lutte pour
l'existence et d'évolution des sociétés, pag. 85 e seg.
— 116 —
trando-se situados na fronteira apresentavam muitas
difficuldades em ser povoados. Assim o foral de
Leão de 1020, longe de estabelecer asylo na cidade
para os servos, dispõe que os ali refugiados fossem
devolvidos aos senhores. Pouco depois procurou-se
repovoar Yillavicencio, concedendo-se-lhe o foral de
Leio, com a modificação de ser asylo para servos,
que ficavam gosando da liberdade.
b) Existencia de escravos mouros. A existencia de
escravos mouros devia tambem contribuir para
elevar a dignidade do servo, visto repugnar que,
homens, com a mesma crença e da mesma origem,
fossem equiparados, sob certos aspectos, á raça
envilecida e que podia ser objecto de transacções,
como qualquer animal domestico. E, assim, se devia
desinvolver e radicar o sentimento que havia de levar
ao reconhecimento da liberdade do servo, que a
transformação da servidão da gleba no colonato livre
trados.
c) Desinvolvimento da população. O desinvolvi-
mento da populão tambem devia contribuir para a
transformação da servio da gleba no colonato livre,
pois, à medida que ia augmentando a offerla do tra-
balho, natural era que se fosse escusando a cultura
por constrangimento. E, deste. modo, o colonato
livre devia tornar-se necessariamente a forma mais
natural da organização do trabalho.
Como diz Herculano, à medida que se estabeleciam
a paz e a segurança, a população multiplicava-se; e,
por uma lei economica, esta multiplicão augmen-
tava forçosamente o valor das terras cultivadas,
ou, por outra, se àquelles tempos se póde applicar
uma phrase da sciencia moderna, augmentada a
offerta do trabalho, ia-se pouco a pouco escusando a
cultura por constrangimento.
— 117 —
d) Pressão das idéas economicas. Os senhores
tambem o tardaram a r, como nota nojosa,
que o trabalho livre, impulsionado pelo interesse
pessoal, valia mais e era mais fecundo do que o
trabalho servil. A antiga communidade de interes-
ses, qne os obrigava a manter os servos, começou a
dissolver-se. A emigração em massa dos servos e
colonos era um ensinamento fecundo, sendo impossí-
vel contê-los por meio da força. O seu effeito imme-
diato seria a despovoação completa de muitas terras
e a ruina dos senhores. Não se podia impedir a
deserção seo pela concessão das mesmas vanta-
gens que os servos iam procurar noutros logares.
E, assim, por estas causas, se foi desinvolvendo a
transformação da servidão da gleba no colonato
livre, que vamos encontrar completamente realizada
no direito português 1.
53. Progressos introduzidos na servidão da gleba.
Mas, alem da tendencia que manifestava a servi-
o da gleba para se transformar no colonato livre,
outros progressos se tinham introduzido nesta insti-
tuição com a evolução economica e social.
A dependencia pessoal do servo da gleba ainda
o tinha desapparecido completamente, porquanto
elle estava obrigado a prestar alguns serviços
domesticos e industriaes ao seu senhor. Mas esta
dependencia pessoal tendia a dissipar-se, para fazer
1
Munoz y Romero, Del estado de las personas en los reinos
de Asturias y Léon, pag. 98 e seg,; Herculano, Historia de Por-
tugal, tom. III, pag. 307 e seg.; Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal, nos seculos XII a XV, tom. II,
pag. 84 e seg.; Hinojosa, Estudios sobre la historia del derecho
espanol, pag. 40 e seg.
— 118 —
avultar unicamente a dependencia real em que elle
se encontrava da terra.
Ora esta nova condição do servo da gleba invol-
via um principio de emancipão, emquanto, segundo
nota Henri Sée, levava a considerar servil não tanto
a pessoa como a terra. A servidão passava para o
solo, affirmando-se assim implicitamente o principio
da independencia pessoal.
Por outro lado, o servo da gleba, em virtude do
usufructo vitalício e hereditario que tinha duma
parcella de terra, foi-se pouco a pouco considerando
seu proprietario. Uma capitular de 862 falia de
servos que tinham vendido a sua gleba, ou pelo
menos a posse delia, não conservando mais do que
a casa em que habitavam. Do mesmo modo, no
concilio de Leão, de 1020, providencia-se a res-
peito da hereditatem servi. Em varios documentos
e nomeadamente no do litigio duma propriedade
em 1011, tambem se falia de servos com herdade.
Tudo isto a intender que a gleba se ia conside-
rando como patrimonio do servo.
Sob o ponto de vista da família, os progressos
introduzidos na servidão da gleba não eram meno-
res. Reconhecia-se ao servo uma família legitima,
mencionando frequentemente os documentos a sua
mulher e os seus filhos. Esta familia era o consi-
derada como a do senhor.
Estes factos, porem, o constituem caracteris-
ticas da instituição, como pretende Henri Sée. o
unicamente progressos da instituição, em virtude
das condições sociaes e economicas da epocha 1,
1
Henri Sée, Les classes rurales et le regime domanial au moyen
áge, pag. 71 e seg.
— 119 —
54. Complemento da evolão no direito portu-
guês. A servidão da gleba continuou DO principio
da monarchia a transformação, no sentido de colo-
nato livre.
Os foraes concedem frequentemente asylo aos ser-
vos, exigindo alguns a condição de um anno de resi-
dencia, o qne mostra que ainda se não encontravam
de todo postergados os direitos do senhor. É certo
que alguns foraes são a copia de outros, feita tão
inconscientemente qne não se chegam a eliminar as
disposões inapplicaveis ás povoões a que elles se
destinam, e por isso nem sempre se pode attribuir
todo o valor aos testemunhos que elles consignam.
Mas, reduzida mesmo nas suas consequencias a
importancia desses exemplos, não deixa por isso de
ser incontrastavel, como nota Gama Barros, em
presença do foral de Penamacor e dos seus simila-
res na formula relativa á immunidade dos servos,
que nos princípios do seculo xII a adscripção não
tinha desapparecido de todo em Portugal. Effecti-
vamente, no foral de Penamacor de 1209 declara-se
que o servo ficaria livre, com a residencia dum
anno —junior vel servus qui nobiscum habitaverit
uno anno, sit liber ipse et semen ejus. Ora, o foral
de Penamacor afastou-se do typo que lhe serviu de
modelo, o foral de Avila, que não comprehendia no
asylo o junior, e por isso tem uma especial impor-
tancia sobre este assumpto. Ha onze foraes da pri-
meira metade do seculo xIII, em que se dá asylo ao
servo e se declara que fica livre.
A transformão do servo da gleba no colono vo-
luntario realizou-se lenta e gradualmente, e por isso
o ha meio de determinar com exactidão e rigor a
— 120 —
epocha em que a adscripção desappareceu de todo do
territorio português. Parece, porem, que se deve
fixar esta epocha na primeira metade do seculo xII.
Numa das leis geraes de Affonso II, que parecem
ter sido promulgadas em 1311, em resultado das
rtes de Coimbra desse anno, estabelece-se que qual-
quer homem que for livre pode tomar por senhor
quem quizer, mas, residindo em terra que n3o seja
a sua, o senhor não pode ser outro senão o da terra.
E estabelece-se isto em favor da liberdade, para que
o homem livre possa fazer de si o que lhe aprou-
ver, devendo o homem nobre ou qualquer outro que
proceder contra tal preceito ser multado em qui-
nhentos soldos, perdendo tudo o que tiver e sendo
lançado fora da terra, quando, até à terceira pena,
se não corrigir (Ord. Aff., liv. Iv, tit. 25, § 1).
Herculano, referindo-se a esta lei, que elle
conhecia do Livro das Leis e Posturas, nota com
toda a razão, que a adscripção forçada que foi uma
instituão, se acha convertida numa cousa excepcio-
nal, contraria aos costumes, abusiva, que o
ravalleiro, o nobre, isto é, a força bruta e orgu-
lhosa, pratica, mas que cumpre punir e punir seve-
ramente. Não é a lei que fax uma revolução; ella
es feita, e, o legislador regula-a, impede-a de
ultrapassar os termos do justo, de degenerar em
anarchia e em quebra dos direitos legitimos; porque
naquella epocha as condições da divio do dominio
util e directo eram taes, que o colono, vivendo num
senhorio e cultivando noutro, se podia facilmente
esquivar ao cumprimento duma parte dos seus deve-
res para com o senhor do solo que agricultava.
A transformação da servidão da gleba ainda nos
é revelada pelos foraes do meado do seculo xIII,
como o de Pena da Rainha (1268), de Alijó (1269),
121 —
de Favaios (1270), em que o soberano excluiu da
incorporão na populão, não os servos da corôa,
como fazia aos foraes do seculo xn, e nomeadamente
no de Cintra de 1154, mas homines meos forarios e
homines de meis regalengis.
Em perfeita concordancia com estes testemu-
nhos tão valiosos, encontramos os documentos do
seculo XIII, que cessam de faltar do constrangimento
pessoal e dos pactos de servidão perpetua e heredita-
ria pela quebra dos contractos civis, que se encon-
tram nos seculos anteriores. Este silencio é profun-
damente significativo e o pode ter outra explicão
senão a grande transformão por que tinha passado
a servidão da gleba, no sentido da liberdade.
Finalmente, confirmam ainda esta transformação:
uma lei de 1211, qne manda perseguir os vadios,
prohibindo-se que habite no reino quem não tenha
bens de raiz, o exerça mister de que viva sem
inspirar suspeita, ou, emfim, não tenha senhor ou
o fiadores idoneos que respondam pelos deli-
dos que praticar, mostrando que entre os homens
entregues á ociosidade, que é preciso compellir a
trabalhar, o legislador não vê nenhum sem direito
á sua liberdade, presuppondo assim que todos o
livres; e uma lei de 1253, que taxa, entre muitas e
diversas cousas, os salarios dos differentes trabalha-
dores, provando que os servos domesticos e ruraes
eram prestados por gente livre. E assim nos encon-
tramos em face duma populão livre importante,
pertencendo ás ultimas camadas sociaes, que leis
posteriores procuram compellir ao trabalho 1.
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 311 e seg.;
Gama Barros, Historia da administração publica em Portugal,
nos seculos XII a XV, tom. I, pag. 482 e seg., tom. II pag. 86
e seg.
— 122 —
55. Ultimos vestígios da servidão da gleba.
Mas, apesar de realizada a transformação da servi-
dão da gleba no colonato voluntario, persistiram
ainda vestígios da adscripção.
E' por isso que nas Ordenações Manuelinas se
falia dos que eram constrangidos a morar em algu-
mas terras ou casaes, como descendentes ou trans-
versaes daquelles que os tinham tomado, por serem
havidos como adscriptos a esses casaes, e se deter-
mina, por ser esta pratica uma especie de captiveiro
contra a razão natural, que ninguem seja constran-
gido a povoar ou morar pessoalmente em algum
casal ou terra como a ella adscripticio, não se
intendendo, porem, esta prohibição dos que a isso
se obrigarem por contracto seu ou daquelles cujos
herdeiros forem, pois esses podem ser constrangi-
dos a cumprir o contracto (Ord. Man., liv. II tit.
XLVI). Estas disposições passaram para o codigo
Filippino (Ord. Filipp., liv. Iv, tit. xLII).
Quando o individuo se obrigava a habitar, culti-
var ou povoar certo casal ou terra, temporaria-
mente ou perpetuamente, não se dava adscripção,
como mostra Mello Freire, pois neste caso a obriga-
ção resulta dum contracto, e o da força da propria
condição, e os herdeiros adindo a herança, que
podiam não acceitar, tambem por este facto se
obrigam voluntariamente 1.
1
Mello Freire, Ins
titutiones juris civilis lusitani,
tom. II, pag. 6 e
seg.; Lis Teixeira,
Cur$o de direito civil português, para
o armo
lectivo de 1842-1843,
part. I, pag. 106 e seg.
CAPITULO II
PESSOAS COM CAPACIDADE JURIDICA LIMITADA
SEÃO I
Pessoas com capacidade jurídica limitada em
virtude de causas economicas
§1.º Colonos
adscripticios
SUMMARIO : 56. Classificão das pessoas com capacidade
jurídica limitada. 57. Colonato adscripticio. Conceito da
instituição. 58. Origem do colonato adscripticio. Theo-
rias que lhe dão uma origem romana. 59. Theorias que
lhe dão uma origem germanica. — 60. Theorias que lhe dão
uma origem christã. 61. A moderna doutrina de Fustel
de Coulanges. — 62. Condição jurídica dos colonos adscri-
pticios. 68. Obrigações dos colonos adscripticios para
com os proprietarios. — 64. Pontes do colonato adscripticio.
65. Cessação desta condição das pessoas. 66. Os Litse
dos povos germanicos. 67. Existencia do colonato ads-
cripticio entre os wisigodos. 68. Destino da instituição
neste período do direito peninsular. Doutrinas de Herculano,
Gama Barros e Perez Pujol. 69. Funão desempenhada
pelo colonato adscripticio na evolução das classes servas.
Theoria de Doniol.
56. Classificação das pessoas com capacidade jurídica
limitada. Na classe das pessoas com capacidade
jurídica limitada, entram um grande numero de
indiduos. Esta limitação deriva das diversas
cansas que determinam a vida social, visto a
capacidade judica não ser um attributo do indi-
viduo considerado abstractamente, mas do individuo
influenciado peia aão dos varios elementos da
sociedade.
— 124 —
na epocha moderna é que a egualdade civil
foi reconhecida como pertencendo a todas as pes-
soas. Nos tempos passados não se admittia senão a
desegualdade systematizada das condições pessoaes.
As causas que limitavam a capacidade juridica
eram economicas, familiares, religiosas, moraes,
jurídicas e' politicas. Tinham a sua capacidade jurí-
dica limitada: em virtude de cansas economicas, os
colonos adscripticios e os colonos voluntarios; em
virtude de causas familiares, as mulheres e os
filhos; em virtude de causas religiosas, os judeus,
os mouros e os hereticos; em virtude de causas
moraes, os libertinos; em virtude de causas jurídi-
cas, os clientes; e em virtude de causas politicas os
estrangeiros.
O estudo, pois, das pessoas com capacidade
jurídica limitada abrange todas estas classes. Evo-
lucionam, como veremos, no sentido da conquista
completa do mesmo direito para todos os homens.
57. Colonato adscripticio. Conceito da institui-
ção. No fim do Imperio, apparece-nos uma insti-
tuão, representando um estado intermedio entre a
liberdade e a escravidão, que, tendo persistido no
Occidente varios seculos depois da queda do dominio
romano, merece um estudo especial o colonato.
A expressão colonus se encontra na epocha
classica do direito romano, mas então designa umas
vezes o proprietario cultivando directamente o solo
em Roma on nas colonias, outras vezes aquelle que
toma de arrendamento a terra de outrem. No Baixo-
Imperio, principalmente, a partir de Constantino, a
expressão colonus exprime uma condição nova: a
do homem livre, vinculado perpetua e
— 125 —
hereditariamente á coitara do solo doutrem, mediante
o pagamento doma renda annual, fixada pelo aso e
em caso de contestação pelo magistrado.
O que caracterizava verdadeiramente a situação
dos colonos, diz Fuslel de Coulanges, é que o solo
que elles cultivavam não lhes pertencia. Não tinham,
pois, nenhum dos direitos que são inherentes á pro-
priedade. Não podiam vender o seu campo, nem
legá-lo. Pagavam ama renda annual, on em fructos
ou em dinheiro. A renda chamava-se ordinaria-
mente tributum, denominando-se tributarii os que a
pagavam.
Deste modo, os colonos tinham uma certa simi-
Ihança com os rendeiros das nossas sociedades,
diferindo, porem, delles em o poderem ser expul-
sos da terra que cultivavam e em não terem o direito
de a abandonar, visto estarem ligados, por toda a
vida, ao campo onde nasciam. Nem a sua vontade
nem a do proprietario os podia separar delle. O
proprietario vendia o campo, vendia ao mesmo
tempo os colonos; vendia os colonos, vendia ao
mesmo tempo a terra. Os filhos tomavam o logar
do pae morto, herdando com a posse da terra a
obrigação de a cultivar.
Daqui resultava que o colono era gleba adscriptus,
num duplo sentido, como observa Nani; não podia
abandonar a gleba ; o proprietario não o podia
separar delia. A alienação do immovel involve a dos
colonos que o cultivam.
Além da denominação de colonato adscripticio, a
instituição ainda é conhecida pela designação de
colonato romano, por se ter desinvolvido no seio do
Imperio romano 1.
1
Fustel de Coulanges, Histoire des institutions politiques de
L'ancienne France: L'invasion germanique et la fin de l'empire,
— 126 —
58. Origem do colonato adscripticio. Theorias
que lhe o uma origem romana. A origem do
colonato adscripticio constituo um dos problemas
historicos mais obscuros e difficeis. Pode-se affirmar
que, a respeito desta questão, cada auctor tem
proposto uma solão particular. Todas estas solu-
ções, porem, se podem agrupar em três categorias,
conforme se attribue ao colonato adscripticio uma
origem romana, uma origem germanica ou uma
origem christi.
Cujacio sustentou que o colonato existiu sempre
em Roma. O erro deste escriptor é manifesto,
porquanto toma por colonos indivíduos que eram
verdadeiros rendeiros, a que se applicou tambem o
termo colonus. O silencio dos jurisconsultos a res-
peito desta instituição é bem significativo.
Laferrre faz derivar o colonato das transforma-
ções por que passou o ager publicus. Os clientes
dos patrícios foram primeiramente cultivadores ou
colonos a titulo precario, quando o ager publicus
só dum modo precario podia ser possuído. Torna-
ram-se, depois, colonos perpetuos, quando por foa
da evolução no fim da Republica e nos primeiros
seculos do Imperio, o ager publicus começou a ser
possuído dum modo particular.
Para rejeitar esta opinião, basta observar que,
apesar da posse do ager publicus se ter tornado
definitiva, os romanos continuaram, durante muito
tempo, a o conhecer seo o systema do arrenda-
mento.
pag. 138 e seg.; Paul Viollet, Ristoire du droit civil français,
pag. 35 e seg.; Serafini, lnstituzioni de diritto romano, tom. I,
pag. 137 e seg.; Nani, Storia del diritto italiano, pag. 86.
— 127 —
Dareste filia o colonato historicamente no preca-
rium. Não ha relação alguma, porem, entre o
colonato e o precarium, pois o precarista recebia a
cousa a titulo de liberalidade, sem se poder tornar
proprietario delia, tendo o seu uso e goso gratuito,
sem ser obrigado a nenhuma retribuição e podendo
o concedente cha-la a si, quando muito bem
intendesse. Ora isto é precisamente o contrario do
que acontece no colonato.
Giraud e Serrigny sustentam que o colonato se
formou no Imperio romano, á custa não só da popu-
lão livre degenerada, mas tambem da população
servil melhorada. Ambas estas populações se con-
fundiram numa classe de condão media, que o
teve primeiramente outra regra, além do costume e
do contracto, e que mais tarde foi submettida a
regulamentos, exigidos pela boa ordem do Estado,
pelo interesse da agricultura e pela garantia respe-
ctiva dos proprietarios e dos colonos.
Mas, como é que se deu a degeneração da popu-
lão livre e o melhoramento da populão servil ?
Quaes foram as condões que determinaram estes
factos historicos ? E como é que dahi sahiu a
constituição do colonato ? Eis o que esta theoria
não esclarece convenientemente.
Naudet e Wallon intendem que o colonato teve
por origem o facto dos proprietarios já, na epocha
da jurisprudencia classica, começarem a reter, por
meio duma violencia illegal, contra a sua vontade,
os rendeiros nas terras. Um seculo mais tarde, no
interesse da agricultora, o Estado interveio, sanc-
cionando uma tal illegalidade e regulamentando esta
classe de pessoas.
Nenhum texto, porem, nos falia destas violencias
dos proprietarios, e não se comprehende como a
— 128 —
lei e os tribunaes podessem repellir, durante tanto
tempo, as pretensões de homens que, em nome da
liberdade, se haviam de oppôr a ficar vinculados á
terra contra a sua vontade.
Outros escriptores opiniam que o colonato foi
estabelecido pelos imperadores, obedecendo á orien-
tação politica de vincular os lavradores á terra para
que a ordem publica fosse melhor assegurada.
A administrão romana, nota Revillont, estava
profundamente interessada no estabelecimento duma
classe de homens que o podessem abandonar os
campos, para evitar as perturbações que trazia á
vida do Estado a concentração dos cultivadores nas
cidades, levados pela esperança de ahi poderem
viver á custa dos ricos e do thesouro publico.
Esta theoria, porem, é inadmissível, pois o ha
nenhum escriptor antigo que attribua a origem do
colonato aos imperadores. As instituições sociaes
não podem ser evidentemente o producto do fiat
creador dos imperantes, visto se formarem sempre
á custa duma longa e progressiva evolão historica.
A supposição em que se baseia esta theoria tambem
é absolutamente arbitraria, o se podendo citar um
unico texto antigo que mostre ter tido o governo
imperial este pensamento ou pelo menos ter-lhe sido
attribuido pelo seus contemporaneos. O governo
imperial nunca foi um governo innovador,o se
harmonizando com este seu caracter a revolução tão
profunda que teria realizado o colonato.
Segundo outros escriptores, como Heisterbergk, o
colonato foi estabelecido com o fim de obter o paga-
mento do imposto predial nas províncias, e dahi
passou depois para a Italia.
E certo que as expressões censibus ascripti, censiti,
ascripticii, tributarii, que designam os homens inseri-
— 129 —
ptos pela auctoridade publica nos registos do imposto
predial, libri censuales ou polyptyca, apparecem fre-
quentemente applicadas aos colonos. E, effectiva-
mente, os colonos comaram a ser inscriptos DOS
polyptyca, porque nesta epocha, em que dominava o
regimen da grande propriedade, intendeu-se que
não havia uma base mais segura de avaliação pre-
dial, do que o numero de pessoas empregadas na
cultura, pois a presença dum cultivador valido
suppunha uma certa somma de trabalho e por
conseguinte uma certa quantidade de productos.
Apreciava-se assim o valor de cada predio e fixa-
va-se a contribuição que lhe pertencia pelo numero
de cabeças que comprebendesse.
Mas, a inscripção no censo não creou um
colono, pela simples razão de que o homem era
colono antes de ser como tal inscripto no censo.
O colonato existia na pratica, posto o governo
não se tivesse occupado delle e o fizesse mais
tarde levado por considerações fiscaes. A inscri-
pção no censo consagrou officialmente a condição
do colono, mas não fez colonos.
Por conseguinte, é falso que o interesse fiscal
desse origem ao colonato. Os proprios documentos
que faliam do colonato corroboram esta conclusão,
pois o legislador do quarto seculo diz que a regra
do colonato foi estabelecida pelos antepassados
(cod. Just., xI, 51) 1.
1
Pastel de Coulanges, Recherches sur quelques problèmes
d'histoire, pag. 4 e seg.; Wallon, Histoire de l'esclavage, tom. III,
pag. 281; Giraud, Histoire du droit (rançais, pag. 149 e seg.;
Letourneau, L'évolution de Vesclavage, pag. 122 e seg.; Laíerrière,
Histoire du droit français, pag. 440 e seg.; Serrigny, Droit
administratif romain, tom. II, pag. 389 e seg; Joseph Lefort,
Histoire des contrate de location perpetuelle, pag. 49 e seg.
9
130
59. Theorias que lhe o uma origem germanica.
As theorias que attribuem ao colonato orna ori-
gem germanica o explicam esta origem do mesmo
modo.
Segundo uns escriptores, o colonato foi estabele-
cido no Imperio por imitação do que existia entre
os germanos. Os escriptores, porem, que susten-
tam esta opinião deviam primeiro que tudo demons-
trar que o colonato existia na Germania. Citam, é
verdade, a celebre passagem de Tacito em que se
falia dam aldeão germano, que tem um domicilio
fixo e que cultiva um lote de terra, mediante uma
retribuição em cereaes ou em gado que elle paga
ao proprietario.
Desta passagem, porem,o se pode deduzir a
existencia do colonato entre os germanos, pois o
aldeão de que falia Tacito é um escravo, como se vê
do facto do emprego duas vezes da palavra servus,
no texto citado. Tracta-se, pois, duma instituição
inteiramente differente do colonato romano.
0 facto do colono estar sujeito à prestação duma
quota parte de fructos o é a unica característica
do colonato romano. O que particulariza princi-
palmente esta instituição é a ligão do homem á
terra, que se não encontra indicada no texto de
Tacito.
E, para que se podesse admittir uma tal opinião
seria necessario demonstrar como foi que os roma-
nos estabeleceram a instituão do colonato, imitando
os germanos. Desde o momento em que se não
esclareça este ponto, não ha evidentemente o direito
de considerar o colonato romano uma importação
da Germania.
— 43I —
Segundo outros escriptores, como Guizot, o colo-
nato é de origem barbara e não romana. Por occa-
sião da conquista da Gallia, a massa da população
vivia em grandes feudos, cultivando-os, mediante o
pagamento duma certa renda.
Os chefes destes feudos foram exterminados, collo-
cando-se os romanos em seu logar; mas a popula-
ção agrícola ficou quasi no mesmo estado.
Parece que o colonato, se tivesse esta origem,
deveria constituir uma instituição do Occidente,
quando a verdade é que ella se desinvolveu do
mesmo modo no Oriente.
Segundo outros escriptores, como Laboulaye, o
colonato teve por origem a transportão de barba-
ros para as terras desertas do Imperio.
Sem negar a influencia desta transportação sobre
o colonato, julgamos entretanto que se o pode
considerar este facto a fonte unica desta insti-
tuição '.
60. Theorias que lhe o uma origem christã.
Alguns escriptores, como Troplong, profundamente
impressionados com o facto do colonato apparecer
no tempo dos imperadores christãos, consideraram
o colonato como uma innovação benefica devida á
influencia da Igreja, tendente a melhorar a condição
do antigo escravo. O senhor teria transformado o
seu escravo em colono por uma especie de manu-
missão limitada e incompleta.
1
Guizot, Histoire de la civilasation en France tom. Iv, pag. 247 e
seg.; Laboulaye, Histoire de la propriété foncière en Occident,
pag. 115-119; Glasson, Histoire du droit et des institutions de la
France, tom. I, pag. 483.
— 132 —
Tal doutrina tambem nos parece insuficiente para
explicar a origem do colonato, visto o colonato o
poder derivar da escravidão, desde o momento em
que um dos caracteres constantes do colono o ser
um homem de condição livre.
Não se pode tambem admittir analogia entre o
colono e o libertino. O libertino podia estabelecesse
onde muito bem quizesse, ao passo que o colono
não podia abandonar o seu campo.
A condição do colono era hereditaria, contraria-
mente ao que acontecia com a do libertino, que
nunca o foi legalmente.
0 patrono linha direitos definidos sobre a succes-
são do liberto; ora esses direitos não lêem similhança
com as regras que regulavam a successão do colono,
Os textos nunca confundem o colono com o escravo
ou com o libertino.
Por isso, se as leis que se applicam ao libertino
são precisamente o opposto das leis que dizem res-
peito ao colono, facil é de vêr que a origem do
colonato não pode ter relação alguma com a manu-
missão. O colonato, diz muito bem Fustel de Cou-
langes, não é uma transição entre a servidão e a
liberdade, pois não tem por origem a servidão, nem
tende para a liberdade 1.
61. A moderna doutrina de Fustel de Coulanges.
Fustel de Coulanges, desprendendo-se destas
theorias, eivadas todas de ideias geraes e de hypo-
theses preconcebidas, voltou a sua attenção para o
estudo dos documentos e com o seu auxilio procurou
1
Fustel de Coulanges, Recherches sur quelques problemas
d'histoire, pag. 7 e seg.; Troplong, Traití du louage (prefacio).
— 133 —
construir uma nova theoria do colonato, orientado
pelo criterio de que, por mais insuficientes que
possam ser os documentos, s devemos admit-
tir como verdadeiro aquillo que ahi encontramos.
E, do seu estudo profundo, consciencioso e reflectido,
resultou a renovão completa da theoria do colonato
romano.
O colonato formou-se insensivelmente, sem nenhu-
ma lei, unicamente por influencia de certas condões
economicas. Dahi tres origens do colonato:
a) Os rendeiros livres, em virtude dum contracto
temporario, e que se converteram, pelo atrazo nos
pagamentos e pelas suas dividas, em cultivadores
vinculados ao solo e sujeitos ao proprietario. No
regimen da grande propriedade, que então dominava,
.0 proprietario recorria ao systema de conceder as
terras por arrendamento, afim de obter a sua coitara.
Os rendeiros, porem, atrazavam-se frequentemente
no pagamento da renda e endividavam se, e então
os proprietarios, em logar de os expulsarem das
terras, conservavam-nos, não os deisando sair sem
que pagassem a soa divida ou dessem uma caução.
E, assim, rendeiros, livres de direito, encontra'
ram-se na impossibilidade de abandonar a proprie-
dade, vendo-se ligados á terra, o pela lei, mas
pela sua divida.
A situação destes devedores insolventes que se
viam obrigados a permanecer nas terras do pro-
prietario, modificou-se profundamente, quando este
substituiu o pagamento duma retribuição em dinheiro
pelo pagamento duma quota parte de fructos, como
meio de assegurar a mais facil exoneração de taes
cultivadores. Daqui resultou uma verdadeira degra-
dão para as classes agcolas, visto o proprietario
poder impôr as condões que muito bem quizesse,
— 134 —
desde o momento em que se tractava duma conven
ção que a lei não reconhecia,o ficando ao cultivador
outra garantia alem da liberdade nativa.
b) Os indiduos que, tendo entrado para as
propriedades, como cultivadores livres, sem con
tracto, se vincularam ás terras por interesse ou por
habito.
Esta fonte do colonato encontra-se hoje esclarecida
pela descoberta na Tunisia da inscripção de Souk-el-
Khmis, em que se expõe a condição dos cultivadores
do Saltus Burunitanus, designando a expressão saltus
um terreno montanhoso e agreste, inculto ou de
difficil cultivo. Ora, desta inscripção deriva que os
cultivadores do Saltus Burunitanus o o escravos
nem libertinos, não possuem a terra em virtude dum
contracto, não têem a pagar uma retribuição em
dinheiro, mas em fructos, não se encontram
sujeitos a uma condão temporaria e variavel, s
perpetua e permanente.
Tractava-se, assim, de terrenos incultos ou de
difficil cultura, que o proprietario entregava a indi-
duos pobres, mediante uma simples convenção, em
virtude da qual teria uma certa parte nas colheitas,
caso ellas viessem a produzir-se. Taes indivíduos,
quanto mais tempo viviam nestes terrenos, tanto
mais desejo deveriam ter de ahi continuar a viver,
ao mesmo tempo que aos proprietarios interessava
profundamente que elles os não abandonassem. E
assim se foram pouco a pouco prendendo de facto ao
solo, tornando-se colonos voluntarios, antes de o
serem obrigatoriamente.
c) Os innumeraveis barbaros, sarmatas ou ger
manos, que vieram ou foram trazidos para o terri
torio romano e distribuídos, aos proprietarios para
viverem nas suas terras como cultivadores perpetuos.
— 135 —
Effectivamente, das relões que havia entre Roma
e a Germania, derivou ama corrente continua de
homens e de famílias, que vieram fixar-se isolada e
pacificamente no Imperio, e que, não podendo com-
prar terras, se estabeleceram ahi como cultivadores.
Ao lado destes que vieram voluntariamente, outros
foram trazidos pela força, como prisioneiros de
guerra, e empregados na cultura perpetua das
terras. Oeste modo, procurava-se combater a ten-
dencia vagabunda de taes povos e protege-los contra
a miseria, e ao mesmo tempo favorecer os interesses
da grande propriedade.
E, assim, quando estes factos particulares e indi-
viduaes se renovaram e multiplicaram durante varias
gerações, encontrando-se collocados nesta condição
milhões de famílias, o colonato penetrou na admi-
nistração e nas leis, tornando-se uma instituição
regular e normal. Isto, porem, só aconteceu no
seculo Iv. Debalde se procura nas quarenta e Ires
constituições imperiaes relativas aos colonos, uma
que tenha instituído o colonato, determinando que
os cultivadores livres fiquem dahi por, diante vincu-
lados á terra. É que quasi todas estas constituões
foram promulgadas, não para fixar a condição duma
classe de homens, mas para estabelecer medidas
financeiras ou de administração.
Assim, a primeira constituição que se occupa do
colonato, devida a Constantino, publicada em 332,
procura resolver uma difficuldade de ordem finan-
ceira, indicando por quem deve ser pago o imposto
predial, no caso do colono ter abandonado a terra
dum proprietario para se ir estabelecer na terra
doutrem. Constantino resolve esta difficuldade, esta-
belecendo que aqaelle que tiver em seu poder o
colono doutrem não só o deve restituir á terra onde
— 136 —
elle nasceu, mas ainda deve pagar a taxa deste
mesmo colono, pelo tempo que o possuía.
E' como se dissesse, a aqui contentavam-se com
reintegrar o colono na terra, mas nós ajunctamos
ainda a obrigação de pagar a parle correspondente
do imposto. De modo que a regra, de que o colono
pertence á terra e de que no caso de fuga deve ser
nella reintegrado, não é uma regra estabelecida por
Constantino, é uma regra que elle reconheceu 1.
63. Condição jurídica dos colonos. E' difficil
determinar, rigorosa e precisamente, a condição
jurídica dos colonos, visto os imperadores, conside-
rando o colonato como uma instituão conhecida e
incontestada, mencionarem unicamente certas regras
para condemnar as infracções que se podiam com-
metter contra ellas. É, por isso, que não se encon-
tra nos Codigos, unicos documentos que temos
sobre este assumpto, uma constituição completa do
colonato.
Os imperadores occuparam-se principalmente do
delicio de fuga do colono, o por o serem pos-
veis outros delictos, mas porque de todos elles, este
era o que mais intimamente interessava o governo
imperial, visto o proprietario ser tributado segundo
o numero de seus colonos.
Daqui derivou a a illusão de muitos escriptores,
que julgaram fazer uma ideia completa da condição
jurídica do colono, apresentando-o como perpetua-
mente vinculado á gleba que cultivava. Este modo
1
Fustel de Coulanges, Recherches sur quelques problèmes
d'histoire, pag. 9, 25, 43 e 87; Fustel de Coulanges, Histoire des
institutions politiques de l'ancienne France: L'invasion
germanique, pag. 139 e seg.
— 137 —
de ver é profundamente inexacto, pois o colonato
abrangia ainda outras regras, que o historiador
pode verificar ou pelo menos entrever. O colonato
é um organismo mais complexo do que estes escri-
ptores supem. Vejamos, pois, se orientados pelos
trabalhos de Fustel de Coulanges, nos é posvel
estabelecer os princípios que regulavam a condição
jurídica do colono.
a) O colono era um homem livre, pelo menos, no
sentido de que nunca era confundido com o escravo.
Uma lei de 371 enumera como tres classes bem
distinctas, os colonos, os escravos e os libertinos
(Cod. Justin., xI, 53, 1). Uma lei de 333, pro-
curando impedir a fuga do colono, permitte ao
senhor pren-lo, permissão que o haveria neces-
sidade de dar, se se tractasse dum escravo. Ella
dispõe mesmo que o colono poderia ser preso á
maneira do escravo, o que indica claramente que
elle não o era. Accrescenta ainda esta consideração
bem significativa: para que os mesmos servos
que os colonos devem prestar, como homens livres,
sejam desempenhados por os que querem fugir, em
virtude duma condemnação digna dum escravo (Cod.
Theod., v, 9, 1).
Outra lei de 409, referindo-se a homens que se
encontravam na condição de colonos, dispõe formal-
mente que o poderiam ser obrigados á escravio,
e que os trabalhos que delles se exigissem seriam
os trabalhos dos homens livres (Cod. Theod., v. 4,3).
Valentiniano III, faltando do colono, se diz que
elle não póde abandonar a terra, declara tambem
que elle conserva a ingenuitas, isto é, a plena liber-
dade nativa. O mesmo imperador distingue expres-
samente o colono do escravo e o colonato da
escravidão (Novellas de Valentiniano, xxx, §§ 5
— 138 —
e 6). Aioda no fim do quinto seculo e começo do
sexto, Anastacio e Justiniano declaram em termos
formaes que os colonos são homens livres e ficam
livres na sua terra (Cod. Just., xI, 48, 23).
Mostra ainda que o colono o é um escravo, o
facto de elle não poder ser vendido como os escravos.
Os Codigos exprimem este principio sob a rma de
que o colono nunca de ser vendido sem a terra,
significando assim que o era a pessoa do colono
que era vendida. Confirmam a condição livre do
colono, o silencio do direito romano a respeito da
sua manumissão, oppondo a Justiniano ao escravo
que de ser emancipado por manumissio, o colono
que o proprietario não de libertar do seu poder
seo transferindo a terra que elle occupa, e a pro-
hibição do casamento entre colonos e escravos, a
que a lei recusa os effeitos do casamento legitimo,
prohibição que mostra claramente a distancia que
separa legalmente o colonato da escravidão.
Alguns escriptores, porem, como Humbert, embora
reconheçam que os colonos o homens livres, ainda
assim sustentam que elles podiam ser reduzidos, a
titulo de pena, a uma verdadeira escravidão, fun-
dando-se na passagem do Codigo Theodosiano qui
fugam meditatur, in servitem condicionem ferro ligari
conveniet (Cod. Theod., v, 9, 1). Mas, esta passa-
gem permitte unicamente ao proprietario, se verificar
que o colono quer fugir, pôr ferros aos seus pés,
como o faria a um escravo. Daqui, porém, não se
pôde concluir que elle possa reduzir à escravio o
colono.
b) O colono tinha os direitos civis do homem livre.
Na ordem economica, podia adquirir e possuir, não
pertencendo os bens, de pleno direito, ao proprieta-
rio, embora não os pudesse alienar e transmittir
— 139 —
sem o consentimento deste (Cod. Theod., xII, 1, 33;
v, II, I).
Na ordem familiar, podia casar-se sem a permissão
do proprietario, e, desde o momento em que despo-
sasse uma mulher livre, o casamento era tão legitimo
como o do cidadão romano. Exercia o poder patrio
sobre os filhos, que lhe pertenciam e lhe succediam
nos bens (Cod. Theod., v, 10).
Na ordem judiciaria, não apparece lei alguma que
lhe prohibisse estar em juizo. Podia intentar um
processo mesmo contra o proprietario. Constantino
declara-o expressamente (Cod. Justin,, xI, 50,1).
c) Mas, se o colono era legalmente livre, é certo
que, na sua humilde vida de cada dia, se approximava
do escravo. Se o escravo o podia abandonar o sen
senhor, o colono o podia abandonar a terra. A sua
ligão com a terra era o estreita, como a do escravo
com o senhor. É necessario um grande esforço de
reflexão para reconhecer nelle nm homem livre.
Não admira pois, que as leis, por uma evolução
natural, cheguem a distinguir o colono do homem
livre, continuando a separá-lo do escravo. É, por
isso que os textos oppõem os colonos o frequen-
temente aos liberi, como aos servi (Cod. Just., xI,
48, 16-24; Cod. Theod., x, 12, 2). A partir do
seculo Iv, não se admitte que uma mulher colono
despose um homem livre, considerando-se nm tal
casamento illegitimo (Cod. Just., xI, 68, 4). Nesta
ordem de idéas o legislador acabou por dizer que
não havia quasi differença nenhuma entre um escravo
e um colono (Cod. Just., Ix, 48, 21). Oeste modo,
o colonato apparece-nos numa condição intermedia-
ria entre a liberdade e a escravidão.
Ha uma liberdade, pelo menos, que faltava com-
pletamente ao colono, é a liberdade de abandonar a
— 140 —
propriedade a que estava vinculado. Se elle a
abandonava, o proprietario tinha o direito de o per-
seguir, de o prender e de o reintegrar na terra,
devendo as auctoridades publicas prestar-lhe, para
isso, todo o seu auxilio (Cod. Just., xI, 48,, 45; xI,
53, 4; xI, 48, 7). E' que o colono encontrava-se de
tal modo unido à terra, que, por uma associação de
idêas muito natural, o homem que era proprietario
da terra era ao mesmo tempo e por este facto
proprietario do colono. E assim o colono, embora
livre, tornava-se, pela sua ligação com o solo, um
objecto de propriedade. Era possuido (Cod. Just.,
xI, 48, 44); podia ser o objecto dum processo (Cod.
Theod., v, 40, 4 e Cod. Just., xI, 48, 44); o seu
proprietario distinguia-se do possuidor de boa
(Cod. Just., xI, 48, 44); a sua propriedade perdia-se,
como todas as outras, pelo effeito da prescripção
(Cod. Theod., v, 40, 4).
Quando os Codigos faliam dum colono, querem,
sem duvida, indicar com esta expressão o só o
homem, mas tambem a mulher, comprehendendo-se
assim por ella toda a familia do cultivador, que
entra no colonato. Todas as leis que se referem ao
colono applicam-se tambem á mulher e aos filhos.
A unica differença é de que para ella o prazo da
prescripção é reduzido a vinte annos.
Parece a que o colono não se podia casar senão
com uma mulher da mesma propriedade, pois, por
um lado, não podia desposar uma escrava nem uma
mulher livre, e, por outro, se desposasse uma mulher
colono doutra propriedade, esta não podia abando-
nar a sua terra para viver com elle.
d) A condição de colono era hereditaria, devendo
o filho continuar a cultivar o solo, unicamente, pela
razão do pae o ter cultivado. Esta regra foi levada
— 141 —
até ás suas ultimas consequencias, estabelecendo-se
que, se um colono fugitivo morria, antes de terem
expirado os trinta annos da prescripção, e tivesse
um filho durante este tempo, este filho, embora
nascido fóra da propriedade, podia ser para ella
conduzido pelo proprietario (Cod. Theod., v, 10, 1,
§ 2). Se o proprietario consentir que o filho dum
colono viva longe da propriedade, por o pae ser
sufficiente para o trabalho, isso não obsta a que elle
o venha tomar o logar do pae, logo que este morra
ou se torne incapaz (Cod. Just., xI, 64, 1).
e) O proprietario tambem não podia expulsar o
colono das suas terras. Esta regra que se encontra
menos frequentemente mencionada, do que as outras,
não é menos imperativa e menos antiga. Ê certo
que não ha um texto onde se encontre expressa-
mente estabelecida esta regra. Ella resulta, porém,
dos textos legislativos que prohibem ao proprietario
vender a terra sem os colonos e os colonos sem a
terra (Cod. Just., xI, 48, 2 e 7; xI, 63, 3).
Se é prohibido ao proprietario separar o colono
do campo, no momento em que elle aliena a proprie-
dade, é sem duvida alguma porque elle o o pode
fazer em tempo ordinario. Um dos textos deixa
entrever este pensamento, claramente, dizendo: ou
os proprietarios julgam que os colonos lhes são
vantajosos ou pensam que elles não lhes prestam
beneficio algum; no primeiro caso, devem, con-
servar as terras; no segundo, devem vendê-los com
ellas.
Justiniano, que tão severo se mostra para com
os colonos, chegando a compará-los aos escravos e
approximando-os delles o mais posvel, não deixou
de dizer, no meio das suas severidades, que o
proprietario não póde fazer sair do seu poder o
— 142 —
colono senão fazendo sair tambem a terra (Cod.
Just., xI, 48, 24).
Deste modo, a obrigação que ligava o colono á
terra era. o para o colono, mas também para
o proprietario. Se o colono não podia em tempo
algum abandonar a terra, o proprietario tambem
não o podia expulsar. Assim o colono não faltava á
terra, nem a terra ao colono 1.
63. Obrigões dos colonos para com os proprie-
tarios. Tambem è difficil determinar quaes eram
as obrigações dos colonos para com os proprietarios,
desde o momento em que os codigos romanos,
nas moitas passagens em que se referem ao colo-
nato, nada dizem daqnellas obrigões. Indiquemos,
porém, essas obrigões, em harmonia com a recon-
stituição delias feita por Fustel de Coulanges.
a) O colono o devia ao proprietario outro tra-
balho que não fosse o de cultura. Uma lei, auctori-
zando os proprietarios a empregar barbaros como
colonos, adverte-os de que elles o deviam tractar
estes homens como escravos, mas segundo as regras
do colonato, jure colonatus, e qoe por conseguinte
não. os poderiam obrigar a fazer outro serviço que
não fosse a cultura (God. Theod., v, 4, 3).
Mas, os colonos cultivam um lote particular de
terreno. É o qoe se deduz duma lei de 365, que
lembra ao colono qoe elle não póde de modo algum
alienar a terra que cultiva (God. Theod., v, 44, 4).
1
Fustel de Coulanges, Recherches sur quelques problémes
d'histoire, pag. 98 e seg.; Wallon, Histoire de 1'esclavage, liv. III,
cap. II ; Humbert, Dictionnaire ia anliquitès, art. colonat;
Letomeau, L'évolution de 1'esclavage, pag. 42 e seg.
— 143 —
Ora, se a lei faz esta advertencia ao colono, é porque
elle cultiva sempre o mesmo campo, podendo, por
isso, julgar-se o seu proprietario. Evidentemente
que, se os colonos cultivassem ora este terreno ora
aquelle, não haveria razão para os advertir de que
elles não podiam alienar a terra que cultivavam.
Outras leis faliam da retribuição ou renda que
paga o colono, o que mostra que o colono faz a
cultura dos terrenos para elle (Cod. Tbeod., x, 1, 11;
Cod. Just., x, 1, 48, 28). Isto é confirmado por
uma lei declarar que elle recebe os frnctos da terra,
e por os textos mostrarem o colono levando os seus
productos ao mercado (Cod. Just., xI, 51; Cod.
Tbeod., xIII, 1, 3, 8, 10).
Tudo isto demonstra que elles cultivavam a terra
como rendeiros.
b) A natureza e a quantidade da renda que o
colono tinha de pagar eram regalados pelo costume.
É que, dum modo geral, as relações entre os pro-
prietArios e os colonos eram reguladas por costumes
locaes e particulares.
Os decretos imperiaes o alteraram os costumes,
pois mandaram-nos sempre observar. Estes costu-
mes podiam ser reduzidos a escripto, como mostra
o regulamento dado por Adriano aos colonos do
saltus Burunitanus, e que se encontrava affixado
nesta propriedade, gravado sobre uma placa de
bronze.
Parece que a maior parte das vezes a renda tinha
de ser paga em productos do solo. É por isso que
o imperador recorda era 366 este uso a alguns
proprietarios, dizendo que elles deviam receber a
renda em generos? a o ser qne o costume da pro-
priedade determinasse outra cousa (Cod. Just., xI,
48, 5).
— 144 —
c) O colono era obrigado, além disso, a um certo
numero de dias de trabalho. É o que nos mostra o
regulamento do saltus Burunitanus, pois os colonos
desta propriedade eram obrigados a seis dias de
trabalho por anno (dous de lavoura, dous de sacha,
e dous de colheita), com os seus bois ou os seus
cavallos.
É que os proprietarios dividiam as suas terras em
duas partes: uma reservavam na para elles; outra
concediam-na aos colonos, subdividida em pequenos
lotes que cada um cultivava. A parte que o pro-
prietario reservava para si, era tambem cultivada
com o auxilio dos braços dos colonos. O proprietario
tinha assim, como rendimento, a retribuição que lhe
pagavam os colonos pelas terras que occupavam e a
colheita da reserva que elle fazia cultivar por estes.
d) As obrigões que os colonos tinham para com
o proprietario, em virtude do costume local, consue-
tudo praedii, não podiam ser alteradas, visto a maior
preoccupaçio do Estado romano ser precisamente a
de fazer observar estes costumes locaes. O governo
imperial resistiu systematicamente a todas pretenes
que os proprietarios tiveram de augmentar a renda,
mesmo fundadas na maior valorização dos terrenos.
No caso do proprietario exigir mais do que era
devido pelo costume, o colono podia recorrer para
o juiz, a fim de evitar a espoliação (Cod. Just., xI,
50, 1; xI, 50, 2, § 4; xI, 48, 23, §2).
Procurava-se assim assegurar a immutabilidade
nas relações entre o proprietario e o colono, sem
dnvida para que os colonos ficassem sujeitos ás
condições que tinham sido acceitas quando elles
eram livres.
e) O colono podia ter bens como proprios e pos
suir um terreno como proprietario. É o que a lei
— 145 —
mostra, quando diz que elle pode ser inscripto DOS
registos do imposto, aqui como colono, acolá como
proprietario (Cod. Theod., xI, 1, 14). O proprie-
tario succedia nestes bens, desde o momento em
que o colono não tivesse herdeiros legítimos ou
testamentarios.
É certo que uma lei de 434, faltando dos monges
ou padres que morrem sem testamento, dispõe que
os seus bens seo devolvidos ao seu mosteiro ou á
sua igreja, fazendo uma excepção para aquelles destes
homens que tivessem nascido colonos, pois neste
caso os bens eram devidos ao proprietario das terras
onde elles tinham nascido (Cod. Just., I, 3, 20).
Mas, analyzando attentamente o texto, vê-se que o
legislador falia unicamente de padres ou monges
que, não tendo paes, nem filhos, nem cognados,
morriam sem fazer testamento. Era necessaria a
reuno de todas estas condições, para que a suc-
cessão do colono fosse devolvida ao proprietario.
O colono, porém, o tinha o direito de alienar o
que possuia como proprio, sem informar e consul-
tar o proprietario (Cod. Theod., v, 11, 1; Cod.
Just., xI, 50). Qualquer que fosse o motivo desta
disposição, ou o interesse do proprietario, que
aproveitava com que o colono se encontrasse em
condições economicas favoraveis, ou o interesse do
colono, que poderia ser profundamente prejudicado
com alienações imprudentes, ou a ideia de que o
colono não se teria podido enriquecer senão á custa
da terra onde se encontrava, ou a preoccupação de
dar ao proprietario uma garantia de pagamento da
renda, é certo que ella se coordena com o
conjuncto de princípios que dominam o colonato.
Existia um laço tão estreito entre os colonos e a
terra, que difficilmente se podia conceber que se
— 146 —
pudesse destacar delia alguma cousa que lhes per-
tencesse 1.
64. Fontes do colonato adscripticio. As fon-
tes do colonato adcripticio eram: A) o nascimento;
B) certos factos posteriores.
A) Nascimento. O nascimento era a fonte mais
abundante do colonato. Quando ambos os paes
eram colonos, o filho seguia naturalmente a sua
condição. Se um delles era colono, o filho
seguia a condição da mãe.
Parece que, sendo permittidas as justas nupcias
entre colonos e não colonos, os filhos deveriam
seguir a condão do pae, visto assim acontecer
relativamente aos filhos nascidos de justas nupcias.
A derogão a este principio de direito commum foi
estabelecida por uma constituição dos imperadores
Valente e Valentiniano de 367. É certo que esta
constituão se refere unicamente aos colonos dos
domínios imperiaes. A regra, porem, foi generali-
zada, como se deduz de uma constituição de Honorio.
B) Certos factos posteriores. Os factos poste
riores ao nascimento que podiam dar origem ao
colonato eram: a) conveão; b) casamento; c) pres-
cripção; d) disposição da lei.
a) Convenção. o de haver duvida alguma
de que um individuo se podia tornar colono por
meio de convenção. Declara-o expressamente Sal-
viano.
1
Fustel de Coulanges, Recherches sur quelques problémes
d'histoire, pag. 119 e seg.; Letourneau, L'évolution de L'escla-
vage, pag. 423; Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 304 e
seg.; Glasson, Histoire du droit et des institutiones de la France,
tom. I, pag. 460 e seg.
— 147 —
A maior parte das vezes a convenção celebrava-
se tacitamente. O proprietario dum grande
domínio estabelecia um regulamento geral para
todos os seus colonos. Todos que lhe viessem
pedir terras e as obtivessem ficavam por este facto
sujeitos espontaneamente a um tal regulamento,
que acceitavam como um contracto obrigatorio.
Os colonos do saltus Burunitanus estavam
sujeitos á Lex Hadriana, devendo-se entender por
estes termos, não uma lei propriamente dicta, mas
um regulamento geral feito pelo imperador para
todos os que se viessem estabelecer sobre este
dominio como colonos. A não observancia deste
regulamento é que levou os colonos a queixarem-
se ao imperador.
b) Casamento. — O casamento tambem era uma
fonte do colonato, quando um individuo,
desposando uma pessoa desta condição, declarava
nos registos municipaes a intenção de se associar
á sua sorte.
c) Prescripção. Quem possuísse, durante
trinta annos, um homem livre como colono,
adquiria sobre elle e a sua posteridade os direitos
tio colonato. Este homem até então tinba sido
colono de facto, dabi por diante ficava sendo
colono de facto e de direito.
Foi o imperador Anastacio que introduzia esta
innovação, notando que ella é vantajosa para o
novo colono e para o proprietario. O proprietario
adquire os direitos do colonato, mas perde o de
expulsar da terra o seu possuidor. O novo colono,
perdendo a qualidade de homem livre, deixa ao
mesmo tempo de estar á discrição do proprie-
tario.
f) Disposição da lei. Como se sabe, os
imperadores vincularam ao solo muitos barbaros,
a fim de cultivarem a terra perpetuamente.
— 148 —
Mas não ficaram por aqui as providencias dos
imperadores, porquanto Graciano decidio que todos
os proprietarios teriam o direito de reduzir ao colo-
nato perpetuo os vagabundos e mendigos, de que
elles se podessem apoderar. Do mesmo modo as
famílias qne nio Unham terras para cultivar, foram
postas á disposição dos grandes proprietarios 1.
65. Cessação desta condição das pessoas. O
direito justinianeu falla-nos dum unico modo da
cessação do colonato, a elevão ao episcopado.
Antes de Justiniano, a condão do colono tambem
podia findar pela prescripção.
Assim como o individuo se tornava colono pela
prescripção, do mesmo modo deixara de o ser por
este motivo. O prazo da prescripção era de trinta
annos para o homem, e de vinte para a mulher.
Tem-se discutido muito se o colonato podia cessar
pela manumissão. Segundo Guérard e Serrigny, o
colonato podia cessar pela emancipão, porque assim
como o consentimento do proprietario e do colono
podia originar as relações obrigatorias do colonato,
tambem devia poder-lhe pôr fim, pois as obrigações
dissolvem-se, pela mesma fórma por qne são
contrahidas.
Esta opinião, porem, o é acceitavel, porquanto,
se o proprietario tivesse o direito de desligar o
colono da terra, mesmo com o consentimento deste,
deveria haver algum texto que fizesse menção dum tal
direito. Cita-se, é verdade, a constituição 12 do
1
Glasson,
Histoire du droit et des institutions de la France,
tom.
I, pag. 459 e seg.
— 149 —
Codigo Theodosiano, no titulo De fundis patrimonio-
libus, onde se diz que os emphyteulas dos bens
imperiaes tinham o direito de manumittir os coloni
servi destes predios. Ora, se os colonos escravos
podiam obter a liberdade pela mannmissão, com
muito mais fnndamento a deviam poder conseguir
os outros colonos. Este argumento, porem, não
procede, porqne estes ultimos colonos eram
livres.
Savigny resolveu a questão dum modo negativo,
sustentando que nenhum colono podia sahir da sua
condição por meio da mannmissão. Não existe
nenhum texto preciso sobre este ponto, e a manu-
missão do colono offenderia o principio recordado
constantemente pelos imperadores, de que era neces-
sario que a terra não ficasse privada dos seus
braços, ne terra membris suis defraudaretur.
É certo que os textos prohibem desligar o colono
do solo, mas têem sempre em vista o caso era que
o colono conserva a sua condição, e de nenhum
modo aquelle em que se tracta de conferir a um
colono a plena liberdade.
Segundo o nosso modo de vêr, o colono não podia
ser manumittido, porque elle era livre. A condição
do colono era immutavel. O proprietario não podia
dar ao colono a plena liberdade, do mesmo modo
que não podia destacal-o do solo para o collocar em
outro domínio. Tracta-se duma disposição de ordem
publica que as convenções dos particulares não
podiam derogar.
Demais, se esta forma da cessação do colonato
fosse admittida, mesmo em harmonia com os princí-
pios de direito commum, parece-nos que ella devia
ser assás frequente, para deixar vestígios, pelo
menos indirectos, nos textos. O silencio do Codigo
— 150 —
Theodosiano e do de Justiniano é decimo e ter-
66. Os lites dos povos germanicos. — Entre
alguns povos germanos, apparece orna dasse de
pessoas que têem estreitas analogias com os colonos
adscripticios. São os lites on liti dos francos, alle-
mães, frizões e saxões, e os aldiones ou aldi dos
lombardos. O que caracteriza especialmente esta
dasse social é que os indivíduos qoe a constituíam
se encontraram vinculados á terra qoe lhes era
concedida para cultivar, não a podendo abandonar
e sendo obrigados a pagar censos e serviços ao
proprietario.
Daqui derivava o estado de dependencia em que
se encontravam os lites e os aldiones para com o
proprietario, e por conseguinte a limitação dos seus
direitos relativamente aos livres, qoe o estavam
submettidos a nenhuma sujeição. É, por isso, que
elles o faziam parte do exercito, nem da assem-
bléa popular, gosando em todo o caso da protecção
da lei e podendo defender o proprio direito perante
os tribunaes.
Tinham um wergeld, talvez metade do do homem
livre, podiam adquirir e cootractar, possuiam o
direito familiar, duvidando-se unicamente se tinham
o direito de successão.
Estavam, por isso, em melhores condões do qoe
os escravos, embora se lhes applicassem algumas
normas da escravidão. Assim o aldionato cessava
pela manumissão, conferida segundo as formas esta-
1 Glasson, Histoire du droit et des institutiones de la France,
tom I, PAG. 478 e seg.
— 151 —
belecidas para a escravio em geral. Depois de
emancipados, os aldi podiam ser reduzidos de novo
á escravidão, em virtude duma grave falta commet-
tida para com o patrono.
É muito duvidosa a origem desta classe social,
sendo, porem, mais provavel que ella derivasse da
voluntaria entrega dum povo, visto a occupação á
força produzir a escravidão.
A evolução de tal classe fez-se no sentido de ella
se fundir, com os colonos adscripticios, na servidão
da gleba, que assim veio absorver varias catbegorias
de semi-livres da Edade-Media 1.
67. Existencia do colonato adscripticio entre os
wisigodos. A romanizão da Península fez pene-
trar nella o colonato adscripticio ou romano.
Effectivamente, é indubitavel a existencia do colo-
nato em tempos anteriores â fusão das duas raças.
A Lex romana Wisigothorum reproduz as principaes
normas reguladoras do colonato. E o concilio II de
Sevilha (619), presidido por Isidoro, estabeleceu,
no canon 3, que o clerigo deve reputar-se tão ligado
á Igreja a cujo serviço foi primeiramente votado,
como o colono á terra onde primeiro começou,
segundo está escripto na lei civil.
D. Joaquim Costa, que tão superiormente tem
tractado muitas questões da historia do direito
peninsular, contestou ultimamente esta doutrina,
sustentando que o colonato o chegou a ser intro-
duzido na Hespanha. Basêa-se principalmente em
que o canon 3 do II concilio de Sevilha nada prova,
1
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 308 e seg.; Nani,
Storia del diritto privato italiano, pag. 85 e seg.; Salvioli,
Manuale di storia del diritto italiano, pag. 278.
— 152 —
pois mostra unicamente que os padres do concilio
conheciam a condição legal dos colonos romanos.
Não demonstra que existisse ou tivesse existido na
Península esta instituição.
A doutrina dominante, seguida por Fustel de
Coulanges, Cardenas, Perez Pujol e Hinojosa, não
se funda unicamente neste texto, pois recorre tam-
bem á Lex romana wisigothorum, onde se encontram
as principaes regras do colonato romano. Ora que
necessidade haveria de indicar estas regras, se o
colonato não se encontrasse admittido pelos hispano-
romanos, para os quaes se destinava aquella insti-
tuição ?
O testemunho de Isidoro de Sevilha tem todo o
valor, porquanto elle o se teria servido daquella
comparação do clero com o colono, se a instituição
do colonato não fosse uma instituição viva e real,
podendo por isso dar uma idêa clara e immediata
do caracter da ligação do clero à Igreja. As noções
que Isidoro de Sevilha apresenta a respeito do colo-
nato não são muito precisas e rigorosas, mas isso
depende incontestavelmente da tendencia que o colo-
nato manifestava no principio do seculo vII para
desapparecer 1.
68. Destino da instituão neste período do direito
peninsular. Doutrinas de Herculano, Gama Barros e
1 Gama Barros, Historia da administração publica em Portu-
gal nos seculos XII a XV, tom. II, pag. 53 e seg.; Fustel de
Coulanges, Recherches sur quelques problèmes d'histoire, pag. 152;
D. Joaquim Costa, Estudios ibericos, tom. I, pag. 101; Cardenas,
Ensayo sobre la historia de la propriedad territorial en Espana,
tom. I, pag. 177 e seg.; Perez Pujol, Historia de las instituciones
sociales de la Espana goda, tom. IV, pag. 153 e seg.
— 153 —
Perez Pujol. Mas qual foi o destino da instituão
neste direito peninsular ?
Herculano sustenta que o colonato continuou ainda
depois da fusão das duas ras, fundando-se numa
disposição do codigo wisigothíco (Liv. v, tit. Iv,
1. 19), que, referindo-se aos plebeis, lhes prohibe a
alienação da gleba. Segundo o illnstre historiador,
a lei menciona tres classes de pessoas os curiaes,
os privados e os plebeus comprehendendo nesta
ultima classe os colonos adscriptos, aos quaes exclu-
sivamente se passara a dar o nome de plebeus
(plebei)..
O sr. Gama Barros intende, pelo contrario, que o
colonato já tinha desapparecido no momento da fusão
legal das duas raças, revelada pelo codigo wisigo-
thíco. Funda-se este erudito historiador no silencio
do codigo wisigothico, onde nos o apparecem
nenhumas disposições a respeito dos colonos, e na
evolão por que passou o colonato sob o domínio
dos povos barbaros, levando a fundir esta instituição
com a servidão da gleba.
Perez Pujol reproduz a opinião de Herculano,
refoando-a com novos argumentos. E assim nota
elle que a classe dos colonos não podia desapparecer
subitamente ao estabelecer-se a unidade legislativa,
sem deixar vestígios, e que se não deve estranhar
que o codigo wisigothíco dê aos colonos o nome de
servos, quando as proprias leis romanas se mostram
hesitantes, considerando-os umas vezes livres e outras
escravos. Accresce que no codigo wisigotco se
encontram os principaes traços do colonato, embora
elle não nomeie esta instituição. É assim que o
codigo wisigothíco admitte a transmiso hereditaria
da condição de cultivador dum campo aos filhos e
aos netos, e considera fixa a renda que elle tem de
— 154 —
pagar, pertencendo-Ihe, por isso, os fructos da torra
que a excederem (Cod. wis., liv. x, tit. I, 1. 13).
Segando o nosso modo de vêr, no codigo wisigo-
thico triumpha o movimento economico que, desde
ha muito, impellia o colonato para a servidão. Esta
tendencia se esboça na Lex romana wisigothorum,
apesar delia apparentemente se limitar a reproduzir
a legislação tbeodosiana sobre este assumpto.
Assim, na Lex romana wisigothorum os colonos
fugitivos reclamam-se com a acção summarissima
empregada em Roma para recuperar a posse das
cousas moveis; o colonato apresenta-se como vinculo
pessoal, ligando o colono ao dono, e o como vin-
culo real, prendendo o colooo á terra, visto a
Interpretatio dizer que o colono reivindicado, antes
dos trinta annos, deve ser devolvido ao dono, domino
revocetur, e não loco cui natus est, como determinava a
lei romana; o proprietario do colono é sempre
designado pela Interpretatio com o nome de dominus,
quando o direito romano vacillava na terminologia
a adoptar, chamando o proprietario ornas vezes
dominus, e outras vezes patronus; finalmente omitti-
ram-se os casos em que o direito romano permittia
ao colono pleitear contra o senhor.
Todo isto mostra claramente a tendencia, que,
depois da invasão germanica, precipitava o colonato
para a servidão. E comprehende-se perfeitamente
esta evolução, em virtude da influencia das ideias
germanicas, que o podiam ser favoraveis ao colo-
nato, desde o momento em que os indivíduos que se
encontravam entre os germanos em condões ana-
logas ás dos colonos romanos eram escravos, segundo
a intender o testemunho de Tacito. Accrescia que
o que caracterizava entre os godos o homem livre
era a faculdade de mudar de patrono, e por isso os
— 155 —
colonos, encontrando-se vinculados á terra e com
esta podendo mudar de senhor, deviam evidentemente
apresentar-se aos olhos destes povos como estando
numa condição similhante á do escravo. Não admira,
por isso, que as escassas garantias de que gosava a
classe dos colonos se fossem esbatendo, a ponto
destes se confundirem com os servos da gleba.
A conclusão a que se chega pelo estudo do colonato
entre os wisigodos é confirmada pela evolução desta
instituição entre os outros povos barbaros. Guérard,
estudando este assumpto com notavel proGciencia,
observa que, sob o domínio dos povos barbaros, o
colonato degenerou, afastando-se da liberdade para
se approximar da servidão, ao passo que esta, pelo
contrario, tornando-se successivamente mais suave,
propendeu a confundir-se com o colonato.
Em presença deste movimento da evolão, facil é
explicar a omissão que se encontra no codigo
wisigothico da categoria economica do colonato.
codigo wisigothico não se refere ao colonato,
porque o colonato se encontrava assimilado á servi-
o da gleba. E' possível que ainda houvesse uma
certa distancia entre as pessoas que se encontravam
abrangidas por estas duas instituões; na pratica,
porém, encontravam-se confundidas, visto estarem
sujeitas ás mesmas prestões e aos mesmos serviços.
O vocabulo plebeis não póde ter a significação que
Herculano lhe pretende dar, pois é inadmissível que
aquelle vocabulo se refira a uma classe de cujas
relações o codigo wisigothico não tracta em logar
algum. O natural é que elle comprehenda todos os
adscriptos á gleba, visto elles constituírem uma
classe, desde que triumphou o movimento que
impellia o colonato para a servidão. A lei auctoriza
esta concluo, pois o que caracteriza, segundo ella,
— 186 —
os plebeus é o facto de nunca lhes ser permittido
alienar a sua gleba, mostrando assim que os plebeus
são indivíduos adstriclos á gleba.
Os argumentos de Perez Pujol nada provam.
Ninguem affirma que a classe dos colonos desappa-
recesse subitamente ao estabelecer-se a nnidade
legislativa, pois a fusão do colonato com a servidão
da gleba foi o producto doma longa evolução, qoe
se manifesta logo em seguida á invasão dos barba-
ros. E' certo que as leis romanas se mostram
hesitantes relativamente à condição juridica dos
colonos, mas não deixam de os mencionar como
uma categoria especial, com direitos e obrigões
proprios, o que não faz o codigo wisigothico.
Os traços do colonato qoe Perez Pujol descobre,
á custa de laboriosas e pacientes investigões, no
codigo wisigothico, não são sufficientes para cara-
cterizar esta instituição. O proprio Perez Pujol o
reconhece, pois chega a confessar a degenerão do
colonato no sentido da servidão 1.
69. Funão desempenhada pelo colonato adscri-
pticio na evolão das classes servas. Theoria de
Doniol. — Depois de nos termos occupado da origem
e desenvolvimento do colonato adscripticio, é conve-
niente, antes de terminar o estudo desta instituição,
elevarmo-nos a um ponto de vista superior, e veri-
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 251 e seg.; Gama
Barros, Historia da administração publica em Portugal, tom. II, pag.
53 e seg.; Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espana goda, tom. IV, pag. 230 e seg.; Fustel de Coulanges,
Recherches sur quelques problema d'histoire, pag. 144 e seg.; Guèrard,
Polyptique d'Irminon, pag. 233 e seg.; Fustel . de Coulanges, L'alleu
et le domaine rural, pag. 413 e seg.
— 157 —
ficar qual foi a funcção historica exercida pelo colo-
nato relativamente ás classes servas.
Considera-se vulgarmente o colonato como uma
phase intermedia entre a escravidão e servidão,
tendo por funcção fazer a transição duma instituição
para a outra. E ha na historia um certo numero de
apparencias que parecem confirmar este modo de
vêr. Effectivamente, a historia attesta que á
medida que cada uma das situões de escravo, de
colono e de servo se desinvolve, a que a precede se
enfraquece e se torna cada vez mais rara, subsis-
tindo por fim unicamente a ultima na edade media.
É por isso que se julgou que estas instituições são
phases successivas da mesma condição de não liber-
dade, que se iria suavizando e modificando no
sentido da independencia.
Este modo de vêr não se conforma com a evolução
do colonato, porquanto as tres instituições, escravi-
dão, colonato e servidão, coexistiram por largo
tempo. A condão primitiva do colonato foi melhor
do que a da servidão da gleba, o se comprehen-
dendo por isso como o colonato desempenhasse a
funcção de transição da escravidão para a servidão.
Demais, s já observamos que a servio da gleba
o constitue uma transformação do colonato, mas
uma transformação da escravidão, originada ou
determinada por causas economicas.
A funcção historica do colonato relativamente ás
classes servas foi, como mostra Doniol, a de attenuar a
escravio e a servidão, favorecendo a elevão
destas classes. Na acção e reacção das tres insti-
tuições, o colonato favoreceu, com as suas garantias,
o desejo de uma existencia menos dependente 1.
1
Doniol, Serfs et vilains au moyen áge, pag. 11 e seg.
158
§ 2.º
Colonos voluntarios
SUMMARIO : 70. O colonato voluntario no direito romano.
A locatio conductio. 71. O colonato voluntario entre os
visigodos. O precario. — 72. O colonato voluntario na
Reconquista. Vexames e oppressões. — 73. O colonato
voluntario no direito português.
70. O colonato voluntario no direito romano. A locatio
conductio. — Ao colonato adscripticio con-trapõe-se o
colonato voluntario. Os colonos voluntarios eram
homens livres que cultivavam um predio alheio em
virtude do contracto, o ficando perpetua e
hereditariamente vinculados ao solo.
O colonato voluntario constituia-se, no direito
romano, pelo contracto da locatio conductio. Este
contracto podia conter uma grande variedade de
clausulas, havendo, porem, duas essenciaes e neces-
sarias: uma pela qual o proprietario cedia a fruição
de certa cousa; outra pela qual aquelle que a recebia
se compromettia a pagar um preço determinado. .
A linguagem do tempo chamava este preço merces e
cada um dos pagamentos successivos pensio.
O contracto era temporario e o seu termo encon-
. trava-se fixado antecipadamente. Os arrendamentos
[de curta duração eram os mais usados, citando os
jurisconsultos sempre arrendamentos de cinco annos.
O rendeiro só estava vinculado ao solo até á
expirão do termo fixado no contracto. O legislador
do terceiro seculo declarou até que o proprietario
não tinha o direito de reter o rendeiro contra a sua
— 189 —
vontade, nem, com a mais forte razão, os filhos
deste. (Cod. Just., Iv, 65, II).
Era, em todo o caso, admittida a tacita recondu-
cção. Se, na expiração do termo, o rendeiro ficava
oo predio, com o consentimento do proprietario, a
convenção suppunha-se tacitamente renovada. A re-
conducção era unicamente por um anno, mas o
accordo das duas partes podia renovar o contracto
indefinidamente de anno em anno.
O colonato voluntario é muito antigo no direito
romano. Se dermos credito a Cincius, o nono mês
do anno chamar-se-hia mercedonius, por ser aquelle
em que os rendeiros pagavam a soa merces aos pro-
prietarios. Horacio menciona os rendeiros, quando
descreve a pequena propriedade, que é aquella que
satisfaz os seus ideaes. Columella descreve, com
traços assás nitidos, a condição do rendeiro, que
elle apresenta como tendo de dar uma certa retri-
buição em dinheiro, ajunctando a minucia significa-
tiva, de que ha certos dias para o pagamento, dm
pecuniarum. Plínio diz numa das snas cartas, que
elle tem o costume de arrendar as terras por cinco
annos. Finalmente, os jurisconsultos nos fragmen-
tos que se encontram no Digesto faliam frequen-
temente dos colonos voluntarios, denominando-os
indifferentemente coloni ou conductores. (Ulpiano, no
Dig., xIx, 2, 14 e 19; Paulo, no Dig., xIx, 2, 24;
Gaio no Dig., xIx, 2, 25).
De modo que o colono voluntario é, segundo o
direito romano, um cultivador livre que se encontra
vinculado ao solo só por um contracto voluntario e
por um prazo carto. Este contracto não o subor-
dina ao proprietario, não sendo servidor, nem
subdito de dono do solo.
Entra livre para a terra e livre delia sahirá.
f
— 160 —
0 contracto de locação apresentou-se ao espirito
dos jurisconsultos romanos como uma venda tempo
raria, não sendo, por isso, para admirar que se
tenha estabelecido a regra de exigir um preço deter
minado em dinheiro, excluindo-se o systema duma
parte variavel e proporcional de fructos. Os juris
consultos romanos, nos numerosos exemplos que
citam, faliam sempre dum preço em dinheiro. Um
só jurisconsulto, Gaio, menciona, de passagem, um
colono parciario, com o fim de o separar nitida
mente do rendeiro, isto é, para dizer que elle não é
um rendeiro, não se lhe podendo por isso applicar
a lei sobre os rendeiros.
Não quer isto dizer que a cultora parciaria fosse
desconhecida dos romanos, pois ha numerosos exem-
plos que provam claramente o seu uso frequente.
Mas, se existia na pratica, não existia no direito,
não havendo para ella contractos. As garantias que
o direito assegurava ao rendeiro com arrendamento
regular, não se applicavam ao cultivador parciario.
Por exemplo, o rendeiro tinha uma aão judicial,
contrariamente ao que acontecia ao cultivador par-
ciario. Parece que, para os jurisconsultos romanos,
a cultura parciaria de fructos constituia uma pratica
extra-legal, tolerada, mas o reconhecida e de que
elles se não tinham a occupar 1.
71. 0 colonato voluntario entre os wisigodos. 0
precario godo. — O colonato voluntario passa por
uma grande transformação entre os wisigodos. O
systema do patrocínio germanico, informando a
1
Fustel de Coulanges, Recherches sur quelques problèmes
d'histoire, pag. 9 e seg.; Eugene Pétit, Traité élémentaire de
droit romain, pag. 362 e seg.
— 161 —
organizão da sociedade hispano-goda, fez com que
o colonato voluntario revestisse o caracter de sub-
missão pessoal. O proprietario, cedendo por arren-
damento as suas terras a homens livres pobres,
amparava-os na sua miseria, e por isso o era
para admirar que, em virtude das idêas germanicas,
exigisse destes respeito e auxilio. E assim se intro-
duziu no colonato voluntario o vinculo pessoal da
assistencia.
O colonato voluntario constituia-se por escriptura
ou por diversa rma, estipulando-se para o dono a
decima parte dos fructos ou quaesquer outras pres-
tações ou vantagens (God. wis., liv. x, tit. I, 1,19).
O contracto que se realizava recebia o nome de
precario. O precario, porém, tinha no direito wisi-
gothico uma significação muito diversa da admittida
pelo direito romano.
No direito romano, o precario era a conceso,
livremente revogavel, duma cousa, feita a um indi-
viduo, em virtude do seu pedido. Não era um
contracto, constituindo-se pelo pedido dum homem
e pela vontade benevola doutro. Era um acto de
para bondade, e por isso ao concedente pertencia
ser juiz da sua duração. Não originava obrigações
algumas, visto o direito romano intender que o
homem não se podia vincular por sua propria bene-
volencia. É conforme á equidade, diz Ulpiano, que
s não goseis da minha liberalidade senão durante
o tempo qne eu quizer, devendo, por isso, ella ser
revogada, logo que mude a minha vontade. O pre-
cario era, além disso, gratuito, pois do contrario
o poderia ter o caracter de puro favor e de mera
generosidade.
O precario, porém, entre os wisigodos era um
verdadeiro contracto de arrendamento, pelo qual se
11
— 162 —
cediam terras para serem cultivadas, mediante o
pagamento dama certa prestação. A conceso não
era revogavel á vontade do proprietario, pois o
codigo estabelece que, deixando o impetrante de
cumprir as condições a que se sujeitou, e em parti-
cular de solver annualmente as prestações e outros
encargos, poderia o proprietario expulsal-o do pre-
dio. Evidentemente que, se a concessão fosse revo-
gavel por livre arbítrio do proprietario, esta disposi-
ção tornar-se-hia perfeitamente incomprehensivel.
Mas, se no colonato voluntario tractava dum
verdadeiro arrendamento, qual é a razão por que
no codigo wisigotbico se o emprega a expressão
latina apropriada locatio conductio e se usa da de
precarium, alterando assim o sentido que tinha na
jurisprudencia classica, onde significava ceso de nso
gratuita e revogavel ? Segundo intende Perez Pujol,
a razão disto encontra-se, por um lado, em que a
locatio conductio foi o contracto que produzia a semi-
servidão dos colonos, e, por outro, em que no
antigo arrendamento da terra se uniu no colonato
um novo principio de submissão pessoal. Effectiva-
mente, o ingenuo devia ter repugnancia por uma
fórma de contracto que poderia fazer duvidar do
seu estado de liberdade, como era a lucatio condu-
ctio, e ao proprietario interessava fazer constar que
cedia ás preces ou rogos do colono, a fim de exigir
delle respeito e auxilio.
Mas, se o precario godo se afasta tanto do pre-
cario romano, não se separa menos do precario
ecclesiastico. O precario ecclesiastico era o pacto,
em virtude do qual o proprietario duma terra a
cedia a uma igreja ou mosteiro, recebendo-a depois,
em virtude dos seus rogos ou preces, em usufructo
durante a vida, com ou sem pensão, ficando per-
— 163 —
tencendo a propriedade e usufructo á Igreja, depois
do fallecimento do precarista.
Entre os wisigodos, porem, as Igrejas e os par-
ticulares cediam, mediante canon ou peno, terras
que previamente lhes pertenciam. Segundo as for-
mulas wisigothicas, o precarista é um ingenuo
miseravel que se approxima dalgum poderoso,
pedindo-lhe campos para cnltivar e assim poder
ganhar a vida.
Parece que, em geral, a concessão que involvia
o colonato voluntario se reputava perpetua, não
podendo ser invalidada senão por o concessionario
faltar ás condições a que se obrigava. É o que
a intender uma lei do codigo wisigothico, suppondo
que a cedencia da terra foi feita por determinado
prazo, mandando restituir neste caso o predio ao
dono no tempo que tiver sido pactuado (cod. wis.,
liv. x, tit. I, I. 12). Esta lei não se pode evidente-
mente intender senão como uma excepção ao prin-
cipio geral. O contracto não acabava com a morte
dos impetrantes, passando para os herdeiros a
obrigação de cultivar o terreno (cod. wis., liv. x,
tit. I, 1. 13 e 14) 1.
72. Colonato voluntario na Reconquista. Vexa-
mes e oppressões. Encontramos os colonos volun-
tarios logo nos primeiros seculos da Reconquista.
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Portugal,
tom. II, pag. 25 e seg.; Peres Pujol, Historia de las institu-ciones
sociales de la Espana goda, tom. IV, pag. 210 e seg.; Fustel de
Coulanges, Les origines du système féodal, pag. 63 e seg.;
Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 249 e seg.; Car-
denas, Historia de la propriedad territorial en Espana, tom. I,
pag. 178 e seg.
— 164 —
Nas doações feitas ás igrejas e mosteiros, apparecem
numerosas provas da sua existencia. Effectiva-
mente, nestas doações entram servos e ingenuos,
que não podem ser senão os colonos voluntarios,
cujas prestações e serviços se transferem.
Constituíam a classe dos colonos voluntarios as
pessoas ingenuas que recebiam terrenos para cul-
tora, e os servos que, por meio da emancipação
expressa ou tacita, passavam da adscripção
forçada á adscripçio voluntaria. Os colonos que
pertenciam a esta classe eram considerados
pessoas livres, porque a liberdade naquelle tempo
consistia na faculdade do individuo dispôr da sua
pessoa e estabelecerão onde lhe aprouvesse. O
colono voluntario devia morar no predio,
satisfazendo os servos ou prestações nelle
impostas, mas era-lhe licito abandonai o para se
estabelecer noutro, onde pudesse encontrar maiores
vantagens e mais seguros meios de subsistencia.
Quando assim procedia, perdia o solar, ou morada
com o seu horto, e muitas vezes parte dos bens,
que passavam para o senhor, como indemnização
do damno que lhe causava com a sua ausencia. Á
medida que a sua condição foi melhorando os
colonos obtiveram tambem a faculdade de vender
os solares e os seus bens, contanto que o fizessem
a pessoas sujeitas aos mesmos tributos e
prestações a que elles estavam obrigados.
As expressões com que se designavam as
pessoas desta classe eram as de colonos, foreiros,
solarengos, tributarios, villãos, juniores. Mas, nem
todos se encontravam na mesma condição,
porquanto, ao passo que uns se tinham obrigado
por meio dum pacto a satisfazer certo canon ou
pensão, outros tinham tomado tambem o
compromisso de prestar
— 165 —
determinados servos. Entre as prestações pessoaes
que deviam ao senhor, era muito importante a de exe-
cutar por si ou por outrem o trabalho do cultivo dos
campos daquelle. Chamava-se a esta obrigão Serna.
Os colonos, alem das prestões que pagavam aos
seus senhores, estavam sujeitos a uma certa capita-
ção, que os condes cobravam nos districtos do seu
mando. Quando convocados pelo rei, serviam na
guerra geralmente como peões, excepcionalmente
como cavalleiros, desde o momento em que pudessem
com as despesas do cavallo e armas. Contribuíam
tambem para as multas pecuniarias impostas aos
delictos commettidos no logar em que habitavam,
chamadas calumnias, quando o era conhecido o
delinquente.
Gom o tempo, ainda vieram a ficar sujeitos a
costumes e direitos mais vexatorios. Entre elles,
devemos mencionar a maneria, direito pelo qual
revertia ao senhor a successão de bens de quem
morria sem filhos e que recorda o regimen da suc-
cessão dos libertos. Este costume generalizou-se
em todos os reinos christãos da Hespaoha, embora
nem sempre fosse observado, como o provam muitos
documentos de doação e testamento feitos por colo-
nos, vassallos e outros indiduos das classes infe-
riores. Em algumas partes, procurou-se moderar
este oneroso direito, reduzindo-o a uma quota metho-
dica e determinada, noutras, chegou-se a um rigor
e excesso extraordinarios.
Quando havia filhos, nem por isso a herança
escapava inteiramente á rapina do senhor, pois ella
ficava sujeita a um imposto chamado luctuosa, que
consistia no direito de escolher entre os bens do
defuncto a melhor cabeça de gado, a melhor alfaia
ou cousa movei.
— 166 —
Entre os tributos que os colonos e vassallos
tinham de pagar aos senhores, ainda merece
menção a prestação que lhes deviam dar, quando
casavam as suas filhas, chamadas osas ou huesas,
e que parece ter por origem a renuncia feita pelo
senhor do direito de conceder licença para o
casamento, e não maus usos contra a honra das
mulheres, que não se encontram comprovados pelos
documentos.
Alguns escriptores, porem, como Chapado, dão
como existente na Hespanba o direito de pernada,
que se chamou em França prelibação e que
consistia no desfloramento da mulher casada, na
noute de suas nupcias, embora reconheçam o rapido
desappa-recimento deste direito.
A maneria, os costumes vexatorios e os tributos
onerosos foram desapparecendo ou modificando-
se, á medida que os concelhos foram adquirindo
força e poder. A influencia dos municípios foi
extraordinariamente favoravel, digamos mais uma
vez, ao melhoramento da condição das classes
inferiores 1.
73. O colonato voluntario no direito português.
O colonato voluntario alarga-se no principio da
monarchia, em virtude, o da transformação
da servidão da gleba, mas tambem da necessidade de
obter a cultura do territorio, devastado e assolado
pelas guerras com os sarracenos. Para isso, ce-
diam-se os terrenos de aforamento, estabelecendo-
se o fôro ou pensão que cada morador devia pagar
ao
1
Munoz y Romero, Del estado de las personas en los reinos de
Asturias y León, pag. 152 e seg.; Herculano, Historia de Portugal,
tom. III, pag. 288 e seg.; Hinojosa, Estudios sobre la historia del
derecho espanol, pag. 37 e seg.; Chapado Garcia, Historia general
del derecho espanol, pag. 221 e seg. e 299.
— 167 —
senhor da terra. Quando o senhor da terra era o
rei, os terrenos chamavam-se reguengos e os colonos
reguengueiros. Portugal, como diz A. Herculano,
dividido entre o rei, o clero e os grandes, formava
como que um vasto prazo, arroteado por colonos
de diversa natureza.
Nos seculos xII e xIII, continuaram-se a designar os
colonos voluntarios com a denominação de juniores,
significando esta expressão, dum modo geral, os
homens que dependiam de outros. Os juniores eram
pessoalmente livres, embora se possa á primeira
vista duvidar disso, em virtude de varios foraes
declararem livre o junior ou o servo que se aco-
lhesse ao gremio municipal. Se o junior era real-
mente livre, qual é a razão por que os foraes o
procuram attrahir com o incentivo da liberdade ?
Temos aqui mais um exemplo da fluctuação da
linguagem que se encontra frequentemente na Edade
Media. A palavra liber, como observa Gama Barros,
não significava então o estado opposto ao do
servo; designava tambem a situação do individuo
que estava a salvo de qualquer obrigão ou res-
ponsabilidade que pesara, ou podia pesar, sobre elle.
Neste sentido, é trivial o uso da palavra nos foraes
do typo de Salamanca. Assim, o junior que os
foraes incitam a vir morar no concelho, é o homem
que, apesar de ser de condão livre, se acha sujeito
por acto seu ou alheio a quaesquer oppressões ou
encargos.
Mas, apesar de livres, os colonos voluntarios
encontravam-se numa condição jurídica pouco lison-
jeira, em virtude do grande numero de encargos que
pesavam sobre a terra e virtualmente sobre elles.
Se os servos da gleba deixaram de estar vinculados
irrevogavelmente ao solo, mudando assim o seu
— 168 —
estado social, continuaram a encontrar-se num estado
vexatorio, por causa dos encargos a que estavam
sujemos, permanecendo assim quasi no mesmo estado
material. Os colonos viam-se na necessidade, em
virtude das condições da epocha, favoraveis ao
triumpho da força e da oppressão, de se contenta-
rem com aqaillo que os senhores das terras houves-
sem por bem deixar-lhes.
É por isso que as prestações que elles tinham de
pagar eram muito complexas e variadas, não havendo
extravagancia que não fosse exigida, como a de
passear o senhor ao collo, dar dinheiro para com-
prar um certo numero de ferraduras ou ferro para
ellas, etc.
Apparecem frequentemente os colonos obrigados
aos serviços pessoaes chamados geiras. Nos prazos
entre Douro e Minho era vulgar a geira de cada
Domaã, isto é, um dia de trabalho servil na semana,
ordinariamente a sexta-feira, em beneficio do senho-
rio, na cultora da terra e seus diversos amanhos ou
em carretos. O regimen da rapina que se notava
nas pensões ordinarias, tambem se encontrava nas
pensões extraordinarias, como a luctuosa, que se
pagava á familia do senhorio directo, quando morria
o seu chefe, a hospedagem do senhorio, que muitas
vezes se estabelece que deve ser segundo convem á
sua pessoa, os laudemios, que, embora apparecessem
mais tarde, nem por isso se tornaram menos
onerosos, etc.
E, como as relações do patrocínio da maladia,
quando se estendessem a colonos estranhos, não
podiam facilmente conciliar-se com as relações inhe-
rentes ao colonato, sem que os direitos dominicaes
soffressem prejuízos, apparecem alguns diplomas,
determinando em termos expressos, que os homens
— 169 —
do senhorio a qae esses diplomas se referem o
pudessem ser malados senão delle. Esta prohibão
encontra-se ainda estabelecida num prazo do Mosteiro
de Muya do seculo xv... nem vos acostedes a pessoa
poderosa. A pratica mais geral consistia, pois,
em o patronio de quem cultivava terra alheia
pertencer exclusivamente ao individuo ou
corporação que tinha o domínio do predio. Ha,
porem, exemplos da excepção a esta pratica, que
talvez se possam explicar como abusos.
Tambem se prohibia aos colonos qne creassem
no casal filho de fidalgo, sem duvida por causa das
exempções e dos privilegios de que gosavam os
nobres. Num prazo do seculo xrv, diz-se expressa
mente: e nom poderees criar no dicto cazal filho
nem filha de Cavalleiro, nem de Dona, nem domem
poderoso.
As Ordenões, regulando muito imperfeitamente
os contractos de emprazamento, deixaram continuar
os foreiros numa situão oppressiva e vexatoria
(Ord. Aff., liv. Iv, tit. LXXVII a LXXX; Ord. Man.,
liv. Iv, tit. LXII a LXV ; Ord. Filip., liv. Iv, tit. xxxvI
a XL). O Marquês de Pombal, reconhecendo que as
condições da agricultura reclamavam a reforma da
emphyteuse, introduziu nesta instituão importantes
modificações, sendo notavel, entre os diplomas por
elle publicados, a lei de 4 de julho de 1776, deter-
minando que os emprazamentos de futuro de bens
cultivados fossem regulados pelos preceitos da locação
e não pelas opiniões geraes sobre a emphyteuse.
O regimen liberal é que fez entrar os empraza-
mentos numa nova phase, modificando-os profunda-
mente. Entre as providencias publicadas com este
fim, as mais rasgadamente innovadoras foram as do
decreto de 13 de agosto de 1832, que extinguiu
— 170 —
todas as prestações impostas em bens da corôa por
foral, ou mesmo por contracto emphyteutico, ficando
as terras qae pagavam estas prestações livres e
allodiaes. No relatorio deste decreto. Dotava Mousi-
nho da Silveira qae a classe cultivadora e laboriosa
era tio espoliada, que apenas lhe ficavam meios
inferiores aos dos mais vis mendigos.
Este decreto não produziu todos os bons resultados
que devia produzir, em virtude das duvidas que se
levantaram sobre a determinação dos prazos que
tinham sido extinctos. Appareceram então diversos
diplomas para resolver estas duvidas, até qae foi
publicada a lei de 22 de junho de 1846, que veio
confirmar e explicar o decreto de 13 de agosto de
1832, ampliando em parte as suas disposões e res-
tringindo-as ou revogando-as em outras. Foi assim
qae esta lei declarou subsistentes os foros que
tivessem sido originariamente estabelecidos em título
especial, mesmo quando os bens fossem da corôa,
os que tivessem sido impostos por senhorio parti-
cular em bens patrimoniaes, e os que tivessem sido
alienados por titulo oneroso pela corôa ou pelos seus
donatarios, competentemente auctorizados.
Seguiu-se o Codigo Civil que procurou regular a
emphyteuse de modo a tornar as obrigões dos
foreiros mais certas e suaves. Conservou, por isso,
os emprazamentos de bens particulares anteriores
á promulgão do codigo, quer subsistam por con-
tracto, quer por outro titulo, com certas modificões
(artt. 1689º - 1705.°).
Os abusos e as extorsões que a emphyteuse favo-
receu oo passado radicaram o horror por esta
instituão. Hoje, porem, comprehende-se que este
systema de coitara, convenientemente reorganizado,
em harmonia com as condições das sociedades
— 171 —
modernas, ainda pode prestar grandes benefícios,
visto assegurar ao empresario dama industria agra-
ria a propriedade da potencia productiva dos seus
capitaes e do trabalho incorporado no solo, constituir
o meio mais efficaz de reduzir a cultura os terrenos
incultos e de valorizar o solo nacional, e representar
a forma mais propria para generalizar a propriedade
sem necessidade de dinheiro para a comprar. E o
enthusiasmo que hoje excita a emphyteuse é de tal
ordem, que o em faltado escriptores que defen-
dam o aforamento obrigatorio dos terrenos incultos.
O necessario é, porem, reformar a empbyteuse num
sentido mais liberal, permittindo ao foreiro desem-
baraçar-se dos encargos emphyteuticos, á medida
que fôr cultivando os terrenos emprazados 1.
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III pag. 17 e seg.;
Gama Barros, Historia da administração publica em Portugal,
tom. II, pag- 88 e seg.; João Pedro Ribeiro, Sobre os inconvenientes
e vantagens dos prazos com relação á agricultura de Portugal, nas
Memorias de litteratura da Academia, tom. VII, pag. 284 e seg.;
Manuel de Almeida e Sousa, Appendice diplomatico-historico ao
tratado pratico do direito emphyteutico, pag. 26 e seg.; Alberto
Sampaio, As villas do Norte de Portugal, pag. 124 e seg.; Antonio
Jardim, Dissertação inaugural, pag. 44 e seg.; Miraglia,
Filosophia del diritto, tom. I, pag. 415 e seg.; Pisani, L'en fiteusi,
come fu, come è, come drovrebb' essere, pag. 150 e seg.; Granata,
L'indivisibilitàá del canone e la riforma dell infiteusi, na Scienza
del diritto privato, tom. III, pag. 120.
— 172 —
SECÇÃO II
Pessoas com capacidade juridica limitada em
virtude de causas familiares
§1
Mulheres
SUMMARIO: 74. Condição da mulher no direito
primitivo. 75. A mulher no período preromano do direito
peninsular. 76. A mulher no direito romano. A tutela
perpetua - 77. A manus 78. A mulher e o christianismo
79. A mulher entre os germanos. Os mundium. 80. A
mulher no direito wisigothico. —81. A mulher na
Reconquista. 89. A mulher no direito portugués. Direito
antigo. 83. Direito moderno. 84. O direito e o
feminismo
74. Condição da mulher no direito primitivo. —
É muito difficil determinar a condição da malhar DO
direito primitivo. A questão coordena-se logicamente
com a primeira organização da família, que ainda
se encontra involvida uma atmosphera espessa de
duvidas e incertezas.
Não faltam testemunhos que nos apresentem a
mulher, nos povos primitivos, como independente
do homem e algumas vezes como mais poderosa
do que elle. Nenhuma auctoridade pesa sobre a
mulher numa sociedade em que os poderes
publicos e os poderes domesticos sio egualmente
desconhecidos. Os filhos estio sob o poder da mie,
determinando-se as genealogias pela linha
materna.
Talvez se deva relacionar com esta condição da
mulher a tradição das Amazonas, mulheres guer-
reiras que commandavam bordas numerosas, muito
173 —
generalizada no mundo antigo, e que os escriptores
ainda menos credulos não ousam pôr em duvida.
Constituem estes factos vestígios do matriarchado,
que é um systema de organização familiar em que
o homem é privado do patrio poder e do poder
marital, determinando-se como consequencia natural
o parentesco pela linha materna. Mas, sem entrar
em largas discuses tudo leva a crêr, como nota
Grosse, que os casos do matriarchado constituem
verdadeiras anomalias e excepções. O reconheci-
mento da auctoridade da mulher por seres mais
fortes do que ella, harmoniza-se mal com a violencia
dos costumes primitivos. Nas sociedades primitivas,
onde o unico valor cotavel era a força physica, diz
o Sr. Dr. Tamagnini, a sujeição dos fracos era um
facto natural. A mulher foi, por isso, primitiva-
mente considerada besta de carga, que impunemente
se podia maltractar, ferir, matar e até mesmo devo-
rar sem escrupulo.
Em tempos mais adiantados, sob o domínio da
organização historica do patriarchado, a dependencia
da mulher ainda revestiu um caracter muito accen-
tuado, visto o se conhecer outra instituição, álem
da família, pertencendo ao seu chefe um poder
absoluto e illimitado. Era o unico legislador, o
unico juiz e o unico sacerdote, o tendo a mulher,
bem como os filhos e os escravos, nenhum direito
relativamente a elle. O patriarcha bíblico é por
excellencia a personificão deste systema familiar,
mas na índia, na Grecia e em Roma o domínio
despotico do pae não foi menor 1.
1
Paul Gide, Étude sur la condition privé de la femme, pag. 13
e seg.; Letourneau, La condition de la femme dans les divertes
races et civilisations, pag. 484 e seg.; Sr. Dr. Tamagnini, Psy-
chologia feminina, pag. 68 e seg.
— 174—
75. A mulher no periodo preromano do direito
peninsular. São muito deficientes e imperfeitas
as noticias que nos restam a respeito da condição
da mulher oo peodo preromano do direito
peninsular.
Ha vestígios evidentes da existencia na Hespanha
primitiva do parentesco materno ou uterino.
Estrabão, referindo-se aos cantabros, diz que as
mulheres são neste povo as herdeiras de tudo, de
modo que são ellas que se encarregam da colloca-
ção dos seus irmãos, resultando daqui uma especie
de ginecrocacia, qne é cousa mal pensada em poli-
tica. Não parece, porem, qne se excluísse o poder
do pae de família, desde o momento em que,
segundo o mesmo Estrabão, o matrimonio se veri-
ficava por compra, pertencendo a mulher ao marido
como cousa comprada.
Mas, pondo de parte estes elementos, qne têem
sido considerados como vestígios do matriarchado,
a organização familiar que se encontra melhor
caracterizada entre os iberos e celtas é a do
patriarchado, que abrangia a vida social do tempo,
em todo o seu conjuncto, sendo o pae senhor, juiz,
legislador, chefe militar e sacerdote da familia. A
condição jurídica da mulher nesta organização
devia ser muito similhante áquella que ella tinha no
antigo direito romano, que conservou, por uma
forma muito perfeita, a estruclura dum tal typo da
familia 1.
1
Peres Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espana goda, tom. I, pag. 16 e seg.; Hinojosa, Historia general
del derecho espanol, tom. I, pag. 73 e seg.
— 175 —
76. A mulher no direito romano. Para com-
prehender bem a condição da mulher DO direito
romano, torna-se necessario consideral-a no casa-
mento e fóra do casamento.
O patrio poder pesa egualmente sobre o filho e a
filha, conservando-os ambos reduzidos á mesma
submissão. Mas, logo que desapparece o patrio
poder, surgem differenças jurídicas profundas entre
os dous sexos, visto o filho pubere se tornar inde-
pendente e senhor dos seus actos, contrariamente á
filha que, qualquer que seja a sua edade, cabe sob
o poder dum tutor, ficando sujeito a elle durante
toda a vida.
Esta tutela não foi estabelecida no interesse da
mulher, a fim de proteger a sua fraqueza e incapa-
cidade natural, mas no interesse do tutor e contra a
propria mulher. É certo que Cicero e Ulpiano dizem
que a tutela perpetua da mulher foi organizada por
causa da fraqueza do seu sexo, da sua ignorancia,
da sua inexperiencia e da sua leviandade. Mas Gaio,
que aprofundou e discutiu este assumpto considera
a opinião vulgar de que as mulheres devem ser
regidas por tutores em virtude da sua incapacidade,
como tendo um fundamento mais especioso do que
solido. Esta tutela, segundo este jurisconsulto, foi
estabelecida no interesse dos proprios tutores, a fim
de que a mulher, de que elles são herdeiros pre-
sumptivos, não possa arrebatar-lhes a herança por
um testamento, nem prejudica-los por meio de
alienações ou dividas.
A mulher que se encontrava sob a tutela perpetua,
não podia obrigar-se validamente, sem auctorizão,
contrariamente ao que acontecia quando estava sob
— 476 —
o patrio poder. Parece isto constituir uma estranha
incoherencia, mas o espirito jurídico da tutela per-
petua explica-a perfeitamente. Effectivamente, a filha,
sob o dominio do patrio poder, não tinha bens e por
isso unicamente podia obrigar a sua pessoa, ao
passo que a mulher sob a tutela perpetua, obri-
gando-sè, podia comprometter o seu patrimonio e
prejudicar profundamente a família e os futuros
herdeiros.
Havia um acto judico em que a incapacidade da
mulher sob a tutela era absoluta, não podendo pra-
tical-o, mesmo com a auctorização do tutor. Este
acto era o testamento.
É que, como nota Paul Gide, os actos inter vivos,
embora cansassem á falia um prejuízo indirecto,
podiam ser necessarios ou uteis á propria mulher,
devendo, por isso, estar sujeitos a uma fiscalização,
mas o podendo ser feridos de nullidade. O con-
trario se dava com o testamento, cujo fim unico era
despojar a falia do seu patrimonio, o podendo,
por isso, o tutor auctoriza-lo sem sacrificar os inte-
resses sagrados da família, de que elle era guarda
e fiel depositario.
Não se pode assimilar a auctoridade do tutor ao
poder absoluto do pater-famílias, visto aquella
auctoridade ter limites rigorosamente determinados
pelo fim da tutela. O tutor tinha unicamente os
poderes necessarios para salvaguardar o patrimonio
da mulher e nada mais. É por isso que elle não
tinha direitos alguns sobre a pessoa da mulher, o
podendo ingerir-se nos actos que, affectando a
condição pessoal, deixavam intacto o patrimonio.
Ha um exemplo frizante disto no casamento, visto
deverem ser auctorizadas pelo tutor todas as con-
venções pecuniarias que acompanhavam aquelle acto
— 177 —
judico, não sendo, porem, necessaria tal auctori-
sação, nem para a celebração do casamento, nem
para a escolha do marido.
O motivo, pois, por qne os romanos privaram a
mulher da livre disposão dos seus bens e a sub-
metteram á tutela perpetua, foi o de garantir a
conservaçio do patrimonio domestico e com elle
a gloria e dignidade da família. Não admira, por
isso, que a tutela fosse dada aos agnados da mulher,
que, sendo os herdeiros presumptivos delia, eram
os mais interessados na realização daqnelle fim.
Os agnados da mulher o podiam ser privados
da tutela perpetua. Mas, como esta tutela constita
um direito, o tutor podia dispôr delle, como dispunha
duma casa, dum campo ou doutra qualquer cousa.
A tutela perpetua das mulheres não podia subsistir
depois da transformação geral por que passou o
instituto romano da tutela, em virtude da qual elle
deixou de ser um direito e passou a ser um encargo.
Por isso a tutela perpetua da mulher, que se não
podia adaptar a esta orientação, devia acabar por
desapparecer '.
77. A manus. A mulher, casando umas vezes
conservava a sua família, continuando sob o poder
do seu pae ou sob a tutela dos seus agnados, outras
vezes perdia a sua antiga falia e passava inteira-
mente para a falia do marido. Neste ultimo caso,
o marido tinha a manus sobre a mulher, contraria-
mente ao que acontecia no primeiro.
Primitivamente, a manus mariti era a consequen-
cia inevitavel de todos os casamentos, passando a
1 Paul Gide, Condition privée de la femme, pag. 102 e seg.;
Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 199 e seg.
12
— 178 —
mulher inteiramente para a família do marido e o
tendo outros aguados e outros herdeiros, alem do
seu marido e dos parentes deste. Depois, é que se
introduziu o casamento sine manu, no interesse da
falia da mulher e da conservação dos bens
patrimoniaes.
Era proprio da manus dar á mulher na nora
familia a condição de filha, dizendo os textos que
ella se encontrava atai loco filia do marido. Daqui
deduzem numerosos auctores qne a manus era
identica ao patrio poder e analoga ao poder do-
minical.
Este modo de vêr, porem, não se pode considerar
muito exacto, porquanto a manus, do mesmo modo
que a tutela, não confere direito algum sobre a
pessoa da mulher, exercendo-se unicamente sobre
os seus bens. É por isso que o pater podia vender
os escravos e os filhos, ou, se elles tivessem com-
mettido um damno, entrega-los como
indemnização á pessoa que tivessem lesado.
O mesmo não acontecia com a mulher in manu,
que não podia ser nem vendida, nem cedida como
reparão de prejuízos causados. O marido podia
unicamente nomear-lhe um tutor, porque a tutela,
bem como a manus, tinha por objecto unicamente
os bens da mulher.
É indubitavel que o marido tinha direitos sobre
a pessoa da mulher, que iam até ao poder de a
matar, mas estes direitos derivavam do casamento,
nada accrescentando a manus ao poder marital.
Se se tractava, por exemplo, de repudiar a mulher,
ou de castigar as suas faltas, o pae e os parentes,
haja ou o haja manus, tinham de ser convocados
para a constituição ao tribunal familia). Pouco
importava que elles tivessem perdido os direitos
de
— 179 —
agnação, pois o facto de sabsistirem os laços da
cognação dava-lhes o direito de proteger a pessoa
da mulher e de vigiar pelos seus costumes.
É sob o ponto de vista das relações pecuniarias
que a mulher in mana se encontrava na família do
marido loco filiae. Na antiga família romana havia
um unico patrimonio para o pae e os filhos. Quando
se dava a conventio in manum, tudo o que possuía
a mulher entrava para este patrimonio commum,
bem como o que ella depois viesse adquirir.
Durante a vida do chefe de família, o. patrimonio
familiar encontrava-se nas suas mãos, sendo elle,
num sentido verdadeiro, o senhor da communidade.
Depois da sua morte, esta communidade dividia-se
entre a viuva e os filhos, tendo a viuva uma parte
como se fosse filha. Na falta de filhos, a communi-
dade, ficava-lhe pertencendo inteiramente, sendo a
unica successora do marido.
Embora o tivesse patrimonio proprio, a mulher
in manu podia sempre, do mesmo modo que a filia
famílias, obrigar-se pessoalmente sem a auctorização
marital, ter um peculio, e até, embora isto seja
duvidoso, ter um dote.
A principio a manus era uma instituição intima-
mente ligada com o casamento. Acabou porem,
por subsistir independentemente desta instituição,
admittindo-se que a mulher a podia constituir com
uma pessoa differente do esposo.
E, effectivamente, reduzindo-se a conventio in\
manum a uma convenção pecuniaria, não havia
razão para a não poder contractar com uma pessoa
estranha. Esta é a manus fiducits causa, assim
denominada por aquelle que adquiria este poder se
comprometter a emancipar a mulher immediata-
mente, por meio dum pacto fiduciae.
— 180 —
A manus fiduciae causa foi um admiravel expe-
diente de que se servia a mulher para quebrar os
los da falia e emancipar-se da tutela dos seus
agnados. De modo que a instituição da manus que,
no principio era um dos fundamentos da família
palriarchal, tornou-se, sob o donio de costumes
novos, um meio de consummar a ruina dos poderes
domesticos e a emancipação da mulher 1.
78. A mulher e o christianismo. O christia-
nismo não se pode considerar como tendo sido
muito favoravel á mulher, contrariamente ao que
geralmente se sustenta. As tendencias asceticas
desta religião não se harmonizam com a elevação
do conceito social da mulher, que muitas vezes sem
criterio se lhe attribue.
S. Paulo dizia que o homem não era da mulher,
mas a mulher do homem e que o homem não foi
creado para a mulher, mas sim a mulher para o
homem. Os Padres da Igreja não consideram a
mulher senão como um instrumento de peccado e de
tentação. A mulher é a peste das pestes ! Dardo do
demonio! Por intervenção delia, venceu o demonio a
Adão e fez-lhe perder o paraíso (S. João
Chrysostomo). Mulher, tu és a poria do demonio !
Foste tu que corrompeste aquelle que satanaz não
ousava atacar de frente; foi por tua cansa que
Christo morreu (Tertulliano). A mulher é simi-
lhante a um escorpião sempre prompta para morder
(S. Boaventura).
A superioridade moral do homem encontra-se con-
sagrada pelos textos mais decisivos do direito cano-
1
Paul Gide, La condition privée de la femme, pag. 111 e seg.;
Bry, Príncipes de droit romain, pag. 112 e seg.
181
nico. o homem foi creado á imagem de Deus,
devendo por isso a mulher ser a subordinada e quasi a
serva e a escrava do homem (Can. 13-17 caus. xxxIII,
qu. 5). Fiel a este principio, o direito canonico o
attribue á mulher uma condão superior á que ella
tinha na antiguidade. Prohibe-lhe todas as funcções
que os antigos chamavam viris, como a de se obrigar
por outrem, a de pleitar como procurador, a de ser
arbitro e a da intentar uma accusação. Ainda mais
rigoroso que o direito romano, chegou até a prohibir
á mulher testemunhar em juizo, considerando o seu
testemunho indigno de fé.
Diz-se frequentemente que o christianismo contri-
buiu para elevar a dignidade da mulher, conside-
rando o casamento um sacramento. Mas, ao mesmo
tempo que assim procedia, julgava o casamento um
estado inferior e collocava a maternidade abaixo da
esterilidade. Cortemos a arvore esteril do matrimo-
nio, diz S. Jeronymo, pois Deus permittiu no começo
do mundo o casamento, mas Jesus e Maria consa-
graram a virgindade. A santidade perfeita do casa-
mento não conta, a partir do Iv seculo, por defensores
seo alguns hereticos. A doutrina geral dos Padres
é que o casamento é uma consequencia do peccado
original, de modo que, sem esta falta, Deus teria
provido á conservação da especie por outra forma.
Dos escriptos dos Padres tal doutrina passou para
as leis da Igreja, prohibindo-se o casamento aos
clerigos e reduzindo-se o uso desta instituição para
os leigos, por assim dizer, ao estrictamente neces-
sario: Os canones toleraram, embora com grande
desfavor um segundo casamento, mas unicamente
no caso de morte do primeiro esposo, prohibíndo-o,
porem, inteiramente no caso de repudio ou de
divorcio. Os interpretes do direito canonico não se
— 182 —
contentaram com as restricções legaes impostas ao
casamento, e, partindo do principio de que o casa-
mento é um mal necessario, deduziram, por meio
de subtilezas cassticas, que o ha relações conju-
gaes licitas, desde o momento em que não teobam
por fim a procreaçio.
A Igreja elevou o casamento á dignidade dum
sacramento unicamente para corrigir o que elle tem
de impuro e máo. O sacramento é admittido, se-
gundo a expressão consagrada pelos tbeologos, como
um remedium 1.
79. A mulher entre os germanos. 0 mundium. A
mulher entre os germanos estava sujeita a um
poder domestico chamado Mund ou Mundium. O
Mundium era o poder do chefe de família sobre
todas as pessoas que a constituiam e especialmente
sobre a mulher e os filhos. A significão etymolo-
gica da expressão Mund é mão ou bocca, sendo a
mão e a bocca os orgãos porque se manifesta o
governo do pae.
0 Mundium era perpetuo. A mulher em Roma
tinha a esperança de sahir um dia do poder patrio
ou marital e de passar para o jugo menos pesado
da tutela. Entre os germanos, pelo contrario, a
incapacidade da mulher é uma consequencia da sua
impossibilidade de trazer armas, isto é, resultante
do seu proprio sexo, não podendo, por isso, desap-
parecer, nem diminuir.
1
Paul Gide, La condition privée de la femme, pag. 169 e seg.;
Letourneau, La condition de la femme dam les divertes races et
civilisations, pag. 409 e seg.; Sr. Dr. Tamagníni, Psychologia
social da mulher, pag. 74 e seg.
— 183 —
A mulher, porem, gosava na Germania de mais
garantias do que em Roma, em virtude da organiza-
ção especial que tinha naquelle pais o poder domes-
tico. Em Homa, este poder encontrava-se concentrado
nas mãos do chefe, contrariamente ao que
acontecia na Germania, onde elle estava dividido por
todos os membros da família capazes de manejar as
armas. Nestes povos turbulentos e impacientes, que
mudavam todos os annos de habitação e de patria
e que não reconheciam outra justiça alem da das
armas, nem outro direito alem do do mais forte, não
era o debil braço do velho pater que podia
proteger a família contra as violencias dum
aggressor. Quem gosava da foa tinha o direito e
todo aquelle que soubesse manejar as armas e
combater pela causa commum, tinha o seu logar no
conselho da família e a sua parte no poder
domestico.
Entre os romanos havia sem duvida o conselho
dos parentes, mas elle occupava na família um logar
secundário e accessorio, contrariamente ao que
acontecia entre os germanos, onde elle absorvia
uma grande parte do poder domestico. Este poder,
diffundindo-se e dividindo-se, perdia muito da sua
intensidade e da sua energia. A esposa e o filho
opprimido encontravam sempre no conselho dos
parentes uma defesa energica e certa. Neste conse-
lho, o filho tinha logar ao lado dos paes, os paren-
tes maternos ao lado dos parentes paternos. Tacito
nota que o irmão da mãe tinha na família ger-
manica direito ao mesmo respeito e ás mesmas
honras que o pae; este irmão representava na famí-
lia a auctoridade materna que a mãe, em virtude
da sua incapacidade, por outrem podia exercer.
E, deste modo, o poder domestico equilibrava-se,
dividindo-se.
— 184 —
Os parentes da mulher não ficavam inhibidos,
depois do seu casamento, do direito de a defender
e proteger mesmo contra o poder do marido. A
esposa era injustamente repudiada e ultrajada, os
seus parentes intervinham, fazendo-a restituir aos
seus direitos e provocando pafa combate, se assim
fosse necessario, o marido.
De modo que a mulher encontrava nos seus
parentes, como filha, esposa ou viuva, garantias
que lhe asseguravam uma especie de independencia.
Por isso os direitos que o Mundium abrangia e que
iam até ao poder de vida e morte, encontravam na
pratica muitas restricções.
Os germanos alimentaram até sentimentos nobres
e elevados para com as mulheres, tendo estas exer-
cido sempre uma funão muito importante tanto na
sociedade como na familia. Eram ouvidas sobre os
negocios publicos, eram consideradas como compa-
nheiras dos perigos e trabalhos do homem, parti-
lhando com elle os prazeres da ca e as fadigas da
guerra, tomavam parte em todas as festas, presidindo
muitas vezes a ellas, era-lhes attribuido um caracter
religioso, intervindo nas cerimonias do culto e dando
como sacerdotizas consultas que se consideravam
inspiradas.
É para admirar que a mulher fosse tio conside-
rada nas tribus grosseiras da Germania. Mas isso
deve-se sem duvida á austeridade dos costumes des-
tes povos. Nada mais admiravel, diz Tacito, do
que a santidade do casamento germanico. Ninguem
se ri duma infidelidade conjugal, todos lhe lêem
horror. Os adulterios são raros. A mulher casa-se
virgem: entrega-se uma vez e para sempre;
terá um esposo, assim como tem um só corpo e uma
só alma.
— 185 —
Em virtude das creas supersticiosas dos ger-
manos, o respeito pela mulher convertia-se facilmente
numa especie de adoração. A sua imaginação sonha-
dora julgava vêr alguma cousa de divino num ser
que aos seus olhos era, como os proprios deuses,
puro, inviolavel e sagrado. É das florestas virgens
da Germania e o das doutrinas mysticas do chris-
tianismo que derivou o sentimento nobre e delicado
de respeito pela mulher, e que, depois de ter inspirado
o heroísmo cavalleiresco da Edade Media, veio a con-
stituir um dos tros caracteristicos da civilizão
moderna 1.
80. A mulher no direito wisigothico. A con-
dição da mulher encontra-se notavelmente melhorada
no direito wisigodo. Ê certo que a mulher devia
estar subordinada ao marido, mas este não tinha
sobre ella um poder despotico (cod. wis., liv. III,
tit. I, 1. 5). Tambem não tinha o patrio poder, mas
a lei wisigothica consagra a tutela legitima da mãe
que não tornou a casar, e dum modo tal, que ella é
a primeira de todas, preferindo até á dos outros
parentes (cod. wis., liv. Iv, tit. III, 1. 3; liv. III, tit.
I, 1. 8).
Paul Viollet diz que é provavel que o christianismo
concorresse para este progresso, visto nos germanos
o christianizados a mãeo desempenhar esta
funão publica. Não nos parece, porem, que esta
tão notavel instituição se possa attribuir ao chris-
1 Paul Gide, Condition privée de la femme, pag. 197 e seg.;
Glasson, Histoire du droit et des institutions de la France, tom. II,
pag. 37 e seg.; Viollet, Histoire du droit français, pag. 493 e seg.
— 186 —
tianismo, visto o christianismo ter sido pouco favo-
ravel á actividade publica da mulher.
A mulher podia estar era juizo, não se encon-
trando, sob este aspecto submettida a outra prohi-
bição álem da de pleitear por outrem (cod. wis.,
liv. II, tit. III, 1. 6). Havia a partilha egual das
heranças entre os dous sexos (cod. wis., liv. Iv, tit.
II, 1. 9), quando as leis germanicas concentravam a
possa do solo nas mãos de quem era bastante forte
para o defender. Preconizou-se o celibato, mas
defendia-se energicamente o respeito pelo vinculo
conjugal (cod. wis., liv. III, tit. Iv, 1. vI).
Em todo o caso, devemo-nos abster duma admira-
ção incondicional pelos preceitos do direito wisigo-
thico a respeito da situação juridica da mulher,
porquanto ha ahi tambem disposições que nos
inhibem disso. Entre ellas, devemos notar a que,
para os effeitos da composição, tarifa a vida da
mulher como valendo metade da do homem (cod.
wis., liv. III, tit. I, 1. 5). Deste modo o codigo
wisigothico attenua a pena do delicto quando a
victima é uma mulher, contrariamente ao que fazem
os outros codigos barbaros 1.
81. A mulher na Reconquista. A condição da
mulher parece que se mantem na Reconquista nos
termos em que se encontra estabelecida no codigo
wisigothico. A' mulher continuou a pertencer a
auctoridade tutelar sobre os filhos. Salvador del
1
Paul Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 501 e 533;
D. Rafael Altamira, Historia de Espana y de la legislacion espa-
nola, tom. I, pag. 191; D. Juan Sempere, Historia del derecho
espanol, pag. 103; Paul Gide, La condition privèe de la femme, pag.
316 e seg.
__
— 187 —
Viso intende que a mulher casada desempenha nesta
epocha o patrio poder, como acontecia no direito
wisigothico.
Parece-nos, porem, erronea a affirmação de que á
muher casada pertencia o poder patrio na legislão
wisigothica, pois isso não se harmoniza com a tutela
legitima, que esta legislão confere á mulher, depois
da morte do marido. No período neo-godo, não ha
elementos que nos permitiam assegurar que o direito
wisigothico foi alterado sobre este assumpto.
Os fueros estabelecem certas desegualdades de
condição entre os dous sexos. A filha ou a esposa
não podem obrigar-se nem apparecer em justiça,
sem a assistencia dos parentes ou do marido. A
propria viuva tem necessidade da assistencia dos
parentes emquanto vive com elles. Estas incapaci-
dades privam a mulher unicamente do exercio do
seu direito e não do proprio direito. A mulher tem
a sua parte na compropriedade familiar e pode
concorrer á successão nas mesmas condições que
os herdeiros varões.
E' interessante o modo como os fueros procuram
favorecer o casamento. Edictam penas severas con-
tra os celibatarios: o podem exercer funcções
publicas, nem ser testemunhas, nem estar em juizo,
nem possuir immoveis; estio sujeitos a impostos
excepcionaes; os delictos de que elles são victimas
são desculpados ou menos severamente punidos.
E, para que mais facilmente se realize o casa-
mento, auctorizam o divorcio e toleram uma especie
de casamento ou concubinato chamado barragania 1.
1
D. Rafael Altamira, Historia de la Espana y de la civiliza-
ción espanola, tom. I, pag. 448 e seg.; Salvador del Viso, Leccio-
nes elementales de Historia y de derecho civil, mercantil y penal
— 188 —
82. A mulher no direito português. Direito
antigo. No direito portugs, prevaleceu o prin-
cipio wisigothico da subordioação da mulher ao
marido. E, se esta sujeição não chega aá servi-
dão de outros tempos, não póde haver duvida de
que ella se encontra profundamente informada pelo
criterio da inferioridade moral e judica da mulher.
Esta inferioridade, como diz Laboulaye, dominon
toda a Edade Media e de tal modo se apoderou dos
esritos, que pôde sobreviver mais ou menos com-
pletamente em todos os seculos successivos até s,
que ainda o nos encontramos inteiramente eman-
cipados deste prejuízo.
Não admira, em taes condições, que o poder
marital revestisse uma forma muito gida, fazendo-o
consistir Mello Freire, em harmonia com as ideias
das Ordenações, in facultate uxorum actionis diri-
gendi, easdem defendendi et immodestas modice casti-
gandi.
O marido devia castigar a mulher o acintemente,
e com animo de ferir, mas sem o uso de armas, isto
é, com o animo de corrigir e emendar (Ord., liv. v,
tit. xxxvI, § l). O poder correccional do marido,
porem, ia até ao ponto de lhe ser permittido reter a
mulher em carcere privado, podendo privá-la ,da
liberdade pelo- tempo que exigisse a emenda (Ord.,
liv. v, tit. xxxvI, § 1.°).
Tambem se permittia ao marido matar a mulher
surprehendida em flagrante delicto de adulterio,
exceptuando-se o caso em que o reo fosse fidalgo,
de Espana, parte I, pag. 218 e seg.; Chapado Garcia, Historia
general del derecho espanol, pag. 365 e seg.
— 189 —
regra tão barbara na sua permiso como injusta na
sua excepção (Ord., liv. IV, tit. cm, § 1º). A mulher
o gosava do patrio poder, por a nossa legislação,
como notava Mello Freire, se ter inspirado na orga-
nização deste instituto, com pequenas excepções, no
direito romano.
A inferioridade da mulher ainda se revelava no
facto de ella não poder obrigar-se sem o consenti-
mento do marido, nem ser admiltida em juizo sem
procuração deste (Ord., liv. III, lit. XLVIII)
Alem disto, a condição da mulher era regulada
por outras disposões, derivadas do direito romano
e do direito canonico e inspiradas no principio da
sua inhabilidade. Assim, a mnlher não podia obri-
gar-se por outrem (Ord., liv. Iv, tit. 61, pr.), não
podia ser testemunha em testamentos (Ord., liv. Iv,
tit. 86), não podia querelar ou accusar nos crimes
publicos, como pessoa do povo (Ord., liv. v, tit. 117,
§ 2.°), etc. Gosava de alguns privilegios principal-
mente em materia penal, onde os seus delictos eram
mais brandamente punidos 1.
83. Direito moderno. A inferioridade tradi-
cional da mulher não desappareceu do direito mo-
derno. As leis civis, ainda as mais justas e liberaes,
consagram profundas desegualdades entre os direitos
dos dous sexos. A revolução francesa alguma cousa
fez no sentido da emancipão da mulher, mas ficou
muito áquem dos ideaes da justiça e da liberdade.
1
Mello Freire, Institutiones juris civilis lusitani, tom. o, pag.
152 e seg.; Lis Teixeira, Curso de direito civil, para o anno de
1842-1848, tom. I, pag. 363; Borges Carneiro, Direito civil de
Portugal, tom. III; pag. 3 e seg.
— 190 —
O codigo de Napolo fez partilhar a mulher dos
direitos e dos deveres inherentes ao patrio poder,
iniciando uma evolução que ainda es longe do seu
termo. Esta orientação foi seguida pelo nosso codigo
(art. 439), que, como diz o Sr. Dr. Dias Ferreira,
dando o patrio poder á mãe, mesmo em vida do pae,
fixa indemnizão egual onde a natureza estabelecera
eguaes cuidados, incommodos e affliões, e repara,
com esta justa disposição, a injustiça de muitos
seculos.
O direito moderno, porem, ainda não levou esta
doutrina até ás suas ultimas e logicas consequencias,
porquanto nem sempre respeita o patrio poder da
mulher, como o deveria fazer. Effectivamente, basta
notar que, havendo dissentimento entre os paes sobre
a conceso da licença para o casamento dos filhos
menores prevalece a opinião do pae (art. 1061.° do
God. Civ.). Nada ha mais absurdo do que requerer
a opinião da mãe sobre o casamento dos filhos me-
nores, e depois não lhe attribuir valor algum no
conflicto com a do pae. Devia-se permittir, no caso
de discordia entre o pae e a mãe, recurso para o
conselho de família ou para a auctoridade judicial,
que deveriam examinar as razões de ambos os paes
e adoptar a opinião que fosse mais conveniente.
É verdade que a sociedade conjugal precisa dum
centro de unidade, dum chefe, que deve natural-
mente ser o pae, mas tambem é indiscutível que é de
todo o ponto justo que a mãe que ama os seus filhos
e coopera para o bem estar economico da família,
seja chamada a dar a sua opinião sobre um acto de
tamanha importancia moral e economica para ella,
como é o casamento dos filhos, e que esta opinião
tenha valor, sendo examinada, discutida e approvada,
quando deva ser.
— 191 —
Mas, com excepção desta innovão que attribue o
patrio poder á e, a condão jurídica da mulher
casada pouco se modificou oo direito moderno, que
continua ainda inteiramente dominado pelo conceito
da inferioridade moral e juridica da mulher. Haja
vista ao instituto da auctorizão marital, que involve
uma injustiça flagrante e serve para perturbar a
tranquilidade da família e collocar a mulher numa
situão vexatoria, tornando-a juridicamente depen-
dente de lodos os abusos e arbitrariedades do
marido. Nenhuma das razões com que se tem
defendido o instituto da auctorização marital nos
pode convencer do seu fundamento, visto todas ellas
desconhecerem os direitos da mulher, que não
podem, de modo algum, harmonizar-se com uma
tutela tão tyrannica.
No codigo allemão, este anachronico e injusti-
ficavel instituto soffreu um profundo golpe, atte-
nnando-se muito a injustiça de a mulher ter durante
o matrimonio uma capacidade jurídica mais res-
tricta do que antes ou depois (Cod. civ. allemão,
artt. 1399.° a 1402.°). A abolição da auctorização
marital será, como diz 0. Secchi, o primeiro passo
no caminho que nos deve levar a uma exacta e clara
legislão das mulheres, satisfazendo aos votos de
todos os que amam a justiça e a liberdade.
A doutrina do senatns-consnlto velleiano, em vir-
tude do qual a mulher o se pode obrigar por
outrem, se encontra no art. 819 do codigo civil,
embora um pouco attennada pelas condições especiaes
das sociedades modernas. E, sob este ponto de
vista, o codigo civil português foi mais conservador,
do que o codigo civil francês, qne não admittiu a
doutrina do senatus-consolto velleiano.
— 192 —
0 legislador tambem não se desprendeu inteira
mente da tradição dos virilia afficia, pois as
mulheres o podem ser testemunhas nos actos
extra-judiciaes (artt. 1966.° e 2492.°), não podem
ser, com excepção das ascendentes da menor, tuto
ras (art. 234.°) e vogaes do concelho de família
(art. 234.°) 1.
84. 0 direito e o feminismo. Contra as des-
egualdades entre os dous sexos que se encontram
consagradas pelo direito moderno, protesta caloro-
samente o feminismo, apoiado pelas conclusões da
anthropologia e da sociologia.
o os tempos em que a mulher era consi-
derada por Proudhon uma organização sustada no
seu desinvolvimento, e por Michelet uma desequili-
brada que unicamente merecia compaio. A maior
parte das suppostas inferioridades da mulher não
têem significação real, muitas que poderiam ter esta
significão são contestadas. Manouvrier e H. de
Verigny, que tractaram recentemente a qoestão,
concedem á mulher, mais do que faziam Topinard
e Broca.
Mas, pondo de parte esta discussão, a verdade é
que se não pode negar á mulher a intelligencia e a
aptio necessarias para o exercio das diversas
funões jurídicas, podendo-se até affirmar que nos
países, como nos Estados-Unidos, onde ellas rece-
1
Paul Gide, Étude sur la condition privée de la femme,
pag. 415 e seg.; O. Secchi, L'emancipazione delia dona e
1'autorizzazione marital, na Scienza del diritto privato, vol. II,
pag. 81 e seg.; O. Secchi, Sul Consenso dei genitori al matri-
monio del figli, na Scienza del diritto privato, vol. IV, pag. 348;
Dias Ferreira, Codigo civil annotado, tom. I, pag. 118 e seg.
— 193 —
bem uma elevada instruão, a sua cultura é pouco
inferior á dos homens.
Como nota o Sr. Dr. Vieira de Castro, todas as
condições se encaminham nas sociedades modernas
DO sentido de ampliar a actividade da mulher. E,
em vez do insuccesso em parte proclamado por
alguns escriptores, é com grande vantagem que se
assignalam as apties do sexo feminino.
A equiparação judica dos dous sexos não tem
sido defendida unicamente no campo do direito pri-
vado, mas tambem no campo do direito publico.
É assim que o direito do suffragio das mulheres,
rejeitado terminantemente pela assembléa francesa
de 1789, por entre gargalhadas de desprezo, depois
de defendido entusiasticamente por Stuart Mill e
Laboulaye, tem encontrado um acolhimento, cada vez
mais favoravel, nos parlamentos da Inglaterra e da
America.
Do mesmo modo as carreiras jurídicas que até
agora se encontravam fechadas ás mulheres, eso-
lhe sendo abertas, com applauso de todos os que se
interessam pela sua emancipação. É o que acon-
tece com a advocacia, que, em alguns países e
nomeadamente em França, pode ser exercida pela
mulher. (Lei de 4 de dezembro de 1900).
o tem escapado a este movimento o proprio
direito penal, reclamando-se insistentemente a abo-
lição da desegualdade em que este direito colloca
os dous sexos perante o crime de adulterio 1.
1
Loubert, Le probléme des sexes, pag. 223 e seg.; Turgeon, Le
féminisme français, tom. I, pag. 342 e seg.; Novicow,
L'affranchissement de la femme, pag. 89 e seg.; Sr. Dr. Vieira de
Castro, Da advocacia, pag. 202 e seg.
13
— 194 —
§ 2.º Os
filhos
SUMMÀRIO : 85. Os filhos no direito primitivo. 86. Os
filhos no período preromano do direito peninsular. — 87. Os
filhos no direito romano. 88. Os filhos no direito ger-
manico. 89. Os filhos no direito visigodo. 90. Os
filhos no direito da Reconquista. 91. Os filhos no direito
português. Direito antigo. — 92. Direito moderno.
85. Os filhos no direito primitivo. É muito
obscura a condição jurídica dos filhos no direito
primitivo, por causa das duvidas que ha ainda na
sciencia a respeito da organização da família primitiva.
O homem primitivo não devia ser indifferente ao
bem estar dos seus filhos. É por isso que os deveres
paternos se encontram reconhecidos em todos os
povos, ainda os de civilização mais inferior. Os
miseraveis Bock-Veddas de Ceyo, segundo
Emmerson Tennent, reconhecem a obrigação marital e o
dever de sustentar as suas famílias.
É provavel que os filhos se tornassem independentes,
logo que se encontrassem em condições de se bastarem
a si proprios. Mas o domínio paterno não deveria tardar a
apparecer como meio de utilizar foas tão uteis na
lucta contra a natureza e contra os outros homens,
tanto mais quanto é certo que são profundamente fortes
as tendencias egoístas dos povos primitivos.
O patrio-poder accentua-se depois no sentido de
tornar cada vez mais subordinada e dependente a
condição do filho, transformando-se num verdadeiro
195 —
direito de propriedade. Recorde-se que a palavra
pae em sanskrito significa senhor 1.
86. Os filhos no período preromano do direito
peninsular. São muito escassas as noticias a res
peito da condição dos filhos no período preromano
do direito peninsular.
Suppõe-se que, entre os iberos, existia um patrio
poder similhante ao romano, e por isso a condição
dos filhos não devia ser indifferente da que elles
tinham naquelle direito. O pae exerceria um dominio
absolnto sobre toda a família e por conseguinte
sobre os filhos.
Os filhos podiam ser adoptivos, visto Diodoro da
Sicília dizer que os barbaros, comprehendendo nelles
provavelmente os habitantes da Península hispanica,
praticavam a adopção, do mesmo modo que Juno
fez a Hercules, simulando um parto.
A condição subordinada dos filhos durava toda a
vida, visto estes não se poderem fartar ao patrio
poder, nem pelo matrimonio, nem pela emanci-
pação
2
.
87. Os filhos no direito romano. Os filhos
tinham uma capacidade jurídica muito limitada entre
os romanos, como consequencia do caracter que
assumia a patria potestas neste povo. Para se apre-
1
Alessandra Maironi, Ragione fondamentale dell' instituto
delia patria potestá, pag. 50 e seg.; Westermarck, Le matriarcat,
nos Annales de l'institut internationale de sociologie, tom. II,
pag. 133 e seg.
2
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espana goda, tom. I, pag. 17 e seg.
— 196 —
ciar bem a condição juridica das pessoas in patria
potestate, torna-se necessario estudar este poder
relativamente á pessoa dos filhos e relativamente
aos seus bens.
A) Relativamente á pessoa dos filhos, o direito
romano levava o sen rigor quasi a assimilar os
filhos ao escravo, na subordinação á patria potestas.
Durante seculos, diz Von Ihering, o patrio poder foi,
quanto ao seu objecto e quanto ao seu caracter,
assimilado, com pequenas differenças, ao poder domi-
nical. É por isso que o pater-famílias tinha um
poder absoluto e exclusivo sobre a pessoa dos filhos,
que se revelava claramente: a) no direito de vida e
morte; b) no direito de os vender; c) e no direito
de os expôr.
a) Direito de vida e morte. Este direito não
pode ser contestado, em face dos numerosos teste-
munhos que attestam a sua existencia. Poderosas
garantias moraes reduziam este direito aos limites
racionaes, fazendo com que o pater-familias se com-
portasse como um magistrado e não como um des-
pota. Entre essas garantias, devemos mencionar a
do pater-familias não empregar este rigor extremo
sem ouvir o conselho dos parentes proximos ou de
pessoas notaveis. À opinião publica tambem
estava vigilante para censurar o pater-familias que
abusasse deste direito tão violento e primitivo...
Em todo o caso, esses abusos appareceram com
a dissolução dos costumes que accusa o Imperio, e
por isso a lei o ponde deixar de intervir para os
cohibir. E assim se chegou a estabelecer que,
quando se verificassem factos exigindo a applicação
da pena de morte, o pater-familias devia apresentar
a accusação perante o magistrado, como o unico
que tinha o direito de a pronunciar. O termo
— 197 —
desta evolução encontra-se na constituição de Cons-
tantino, decidindo que o paler-familias que matasse
o seu filho fosse punido como o parricida (cod. xI,
16, 1).
b) Direito de venda. O pae linha o direito de
vender o filho a um terceiro mediante a mancipão.
Dahi derivava para o adqnirente um poder especial
sobre o filho chamado mancipium, e que o collocava
numa condição analoga á do escravo, embora tem-
porariamente e sem prejuízo da sua ingenuidade.
As Leis das XII Taboas, porem, estabeleceram que
o filho se tornava livre, desde o momento em que
elle tivesse sido vendido tres vezes.
A explicação desta disposição encontra-se no facto
do pae não poder vender o filho seo até ao termo
dum lustro, não representando, por isso uma tal
venda uma alienão definitiva do poder patrio, mas
a sua suspensão momentanea, constituída pela loca-
ção do filho. Logo que cessava o mancipium, revivia
o patrio poder, e por isso a Lei das XII Taboas,
para evitar que o paler-familias, alienasse o filho
constantemente, no termo de cada lustro, restringiu o
exercício deste direito a tres vezes. Como a Lei das
XII Taboas fallava unicamente de filho, a juris-
prudencia, interpretando á letra o texto da lei,
decidiu que relativamente ás filhas e aos netos uma
mancipatio produziria o mesmo resultado.
Com o tempo, o direito de venda, sob a fórma da
mancipação, foi-se restringindo até que desappa-
receu. Subsistiu o direito de venda, sem a forma
antiga, limitado pelos jurisconsultos classicos ao
caso de extrema miseria do pae e por Constantino
aos filhos recemnascídos.
c) Direito de exposição. 0 paler-familias podia
abandonar os seus filhos, expondo-os. Este
direito
— 198 —
não foi retirado ao pater-famílias, nas diversas
phases por que passou o direito romano; os effeitos
juridicos dessa exposição é que variaram, estabele-
cendo Constantino que o filho exposto ficasse sujeito
ao poder de quem o recolhesse, e declarando-o
Justiniano sui juris.
B) Relativamente aos bens, as pessoas in patria
potestate o podiam ter um patrimonio proprio,
entrando no patrimonio do pater tudo o que ellas
adquirissem. Havia, pom, sob este aspecto, uma
differença profunda entre a condição do filho e a do
escravo, visto os filhos serem considerados como
tendo uma especie de compropriedade sobre os
bens do pae, paralysada por effeito da patria potes-
tas, e que se manifestava depois da morte daquelle.
O antigo rigor sobre esta materia foi-se atte-
nuando a ponto de, no tempo de Justiniano, se
admittir que tudo o que o filho adquirisse lhe ficava
pertencendo como proprio, com exceão dos bens
que lhe fossem confiados pelo pae, pois estes cons-
tituíam para o filho um peculio analogo ao do
escravo.
Primeiramente havia unicamente o peculio profe-
cticio, constituído pelos bens confiados pelos paes
aos filhos e sobre que estes tinham a simples
administrão. Depois, appareceram os peculios,
castrense, constituído pelos bens adquiridos na vida
militar, quasi-castrenst, formado pelos bens obtidos
no exercido das profissões liberaes, e adventício,
tendo por objecto todas as outras adquisições.
Admittiu-se sobre todos estes peculios o direito de
propriedade dos filhos. Este ultimo peculio foi
estabelecido por Justiniano.
O patrio poder unicamente terminava pela eman-
cipação e pela adopção. No direito justinianeu,
— 199 —
porem, a adopção só produzia este effeito, quando
o adoptante era um ascendente do adoptado 1.
88. Os filhos no direito germanico. O filho
eotre os germanos encontrava-se numa condão
jurídica símilhante á que tinha entre os romanos.
Não era, porem, egual, porquanto o mundium ger-
manico tinha mais o caracter dum direito e dum
dever de protecção, do que a physionomia dum
verdadeiro poder, como entre os romanos.
Era por isso que o patrio poder germanico não
absorvia inteiramente a personalidade judica do
filho, observando até Tacito que entre os germanos
o filho era pars domus. Lá estava tambem o con-
selho dos parentes exercendo uma especie de tutela
sobre o filho, restringindo o poder patrio, e prote-
gendo-os contra os seus abusos.
O poder patrio tinha por origem o mundium que
o marido exercia sobre a mulher, devendo os filhos
pertencer-lhe assim como esta lhe pertencia. É por
isso que os filhos nascidos fora do casamento não
estavam sujeitos ao mundium do pae. Pela mesma
razão, todos os filhos procreados pela mulher fica-
vam sob o mundium do marido, embora fossem
adulterinos.
0 pae tinha o direito de expôr os filhos, quando
não quizesse admittil-os a fazer parte da falia.
Cessava, porem, este direito, desde o momento em
que tivesse sido dado o nome ao filho, o que acon
tecia dentro dos nove dias posteriores ao nasci-
1
Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 129 e seg.;
Bry, Príncipes de droit romain, pag. 58 e seg.; Edouard Cuq,
Institutions juridiques des romains, tom. I, pag. 154 e seg.; Von
Ihering, L'esprit du droit romain, tom. II, pag. 178 e seg.
— 200 —
mento, e se fazia com uma especie de baptismo,
immergindo-o na agua e lançando-lha sobre a
cabeça. O pae tinha tambem o direito de vender o
filho e até de o matar, como entre os romanos.
Alguns escriptores, como Glasson, intendem que
os paes não tinham entre os germanos o direito de
vender os filhos, nem o poder de vida e morte sobre
elles. A historia, porem, apresenta exemplos tio
frizantes do exercício destes direitos entre os ger-
manos, que se não pode duvidar da sua existencia.
Glasson, mesmo em face desses factos, não tem
outro meio de resolver a difficuldade senão dizendo
que elles constituem abusos e imposições.
A filha sabia do mundium do pae pelo casamento,
visto ella ficar sujeita ao do marido. Relativamente
ao filho, o patrio poder tambem não era perpetuo,
não sendo necessaria a emancipação para o fazer
cessar. Desde o momento era que o filho contra-
hisse o matrimonio e estabelecesse casa propria,
cessava por este facto o patrio poder. O filho que
que constituía família em casa propria, toroava-se
homo suae potestatis, deixando, desde este momento
por diante, o pae de responder por elle 1.
89. Os filhos no direito wisigothico. A condição
jurídica dos filhos melhorou consideravelmente no
direito wisigothico.
Abrogou-se expressamente o direito que os paes
tinham de vender os filhos, estabelecendo-se que
aquelles que os adquirissem perdessem o pro da
venda e o tivessem direito algum sobre elles (cod.
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 199 e seg.;
Glasson, Histoire du droit et des institutions de la France, tom. II,
pag. 37 e seg.
— 201 —
wis., liv. v, tit. Iv, 1. 13). Àlguus escriptores, como
Viollet, sustentam que foi em vão que estabeleceu
esta disposição, se bem que os argumentos que este
historiador apresenta para fundamentar tal afirma-
ção, não se refiram á Península.
Desta prohibição se deduz que os paes não
tinham o direito de vida e morte sobre os filhos.
Mas, que este era o direito wisigotbico ainda deriva
doutra lei em que se declara que nada ha peor do
que os paes que não têem piedade e matam os filhos,
impondo, por isso, aos que tal fizeram a pena de
morte (cod. wis., liv. vI, tit. Iv, 1. 7).
Permittia-se, porem, a morte das filhas quando
ellas fossem surprehendidas em relações carnaes com
um homem. Esta excepção explica-se pela grande
severidade com que se puniam no direito germanico
os delictos contra a castidade.
Mas, se aos paes se negava o direito de vida e
morte, reconhecia-se-lhes o poder necessario para a
direcção, correcção e educação dos filhos. Este
poder tambem se extendia aos avôs relativamente
aos netos. Mas nem os paes nem os avôs podiam
desherdal-os sem causa grave (cod. wis., liv. Iv,
tit. v, 1.1).
0 patrio poder terminava pelo casamento dos filhos
effectuado com todos os requisitos legaes, e tambem
por o filho chegar aos vinte annos de edade, se
vivesse separado do pae com annuencia deste. A lei
privava do patrio poder aquelle que abandonava o
filho 1.
1
Paul Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 501;
Chapado Garcia, Historia general del derecho espanai, pag. 184
e seg.; D. Juan Sempere, Historia del derecho espanol, pag. 103
e seg.
— 202 —
90. Os filhos no direito da Reconquista. A con-
dão dos filhos na Reconquista continua a melhorar
sob o ponto de vista das pessoas, mas peora sob o
ponto de vista das cousas.
Effectivamente, se sob o ponto de vista das pessoas,
os filhos estavam sujeitos ao poder do pae, muitas
eram as limitações que se estabeleciam a este poder,
para que elle não podesse degenerar num despotismo
intoleravel. É por isso que os foraes prohibem ao
pae vender os filhos, dal-os em refens, maltractal-os,
feril-os, etc. São até castigados com muito rigor os
paes que commettem estes excessos.
Os Fueros apresentam a particularidade de que
pode dar-se aos filhos, sob o patrio poder, tutela,
desde o momento em que os paes descuidem a sua
educação, ou comprometiam a sua vida ou a sua
fortuna. Esta tutela era para menores de doze
annos e era exercida pelos parentes mais proximos,
exigindo-se-lhes prestação annual de contas e res-
ponsabilidade no caso de administração descuidada.
Sob o ponto de vista dos bens, a condição do
filho peorou, porquanto admittiu-se a doutrina de
que o filho, emquanto estivesse sob o patrio poder,
não podia ter bens proprios, em diametral opposição
com o systema do direito romano e da legislão
wisigothica. Tudo quanto os filhos ganhassem sob
o patrio poder era dos paes, não se admittindo
peculio algum.
A unica forma de terminar o patrio poder era o
casamento dos filhos 1.
1 Chapado Garcia, Historia generale del derecho espanol, pag.
358; Salvador del Viso, Lecciones elementales de Historia y de
derecho civil, mercantil y penal de Espana, part. I, pag. 218.
— 203 —
01. Os filhos no direito português. Direito antigo.
A condição juridica dos filhos seguiu a evolução
que encontramos realizada no direito peninsular, no
que diz respeito ás suas pessoas. E' por isso que
como diz Mello Freire, os filhos se encontraram
submettidos ao poder do pae, mas não ao seu domí-
nio, como no direito romano.
Nunca foi admittido entre nós o jus vitae et necis,
mas sómente o de castigar moderadamente os filhos
(Ord., liv. v, tit. xxxvI, § 1.°). Podia o pae. no uso
deste direito, prender o filho em casa, sem incorrer
em crime de carcere privado (Ord., liv. v, tit. xcv, §
4.°). Se o pae tractasse deshumanamente os filhos,
os corregedores do crime na rte forma-vam-lhe
summario ex officio e sentenciavam no em Relação
em certas penas (Res. de 10 de julho de 1751). Se
os filhos fossem incorrigíveis, o pae podia entregá-
los aos magistrados de policia para os fazerem
recolher á cadeia por tempo razoavel, obrigando-se a
sustenta-los (Ord., liv. v, tit. xxxvI,
Nunca se permittiu tambem o direito de vender
os filhos. Não aconteceu assim noutros países da
Europa, nomeadamente em França, onde nos appa-
recem documentos do seculo xv nos quaes filhos de
seis annos são alienados pelo pae.
Não havia tambem o direito dos paes imporem
casamentos aos filhos, embora fosse necessario o seu
consentimento para as nupcias. E' por isso que na
lei LXXI de Affonso III se estabelece que não era
licito desherdar as mulheres que casam contra von-
tade dos paes. Esta orientão do nosso direito foi
depois modificada, no sentido dos paes poderem
— 204 —
castigar os filhos que casam sem consentimento,
com a pena de desherdação e perda de alimentos
(L. de 19 de junho e 29 de novembro de 1775 e
Ass. de 29 de abril de 1775, §§ 2.º, 6.° e 1
o
),
Apesar do filho se encontrar numa condão ju-
dica muito superior á que tinha no direito romano,
pelo que dizia respeito á sua pessoa, ainda assim
admittia-se que elle podia ser reivindicado, como
uma cousa, pela acção ad exhibendum ou de furto,
de outrem que o tivesse subtraído. Parecia, deste
modo, que o poder do pae sob o filho tinha o
caracter de verdadeiro domínio, que revestiu no
direito romano. Mello Freire não deixou, porem, de
notar que esta acção não se fundava no domínio
civil, mas no direito de sangue, de tutela e de
família.
A condão judica dos filhos, relativamente aos
bens, soffreu a influencia do direito romano, mol-
dando-se quasi inteiramente por este direito. Fez-se
a distinão dos peculios, como no direito romano,
variando, em harmonia com as normas deste direito,
os poderes attribuidos ao pae e ao filho sobre elles.
Não deixou tambem de actuar na elaboração da
theoria dos peculios entre s a doutrina dos glo-
sadores, que alargaram, alem dos limites admittidos
pelo direito romano, o conceito de militia e de
peculium castrense e quasi castrense. Desviou-se assim
a nossa legislão da orientão seguida pelo direito
peninsular no período neogodo, tendente a negar ao
filho sob o patrio poder a posse de bens proprios
(Ord., liv. III, lit. Ix, § 3.°; liv. Iv, til. xcvII ).
O filho não podia estar em juízo, nem obrigar-se
sem o consentimento do pae. O direito canonico
exerceu nesta materia uma influencia benefica, por-
— 205 —
quanto permittiu ao filho estar em juizo contra o
pae por causas diversas das dos peculios, contraria-
mente ao que determinava o direito romano. É por
isso que as Ordenões permittiram aos filhos esta-
rem em juizo contra o pae, não por causa dos
peculios, mas tambem por alimentos e emancipação
(Ord., liv. III, tit. IX).
As Ordenações affastaram-se do direito romano,
admittindo que o patrio poder cessava o pela
emancipação, mas lambem pelo casamento do filho
(Ord., liv. I, tit. 88, §6.°) 1.
92. Direito moderno. A condição jurídica dos
filhos tinha melhorado profundamente no decurso da
evolução. Effectivamente, como mostra Viollet, pri-
meiramente, o direito de vida e de morte, o direito
de exposição e de venda e o direito de correão
confundiam-se na unidade do poder absoluto. No
fim do longo cyclo historico que percorremos,
subsiste unicamente este ultimo direito.
Apesar, porém, desta transformação, a condição
jurídica do filho encontrava-se accentuadamente
eivada da influencia das ideias romanas, que os
praxistas reproduziam sem grande criterio, visto
ellas se encontrarem cada vez mais em desharmonia
com as condições das sociedades modernas.
Foi o Codigo de Napoleão que veio emancipar a
condição jurídica dos filhos desta influencia do
1
Portugaliae monum. hist, leges et consuetudines, tom. I, pag.
237 e seg.; Sclopis, Histoire de la législation italienne, tom. II,
pag. 99 e seg.; Nani, Storia del diritto privato italiano, pag, 203 e
seg.; Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, tom. II, pag. 262
e seg.; Mello Freire, Institutiones juris civilis lusitani, tom. II, pag.
101 e seg.
— 206 —
direito romano, organizando o patrio poder dum
modo mais libera), em harmonia com os princípios
dos costumes locaes. Tornou-se então o patrio
poder verdadeiramente um instituto destinado exclu-
sivamente á tutela dos filhos e á protecção dos seus
interesses, perdendo completamente o caracter
egsta e oppressivo que a ahi linha conservado
mais ou menos accentuadamente. De modo que o
patrio poder, embora ainda designado com um
nome romano, adquiriu um conteudo diverso. A
dependencia do filho é uma consequencia da edade e
da sua incapacidade para se administrar, pertencendo
ao pae unicamente a obrigação de o proteger e
auxiliar. De modo que o patrio poder é um poder
tutelar estabelecido no interesse daquelle que lhe
está sujeito, e não no interesse de quem o exercita.
A maior reforma que, em harmonia com as novas
ideias, realizou o Codigo de Napolão, foi o consi-
derar a maioridade uma das causas da extincção do
patrio poder, pois deste modo fez desapparecer duma
vez para sempre o patrio poder no sentido romano.
E assim a realeza domestica e a realeza politica
cahiram feridas pelo mesmo machado da revolução.
Esta reforma foi admittida pelos codigos
modernos e nomeadamente pelo nosso codigo civil
(art. 170.°). antes o decreto de 13 de maio de
1832 e a Nov. Ref. Jud. (art. 453.°) tinham seguido
egual doutrina.
A nova funão attribuida ao patrio poder exige
tambem a abolição do usufructo legal dos paes
sobre os bens dos filhos, que repugna á indole
daquelle poder, pois tal instituto o se pode
considerar estabelecido senão em beneficio dos
paes. A revolução tinha effectivamente abolido o
direito de usufrocto legal em França. Mas os
redactores do Codigo de Napoleão restauraram-no
como uma recompensa e
— 207 —
indemnização dos trabalhos e sacrifícios que
soffrem os paes para crear e educar os filhos.
Mas, esta razão não é justa, porque é dever natu-
ral e jurídico dos paes o manter, educar e crear a
prole, seodo por isso inadmissível toda e qualquer
recompensa, que vem, alem disso, humilhar e depri-
mir a auctoridade patria, conferindo uma especie
de salario pelo seu exercido. O codigo austríaco
deu sobre este assumpto um liberalissimo exemplo,
digno de ser imitado, não reconhecendo o usufructo
legal dos paes sobre os bens dos filhos (artt. 149.º
e 154.°) 1.
1
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 499 e seg. ;
Cavagnari, Nuovi orizzonti del diritto civile, pag. 255 e seg.; O.
Secchi, Per 1'abolizione dell'usufrutto legale dei genitori sui beni
dei figli, na Scienza del diritto privato, vol. II, pag. 704 e seg.
— 208 —
SECÇÃO III
Pessoas com capacidade jurídica limitada em
virtude de causas religiosas
§ 1.º
Judeus
SUMMARIO : 93. Os judeus no direito romano. 94. Pre-
donio dos judeus na Península. 95. Condição jurídica
dos judeus entre os wisigodos. Incapacidades com que foram
feridos. 96. Perseguições de que foram objecto. 97.
Os judeus na Reconquista. 98. Os judeus no direito
português. Regimen de tolerancia. 99. Regimen de per-
seguição.
93. — Os judeus no direito romano. — 08 judeus,
desde que triumphou o christianismo, comaram a
ser tractados com muito desfavor pela legislão.
Contribuíram para isso o fanatismo religioso, apon-
tando este povo como um deicida, digno da maior
aversão, o modo hypocrita, disfarçado e astuto como
elle procedia para com os christãos, e o estado eco-
nomico prospero, que sempre o distinguiu no seio
das sociedades.
Esse desfavor manifesta-se em varias disposi-
ções do direito romano, estabelecidas pelos impera-
dores christãos. Os judeus o podiam viver, como
os outros povos submettidos aos romanos, segundo
o seu direito. No Codigo Theodosiano diz-se termi-
nantemente que os judeus estão sujeitos ás leis
romanas.
Foram feridos dum grande numero de incapaci-
dades. Prohibiu-se-lhes a compra de escravos chs-
— 209 —
tãos, confiscando-se os bens ao judeu comprador,
impoz-se a pena capital, como se fossem adulteros,
aos chrisos que contrahissem casamento com judias
e aos judeus que o contrahissem com christãos, e
retirou-se-lhes o exercio de qualquer cargo publico
na milícia e administração.
Ao mesmo tempo foram tomadas algumas provi-
dencias no sentido de evitar que os judeus fossem
vexados pelos christãos e os cbrisos fossem oppri-
midos pelos judeus. É assim que as constituições
imperiaes punem o incendio das synagogas e das
casas dos judeus, impõem a pena de furto á subtra-
ão das suas cousas religiosas e particulares, e
permittem a este povo o exercício do seu culto, não
podendo construir novas synagogas, mas só reparar
as antigas.
Por outro lado, puniam-se severamente os cbris-
tãos judaizantes, e os judeus que os circumcidavam,
prohibia-se ao pae judeu desherdar, mesmo com
justa causa, o filho convertido ao christianismo, e
castigavam-se os perseguidores do judeu que abra-
çava a religião christã 1.
04. Predonio dos judeus na Península. Os
judeus apparecem na Peninsula hispanica muito antes
das invasões barbaras. Os historiadores perdem-se,
porem, em conjecturas, mais ou menos phantasticas,
quando procuram determinar a epocba certa da sua
chegada à Peninsula. Os escriptores rabbinicos são
aquelles que fazem remontar a tempos mais antigos
a vinda dos seus compatriotas ás Hespanhas. Yshac
1
Nani,
Storia del diritto italiano,
pag. 36; Pertile,
Storia del
diritto italiano,
vol. III, pag. 203 e seg.
14
— 210 —
Cardoso, Immanuel Aboab e Yshac d'Acosta julgam
que essa vinda se effectuou no tempo de Nabucbo-
donosor, rei da Babylonia. Jost sustenta que os
judeus se estabeleceram na Península no tempo de
Salomão. Héfélé opina que viriam, pouco mais
ou menos, cem annos antes de Christo.
Desprendendo-nos, porem, destas conjecturas, o
que não admitte duvida e que Estrabão e Philon
testemunham que no seu tempo os judeus se encon-
travam dispersos por toda a parte. E, relativamente
á Península, ha uma inscrião, que Hubner suppõe
ser do seculo terceiro, em que se faz referencia a
uma Junia, Annia, Antonia ou Licínia judaica. E no
seculo IV eram o numerosos, que o concilio de
Elvira (305 ou 306) se viu na necessidade de tomar
diversas disposões tendentes a reprimir-lhes directa-
mente a acção.
Entre os wisigodos, deveriam os judeus ter adqui-
rido notavel desinvolvimento e preponderancia, como
mostram as numerosas disposições que a seu res-
peito se encontram nos monumentos legislativos deste
peodo historico. As condições da Pensula, por
occasião das invasões, deviam, como nota o Sr. Dr.
Mendes dos Remedios, ter facilitado sobremaneira a
sua expansibilidade. No meio das maiores convul-
sões, quando os povos indígenas numa lucta sem
treguas oppunham uma resistencia tenassima ás
hordas invasoras, que levavam victoriosamente de
vencida as aguias romanas, os judeus mysteriosa-
mente, numa obscuridade que os favorecia, foram
fixando o seu imperio, pedra por pedra, quasi sem
serem presentidos daquelles com que viviam. É que
a populão judaica tornou-se notavel em todos os
tempos e a todas as latitudes, pela sua persistencia
e resignada coragem, acompanhada, ao mesmo
— 211 —
tempo, duma malleabilidade de vida e acções que lhe
permittia accommodar-se a todos os meios 1.
95. Condão jurídica dos judeus entre os wisi-
godos. Incapacidades com que foram feridos. A
condição jurídica dos judeus veio a peorar conside-
ravelmente, sob o dominio dos wisigodos, depois da
soa conversão ao catholicismo. A tolerancia ariana
foi substitda por um regimen oppressivo e violento.
Os judeus foram feridos de quatro incapacidades:
a) a de possuir escravos christãos; b) a de casar
com christãos; c) a de testemunhar contra os cbris-
tãos ; d) e a de exercer cargos publicos.
a) A incapacidade dos judeus para possuir escra-
vos christãos foi consagrada pelo Breviario de Alarico,
em harmonia com as normas da doutrina romana,
mas sem todos os seus rigores. Prohibiu-se aos
judeus a adquisição para o futuro de escravos chris-
tãos, permitindo-se-lhes conservar os que possuíssem
ou os que lhes tocassem por herança, em harmonia
com o que dispunha a constituição de Honorio. A
compra de novos escravos punia-se unicamente
com a concessão da liberdade, como determinava a
constituão de Constantino, pmittindo-se a de Cons-
tancio, que, além disso, confiscava os bens ao judeu
comprador.
Reccaredo limitou-se a pôr em pratica as leis do
Breviario de Alarico. No terceiro concilio de Toledo,
prohibiu-se unicamente aos judeus comprar escravos
christãos, donde se deduz a confirmação das leis
romanas compendiadas naquelle codigo, que lhes
1
Sr. Dr. Mendes dos Remedios, Os judeus em Portugal, vol.
I, pag. 103.
— 212 —
permittiam conservar e transmitlir por herança os
que ja possuíssem (Conc. III de Toledo, can. 14).
No reinado de Sisebuto, pôs-se de parte toda a
tolerancia, estabelecendo-se que, antes do 1.° de julho
de 612, fossem postos em liberdade ou vendidos
todos os escravos christãos que possuíssem os judeus
e reintegrados na plenitude dos seus direitos os
libertos que elles tivessem sob o sen patrocínio.
Os escravos postos em liberdade ficavam sendo
cidadãos romanos, sem dependencia alguma dos seus
antigos senhores.
Os vendidos a christãos tinham de o ser no logar
do domicilio e com o peculio suficiente para se
alimentarem, a fim de que, sob o pretexto de
venda, não fossem condemnados a desterro. Passado
aqnelle prazo, o judeu que possuísse um escravo
christão perdia metade dos seus bens. E, para que
a fraude não inutilizasse a lei, puniam-se o judeu e
o christão, que simulassem emancipação ou venda,
offerecendo-se premios aos delatores o
ingenuos, mas tambem escravos, sendo para estes
a concessão da liberdade (cod. wis., liv. XII, tit. II,
I. 14).
Estas disposições, porem, parece que não tarda-
ram a deixar de ser cumpridas, pois o concilio IV
de Toledo, vinte annos depois, se viu na necessi-
dade de determinar que não era licito aos jndeus
possuir escravos christãos, nem comprá-los ou
adquiri-los por titulo lucrativo (conc. IV de Toledo,
can. 66). O resultado que obteve a prohibição
deste concilio parece que não foi melhor, pois
Recesvindo tornou a repeti-la, com severas penas
sem grande efficacia tambem, visto o concilio X de
Toledo, celebrado poucos mezes depois, prohibir
vender escravos chrisos a judeus, lamentando, ao
— 213 —
mesmo tempo, que os sacerdotes não se abstivessem
de tão execravel commercio (cod. wis., liv. XII,
tit. II, 1. 11; conc. X de Toledo, can. 7).
Ervigio restabeleceu as leis de Sisebuto, dispondo
que, no prazo de 60 dias, a contar de 1 de fevereiro
de 681, deixassem os judeus de possuir escravos
christãos, vendendo-os dentro daquelle prazo, com a
intervenção dos sacerdotes ou dos juízes, para evitar
as fraudes que se pudessem commetter. Se não
fossem vendidos, eram declarados livres, não sendo
permittido aos senhores emancipá-los, como deter-
minava a lei de Sisebuto. Passados aquelles 60 dias,
o judeu que não tivesse cumprido a lei perdia metade
dos seus bens, e se fosse pobre, soffria a pena de
decalvação com mais cem outes (cod. wis., liv. xII,
tit. III, 1. 12, 13 e 16).
As leis de Ervigio foram tão desprezadas como as
dos seus predecessores. Demonstra-o o facto de
Egica prohibir de novo aos judeus a posse de
escravos christãos (cod. wis., liv. xII, tit. II, 1. 18).
É de suppôr, nota Perez Pujol, que a legislão de
Egica o se observasse no reinado de Witiza, e
que as cousas ficassem até á extincção da monar-
chia goda no mesmo em que se encontravam
no tempo de Reccaredo, com as prohibições na
lei, com a tolerancia mais ou menos completa na
pratica.
b) A incapacidade dos judeus para casar com
christãs e das judias para casar com christãos tinha
sem duvida por fim manter a separação entre as
duas ras. Glasson não considera esta prohibão
uma incapacidade propria dos judeus. A Igreja
prohibiu sempre os casamentos entre chrisos e não
christãos e, por isso, se se quizer faltar de incapa-
cidades, é necessario reconhecer que ella era reci-
— 214 —
proca, pois era egualmente prohibido aos christãos
desposar pessoas da religião judaica.
A Lex romana wisigothorum, segundo o direito
romano, impunha a pena capital, como se fossem
adulteros, aos christãos que contrahissem casamento
com judias e aos judeus que o contrahissem com
christãos.
Parece, porem, que nos tempos posteriores não
persistiu o rigorosa e firme a separão das doas
raças. O concilio III de Toledo prohibiu aos judeus
ter mulheres ou concubinas christãs, e dispôs que
os filhos destas uniões fossem baptizados (Conc. III
de Toledo, can. 13). O concilio IV de Toledo orde-
nou que os judeus que tivessem mulheres christãs
fossem admoestados pelo bispo, para que se conver-
tessem, mandando-os separar no caso de elles o
não fazerem (Conc. IV de Toledo, can. 63).
c) Os judeus não podiam testemunhar nas causas
contra os christãos. o podiam fazer nas causas
pendentes entre os da sua raça (cod. wis., liv. xII,
tit. II, 1. 9). A incapacidade de testemunhar era
então considerada uma das mais deshonrosas.
d) Os judeus eram incapazes de exercer cargos
publicos. O Breviario confirmou, interpretando-a, a
Novella III de Tbeodosio, que prohibia aos hebrens
o exercício de todo e qualquer cargo na milicia e
na administração, para que, sob a apparencia do
serviço publico, os judeus se não atrevessem a
vexar os christãos e particularmente os sacer-
dotes.
Ervigio, seguindo esta mesma orientação, prohi-
biu que os judeus exercessem qualquer poder sobre
os christãos, quer de mandar, quer de castigar,
quer de administrar. Exceptuavam-se, porem, os
cargos que o rei conferisse aos judeus, pois nisto
— 218 —
como em tudo tinha mais predomínio a arbitrarie-
dade do monarcba do que o imperio da lei.
0 preceito legal applicava-se, por isso, ás aucto-
ridades subalternas e aos bispos, clerigos e monges,
que deste modo, não podiam confiar aos jadeus a
administração dos bens do fisco ou da Igreja, a fim
de elles não exercerem poder sobre as familias
christãs (cod. wis., liv. xII, tit. III, 1. 17 e 19) 1.
96. Perseguições de que foram objecto. Os
jadeus foram objecto de disposições especiaes, tendo
por fim a sua eliminação pelo baptismo ou pela
expulsão. Sisebuto foi o primeiro rei que ordenou
a expulsão dos judeus que se recusassem a receber
o baptismo. É certo que o edicto deste monarcba
não se encontra no codigo wisigothico, mas não
de haver duvida a respeito deste facto, em face
dos testemunhos que o abonam. A Igreja o appro-
vou este procedimento do monarcba wisigotbico, e
por isso encontramos o concilio IV de Toledo decla-
rando que os não baptizados deviam ser persuadi-
dos e não coagidos a acceitar a chris (Conc. IV
de Toledo, can. 57). Os reis godos posteriores
ordenaram novas expulsões. Chintila determinou
que os judeus não baptizados abandonassem a Hes-
panha. Ervigio fixou o prazo dum anno, a contar
de 1 de fevereiro de 681, para que todos os judeus
se baptizassem, sob pena de açoutes, decalvão,
desterro e confisco dos bens. A Igreja eno já não
era o benevola para com os judeus, e por isso o
concilio XII de Toledo não teve duvida em approvar
1
Glasson, Histoire du droit et des institutions la France,
tom. II, pag. 608 e seg.; Perez Pujol, Historia de las instituciones
sociales de la Espana goda, tom. II, pag. 433 e seg.
— 216 —
estas leis de Ervigio, que foram incluídas no titulo III
livro xII do codigo wisigothico, sob o titulo bysantino
de Novellas (Conc. XII de Toledo, can. 9). As leis
de Ervigio, porem, cumpriram-se muito imperfeita-
mente, e por isso vemos Egica reconhecer a existen-
cia de judeus não baptizados, tomando relativamente
a elles diversas providencias.
Os judeus que recebiam o baptismo eram obriga-
dos pelos canones e pela lei a seguir a christã e
a renunciar aos ritos do seu culto. Os que se con-
servavam fieis à religião christã gosavam de todos
os direitos civis e poticos e de algumas exemões
legaes, como a dos impostos especiaes que pesavam
sobre os judeus (cod. wis., liv. xII, tit. II 1. 13, 14 e
18; Conc. XVI de Toledo, can. 1, 14 e 65).
A condição, porem, dos judeus relapsos era tio
detestavel, como a dos judeus não reincidentes era
favorecida. Os vexames que soffreram os judeus
relapsos chegaram a tal ponto, que se lhes prohibiu
conservar a propriedade das casas, terras, vinhas e
olivaes adquiridos, por compra ou por qualquer
outro meio, dos christãos (cod. wis., liv. xII, tit. II,
1. 18). No tempo das perseguições, porém, os
judeus relapsos gosavam duma tranquillidade que
não tinham os o baptizados. Aquelles podiam
viver socegados, desde o momento em que renovas-
sem a sua profiso de fé, estes tinham de occultar-se
ou de emigrar para os reinos vizinhos.
Procurou-se impedir tambem que os judeus podes-
sem dar livre curso ao seu espirito de proselytismo.
Prohibiu-se-lhes, sob penas rigorosas, intentar a
conversão dos christãos e circumcidar os chrisos,
bem como os descendentes dos hebreus (cod. wis.,
liv. xII, tit. II, 1. 7 e 13; Conc. IV de Toledo, can.
59). Isto não foi sufficiente para conter os
— 217 —
judeus, tornando-se necessario lambem punir 03
christãos judaizantes. Foi o que se fez, chegando-se
a applicar-lhes a peoa de morte e de conosco dos
seus bens (cod. wis., liv. XII, tit. II, 1. 17) 1.
97. Os judeus na Reconquista. A conquista
arabe influiu beneficamente sobre a condição jurí-
dica e social dos judeus. Os emires e califas, em
vez de se orientarem pela politica odiosa dos reis
wisigodos, o concederam ampla liberdade aos
judeus, em harmonia com o direito de guerra dos
musulmanos, mas até os protegeram, dum modo
notavel, sem duvida para corresponder ao auxilio
que elles prestaram á invasão arabe.
Com a tolerancia, floresceram o commercio e a
industria nas communidades hebraicas, attingindo o
mais alto gráo de prosperidade a de Cordova, que,
no dizer do Sr. Dr. Mendes dos Remedios, adquiria
a hegemonia litleraria e scientifica do seu tempo,
eclipsando assim as escolas rabbinicas da Mesopo-
tamia.
A condição dos judeus entre os christãos tambem
se tornou mais favoravel. No meio da anarchia em
que se debateu a Península, os judeus tiveram artes
de se insinuar na população christã, chegando a
adquirir uma grande importancia e um notavel pre-
donio. E, assim, conseguiram pelejar nos exerci-
tos christãos, como soldados, servir de intermediarios
nas allianças e tractados com os musulmanos, ser
estimados pelos reis, que utilizaram os seus servi-
ços, como intendentes, medicos, professores, etc, e
1
Viollet, Histoire du droit civil (rançais, pag. 433 e seg.;
Perez Pujo), Historia de las instituciones socíales de la Espana
goda, pag. 407 e seg.
— 218 —
influir com a sua cultura e actividade no
desinvolvi-
mento intellectual e social da epocha. Não admira,
em face desta situão, que os foraes reconhecessem
aos judeus direitos eguaes aos que tinham os
christãos. Gosavam do privilegio do ro, tendo um
juiz especial, perante quem deviam comparecer os
christãos, quando demandavam um judeu. Affonso VI
admittiu-os a todas as funcções publicas.
Este estado de cousas dura desde o seculo xI ao
xII, que assim constituem verdadeiramente a
edade de ouro do judaísmo na Hespanha. No
seculo xIII, começa o eclipse desta condição, tão
favoravel, dos judeus, reapparecendo as medidas
restrictivas contra elles 1.
98. Os judeus no direito português. Regimen de
tolerancia. O regimen de tolerancia que se tinha
adoptado nos Estados da Reconquista a respeito dos
judeus, o podia deixar de se fazer sentir em Por-
tugal. Essa tolerancia deu origem até a continuas
queixas dos prelados do reino ao Papa, baseadas
em que os judeus se encontravam revestidos de
cargos publicos, exercendo auctoridade sobre os
christãos, contra as leis canonicas, não eram com-
pellidos a trazer signaes por onde se distinguissem,
nem a pagar zimos á Igreja, como era de direito.
A situão mudou um pouco com Affonso IV,
embora as medidas mais importantes tomadas por
este monarcha fossem relativas a impostos e a usu-
ras. Os judeus foram involvidos numa rede muito
1
D. Rafael Altamira, Historia de Espana y de la civilizacion
espanola, tom. I, pag.. 253, 394 e 407; Sr. Dr. Mendes dos
Remedios, Os judeus em Portugal, tom. I, pag. 96 e seg.
— 319 —
espessa de impostos, visto pagarem um tributo geral
ou capitação desde a idade de sete annos, quando
se tractava de mulher, e dos quatorze, quando se
tractava de varão, e terem todos os actos da sua
vida, ainda os mais insignificantes, abrangidos pelo
fisco. Como diz o Sr. Dr. Mendes dos Remedios,
quer comprasse, quer vendesse, fosse para uso
proprio ou para alheio, o judeu pagava sempre e a
todos os respeitos. O vinho, a carne, o peixe, o
mel, o azeite, a cera, a prata, o ferro, o cobre, o
ouro; em grandes ou pequenas quantidades; para
consumir, para trocar, para vender; fosse como e
de que maneira fosse, pagavam uma taxa estabele-
cida, tendo a lei descido a especialidades, que;
attendendo muito embora ás circumstancias do
tempo, fazem ainda hoje sorrir.
Estas medidas de rigor não deviam agradar aos
judeus, visto não estarem habituados a ellas, sendo
natural que alguns se lembrassem de sahir do reino.
Mas Affonso IV impediu que os judeus lançassem
mão deste recurso, estabelecendo que nenhum judeu
com a fortuna de quinhentas libras ou dahi para
cima saísse de Portugal, sem sua permissão, sob
pena, não o fazendo, de lhe serem confiscados todos
os bens e ficarem á mer do rei. Podiam os judeus
ainda lembrar-se de se indemnizarem, aggravando
as usuras sobre os christãos. Mas, o monarcha
obviou a este expediente, prohibindo inteiramente
a usura.
Parece, que ainda assim os judeus descobriram
meios de se tornar mais gravosos aos christãos, e
isto obrigou o rei a procurar atalhar o mal cerce,
dispondo que, se os christãos fizessem contractos
com os judeus, ficando-lhes obrigados por alguma
cousa, em qualquer tempo que fossem demandados,
— 220 —
allegassem qae não tinham recebido o que se lhes
pedia.
D. João I tomou medidas de protecção em favor
dos judeus, sempre expostos ás consequencias da
animosidade do povo contra elles. Probibiu que os
christãos os ferissem ou matassem, lhes roubassem
os dinheiros ou os bens, lhes impusessem obrigões
novas, sem auctorizão do legitimo poder daquelles
a quem estavam subordinados, os incommodassem
nas suas festas e solemnidades, os. obrigassem a
trabalhos a que não Unham direito, ou fossem pro-
fanar os seus tumulos.
D. Duarte seguiu uma orientação diversa do seu
antecessor, e por isso ordenou que o judeu não
empregasse ao seu servo christão algum, sob pena
de pagar, pela primeira vez que infringisse a lei,
cincoenta mil libras; pela segunda, cem mil; pela
terceira, tudo quanto tivesse; devendo ser açoutado
publicamente, quando o posssse bens para pagar
esta multa. Ao mesmo tempo, tomou varias provi-
dencias para que os judeus não entrassem em casa
dos christãos, nem os christãos em casa dos judeus.
Mas a peor disposição que este monarcha tomou
contra os judeus foi a de prohibir, sob penas severas,
aos senhores grandes honrados que tivessem em suas
casas, quintas e logares, por seus vedores,
mordomos, recebedores, contadores ou escrivães,
indivíduos judeus de qualquer condão que fossem.
D. Affonso V continuou a orientação de D. Duarte,
confirmando as leis relativas aos signaes vermelhos
que os judeus deviam trazer, ao encerramento nas
judiarias, á incapacidade de exercerem os altos
cargos da corôa e os officios que outrora desem-
penhavam, como os de almoxarifes, mordomos,
thesoureiros, etc. Estas disposições passaram para
— 221 —
as Ordenões Affonsinas (Ord. Aff., liv. II, tit. LXVI,
LXVII, LXVIII, LXX, LXXIII, LXXIV, LXXV, LXXVI, LXXVII,
LXXX, LXXXII, LXXXV, LXXXVI, LXXXIX, XC e XCIV).
Em lodo o caso, os judeus regiam-se entre si pelo
seu proprio direito, tendo juizes privativos, embora
a nomeão destes estivesse dependente da nomeação
regia. No tempo de Affonso III já consta, por um
documento de Bragança de 1278, que um rabbi-r
dos judeus tomava conhecimento das suas causas
civis. Nas Ordenações Affonsinas, encontra-se defi-
nida a jurisdicção do rabbi-mór e regulado o modo
como elle e os seus ouvidores devem usar delia.
Em face dessas disposições,-se que os feitos civeis
e crimes entre judeu e judeu eram attribnão do
rabbi-mór e dos seus ouvidores, havendo, porém,
uma certa ordem de aggravos e appellões que com-
petiam ao rei (Ord. Aff., liv. II, tit. LXXXI e xcII) 1.
99. Regimen de perseguição. D. João II come-
çou por não ser hostil aos judeus. É por isso que
nas côrtes de Evora de 1481 foram arguidas as
riquezas e ostentação dos judeus e o favor com que
eram tractados, sem que o monarcha desse grande
attenção a estas arguições.
A expulsão dos judeus pelos reis catholicos, D.
Fernando e D. Isabel, em 1492, veio abrir um novo
período de desgraça á raça maldicta. Muitos judeus
vieram para Portugal, onde D. Jo II lhes permittiu
1
Viterbo, Elucidario, tom. I, pag. 131; Coelho da Rocha,
Ensaio sobre o governo e a legislação de Portugal, pag. 94 e seg.;
Sr. Dr. Guimarães Pedrosa, Introducção ao estudo do direito
privado internacional, pag. 150 e seg.; Sr. Dr. Mendes dos
Remedios, Os judeus em Portugal, tom. I, pag. 105 e seg., 137 e
seg., 159 e seg., 197 e seg., 375 e seg.
— 222 —
entrar, com a condição de pagarem oito cruzados
por cabeça e de se não demorarem alem de oito
mêses, sob pena de ficarem escravos. Poucos se
puderam retirar no prazo marcado, e o governo, o
insistindo na pena de escravidão, tirou-lhes deshu-
manamente os filhos para os remetter á ilha de S.
Tho, onde foram dizimados em grande parte,
sobrevivendo muito poucos, que, com o tempo, se
tornaram ricos colonos.
Mas mais duro e cruel golpe iam soffrer dentro
em breve os judeus. D. Manuel iniciou o seu reinado
dando aos judeus emigrados a liberdade e protecção
de que gosavam os naturaes.
Esta boa disposição do monarcha não durou
muito, em virtude da exigencia da expulsão dos
judeus do reino, formulada pelos reis catholicos,
como condição do casamento com a sua filha D. Isa-
bel. E D. Manuel, deixando-se levar mais pelos
dictames do coração do que pelos criterios da
tolerancia politico-religiosa que primeiramente accei-
tou, adberiu ao plano dos reis catholicos, tendente
a tornar o decreto de 1492 extensivo a toda a Pen-
sula. É por isso que o contracto do casamento
exarava a clausula expressa da expulsão dos judeus
do reino.
Realizado o casamento, foi o negocio proposto em
conselho, onde se dividiram as opiniões, sendo a
conservação dos judeus defendida largamente com
motivos de ordem economica, politica e social. O
rei não quiz ouvir as considerações dos ministros
mais prndentes e illustrados, decretando a expulo
dos judeus em 5 de dezembro de 1496. Foram,
assim, mandados sair do reino, a outubro seguinte,
todos os judeus quer naturaes, quer emigrados, que
recusassem baptizar-se, sob pena de morte e con-
— 223 —
fiscação de todos os bens. Esta lei foi depois
compilada nas Ord. Man. (Liv. II, tit. XLI).
D. Manoel parece que foi illudido na sua especta-
tiva, de que os judeus prefeririam, aos acasos da
fortuna, a crença catholica. E, por isso, vendo o
grande numero que se preparava para sair do reino,
mandou-lhes tirar os filhos de menos de quatorze
annos, para serem baptizados e doutrinados na
catholica, procedimento tão barbaro que o pôde
escapar á censura do bispo D. Jeronymo Osorio,
apesar da sua admiração por tudo que era obra de
D. Manuel.
Muitos, não tendo meios de escapar a tantas
violencias, acceitaram o baptismo. D. Manuel garan-
tiu-lhes a situação, expedindo a portaria de 30 de
maio de 1497, em que se concediam largos
privilegios aos judeus convertidos, entre os quaes
avultava o de ninguem poder inquirir dos seus
procedimentos sobre materia religiosa durante o
peodo de vinte annos, passados os quaes, se
algum fosse accusado, sê-lo-ia perante os tribunaes
civis e pelas formas adoptadas nos crimes
communs. Além disso, o monarcha dava-lhes uma
amnistia geral, perdoando-lhes todos os crimes e
erros que aahi tivessem commettido.
Os judeus, porem, o se deixaram illudir, em
virtude do procedimento dubio e inconstante do
rei e da attitude cada vez mais ameaçadora do
povo, e por isso aproveitaram o armistício para
pórem a salvo suas pessoas e bens. Foram
publicadas varias providencias para impedir os
inconvenientes da saída dos judeus do reino,
devendo mencionar-se o alvará de 24 de abril de
1497, determinando que nenhum chriso novo dos
judeus que se converteram pudesse sair do reino
por mar ou por terra sem licença e
— 224 —
mandado de el-rei, sob pena de perda de todas as
fazendas e bens moveis ou de rais, onde quer que
fossem achados, e de nau ou naus e navios que os
levassem, e de qualquer outra pena-crime que bem
lhe parecesse (Ord. Man., liv. v, tit. LXXXII). Apesar
destas providencias, os judeus encontraram meios
de sair do reino, o sendo, porem, sempre felizes
nas suas tentativas, visto os surprehendidos em
flagrante delicio do desprezo da lei terem sido
perseguidos com rigor.
A situão dos judeus conversos foi-se aggravando
cada vez mais, em virtude do odio crescente contra
elles, principalmente depois que se radicou a con-
vião de que todas as calamidades que appareciam
sobre a terra eram devidas ao facto dos judeus
conversos o serem bons christãos e de jndaizarem
secretamente. Eram appellidados por insulto judeus,
christãos novos, marranos ou confessos e muitas das
suas aões, perfeitamente indifferentes, eram consi-
deradas como manifestões da pratica da sua antiga
religião. Este estado do espirito popular provocou
o motim de Lisboa de 4507, em que foram mortos
mais de dois mil, e que D. Manuel fez depois punir
com todo o rigor. Para cumulo da sua desdita,
appareceu depois o tribunal da Inquisição, que foi
aproveitado como meio de os perseguir com mais
solemnidade, e cuja influencia sobre a nossa vida
juridica teremos occasião de apreciar.
Por agora, resta-nos dizer que com a expulo dos
judeus e as perseguições que se lhe seguiram, Por-
tugal soffreu um abalo profundo na sua economia,
visto ficar privado de elementos muito favoraveis ao
desinvolvimento da industria, do commercio e da
sciencia. Effectivamente, os judeus affirmaram se
na Península por uma actividade prodigiosa, pois,
— 225 —
ao passo que cultivavam com esmero as artes e as
sciencias, fundavam e alimentavam fabricas, desin-
volviam as relões commerciaes numa larga escala,
com as nações estrangeiras, exploravam as minas
de ouro, prata, ferro e antimonio, impulsionando
um brilhante movimento economico e social, que
soffreu uma forte depressão com a sua expulsão.
Ê certo que algumas vezes abusaram, toruando-se
prepotentes e oppressivos, mas, para cohibir taes
abusos, o era necessario recorrer a uma medida
tão extrema e radical. Esta medida, nota, com toda
a razão, o Sr. Dr. Mendes dos Remedios, sobre ser
impolitica era inopportuna. Precisamente, quando o
Oriente nos abria as suas portas e as descobertas
dos portugueses faziam surgir mundos novos, que
nos forneciam os productos do seu feracissimo solo,
quando Lisboa podia tornar-se a chave de todo o
commercio e attrahir a si a importancia que a tor-
nasse dominadora e soberana, D. Manuel punha ra
do reino aquelles elementos que para tal fim mais
lhe podiam aproveitar. O deslumbramento do ouro
cegou-o. Para elle sobrava. Que lhe importava os
que depois viessem ? 1.
1
Sr. Dr. Mendes dos Remedios, Os judeus em Portugal, tom.
I, pag. 243 e seg.; Coelho da Rocha, Ensaio sobre o governo e a
legislação de Portugal, pag. 145 e seg.; Alexandre Herculano,
Historia do estabelecimento e origem da Inquisição, tom. I, pag. 102
e seg.
15
— 226 —
§ 2.º
Mouros
SUMMARIO : 100. Os mouros na Reconquista- 101. Os
mouros no direito português. Regimen de tolerancia. —102.
Regimen de perseguição. —108. Conflictos de direitos entre
mouros e judeus e entre quaesquer destes e christãos.
100. Os mouros na Reconquista. Os mouros
tambem vieram a ter entre os christãos uma condição
juridica especial. Os mouros propriamente são os
berberes que os arabes encontraram na Africa do
Noroeste e que elles submetteram ao seu dominio.
Distinguiam-se dos arabes, em serem mais
fanaticos e em não se conformarem com as
tendencias aristocraticas que estes apresentavam.
As tropas musulmanas que invadiram, em 711, a
Hespanha sob o commando de Tarik eram compostas,
na sua grande maioria, precisamente de berberes.
Muza é que trouxe mais arabes, de diversas tribus.
o obstante isto, os historiadores costumam desi-
gná-los a todos indifferentemente com a mesma
expressão, usando ora a de arabes, ora a de mouros,
que rigorosamente unicamente convém aos musul-
manos originarios da Africa.
Á medida que avançava a conquista chris pelos
territorios musulmanos, iam ficando, sob o dominio
dos novos Estados, grupos de vencidos, a quem,
como nota D. Rafael Altamira, o era possível,
pelo seu grande numero, pelas exigencias politicas
que aconselhavam prudencia e considerão, pelas
condições pactuadas nas capitulações ou rendições
das cidades e fortalezas, submetter em globo á
servidão
— 227 —
ou expulsar do territorio. A primeira solução levaria
a crear, no proprio seio dos reinos christãos, um
inimigo poderoso pelo seu numero, que teria emba-
raçado muito a propria marcha da reconquista; a
segunda teria sido contraproducente, visto uma das
grandes difficuldades que se apresentavam nesta
epocha ser a repovoação dos novos territorios, não
para a soa defesa, mas para o seu cultivo, como
base do progresso economico.
É por isso que, desde os primeiros tempos da
da reconquista asturiana, nos apparecem, ao lado
dos mouros prisioneiros, feitos escravos, outros
gosando em paz e liberdade a posse de terras.
Esta classe de pessoas foi augmentando através dos
seculos IX e x, em que encontramos, nos Estados
chrisos, mouros não convertidos outorgando ou
confirmando em documentos publicos. A estes mo-
sulmanos submettidos aos christãos e que conserva-
vam as soas leis, a soa religião e soa liberdade, no
todo ou em parte, chamam-se mudegares.
A verdadeira constituição do mudegarismo, como
elemento importante da populão, data das grandes
conquistas do seculo xI. Fernando I e os seus suc-
cessores, embora o seguissem a mesma politica
para com os mouros vencidos, que algumas vezes
expulsavam, ainda assim permittiram-nos frequente-
mente nas suas terras, pagando tributo e conservando
os seus osos.
Affonso VI, em virtude do orientalismo accentuado
da sua educão, mostrou-se muito favoravel aos
mouros, como se da capitulação de Toledo, em
que garantiu aos musulmanos a seguraa de vidas
e fazendas, a exempção de outro imposto que não
fosse a capitação do costume e varios privilegios
relativos á sua religião e administração, o que fez
— 228 —
accudir a Toledo muitos mouros que não se encon-
travam bem debaixo do domínio dos seus chefes.
Affonso VII e VIII continuaram esta politica tolerante
para com os madegares, embora manifestem ten-
dencias para limitar alguns direitos, que lhes tinham
sido conferidos.
O argumento dos mudegares na Península comou
a preoccupar a Igreja nos fins do seculo xn, prohi-
bindo-lhes nos concílios de Latrão I e II (1177 e 1215)
a communidade de habitação com os chrisos e
obrigando-os a usar um traje especial, egual ao dos
judeus, preceito em que insistiu o papa Honorio III,
ao mesmo tempo que condemnava as violencias para
obter a sua conversão 1.
101. Os mouros no direito português. Regimen
de tolerancia. Ao lado dos mouros reduzidos á
escravidão, apparecem-nos, logo desde o principio'
da monarcbia, outros gosando tranquilamente da
liberdade. Foi isto a consequencia de condições
eguaes áquellas que se verificaram no período neo-
godo, e que attribuiram a um grande numero de
mouros a paz e a liberdade.
0 antagonismo das crenças levou o direito cano
nico a estabelecer relativamente aos mouros dispo
sições similhantes às adoptadas para conservar a
separação entre christãos e judeus. Foi obedecendo
à influencia do direito canonico que a nossa legislação
estabeleceu algumas restriões á liberdade e á capa
cidade dos mouros.
D. João I determinou que elles vivessem em mou-
rarias apartados (Ord. Aff., liv. II, tit. CII), devendo-
1
D. Rafael Altamira,
Historia de la Espana y de la civiliza-
ción espanola,
tom. I,
pag. 407 e seg.
— 229 —
lhes ser cerradas as portas ao toque das trindades
(Ord. Aff., liv. II, tit. CIV), e não entrassem em
casa de nenhuma mulher christã, não devendo
tambem nenhuma mulher christã entrar em casa
dum mouro (Ord. Aff., liv. II, tit. CV).
D. Duarte ordenou que os mouros trouxessem
trajes especiaes (Ord. Aff., liv. II, tit. CIII), o
tivessem por servidores christãos, nem
arrendassem as dizimas e offertas da Igreja (Ord.
Aff., liv. II, tit. CVI), o fossem officiaes de El-
rei, nem dos infantes ou de quaesquer outro
senhores (Ord. Aff., liv. II, tit. CVII), e o
gosassem dos privilegios e exempções
concedidos aos vizinhos de certos logares,
nem do beneficio da lei da avoenga (Ord. Aff.,
liv. II, tit. CVIII e CIx). I
Ao mesmo tempo que se estabeleciam estas res
tricções, concedia-se aos mouros um certo
numero de garantias, como a de não serem presos
pela fuga de alguns captivos, salvo se
primeiramente fosse delles querellado (Ord. Aff.,
liv. II, tit. CXVIII), a de 1 não serem feitos christãos
contra sua vontade (Ord. Aff., liv. II,. tit. CXIX), a de
o serem mortos, feridos ou roubados pelos
christãos, não podendo tambem as suas
sepulturas ser violadas, nem as suas festas
perturbadas (Ord. Aff., liv. II, tit. cxx), e a de não
serem aggravados pelos clerigos em razão das
dizimas (Ord. Aff., liv. II, tit. cxI).
Os mouros tinham magistrados seus e governa-
vam-se pelo seu direito pessoal. Assim, Affonso I
em 1180 concedeu aos mouros forros de Lisboa,
Almada, Palmella e Alcacer o privilegio de elege-
rem entre si alcaide para os julgar, extendendo
depois Affonso V esse privilegio a todas as commu-
nas de mouros forros do pais (Ord. Aff., liv. II,
tit. XCIX).
— 230 —
Duma lei de Affonso IV deduz-se que, já antes de
D. Dinis, os mouros tinham o privilegio de se rege-
rem por seu direito proprio nas contendas entre si
levantadas. Aquelle monarcha confirmou este privi-
legio, bem como Affonso V, resalvando, porém,
para si e seus officiaes toda a appellação e aggravo,
que, seguindo a fórma das ordenações do reino, e
nos casos em que eram admittidos, seriam comtudo
desembargados na conformidade do direito musul-
mano (Ord. Aff., liv. II, tit. CI) 1.
102. Regimen de perseguição. O regimen de
tolerancia de que gosaram os mouros termina, como
o dos judeus, no tempo de D. Manuel. O decreto
de expulsão dos judeus de 5 de dezembro de 1496
abrangia tambem os mouros forros que houvesse no
reino. Na desgraça, porém, foram mais felizes do
que os judeus, porquanto não se lhes tiraram os
filhos, como se fez aos judeus.
A razão desta desegualdade, que tornava mais
execranda a violencia praticada para com os judeus,
dá-a Damião de Goes, mostrando que de se tomarem
os filhos aos judeus o podia advir nenhum damno
aos christãos, desde o momento em que os judeus
se encontravam espalhados por todo mundo, sem
reino, sem auctoridade e sem poder. O mesmo,
porém, não se podia dizer dos mouros, que,
occupando a mór parte da Asia e Africa e boa da
Europa, e tendo ahi reinos, imperios e senhorios,
nos quaes viviam muitos chrisos, se podiam vingar
se lhes arrancassem os seus filhos.
1
Sr. Dr. Guimaes Pedrosa, Introduão ao estudo do direito
privado internacional, pag. 154; Mello Freire, Institutiones juris
civilis lusitani, liv. I, tit. xI, § 7.
— 231—
Daqui por deante a sorte dos mouros acompanha
a dos judeus, nas perseguições de que elles foram
objecto, e que constituem uma das paginas mais
vergonhosas da civilização peninsular 1.
108. Conflictos de direitos entre mouros e
judeus ou entre quaesquer destes e christãos.
Como os judeus e os mouros tinham magistrados
seus e se regulavam pelo seu direito pessoal, torna-
se necessario averiguar quaes eram os juizes
competentes para resolver as queses entre judeus
e mouros ou entre quaesquer destes e christãos,
bem como qual seria o direito applicavel.
Relativamente aos juizes competentes para julgar
estas questões, é preciso distinguir dous períodos na
evolução historica do nosso direito. Até D. João
I, os pleitos entre christãos e mouros ou judeus,
ou entre indivíduos destas ultimas classes eram
julgados intervindo juiz christão, judeu ou mouro,
conforme o réo respectivamente pertencia a
qualquer destas sociedades. Effectivamente, em
rtes reunidas por D. Fernando I em Lisboa, sendo-
lhe representado e requerido por parte dos concelhos
que as contendas entre chrisos e judeus ou mouros
fossem mente julgadas por magistrados christãos,
aquelle rei respondeu que os mouros e judeus tinham
privilegio outorgado pelos reis seus antecessores.
Affonso III ordenou que os mouros livres de
Lisboa, nas contendas que tivessem com chrisos,
propusessem as suas demandas perante os alvazis
de Lisboa ou
1
Sr. Dr. Mendes dos Remedios,
Os judeus em Portugal,
pag.
293; D. Fernando Garrido,
Historia da perseguições politicas e
religiosas
(vers. port.), pag. 85 e seg.
— 232 —
perante o alcaide dos mouros, segundo o réo fosse
christão ou musulmano.
De D. João I em diante, tem sido creados juizes,
especiaes deputados para julgarem os pleitos entre
christãos e mouros ou judeus, ou entre indivíduos
destas classes, ficou incumbindo a estes juizes a deci-
são de taes pleitos, com excepção das terras que não
tinham tal categoria de juizes, onde ficou vigorando
o direito anterior. Effectivamente, D. Affonso V,
ratificando a competencia destes juizes, creados no
tempo de D. João I, em certas villas e cidades do
reino, determinou que elles conhecessem de todos
os feitos eiveis entre christãos e judeus, e que nos
outros logares, onde taes juizes não existissem
especialmente para isso deputados, fosse seguido o
fôro do réo nos feitos eiveis que não tivessem
dependencia de algum crime, observando-se o
mesmo sendo a demanda entre judeu e mouro
(Ord. Aff., liv. II, tit. xCII e c).
Mas qual seria o direito applicavel a estes pleitos
mixtos? O Dr. Falcão distingue entre o caso de
haver juizes especiaes e o caso de não haver estes
juizes. No caso de haver juizes especiaes, applica-
va-se o direito commum, não só porque, em regra,
a jurisdião determina o direito, mas, tambem por
causa da natureza rigorosamente obrigatoria de
todas as leis que dispõem sobre collisões; no caso
de o haver juizes especiaes, applicava-se o direito
do réo, não porque a intima ligação que existe
entre a jurisdicção e o direito assim o exigia, mas
tambem porque era a pratica seguida antes das
innovações introduzidas no codigo affonsino.
O Sr. Dr. Guimarães Pedrosa criticou, com
toda a razão, a doutrina do Dr. Falcão, na parte
que considera applicavel aos pleitos mixtos o
direito
— 233 —
commum, quando havia juizes especiaes. Os argu-
mentos apresentados pelo Dr. Falcão para mostrar
que nas terras onde não havia juizes especiaes
deveria seguir-se o direito do réo, lêem egual
applicação e egual valor concludente nos casos de
haver taes juizes. A affirmação de que, em regra,
a jurisdicção determina o direito, pouco valor pôde
ter, não por causa das excepções que soffre, mas
tambem porque a legislação relativa a mouros e a
judeus era uma legislação geral em todo o reino,
sendo sempre a mesma para os judeus e para os
monros, qualquer que fosse o logar onde elles fossem
encontrados.
Não ha razão alguma tambem para que indiduos
da mesma religião e origem, habitando o mesmo
pais, fossem julgados de maneira diversa, conforme
no logar houvesse ou não juizes especiaes. O espi-
rito de egualdade que se manifesta, em geral, no
que diz respeito a todos os judeus ou a todos os
mouros do pais, fosse qual fosse a localidade que
occupassem no reino, oppõe-se a uma tal distinão.
O direita era geral antes do estabelecimento dos
juizes especiaes, e, por isso, não sendo acompanhada
a creação destes juizes de alterão no direito, este
deveria continuar a persistir do mesmo modo. E,
depois, não se estava no campo severo e absoluto
do direito territorial, mas defrontavam-se legislões
pessoaes, umas e outras garantidas no sejo do
pais 1.
1 Dr. Lucas Falcão, Do direito internacional privado, n.° 23;
Sr. Dr. Guimarães Pedrosa, Introducção ao estudo do direito
privado internacional, pag. 154 e seg.
— 234 —
§ 3. º
Hereticos
SUMMARIO : — 104. Condão dos hereticos no direito romano.
106. Os hereticos no direito wisigothico. 106. Os
hereticos na Reconquista. 107. Os hereticos no direito
português. 108. A Inquisição. 109. A liberdade re-
ligiosa.
104. Condição dos hereticos no direito romano.
Como nota Paul Viollet, sob os imperadores
christãos, a liberdade religiosa existia unicamente
em raros intervallos, que se podem considerar como
pbases de transão entre a perseguição pagã contra
os christãos e a perseguição cbristã contra os paos
e hereticos.
O direito romano, e especialmente o Codigo Jus-
tinianeu, contem as mais severas disposições contra
os hereticos, e de que se tinham servido os im-
peradores para reprimir as numerosas heresias que
appareceram depois que o christianismo conseguiu
triumphar. Sob a influencia destas disposições, os
hereticos soffreram uma tal limitão de capacidade
jurídica que quasi confina com a total privação
delia. Effectivamente, não tinham nem a testamen-
tificação activa, nem a passiva, eram incapazes de
occupar qualquer dignidade, de contrahir obrigões,
de servir de testemunhas contra os crentes, che-
gando até os filhos a ser feridos de infamia.
Isto é claro o fatiando nas penas positivas que
lhes foram inflingidas, entre as quaes se encontram
a pena de morte e a de exílio. O Codigo Justinianeu
no titulo V do livro I menciona umas trinta
heresias,
— 235 —
e manda desterrar todos aquelles que as professem.
Emquanto aos manicheus ordena que sejam punidos
com o ultimo supplicio 1.
105. Os hereticos no direito wisigothico. Os
barbaros foram muito mais tolerantes. Arianos, o
perseguiram os catholicos; convertidos, foram bas-
tante indulgentes para com os que persistiram nas
antigas crenças. O titulo De Haereticis, que no
Codigo Theodosiano continha sessenta e seis leis,
desapparece no Breviario de Alarico. Do titulo De
Apostatis que naquelle codigo comprehendia oito
leis, sómente uma, a terceira, que condemna a
apostasia dos christãos que se tornam pagãos ou
judeus, passa para o Breviario de Alarico, talvez
por ser applicavel a catholicos e a arianos.
Alguns escroptores têem procurado explicar esta
tolerancia como uma consequencia da heresia ariana
que os godos professavam. Mas, se a politica reli-
giosa deste povo tivesse sido intolerante, o Breviario
de Alarico teria applicado á Igreja godo-ariana os
privilegios que as leis theodosianas concediam á
Igreja catholica, condemnando como hereticas todas
as seitas dissidentes da dos vencedores, e perse-
guindo os catholicos, como faziam os vandalos na
Africa, que martyrizavam os catholicos, qualifi-
cando-os de hereges homousianos.
Parece que a verdadeira explicação do facto se
deve encontrar no direito germanico, que, contraria-
mente á legislação imperial, nnnca considerou a
heresia um crime publico. A unidade religiosa, por
isso, não se impunha coactivamente.
1
Nani, Storia del diritto italiano, pag. 48; Viollet, Histoire du
droit civil français, pag. 337 e seg.
— 236 —
A unica excepção á tolerancia goda encontra-se
no manicheismo. A Novella II de Valentiniano II,
que mandava perseguir e castigar como sacrilegos e
expulsar das cidades os manicbeus, passoa para o
Breviario de Alarico. Talvez esta doutrina fosse a
applicaçáo logica do principio geral de governo,
qae, consciente oa inconscientemente, professaram
os redactores do Breviario de Alarico, de admittir a
tolerancia de todas as seitas, com excepção das qae
se opposessem à moral.
A moderão que se nota na Lex romana wisigo-
thorum desapparece em grande parte no codigo
wisigothico, pois ahi as leis de Recesvindo punem
os hereticos com a infamia, confisco dos bens e elio
(cod. wis., liv. xII, tit. 11, I. 4). Não apparecem,
porém, no codigo wisigodo, disposições a respeito
de heresias determinadas, fallando a legislão de
Recesvindo dum modo geral, dos erros bereditos,
sem uma referencia especial a qualquer seita 1.
106. Os hereticos na Reconquista. O estado
da Península, nesta epocha, dominada por povos e
religiões diversas, era profundamente favoravel ao
desinvolvimento de heresia, cujo successo o fanatismo
e a ignoraocia do tempo deviam augmentar. E assim
vemos apparecer as heresias de Migecio, de Felix e
Elipando, defendendo estes ultimos as doutrinas
adopcionistas, segundo as quaes Christo era filho
adoptivo de Deus. O adopcionismo deu até origem
a uma disputa muito importante a respeito da con-
1
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espana goda, tom. III, pag. 375 e seg.; Salvioli, Manuale di storia
del diritto italiano, pag. 247 e seg.; Menendez Pelayo, Historia de
los heterodoxos, tom. I, pag. 163 e seg.
— 237 —
substancialidade do Verbo, revelando a perspicacia
e a subtileza dos tbeologos da Hespanha nesta
epocha.
À Igreja impunha aos hereticos diversas penas,
como o confisco dos bens, a privação dos cargos,
a prisão e a excommunhão. Mas, não obstante a
tradição da epocba relativamente ao dever que
tinham os Estados de punir os delictos religiosos,
tradição restaurada no seculo xII, por concílios e
papas, que exhortaram neste sentido os reis, parece
que este principio não foi admittido na Península
antes do seculo xIII.
0 mesmo aconteceu além dos Pyreneus, pois
neste período tambem ahi se não fez sentir a inter
venção do braço secular na punição dos hereticos,
tendo bastado, segundo nota Glasson, o poder eccle-
siastico para os conter em respeito. £ por isso que
não apparece nas capitulares nenhuma disposição
que tenha por objecto ferir os hereticos de incapaci
dades civis ou politicas 1.
107. Os hereticos no direito português. O di-
reito canpnico, como prodncto duma religião que não
póde evitar a intolerancia, estabeleceu no seculo xIII
muitas disposões contrarias á liberdade de con-
sciencia, que a Igreja condemnou constantemente
para realizar a convergencia das crenças. Entre essas
disposões, salientam-se as formuladas pelo concilio
de Latrão de 1215, que confirmou a legislação romana
1
Glasson; Histoire du droit et des institutions de la France,
tom. II, pag. 608 e seg.; Amaral, Memoria IV para a historia
da legislação e costumes de Portugal, nas Memorias de litteratura
portuguesa, tom. II, pag. 74 e seg.; Menendez Pelayo, Historia
de los heterodoxos espanoles, tom. I, pag. 265 e seg.
— 238 —
contra os hereticos na sua revoltante dureza e na sua
sinistra violencia.
Os bens dos hereticos e dos seus fautores devem
ser confiscados. Os convencidos de heresia devem
ser entregues ao braço secular para serem punidos.
Os principes são obrigados a exterminar todos os
hereticos dos seus Estados, perdendo a sua digni-
dade, qnando isto não façam. Os fautores dos
hereticos o declarados infames, incapazes de tes-
temunhar, de estar em juizo, de exercer funcções
publicas., etc. Com mais forte razão, estas incapa-
cidades feriam os proprios hereticos, quando se lhes
conservava a vida.
Innocencio IV, em 1254, renovou as leis severas
promulgadas por este concilio, excommungando os
hereticos e os seus fautores, declarando-os indignos
de todas as funcções publicas, prohibindo-os de
testemunhar, e tornando-os incapazes de succederem
e de fazerem testamento. A Igreja, como diz Tissol,
julgou que a força podia ser empregada contra a
consciencia sem violar a justiça, ou que a injustiça,
deixava de ser injustiça, quando o interesse se encon-
trava de accordo com ella.
Foi grande a influencia que o direito canpnico
exerceu sobre a nossa legislação relativamente a este
assumpto. D. João I confirmou as penas estabeleci-
das pelo direito commum contra os hereges, deter-
minando, além disso, que dos seus bens se fizesse
como elle mandasse e fosse sua mer. D. Affonso V
sanccionou estas providencias, e, declarando que o
conhecimento dos feitos de heresia pertencia princi-
palmente aos juizes ecclesiasticos, dispôs que os
processos das condemnações fossem enviados aos
desembargadores da justiça, para que estes os vis-
sem e executassem conforme achassem de direito,
— 239 —
visto os juizes ecclesiasticos não poderem fazer
taes execuções por serem de sangue.
E D. Affonso V não deixa de insistir na
doutrina canonica de que ao príncipe compete
punir os pec-cados e maldades tangentes ao
Senhor Deus, de cuja mão tem o regimento e seu
Real Estado... aquelle que o assy nom fezesse,
deveria seer reputado por indigno, e desmerecedor
da merece, e beneficio, que delle recebeo (Ord. Aff.,
liv. v. tit. I).
As Ordenações Manuelinas tornaram ainda
mais claras estas disposições, estabelecendo que
os hereges, alem das penas corporaes que lhes
forem dadas no juizo ecclesiastico, soffram
tambem o confisco dos bens, posto que tenham
filhos (Ord. Man., liv. v, tit. II).
Na lucta contra as heresias dos seculos xII e
xIII a victoria pertenceu á Igreja, deduzindo dahi
nova força o poder do papado. O mesmo não
aconteceu na guerra que a Igreja moveu no
seculo xvI á Reforma protestante. Tambem então
a Igreja recorreu ás velhas armas que antes
tinham empregado com successo. O papa Paulo
IV promulgou em 1559 uma bulia em que se
encontram quasi textualmente reproduzidas as
penas comminadas no seculo xIII aos hereticos.
Os tempos, porém, tinham mudado. A Edade
Media tinha terminado, a Igreja estava
decadente e a violencia não podia dar o resultado
desejado.
O fanatismo e a reacção religiosa mancharam
de sangue as paginas da historia desta epocha.
Mas, no meio das perseguições, das dores e dos
martyrios que se desencadearam sobre a
humanidade, foi-se desinvolvendo o germen da
liberdade do pensamento, da e do culto, que
unicamente deu todos os seus fructos nos tempos
modernos, quando se reconheceu
— 240 —
que nenhum homem tem o direito de impôr aos
outros as suas convições religiosas. E o mais notavel
é que os reformados deram provas da mesma intole-
rancia religiosa que os catholicos, como o demonstra
claramente o procedimento de Calvino, fazendo quei-
mar Servet em 1553 e escrevendo uma dissertação
para estabelecer que os hereticos devem ser punido
com a pena de morte: jure gladii coercendos esse
hoereticos.
Não admira nestas condições que as disposições
das Ordenações Manuelinas persistissem nas Orde-
nões Philippinas, esclarecendo-se unicamente as
duvidas que podia suscitar o confisco dos bens dos
hereges, quando elles possuíam algum prazo (Ord.
Filip., liv. v, tit. I) 1.
108. A Inquisição. A fórma mais repugnante
que revestiu a intolerancia religiosa na edade
moderna encontra-se na Inquisão. O tribunal da
Inquisição, creado por Innocencio III no seculo xiu,
conseguiu penetrar dentro em breve na Hespanha,
apparecendo no principio do seculo xv organizado
neste pais com estatutos regulares. Os reis catholi-
cos, porém, conseguiram de Sixto IV em 1478 a
reforma deste tribunal, obtendo uma bulia que lhes
permittiu nomear dois ou tres bispos ou arcebispos
ou outros varões probos e honestos, para que fossem
inquisidores, em qualquer parte do reino, usando a
respeito dos hereges do poder, jurisdião e aucto-
ridade de que usam e podem usar, assim de direito,
1
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 337 e seg.;
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 49 e seg.; Salvioli,
Storia del diritto italiano, pag. 248 e seg.; Tissot, Introduction
philosophique à 1'étude du droit, pag. 81.
— 241 —
como de costume, os juizes ecclesiasticos ordinarios.
Com estes caracteres de especialidade e de depen-
dencia do poder civil e de exclusão da jurisdião
ordinaria dos bispos, comou em 1480, em Sevilha,
a Inquisição hespanhola. Em harmonia com a reforma
de Sixto IV, se a Inquisão devia voltar a sua alten-
ção para os judeus apostatas, não devia tambem
esquecer todos os actos hereticos, que ficavam
debaixo da sua jurisdicção.
O zelo fanatico e cruel dos inquisidores, e nomea-
damente do lugubre e sinistro personagem, que se
chama Torquemada, transformou este tribunal numa
instituição feroz e sanguinaria, cuja historia é uma
serie de horrores e de attentados vergonhosos.
Nos dezoito annos do ministerio daquelle terrível
inquisidor, foram processadas 105:294 pessoas, das
quaes 8:000 foram realmente queimadas e 6:500 o
foram em effigie.
Não tardou a apparecer o desejo de estabelecer
em Portugal a Inquisição, não só pelo fanatismo
religioso do tempo, mas tambem pela cubica que
excitavam os bens dos judeus. A tendencia para o
absolutismo, que se accentuava na evolão politica)
da epocha tambem contribuiu para a introducção
dum tão sinistro tribunal entre nós, desde o momento
em que elle podia ser um instrumento de dominio e
de oppressão, ao serviço do poder real.
O dinheiro e a influencia dos judeus, bem como
as dissidencias que appareceram entre a Guria e a
Corôa sobre ser o nuncio ou um inquisidor português
encarregado desta commissão, fizeram protrahir a]
resolão deste negocio, até que D. João III; assi-
gnalou lugubremente a historia do, seu reinado,
obtendo, depois de varios insuccessos, do papa
Paulo III, em bulia de 23 de março de 1536, Cum
16
— 242 —
ad nihil magis, o effectivo estabelecimento da Inqui-
sição no nosso paiz. Este tribunal, tambem cha-
mado Santo Officio da Inquisição, conhecia dos
negocios pertencentes á , extendendo-se a soa
jnrisdicção não contra os herejes, judeus; mahome-
tanos e seus fautores, mas tambem contra todos os
crimes que induzissem ainda leve suspeita de erro na
crença, dando-se a esta competencia uma tamanha
amplitude que ninguem se podia considerar seguro.
O processo perante este tribunal era secreto,
informe e arbitrario, não havendo meios de defesa
e sendo os réos arrancados ao seio da família e
laados nas masmorras da inquisão, sem delles
haver mais noticia. A tortura era largamente em-
pregada como meio de extorquir ao supposto cri-
minoso a confissão dum delicto que elle muitas vezes
ignorava, e a denuncia dos cumplices.
Além das penitencias e penas canonicas, o tribu-
nal applicava penas temporaes, abundando a de
confisco, que era muito difficil de evitar.
Quando os os incorriam na pena de morte, eram
relaxados ao bro secular, que, sem examinar os
processos, os enviava para as fogueiras dos autos
de fé.
A Inquisição mereceu um favor especial aos nossos
monarchas, que lhe consignaram differentes bens e
dotações, ao mesmo tempo que lhe augmentavam a
jnrisdião e mandavam executar com todo o cui-
dado as penas que ella impunha. D. João IV lem-
brou-se de a reformar e de a privar da pena do
confisco, mas o poder do tervel tribunal ainda era
tamanho, que o cadaver deste rei teve de passar
por uma absolvão solemne para obter sepultara
ecclesiastica. A ao anno de 1732 foram conde-
mnados ao fogo 1:454 indivíduos!
— 243 —
A oppressão dos christãos novos revestia uma
fórma odiosa, pois não só eram as victimas mais
procuradas do Santo Oíficio, mas tambem lhes era
vedada a entrada nos empregos, benecios e cargos
publicos. Sujeitaram-se aquelles que aspiravam ás
ordens ecclesiasticas ou aos empregos publicos a
uma inquisição de genere, a fim de se verificar se
eram de raça de judeus, mouros, herejes e gentios.
O Marquês de Pombal acabou com a categoria dos
christãos novos, abrindo-lhes a carreira das honras
e dos empregos publicos e punindo aquelles que os
insultassem, e reformou, pelo alvará de 1 de setem-
bro de 1774, o tribunal da Inquisição, a fim de o
desprender do caracter puramente ecclesiastico que
a ahi conservou, e de o emancipar da influencia
pontifícia, que nelle predominava. Convertido em
tribunal regio, o Marques de Pombal aproveitou-se
delle para perseguir, como sigilistas e jacobeus, todos
os que não approvavam as suas reformas, fazendo
condemnar como hereje e relaxar o jesta Malagrida,
que foi a ultima victima da Inquisão, condemnada
á morte. Desde então por diante a Inquisição, em
desharmonia com as ideias da epocha, entra num
periodo de profunda decadencia e descredito de que
nunca mais se levantou.
E' por isso que nas côrtes constituintes de
1821-1822 este tribunal foi abolido por unanimi-
dade pela lei de 5 de abril de 1821. Entre os votos
emittidos, merece especial menção o de Castello
Branco, que, apesar de Inquisidor, declarou ser
pela abolição do Santo Officio, como representante
da nação, por o julgar inutil e incompavel com as
luzes do seculo e com o governo constitucional.
A Inquisição, com o seu cortejo de horrores, foi
uma das maiores calamidades que pesaram sobre o
— 244 —
povo portaguês, esterilizando todos os elementos de
prosperidade pablica e de aperfeiçoamento moral do
pais. Não houve atrocidade que se o commettesse
sob o pretexto de crimes religiosos. Entre as victi-
mas de tão nefando e horrível tribunal, contam-se
todos aquelles que se salientaram pelo espirito da
soa iniciativa individual, como o sabio lente da
Universidade e uma das maiores illustrões do seu
tempo, Antonio Homem, que acabou tragicamente
nas fogueiras da Inquisição. Prendiam-se os preten-
didos berejes sem indícios suficientes, retinham-se
nas masmorras annos e annos sem processo, e quei-
mavam-se sem piedade, apesar de se apresentarem
como verdadeiros christãos. E' nestes tres factos,
diz Herculano, que se resume, a historia da mais
atroz e da mais anti-christã instituição que a mal-
dade humana pôde inventar: — nas captoras arbi-
trarias; nos longos captiveiros sem processo; nas
fogueiras, devorando promiscuamente o christão e o
judeu, para honra e gloria de Deus 1.
109. A liberdade religiosa. As ideias de tole-
rancia e liberdade religiosa levaram muito tempo
a triumphar. Tendo encontrado nos seculos xvI e
xvII notaveis defensores em França, receberam
1
Herculano, Historia da origem e estabelecimento da Inquisi-
ção em Portugal, tom. I, II e III; Coelho da Rocha, Ensaio sobre a
historia do governo e da legislação de Portugal, pag. 148 e seg. e
225 e seg.; Mello Freire, Institutiones juris criminalis, tom. II, §
11° e nota; Sr. Dr. Affonso Costa, Lições de organização judi-
ciaria do curso de 1898-1899, pag. 140 e seg.; Clemente José dos
Santos (Barão de S. Clemente), Documentos para a historia das
côrtes geraes na nação portuguêsa, vol. I, pag. 181 e seg.; D.
Rafael Àltamira, Historia de Espana y de la civilización espa-nola,
tom. II, pag. 431 e seg.
— 245 —
um energico impulso do movimento philosophico do
seculo XVIII, principalmente com o Trai sur la\
tolérance de Voltaire, publicado em 1763.
Foi, sob a influencia deste movimento, que
Luiz XVI promulgou o edicto de 19 de novembro
de 1787, que assegurou a liberdade de consciencia
e cultos aos protestantes, equiparando-os aos catho-
licos, quanto aos direitos civis. A constituição de
1791 confirmou o edicto, extendendo os seus
effeitos aos sequazes de todos os cultos. E, embora
os actos da revolução nem sempre se conformassem
com esta doutrina, o certo é que ella triumphou
depois em todas as constituões que sram dos
movimentos políticos inspirados por aquella gloriosa
revolução.
As nossas constituições foram, porém, pouco libe-
raes nesta materia. A constituição de 1822 declarava
a religo catbolica a religião da não portuguesa,
permittindo aos estrangeiros o exercício particular
dos seus respectivos cultos e salvando aos bispos a
censura dos escriptos publicados sobre dogma e
moral, tendo o governo de auxiliar os mesmos bispos
para serem punidos os culpados (artt. 25.° e 8.°).
A Carta Constitucional declara que ninguem de
ser perseguido por motivo de religião, uma vez que
respeite a do Estado e não offenda a moral publica,
mas, ao mesmo tempo, dise que a religião catbo-
lica continua a ser a religião do reino, sendo todas
as outras religiões toleradas aos estrangeiros com o
sen culto domestico ou particular, em casas para
isso destinadas, sem fórma alguma exterior de
templo (art. 145.°, § 4.° e art. 6.°). A Constituição
de 1838 limitou-se a eliminar a segunda parte do
art. 6.° da Carta e a redigir o § 4.° do art. 145.°
nos seguintes termos: Ninguem póde ser perse-
— 246 —
guido por motivo de religião, comtanto que respeite
a do Estado (artt. 3.° e 41.°).
Apesar de todas as hesitações, não póde haver
duvida a respeito da orientação da Carta no sentido
da liberdade religiosa. Effectivamente, o argumento
deduzido contra ella do art. 6.° é um argumento a
contrario sensu e como tal de pouco valor. O
argumento unicamente teria valor, se o artigo
dissesse que as outras religes serão permittidas
aos estrangeiros ou que não serão permittidas aos
nacionaes. O art. 6.° da Carta tem de se combinar
com o § 4.° do art. 145, donde deriva que o indi-
viduo póde seguir a religo que quizer, comtanto que
respeite a do Estado e não offenda a moral publica.
A carta devia ser mais clara e ir mais longe, pois
ella, tolerando simplesmente os outros cultos, suppõe
á existencia dum Estado confessional, que julga ne-
cessario fazer, como pessoa collectiva, profissão dum
determinado culto, como se tivesse, como as pessoas
physicas, uma alma a salvar. E' por isso que o
Estado, vendo-se obrigado a admittir no seu terri-
torio outros cultos, não o faz sem os reprovar e os
considerar com uma certa aversão confessional, isto
é tolerando-os. Isto não se harmoniza com o Estado
moderno, que deve respeitar o sentimento religioso,
sem professar uma determinada religo e sem con-
siderar, com menor respeito e sympathia, os coitos
seguidos pela minoria da nação. O Estado moderno
não póde faltar de tolerancia religiosa, mas de
liberdade religiosa, pois a primeira representa uma
concessão graciosa do Estado e esta um direito do
cidadão 1.
1
Ruffuni,
La libertá religiosa,
tom. I, pag. 5 e seg.; Nani,
Storia del diritto privato italiano,
pag. 52; Viollet,
Histoire du
droit civil français,
pag. 364.
— 247 —
SEÃO IV
Pessoas com capacidade jurídica limitada em
virtude de motivos moraes
I Libertinos
SUMMARIO : 110. Conceito dos libertinos no direito romano.
111. Sua condição jurídica neste direito. — 112. Os liber-
tinos no direito germanico. 113. Condição jurídica dos
libertinos entre os visigodos. 114. Categorias de liber-
tinos admittidas no direito wisigothico. —115. Os libertinos
na Reconquista.116. Os libertinos no direito portugues.
110. Conceito dos libertinos no direito romano.
Aquelle que, tendo sido legalmente escravo, se
tornou livre, chamava-se libertino, quando se consi-
derava nas suas relões com a sociedade, e liberto,
quando se considerava nas suas relações com o
patrono, isto é, com o seu antigo senhor.
A expressão libertino contrapunha-se á de ingenuo,
que designava o individuo que, nascendo livre, nunca
tinha deixado de o ser. O filho de dois libertinos,
como nascia livre, ficava sendo ingenuo, pelo menos
no ultimo estado do direito. Inversamente, o que
se tornasse escravo perdia a ingenuidade não a
podendo jamais recuperar, a o ser que se encon-
trasse na situão do captivo a quem se restituíssem
retroactivamente todos os direitos, em virtude do
juspostliminii.
Para que o individuo se tornasse libertino era
necessario que elle fosse emancipado duma escravi-
dão legal (justa servitus), e o duma escravidão de
facto, na qual tivesse vivido por erro ou em virtude
dum crime.
248
vimos as categorias de libertinos que appare-
ceram no direito romano e o modo como se forma-
ram estas categorias. Essas categorias o libertinos
cidaos, libertinos latinos junianos e libertinos
dediticios 1.
111. Sua condição jnridica nesta direito. A
condição juridica dos libertinos era diversa conforme
elles eram libertinos cidadãos, libertinos latinos junia-
nos ou libertinos dediticios.
a) Condição jurídica dos libertinos cidadãos.
Apesar desta categoria de libertinos ter o direito de
cidade, sendo, por isso, a mais favorecida, ainda
assim apresentava um certo numero de inferiorida-
des relativamente aos ingenuos. o tinham o jus
honorum, isto é, o accesso às magistraturas; pos-
suiam um jus suffragii illusorio, pois podiam
votar nos comicios por tribos, repartindo-os os cen-
sores pelas tribos urbanas, com o fim de diminuir a
sua influencia; gosavam do jus commercii e do jus
connubii, sendo, porem, probibido durante muito
tempo o casamento entre ingenuos e libertinos, pro-
bibição que Augusto limitou aos senadores e aos
seus filhos.
Contrariamente ao que acontecia sob a republica,
os libertinos podiam adquirir individualmente, por
favor do príncipe, uma condão jurídica egual á dos
ingenuos. Isto realizava-se: pela concessão do jus
aureorum anulorum, privilegio dos cavalleiros, e que
assimilava o libertino ao ingenuo, tanto sob o aspe-
cto do direito publico, como sob o aspecto do direito
privado, deixando, porém, subsistir os direitos do
1
Serafim, Instituzioni di diritto romano, tom. I, pag. 127
e seg.
— 249 —
patrono; pela restitutio natalium, que dava ao liber-
tino uma ingenuidade completa, visto extinguir os
direitos do patrono, não podendo, por isso, ser
concedida sem o consentimento deste.
b) Condição juridica dos libertinos latinos junianos.
Os libertinos latinos junianos eram não os
libertinos da lei Junia e da lei Aelia Sentia, mas
tambem, em virtude dum edicto de Claudio, o escravo
que se tornasse livre, por ser abandonado velho e
doente pelo seu senhor, e, em virtude duma. consti
tuição de Constantino, o escravo denunciador dom
crime de rapto. A condão juridica dos libertinos
latinos junianos era inferior á dos libertinos cidadãos,
visto elles o terem nenhuns direitos poticos, e,
dos direitos privados, gosarem unicamente do jus
commercii, faltando-lhes, por isso, o jus connubii.
A lei Junia Norbana feria-os, alem disso, de varias
incapacidades, não podendo, por isso, testar, receber
uma successão testamentaria ou um legado, nem ser
nomeados tutores. Em compensação, foi muito favo-
recida a adquisição do direito de cidade por estes
indivíduos, no tempo do Imperio, permittindo-se-lhes
obter tal direito por modos muito numerosos, como
pela repetição nas condições legaes da manumissão
irregular, pela concessão expressa do imperador,
por serviços importantes prestados ao Estado, pelo
casamento com uma romana ou uma latina deante de
sete testemunhas, donde houvesse um filho dum anno.
c) Condição jurídica dos libertinos dediticios. A
condição juridica dos libertinos dediticios era a peior
da dos libertinos, pois não tinham direitos políticos,
nem o connubium nem o commercium sendo-lhes até
prohibido encontrar-se em Roma ou num raio de
cem milhas, sob pena de recaírem na escravidão e
de serem vendidos com a condão de o poderem
— 280 —
ser manumittidos. Não tinham meio algum de
adquirir o direito de cidade. Esta condição era uma
consequencia do passado destes libertinos como
escravos, o qual fazia presumir que elles seriam
cidadãos perigosos.
No ultimo estado do direito romano, desappare-
ceram estas differenças que se davam entre os liber-
tinos, visto Jntiniano ter supprimido os libertinos
latinos e os libertinos dediticios, o reconhecendo
senão uma classe de libertinos, os libertinos cidadãos.
Foi ainda mais longe, fazendo desapparecer quasi
toda a differença entre ingenuos e libertinos, esta-
belecendo que a manumissão dava direito ao jus
aureorum anulorum e que a restitutio natalium
dependia unicamente da vontade do patrono, não
sendo necessaria uma decisão do imperador.
Às relações do liberto com o patrono eram as
mesmas, qualquer que fosse a classe a que elle per-
tencesse, com excepção de certas differenças, pelo
que respeita ao modo de regular a successão. O
liberto devia ao seu patrono a sua existencia civil e,
por isso, encontrava-se relativamente a elle numa
situão analoga á do filho para com o pae, tomando
o seu nome, tendo o seu domicilio legal e fazendo
parte da sua gens.
Além disso, ficava sujeito a certas obrigações para
com o patrono, que constituíam os jura patronatus
ou direitos de patronato, que passavam para os filhos
agnados do patrono. Podiam reduzir-se estas obri-
gações a tres grupos:
a) Obsequium; b) Operae; c) Bona.
a) Obsequium. O liberto devia respeito ao
patrono, como o filho ao pae, estando primitiva-
— 251 —
mente sujeito á sua jurisdicção domestica e não
podendo mais tarde perseguil-o judicialmente, sem
auctorização do magistrado;
b) Operae. Eram serviços que o liberto tinha
de prestar ao patrono, em virtude de compromisso
tomado para com elle. Podiam ser domesticos (ope-
rae officiales), continuando o liberto a desempenhar
na casa do patrono as funcções que ahi exercia como
escravo; e de caracter pecuniario (operae fabriles),
reservandose o patrono, numa certa medida, o pro-
ducto do talento e da proGssão do liberto, direito
que podia ceder a outrem e passava para os seus
herdeiros;
o) Bon Finalmente, o patrono tinha direitos
importantes relativamente a alimentos, á successão
e á tutela do liberto 1.
112. Os libertinos no direito germanico. No
direito germanico tambem se encontra a distinão
das pessoas em ingenuos e libertinos.
A condição jurídica do libertino era muito inferior
relativamente á do ingenuo. Approximava-se mais
da escravidão, do que da liberdade. Tacito diz que
os libertinos estio pouco acima dos escravos e que
têem pouca importancia no governo da casa e ne-
nhuma no da cidade.
Daqui se deduz que os libertinos viviam numa
certa dependencia civil e que careciam de direitos
politicos. Não podiam, efectivamente, mudar de
domicilio a seu talante e tinham de prestar uns
certos serviços ao patrono, embora este os não
1
Bry, Príncipes de droit romain, pag. 50 e seg.; Eugéne Petit,
Traité èlémentaire de droit romain, pag. 76 e seg.; Bon-fante,
lnstituzioni di diritto romano, pag. 36 e seg.
— 282 —
podesse augmentar arbitrariamente: O estado servil
não se encontrava eliminado mas modificado num
sentido favoravel ao manumittido, que possa um
complexo de direitos, limitados pela sujeição ao
patrono.
Quando a manumissão tinha sido solemne, então
o manumittido não ficava na condão de libertino,
visto gosar da plena liberdade. Não estava sujeito
ao patrono, podendo abandonar o domicilio e esta-
belecer-se onde quizesse. Esta era a caracteristica
da plena liberdade 1.
118. Condão jurídica dos libertinos entre os
wisigodos. Os libertinos não se encontram con-
trapostos, com o mesmo rigor do direito romano,
na terminologia jurídica dos godos, aos ingenuos,
pois nos documentos da Edade Media a expressão
ingenuo tem dons sentidos, um restricto, designando
o individuo que é livre por nascimento; ontro gene-
rico, sem olhar á origem da liberdade, comprehen-
dendo tambem o libertino.
Daqui não se conclua, porém, que a condição
jurídica do libertino tinha melhorado, pois até peorou
profundamente, em virtude da influencia das ias
germanicas. Effectivamente, a influencia das ias
germanicas na condão jurídica do libertino mani-
festou-se no sentido de rebaixar esta classe social,
em harmonia com o modo de vêr destes povos, onde
os libertinos se approximavam mais dos escravos
do que dos ingenuos. A acção da corrente germanica
1
Peres Pujol, Historia de las instituciones sociales de la Es-
pana goda, tom. I, pag. 476; Hinojosa, Historia general del
derecho espanol, tom. I, pag. 333; Nani, Storia del diritto italiano,
pag. 96 e seg.
— 253 —
estrangulou completamente o movimento do direito
romano, no sentido de elevar cada vez mais o
libertino.
Se a manumissão não tinha sido completa, o
libertino ponco melhorava de condSo, e, se o tinha
sido, ficava sempre num estado muito inferior ao
do ingenuo. Para melhor se apreciar, porém, a
condição judica do libertino, torna-se necessario
considerá-lo: a) em relação ao patrono: b) em
relação á sociedade.
a) Em relação ao patrono, a condição do liberto
era muito rigorosa. Primeiramente, o liberto não
tinha obrigão de permanecer ao servo do manu-
mittente, nem ficava impedido de ter outro patrono.
Este direito, porém, foi alterado, no sentido de se
prohibir ao manumisso o abandono de quem lhe
dera a liberdade, estabelecendo-se que quem desobe-
decesse a este preceito, não só perderia em beneficio
do manumissor o que delle houvesse recebido, mas
seria coagido a prestar-lhe os servos derivados do
patrocínio.
A evolão, pom, não ficou por aqui, pois uma
lei, que parece ser de Egica (687-701), dispôs que
fossem privados da liberdade os manumissos ou os
seus filhos, que, em qualquer tempo e por qualquer
subtileza, astucia, ou fraude, tentassem subtrair-se ao
patrocínio dos manumissores ou dos seus descen-
dentes (Cod. wis., liv. v, tit. vII, 1. 20). O recres-
cimento de rigor que sobre a condição dos libertos
se nota nos textos legaes do imperio wisigothico
parece significar, segundo nota o sr. Gama Barros,
da parte dos manumittidos a existencia duma forte
reacção para romperem os vínculos da sua antiga
servidão, e da parte do poder publico a tendencia
mais para a severidade do que para a tolerancia
— 254 —
com a classe dos libertos. É conveniente, porém,
observar que o codigo wisigothico desnatura o
sentido da palavra obsequium, applicando-a ás pres-
tações e serviços do liberto, quando em Roma
significava os deveres de piedade e respeito para
com os patronos.
b) Em relão á sociedade, a inferioridade jurídica
dos libertinos revelava-se: a) na o admissão em
juizo do testemunho dos libertinos, com excepção
dos casos de minima importancia, em que se acceitava
tambem o dos escravos (Cod. wis., liv. v, tit. VII, I.
42; liv. II, tit. IV, 1. 9); B) na prohibição do
consorcio do libertino ou dos seus descendentes
com alguem da geração do manumissor, constituindo
este facto um crime que importava a perda da
liberdade (God. wis., liv. v, tit. vII, 1. 47); y na
avaliação da vida do libertino que se considerava
como tendo metade do valor da do ingenuo, 250
soldos (Cod. wis., liv. vII, tit. Iv, 1. 16); na
possibilidade do libertino soffrer a tortura em causas
que tivessem metade do valor necessario para ella
se applicar ao ingenuo (God. wis., liv. vI, 1. 4) 1.
114. Categorias de libertinos no direito wisigo
thico. — As categorias de libertinos no direito
romano tambem se encontram em parte conservadas
e em parte modificadas.
a) Libertinos cidadãos romanos e libertinos latinos.
A classificação dos libertinos em cidadãos romanos,
latinos e dediticios passa do Codigo Theodosiano para
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Portu-
gal, tom. II, pag. 48 e seg.; Herculano, Historia de Portugal, tom.
III, pag. 258 e seg.; Perez Pujol, Historia de las institutio-nes
sociales de la Espana goda, tom. Iv, pag. 222 e seg.
— 255 —
o Breviario de Alarico, onde unicamente se omitte
a classe dos dediticios, que não tinha nenhuma
razão de ser. No codigo wisigothico não se falia
dos libertinos latinos; applica-se, porém, a expressão
cidadãos romanos a certos libertinos, donde se deduz,
a contrario sensu, que tambem existia a outra cate-
goria de libertinos (Cod. wis., liv. xII, tit. II, 1.13).
Parece estranho, á primeira vista, que se conser-
vasse na Hespanha goda esta distincção, tão propria
da organizão civil e politica dos romanos, depois
da conceso do direito de cidade a todos os sub-
ditos do Imperio. A estranheza, porem, desappa-
rece, desde o momento em que se note que, depois
de serem declarados cidadãos todos os habitantes
do Imperio, a distincção entre cidadãos e latinos
ainda subsistia relativamente aos libertinos. As idéas
germanicas deviam actuar no sentido da conservão
desta distinão, visto ellas o serem favoraveis á
condição jurídica dos libertinos, como tivemos
occaso de observar. A differea entre libertinos
cidadãos e libertinos latinos manifestava-se, segundo
Perez Pujol, no direito de testar, que tinham os
primeiros e que não possuíam os segundos. O liber-
tino cidadão romano, diz Perez Pujol, podia fazer
testamento, o libertino latino não, e por isso os
bens, pela sua morte, ficavam pertencendo ao patrono
ou aos seus filhos, como se nunca tivesse sido manu-
mittido. A differea, por isso, entre libertinos cida-
dãos e libertinos latinos, versava sobre um ponto
de grande interesse para os patronos,
A origem desta distincção entre libertinos cida-
dãos e libertinos latinos não se de deduzir, como
entre os romanos, da forma solemne ou particular
da manumissão, pois as formulas wisigothicas
demonstram que na manumissão por escrito parti-
— 256 —
cular se costumava estabelecer que o libertino tivesse
o caracter de cidadão. Da insistencia, porem, com
que as formulas empregam as palavras ingenuo e
cidadão romano deve deduzir-se a que a manumis-
são não tornava o libertino cidadão romano, desde
o momento em que se não consignasse no titulo esta
clausula. E' por isso, sem duvida, que os praticos
organizaram as formulas daquelle modo.
b) Libertinos idoneos e inferiores ou rusticos,
Dividiam-se tambem os libertinos em idoneos, infe-
riores ou rusticos, como os escravos. A condição
juridica dos libertinos idoneos era superior á dos
libertinos inferiores ou rusticos. A differença reve-
lava-se principalmente em o libertinio idoneo
poder ser posto a tormentos em causas cujo valor
chegasse a 250 soldos, contrariamente ao inferior,
que já o podia ser nas que se elevassem a 100
soldos.
c) Libertinos fiscaes. Havia ainda os libertinos
fiscaes e libertinos da Igreja. A respeito dos liber-
tinos fiscaes pouco dispõe o direito wisigothico,
naturalmente porque esta classe de pessoas devia
ser muito reduzida, desde o momento em que os
escravos fiscaes, em virtude das vantagens de que
gosavam, pouco podiam lucrar com a manumissão.
O codigo wisigothico limita-se a prohibir a manu-
missão dos escravos fiscaes ou dos seus proprios
escravos, sem licea regia, devendo quanto aos
primeiros ser firmado pela o do monarcha o
titulo da manumissão (Cod. wis., liv. v, tit. vII, 1.
15 a 16), e a impor-lhes, por lei especial, obri-
gações que o direito commum impunha a todos,
como a de concorrerem com os seus descendentes
ás expedições militares, sob pena de serem reduzi-
dos a escravidão, desde o momento em que não
— 257 —
houvesse motivo legitimo de impedimento (Cod. wis.,
liv, v, tit. vII, 1. 19).
d) Libertinos da Igreja. Relativamente aos liber-
tinos da Igreja, é que não faltam disposições ten-
dentes a collocá-los numa situação especial, não
tendo duvida, por isso, Herculano em affirmar que,
se á condão dos escravos da Igreja faltam cara-
cteres especiaes que em relão á sociedade civil a
differenciem claramente da dos escravos particulares,
não se pode dizer outro tanto acerca dos libertinos.
Os manumissos, sem restrião alguma, entravam
na classe dos ingenuos e ficavam emancipados de
toda e qualquer inferioridade proveniente da sua
origem (Cod. wis., liv. v, tit. II, 1. 7).
Os manumissos com restricção ficavam perpetua-
mente vinculados á respectiva Igreja, determinando-
se, por isso, que por morte do prelado elles apre-
sentassem ao successor os títulos da manumissão e
renovassem o reconhecimento dos seus deveres
(Conc. de Toledo, Iv, 633, canc. 70; Iv, 638, can.
9 e 10).
Na mesma condição parece que ficavam os liberti-
nos que pelos manumittentes seculares eram entre-
gues ao patrocínio da Igreja, o consentindo a lei
civil que os herdeiros do manumissor invocassem
qualquer direito de donio ou de patrocínio sobre
elles (God. wis., liv. v, tit. vu, 1. 18) 1.
115. Os libertinos na Reconquista. A condão
jurídica do libertino dependia inteiramente dos ter-
1
Perez Pujol, Historia de las institutiones sociales de la Es-
pana goda, tom. IV, pag. 223 e seg.; Herculano, Historia de
Portugal, tom. III, pag. 256 e seg.; Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal, tom. II, pag. 51 e seg.
17
— 258 —
mos em que ra dada a alforria. Assim quando a
manumissão era completa, o libertino não ficava
sujeito ao patronio de pessoa alguma, e, em har-
monia com as tradições antigas, entrava na classe
dos cidadãos romanos. Quando a manumissão era
restcta e incompleta, o libertino ficava sob o patro-
cinio do seu antigo senhor e tinha de cumprir as
condições que tivessem sido estabelecidas na carta de
alforria. Estes encargos passavam hereditariamente
para os descendentes do libertino. Ha documentos
dos seculos Ix a xI, em que orna pessoa dise dos
libertos de seus avós, o que não se de evidente-
mente referir a estes libertos, mas sim aos que des-
cendem delles. A maior parle das manumissões deste
período, porém, são completas e não restrictas, como
mostram os documentos que delias se occupam.
Os libertinos ecclesiasticos ficavam vinculados
perpetuamente ao patrocínio da Igreja, em virtude
da maxima de que a Igreja nunca perecia. Podiam
obter, porém, a liberdade ampla e completa, fazendo
o sacricio dos bens do seu peculio e offerecendo-os
á Igreja. Muitos senhores, ao manumittir os seus
servos, collocavam-nos frequentemente sob a tutela
e protecção das Igrejas e mosteiros. Não tinha esta
pratica por fim submetter os libertinos a uma nova
servidão, mas garantir-lhes uma liberdade, que,
doutro modo, não poderia ser muito segura, em
virtude da anarchia da epocha. Para evitar abusos
que as Igrejas pudessem commetter, costumavam os
senhores estabelecer a condição de que os libertinos
se pudessem apartar, verificando-se aquelles factos,
desta tutela e queixar-se ao rei, bispo ou conde.
A liberdade dada ao adscripto não se concebe,
como muito bem nota Gama Barros, sem de necessi-
dade involver para elle o direito de continuar, como
— 250 —
liberto, a possuir alguma terra, ou seja o peculio,
ou seja a mesma gleba a que estivera adscripto; do
contrario, resultaria que, pelo facto da manumiso,
o liberto podia ficar sem terra e portanto em situação
mais desfavoravel do que a do seu estado anterior,
quando ainda era servo.
Supponhamos, continna o mesmo insigne histo-
riador, que no mesmo acto se transmitlia o donio
sobre o predio e se dava a liberdade aos adscriptos
que o cultivavam. Póde acaso admittir-se que ao novo
senhor do domínio assistia, em absoluto, o direito
de tirar a terra a esses libertos ? Não o acreditamos,
porque repugna á doutrina da adscripção que depen-
desse legitimamente do arbítrio do proprietario rom-
per, por algum modo desfavoravel para o adscripto,
a indissolubilidade dos laços entre este e a gleba;
e, no caso supposto, admittido o effeito que contes-
tamos, a manumiso podia dar esse resultado.
Evidentemente, o que o novo dono do solo tem
direito, na nossa bypothese, a exigir dos libertos
não é que lhe larguem as glebas, mas sim que lhe
satisfam os mesmos encargos, serviços ou presta-
ções a que elles estariam sujeitos para com o manu-
missor, se este houvesse conservado em si o predio.
E tanto devemos crer que o direito e o facto,
conclue Gama Barros, eram esses, que nas manu-
missões restrictas a differea entre os vinculos que
prendiam o adscripto e os vinculos que o prendem
ainda, depois que é liberto, são bem difficeis de
distinguir e mais parecem nominaes do que reaes;
ao passo que, nas manumises plenas, a differença
de condição apparece bem manifesta, porque o
manumisso tem o direito de seguir o destino quo
quizer. Mas, devendo esta alforria considerar-se
superior aquella, é fooso reconhecer que o liberto
— 260 —
plenamente livre podia de motu proprio abandonar
a terra, mas não devia ser arbitrariamente privado
delia.
Esta doutrina de Gama Barros esem harmonia
com a de Fustel de Coulanges, que, estudando a
condão jurídica dos libertinos de servos da gleba,
mostra que a sua emancipão nunca trazia comsigo
a privão da terra, pois do contrario elles ficariam
sem meios de vida. Fustel de Coulanges intende até
que a situação destes libertinos em relação á terra
o se distinguia da dos adscriptos senão no nome 1.
116. Os libertinos no direito portugs. Os
libertinos no direito português ficavam na condição
jurídica que tinham no ultimo estado do direito
romano. O Alvará de 16 de janeiro de 1773 faz
uma referencia expressa a esta condição, determi-
nando que toda a pessoa que nascesse em Portugal
depois da sua publicação nascesse livre e ficasse
como tal habil para as honras e officios, sem a nota
de liberto, que os romanos tinham admittido, mas
que se não harmonizava com a civilizão moderna.
Nada dizem as Ordenações sobre a condição do
libertino, mas applicava-se evidentemente o direito
romano sobre este assumpto, como se vê dos pra-
xistas. A unica exceão a este silencio das Orde-
nões encontra-se na prescripção de que o padroeiro
podia revogar a alforria por ingratidão do liberto
2
.
1
Munoz y Romero, Del estado de las personas en los reinos
de Asturias y Léon, pag. 89 e seg.; Fustel do Coulanges, L'alleu
et le domaine rural, pag. 392 e seg.; Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal nos seculos XII a XV, tom. II,
pag. 83 e seg.
2
Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, tom. I, pag. 100.
— 261 —
SECÇÃO V
Pessoas com capacidade juridica limitada em virtude de
causas jurídicas
Clientes
SUMMARIO : —117. A antiga clientela romana. 118. A nova
clientela romana. 119. A clientela no direito germanico.
120. A clientela no direito wisigothico. Bucellarios.
121. A clientela na Reconquista. Malados. 122. A ma-
ladia no direito português.
117. A antiga clientela romana. Os clientes
constituíam uma classe de romanos, de condão
inferior, vinculados aos patcios por certas obriga-
ções hereditarias, recebendo, em troca, delles auxilio
e proteão. O patcio protector denominava-se
patronus. As normas legaes reguladoras das relões
entre patronos e clientes constituíam o jus patronatos.
A origem da clientela constituo uma questão muito
controvertida. Segundo os auctores antigos, como
Plutarcho e Dionísio d'Halicarnasso, a clientela deri-
vou dum simples decreto de Romulo. Esta opinião,
porem, o pode resistir- á critica scientifica, pois,
por um lado, a clientela é uma instituição commum
a todos os povos aryanos, num certo período do seu
desinvolvimento historico, e, por outro, é perfeita-
mente incomprehensivel que a vontade dum homem
fosse sufficiente para crear uma distinão o pro-
funda e radical, como a que se dava na sociedade
romana, entre patronos e clientes.
Segundo outros escriptores, como Goettling, a
clientela teve por origem o asylum, formando-se de
refugiados acolhidos na cidade, em virtude do direito
— 262 —
de asylo. O asylum, porem, é uma instituição
hellenica, introduzida em Italia, muito posteriormente
la existencia da clientela.
Segundo outros escriptores, como Niebuhr e
D'Aguanno, a clientela ter-se-hia constituído á custa
dos estrangeiros que se vinham estabelecer em Roma
e que, vendo-se privados de direitos no Estado, se
collocavam sob a protecção dos patrícios. Esta
opino, porem, o explica como é que os patrícios
se vincularam voluntariamente para com estes estran-
geiros, por meio de obrigações, sanccionadas pela
lei religiosa.
Segundo outros escriptores, como Mommsen,
Bouc-Leclercq e Fustel de Coulanges, a clientela
deriva dos escravos e dos seus descendentes, libertos
de facto, e sem que para isso se empregassem as
formalidades legaes da manumissio. Esta theoria
explica a analogia entre as relações dos clientes e
dos libertos para com os patronos, que, doutro
modo, não se de comprehender. Os clientes ficam
sendo assim antigos escravos a quem o seu senhor
concedeu o usufructo hereditario dum lote de terra,
e que, depois com o tempo, desinvolvendo a sua
descendencia parallelamente á do senhor, foram
conquistando pouco a pouco a situão de homens
livres.
Contra esta doutrina, porem, levantou-se ultima-
mente a opinião daquelles escriptores que, como
Gogliolo, intendem que a clientela appareceu antes
da escravidão, não podendo, por isso, a origem
daquella instituição filiar-se nesta. A analogia que
se entre as relações dos clientes e as dos libertos
para com os patronos explica-se, segundo estes
escriptores, por a condição dos libertos ter sido
moldada pela condição dos clientes.
— 263 —
A origem, em harmonia com esta doutrina, da
clientela teria sido a necessidade da cultura dos
terrenos apropriados, obrigando os seus possuidores
a utilizar para isso o trabalho das pessoas pobres.
Esta necessidade determinou no Imperio romano o
colonato, na Roma historica a escravidão, em tempos
muito antigos a clientela.
Contra a doutrina destes escriptores, devemos
notar que a escravidão não podia deixar de apparecer
logo nos primeiros tempos de Roma, visto ella se
encontrar em todas as sociedades da antiguidade.
E, se a clientela se desinvolve em Roma por não
haver a escravidão, como é que se explica que
aquella instituição persista, apesar do desenvolvi-
mento desta ?
Sendo, porem, a escravidão a origem primitiva
da clientela, esta engrossou depois á custa dos
refugiados de varias proveniencias e dos piebens
que desejavam ter como protector um patrício.
Os clientes, encontrando-se numa condão mais
ou menos servil, tinham a sua personalidade bastante
restringida e limitada.
Ha alguma analogia, diz Fnstel de Coulanges, entre
o cliente das epochas antigas e o servo da Edade
Media.
O principio que os condemna á obediencia não é
o mesmo. Para o servo, este principio é o direito
de propriedade que se exerce sobre a terra e sobre
o homem ao mesmo tempo; para o cliente, este
principio é a religo domestica, a que se encontra
vinculado sob a auctoridade do patrono, que é o seu
sacerdote.
Mas, a subordinação tanto para o cliente como
para o servo é a mesma; um está ligado ao seu
patrono, como o outro o está ao seu senhor;. o cliente
— 264 —
não póde abandonar a gens, assim como o servo não
podia abandonar a gleba.
Era desta situão que derivavam as multíplices
obrigações do cliente para com o patrono e a inca-
pacidade de adquirir immoveis, de estar em juizo e
de possuir bens por um titulo que não fosse mera-
mente precario. Parece até que o patrono tinha
sobre o cliente o poder de vida e morte, pois,
apesar do silencio dos textos, é isso o que mais se
harmoniza com a analogia que ha entre os clientes
e os libertos, sendo certo que o patrono tinha
positivamente sobre estes aquelle direito.
É, por isso, que Mommsen considera a clientela
um estado intermediario entre a escravidão e a
liberdade, que elle chama semi-liberdade 1.
118. A nova clientela romana. A clientela
foi-se transformando no sentido de melhorar de
condição. O direito favoreceu a emancipação dos
clientes, permittindo-lhes estar em juizo e prote-
gendo-os contra as exigencias dos patronos, fixando
até as leis, Publicia e Cincia, os limites dentro dos
quaes seriam obrigados a dadivas e presentes.
0 tempo tambem foi dissipando, lenta e gradual
mente, as relações que prendiam os clientes aos
patronos, confundindo-se as suas famílias, que con-
1
Willems, Le droit public romain, pag. 23 e seg.; Cogliolo,
Storia del diritto privato romano, tom. I, pag. 58 e seg.; Bou-
ché-Leclercq, Manuel des institutions romains, pag. 8 e seg.;
D'Aguanno, La genesi e l'evoluzione del diritto civile, pag. 198
e seg.; Mommsen, Le droit public romain, tom. VI, part. I,
pag. 59 e seg.; Fustel de Coulanges, La cité antique, pag. 366
e seg.; Edouard Cuq, Institutions juridiques des romains, tom. I,
pag. 33 e seg. e 169 e seg.; Sr. Dr. Montenegro, O antigo direito
de Roma, pag. 148.
— 265 —
lavam varias gerões, com as dos outros cidaos
romanos. Tudo isto concorreu para que a clienlela
viesse a desapparecer, como effectivamente aconteceu.
No seculo setimo, a clientela era um
instituto unica e exclusivamente
historico.
Mas, a clientela, desapparecendo no fim dum certo
tempo, legou o seu nome a uma condição social
inteiramente differente delia, como aconteceu com
todas as instituições anteriores, antipathicas ao
Estado. Effectivamente, com excepção do nome, os
novos clientes não tinham nada de commum com
a antiga instituição romana. Os clientes dos pri-
meiros seculos, diz Cogliolo, eram fortes trabalha-
dores necessarios á agricultura; os novos, do
Imperio, eram gente pobre, inerte, deshonesta,
aduladora, vivendo á custa da ambiciosa munificen-
cia doutrem.
Effectivamente, os clientes do Imperio constituíam
uma multidão de cidadãos pobres odiando o trabalho
e o commercio e que conseguiam viver tornando-se
satellites dos ricos e dos grandes. Tinham de acom-
panhar os patronos, de lisongear a sua vaidade, e
de supportar as suas insolencias. Os potentados do
Imperio encontravam assim nos clientes a sua rte.
A sua condição era humilhante e pouco remune-
radora, pois os clientes recebiam sómente uma
magra esportula, ora em dinheiro, ora em -rões
alimentares. A esportula em dinheiro parece que
era em media de dez sestercios (60 réis) por dia.
É certo que frequentemente o cliente tinha varios
patronos e recebia recompensas extraordinarias.
Muitas vezes tambem o patrono alojava o cliente na
sua casa e não se recusava a um emprestimo, a
uma caução, ou a uma protecção. Era necessario,
para isso mostrar-se zeloso, humilde e respeitador.
5
— 266 —
A situação do cliente era precaria, como a de
todos aquelles que se encontrara sob a dependencia
dos ricos, sempre dispostos a fazer sentir aos outros
a sua superioridade economica 1.
110. A clientela no direito germanico. — A clientela
que nos apparec no direito germanico tem um
caracter essencialmente militar. Era constituída por
ura pacto em virtude do qual varios guerreiros
promettiam seguir incondicionalmente um chefe,
obrigando-se a defendel-o e a não lhe sobreviver,
fazendo-se malar ou matando-se no caso de elle
perder a vida na guerra. Tacito denomina estes
guerreiros comites, o chefe princeps, e as relações
que se estabeleciam entre aquelles e este comitaius.
O Comitatus foi o resultado da pequena segurança
do meio social, em que o individuo se encontrava
constantemente em lucta, sem poder contar com a
protecção efficaz do Estado, cuja acção então era
muito pouco extensa o segura. Dahi a dependencia
em que se collocava voluntariamente um certo numero
de pessoas, que, não podendo obter, pelas suas forças a
defesa e o reconhecimento dos seus direitos, se
acolhiam a protecção de quem os devia amparar,
prestando-lhe em troca determinados serviços 0
sobretudo fidelidade e obediencia.
0 comitatus devia ser bastante geral na Germania,
mas não tanto que chegasse a absorver toda a classe
ingenua. Ficava fora deliu ura grande numero de
homens livres, cultivadores, proprietarios e guerre-
1
Edouard Cuq. institutiones juridiqiues des romain, tom. I,
pag. 557 e seg,; Coglioto, Storin Ad diritto privato romano,
tom. I pag. 62 e seg.; Letourneau, l'évolution de l'ésclavage,
pag. 429 o seg.
— 267 —
ros, que não eram príncipes nem comites, e
meramente ingenuos, sem poder sobre outros,
mas sem dependencia pessoal de ninguem 1.
120. A clientela no direito wisigothico. Bucel-
larios. —- Os homens livres que não pertenciam á
nobreza viviam entre os wisigodos, em geral,
dependentes della, visto as condições sociaes da
epocha serem pouco favoraveis á segurança
pessoal. Como observa Gama Barros, em virtude
da acção inefficaz que exercia o poder publico, a
liberdade individual estava na razão directa da
força de que dispunha cada um para se defender a
si e opprimir os outros. Daqui resultava que as
relações de dependencia para com algum homem
poderoso impunham se por si mesmo, como
necessidade social, a todas as pessoas a quem
falleciam os meios de se protegerem com os seus
proprios recursos, porque era nessas relações que
encontravam alguma segurança individual e da
propriedade.
A consequencia necessaria desta situação era a
existencia de poucos homens completamente
livres, e a admissão de diversos grãos de
liberdade, segundo a dependencia que se
verificava relativamente aos nobres e aos
poderosos.
Como manifestação da tendencia que apresenta
a evolução jurídica no periodo godo para a
dependencia dos homens livres dos nobres e dos
poderosos, apparecem nos os bucellarios,
considerando ate D. Rafael Altamira o grande
desinvolvimento desta classe uma característica
da epocha wisigoda.
1
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la Es-
pana goda, tom. I, pag. 480 e seg.; Hinojosa, Historia general
del derecho espanol, tom. I, pag. 28.
— 268 —
O bucellarío era aquelle que, carecendo de pro-
priedade de que. subsistisse, ou possuindo apenas
bens insuficientes para esse fim, se offerecia ao
serviço dum rico ou poderoso, a troco de ser por
elle beneficiado. Divergem os escriptores relativa-
mente á origem desta expressão, intendem uns que
ella deriva de bucella, palavra latino-barbara que
significa pedaço de pão, visto o bucellarío comer o
pão do seu protector. Julgam outros que deriva da
palavra germanica buckel ou da palavra escandi-
navica bukhlar, significando ambas escudo, suppondo
que o bucellarío fosse o que trazia o escudo do
senhor.
Mas, seja qual r a origem desta expressão, o
certo é que ella se encontra na Lex antiqua wisigo-
thorum, sendo traduzida, ao passar para o codigo
wisigotbico, pela phrase is qui in patrocinio consti-
tutus est (Cod. wis., liv. III, tit. I, 1. 6). O homem
livre que se constita nesta dependencia tinha o
usufructo de tudo o que lhe dava o patrono, como
armas, terras e quaesquer outras cousas, perten-
cendo-lhe a propriedade da metade do que adquiria
ao serviço daquelle, tendo este direito á outra
metade (Cod. wis., liv. v, tit. III, 1. 1, 3 e 4).
A responsabilidade do mal qoe o bucelario prati-
casse por ordem do patrono pertencia a este (Cod.
wis., liv. vIII, tit. I, I.1). E' duvidoso se nos direi-
tos do patrocínio se comprehendia o de infligir
castigo ao bucellarío, pois, dando as leis o nome de
patrono tanto ao protector do ingenuo como ao do
liberto, o preceito que nos assegura a existencia
dum direito de punir inherente ao patronio não é
assás claro para qoe se possa affirmar que abrangia
lambem o que era exercido para com homem livre
(Cod. wis., liv. vI, tit. v, 1. 8).
— 269 —
A principal obrigão que incumbia ao bucellario
era de servir com o patrono na guerra, pois o
codigo wisigothico declara expressamente que elle
recebia deste armas (Cod. wis., liv. v, tit. III, I.1).
A natureza militar dos servos do bucellario é con-
firmada por uma lei do codigo wisigothico relativa
ao tempo de campanha, que presuppõe em todos os
que estavam ligados a um patrono a obrigão de o
seguirem na guerra e de nunca o abandonarem por
nenhum pretexto. Effectivamente, ahi commina-se
uma pena grave aquelle que, em vez de seguir na
hoste um patrono certo, faltava ao cumprimento dos
seus deveres militares, constituindo se em patrocí-
nios diversos (Cod. wis., liv. Ix, tit. II, 1. 9).
As relações reciprocas de patrocínio passavam de
paes a filhos, e quando o patrocinado morria, não
deixando senão alguma filha, esta ficava sob o poder
do patrono, que até devia procurar-lhe um consorcio
decente. Continuava a desfructar o que os paes
tinham recebido do patrono, excepto se ella, por
seu livre alvedrio, escolhia um marido de condi-
ção inferior á sua, pois neste caso os bens havidos
da munificencia do patrono revertiam para este e
para seus filhos (God. wis., liv. v, til. III, passim).
O vinculo que prendia o bucellario ao patrono
podia acabar em qualquer gerão, ou por infideli-
dade daquelle ou por sua mera vontade, visto a
liberdade de escolher patrono não prescrever. Era
esta faculdade de quebrar, quando muito bem qui-
zesse, o lo da dependencia, que differenciava o
bucellario dos libertos, que se encontravam perpe-
tuamente vinculados ao patrocínio. Mas, pela pro-
teão que recebiam e pelo beneficio material que.
lhe proporcionavam as terras concedidas, os bucel-
— 270 —
larios tinham todo o interesse em conservar a sua
situação, devendo por isso ser raros os casos em
que elles rompessem o vinculo da dependencia.
Dissolvendo, pom, este vinculo, o bucellario perdia
todo quanto tivesse sido dado pelo protector, retendo
apenas metade do que adquirira por si proprio
(Cod. wis., lív. v, tit. III, I. 1, 3 e 4).
De tudo que acabamos de r relativamente aos
bucellarios, é facil tirar a concluo de que elles
constituíam uma especie de clientes. A sua condi-
ção especialmente guerreira numa epocha em que a
mais elevada funcção do homem era a guerra,
fazia-os distanciar do vulgo dos homens livres,
approximando os nos nobres. Isto deriva mesmo do
facto da filha do bucellario não poder casar com um
homem inferior a ella, pois, sendo absolutamente
probibidos os consorcios de mulheres ingenuas com
servos, não póde haver duvida alguma de que o
vulgo dos homens livres se considerava inferior
aos bucellarios (Cod. wis., liv. v, tit. m, I. 1; liv. III
tit. II, 1. 3) 1.
121. A clientela na Reconquista. Malados. As
condições da sociedade numa epocha tão profunda-
mente dominada pela barbarie não podiam ser
favoraveis á liberdade, visto, como nota Herculano,
os godos das Asturias, embrenhados nas serranias,
terem desandado oo caminho da civilização, voltando
1 D. Rafael Altamira, Historia de la Espana y de la civiliza-
ción espanola, tom. I, pag, 192 e seg.; Herculano, Historia de
Portugal, tom. III, pag. 233 e seg.; Gama Barros, Historia da
administração publica em Portugal, tom. I, pag. 95 e seg.; Perez
Pujol, Historia de las instituciones sociales de la Espana goda,
tom. IV, pag. 187 e seg. e tom. II, pag. 188.
— 271 —
de certo modo ao viver de seus antepassados errantes
nas selvas da Germania.
Póde, por isso, assegurar-se que, como diz Munoz,
neste periodo não houvesse pessoas completamente
livres que não fossem da primeira nobreza, visto as
outras se encontrarem sob a dependencia dos pode-
rosos, a fim de se garantirem contra a lacta das
foas individnaes. Aquelles que não podiam repellir
a força pela força estavam todos os dias expostos a
ser aggredidos e a ver saqueadas as suas casas e
talados os seus campos.
Nada provaria melhor o estado anarcbico e turbu-
lento desta epocha, do que um quadro chronologico
das invasões, guerras civis, rebelliões e guerras pri?
vadas de que nos dão noticia as antigas chronicas e
outros documentos. A liberdade e a propriedade
encontravam-se inteiramente á mercê do mais forte.
Por occasião da morte de Fernando I e depois que
os seus filhos repartiram entre si o reino, revolta-
ram-se varios condes e cavalleiros, saqueando tudo
sem perdoar as igrejas e mosteiros, como tinham
por costume fazer.
Aquelles indivíduos que se collocavam sob a
guarda de algum homem poderoso ou valente, a fim
de gosar da segurança, que não podiam ter por si
mesmos, a troco de dadivas e pensões, chamavam-se
matados. Esta protecção tinha o nome de benfeitoria,
commenda ou malatum.
Emquanto á origem etymologica da palavra mata-
dos, uns como Herculano, derivam-na da palavra
germanica Mal, signal, visto na maladia haver o
censo ou prestação, como um signal, como resultado
dum ajuste; mas outros, como Munoz, talvez mais
exactamente, derivam-na da palavra arabe maulà,
nome com que os arabes designavam os clientes.
— 272 —
Os escriptores anteriores a Herculano, como
Viterbo, Amaral e João P. Ribeiro, consideravam a
maladia como significando um direito territorial e
o matado como equivalendo ao servo adscripto.
Herculano, com o seu admiravel senso historico,
pôs bem em evidencia a justa natureza da maladia,
como uma verdadeira clientela.
O malado pagava ao patrono, como recompensa da
protecçio que recebia, certos tributos e prestações.
Algumas vezes, cedia mesmo os seus bens, conser-
vando-os como censualista, isto é, com a obrigação
de pagar determinadas pensões. Era frequente
tambem que procurassem a commenda dos podero-
rosos, aquelles que tinham commettido um delicio
ou uma injuria, a fim de evitar a vingança ou de a
aplacar.
Quando o patrono não dispensava ao cliente a
protecçio a que estava obrigado, este podia aban-
dona-lo e procurar ontro que o protegesse mais
efficazmente. Mas, como a clientela augmentava o
poder e a riqueza dos nobres, é de crer que elles
procurassem por todos os modos conservá-la, pro-
tegendo os que se tinham acolhido á sua commenda.
A relação de maladia, como nota Herculano,
parece ter nascido em epochas immediatas á reacção
christã contra a conquista serracena, e ser um
resultado da confusão e barbaridade que reinara
por muito tempo na monarchia leonêsa. O fraco, o
pobre, o humilde estavam constantemente expostos
ás violencias duma aristocracia militar, para cujas
rudes paixões fraca barreira eram as instituições
publicas apenas esboçadas, confusas, e o defen-
didas por força alguma moral ou material. Era
natural, pois, que os indivíduos incapazes por qual-
quer motivo de repellirem a violencia com a violen-
— 273 —
eia, de se defenderem a si proprios, se collocassem,
como clientes, debaixo da guarda e protecção de
outros.
A maladia começou a decair com o desinvolvi-
mento do poder municipal. A protecção que este
dispensava era muito maia efficaz e desinteressada. E'
por isso que, como nota Munoz y Romero a
instituição dos concelhos foi ama das que mais
contribuíram para o desinvolvimento na Península da
civilização, facilitando a liberdade e a emancipação
das classes inferiores 1.
122. A maladia no direito português. Encon-
tramos tambem logo nos princípios da monarchia os
matados, designando este vocabulo antes o estado de
dependencia de um individuo para com outro em
razão das pessoas, do que a dependencia em razão da
propriedade, sem que todavia excluísse a ultima. Estas
relações de dependencia deviam-se desenvolver com
tanto mais facilidade, quanto era certo que á
administração publica faltavam os meios necessarios
para estender a todos a sua protecção benefica, tendo
por isso os fracos, para obter a segurança das suas
pessoas e da sua propriedade, de procurar a
encommenda ou a benefactoria dos poderosos. E' por
isso que, com excepção dos indivíduos da primeira
nobreza, os outros se deviam encontrar na
1
Munoz y Romero, Del estado de las personas en los reinos
de Asturias e León, pag. 139 e seg.; Herculano, Historia de Por-
tugal, tom. IV, not. III, pag. 480 e seg.; Rafael Altamira, Historia
de Espana y de la civilización espanola, tom. I, pag. 289 e seg.;
Viterbo, Elucidario, verb. Malado e Maladia ; Gama Barros,
Historia da administração publica em Portugal, tom. II, pag. 29 e
seg.
18
— 274 —
dependencia maior ou menor de quem lhes prestava
amparo e segurança, a troco de certos tributos e
serviços, ou até da cedencia de todos ou parte dos
bens, como acontecia no direito peninsular.
O valor das expressões inalado e maladia torna-se
fluctuante, assumindo diversas significações, sem
duvida por causa do seu caracter demasiadamente
generico. Assim, a expressão matado, ao passo que
umas vezes designava o rendeiro, o familiar, o cliente,
o protegido dum poderoso, que tomava qualquer
debaixo da sua protecção a troco de tributos, servos
ou bens, outras vezes significava o simples colono
particular ou publico. Finalmente, nos concelbos
organizados durante os seculos xII e xIII a denomi-
nação matado passou a abranger tanto o cultivador
livre não proprietArio, como o familiar, o jornaleiro,
o homem sujeito á domesticidade e collocado numa
situação mais ou menos inferior.
A condição juridica dos matados era muito pre-
caria, chegando a dizer Gama Barros que os laços
que prendiam o liberto wisigothico e ainda o escravo
ao seu senhor se reproduziam, a alguns respeitos,
nos vínculos que nos seculos xII e XIII ligavam em
Portugal os homens de mais ínfima condição aos
seus patronos. Isto deduz-se, como mostra este
escriptor, claramente dos foraes, que, regulando as
relações entre o senhor e os seus malados, ao passo
que estabelecem garantias reciprocas, põem em
muitos casos o malado numa dependencia quasi
servil para com o amo. Como simples morador do
concelho, o individuo de condão ínfima o tinha
deveres para com a communidade, salvo, pelo menos,
nalgumas partes, o de a defender das aggreses
estranhas e o de trabalhar nas obras do castello; os
seus encargos eram unicamente para com o senhor,
— 275 —
a quem até em muitos concelhos pertencia
receber, no todo ou em parte, as multas impostas
aos seus homens pelos delictos que praticassem e
a multa pelo homicídio de que algum delles fosse
victima.
A inferioridade do malado ainda se revela no facto
delle não ser admittido a conjurar. Herculano intende
esta prohibição dum modo absoluto, sustentando
que o malado estava sempre inhibido de conjurar,
sendo assim egualado aos falsarios e a outras
pessoas incapazes de testemunhar em juizo.
Gama Barros não uma interpretação o
generica a esta prohibição, referindo-a unicamente
ao patrono do malado e não a estranhos, de modo
que, se o accusado queria defender-se com
conjuradores, os seus inalados não eram admittidos
a jurar com elle.
Finalmente, o malado, ainda que posssse
cavallo, gosava apenas de fôro de peão, quando o
julgavam por ferimentos que tivesse feito a algum
cavalleiro ou peão.
E, se a condão juridica dos malados no
concelho o era boa, tudo leva a crer que ella
não deveria ser mais favoravel fóra das terras
municipaes, em que a oppressão dos poderosos
não encontrava obstaculos nem resistencias. E
depois nos concelhos, em virtude do caracter
democratico das suas instituições, o homem de
condão infima podia mais facilmente elevar-se
pelo seu trabalho a uma categoria superior e vir a
gosar de immunidades importantes, adquirindo os
foros de vizinho 1.
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. IV, pag. 336 e seg.;
Gama Barros, Hittoria da administração publica em Portugal,
tom.I, pag. 477.
— 276 —
SECÇÃO VI
Pessoas com capacidade jurídica limitada em
virtude de causas politicas
Estrangeiros
SUMRIO : 123. Os estrangeiros no direito primitivo e nas
sociedades antigas. 124. Os estrangeiros na Hespanha
preromana. 126. Os estrangeiros em Roma. Desinvolvi-
mento da distinão entre eives e peregrine. 126. Direitos
dos cidadãos romanos. 127. Condição judica dos pere-
grine propriamente dictos. 128. Os latini e os seus
direitos. 120. Concessão do direito de eidade a todos
os snbditos do Imperio. —180. Os barbari, 181. Os
estrangeiros entre os germanos. 132. Os estrangeiros
entre os visigodos. —133. Os estrangeiros na Reconquista.
134. Os estrangeiros no direito português. Tractamento
benevolo dos estrangeiros. 135. Privilegios concedidos
aos estrangeiros. 136. Applicação directa do direito es-
trangeiro. — 137. Applicação indirecta.
123. Os estrangeiros no direito primitivo e nas
sociedades antigas. Nos tempos primitivos, em
que as funões sociaes revestem fórmas imperfeitas
e incoherentes, em qae as diversas communidades,
am de se considerarem inteiramente estranhas pelo
sangue e pela descendencia, se odeiam de morte, e
em que as necessidades da lacta contra o homem e
a natureza preoccupam inteiramente toda a actividade
individual e social, facil é de r que o estrangeiro
devia ser excluído de toda a vida jurídica. Em
períodos mais adiantados da evolução, as differenças
profundas de religo, a diversidade de tradições e
de costumes e a absorpção completa do individuo
pelo Estado, produziram o mesmo resultado.
— 277 —
É, por isso, que as legislações antigas se salien-
tam pelo rigor, desconfiança e a odio com que
tractam os estrangeiros. Nos povos theocraticos da
antiguidade, na índia, no Egypto e na propria Judeia,
as crenças religiosas votavam os estrangeiros ao
maior desprezo, considerando-os impuros, perversos
e dignos de cruel aversão. As leis sagradas de
Manu, prohibiam, sob pena de castigos severos,
todas as relações com os estrangeiros, e os Indios
attribuiam-se, como raça pura e privilegiada, a missão
de purificar todas as regiões, destruindo as outras
raças, e o supremo direito de dispor da terra e da
vida dos homens. As leis egypcias prohibiam as
viagens, não permittiam a introducção de qualquer
uso estranho, e não reconheciam a hospitalidade.
O povo judeu era o povo eleito e como tal não se
queria manchar numa communhão de direitos e insti-
tuições com os outros povos.
Nos povos commerciantes, como em Athenas e
talvez em Carthago, este rigor suavizou-se um pouco.
Ao passo que a lei de Lycurgo expulsava do solo de
Sparta os elementos estrangeiros, a legislação athe-
niense tolerava-os, embora os encarregasse num
bairro determinado e os obrigasse a pagar um
imposto especial. O isolamento, a guerra e o direito
do mais forte formam a caracteristica destes tempos.
Laurent, apreciando esta phase da evolão do
direito internacional, affirma que o primitivo isola-
mento dos povos foi uma necessidade providencial
para a conservão da originalidade de cada um
delles, visto assim terem podido realizar a sua missão
de desinvolver um aspecto particular da vida social.
Mas, esta doutrina representa um preconceito dou-
trinal a priori, admittido pelo illustre jurisconsulto,
para justificar o que encontra a sua verdadeira
— 278 —
explicação nas condições economicas, ethnicas, reli-
giosas e moraes das antigas sociedades politicas 1.
124. Os estrangeiros na Hespanha preromana. As
condições sociaes da Península, no período pre-
romano, eram pouco favoraveis ao reconhecimento
dos direitos dos estrangeiros. O isolamento em que
viviam as diversas tribus, o caracter gentilicio que
apresentava a religião, o atrazo que manifestava a
vida economica, tudo isto devia contribuir para
separar e afastar os estrangeiros por um abysmo
insondavel e para alimentar a hostilidade contrai
elles.
Apparece, porém, no peodo preromano uma
instituição que, como observa Hinojosa, teve por fim
supprir a insufficiencia das relações internacionaes e
da proteão reciproca entre subditos de nacionali-
dades distinctas. Essa instituição era a hospitalidade,
que originava, em virtude do contracto, ama prote-
ão de caracter permanente e reciproca, transmis-
sível para os descendentes. Nas inscripções estudadas
por Hübner apparece uma que se refere expres-
samente á renovação do hospitium....gentilatas
Desoncorum ex gente Zoelarum et gentilitas Tridiavo-
rum ex gente idem Zoelarum hospitum vetustum
antiquum renovaverunt. E Alorco que militava no
campo de Annibal foi hostes dos Saguntinos, o que
lhe permittiu levar a bom termo, sem temor, a soa
embaixada. O pacto de hospitalidade não intervinha
unicamente entre indivíduos, porquanto tambem
podia ter logar entre tribus ou eidades. A extensão,
1
Veiss, Traité de droit international privé, pag. 4 e seg.;
Fiore, Le droit intemational privé, tom. I, pag. 8, Laurent,
Droit civil international, tom. I, n.° 61.
— 279 —
porém, dos direitos da hospitalidade, as obrigões
que ella originava e o modo como se devia cumprir,
dependiam do que se encontrasse estipulado no
respectivo pacto.
Outras relações se estabeleciam entre as diversas
tribus, nesta epocba, em virtude da formão de
confederações ou allianças, tendo por fim a defesa
da independencia. Neste caso, constituia-se uma
especie de assembleia federal, composta de repre-
sentantes dos varios povos alliados, que elegia o
chefe do exercito, determinava o contingente com
que cada um tinha de contribuir para sustentar a
guerra e decidia a respeito das condições da paz.
A guerra, porém, revestia o caracter duma barbarie,
julgando-se os vencedores com direito de vida e
morte sobre os prisioneiros, que escravizavam,
quando, como testemunha Estrabão, não sacrificavam
aos idolos. Em todo o caso, não de haver duvida
de que era reconhecido o principio da inviolabilidade
dos legados.
Finalmente, ainda se encontram nos monumentos
numismaticos provas da existencia de outra ordem
de relões entre os povos da Hespanha preromana.
A presença simultanea de varias legendas geogra-
phicas ou ethnicas, diz Zobel, numa mesma moeda
é um facto assás frequente nos monumentos numis-
maticos da Antiga Iberia, e demonstra ter sido
muito usual entre as innumeraveis tribus que a
povoavam formar alliança, já para o trafico, para
a guerra, resultado naturalismo, dada a falta de
unidade politica e de governo commum, que o cara-
cter independente e irrequieto daquella gente por
instincto repellia.
Estas uniões monetarias denominavam-se omonoias
e deviam determinar, sob o ponto de vista jurídico o
— 280 —
reconhecimento de alguma cousa similhante ao jus
commercii, Isto é, dos direitos civis inherentes aos
contractos que facilitava omonoia 1.
125. Os estrangeiros em Roma. Desinvolvimento
da distincção entre cives e peregrini. Roma o
podia deixar de seguir a orientação geral dos povos
da antignidade a respeito dos estrangeiros. Dahi
deriva a distincção profunda que se nota entre os
cidaos e os estrangeiros, no direito romano,
distincção que seguiu as pbases da evolução politica
e social do povo romano. E' assim qne esta distin-
ão reflecte as tres phases da vida historica dos
romanos: a primeira exclusivista, em que Roma
apresenta a natureza violenta e intolerante dos povos
primitivos; a segunda de concessões, em que se
relaciona com os outros povos e disciplina a sua
conducta para com elles; a terceira de unificação,
em qne ella realiza a aborpção politica do mundo
antigo.
Effectivamente, os romanos começaram por consi-
derar os estrangeiros inimigos e por julgar que com
elles o podia haver outras relações que não fossem
as da guerra. E, como os vencidos podiam ser
reduzidos á escravidão, o mesmo acontecia com o
estrangeiro que se aventurasse a penetrar em Roma.
O estrangeiro era um hostis e as leis das XII Taboas
diziam expressamente adversus hostem aeterna aucto-
ritas esto. E' a phase do exclusivismo.
1
Peres Pujol, Historia de las instituciones de la Espana goda,
tom. I, pag. 62 e seg.; Hinojosa, Historia general del derecho
espanol, tom. I, pag. 83 e seg.; Joaquim Gosta, Poesia popular
espanola y mitologia y litteratura celto-hispanas, pag. 257 e seg.;
Hübner, Inscriptiones Hispaniae latinae, n.° 2633.
— 281 —
O isolamento o podia manter-se durante muito
tempo, visto não se harmonizar com a expansão das
relações sociaes que os progressos de Roma deter-
minaram. E, por isso, os antigos rigores foram-se
attenuando, e o direito procurou garantir a segurança
da pessoa e dos bens dos estrangeiros. Sem permitir
aos peregrinos participar do jus civium romanorum,
excogitaram-se diversos meios de fazer respeitar as
suas relações judicas e até de lhes extender alguns
institutos proprios dos quirites.
Os estrangeiros podiam obter a protecção dos
seus direitos por meio duma convenção entre as
suas cidades e a republica romana. Quando faltava
o tractado, podia essa proteão ser assegurada
individualmente pelo hospitium, em virtude do qual
os romanos e os estrangeiros se obrigavam mutua-
mente a proteger-se nas suas cidades. Estas institui-
ções tornaram-se insuficientes com o desinvolvimento
do povo romano, apparecendo eno o jus gentium,
que, não tendo nada de commum com o que nós
hoje chamamos direito internacional, assegurava aos
estrangeiros uma condição jurídica mais favoravel,
emquanto reconhecia que havia princípios de direito
communs a lodos os homens. A area do jus gentium
foi-se alargando, attrahindo institutos que perten-
ciam ao jus civile, crescendo deste modo o numero
de direitos de que gosavam os estrangeiros. Assim,
segundo o jus civile o estrangeiro não podia contrahir
casamento valido; introduziu-se, porem, o matrimo-
nio segundo o jus gentium, sendo legítimos os filhos
que delle nascessem. E' a phase das conceses.
Finalmente, quando Roma attinge o apogeo do
seu poder e da sua grandeza, procura transformar
o mundo numa vasta organizão politica, com uma
lei e uma só administração, não reconhecendo
— 282 —
juridicamente senão o que se encontra sob o seu
domínio. E' o período da unificação.
Ora a distinão entre cives e preregrini, profunda
no primeiro peodo, attenua-se no segundo e quasi
desapparece no terceiro 1.
1S6. Direitos dos cidadãos romanos. 08 cida-
dãos eram os indivíduos que gosavam dos direitos
de cidade. Eram os membros do Estado, visto na
organização das sociedades antigas o Estado se
encontrar confundido com a cidade.
Os direitos de cidade eram poticos e civis. Os
direitos políticos eram o jus suffragii e o jus honorum,
consistindo o primeiro no direito de voto nos co-
cios, e o segundo no direito de acesso ás magistra-
turas romanas.
Os direitos civis consistiam no jus connubii e no
jus commercii. O connubium era a faculdade de
contrahir o matrimonio segundo o jus civile e com
todos os effeitos por elle estabelecidos, entre os
quaes avultavam os direitos do patrio poder e de
agnão. O commercium era a faculdade de praticar
actos jurídicos de índole patrimonial, segundo o
direito civil romano de adquirir a propriedade
romana, de fazer testamento com as solemnidades e
os effeitos do direito civil, de ahi figurar como
herdeiro ou testemunha, etc.
1
Sr. Dr. Villela, Lições, de direito internacional, pag. 20 e
seg.; Liénard, Le préteur périgrin, pag. xxxIV; Cogliolo, Storia del
diritto romano, tom. I, pag. 80 e seg.; Gianzan, Lo straniero, vol.
I, pag. 8 e seg.; Nani, Storia del diritto italiano, pag. 55 e seg.;
Retortillo y Tornos, Compendio de Historia del derecho
internacional, pag. 54 e seg.
— 283 —
Desta fórma, foi completamente desconhecido
no direito romano o principio da egualdade civil
que deve existir entre nacionaes e extrangeiros.
Aquelle direito não permittia qne os estrangeiros
fossem admittidos ao goso dos direitos civis do
Estado romano, porque estes direitos eram um
apanagio exclusivo dos cidadãos.
Nem todos os cidadãos gosavam de todas as
quatro classes dos direitos de cidade. Dahi a dis-
tincção entre optimo jure cives e non optimo.
Assim, os cidadãos que tivessem incorrido na
nota de infamia applicada pelos censores e qne se
chamavam aerarii eram excluídos das tribos e
por conseguinte perdiam o jus suffragii. Do
mesmo modo, os libertinos não gosavam de todas
as vantagens jurídicas inherentes á qualidade de
cidadão.
Inversamente, havia classes privilegiadas que
gosavam de favores excepcionaes, provenientes
ou dos seus títulos ou das suas funcções. Estão,
oeste caso, na epocha imperial os clarissimi e os
militares 1.
187. Condição jurídica dos peregrini propria-
mente dictos. Peregrini, dom modo geral,
eram todos os homens livres excluídos da
cidade. Num sentido especial, eram os habitantes
dos países que tinham com Roma tractados de
alliança ou que tinham sido submettidos ao
domínio romano e reduzidos ao estado de
províncias. Por conseguinte, neste sentido, os
peregrinos pertenciam aos povos alliados ou
subditos de Roma.
1
Serafim, Instituzioni di diritto romano, tom. I, pag. 138; Bry,
Principes de droit romain, pag. 48 e seg.; Sr. Dr. Guimarães
Pedrosa, Introducção ao direito privado internacional, pag. 83 e
seg.
— 284 —
Os peregrinos não gosavam nem dos direitos
políticos nem dos direitos privados dos cidadãos,
embora os podessem adquirir pela concessão com-
pleta ou parcial do jus civitatis. Mas gosavam das
garantias do jus gentium e do direito nacional,
quando aqoelle era omisso on insufficiente.
O jus gentium era uma parte do direito privado
romano, declarada applicavel aos peregrinos, por
constituir o fundo commum de todas as legislações.
O jus civile, de construcção mais artificial e de utili-
dade menos evidente e menos geral, era reservado
para os membros da cidade. O jus gentium era o
direito do homem; o jus civile, o superfluo, o orgu-
lho e o adorno do civis romanus.
A applicação exclusiva do jus gentium deixaria os
peregrinos numa situão muito precaria, excluin-
do-os, duma maneira absoluta, o só dos direitos
referentes ao jus civile, mas ainda dos que, tendo
sido organizados pela soa lei pessoal, não tinham
equivalente nas instituições romanas. Varios textos
mostram claramente que, qnando o jus gentium fosse
insnfficiente, o estrangeiro podia invocar a soa lei
de origem, desde o momento em que pertencesse a
uma cidade determinada. Era uma nova concessão
de Roma aos estrangeiros, que efla tinha vencido e
incorporado no Imperio.
Havia, porém, peregrinos que não pertenciam a
nenhuma cidade, e que, por isso, unicamente podiam
invocar em seu favor o jus gentium. Estavam neste
caso os peregrinos dediticios, povos que se entrega-
vam ã discrição e a quem os romanos tiravam toda
a autonomia.
Encontravam-se tambem nesta condão aquelles
indiduos que eram assimilados aos peregrinos
dediticios, on por terem perdido o direito de cidade
— 285 —
em virtude de condemnação, ou por serem liberti-
nos que tinham soffrido durante o tempo da escra-
vidão alguma pena infamante 1.
128. Os latini e os seus direitos. — Entre os
peregrinos, havia uma classe privilegiada, os latini.
Os latinos eram, pois, peregrinos tractados mais
favoravelmente e aos quaes tinham sido concedidos
alguns dos privilegios comprehendidos no direito da
cidade romana. Havia tres especies de latinos: latini
vetem; latini coloniarii; e latini juniani.
a) Latini veteres Os latini veteres eram os habi-
tantes do antigo Latium. O Latium compunha-se de
varias cidades, formando uma poderosa confederação,
que tinha Alba por capital. Depois da queda desta
cidade, Roma procurou substitui-la, sendo a condi-
ção dos habitantes da confederação regulada por
meio de tractados. Os latinos, porém, quizeram
revoltar-se contra os romanos, originando-se uma
guerra sanguinolenta, que teve como desenlace a
destruição da confederão, depois do triumpho de
Roma. Alguns habitantes das cidades latinas obti-
veram o direito de cidade, conservando os outros,
em geral, a sua condão anterior, que lhes assegu-
rava o connubium e o commercium, bem como o
suffragium se se encontrassem em Roma, por occa-
sião dos comícios. Tinham, alem disso, grande
facilidade de adquirir o direito de cidade romana,
visto tornarem-se cidadãos, se desempenhassem uma
1
Willems, Le droit public romain, pag. 137 e seg.; Bouché
Leclercq, Manuel des institutions romaina, pag. 343 e seg.;
Weiss, Traité theorique et pratique de droit internacional privé,
tom. II, pag. 31 e seg.
— 286 —
magistratura no seu pais, se fizessem condemnar um
magistrado romano por concuso ou se se fixassem
em Roma, deixando na soa patria um descendente
que podesse ahi perpetnar a soa raça. Este direito
de latinidade desappareceu, quando Julio Cesar con-
cedeu o direito de cidade a todos os habitantes da
Italia. Entretanto, constituiu-se sobre a condição
dos Latini veteres um direito de latinidade artificial,
que frequentemente era concedido a differentes
cidades e países.
b) Latim coloniarii. Um dos meios de que se
serviu Roma para consolidar o seu donio e assi-
milar os povos vencidos, foi o de crear colonias no
territorio conquistado. Destas colonias, umas com-
punham-se de romanos, escolhidos na parte pobre
e turbulenta da populão e conservando a qualidade
de cidadãos e os direitos inherentes a este titulo
colonias romanas; outras eram formadas, quer com
latinos, qner com cidadãos que abandonavam volun-
tariamente a sua patria e perdiam assim a qualidade
de cidadãos, tornando-se latinos colonias latinas.
A condão juridica dos latini coloniarii era superior á
dos peregrinos ordinarios, mas inferior á dos latini
veteres, visto os latini coloniarii não terem em Roma
nem os direitos políticos, nem o jus connubii, gosando
unicamente do jus commercii. Tem-se contestado a
posse do jus commercii pelos latini coloniarii, mas
sem fundamento. Ulpiano declara, dom modo formal,
que os Latini coloniarii participavam do jus
commercii. Por outro lado, os latini juniani gosavam
do jus commercii e Gaio diz que a condição destes
ultimos tinha sido moldada pela dos latini coloniarii.
Não tinham as facilidades dos latini veteres, no
que dizia respeito á adquisição da qualidade de
— 287 —
cidadão romano, visto este favor unicamente lhes
ser concedido DO caso de terem exercido uma magis-
tratura latina.
c) latim juniani Como sabemos, a lei junia
Norbana deu a certos libertinos a condão juridica
dos latinos coloniarios, ferindo-os de algumas inca-
pacidades. Chamaram-se juniani, como vimos 1.
180. Concessão do direito de cidade a todos os
subditos do Imperio. O circulo do direito de
cidade foi-se alargando, á medida que Roma foi
desinvolvendo a sua acção politica e social. Os impe-
radores tornaram-se notaveis pela prodigalidade com
que conferiram este direito. Claudio e Marco Aurelio
fizeram delle largas concessões.
Antonio Caracalla tomou uma providencia mais
radical, concedendo a qualidade de cidao romano
a todos os habitantes do Imperio. O pretexto foi
dar ao mundo um titulo lisongeiro, o motivo real
foi o interesse fiscal de augmentar o producto do
imposto sobre as successões dos cidaos, cuja taxa
aquelle imperador Unha elevado.
De eno por diante não houve outros peregrinos
além dos condemnados a penas involvendo a perda
do direito de cidadão, dos libertinos dediticios e dos
novos povos incorporados no Imperio, em virtude
de conquista; e não ficaram existindo outros latinos,
além dos latinos junianos.
Justiniano aboliu todas estas differenças,
ficando privados do direito de cidade os
condemnados a
1
Eugéne Petit, Trailé élémentaire de droit romain, pag. 67 e
seg.; Bry, Príncipes de droit romain, pag. 53 e seg.; Willems, Le
droit public romain, pag. 139.
— 288 —
certas penas criminaes, os escravos e os bárbaros.
Caracalla e Justiniano, porém, não fizeram uma
revolução Das instituições do Imperio; traduziram e
sanccionaram em lei o que se impunha como facto,
sabendo aproveitá-lo para augmentar o numero dos
tributarios do imperio. Discote-se se depois de
Justiniano ainda se continuou a distinguir o jus
civil do jus gentium. Os mais recentes romanistas,
como Pernice, Van Vetter e Sohm contestam toda a
differença entre o jus gentium e o jus civile, depois
daquelle imperador. Leonbard apresenta alguns
textos para sustentar a doutrina contraria 1.
130. Os Barbari. Chamavam se barbaros os
povos com que Roma o mantinha nenhuma rela-
ção pacifica. Estavam ra da área do jus gentium,
sendo, por isso, a guerra a condição perpetua das
relações dos romanos com elles.
Os seus bens eram cousas nullius de que cada
um se podia apoderar.. Podiam tambem ser livre-
mente mortos e reduzidos à escravidão. Estavam
fora da civilizão e da geographia romana, segundo
a phrase característica de Ortolan.
Estes princípios perderam, com o tempo, muito
do sen rigor, pois os bárbaros tornaram-se, por
vezes, auxiliares dos romanos e estabeleceram-se
como colonos em algumas regiões do Imperio.
1 Eugéne Petit, Trai èlèmentaire de droit romain, pag. 71;
Sr. Dr. Guimaes Pedrosa, Introducção ao estudo do diriito
privado internacional, pag. 87 e seg.; Herculano, Autoria de
Portugal, tom. I, pag. 40; Nani, Storia dei diritto italiano,
pag. 54 e seg.
— 289 —
Em todo o caso, elles nunca adquiriram o direito
de cidade, sendo, porém, obscura a sua condão
juridica completa 1.
181. Os estrangeiros entre os germanos. — Entre
os germanos, os homens livres encontravam-se
repartidos por um certo numero de associações,
onde reinava a mais estreita solidariedade, constir
tuidas era torno dos guerreiros mais valentes. Os
homens livres que não faziam parte de nenhuma
associão eram considerados estrangeiros, sob o
nome de Garganei ou Warganei.
O estrangeiro, em principio, não tinha direito a
nenhuma protecção; estava fóra da lei; não podia
usar armas; não tinha direitos civis nem políticos:
à menor infracção podia ser morto, e até, quando a
sua conducta era irreprehensivel, estava exposto a
soffrer as violencias dos membros das tribus, pelo
menos a ser expulso do logar onde fixasse a sua
residencia.
0 meio que o Warganeus tinha de subtrahir a
uma condição tão precaria, era o patrocínio dum
homem livre, que ficasse responsavel pelos seus
delictos e como tal obrigado a pagar o vehrgeld, por
elles devido. Os vínculos do patrocínio contrahiam-se
com uma grande facilidade, bastando que um War-
ganeus passasse tres noutes na casa dum germano,
para que elle o devesse tomar sob a sua protecção.
O estrangeiro tambem podia obter a seguraa da
sua pessoa, por meio dum tratado internacional.
1
Willems, Droit public des romains, pag. 626 e seg.; Sr. Dr.
Arthur Montenegro, O antigo direito de Roma, pag. 153; Weiss,
Traité théorique et pratique de droit international, tom. II
pag. 44.
19
— 290 —
Mas, se o estrangeiro protegido não podia ser
objecto de violencias pessoaes, era-lhe, porém, inter-
dicta toda a participação na vida publica e o goso
dos mais importantes direitos civis 1.
132. Os estrangeiros entre os wisigodos. Os ,
barbaros introduziram o regimen do direito pessoal,
visto elles permittirem aos vencidos o continuarem a
reger-se pelas suas leis proprias, ou por causa da
resistencia que o direito romano devia opr i sua
suppreso, ou por causa da difficuldade que elles
encontram em estabelecer leis communs a todos os
povos submettidos á sua soberania. Não admira, por
isso, que os wisigodos introduzissem na Pensula o
regimen do direito pessoal, como se deduz da
formação de codigos diversos para cada um dos povos,
evidenciada pelo Palimpsesto da Corbie e pela Lex
romana wisigtohorum.
Mas, como estes povos se encontravam submetti-
dos á unidade da soberania, é claro que as relações
que porventura se verificassem entre elles o eram
entre nacionaes e estrangeiros. Do mesmo modo,
08 conflictos que surgissem por causa da coexis-
tencia destas legislações relativamente ao direito
applicavel ás pessoas e aos factos jurídicos, não
podiam tambem ter caracter internacional, pela
mesma razão da unidade da soberania.
Quanto á condição dos estrangeiros, isto é, dos
indivíduos pertencentes a povos que o se encon-
travam sob a mesma soberania do Estado onde se
1
Weis, Traité théorique e pratique de droit international
privé, tom. II, pag. 45 e seg.; Laghi, II diritto internazionale
privato, tom. I, pag. 28 e seg.; Catellani, II diritto internazio-
nale privalo, tom. I, pag. 197 e seg.
— 291 —
achavam, parece que gosavam da protecção do seu
direito nacional, visto o codigo wisigothico prohibir o
uso das leis romanas e estrangeiras (cod. wis., liv. II,
tit. I, 1. 8). Certo é, porém, que entre os outros povos
barbaros não aconteceu assim, pois, por exemplo, entre
os francos os estrangeiros o gosavam de nenhuma
garantia e encontravam-se inteiramente á mercê da força
e do arbítrio, a não ser que se collocassem sob o
patrocinio dum poderoso, trocando assim a sua
independencia por uma relativa protecção. A protecção do
rei era particularmente efficaz e especialmente procurada,
visto defender o estrangeiro contra as exacções do
fisco e contra as perseguições injustas, e lhe permittir
viver segundo a lei nacional, fazer transacções com-
merciaes e dispôr dos bens por testamento.
Mais tarde, como sabemos, realizou-se a fusão das
duas ras, bispano-romana e wisigothica, substi-tuindo-
se então o direito pessoal pelo territorial, como mostra
o codigo wisigothico, que traduz esta grande
transformação. Parece que, desde este momento por
diante, o estrangeiro o podia invocar o seu direito
nacional, em virtude da prohibição do codigo
wisigothico relativamente ao uso das leis romanas e
estrangeiras, a que já nos referimos.
133. Os estrangeiros na Reconquista. Na popu-
lação dos reinos christãos da Reconquista, appare-cem
muitos estrangeiros. Não faltando nos viajantes
1
Weiss, Traité théorique e pratique de droit international
privé, tom. n, pag. 47 e seg.; Sr. Dr. Guimarães Pedrosa, Intro-
ducção ao estudo do direito privado internacional, pag. 97 e seg.
e 146; Despagnet, Précis de droit international privé, pag. 52 e
seg.; Sr. Dr. Theophilo Braga, Patria portuguesa, pag. 262.
— 292 —
peregrinos, commerciantes e monges, que acudiam
às povoões mais importantes e aos sanctnarios e
mosteiros celebres, grandes grupos de estrangeiros,
ora trazidos pelos nobres franceses e italianos, que
auxiliaram Afonso VI e outros reis, ora attrahidos
por vantagens materiaes ou refugiados de outras
terras, se estabeleceram nos reinos christãos da
Reconquista.
À caractestica da condão judica destes grupos
era a da maior parte deites terem lei especial que
determinava os seus direitos. Foi o que aconteceu
em Toledo, onde abundavam os francos, estabele
cendo Affonso VI legislação especial para elles.
Na mesma epocha em que se concediam garantias
e privilegios importanssimos aos estrangeiros na
Península, se começava a esboçar, fóra delia, a
evolução que havia de fazer peorar, dum modo muito
consideravel, a sua condição jurídica. Foi isto o
resultado do desinvolvimento do regimen feudal, que,
em virtude da fusão da soberania com a propriedade
levou os senhores a dominar sobre os homens que
habitavam as suas terras.
A proteão do estrangeiro é substituída por um
regimen oppressivo e odioso de verdadeira rapina.
Uns costumes consideravam-no servo do senhor,
outros, e na sua maior parte, contentavam-se com o
submetter a um grande numero de restricções.
Entre essas restriões, merece especial meão o
direito de albinagio, pelo qual o senhor se attribuia
a herança do estrangeiro 1.
1
D. Rafael Altamira, Historia de Espana y dela civilización
espanola, tom. I, pag. 406 e seg.; Weiss, Traité thêorique et
pratique de droit international privé, tom. I, pag. 58 e seg.; Sr. Dr.
Guimarães Pedrosa, Introdução ao estudo do direito privado
internacional, pag. 102 e seg.
— 293 —
134. Os estrangeiros em Portugal. Tractamento
benevolo dos estrangeiros. Os estrangeiros foram
sempre tractados em Portugal por uma fórma muito
liberal e benevola, o que sobremaneira honra o nosso
pais. As causas que concorreram para isso foram,
como nota o sr. dr. Guimarães Pedrosa: o auxilio
prestado por cavalleiros e frotas de outros Estados
nas conquistas dos primeiros reis portugses sobre
os mouros; o ardor religioso e militar da epocha
em servo de uma causa commum a lucta contra
os infieis; a falta de bros e de industrias no reino;
o adiantamento comparativo das outras nações euro-
peias ; e a indole do povo deste canto da península,
pois que, em circumstancias mais ou menos simi-
lhantes, nenhum outro Estado tractou talvez os
estrangeiros com egual favor.
É por isso que em Portugal nunca esteve em
vigor o regimen de oppreso a que estiveram sujei-
tos os estrangeiros noutros paises e que se revelava
por tres direitos profundamente injustos: a) direito
de albinagio; b) direito de naufragio; c) direito de
represalias.
a) Direito de albinagio. O direito de albinagio
cuja origem se prende com a constituição feudal, e
que consistia no direito dos senhores e os reis succe-
derem ao estrangeiro, desinvolveu-se no sentido de
se centralizar na coa e de augmentar de exteno.
Os reis, vendo nos estrangeiros uma clientela
muito lucrativa, emprehenderam uma lucta persis-
tente contra as pretenções dos senhores feudaes, a
fim de os espoliar das vantagens que ella lhes attri-
buia. Nesta lucta foram auxiliados pelos legistas,
que, começando por notar que o estrangeiro se
— 294 —
podia fartar á oppressão do senhor da terra, collo-
cando-se sob a protecção do rei, acabaram por
sustentar que a este podia pertencer o domínio
sobre os estrangeiros, como consequencia do sen
poder soberano. E assim se foi desinvolvendo o
direito do rei, apesar das contestações dos senho-
res, até que no secnlo xvIII se chegou a considerar
este direito exclusivo.
Emquanto á extensão, o direito de albinagio
começon por ser um pouco tímido e restricto,
applicando-se, segundo todas as probabilidades, uni-
camente á successão dos desconhecidos ou dos
homens de fóra do pais de baixa condição, e que
se approximavam naturalmente dos servos. Mas,
este direito foi-se alargando, de modo a comprehen-
der, dentro em breve, as successões de todos os
estrangeiros.
A evolução não ficou por aqui. Primeiramente,
os estrangeiros não eram impedidos de fazer testa-
mento. A cubica que excitava as suas heranças,
levou a o fazer caso dos testamentos feitos pelos
estrangeiros, e a lei acabou por lhes negar o direito
de praticar este acto. O direito romano servin aos
legistas ainda para justificar esta violencia, visto a
testamenti factio ser um direito do cidadão romano.
E, como se negava aos parentes do estrangeiro o
direito de herdar, era logico qne se recusasse tam-
m áquelle tal direito. E assim appareceram for-
muladas as duas maximas: aubains ne peuvent tester
aubains ne peuvent succéder.
Como meio dos estrangeiros se furtarem a esta
situão tão vexatoria e injusta, empregaram-se os
tractados e a naturalização. Nos tractados celebra-
dos com o fim de exemptar os estrangeiros do
albinagio, os reis reservavam-se frequentemente um
— 295 —
pequeno direito sobre a succeso destas pessoas,
denominado direito de detraão Este direito, fixado
em varias convenões em 5 % do capital, era esti-
pulado quando uma das potencias conlractantes se
reservava um direito analogo.
O direito albinagio e o de deiraão nunca estive-
ram em vigor em Portugal, pois, por um lado, estas
expressões são desconhecidas das antigas leis por
tuguesas, e, por outro, as Ordenações, ao enumerar
os direitos reaes, nada trazem que se pareça com
taes direitos (ord. aff., liv. II, tit. xxIv; ord. man.,
liv. u, tit. xv; ord. philip., liv. II, tit. xxvI). É esta a
opino emittida por Mello Freire, Coelho da Rocha
e sr. dr. Guimarães Pedrosa.
Portugal celebrou varios tractados com as nações
estrangeiras, tendo por fim a abolição do direito de
albinagio, obedecendo assim á tendencia que se
manifestou na evolução jurídica neste sentido. Daqui
pôde deduzir-se á primeira vista um argumento em
favor da existencia do direito de albinagio entre
nós, visto as outras nações não deverem ter interesse
em abolir o direito de albinagio, desde o momento
em que elleo se encontrasse em vigor entre nós.
O argumento deixa de ter valor, observando que
Portugal podia usar do direito de retorsão, em vir-
tude do qual, como notava Almeida e Sousa, se
podia negar aos estrangeiros no reino o que elles
denegassem aos nossos na sua não. E, assim, o
interesse de Portugal, em conseguir por meio de
tractados a abolição do' direito de albinagio conju-
gava-se com o interesse das outras potencias, que
obtinham uma garantia ao o exercio de tal direito
contra os seus subditos.
b) Direito de naufragio. O direito de naufragio
tambem chamado laganum, wreccum droit
— 296 —
de bris era o direito que o rei e os senhores se
arrogaram de se apoderarem das pessoas e cousas
naufragadas no mar e nos rios. Este direito ligava-se
com a exclusão dos estrangeiros de toda a protecção
legal, embora tambem chegasse a ser applicado aos
nacionaes.
A Igreja, seguindo as tradições do direito romano,
insurgiu-se contra este direito, condemnando-o com
toda a energia, chegando a não absolver da culpa
de furto aquelles que, usando da permissão das
leis, se apoderassem dos despojos dos naufragos.
Os esforços da Igreja nem sempre foram coroados
de bons resultados, visto o direito de naufragio
continuar a ser admittido em muitos paises.
Entre s, pom, o se reconheceu o direito de
nanfragio, e isto logo desde o como da nossa
nacionalidade. Effectivamente, uma lei de Affonso II,
feita nas côrtes de Coimbra de 1211, dispõe que os
bens dos naufragos não poderiam ser occupados em
proveito do Gsco, ou de qualquer, devendo ser
restituídos a seus donos, mediante apenas as despe
sas que houvessem sido feitas, e sob penas rigoro
sas para os que assim não procedessem ca sem
razon parece a aquelle, que he atormentado, dar-lhe
homem outro tormento.
Esta lei foi adoptada por D. Fernando e D. João I,
passando depois para as Ord. Aff. (Liv. II, tit. xxxII).
As Ordenações Manuelinas acceitando esta lei, deter-
minaram que ella não tivesse applicação quando se
tractasse de navios infieis, inimigos da christã e
que não fossem subditos portugueses, ou doutras
pessoas com que houvesse guerra, ou de corsarios
que andassem a toda a roupa. Nestes casos, as
cousas perdidas ficavam sendo do primeiro que as
occupasse (Ord. Man., liv. 11, tit xxII). Foi com
— 297 —
estes accrescimos, filhos, em grande parte, da into-
lerancia do tempo, que a lei passou para as Orde-
nações Filippinas (Liv. II, tit. xxxII).
c) Direito de represalias. O direito de represalias
era o direito que um governo concedia a um seu
subdito de capturar as pessoas e de se apoderar,
até a uma somma determinada, dos bens dos cida-
dãos dum Estado estrangeiro, em qne o subdito
tinha soffrido alguma offensa, sem ter podido con-
seguir a satisfação qne lhe era devida.
Este instituto, sendo evidentemente uma manifes-
tação da violencia privada, um pouco modificada
pela intervenção do Estado, involvia uma grande
injusta, visto com o exercio das represalias soffrer
o innocente as consequencias da culpa dos actos
doutrem. A Igreja insurgiu-se contra esta pratica,
condemnando-a abertamente Gregorio X, sendo esta
condemnação confirmada por varios concílios e leis
ecclesiasticas.
Nada ha na historia da legislação portuguesa que
permitia suppor qne esteve em vigor entre s o
direito das represalias.
Em face do que acabamos de vêr, não é sem razão
que Mello Freire diz orgulhosamente que a nossa
nação recebeu os estrangeiros quasi como cidadãos
natnraes e os tractou humanamente 1.
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 65 e seg.;
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 365 e seg.; Pertile,
Storia del diritto italiano, tom. III, pag. 187 e seg.; Salvioli,
Storia del diritto italiano, pag. 292; Weiss, Traité de droit
internatíonale privé, tom. II, pag. 57 e seg.; Sr. Dr. Guimarães
Pedrosa, Introducção ao estudo do direito privado internacional,
pag. 162 e seg.; Mello Freire, Institutiones juris lusitani, tom. II,
pag. 14 e seg.; Coelho da Rocha, Instituições de direito civil, tom.
I, pag. 139 e seg.
— 298 —
135. Privilegios concedidos aos estrangeiros.
Mas Portugal o o foi hostil aos estrangeiros,
mas tambem concedeu a muitos delles importantes
privilegios, seguindo a orientão que nós encon-
tramos adoptada no direito peninsular.
Assim, Affonso Henriques concedeu privilegios aos
allemães, pelo auxilio que delles recebeu no cerco e
tomada de Lisboa, sendo-lhes conservados além das
Ordenações lippinas. Entre esses privilegios, nota-
se o de terem nas suas causas commerciaes juiz
privativo, que era o corregedor do cível da cidade
de Lisboa, conseguindo os habitantes das cidades
hanseaticas ter um juiz conservador separado, por
virtude de tractados de paz e alliança (ord., liv. I,
tit. XLIX, § 3.°, alv. de 24 de julho de 1705, ass. de
23 de março de 1876).
Os genovêses tambem cedo obtiveram privilegios
em Portugal. D. João I extendeu, por carta de 10
de agosto de 1400, os privilegios dos genovêses aos
inglêses.
Affonso V concedeu aos ingleses juiz privativo nas
causas commerciaes, por carta de 29 de outubro de
1450, sendo este privilegio respeitado pelas Ordena-
ções Filippinas (liv. I, tit. LII, § 9.°). Este privilegio
foi modificado depois quanto ao juiz, á competencia
dos recursos e ao termo da demanda pelo tractado
de 10 de julho de 1654 (art. 7.°). O privilegio de
fôro concedido aos ingses preferia a todos os pri-
vilegios da mesma natureza que tivessem os nacio-
naes, mesmo nos casos de força nova, com excepção
apenas das causas fiscaes (ass. de 6 de março de
1782, de 15 de fevereiro de 1791, de 17 de março
de 1792 e alv. de 17 de setembro de 1665 e
— 299 —
de 9 de outubro de 1709). Os privilegios dos
inglêses eram tão importantes, qne os próprios
nacionaes moitas vezes pediam cartas de privilegio
de inglêses (ass. de 11 de junho de 1832 e trat.
com a G-Bretanha de 19 de fevereiro de 1810).
D. Affonso V tambem concedeu, por carta de 28
de março de 1452, privilegios aos allees, aos
francêses, aos flamengos e aos bretões.
Os hespanhoes lambem obtiveram juiz conservador
privativo para todas as suas causas e em geral os
mesmos privilegios dados aos francêses e inglêses
(Dec. de 13 de novembro de 1692, ass. de 23 de
março de 1786).
D. Manoel deu privilegios aos moradores da cidade
de Augusta e de outras localidades da Allemanha,
tão extensos que nem os proprios subditos os tinham
recebido, no dizer da carta de conceso (Alv. de 7
de fevereiro de 1495).
Depois da restaurão de Portugal, foram confir-
mados aos estrangeiros os seus privilegios.
O tractado de 29 de julho de 1842 feito com a
Inglaterra aboliu a conservatoria inglêsa. A lei de
12 de março de 1845 supprimiu todas as conserva-
torias estrangeiras. A conservatoria inglêsa, que
tinha sido restabelecida por decreto de 5 de maio
de 1847, foi finalmente extincta pelo decreto de 18
de fevereiro de 1848 1.
136. Applicação directa do direito estrangeiro.
Mas a benevolencia com que foram tractados os
1
Sr. Dr. Guimarães Pedrosa, Introducção ao estudo do direito
privado internacional, pag. 164; José Ferreira Borges, Collecção
chronologica dos assentos da casa da supplicação o do civel,
pag. 329 e seg.
— 300 —
estrangeiros foi até ao ponto de se applicar o seu
direito? A applicação do direito estrangeiro póde
ser directa ou indirecta. Na applicação directa,
invoca-se a disposição duma lei estrangeira, como
devendo regular determinada relação judica. Na
applicação indirecta, não se invoca uma disposi-
ção de lei, mas a sentença que decidia a questão
noutro Estado. O direito estrangeiro neste caso
apresenta-se, o como ama disposição geral, mas
como norma applicada a uma hypothese concreta
pelo poder judicial.
Para que se realize a applicação directa do direito
estrangeiro, basta que o Estado reconheça a efficacia
extraterritorial da lei peregrina ou a sua competen-
cia na pbrase de Brocber. Quando se tracta, porém,
da applicação indirecta do direito estrangeiro, torna
se necessario, além disso, que a sentença tenha
valor fóra do territorio onde foi pronunciada.
No direito antigo, não ha textos expressos relati-
vamente á applicação directa do direito estrangeiro.
A lei das Sete Partidas estabelece: que todos aquelles
que son del Senorio del facedor de las leys sobre que
las él pone son lenidos de las obedescer è guardar è
juzgarse por ellas (Part. I, tit. I, 1. 15). Outra lei
do mesmo codigo menciona, entre os casos em que
se devem observar as leis estrangeiras, cuando se
traia de pleitos fechos entre homes de aquella terra (Part.
III, tit. xvI, 1. 15). Ora, é facto averiguado que se
julgou em Portugal pelo codigo das Sete Partidas,
no seculo xIv, embora o haja provas suficientes
para attribuir a uma versão portuguêsa que delle se
fez caracter official.
Nas Ordenações Affonsinas tambem ha uma dis-
posição, que depois passou para as outras Ordena-
ções, relativa ás provas que se devem fazer por
— 301
escriptura publica, preceituando-se que nos contra-
ctos feitos fóra se guarde o direito commum e
ordenões do reino onde esses contractos e respe-
ctivos instrumentos forem feitos (Ord. Aff., liv. III,
tit. LXIV, § 7.°; Ord. Man., liv. III, tit. XLV, § 1.°;
Ord. Filip., liv. III, tit. LIX, § 1.º).
A tendencia para a applicação da lei territorial
aos estrangeiros devia dentro em breve fazer-se
sentir em Portugal, como consequencia da evolução
que se deu no direito internacional. Effectivamente,
a soberania que, para os barbaros era uma relação
pessoal entre o povo e quem o governa, transfor-
mou-se pouco a pouco numa relação territorial,
considerando-se a applicão da lei estrangeira como
um attentado á independencia do Estado. O feuda-
lismo impulsionou poderosamente esta evolução,
pois, baseando-se, como observa Michelet, sobre a
idêa do predominio da terra, admittia a fusão da
soberania com a propriedade e considerava o homem
um mero accessorio do solo onde se encontrava.
O absolutismo completou-a, em virtude da admissão
da omnipotencia do poder do Estado sobre todas as
pessoas e todas as cousas que se encontravam no
seu territorio. O Estado apresentava-se como um
corpo isolado que, soberano em si, exclusivamente
exercia auctoridade e jurisdicção dentro dos limites
do sen territorio.
Segundo Mello Freire, foi no systema do direito
territorial que se basearam as Ordenações Filippinas
(Liv. IH, tit. III e tit. XI, pr. e § 3.°) e as extrava-
gantes de 20 de outubro de 1656, de 16 de setem-
bro de 1665 e de 7 de abril de 1685, as quaes
definiram o fôro dos estrangeiros ou lhes deram
certos e determinados juizes. E as idêas da epocha
sobre a soberania do Estado levaram a considerar
— 302 —
os estrangeiros como subditos territoriaes, sujeitos
ao poder e às leis do reino emquanto nelles per-
maneciam.
A territorialidade, porém, introduzia no estado
das pessoas uma mobilidade perigosa e substituía ao
direito o arbítrio, visto as leis de cada povo serem
o producto das suas condições climatologicas, topo-
grapbicas iolellectuaes e sociaes. £ certo que o
direito romano se tornou commum a todos os povos,
mas sobre o fundo deste direito desinvolveram-se
as legislações particulares de cada Estado, contendo
importantes modificações daquelle direito, em har-
monia com as exigencias dos novos tempos.
Para attenuar os inconvenientes da territorialidade
do direito, appareceu a theoria dos estatutos, que
deste modo se não póde considerar, nem um pro-
ducto do direito romano, nem um effeito do direito
germanico, como se sustentou, mas a consequen-
cia da lucta do espirito de justa contra o systema
territorial. O direito germanico e o direito romano
tiveram sobre a origem e o desinvolvimento da
theoria dos estatutos uma influencia unicamente
indirecta, como mostra Lai, emquanto o indivi-
dualismo e a independencia dos germanos fortificou
o principio da territorialidade e a unidade e equi-
dade do direito romano impulsionou a reaão contra
este principio.
À tbeoria dos estatutos, delineada no seculo xIv
por Bartolo na Italia, como meio de resolver os
conflictos que se davam entre as leis particulares
das cidades livres italianas, foi depois desinvolvida
de modo a ser considerada a base do direito privado
internacional pelos escriptores do seculo xvI em
diante, como D'Argentré, Guy Coquille, Bourgoigne,
Rodenburg, Paulo e João Voet, etc.
— 303 —
O problema que se apresentou a Bartolo foi o
seguinte: em face da generalidade do direito romano
e da especialidade dos estatutos ou leis locaes, não
haverá alguns direitos que devam ser sempre res-
peitados, qualquer que seja o Estado em que se
encontre o cidadão? Bartolo resolveu este pro-
blema notando que o direito local, como excepção
do direito romano, é restricto ás pessoas e ás cousas
sujeitas á soberania do Estado. Dahi deduziu elle:
que o estatuto relativo ás pessoas não obriga os
estrangeiros, visto elles não estarem sujeitos ao
poder do Estado; que o estatuto relativo ás cousas
obriga os estrangeiros, visto as cousas se encontra-
rem sob o domínio da soberania territorial; que o
estatuto relativo á pessoa segue o cidadão para qual-
quer logar para onde elle se dirija.
Dabi a distinão entre o estatuto pessoal e esta-
tuto real, intendendo-se por o primeiro toda a lei
que tinha por objecto immediato a pessoa e seu
estado, ainda que contivesse disposições accessorias
relativas aos bens, e intendendo-se por o segundo
toda a lei que tinha por objecto principal as cousas,
isto é, os immoveis, ainda que as pessoas intervies-
sem accidentalmente. Ao passo que o estatuto pessoal
acompanhava o individuo para toda a parte, o
estatuto realo ultrapassava os limites territoriaes
do Estado. Em face das difficuldades de fazer appli-
cação da doutrina dos estatutos reaes e pessoaes a
todas as relações jurídicas, acabou-se por admittir
uma nova categoria de estatutos, os estatutos mistos,
que se applicavam a todas as relações judicas que
não eram comprebendidas pelo estatuto pessoal e pelo
estatuto real, como a rma externa dos actos.
A theoria dos estatutos, apesar do seu caracter
emrico, melhorou consideravelmente a condição
— 304 —
do estrangeiro, visto, em face delia, haver certos
direitos que se lhe não podiam negar. Era um
passo não indifferente na via do progresso. Entre
nós, tambem se fez sentir profundamente a influen-
cia da theoria dos estatutos nas doutrinas dos pra-
xistas, mas estes escriptores, como Valasco, Cabedo
e Guerreiro, o passaram da resolão de algumas
bypotbeses sobre direito matrimonial. Só mais tarde
é que Coelho da Rocha tomou por criterio geral da
applicação das leis no espaço a distincção das leis
em pessoaes e reaes, obrigando estas os estrangeiros
relativamente aos bens immoveis que possuíssem
em Portugal, e acompanhando-os as pessoaes da
sua patria ao nosso reino, devendo os actos publi-
cos ser passados em harmonia com as leis do pais
onde fossem celebrados.
0 codigo civil regulou esta materia nos artigos 26.°
e 27.°, mas o dum modo perfeito o completo, em
virtude das duvidas que se podem levantar relativa
mente á propriedade mobiliaria, parecendo ter havido
sobre este assumpto omiso intencional, desde o
momento em que o Visconde de Seabra declarou,
na discussão do projecto, que o fallou na proprie
dade mobiliaria, para que esta ficasse entregue aos
princípios geraes. Estas duvidas, porém, não são
da nossa competencia 1.
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 62 e seg.;
Lainé, Introduction au droit international privé, tom. I, pag. 74
e seg.; Laghi, Il diritto internazionale privato, vol. I, pag. 80 e
seg.; Catellani, Il diritto internazionale privato, vol. I, pag. 233
e seg.; Marqués de Olivart, Manual de derecho internacional
publico y privado, pag. 110; Coelho da Rocha, Instituições de
direito civil, tom. I, pag. 139 e seg.; Sr. Dr. Guimarães Pedrosa,
Introduão ao estudo do direito privado internacional, pag. 170
e seg.
— 305 —
137. Appiicação indirecta. No dominio da ter-
ritorialidade do direito o podia apparecer a appii-
cação indirecta do direito estrangeiro, desde o
momento em que nem mesmo se permittia a sua
applicão directa. Mais tarde, apesar de se ter
manifestado a influencia da theoria dos estatutos, a
jurisprudencia e os escriptores continuaram a inten-
der que as sentenças estrangeiras o podiam exe-
cutar-se no reino. É o que se deduz de Melchior
Phoebo, Mendes de Castro, Barbosa e Gabriel Pereira
de Castro, que expõem a doutrina de que as preca-
torias vindas de outros reinos para se effectuar uma
execução não se podiam cumprir, por não se encon-
trarem nos termos estabelecidos pelas Ordenações
para estas cartas, e por ultrapassarem a competen-
cia e jurisdião dos tribunaes estrangeiros. Refle-
ctindo esta corrente, dizia claramente Alexandre
Caetano Gomes: advirta-se que nas cartas precatorias
que em de outros reinos, para fazer execução na
pessoa ou bens da parte contra quem são passadas, não
lhes ponha o juiz cumpra-se, como incompetentes e
sem jurisdicção.
Relativamente à Hespanha, havia alguns auctores,
como Moraes, que, baseando-se sobre antigas con-
venções, intendiam que as precatorias deste pais
para a execução das sentenças nelle pronunciadas
deviam ser cumpridas pelos juizes portuguêses.
Tornava-se necessario no seu intender, porém, apre-
sentar a sentea e provar a competencia do tribu-
nal estrangeiro.
O desapparecimento do absolutismo de Estado,
devido á implantão do regimen liberal, a expansão
das relações sociaes, produzida pelo incremento da
20
— 306 —
civilização, e a compreheno mais nítida da vida
internacional, determinada pelo progresso da scien-
cia, desinvolvendo a applieação directa do direito
estrangeiro, foram preparando o terreno para se
realizar a applicação indirecta deste direito.
Foi a Nov. Ref. Jud. que regulou o assumpto nos
artigos 44 e. 567,°. Em face destes artigos, as
sentenças dos tribunaes estrangeiros eram exequi-
veia: sem revisão e confirmação de alguma das
relações, quando houvesse tractado que regulasse,
de outro modo, o assumpto, e quando se desse o
consentimento expresso das partes interessadas,
julgado pelo competente juizo português; e, com
aquella revisão e confirmação, em todos os mais
casos.
0 codigo civil, no artigo 31.°, dispôs depois qae
as sentenças proferidas nos tribunaes estrangeiros
sobre direitos civis entre estrangeiros e portuguêses
podiam ser executadas perante os tribunaes portu-
guêses, nos termos prescriptos no codigo do pro-
cesso. A intelligencia deste artigo deu origem a
grandes duvidas, apparecendo nada menos de cinco
interpretações para o intender, duvidas que augmen-
tavam quando se comparava com a doutrina da
Nov. Ref. Jad., que era o codigo do processo civil
na epocha em que foi publicado aquelle codigo.
À opinião mais admissível era de que o art. 31º
comprehendia, na sua letra, as sentenças proferidas
nos tribunaes estrangeiros sobre direitos civis,
entre estrangeiros e portuguêses, e, no seu espirito,
as sentenças proferidas nos tribunaes estrangeiros
sobre direitos civis entre portuguêses. Não se podia
por isso deixar de considerar revogada a Nov. Ref.
Jud. pelo codigo civil, visto aquella admittir a exe-
cução de todas as sentenças estrangeiras e este só
— 307 —
acceitar a execução de certas e determinadas sen-
tenças estrangeiras.
O codigo do processo civil veio acabar com as
duvidas a que dava logar o codigo civil sobre esta
materia. Segundo este codigo, as senteas proferi-
das por tribunaes estrangeiros, a que se refere o
artigo 31.° do codigo civil, o são exequíveis no
reino sem estarem revistas e confirmadas por alguma
das relações, com audiencia das partes interessadas
e do ministerio publico, salvo quando outra cousa
estiver estipulada em traclados (art. 1087.°) 1.
1
Marnoco e Souza,- Execução extraterritorial das sentenças,
pag. 108 e seg.
CAPITULO III
PESSOAS COM CAPACIDADE JURIDICA
PRIVILEGIADA
Nobres
SUMMARIO : —138. A nobreza na Hespanha primitiva. 130.
O patriciado romano e a nobilitas. 140. A nobreza do
Baixo-Imperio. —141. A nobreza entre os germanos.
142. A nobreza entre os godos. 143. A nobreza na
Reconquista. 144. A nobreza em Portugal. Transfor-
mação historica da classe. 145. Privilegios da nobreza.
146. Adquisição da nobreza.
138. A nobreza na Hespanha primitiva. No direito
primitivo não se encontra a nobreza perfeitamente
caracterizada, isto é, como um estado social
privilegiado e hereditario. Ha, em todo o caso,
algumas famílias que adquiriram, pela sua riqueza e
pela soa importancia, uma consideração hereditaria.
Tracta-se, como nota Viollet, dum privilegio moral
que precede a formação do privilegio juridico que lhe
sobrevive.
A existencia da nobreza entre os iberos e celtas da
Península encontra-se comprovada por muitos
testemunhos, visto os escriptores classicos designa-
rem os indivíduos desta classe com os nomes de
príncipes, nobiles, maximi natu e primores.
A palavra princeps significava o que exercia
influencia notavel nos assumptos políticos dom povo,
mas esta influencia tinha por base a nobreza, pois a
esta classe é que competia constituir o senado.
— 310 —
desempenhar as funcções de legado ou embaixador
e commandar o exercito.
Julgam alguns auctores que a nobreza residia
principalmente nas cidades e a plebe nos campos,
procurando deste modo explicar a dependencia poli-
tica que parece, effectivamente, ter existido das
aldêas relativamente ás cidades 1.
139. 0 patriciado romano e a nobilitas. ~ Logo
nos começos de Roma encontramos uma classe social
com um caracter profundamente aristocratico o
patriciado.
0 patriciado constituía uma classe privilegiada.
As instituições jurídicas e politicas existiam unica e
exclusivamente para os patrícios. O verdadeiro
populus romano era constituído pelos patricios que,
deste modo, eram os unicos cidadãos do Estado.
É certo que os plebeus tinham um certo numero
de instituições proprias, mas essas instituições
tinham uma existencia de facto, a que o patri-
ciado não reconhecia effeitos jurídicos alguns. E por
isso que era o usus que regulava as relações entre
os indivíduos da classe plebêa. Isto era uma conse-
quencia da propria estradara da plebe, composta
de indivíduos e de famílias de origem diversa e de
recente formação., vivendo ao lado do patriciado,
com antigas tradões e em que tudo se encontrava
regulado e previsto por normas e regras fixas.
A separação profunda que distanciava os plebeus
e os patrícios não podia persistir, depois que a
plebe foi augmentando em numero e força. Dahi a
1
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 247 e seg.;
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la Espana
goda, tom. I, pag. 31 e seg.
— 311 —
lucta entre estas classes, tendo por fim a conquista
da egualdade jurídica e politica e que foi coroada
dos mais felizes resnltados.
Á aristocracia de sangue succede entio a aristo-
cracia burgsa. Surge a nobilitas, com o seu culto,
os seus privilegios e a sua considerão como suc-
cessora do patriciado.
Entre ricos e pobres, escreve Oliveira Martins;
reapparecem distincções analogas ás doutr'ora entre
patrícios e plebeus 1.
140. A nobreza do Baizo-Imperio. No Baixo-
Imperio apparece uma nobreza de caracter burocra-
tico e plutocratico. Effectivamente, nesta sociedade
o primeiro logar era occupado pelos honestiores con-
trapostos aos humiliores, pleheii ou tenuiores.. Os
honestiores o os altos funccionarios do Estado.
Esta nobreza tende a accentuar-se, visto alguns
cargos como os de senador e de decuro se terem
tornado hereditarios. A condição destes nobres dif-
ferencia-se da dos outros homens Jivres. .
TSem privilegios relativamente ao direito penal,
no sentido de que se são mais graves as multas que
pagam, tambem o menos graves as penas corpo-
reas que os ferem. Em materia tributaria, é peor a
sua condição, especialmente para os senadores e
decuriões, pois, além dos impostos geraes, tambem
estão sujeitos a impostos especiaes. Entre, os
honestiores, formaram-se varias categorias. Em
baixo ficavam os decuriões da cidade;
1 Carle, Le origini del diritto romano, pag. 160 e seg.; Oliveira
Martins, Historia da republica romana, pag. 98 e seg.; Sr. Dr.
Pedro Martins, Historia geral do direito romano, peninsular e
portugués, pag. 158 e seg.
— 312 —
acima destes encontravam-se os grandes funcciona-
rios do Imperio, divididos em varias ordens com um
titulo especial. Dahi os illustres, os spectabiles, os
clarissimi, os perfectissimi e os egregii.
É isto um pouco similhante ao que acontece na
Russia moderna, onde os funccionarios superiores
de todas as ordens se encontram repartidos por
quatorze classes, designadas por um epitetho hono-
rifico proprio, constituindo o seu conjuncto uma
aristocracia pessoal ou hereditaria 1.
141. A nobreza entre os germanos. Entre os
germanos existia uma nobreza de origem muito
antiga. Gosava de grande respeito entre o povo e
illustrava-se principalmente nas expedições guer-
reiras.
o é possível precisar, por falta de testemunhos,
os privilegios da nobreza e as gradações que exis-
tiam na mesma. Só sabemos que o seu depoimento
era de mais valor perante os tribunaes do que o do
commum dos homens livres.
A nobreza era constituída entre os germanos
pelos príncipes, que eram os chefes dos bandos
guerreiros com uma grande influencia nas assem-
bléas geraes, decidindo por si os negocios de
menor importancia. Sahiam deites os magistrados
que administravam justiça e os generaes que diri-
giam o exercito.
Apesar da sua grande importancia social e poli-
tica, os príncipes o formavam uma classe cerrada.
Todo o germano ingenuo com meios bastantes para
armar e sustentar uma comitiva, podia converter-se
1
Nani, Storia del diritto italiano, pag. 24 e seg.
— 313 —
em pncipes, exigindo-se-lhe unicamente valor, da
que tinha de dar provas.
A nobreza germanica fundava-se numa certa con-
siderão social proveniente do respeito pela memo-
ria de antepassados illustres. O prestigio da nobreza
era tanto maior, quanto mais antiga fosse a serie
dos antepassados insignes pelos seus feitos 1.
142. A nobreza entre os godos. Com a invasão
dos godos, a nobreza hispano-romana não desappa-
receu, embora soffresse um duro golpe, em virtude
da reducção da propriedade, proveniente dos con-
quistadores terem reservado para si dois teos das
terras cultivadas. As leis designavam com o nome
de seniores os nobres godos e com o de senalores os
nobres hispano-romanos.
Os senatores conseguiram eximir-se dos tributos
especiaes que a administração romana fazia pesar
sobre elles e exercer, pela sua união com os monar-
cbas godos, a mesma senão maior influencia que no
tempo do Imperio. No Breviario de Alarico, consti-
tuem uma classe perfeitamente distincta, sendo-lhes
prohibido o casamento com pessoas vis ou infames
e não podendo receber por usura mais de metade
do juro legal corrente. A nobreza goda constituía
uma casta distincta, transmittindo-se por gerão,
contrariamente ao que acontecia com a nobreza
hispano-romana, que tinha um caracter essencial-
mente plutocratico e burocratico.
As duas especies de nobreza, porém, tenderam a
identificar-se, visto no Officio Polatino, no governo
1
Peres Pujol, Historia de ias institutiones sociales, tom. I,
pag. 476 e seg.; Nani, Storia del diritto italiano, pag. 25 e seg
— 314 —
das províncias e das cidades, nos cargos superiores
do exercito se encontrarem senatores romanos e
seniores godos. O duque de Merida da província' da
Luzitania, DO tempo de Reccaredo, ó celebre duque
Claudio, foi indiscutivelmente de origem romana, e
de falia romana ou bysantina devia -lo, a julgar
pelo sen nome, o duque Paulo, que chegou a coroar
se como rei dos insurretos contra Wamba.
E assim as duas nobrezas, com differença de
nomes e leve distiricção de condições, chegam a
formar uma só classe, apoiando-se no prestigio dos
ascendentes, mantido com a posse da riqueza territ
torial e o exercício das funcções publicas. Parece
que Herculano é um pouco exagerado, quando sus-
tenta que a nobreza, no periodo godo, era repre-
sentada na suas duas fórmas, a pessoal, adquirida
por cargos, e a hereditaria, quasi exclusivamente
por indivíduos da raça germanica.
No codigo wisigothico, os nobres não gosavam de
direitos especiaes que os constitssem numa classe
privilegiada. Predominava assim o principio geral
da egualdade civil para lodos os ingenuos, apesar
dos títulos e das qualificações hierarchicas da no?
breza. As differenças do wergeld que se davam entre
os francos, de modo que o nobre (antrustio) tinha
direito a um tríplice wergeld, não se encontram no
codigo wisigolhico, onde se reconhece uma e mesma
composição para todos os ingenuos.
Nos wisigodos, tambem não se realizou a evolução
que entre outros povos converteu em privados os
officios publicos, visto o codigo wisigothico reconhe-
cer que toda a jurisdição emana do rei (Cod. wis.,
liv. II, lit. I, 1. 13). Por isso, os nobres, embora se
distinguissem pelo exercio de. certos cargos que
lhes eram reservados, ainda assim não podiam dahi
— 315 —
deduzir nenhum privilegio pessoal ou familiar,
vislo receberem as dignidades do Estado, ao
modo romano, como dependentes, retribuídos e
amovíveis.
Não obstante esta orientação geral do codigo
wisi-gothico, encontram-se nelle algumas
excepções ao principio da egualdade civil que ahi
prepondera. Assim, os nobres não podiam ser
submettidos a ] tortura (Cod. wís., liv. II, til. III, 1.
4 ; liv. VI, tit. I, 1. 2), e em alguns casos eram
exemplos das penas corporaes, ficando sujeitos
unicamente ás penas pe-cuniarias (Cod. wis.,
liv.VIII, tit. III, 1. 10 e 12) 1.
148. A nobreza na Roconquista. Os nobres
adquirem neste período uma condição jurídica
muito privilegiada. Aquelles que possuíam
extensos territorios e grande numero de bens são
designados nos antigos documentos com os
nomes de príncipes, pro-testates terrae, proceres,
magnates, richi-homines. Mas, pertenciam tambem
á nobreza os conselheiros dos reis, primates,
magnates togae palatii, optimates aulae vel
scholae regis, e os condes, que exerciam o com
mando militar, administravam a justiça e
recebiam os tributos. O nome de infanções, que
se usa nos documentos da epocha, não se sabe
com certeza se abrange todos os nobres, ou uma
classe delles ou simplesmente os filhos e
descendentes de família nobre.
A nobreza não constituía uma corporação
cerrada, mas era uma classe a que podiam
ascender todos os indivíduos, desde o momento
em que accumulassem
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III pag. 225 e seg.;
Rafael Altamira, Historia de Espana y de la civilizacion espanola,
tom. I, pag. 101 e seg.; Perez Pujol, Historia de las institutiones
sociales de la Espana goda, tom. IV, pag. 191 e seg.
— 346 —
riquezas, fama e poder, e alcançassem a considera-
ção do monarcha, a quem competia conferir os
títulos nobiliarios.
Os nobres tomavam uma parte muito importante
no governo do Estado, intervindo nos concílios ou
assembleias nacionaes, onde se decidiam os negocios
mais graves do reino, assistindo como assessores no
tribunal do rei, quando este administrara a justiça
por si, on do conde, nos seus respectivos districtos,
e sendo ouvidos a respeito da imposição e distribui-
ção dos tributos.
Os nobres não podiam ser julgados senão por
indivíduos da sua classe. A falta da observancia
deste privilegio foi uma das causas que mais contri-
buíram, nos primeiros annos do reinado de Affonso
o Sabio, para os alvoroços e as desordens com que
a aristocracia perturbou o reino.
A composão on reparação legal, quando tivessem
recebido damno, injuria ou deshonra, era maior do
que a estabelecida para os indivíduos das classes,
inferiores, visto ella consistir em quinhentos soldos.
Quando a injuria era de tal natureza, que o admit-
tia composição, ou não queria dá-lo o offensor ou
acceitá-la o offendido, appellavam para a guerra
privada, que era outro dos direitos da nobreza.
Combaliam eno uns contra os outros, fazendo toda
a classe de damnos, até que a sorte das armas,
inclinando-se para um dos lados, rinha a dieidir a
questão. Muitas vezes, os odios e rancores de famí-
lia passavam de geração em geração, tornando-se
interminaveis estas guerras privadas, com o pe-
queno prejuízo para a ordem publica.
Os nobres estavam exemplos do pagamento de
todos os tributos e, se intervinham na repartição
dos impostos, não era porque estivessem sujeitos a
— 317 —
elles, mas porque um dos seus direitos era o de
tomar parte na administração e governo dos con-
dados. As terras dos nobres estavam exemptas da
jurisdicção real, constituindo as honras e os
coutos.
Os nobres tinham obrigação de servir com a
sua pessoa e vassallos na guerra, sempre que
fossem convocados, não á sua custa, mas a
expensas do rei. Tinham uma legislação propria,
fundada mais em nsos e costumes, do que em leis
escriptas.
Todos estes privilegios, alguns
verdadeiramente anarchicos, mas sempre
vantajosos, attribuiam á nobreza uma liberdade
ampla e uma independencia quasi absoluta. A
sua independencia chegava a ponto de, quando se
consideravam offendidos pelo monarcha, não
terem duvida em sair do reino fazer-lhe guerra e
alliar-se para isso com os califas 1.
144. A nobreza em Portugal. Transformação
historica da classe. A nobreza nos primeiros
tempos da monarchia leve um caracter
accentuada-mente militar. Era representada
principalmente pelos ricos-homens e infanções.
Ambas estas classes de nobres tinham a fidalguia
de linhagem, mas os primeiros encontravam-se
revestidos da magistratura civil e militar em cada
uma das circumscri-pções maiores em que se
dividia o reino, e a que se dava o nome de terras.
Abaixo destes nobres havia os cavalleiros e os
escudeiros.
1
Mufior y Romero, Del estado de las personas en los reinos de
Asturias y Lêon, pag. 107 e seg.; D. Rafael Altamira, Historia de
la Espana y de la civilizacion espatula, tom. I, pag. 287 e seg.;
Salvador del Viso, Lecciones elementares de historia y de derecho
civil, mercantil y penal de Espana, tom. I, pag. 99 e seg.
— 318 —
Como a nobreza de primeira ordem seguiu o
partido de Castella nas contendas que precederam
a eleição de D. João I e foi por isso despojada dos
seus bens e honras, tornon-se necessaria a creação
de outra que, como nota Coelho da Rocha, servisse
de sustentaculo á nova dynastia. Assim, nasceu
uma nova nobreza, cuja importancia derivava da
qualidade de donatarios e que se encontra conde-
corada com titulos que fazem lembrar os do baixo
imperio duques, marqueses, condes, viscondes e barões.
A nobreza da segunda ordem, composta de simples
fidalgos e dos escudeiros ou cavalleiros, alarga-se,
comprehendendo a classe dos doutores e em geral
dos letrados, os quaes, pela sua sciencia e pelos
empregos principalmente da magistratura a que
foram chamados, obtiveram grande importancia no
conceito do povo, assim como muitas prerogativas e
favor das leis.
A integração do absolutismo não podia deixar de
ser fatal á nobreza, pois tal forma de governo não
podia harmonizar-se com a importancia politica desta
classe social. Dahi a sua decadencia que se vae
accentuando cada vez mais, a que o Marquês de
Pombal, considerando esta ordem um obstaculo ás
suas reformas lhe nega a consideração a que ella
julgava ter direito e a humilha com o supplicio de
alguns dos seus chefes, ao mesmo tempo que lhe
pretende dar nova direcção, elevando a esta classe
os proprietarios, commerciantes e artistas notaveis
e ontros cujo credito assentava mais no mereci-
mento e riquezas proprias, do que em recordações
historicas.
A nobreza, porem, estava irremediavelmente per-
dida, em virtude da transformação operada nas
ideas, principalmente por influencia da philosophia
— 319 —
do seculo xvIII, que fazia derivar a consideração
devida ao individuo unicamente das virtudes pro-
prias. A revolão fransa aboliu por isso os pri-
vilegios da nobreza, deixando subsistir as suas
regalias honorificas, que eram absolutamente inof-
fensivas.
Todas as constituições que sahiram depois dos
movimentos liberaes inspirados pela revolução fran-
cêsa não deixaram de ferir mais ou menos profun-
damente a nobreza. A constituão de 1822 vibrou-
lhe um duro golpe, estabelecendo que a lei é egual
para todos e que todos podem ser admittidos aos
cargos publicos, sem outra distincção, que não seja
a dos seus talentos e das suas virtudes (artt. 9.° e
12.°).
A Carta Constitucional garante a nobreza heredi-
taria com as suas regalias, mas ao mesmo tempo
dispõe que ficam abolidos todos os privilegios que
não forem essencial e inteiramente ligados aos car-
gos por utilidade publica (art. 145.°, §§ 15 e 31).
A Carta o parece ter sido muito coherente,
pois, ao passo que, por um lado, garante apenas os
privilegios essencialmente e inteiramente ligados aos
cargos por utilidade publica, por
outro, garante em geral a nobreza
hereditaria e as suas regalias. Nem se diga que o §
31, se deve intender modificado pelo § 15.°, pois
em tal caso seria absolutamente desnecessario.
Foi para evitar esta incoherencia que a constitui-
ção de 1838 garantiu a nobreza hereditaria e as
suas regalias puramente honorificas (n.° IV do
art, 28.°). Parece que o § 31.° do art. 145.° da
Carta se deve intender deste modo, pois assim,
como nota o Sr. Dr. Lopes Pra, é que elle deixará
de ser um pleonasmo, sem estar em contradicção
AA
— 320 —
com o § 15.°. Não é um pleonasmo, porque o §
45.° não garante as regalias paramente honorificas
da nobreza hereditaria; não está em contradi-cção,
de serem garantidas estas regalias paramente
honorificas, se o segue a invalidação do disposto
no § 15.° 1.
146. Privilegios da nobreza. Os privilegios
da nobreza acompanharam as phases porque passou
a acção desta classe na vida social e politica do pais.
Primeiramente muito extensos e largos, foram depois
reduzidos, gradualmente, á medida que se accentuou
o poder real e se manifestou a sua evolão no sen-
tido do absolutismo.
Entre esses privilegios, figura, como principal, o
direito de jurisdicção que os nobres tinham nas
terras doadas pelos reis, constituindo as honras e
os coutos. E' muito difficil estabelecer a differença
entre os coutos e as honras.
Coelho da Rocha não os distingue, o que não
admira, se attendermos a que as honras e os coutos
tinham caracteres communs, como a exemão do
serviço militar e dos tributos reaes.
José Anastacio Figueiredo pretende differenciar as
honras dos coutos, considerando o privilegio das
honras mais pessoal para os moradores delias é
seus senhores, não induzindo por via de regra
jurisdicção, mas o direito de perceber as rendas,
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 198 e seg.;
tom. IV, pag. 105; Gama Barros, Historia da administração
publica em Portugal, tom. I, pag. 388 e seg.; Coelho da Rocha,
Ensaio sobre a Historia do governo e da legislação de Portugal,
pag. 65, 112, 183; Sr. Dr. Lopes Praça, Estudos sobre a Carta
Constitucional, part. I, pag. 139.
— 321 —
foros e tributos que pelos taes moradores, em
justa recompensa da defesa, amparo e privilegio
que delles lhes proveem, se pagam aos mesmos
senhores e todo o útil e honorifico que nas
mesmas honras tiver logar e lhes pertencem. Esta
opinião, porem, mostra mais a dificuldade de
distinguir os coutos e as honras, do que a clara
differença entre estes dois privilegios.
Outros historiadores procuram distinguir as
honras dos coutos, limitando estes aos monges,
cabidos e mais pessoas ecclesiasticas e aquellas
aos seculares. Este modo de vêr, porem, não é
sustentavel, dum modo absoluto, pois que os
mosteiros e pessoas ecclesiasticas tiveram as suas
honras, como se da Ord., liv. II, tit. XLVIII. E'
um facto indiscutível, como nota Gama Barros, a
existencia, embora ille- gitima, de honras do
senhorio ecclesiastico.
Este historiador é que caracteriza melhor as
honras e os coutos, mostrando que as honras
eram immunes pela nobreza dos senhores, ao
passo que os coutos gosavam das immunidades
por concessão do rei. Mas, involvendo em si,
tanto a honra como o couto, a exempção de
encargos e usurpando-se direitos nuns e noutros
senhorios, que do monarcha se podiam
legitimamente alcançar, era facil confundirem-se,
como de facto se confundiam, ambos os
vocabulos na sua applicação usual.
Depois de Affonso IV, que declarou devassas
todas as honras posteriores a certo período do
reinado de seu pae, a palavra honra parece que
fica sendo applicada principalmente ás
propriedades a que aquelle rei havia conservado
essa denominação.
Os senhores manifestaram uma tendencia
pronunciada para alargar a sua jurisdicção,
coutando e honrando logares aos quaes tal favor
não podia
21
— 322 —
legalmente competir, e para se tornarem inteira-
mente independentes do poder real, não admittindo
intervenção alguma delle nas suas terras.
Contra esta tendencia, nas suas duas fórmas,
Iuctaram os reis energicamente. Para cohibir o
primeiro abuso, serviram-se das confirmações e das
inquirões, que nos apparecem a partir de Affonso II,
consistindo as primeiras em os nobres submetterem
á approvação dum novo rei as doações recebidas
dos seus antecessores para se determinar se existiam
terras usurpadas, e as segundas na verificação por
uma aada especial, que percorria o pais, das terras
que andavam injustamente desviadas do patrimonio
da corôa.
Para reprimir o segundo abuso, foi reconhecido,
no tempo de D. Dinis, o direito de appellar directa-
mente para o rei ou para os seus sobre-juizes das
sentenças proferidas pelos juizes, alcaides ou alvazis
dos coutos dos donatarios, e delimitou-se, no tempo
de D. Fernando, a sua jurisdicção, estabelecendo-
se muitas causas de que elles não poderiam
conhecer.
Os nobres luctaram com sorte varia contra estas
providencias, até que D. João II chamou a exame
todas as doações e privilegios concedidos e cerceou
muito a jurisdicção dos donatarios, ampliando ao
mesmo tempo o direito de appellação para as justi-
ças reaes. Estas providencias rigorosamente cum-
pridas affectaram profundamente o privilegio da
jurisdicção da nobreza, que desde então por diante
estava destinado a desapparecer. As Ordenações
Filippinas (Liv. II, tit. XLVIII) ainda conservaram
aos nobres a jurisdicção nos coutos e honras, com
a condição de a não ampliarem, mas essa jurisdião
era um pallido reflexo do que tinha sido.
— 323 —
A evolução chegou ao seu termo DO tempo de
D. Maria I, em que foram abolidos o poder e a
jurisdicção dos donatarios, pela lei de 19 de julho
de 1790, que fez entrar as terras daquclles no plano
geral da administrão de todo reino, com magis-
trados eguaes em nome e autoridade.
Outro privilegio da nobreza, mas que não podia
persistir por largo tempo, por causa do seu caracter
anarchico, era o direito da revindicta, em virtude do
qual o nobre ultrajado tinha o direito de se desag-
gravar pelas suas proprias mãos.
Dahi as guerras privadas, com que a aristocracia
turbulenta e orgulhosa perturbava o reino, para
vingar pela força a morte ou offensa dos seus paren-
tes, quando não era para despicar pontos de honra,
sobre que as leis da cavallaria e os costumes do
tempo eram inexoraveis. O exercício da revindicta,
a principio simplesmente regulado, acabou por ser
completamente probibido por D. Affonso V (Ord.
Affonsinas, liv. V, tit. LIII)
Supprimidos estes privilegios, a nobreza conservou
ainda muitos outros, que lhe asseguravam uma con-
dição jurídica especial.
Entre esses privilegios, devemos mencionar: o da
homenagem, em virtude da qual os nobres não eram
presos em cadeia publica, mas em sua casa, no
castello, ou em toda a cidade, villa ou logar, excepto
nos crimes capitães (Ord., liv. v, tit. cxx); o da
exemão das penas vis, embora esta exempção
tambem se applicasse a outras pessoas que tinham
alguma distincção, posto não fossem precisamente
nobres (Ord., liv. v, tit. cxxxvIII; o da exempção
da tortura, com exceão dos crimes que faziam
perder o privilegio da nobreza (Ord., liv. v, tit.
cxxxIII, § 3); o do exercício e serviço da cavai-
— 324 —
laria militar (Alv. de 6 de fevereiro de 1642); o do
uso de brazões de armas e appellidos de familia
(Ord., liv. v, tit. XCII); o da instituição de morgado,
que sómente competia a pessoas de dis-tincta
nobreza, ou recommendaveis por outros princípios
(Lei de 3 de agosto de 1770); o de fazerem os
alvarás e escriptos dos nobres em certos casos
(Ord., liv. III, tit. LIX, § 15); o de fazer prova a
declaração jurada do amo nobre de haver pago a
soldada ao creado (Ord., liv. IV, tit. xxxIII, §
ultimo), etc.
Muitas vezes a condição juridica especial da
nobreza reflectia-se nos lavradores, caseiros e crea-
dos dos nobres, a quem eram concedidos muitos
privilegios (Ord., liv. I, tit. LXVI, § 43; tit. LXVII, §
10 e liv. II, tit. LVIII, §§ 1 a 7) 1.
146. Adquisição da nobreza. A nobreza adqui-
ria-se pelos modos seguintes: a) nascimento; b) casa-
mento ; c) profissão; d) concessão do rei.
a) Nascimento. O pae transmittia a nobreza aos
seus filhos legítimos (Ord., liv. v, tit. xcII, pr.). Os
filhos illegitimos, sendo reconhecidos ou perfilhados,
no testamento ou em escriptura publica ou
particular, gosavam da nobreza e dos privilegios do
pae (Ord., liv. v, tit. xcII, § 4).
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Portu-
gal, tom. I, pag. 439 e seg.; Coelho da Rocha, Ensaio sobre a
historia do governo e da legislação de Portugal, pag. 68 e seg.;
Mello Freire, Institutiones juris civilis lusitani, tom. I, pag. 96 e
seg.; Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, tom. I, pag. 146 e
seg.; Silva Ferrão, Repert. comment: sobre foraes e doações
regias, vol. I, pag. 5; José Anastacio Figueiredo, nas Memorias de
litteratura portuguêsa, vol. I, pag. 98.
— 325 —
A mãe tambem transmittia a sua nobreza aos
filhos, contra o que dispunha o direito canonico
(Ord., liv. v, tit. XCII, § 6).
b) Casamento. O marido communicava á mulher
a sua nobreza e isto ainda para depois da sua morte
(Lei de 29 de janeiro de 1759, § 11).
Pelo contrario, a mulher nobre que casava com
pleben, longe de lhe communicar a nobreza, perdia-a,
em virtude da regra de que a mulher segue a con-
dição do marido (Ord., liv. I, tit. xcI, § 7 e liv. III,
tit. LXXXVI, § 23).
c) Profissão. Relativamente á profissão como
fonte da nobreza, o direito variou muito, conforme
as phases da evolução social e politica do pais.
Entre as pessoas nobres por este motivo, podemos
mencionar, como exemplos, os officiaes de justiça do
Desembargo de El-Rei (Ord., liv. III, tit. LIX, §
15), os marechaes de campo e os tenentes
generaes (Dec. de 13 de maio de 1789), os
doutores em Theologia, Canones, Leis ou Medicina
(Ord., liv. III, tit. LIX, § 16; liv. v, tit. cxx, pr.), etc.
d) Concessão do rei. O rei podia tambem elevar
â classe da nobreza aquelles que quizesse distinguir,
recommendando, porém, a legislação que nisto devia
haver muita economia, para se não amortecer a ver
dadeira nobreza (Lei de 29 de janeiro de 1739 e
Ord., liv. v, tit. XCII, pr.) 1.
1
Borges Carneiro,
Direilo civil de Portugal,
tom. I, pag. 125 e
seg.
— 326 —
§2.º
Clerigos
SUMMARIO : 147. Os clerigos no direito romano. —148. Os
clerigos no direito wisigothico. 149. Os clerigos na
Reconquista. —160. Os clerigos no direito português. Pre-
ponderancia do clero. — 161. Privilegios e immunidades do
clero. — 162. O clero nas sociedades modernas.
147. Os clerigos no direito romano. Na ordem
dos privilegios, depois dos nobres, encontram-se os
ecclesiasticos. É clerigo todo aquelle qne recebe a
tonsura, que dà accesso às ordens ecclesiasticas. Em
condição similhante senão identica se encontram os
monges, que na sua grande maioria,o tambem
clerigos. Estes constituem o clero regular; aquelles
o secular.
Depois que o christianismo se tornou a religião
do Imperio romano, os clerigos receberam impor-
tantes privilegios. O privilegio do fôro encontra-se
sanccionado pela legislação imperial.
Em materia crime, prevaleceu o principio de que
os bispos o podiam ser julgados senão por bispos.
Uma constituão de Honorio e Theodosio de 412
extendeu este privilegio a todos os clerigos, que
deste modo unicamente podiam ser julgados e puni-
dos pelo seu bispo.
Certos auctores ensinam, porém, que o direito
romano não admitte o privilegio clerical do fôro em
materia crime. Fundam-se em que a constituição
de Honorio e Tbeodosio se refere sómente aos deli-
ctos leves e não aos crimes. Tal é a opinião de
Godefroy e Beaucbet.
— 327 —
Mas esta distincção é absolutamente
inadmissível, visto ser contraria ao texto preciso
e geral da lei. Invoca-se tambem em favor desta
doutrina a novella 34 de Valentiniano III, onde se
diz que os bispos devem conhecer sómente das
causas relativas á religião. Este argumento prova
demais, visto levar á conclusão de que os bispos
não podiam conhecer de nenhum negocio crime,
mesmo dos delictos leves. A verdade é, porém,
que esta Novella de Valentiniano III, limitando a
competencia dos bispos ás materias espirituaes,
tem em vista as causas dos leigos e não as dos
clerigos.
Relativamente ás questões civis entre clerigos,
não apparece nenhum privilegio nitidamente
formulado no ultimo estado das collecções
imperiaes. Ha uma constituição de Constantino,
considerando competente a jurisdicção do bispo,
em materia civil, desde o momento em que uma
das partes se dirigisse a ella. Esta constituição
vigorou pouco tempo, prevalecendo o principio
de que a jurisdicção do bispo em materia civil
não era competente, sem o consentimento de
ambas as parles. Nenhuma constituição imperial,
porém, consagrou o privilegio clerical em materia
civil.
A exemão de encargos pessoaes foi tambem
admit-lida pelo direito romano a partir do
Constantino 1.
148. Os clerigos no direito wisigothico. — Os
privilegios augmentam no direito wisigothico
como consequencia da acção da Igreja. Esta acção,
porém,
1
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 269 e seg.;
Nani, Storia del diritto italiano, pag. 32 e seg.; Glasson, His-
toire du droit et des institutions de la France, tom. I, pag. 563 e
seg.
— 328 —
o se manifesta verdadeiramente seo depois da
conversão de Recaredo, cujo exemplo impelliu a
egual mudança o maior numero dos nobres desse
imperio, os quaes, alem de não comprehenderem,
em virtude da sua rudeza, a subtil differença entre o
catholicismo e o arianismo, manifestaram, como
todos os barbaros, grande mobilidade em materia
religiosa.
A influencia da Igreja entre os wisigodos foi
mais preponderante do que entre os outros povos
barbaros, pois alli o clero o interveio no
governo, mas tambem se tornou legislador civil e
politico. Este facto, que é signalado por todos os
historiadores e nomeadamente por Guizot, explica-o
dum modo cabal Oliveira Martins, mostrando que o
clero constituía o laço de união entre a Hespanba
romana e a Hespanba goda, e fez com que os
vencederes, vendo deante de si uma corporação
nacional organizada, se deixassem dirigir por ella,
respeitando essa força, reconhecendo a
superioridade da instrucção, e principalmente
utilizando em proveito proprio esse elemento do
poder.
A situação juridica especial dos clerigos manifesta-
se entre os wisigodos em quatro pontos: a) exempção
das penas civis em certos casos; b) privilegio do
fôro; c) exempção dos encargos pessoaes; d) exem-
pção do serviço militar. Vejamos cada um delles.
a) Exemão das penas civis em certos casos.
Masdeu julga que os clerigos estavam exemplos das
penas de morte, decalvão e açoutes. Esta doutrina
não é exacta e rigorosa, com a absoluta generali-
dade que este escriptor suppõe. Se ha casos em que
isso se verifica, ha outros em que a pretendida regra
não tem applicação. Assim, um ingenuo que pratica
um homidio é castigado com a pena capital.
— 329 —
sem se fazer distincção entre o clerigo e o leigo
(Cod. wis., liv. II, tit. I, 1. 6). Do mesmo modo, a
lei civil applica a decalvação e os outes, sem diffe-
rença entre os clerigos e os leigos, aos que falsifi-
cam as ordens reaes (Cod. wis., liv. vII, tit. v, 1. 9).
O que se em alguns casos é a exempção da
penalidade, como acontece relativamente aos clerigos
rebeldes, que soffrem a perda da honra e a
penitencia perpetua, emquanto as outras pessoas o
punidas com a pena de morte (Cod. wis., liv. II,
tit. I, 1. 6 e Conc. VII de Toledo, can. 1). Do mesmo
modo, o clerigo que commethia o delicto carnal,
punido com açoutes e decalvão, era castigado
unicamente com a deposição e desterro (Cod. wis.,
liv. III, tit. v, 1. 6 e can. 3 do xIv concilio de Toledo).
Finalmente, o concilio de Merida exime de decalvação
o sacerdote culpado de ter mntilado um escravo
(Conc. de Merida, can. 5).
b) Privilegio do ro. O privilegio do fôro
offerece bastantes incertezas e duvidas neste período,
em virtude da insufficiencia das fontes e da confusão
entre os direitos civis e canonicos que se manifesta
e desinvolve em seguida á conversão de Reccaredo.
Apparece sanccionado o privilegio do fôro nas
queses entre clerigos, parecendo que nas questões
entre clerigos e leigos o clerigo tinha de demandar
o leigo perante o juiz civil e o leigo podia â sua
escolha demandar o clerigo perante o tribunal civil
ou perante o ecclesiastico (Conc. III de Toledo,
can. 13). Os bispos eram demandados perante os
concílios provinciaes, segundo declara o concilio IV
de Toledo. (Conc. IV de Toledo, can. 3).
Relativamente ao fôro criminal dos clerigos, não
encontramos leis expressas nesta epocha. A lex
romana wisigothorum insere a constituição romana
— 330 —
segundo a qual os clerigos criminosos, com exce-
pção dos bispos, devem ser entregues ao juizo civil.
O coucilio IV de Toledo confiou às assembléas dos
bispos o conhecimento dos delictos de intelligencia
criminosa dos sacerdotes com o estrangeiro e pro-
vavelmente tambem o de insurreição armada.
Os clerigos exerciam jurisdião como arbitros
nomeados pelas partes, não fazendo distincção alguma
o codigo wisigothico ao reconhecer a arbitragem em
lermos muitos geraes e ao dar o caracter de verda-
deiros juizes aos arbitros (Cod. wis., liv. II, tit. I,
1. 25).
c) Exempções de encargos pessoaes. Reccaredo fez
a concessão, no concilio m de Toledo, aos clerigos
de elles não serem empregados em trabalhos
publicos ou particulares pelos juizes ou exaclores
publicos (Conc. III de Toledo, can. 21). Sisenando
foi mais longe no concilio IV de Toledo, eximindo
os clerigos ingenuos ab omni publica indictione atque
labore. A. exemão de serviços labore è a
mesma de Reccaredo; a da indictione refere-se á do
tributo directo pessoal, denominado capitatio hu-
mana, e que tinha sido imposto pela indictio do rei
(Conc. IV de Toledo, can. 47).
Alguns escriptores, como Genni, julgam mesmo
que o imposto directo territorial, capitatio terrena,
onerava os bens da Igreja não como uma obrigão,
mas como um donativo voluntario. Esta opino,
porem, è inexacta, visto fundar-se numa intelli-
gencia da palavra obsequia, que emprega o concilio xvI
de Toledo. Este concilio, porém, não reconhece
que as Igrejas eram obrigadas ao pagamento de
tributos em razão dos seus predios, mas tambem
emprega a palavra obsequia para designar estes
tributos, unicamente por esta expressão se applicar
— 331 —
nesta epocha a todas as prestações que tinham cara-
cter territorial (Conc. xvI de Toledo, can. 5).
Como se vê, a monarchia wisigothica o conce-
deu ao clero a ampla exempção de impostos que
este alcançou em tempos posteriores e que per-
mittia sujeitá-lo aos tributos sob a rma de donativos.
d) Exempção do serviço militar. Liga-se eviden-
temente com esta exemão dos encargos pessoaes
a do serviço militar, que chega a estabelecer-se
tambem como orna consequencia da situação especial
em que se encontrou o clero na sociedade wisigo-
lhica.
Ha varios textos das leis wisigothicas que sup-
põem a sujeição do clero ao serviço militar. A sua
exempção entre os wisigodos não data senão do rei
Ervigio e do concilio xII de Toledo 1.
149. Os clerigos na Reconquista. Com o desin-
volvimento da Reconquista, resurge a influencia da
Igreja na vida social e politica, secundada pelas
tradões do codigo wisigothico e pela lucta secular
que se travou na Península entre christãos e maho-
metanos, favoravel â expansão do fanatismo religioso.
Todas as classes, diz Gama Barros, estavam pos-
suídas do mesmo fervor; todos, grandes e pequenos,
porfiavam por alcançar a absolvição dos seus pecca-
dos a troco de dadivas á Igreja e aos seus ministros.
As doações e deixas feitas ás Igrejas, em virtude
desta orientação dos espíritos, produziram a accu-
1
Perez Pujol, Historia de las institutiones sociales de la Espana
goda, tom. III, pag. 262 e seg.; Paul Viollet, Histoire du droit
civil français, pag. 275 e seg.; Guizot, Histoire du origines du
gouvernement représentatíf, tom. I, pag. 288; Oliveira Martins,
Historia da civilização iberica, pag. 49.
-332 -
mutação das riquezas nas mãos duras do clero,
que junctamente com a sua superioridade mental
no meio da barbarie, lhe devia assegurar uma
grande preponderancia nas idéas, sentimentos e
costumes publicos.
Esta prepoderancia era ainda fortalecida pelo
desinvolvimento do poder dos papas, cujas
pretensões chegaram ao seu ultimo termo em
1073, quando Gregorio VII, que, segundo
Guizot, tentou organizar os diversos elementos
sociaes theocraticamente, não duvidou afirmar
que, desde tempos remotos, o reino da Hespanha
era propriedade de S. Pedro.
O meio historico era, por isso, favorável à
conser-
vação e desinvolvimento dos privilégios
consignados
no direito wisigothico. No concilio Jaccense,
celebrado em 1063, estabelece-se claramente que
as causas dos clerigos só possam ser julgadas
pelo bispo e seus arcediagos. Neste seculo,
porém, as questões, aliás muito vulgares, entre os
mosteiros e individuos seculares ou
ecclesiasticos sobre direitos de propriedade eram
decididas no juizo civil, ou, quando muito, num
juizo mixto. O mesmo aconteceu quasi até ao fim
do século XII.
a exempção do serviço militar é que não
podia manter-se no meio da violenta
reconstituição da sociedade peninsular. A Igreja
experimentou a influencia dos acontecimentos
desta phase histórica da evolução social,
caracterizada pelo predominio do
militarismo que se impunha a todas as
instituições, como condição de vida. As igrejas e
os mosteiros também são fortalezas, diz Oliveira
Martins, os parochos e bispos homens de guerra,
senhores de territorios sobre que imperam da
mesma fórma que os seculares. Os bispos e
abbades acompanham, á frente das suas tropas,
as correrias contra os sarrarenos, cobram os
tributos dos seus senhorios; teem
— 333 —
servos, que aram os seus campos ou desempenham
as funcções inferiores do sacerdocio.
Em summa, os bispos e abbades possuidores de
territorios eram verdadeiros senhores, como os
nobres, levando a estes a vantagem, no maior numero
de casos, de terem concedidos pelos reis, em docu-
mentos escriptos, os seus privilegios 1.
150. Os clerigos no direito português. Prepon-
derancia do clero. A monarchia portugsa cons-
tituiu-se no momento historico em que o poder dos
papas tinha chegado ao seu apogeo, de modo que a
christandade do Occidente reconhecia no successor
de Pedro o arbítrio supremo de quem emanava a
legitimidade da auctoridade civil. Este poder do
papado devia contribuir para dar ao clero uma
grande preponderancia na vida social e politica, a
qual ainda era fortalecida pelo prestigio de que a
religião cercava os seus ministros, pela sciencia cujo
monopolio possuíam, e pela força que lhes advinha
das vastas propriedades que usufram.
0 poder do clero affirma-se claramente nas suas
lactas com a corôa, que Alexandre Herculano attribue
erradamente a uma falta de cortezia e deferencia que
o bispo do Porto D. Martinho Rodrigues praticou
para com o rei, bem com á mudança que por este
tempo se introduziu na disciplina ecclesiastica dos
cabidos. Estes factos não são mais do que uma
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Portu
gal nos seculos XII a XV, tom. I, pag. 210; Oliveira Martins,
Historia da civilização iberica, pag. 159 e seg.; Guizot, Histoire
de la civilization en Europe, pag. 276; D. Rafael Altamira,
Historia de Espana y de la civilización espanola, tom. I, pag. 296
e seg.
— 334 —
causa occasional das lactas entre o clero e a corôa,
que encontram a sua verdadeira explicação na
estructura social da epocha, em que a auctoridade
real e a aactoridade ecclesiastica, egualmente pode-
rosas, procuram expandir-se ama á custa da outra.
Do reinado de D. Diais em diante manifestasse a
decadencia da preponderancia do clero, motivada
pelo desinvolvimento progressivo do poder real e
pelo enfraquecimento do poder central da Igreja, para
que concorreu poderosamente a mudança da sede
pontificial para Avinhão e o schisma do Occidente
de 1378. E com razão, pois, que Gama Barros nota
que a lacta do clero com a corôa, nos primeiros
annos de D. Dinis, traduz a transformação por que
neste tempo iam passando, em sentido inverso, os
dois poderes ecclesiastico e civil, aquelle eotrando
no periodo da sua decadancia, este, pelo contrario,
conseguindo afinal maior liberdade de acção.
O poder do clero, apesar de enfraquecido, não
perdeu completamente a sna força por causa da
uno com a corôa, que esta aproveitou habilmente
para realizar o sonho dourado de todas as monar-
chias o absolutismo. Effectivamente, a monarchia,
depois de violentas lactas com o clero, comprehendeu
que elle era um elemento de força para a realizão
dos seus ideaes, e, por isso, longe de o afastar por
meio de represalias, procurou alliciá-lo pela amizade,
benefícios e concessões.
E assim conseguiu o clero exercer ama grande
ingerencia na administrão publica, que, por vezes,
chegou a subordinar, A administração publica, diz
Coelho da Rocha, achava-se subordinada ao poder dos
ecclesiasticos, o qual era dirigido menos pelo interesse
nacional, do que pelas leis canonicas e pela vontade
do Pontífice, que as podia alterar. E a côrte de Roma,
— 335 —
abandonando a expressão de feudo e de direito pro-
prio, conseguiu no seculo xvI exercer Indirectamente
sobre o governo de Portugal aquella influencia que
no seculo xIII lhe fôra denegada por D. Dinis.
Quando, porém, o poder real chegou a adquirir
bastante força para subsistir absoluto, sem o auxilio
do clero, reagiu energicamente contra o elemento
ecclesiastico e procurou emancipar-se do poder papal,
tentando assim pôr fim aos ultimos obstaculos que
se oppunham á expano completa do absolutismo.
O genio do Marquês de Pombal, diz Coelho da
Rocha, era tão vasto e a sua energia e actividade
tio vigorosas, que, dominando o monarcha, não se
sujeitava á influencia de pessoa, nem de ordem
alguma. No seu systema social, as funcções do rei
eram mandar o que lhe aprouvesse e as da nação
obedecer e nada mais.
Assim, a integração da monarchia unitaria produ
zia, na ultima pbase da sua curva evolutiva, uma
reacção notavel contra o elemento ecclesiaslico,
tendo por fim inutilizar o resto do poder que tinha
a ordem clerical.
Com o regimen liberal, o clero não conseguiu
uma condição mais lisongeira, em virtude das ideias
da epocha não serem favoraveis ao seu poder 1.
151. Privilegios e immunidades dos clerigos. A
condição jurídica dos clerigos, durante o antigo
regimen, foi particular e privilegiada, embora a
extensão dos seus privilegios e immunidades variasse
1
Herculano, Historia de Portugal, tom. I, pag. 100; Gama
Barros, Historia da administração publica em Portugal, tom. I,
pag. 215; Coelho da Rocha, Ensaio sobre a historia do governo e
da legislação em Portugal, pag. 109 e seg.
— 336 —
muito com o grão da preponderancia desta classe
na vida social e politica do pais. Os privilegios e
immunidades dos clerigos podem reduzir-se a tres
categorias: a) privilegio do ro; b) exemão dos
impostos; c) exemão do servo militar. Vejamos
rapidamente cada um destes privilegios, no des-
involvimento historico do direito português.
a) Privilegio do ro. O direito canonico, ins-
pirando-se nos prinpios do systema theocratico,
admitte sobre a extensão da jurisdião ecclesiastica
os seguintes princípios: o clerigo não póde reco-
nhecer a jurisdicção secular; o clerigo réo não de
ser accusado nem citado por um leigo senão perante
um tribunal ecclesiastico; o clerigo pôde accusar
um leigo perante o tribunal ecclesiastico; o juiz
ecclesiastico pôde proceder contra todo o peccador
ecclesiastico ou leigo; o clerigo não pôde appellar
dum tribunal ecclesiastico para um leigo; o leigo
pôde appellar dum tribunal secular para um tribunal
ecclesiastico.
A Igreja procurou actuar na legislação para que
estes prinpios fossem recebidos. E, effectivamente,
como diz Gama Barros, para o fim do seculo xII,
ou mais talvez no começo do seguinte, as doutrinas
do decreto de Graciano, exercendo uma influencia
decisiva, o principio geral do privilegio do fôro
ecclesiastico estava expressamente reconhecido em
muitos, casos no direito português, intendendo a
classe clerical, ainda na segunda metade do seculo xv,
que devia ser julgada sempre pelo direito canonico
e jamais pelo civil, a havendo de responder perante
a justiça secular.
Uma applicão do direito canonico a que os
monarchas procuraram oppôr-se, foi a de os leigos
citarem outros leigos perante o juiz ecclesiastico.
— 337 —
D. Afonso IV condemnou o facto com penas severas,
e ordenou que o individuo chamado ao juízo da
Igreja, consultasse, antes de responder á citação, o
corregedor sobre a legitimidade do juízo, ou na falta
do corregedor, os juizes da villa.
Apesar dos esforços dos reis para regular esta
materia, a influencia do clero não os deixava produ-
zir bons resultados, como mostram os capítulos
apresentados ás côrtes pelos procuradores dos con-
celhos, que offerecem grande numero de queixas
contra os abusos da Igreja por causa do privilegio
do ro. Não era raro, diz Gama Barros, concede-
rem-se rescriptos pontifícios, citando pessoas leigas
para fóra da comarca onde viviam e até para fóra
do reino.
É certo que esta fonte de abusos foi eliminada
com o estabelecimento do beneplacito por D. Pedro I,
mas permaneceram os inconvenientes que traziam
aos leigos as causas da jurisdicção da Igreja, prove-
nientes da tendencia que os prelados manifestaram
sempre para as ampliar, como se póde vêr das
côrtes de Santarem (1406), de Evora (1408) e de
Santarem (1448), e que os reis se esforçaram por
fazer desapparecer.
As Ordenações Affonsinas procuraram limitar e
definir o privilegio do fôro, em cincoenta regras,
tiradas dos artigos resolvidos em rtes e de outras
determinões regias. Predomina nesta compilão
o principio de attribuir ás justiças ecclesiasticas o
conhecimento dos crimes dos clerigos, e de dar
competencia ás justiças seculares para julgar as cau-
sas civeis sobre posse, bens da corôa, herança de
leigos, cousas compradas aos leigos, etc. Em todo
o caso, as Ordenações Affonsinas procuravam impe-
dir os abusos da jurisdião ecclesiastica, estabele-
22
— 338 —
cendo que: Se o juiz da Igreja for negrijente em
fazer direito do Creliguo, extremadamente nas deman-
das Reaes, s, e Nossos Juizes Leiguos podemos citar
o Creliguo, ou Leiguo, que for da jurdição da Igreja;
e soprir tal negrigencia (Ord. Aff., liv. III, tit. xv).
O privilegio do fôro passou para as Ordenões
Manuelinas, quasi nos mesmos termos em que se
encontra nas Ordenações Affonsinas (Ord. Man.,
liv. II, tit. I).
A influencia nefasta do concilio de Trento, tão
inconsideradamente admittido no reino, quando outras
nações se recusaram a receber as suas reaccionarias
disposições, veio dar nova força ao privilegio do
fôro, tanto mais que se permittiu aos bispos o uso
da jurisdicção que Ihes ra altribuida polo concilio,
ainda que fosse com quebra da jurisdicção real.
Depois, concedeu-se aos clerigos jurisdião para
prender os leigos, e comminavam-se aos que
offendiam as justas ecclesiasticas as mesmas penas
que aos que attentassem contra as seculares. Era
eno axioma corrente clerici legi tantum divinae
et canonicae sunt subjecti et non çivilibus constitutio-
nibus.
As Ordenões Filippinas, que alguns escriptores,
como o Sr. Dr. Chaves e Castro, seguindo a Dedu-
cção Chronologica, sustentam que conservaram o
que as Manuelinas haviam estabelecido sobre a juris-
dicção real e ecclesiastica, e que outros, como Coelbo
da Rocha e Mello Freire, intendem que concederam
aos clerigos varios privilegios novos e insolitos e
em muitos logares lhes ampliaram consideravelmente
os direitos, contra ou além do espirito do antigo
codigo, mostram-se muito favoraveis ao privilegio
do fôro, não se esquecendo de garantir aos prelados
e seus officiaes a faculdade de prenderem e penho-
— 339 —
rarem os leigos nos termos estabelecidos pelo con-
cilio de Trento (Ord. Filip., liv. II, tit. I).
A reacção que se manifestou no tempo do Marquês
de Pombal contra a ordem ecclesiastica, originando
uma reaão parallela contra o direito canonico, que
assignala até, segando o Sr. Dr. Theopbilo Braga,
o seculo daquelle grande estadista, é que veio vibrar
o primeiro golpe no privilegio do ro de que gosa-
vam os clerigos. Effectivamente, como observa
Coelho da Rocha, sanccionou-se por lei e mandou-se
ensinar que a jnrisdicção ordinaria dos prelados
era restricta aos negocios paramente espirituaes e
que em todo o mais o poder ecclesiastico derivava
da conceso dos monarchas, os quaes, por conse-
guinte, podiam limitá-lo ou revogá-lo, quando muito
bem lhes parecesse.
Os jurisconsultos seguiram a nova orientão,
salientando-se, entre todos, o grande Mello Freire,,
que considerou as prerogativas do clero impoliticas;
contradictorias e obtidas por surpresa ou poderio, e'
procurou dar ás leis que as sanccionavam uma inter-
pretaçáo restricta. Assim, se inicia a decadencia'
do privilegio do ro, que o regimen liberal veio
supprimir.
Effectivamente, a constituição de 1822, estabele-
cendo que a lei é egual para todos, declarou ao
mesmo tempo que se não podiam tolerar privilegios
de ro nas cansas civeis ou criminaes, não se
comprehéndendo, porém, nesta disposição as causas
que, por sua natureza pertencem a juizos partícula-res,
na conformidade das leis (art. 9.°).
O mesmo fez a Carta Constitucional, preceituando
que, cora excepção das causas que, por sua natu-
reza, pertencem a juízos particulares na cooformi-
dade da lei, não haverá foro privilegiado, nem
— 340 —
commissões especiaes nas causas civeis e criminaes
(art. 145.°, § 16.°).
A Constituição de 1838 tambem não foi omissa
sobre este assumpto, porquanto determinou que,
com excepção das causas que por sua natureza per-
tencerem a juizos particulares na conformidade da
lei,o haverá fôro privilegiado nem commissões
especiaes (art. 20.°).
O ro especial em razão da causa não póde ser
rigorosamente qualificado de fôro privilegiado, porque
o se verificam as condões necessarias para a
existencia do privilegio, e por isso a excepção que
se encontra estabelecida nas nossas constituões a
respeito da abolição do ro privilegiado era escu-
sada.
Esta abolição tem de se intender, em harmonia
com o § 15.° do art. 145.° da Carta Constitucional,
que declarando abolidos os privilegios que não forem
essencial e inteiramente ligados aos cargos por
utilidade publica, permitte a existencia do ro
privilegiado, quando ligado a estes cargos. O pri-
vilegio do ro dos clerigos è que o póde subsistir,
pois não provem da natureza das causas, nem
assenta sobre cargos de utilidade publica.
Uma applicação notavel da doutrina da Carta
Constitucional encontra-se logo no decreto de 29 de
julho de 1833, que dispoz que os crimes commetti-
dos contra a sociedade pelos ecclesiasticos seculares
ou regulares, de qualquer preeminencia, distincção
ou nomenclatura que sejam, fossem processados e
punidos pelos juizos criminaes. b) Exempção de
tributos. Segundo a doutrina dos concílios de
Latrão (1179) (can. xIx) e de Latrão (1215) (can.
XLVI) e de Bonifacio VIII (1296) (bulia Clericis
laicos), reconhecia-se que o clero
— 341 —
tinha obrigão de contribuir para as despesas do
Estado, com certas restriões, estabeleceado-se a
regra de que as imposições fossem consentidas pelo
clero e pelo Summo Pontifice, devendo os leigos
recebê-las humilde e devotadamente, com acções de
graças. E a theoria do pagamento dos impostos
pelo clero sob a fórma de dons gratuitos, que se
generalizou nos Estados catholicos, no começo do
seculo xIv.
E, effectivamente, em harmonia com esta doutrina,
foram publicadas neste seculo varias bulias pontifí-
cias, auclorizando diversos subsídios pedidos ao
clero, com o fundamento da guerra contra os infieis.
E, se este fundamento muitas vezes não passa dum
pretexto, tambem é certo que a Curia o deixava
de tirar proveito de taes conceses, pois reservava
para si frequentemente uma parte da collecta, sendo
essa parte muitas vezes metade.
Ha exemplos, pom, do laamento de tributos
com consentimento dos prelados, mas sem audiencia
do Summo Pontífice, pratica que foi condemnada por
Eugenio IV, em bulia de 10 de janeiro de 1437, Ad
sacram Patri. Apesar desta condemnação, Affonso V
lançou tributos sobre o clero, com consentimento
deste, mas sem auctorizão do Papa, allegando a
urgencia de acudir ás necessidades publicas. Absol-
veu-o desta falta Nicolau V, determinando, pom,
que dahi por diante se não exigissem nem pagassem
taes decimas, o que não obstou a que se conti-
nuasse a cobrar o subsidio ecclesiastico e até por
fórma diversa do que se tinha accordado, recla-
mando contra isso o clero nas côrtes de Lisbôa
de 1455.
D. Manuel alargou este privilegio dos clerigos,
estabelecendo que elles ficassem exemplos das sizas,
— 342—
portagens e dizimas, ás quaes até ahi estavam
sujeitos. Esta lei foi recebida pelo clero cora gran-
des manifestações de regosijo.
No seculo xvII, ainda se reconhece a necessidade
do consentimento do clero para que elle possa ser
tributado, embora não se pense na auctorização
pontifícia para isso. Segundo a proposta das côrtes
approvada pelo regimento de 28 de abril de 1646,
assentou-se que a decima se devia lançar mui egual
e ajustadamente sobre as rendas de todas as pessoas
dos tres Estados, do clero, nobreza e povo, sem
excepção alguma, ficando prohibido em tempo algum
fazer avea com as religiões e communidades para
deixarem de contribuir, como as demais pessoas dos
tres Estados.
No seculo xvIII continuou a mesma jurisprudencia,
como se vê da Carta Regia de 15 de outubro de
1796, em que o soberano, desejando dever ao zelo
e amor dos ecclesiasticos seus vassallos aquelles
snbsidios que por legitima e inauferivel auctoridade
podia haver, significou aos bispos que, na urgencia
da guerra, seria muito proprio do seu zelo que
elles e os ecclesiasticos seculares e regulares das
suas dioceses soccorrara de boa vontade o Estado,
com uma decima de todos os seus rendimentos de.
cuja cobrança os encarrega.
Foi preciso que tivesse lugar a revolução de 1820
para que este privilegio do clero acabasse. Effecti-,
vamente, a constituão de 1822 diss que a con-
tribuição directa fosse repartida por todas as pessoas,:
na proporção dos rendimentos que ellas tivessem
(art. 228.°), A Carta Constitucional ainda foi mais-
clara, dispondo que ninguem será exempto de com-
tribuir para as despesas do Estado em proporção
dos seus haveres (art. 145.°, § 14.°). A disposição,
— 343 —
da Carta foi reproduzida pela Constituição de 1838
(art. 24.°).
c) Exempção do serviço militar. A exempção do
servo militar começou entre nós por ser muito
restricla. Effectivamente, no principio da monarcbia
os clerigos iam á guerra, salvo tendo dispensa do
rei, a qual nunca comprehendia o caso da guerra
com os infieis. Póde citar-se como exemplo destas
dispensas a que 0. Sancho 1 concedeu omnibus
abbatibus, et prioribus et clerícis totius regni mei ut
nunquam... veniant id exercitam... nisi contra
sarraceno, si intraverint in terram nostram.
Ha muitos, factos que provam a intervenção dos
clerigos em guerras, mesmo sem serem contra os
infieis. Na guerra da independencia dos fins do
seculo xIv pelejaram prelados, tanto do lado del
Portugal, como do de Castella. Em 1385, segun-
do refere Gama Barros, o arcebispo de Braga, D.
Lourenço, foi ferido no rosto na batalha de
Aljubarrota e dizia elle, em carta que escrevia ao
abbade de Alcoba, doze dias depois, que aquelle
que o ferira não iria contar em Castella o cruza
mento da cara do arcebispo.
Mas lá estavam os canones, prohibindo o uso das
armas aos clerigos e a Igreja proclamando a maxima
Ecclesia abhorrel sanguine, e por isso não deve
admirar que se fosse generalizando e radicando o
principio de que os clerigos estavam exemplos do
serviço militar. Em todo o caso, as Ordenões
exceptuavam os clerigos que não fossem de ordens
sacras, porque esses podiam ser obrigados á defensão
da terra, quando a ella viessem inimigos (Ord.,
liv. II, tit. I, § 12).
A nossa legislão, porém, respeitando o principio
da exempção dos clerigos de ordens sacras ao ser-
— 344 —
viço militar, procurou evitar os abusos a que este
privilegio podia dar legar. É, por isso que o Alv.
de 7 de março de 1812 recommendou aos prelados
que não dessem ordens a indivíduos que servissem
para o recrutamento.
0 regimen liberal conservou esta exempção, em
bora tenha exigido, como condão da conceso da
licença regia para admissão a ordens sacras, que o
ordinando tenba dado cumprimento ás leis do recru
tamento, mandando-se proceder contra o empregado
publico que passe documento que dè azo a ser
promovido aquellas ordens quem es obrigado ao
serviço militar. Hoje permitte-se o adiamento do
alistamento ao mancebo que frequentar com aprovei
tamento até á edade de vinte e seis annos, qualquer
curso theologico, com destino á carreira ecclesiastica
(Portt. de 7 e 10 de fevereiro de 1865, Lei de 12
de setembro de 1887, Reg. de 29 de outubro
de 1887, Dec. de 29 de outubro de 1891, Dec. de
23 de julho de 1891, Dec. de 19 de outubro de 1901,
Reg. de 24 de dezembro de 1901).
Mais radicaes foram a França e a Italia, que abo-
liram completamente a exempção do servo militar
conferida aos clerigos 1.
1
Gama Barros, Historia da administração publica em Por
tugal, tom. I, pag. 282 e seg.; Herculano, Historia de Portugal,
tom. II, pag. 197 e seg.; Coelho da Rocha, Ensaio sobre o
governo e a legislão de Portugal, pag. 109 e 180 e seg.;
Bernardino Carneiro, Direito ecclesiastico português, pag. 117;
Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, tom. I, pag. 172 e
seg.; Sr. Dr. Lopes Pra, Estudos sobre a Carta Constitucional,
part. I, pag. 140 e seg.; Nani, Storia del diritto privato, pag. 33
e seg.; Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 269 e seg.;
Sr. Dr. Chaves e Caslro, Beneplacito regio, pag. 40; Sr. Dr. Pitta,
Historia do beneplacito regio em Portugal, pag. 168.
— 345 —
162. O clero nas sociedades modernas. —Apezar
de abolidos ou restringidos os privilegios dos cleri-
gos nas sociedades modernas, a Igreja ainda não
desistia das suas pretensões.
Effecvamente, Pio IX, ao passo que, por um lado,
declarava na constituição Apostolicae Sedis moderationi
qne incorriam em excommuno os que forçavam
directa ou indirectamente os juizes leigos a citar
perante os seus tribunaes as pessoas ecclesiasticas
fóra das disposições canonicas, por outro compre-
bendia no Syllabus a proposição seguinte: sem
violar, nem a lei natural, nem a equidade, podem-se
abrogar as immunidades pessoaes que exoneram os
clerigos da lei militar, sendo esta abrogação recla-
mada pelo progresso civil, principalmente numa
sociedade organizada sobre os princípios dum governo
liberal. De modo que o problema dos privilegios e
das immunidades dos clerigos que apaixonou tão
profundamente a Edade Media e que originou luctas
e debates tão violentos, o pode deixar de preoc-
cupar a civilização moderna, em virtude da influencia
de que ainda gosa a Igreja.
Mas, o principio ecclesiastico das immunidades e
dos privilegios dos clerigos briga completamente
com um principio fundamental da civilização moderna
egualdade. É, por isso, que é difficil suppor que
as reivindicações da Igreja sejam attendidas. Os
cidadãos o eguaes perante a lei não se podendo
attribuir aos clerigos diversos dos conferidos a
todos os outros cidadãos.
A questão é um pouco mais delicada relativamente
ao servo militar. Mas, o exercito é um complexo
de muitas e diversas funcções, e por isso cada
— 346 —
cidadão póde ahi ser empregado, por mais diversas
que sejam a sua vocação e a soa aptidão. Os cleri-
gos podiam assim ahi ser destinados a serviços
religiosos ou de saude, tanto DO tempo de paz como
DO tempo de guerra.
E do mesmo modo que nas sociedades modernas
se não admittem os privilegios dos clerigos, tambem
não se comprehendem as suas incapacidades. Effe-
ctivamente, o Estado deve desinteressar-se comple-
tamente do que a Igreja preceitua ou prohibe aos
seus ministros, desde o momento em que é dogma
da civizilização moderna a liberdade de consciencia
e de cultos.
Proclamada esta liberdade, o Estado não póde
deixar de se declarar incompetente sob o aspecto
religioso, abandonando á consciencia privada dos
seus subditos a crença e o culto. Dabi a necessi-
dade de emancipar a vida politica das sociedades de
toda a ingerencia confessional 1.
1 Brunialti, Lo Stato e la hiesa in Italia, pag. CCXXIX;
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 278 e seg.
CAPITULO I
PRINCIPIOS GERAES
SUMMARIO : — 153. Importancia actual da historia da proprie-
dade. 154. Noção da propriedade. 155. Divisão da
propriedade. 156. Fundamento historico da propriedade.
157. Lei sociologica da evolução da propriedade de Carie.
153. Importancia actual da historia da proprie-
dade.Entre os problemas que apresenta a historia
das instituições, um dos mais importantes é, sem du-
vida, o da origem e desinvolvimento da propriedade.
Ninguem ignora, por certo, que o argumento da
propriedade constitue um dos mais controvertidos
dos ultimos tempos, tendo-se occupado delle philo-
sophos, economistas e jurisconsultos com orientações
as mais diversas. Ora só a historia da propriedade
é que pode permittir construir sobre bases solidas a
theoria deste instituto. É por não conhecerem os
factos que muitos escriptores têem fundado a pro-
priedade sobre hypotheses mais ou menos arbitrarias
e sobre raciocinios mais ou menos extravagantes,
que a historia contradiz completamente.
Por outro lado, o problema da historia da proprie-
dade encontra-se intimamente ligado com a questão
economica e social, cuja solão exige uma reorga-
nização deste instituto mais ou menos profunda, em
harmonia com rmas que elle revestiu nos tempos
passados. As democracias modernas, diz Laveleye,
não podem escapar ao destino das democracias anti-
gas senão admittindo leis que tenham por effeito
repartir a propriedade por um grande numero de
indiduos e estabelecer uma grande egualdade da
condições. Sem regressar ás instituições dos tempos
— 350 —
primitivos, podem-se adoptar do systema da posse
germanica o eslava princípios mais em harmonia,
do que os do direito romano, com as necessidades da
democracia moderna.
Finalmente, no campo mesmo da historia das
instituições, o problema da propriedade é um dos
mais interessantes, em virtude da renovação por que
em passado ultimamente os estudos sobre este
assumpto. Por muito tempo se julgou que a proprie-
dade quiritaria, que nos legaram os romanos, era
commum a todos os povos, tornando se verdadeira-
mente impossível a agricultura e a civilização sem
ella. As investigações feitas nos ultimos tempos
derrram esta doutrina, mas não permittiram ainda
estabelecer a unanimidade entre os escriptores que
se têem occupado deste assumpto. Dahi as discus-
sões que se lêem levantado a respeito das pbases
da evolução historica da propriedade, que dão a
este estudo uma actualidade palpitante 1.
154. Noção da propriedade. Uma das causas
das divergencias que se notam nos escriptores que
se em occupado da historia da propriedade é, sem
duvida, a falta dum conceito exacto e rigoroso da
propriedade. É assim que Fustel de Coulanges,
que se salientou na critica da theoria da propriedade
communal, apresentada por Laveleye, revela uma
grande confuo de ideias a respeito do conceito da
propriedade, concorrendo isto bastante para enfra-
quecer a auctoridade das suas doutrinas. Para
evitar esta confusão, torna-se necessario, por isso,
1
D'Aguanno, La genesi e 1'evoluzione del diritto civile, pag. 329 e
seg.; Laveleye, De la proprié et de ses formes primitives, pag.
XXI.
— 351—
primeiro que tudo, dar a noção da propriedade e fazer a sua
divisão. .
Os economistas definem a propriedade como o direito
do homem sobre o producto do seu trabalho pessoal. Deste
modo, o homem seria proprietario das cousas que criasse
com a sua actividade, constituindo tal direito a extensão
legitima da sua personalidade. Este criterio, porém,
encontra um formal desmentido na realidade, visto o
pratrímonio individual conter poucas cousas devidas ao
trabalho do seu proprietario.
Os jurisconsultos são mais prudentes e exactos, definindo
a propriedade pelos seus attributos, sem se preoccuparem
de a justificar. É por isso que elles consideram como
propriedade o direito de dispôr livremente duma cousa.
Neste sentido se encontra a definição do nosso codigo, de
que a propriedade é a faculdade que o homem tem de
applicar á conservação da sua existencia e ao
melhoramento da sua condição tudo quanto para esse fim
legitimamente adquiriu e de que, portanto, pode dispôr (art.
2167.°).
Os historiadores, porém, vendo que os jurisconsultos se
preoccupavam unicamente com a propriedade individual,
dando, por isso, uma definição que não podia abranger
todas as especies da propriedade que elles encontravam na
evolução historica, conceberam a propriedade sob uma
fórma mais ampla. Por isso, segundo estes escriptores, a
propriedade comprehende todos os actos da relação natural
com as cousas, dos quaes resulta uma utilidade economica
para o homem. Esta noção, porém é muito ampla, pois leva
admittir a propriedade sobre cousas que não podem ser
apropriadas, como o ar, a luz, etc. Em todo o caso,
aproveitando a orientação dos
— 352 —
historiadores, definiremos a propriedade como o
direito que uma pessoa ou um grupo social póde
exercer exclusivamente sobre uma cousa 1.
155. Divisão da propriedade. — A propriedade
soffre muitas divisões segundo o criterio que se
toma por base para as fazer. O criterio que, porém,
mais DOS interessa é o criterio do sujeito desta
relação economica. Em harmonia com este criterio,
Ahrens devide a propriedade em propriedade indivi-
dual ou de pessoa physica e propriedade de pessoa
jurídica ou moral. Esta divisão, porém, é muito
imperfeita, visto a chamada pessoa jurídica ter um
caracter de unidade organica como a pessoa physica,
não havendo razão alguma para distinguir estas
pessoas sob o ponto de vista da propriedade. Tanto
num caso como noutro o proprietario é de facto um.
Azcarate faz outra divisão mais perfeita, mas que
ainda enferma dos vícios da de Ahrens. Effectiva-
mente, Azcarate apresenta, na sua notavel obra
Historia del derecho de propriedad, a seguinte classi-
ficação da propriedade:
Illimitada (de todos os homens: ar, luz,
etc.).
A) Propriedade Limitada (dos cidadãos duma nação. Cousas
commum... publicas)
Individual (comprehendendo a comproprie-
dade).
B) Exclusiva ou Social ou de pes- Universitas personarum
particular.... soas moraes (Associações.Congre-
gações. Fundações).
(Corporações. Povoa
ções).
1
Gide,
Príncipes d'economie politique, pag. 394; Tarbouriech, Essai sur
la propriété. pag. 279 e seg.
— 353 —
Rafael Altamira modificou esta classificação do
seguinte modo:
A) Propriedade commum a todos os homens (illimitada).
De uma pessoa, tanto individual, como social,con-
siderada na sua unidade e para os seus fins
proprios. Propriedade individual, da univer-
silas personarum, de companhias com capital
divisível em partes, etc. De um grupo,
eonsiderado ao mesmo tempo na unidade e em
seus membros, para servir aos fins singulares de
cada um delles, emquanto formam parte da
communidade. Propriedade collectiva ou
communal.
A classificação de Altamira parece-nos acceitavel,
desde o momento em que se elimine delia a proprie-
dade commum a todos os homens, que é perfeita-
mente incomprehensivel. De modo que a propriedade
communal ou collecva não pode comprebender-se
sem duas condições: que a cousa subsista no grupo,
percebendo-se só as suas utilidades sem a destruir
nem alienar; que o usufructo seja dos indivíduos
que comem o grupo considerados singularmeute.
Ha assim dois sujeitos da propriedade communal ou
collectíva: o grupo, em que se radica a propriedade
nua ou o simples domínio; e os indivíduos que
percebem as utilidades 1.
160. Fundamento historico do direito de proprie-
dade. — As antigas theorias justificavam, per meio
de creações arbitrarias, a propriedade privada.
1
Rafael Altamira, Historia de la propriedad communal,
pag. 11 e seg.; Azcarate, Historia del derecho de propriedad,
tom. I, pag. 50 e seg.
23
— 354 —
Entre essas theorias, devemos mencionar: a) a da
occupação; b) a da convenção; c) a da lei; d) a do
direito natural; e) a do trabalho; f) a da necessi-
dade ; g) a da conquista.
a) Systema de occupação. O systema de occupa-
ção foi o seguido pelos jurisconsultos antigos, que
remontavam pela imaginão aos tempos primitivos,
e nos descreviam os primeiros homens apoderando-se
das cousas que não tinham dono por meio da occupa-
ção. Esta doutrina, imaginada pelos jurisconsultos
romanos, foi seguida entre os escriptores modernos
por Grocio e Burlamaqui.
b) Systema da conveão. Os philosophos do
direito natural, reconhecendo a falsidade do sys-
tema da occupação, procuraram explicar o direito
de propriedade por meio duma convenção. Segundo
Pufendorff, os homens formaram primitivamente
uma convenção pela qual se comprometteram a
respeitar o direito que cada um delles adquirisse
sobre as cousas, occupando-as, a fim de poderem
gosar tranquilamente os fructos do seu trabalho.
Uma theoria que se pôde considerar uma varie-
dade da precedente, é a do contracto social, que
differe delia em não suppôr uma convenção primi-
tiva anterior ao facto da adquisição da propriedade,
admittindo, pelo contrario, que os homens, pos-
suidores, mas continuamente perturbados no exer-
cício dos seus direitos, se associaram, a fim de
garantir o goso pacifico dos seus bens. Tal teria
sido, segundo Rousseau, a cansa principal da socie-
dade.
c) Systema da lei. Outros escriptores procura
ram resolver a questão, fazendo derivar a proprie
dade da lei. Entre esses escriptores, devemos notar
Montesquieu e Bentham, que julgam que a proprie-
— 355 —
dade foi creada pelo Estado, não podendo este
instituto revestir caracter judico sem a lei ou antes
da lei. Este systema tambem é o mais seguido
pelos praticos, que julgam não poder existir um
direito fóra da lei que elles explicam.
d) Systema do direito natural. Segundo outros
escriptores, como Pichte, Hegel, Krause e Ahrens,
a propriedade deriva da propria natureza humana,
visto ella ser uma condão necessaria para a exis-
tencia e desinvolvimento do homem. O direito de
viver implica o direito de procurar os meios para
isso. Hegel disse que a pessoa tem a sua existencia
externa na propriedade.
e) Systema do trabalho. Segundo outros escri-
ptores, a propriedade deriva do trabalho. O homem,
cultivando a terra e adaptando as cousas externas á
satisfação das suas necessidades, imprime aos obje-
ctos o cunho da sua personalidade, fazendo-os assim
sahir da communidade primitiva, aberta aos esforços
de todos. Em virtude desta transformação, o homem
torna-se um segundo creador dos objectos e como
tal adquire o direito a considerá-los propriedade
sua. Esta theoria foi primeiramente apresentada
por Locke que, reconhecendo no individuo o direito
do trabalho, lhe attribue a faculdade de occupão,
como meio de realizar este direito. Por isso, Locke
faz nascer a propriedade no momento em que se
usa do direito do trabalho, mediante a occupação.
Depois, esta theoria encontrou bom acolhimento nos
economistas e especialmente em Stuart Mill, visto
ella se relacionar com o principio economico que
considera o trabalho a fonte da riqueza. Adolpho
Thiers tambem adoptou esta theoria na monographia
que publicou em 1848, com o fim de impedir o
progresso das doutrinas socialistas.
— 356 —
f) Systema da necessidade. Segando outros ès-
criptores, a propriedade foi a consequencia das
exigencias da produão e da circulação da riqueza,
visto, sem ella, o se poderem realizar estes phe-
nomenos, tornando-se impossível todo o progresso
economico e social. Este systema, que é seguido
por Courcelle Seneuil e Roscher, è denominado por
Wagner e Nasse theoria natural economica.
g) Systema da conquista. Segundo Gumplo-
wickz, a propriedade é o resultado da conquista.
A tribu conquistadora reserva-se para si a maior e
a melhor parte do territorio. B assim o que antes
era commum ou nullius constituo a propriedade
particular da tribu dominante. Entre os conquista-
dores e conquistados, estabelece-se como poderosa
linha divisoria o conceito completamente novo do
nosso e não vosso. Deste modo fez apparição na
vida social a primeira rma da propriedade, como
pura negação, como exclusão dos dominados dos
direitos de propriedade dos dominadores. Com a
posterior divio do territorio conquistado entre os
vencedores, adquire o novo direito de propriedade
o seu ulterior aperfeoamento. Converte-se em
propriedade particular pessoal, reconhecendo e sanc-
cionando o Estado este direito pessoal e declarando-o
excelso e sagrado.
Todas estas hypotheses são inadmissíveis para
explicar o fundamento da propriedade, pois umas
são vagas e indeterminadas, outras são imaginarias
e fictícias. Só a historia é que nos de mostrar o
verdadeiro fundamento da propriedade.
As theorias modernas concordam em dar á pro-
priedade um fundamento historico e em coordenar
as diversas fórmas deste instituto, estabelecendo
entre ellas relações de evolução e de interdependen-
— 357 —
da, explicando as cansas que produziram o seu
gradual desinvolvimento, e acompanhando, atravez
das idades e da influencia dos meios historicos, o
caminhar lento e progressivo da sociedade para o
estado de individualismo que nos caracteriza 1.
157. Lei sociologica da evolão da propriedade
de Giuseppe Carie. A lei mais geral que, a res-
peito da evolnção historica da propriedade, se póde
formular, é devida a Giuseppe Carie, segundo o
qual a propriedade, sendo uma instituição eminen-
temente social, revestiu tantas rmas, quantos o
os estadios percorridos pela organização social.
E, comprehende-se que assim deva ser, desde o
momento em que se note que a primeira necessi-
dade duma organização social deve ser a de asse-
gurar a propria subsistencia. Não póde, por isso,
a propriedade deixar de assumir tantas fórmas
quantos são os gráos da organização social, visto
cada typo de organizão social se distinguir preci-
samente pelo modo como procura obter a satisfação
das suas necessidades.
Esta lei unicamente tem a vantagem de fazer
sobresahir o caracter social da propriedade, impe-
dindo que se chegue a construir a sua theoria com
criterios apriorísticos e metaphysicos, e a fazer a
sna historia sem attender ás phases da evolução
social. Mas pouco ou nada póde adiantar relariva-
1
Gumplowickz, Derecho politico filosofico, pag. 493 e seg.;
Vicenzo Lilla, Manuale di filosofia del diritto, pag. 178 e seg.;
Miraglia, Filosofia del diritto, pag. 308 e seg.; Bordíer, Vie des
sociétés, pag. 201 e seg.; Yves Guyot e Paul Lafargue, La pro-
priété, origine et évolution, pag. 20 e seg.; Tarbouriech, Essai sur
la propriété, pag. 60 e seg.
— 358 —
mente á determinão das phases da evolução da
propriedade, em virtude da sua generalidade e
amplitude. Effectivamente, esta lei póde applicar-se
igualmente a todas as instituões jurídicas, como a
personalidade e a família, que, tendo instituições
eminentemente sociaes, lambem revestem Untas
rmas, quantos são os estadios percorridos pela
organização social.
A lei de Giuseppe Carie, por isso, segando o
nosso modo de vêr, tem importancia como orna lei
de orientação mental e o como uma lei historica,
pois, sob este ponto de vista, ô demasiadamente
vaga e geral 1.
Giuseppe Carle, Le origini del diritto romano, pag. 64 e seg.
CAPITULO II
FORMAS PRIMITIVAS DA PROPRIEDADE
SUMMARIO :— 158. Systemas sobre a primeira forma da pro-
priedade. —159. A primeira rma da propriedade foi col-
lectiva. — 160. Primeira fórma da propriedade collectiva.
161. Organização da propriedade na communidade de aldêa.
162. Communidades de aldéa com repartão periodica das
terras.—163. O Mir russo. 164. Communidades fami-
liares. 166. Propriedade individual. —166. Valor his-
torico dos estadios da evolução da propriedade.
168. Systemas sobre a primeira fórma da propriedade.
— Apesar dos progressos que tem feito a historia da
propriedade, são grandes ainda as divergencias dos
escriptores a respeito da primeira fórma da
propriedade. Todas essas divergencias se podem
reduzir a quatro systemas: a) systema da propriedade
collectiva; b) systema da propriedade individual;
c) systema do predomínio da propriedade collectiva;
d) systema duma propriedade especial, nem collectiva,
nem individual. Vejamos em que consiste cada um
destes systemas.
a) Systema da propriedade collectiva.Segundo o
systema da propriedade collectiva, a primeira fórma
da propriedade foi a da apropriação communista do
solo por um grupo social. A terra cultivavel, as
pastagens e as florestas são exploradas em commum
pelos indivíduos daquelle grupo social. Depois a
propriedade foi assumindo um caracter cada vez mais
individualista, até ao ponto de adquirir a sua
physionomia jurídica actual.
— 360 —
b) Systema da propriedade individual. Segundo
o systema da propriedade individual, a propriedade
apresentou na sua origem uma fórma similhante á
que boje reveste. Este foi o systema melhor aco
lhido pelos juristas antes do apparecimento das
modernas theorias historicas sobre a propriedade,
visto elles o poderem conceber a propriedade
constituída por uma fórma diversa da estabelecida
pelo direito romano e sanccionada pelo codigo de
Napoleão.
Depois do apparecimento das novas theorias his-
toricas sobre a propriedade, ainda alguns auctores
persistiram na ideia de que a propriedade começou
sob a fórma individualista. £ assim que Herbert
Spencer sustentou que entre os povos primitivos se
encontram os traços da propriedade privada e indi-
vidual, sendo inteiramente, falsa a crença dos auctores
que julgam o contrario. Dargun, combatendo o
communismo primitivo de Laveleye, tambem se inclina
para o systema da propriedade individual, visto
considerar a propriedade pertencente á familia pri-
mitiva mais individual do que commum, chegando
até a attribuir esta propriedade a um membro dessa
familia, o pae, a mãe ou o tio paterno.
c) Systema do predomínio da propriedade collectiva.
Segundo este systema, seguido por Viollet, a
propriedade privada e a propriedade collectiva são
egualmente antigas, mas na origem teve maior
exteno a propriedade collectiva, encontrando-se a
propriedade individual limitada a algumas cousas
moveis de uso exclusivamente pessoal. À proprie
dade collectiva, depois, foi-se fraccionando pouco a
pouco, adquirindo cada vez maior importancia a
propriedade individual, com o desenvolvimento da
humanidade.
— 361 —
d) Systema duma propriedade especial, nem collectiva,
nem individual. Este systema foi desenvolvido na
Allemanha por Post e na Italia por Morasso. Segundo
estes escriptores, a primeira fórma da propriedade
não é collectiva, porque a associação familiar que
nos apparece nos primordios da evolão social
constituo um verdadeiro organismo unitario, nem
individual, porque no interior da associão familiar
todos os membros têem eguaes direitos. É uma
propriedade especial, contendo os germens do colle-
ctivismo e do individualismo, da propriedade privada
e da propriedade publica, que os varios povos e
as differentes raças desinvolveo num sentido ou
noutro, conforme a sua índole, a sna cultura e o
seu ambiente 1.
159. A primeira rma da propriedade foi colle-
ctiva. Entre estes diversos systemas, não podemos
deixar de acceitar o da propriedade collectiva. Effe-
ctivamente, o homem primitivamente não devia ter
conhecido a propriedade da terra, pois, não prati-
cando a agricultura, não podia ligar importancia
alguma á posse do solo. Quando muito consideraria
os territorios abundantes em ca e pesca, como não
devendo ser invadidos por outras tribus, para que
não fossem reduzidas estas fontes da sua alimentão.
Não ha nisto, porém, a manifestação da verdadeira
ideia da propriedade, pois a tal ou qual apropriação
1
Morasso, Evoluzione del diritto, pag. 45 e seg.; Laveleye,
Formes primitives de la propriété, pag. 4 e seg.; Viollet, His-
toire du droit civil français, pag. 553 e seg.; Herbert Spencer,
Príncipes de sociologie, tom. III, pag. 717 e seg.; Dargun, Urs-
prung uni EntvickeTungs- Geschichte des Eingenthums, pag. 24 e
seg.
— 362 —
que eno se verificava não tinha um caracter de
permanencia, mas apresentava uma fórma vaga e
fugitiva. A propriedade do solo não póde surgir
antes que se lhe estabeleçam limites, se empregue
trabalho em o cultivar e se procure considerá-lo
como proprio.
O sentimento de propriedade affirmava-se unica-
mente sobre alguns objectos moveis e especialmente
sobre os instrumentos de pedra que então se
empregavam. Mas, relativamente a estes objectos,
ainda devia dominar a propriedade collectiva, visto
o individuo se considerar monada confusa do grupo
social, o podendo conceber uma fórma de proprie-
dade exclusivamente sua.
Com o regimen pastoricio, começa a esboçar-se
a noção da propriedade territorial referida ao
espaço que os rebanhos de cada tribu percorrem
habitualmente, levantando-se frequentes disputas
relativamente aos seus limites. Mas é com o
desinvolvimento do regimen agricola que esta não
se precisa, visto este regimen exigir a apropriação
do solo. O solo, porém, fica pertencendo a todos os
membros do grupo social, que o cultivam e exploram
em commum, não havendo a ideia de que um
individuo possa reclamar uma parte da terra como
pertencendo-lhe exclusivamente.
Muitos são os factos que provam ter sido esta a
primeira rma da propriedade. No egypto ha traços
duma antiga communidade das terras. Na índia,
antes da constituão das castas, a terra era cultivada
em commum, sendo distribuídos os productos no
fim do anno. A tradição universal duma edade de
ouro, em que era desconhecida a propriedade privada,
tambem não tem outra significação. É certo que
ordinariamente não se vê nesta edade mais do que
— 363 —
uma ficção poetica, mas, como o estado de civilização
que ella traduz está em harmonia com factos
incontestaveis da historia economica da humanidade,
imposvel é deixar de admittir que os poetas antigos
conservaram, sob aquella fórma, a recordação duma
phase da evoloção social, que efectivamente existia.
Os estados feitos sobre as tribus selvagens actuaes
tambem o permittem outra conclusão, porquanto
em moitas delias foi encontrado o regimen da
communidade.
As instituições communistas ainda existentes e que
se encontram disseminadas no seio de diversos povos
civilizados, tambem não se podem comprehender
senão como vesgios historicos da propriedade
collectiva primitiva. É o que acontece com o allmend
suisso, com o mir russo, com a zadruga servia, etc,
que representam restos de instituões economicas
que outrora foram geraes.
As revelações das colonias, genialmente aprovei-
tadas por Loria, vieram provar por uma fórma nova
a these do communismo primitivo. Effectivamente,
as colonias demonstram que o primeiro regimen da
propriedade que os europeus ahi estabeleceram foi
o da propriedade indivisa do solo. E isto verificou-se
mesmo nos Estados-Unidos, apesar da tendencia que
os anglo-saxões sempre têem mostrado para o
individualismo 1.
1
Letourneau, Évolution de la propriété, pag, 29 e seg.; Ghino
Valenti, Le forme primitive e la teoria economica della propriété,
pag. 3 e seg.; D'Aguanno, Genesi e evoluzione del diritto civile,
pag. 352 e seg.; Tarde, Transformations du droit, pag. 62 e seg.;
Loria, Importance sociologique des études ècono-miques sur les
colonies, nos Anales de l'Institut Internationale de Sociologie,
tom. IV, pag. 137 e seg.; Loria, Analisi della proprietá capitalista,
vol. II pag. 8 e seg.; Morasso, Evoluzione
— 364 —
160. Primeira fórma da propriedade collectiva.
Mas, se a propriedade começou por ser collectiva,
qual foi a fórma que esta propriedade collectiva
revestiu? Dois systemas se têem proposto resolver
esla questão: o da communidade de ala e o da
communidade familiar.
Segundo o systema da communidade de aldêa, o
solo começou por ser apropriado collectivamente por
clans ou tribus. Chama-se communidade de aldéa,
porque esta agremiação apparece-nos formando exte-
riormente uma communa ou aldèa. Este systema,
seguido por Sumner Mame, Laveleye e Oliveira
Martins, funda-se na observação das communidades
ruraes da índia agrícola e do regimen do Mir russo,
onde se a apropriação collectiva do solo por
grupos de famílias, e no estudo da organização social
primitiva, em que o individuo e a familia se encon-
travam inteiramente absorvidos pelo clan ou tribu,
não tendo autonomia ou existencia distincta destas
agremiações.
Segundo o systema da communidade familiar, o
solo foi primeiramente apropriado por familias dis-
tinctas e só depois quando estas se reuniram é que
o foi pelos clans ou tribus. De modo que, segundo
este systema, a communidade familiar precedeu a
communidade de ala, ao passo que, segundo o
primeiro systema, a communidade familiar apparece
como consequencia da dissolução da communidade
de aldéa.
O escriptor que mais se salientou na defesa da
precedencia da communidade de familia foi sem
del diritto, pag. 37 e seg.; Zini, Proprietà individuale e pro-prietà
collectiva, pag. 29 e seg.
— 365 —
duvida Tarde, embora se não possa considerar um
sectario da doutrina do communismo primitivo.
Funda-se, para isso, em que na índia e na Russia
os com-proprietarios de cada aldêa têem a tradão
dum antepassado commura, dum antigo parentesco,
o que suppõe a existencia duma primitiva commu-
nidade familiar. A este augmento de facto ajuncta
Tarde outro fundado no racionio. É mais na tarai
fazer derivar o complexo do simples, do que o
simples do complexo. Por isso a communidade de
aldèa não se pode deixar de considerar como um
producto de diversas communidades familiares ante-
riores, que se federaram entre si ou de que pelo
menos uma acabou, expandindo-se, por absorver as
outras.
Os argumentos de Tarde não nos parecem conclu-
dentes. A natureza e os seus phenomenos não
seguem sempre as leis da nossa íntelligencia, nem
se conformam com a teleologia anthropomorpbica
que Tarde pretende impor. É mais simples o suppôr
primitivamente uma homogenea agremiação em que
depois se venham a differenciar, como unidades
sociaes, as famílias, do que admittir no como as
famílias como unidades sociaes, evolucionando no
sentido da formação daquella agremiação. A tradição
que existe nas communidades de aldêa da índia e da
Russia dum antepassado commum, que une todos os
membros do grupo social, comprehende-se facilmente,
desde o momento em que a consanguinidade verda-
deira ou supposta é o principio da agremião das
primeiras communidades de aldeia 1.
1
Tarde, Transformations du droit, pag. 74 e seg.; Laveleye,
De la propriété et de ses formes primitives, pag. 4; Oliveira
Martins, Quadro das lnstituiçõss primitivas, pag. 86 e seg.;
Sumner Maine, Etudes sur 1'histoire du droit, pag. 20.
— 366 —
161. A organização da propriedade na communi-
dade de aldêa primitiva. —Na communidade de aldêa
primitiva, a terra pertencia ao clan ou á tribo,
fazendo-se a lavoura em commum e repartindo-se os
productos pelas famílias.
Laveleye, porém, inclina-se para a doutrina de que
na communidade de aldêa primitiva havia a
repartição periodica das terras, apresentando até o
Mir russo com partilha periodica, como o typo mais
antigo da organisação da propriedade collectiva.
Todas as outras fórmas de collectivismo agrario são
consideradas por Laveleye como diversos gráos da
dissolução daquella fórma da communidade primitiva.
Os estudos recentes, pom, feitos por Kovalewsky não
permittem admittir a opinião de Laveleye.
Effectivamente, os historiadores de direito russo não
encontram vestígio algum da partilha periodica antes
do fim do seculo xvI e principio do seculo xvII.
Alguns delles, como Tchicherín, até sustentaram,
embora erradamente, que a posse collectiva do solo
foi implantada com a servidão, sendo os seus ver-
dadeiros creadores os senhores feudaes.
A ethnographia e a estatística agraria revelaram-
nos a existencia nos nossos dias duma posso com-
munista do solo muito archaica e não tendo nada
de similhante com o systema do Mir ou com a
repartição periodica. Em várias províncias da Russia,
não se não. encontraram vestígios alguns da
repartição periodica, mas ainda se reconheceu que
o terreno permanecia indiviso, sendo usufrdo pelas
falias nos limites das suas necessidades. O mesmo
se verificou na índia, pois ahi tambem, segundo o
testemunho de Baden Powell, cada família grupo
— 367 —
(patti ou taraf) possue toda a superficie do terreno
indiviso.
É natural mesmo qne a communidade de aldêa
primitiva o adoptasse o systema da repartão
periodica, desde o momento em que ainda se não
reconhecia a familia como unidade social distincta
e antonoma. A commnnidade familiar é o primeiro
passo dado no sentido da desaggregação da com-
mnnidade primitiva, e por isso num peodo mais
adiantado da evolução é que podia surgir 1.
162. Communidades de aldêa com repartição
periodica das terras.A estarma da commnnidade
de aldêa com o solo indiviso, succedeu-se a
commnnidade de aldêa com repartição periodica
das terras. Esta repartição, porém, revestia duas
fórmas.
Primeiramente, as terras araveis sorteavam-se
annualmente entre as famílias para o effeito da
cultura, devendo, porém, estas entregar os fructos
á commnnidade para serem repartidos segundo as
necessidades de cada familia. Este regimen conser-
vou-se por largo tempo, encontrando-o ainda Aris-
toteles em vigor em alguns povos barbaros do seu
tempo.
Depois, as terras araveis, continuando a ser pro-
priedade collectiva, sorteavam-se em períodos mais
largos, como de dez em dez annos, pelas falias,
para que ellas as cultivassem e explorassem durante
1 Oliveira Martins, Quadro das instituições primitivas, pag. 98
e seg.; Kovalewsky, La passage historique de la propriété col-
lective á la propriété individuelle, nos Annales de l'institut de
sociologie, tom. II, pag. 180 e seg.; Laveleye, De la propriéet
de ses formes primitives, pag. 7 e seg.
— 368 —
estes periodos, consumindo os fructos obtidos, sem
serem obrigadas a entregá-los ao acervo commum
da tribu.
São numerosos os vestígios que a historia regista
desta fórma de communismo agrario. Segundo o
direito judaico, as terras pertenciam a Deus, sendo
os homens simples arrendatarios delias. Por isso,
as terras eram repartidas pelo povo, com a obriga-
ção de voltarem á massa commum, no fim de cincoenta
annos. Entre os Dalmatas, todos os oito annos se
fazia uma nova divio das terras, segundo refere
Estrabão. Diodoro da Sicília testemunha que se
realizava uma divisão periodica das terras entre os
habitantes das Cycladas, de Tenedos, de Lesbos e
das ilhas visinhas, bem como na Sardenha.
Na America, apparecem-nos tambem vestígios deste
systema do communismo agrario. Assim, no Peru
havia as terras do Sol, isto é da casta sacerdotal, do
Inca, isto é, do rei e da sua côrte, e finalmente as
do povo, sendo estas ultimas repartidas annualmente.
Do mesmo modo, no Mexico o solo era repartido
periodicamente por aquelles que tinham direito.
Em Java, as terras são repartidas pelas famílias,
em alguns districtos todos os annos, noutros de
cinco em cinco annos e noutros em períodos mais
longos. Os hollandêses e inglêses têem procurado
em vão ahi estabelecer a propriedade individual.
São numerosos os selvagens em que os chefes
assistidos do conselho dos anciãos fazem a divisão
periodica das terras, calculando os lotes segundo as
necessidades das famílias.
Mas, ainda melhor do que todos estes factos,
demonstra a existencia desta rma do communismo
agrario o Mir russo, que por isso merece um estudo
especial.
— 369 —
Quaes foram as causas, porém, que determi-
naram a passagem da commnnidade de aldêa
indivisa para a communidade de aldêa com a repar-
tição periodica das terras? Diversas foram essas
cansas.
A cnitnra em commum em aggregados tão nume-
rosos como os clans ou as tribus devia, dentro em
breve, originar inconvenientes e tornar-se quasi
imposvel. A cultura e a distribuão em commum,
diz D'Aguanno, póde fazer-se em grupos cujo
chefe regule o trabalho e recolha e divida os fructos
como bom pae de família. Por isso, persistindo o
conceito da propriedade collectiva e da egualdade
entre os indivíduos, devia comar a sentir-se a
necessidade de uma cultura parcial, distribuindo-se
periodicamente uma boa parte do solo ás diversas
famílias.
Outra cansa que devia ter contribuído para o
apparecimento da commnnidade de aldêa, com a
repartição periodica das terras, encontra-se nas
disputas que se deviam ter levantado entre os mem-
bros dos clans e das tribus relativamente á cnitnra
do solo e á distribuição dos fructos. Essa cansa da
dissolução da primeira fórma da commnnidade de
aldêa foi posta em evidencia por Baden Powell, com
os seus estndos sobre o communismo agrario na
índia.
Effectivamente, a familia-grupo apresenta pri-
meiramente um todo e possue toda a supercie
do territorio indiviso. Depois desaggrega-se. Le-
vantam-se disputas entre os seus membros, preten-
dendo cada um delles viver separadamente e cultivar
para si e para os seus. É então que se procede á
repartão do solo em lotes de desegual grandeza,
segundo o go de parentesco com o ante-passado
24
— 370 —
commam, deixando-se indivisa ordinariamente uma
parte do territorio.
Finalmente, ainda actuou no sentido desinvolvi-
mento desta nova rma de communismo agrario a
importancia que foram adquirindo as famílias como
unidades sociaes. Emquanto a consanguinidade, diz
Oliveira Martins, é exclusivamente o principio da
agremiação, a terra é do clan ou tribo, e só se
partilham os fructos. Quando este typo se oblitera,
mas ainda as famílias constituem as moleculas
sociaes, as glebas, ou se sorteiam periodicamente,
á maneira da Germania, ou se vinculam á família, á
maneira romana. Quando finalmente, a consangui-
nidade perde todo o seu valor social e perante o
Estado o ha mais que indiduos, pessoas jurídicas,
a terra individualiza-se tambem, tornando-se pes-
soal, livre ou allodial.
Alguns escriptores, como Kovalewsky, apresen-
tam, como unica causa da dissolução da primeira
communidade de aldêa com o solo indiviso, o
augmento sensível da população produzido por con-
dições naturaes ou artificiaes, como, por exemplo, o
estabelecimento de novos colonos. É a esta causa
que o eminente sociologo russo attribue a passagem
historica das communidades de aldêa com o solo
indiviso para as communidades de aldêa com a
repartição periodica das terras.
Esta cansa por si não pode explicar o appare-
cimento do systema da repartição periodica das
terras, pois é muito geral, tornando-se necessario
mostrar como é que o augmento da população deter-
minou o desapparecimento da communidade de ala
indivisa. E, admittido o augmento da população
como causa da dissolução do primeiro communismo
agrario, qual é a razão porque se faz a reparti-
— 371 —
ção das sortes pelas famílias e não pelos indi-
viduos? 1.
168. O Mir russo. —- Para se comprehender
bem a communidade de aldêa, com repartição
periodica das terras, torna-se necessario fazer um
estudo da organização concreta de alguma destas
instituições. Escolhemos, pela soa importancia e
interesse, o Mir nisso.
Ma Russia, o solo cultivavel de cada communa
pertence a uma associação de indiduos, chamada
Mir. formada de todos os chefes do familia da
communa. O Mir gosa da personalidade civil e é o
unico proprietario do solo e o unico responsavel
perante o Estado pelo imposto e pelo contigente do
recrutamento. Administra-se dum modo indepen-
dente e autonomo, tendo um poder tio extenso, que
lhe permitte condemnar a deportação para a Siberia
qualquer dos seus membros.
A unidade do Mir é a familia ou agglomeração
de famílias vivendo na mesma casa. Cada familia
ou cada communidade de famílias tem unicamente
a propriedade da casa e do jardim que a cerca.
Os seus membros vivem dum modo patriarchal, sob
a auctoridade do chefe de familia, que é o adminis-
trador dos ganhos da pequena sociedade. Se, depois
da sua morte, ella se divide, partilha-se
egualmente
1
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de
Espana, tom. I, pag. 35 e seg.; Kovalewsky, Le passage
historique di la propriécollective á la propriétè individuelle,
nos Annales da l'Institut international de sociologie, tom. II, pag.
184; D'Aguanno, La genesi e l'évoluzione del diritto civile, pag.
364 e seg; Le-torneau, Evolution de la propriétè, pag. 130 e teg.;
Oliveira Martins, Quadro das instituições primitivas, pag. 94 e
seg.
— 372 —
a fortuna commum, sem attender ao gráo de paren-
tesco, mas unicamente ao trabalho effectuado.
Tracta-se mais duma liquidão, do que duma suc-
cessão.
O Mir resulta da reunião destas famílias, tendo
em commum, o tudo o que possuem, mas unica-
mente as terras. O Mir paga ao Estado um imposto
por habitante e distribuo as terras entre os seus
membros como o intende, sem ninguem poder
appellar das snas decisões. Cada família recebe um
numero de porções proporcional ao numero dos
seus membros, tendo em attenção a edade, o sexo
e a capacidade de trabalho de cada um.
O Mir procede á redistribuição das terras, todas
as vezes que o julga conveniente. Os periodos da
redistribuição variam geralmente de seis a quinze
annos segundo as commnnas.
A repartição das terras faz-se por meio de sortea-
mento. Para isso formam-se lotes de varias parcel-
las, tanto quanto possível eguaes, que se tiram á
sorte. Não ha em geral reclamações, visto os lotes
serem constituídos de modo que os valores das
parcellas se compensem uns aos outros. Em todo o
caso, aquelle que provar que foi lesado recebe um
supprimento das terras que ficaram livres.
A posse dos lotes communaes nem sempre repre-
senta uma vantagem, visto haver, em algumas regiões
da Russia, terras tão pobres, que, com difficuldade,
dão para pagar o imposto. Os possuidores destes
lotes podem semear nelles o que intenderem, mas
em epochas fixadas pela assembléa do Mir, recebendo
depois as colheitas.
No regimen do Mir, o dominio territorial passou
do clan obliterado para o município. O principio
de agremiação a que obedecia o clan dissipou-se,
— 373—
ficando o Mir sendo um clan apenas fictício. Os laços
que de facto ligam as famílias nesta associão deri-
vam unicamente da contiguidade local.
Ao passo que todos os outros paises, sob a influen-
cia do feudalismo e do direito romano, obedeceram
á regra da transformação da propriedade dos tem-
pos remotos na propriedade pessoal dos tempos
historicos, a Russia soube amoldar a propriedade
collectiva, sob a forma do Mir, á evolução social
do Imperio. Os panslavistas julgam a que a com-
munidade do Mir assegurará a grandeza futura da
Russia. E o certo é que, em virtude do Mir, o
pauperismo não se tem feito sentir o profunda-
mente na Russia, como nos paises occidentaes.
Cada um tem com que viver e cada família toma
conta dos seus enfermos e dos seus velhos. O Mir
traduz um grande principio de justiça, emquanto
reconhece a todo o individuo, capaz de trabalho, o
direito de reclamar uma parte da terra que lhe per-
mitia viver com os prodoctos da sua actividade 1.
164. Communidades familiares. As commu-
nidades d'aldêa dissolvem-se, qoando cada família
conserva a terra aravel, deixando de haver divisão.
A propriedade da terra não pertence já ao clan ou
á tribo, mas á falia. Eis a segunda pbase da evolu-
ção da propriedade, a das communidades familiares.
Esta phase da evolução da propriedade derivou
da anterior, em virtude da repartão das terras se
fazer em períodos cada vez mais longos, até que
1
Laveleye, De la propriété et de ses formes primitives, pag. 7 e
seg.; Le Bon, L'homme et les sociétés, tom. II, pag. 306 e seg.;
Oliveira Martins, Quadro das instituições primitivas, pag. 102 e
seg.
— 324 —
— 375 —
166. Propriedade individual. Mais um passo na
evolução da propriedade e teremos a propriedade
individual nitidamente caracterisada. Isto deu-se
quando, pela morte do chefe de falia, os parentes,
em vez de continuarem unidos, se separaram e divi-
diram a terra. Esta evolução corresponde ao mo-
mento em que dentro de cada família se começaram
a desenhar como atomos socíaes os indivíduos.
A propriedade individual conservou ainda por largo
tempo muitos vestigios da sua origem collectiva.
Para alienar a terra patrimonial, foi necessario
durante seculos obter o consentimento da falia,
como ultima manifestação do donio nominal e
eminente que ella ainda conservava. depois de
uma longa evolução é que a propriedade consegue
emancipar-se dos traços do collectivismo que se
encontravam na sua organização transformando-se
definitivamente no direito absoluto, soberano e pessoal
que se encontra nos codigos modernos.
Ao lado da propriedade assim constituída ficaram
subsistindo, archaica ou esporadicamente, os exem-
plares do colleclivismo communal nas instituições
municipaes e os documentos de colleclivismo familiar
na legislação civil, que determina as successões e
institue os vinculos aristocraticos. Mas que importa,
diz Oliveira Martins? A natureza põe sempre os
casos de archaismo ou atavismo ao lado dos docu-
mentos evolutivos, e a observação coordena-os para
assim chegar a conhecer as normas intimas da
existencia das cousas 1.
1
Oliveira Martins,
Quadro das instituições primitivas,
pag. 122
e seg.; Peres Pujol,
Historia de las instituciones sociales de la
Espana gota,
tom. I, pag. 36 e seg.
— 376—
166. Valor historico dos estadios da evolução da
propriedade. Os tres estadios da evolão da pro-
priedade, communidade de aldêa, Communidade de
família e propriedade individual, o têem um valor
absoluto, eguaes para todas as raças e para todos os
povos, de modo que todas as sociedades devam pas-
sar necessaria e fatalmente por elles. É a orientação
contraria um dos maiores defeitos da obra de Lave-
leye, porquanto ella falsêa e simplica os phenomenos
com um methodo mais digno da escolastica, do que-
da pbilosophia positiva.
A evolução que transformou radicalmente a pro-
priedade apresentou variedades segundo as eircums-
tancias e as condições dos diversos paises. Os
periodos desta evolução succederam-se, predominando
aqui a propriedade individual, alli a collectiva, ficando
numas reges archaismos duma edade remota e
noutras sobrevivencias duma edade mais proxima.
As leis da evolução, diz Perez Pujol, ainda que se
concebam como ideal, só se realizam na vida como
tendencias que modificam, mas não annullam, o curso
dos acontecimentos. É pois como tendencias que
nós devemos interpretar os estadios da evolução his-
torica da propriedade 1.
1
Perez fujol,
Historia de las instituciones de la Espana goda
tom. I, pag. 39; Morasso,
Evoluxione deL diritto,
pag. 37.
CAPITULO III
PROPRIEDADE COLLECTIVA
SUMMARIO : —167. A propriedade collectiva no período pre-
romano. —168. Caracter ethnico da propriedade colleetiva
preromana. 160. A doutrina tradicional sobre a fórma
primitiva da propriedade romana. — 170. Existencia da
commnnidade de aldêa entre os romanos. —171. Forma da
communidade de aldêa admittida entre os romanos. 172.
A phase da communidade familiar. 173. A propriedade
collectiva entre os germanos. A March germanica.—174. A
apropriação das terras da Península pelos visigodos.
176. A propriedade commum entre os wisigodos.—176. A
propriedade commum na Reconquista.—177. Vestígios
do commmunismo agrario no direito portugs. — 178. Bal-
dios.—170. Communidades agrícolas da índia portuguêsa.
167. A propriedade collectiva no periodo pre-
romano. São muito deficientes e imperfeitas
as noticias que nos restam a respeito da
organização da propriedade na Hespanha
primitiva.
Referindo-se especialmente aos Vacceos, diz
Dio-doro da Sicília, que elles distribuíam, todos
os annos; entre si as terras araveis para as
cultivar, e, pondo em commum os fructos
obtidos, adjudicavam a cada um a sua parte; os
que escondiam alguma porção d'elles, não a
entregando ao acervo commum, eram punidos
com a pena de morte. Esta passagem do notavel
historiador tem sido intendida de modos muito
diversos.
Segnndo Masdeu, as famílias daquelle povo
seguiam um processo muito especial
relativamente á agricultura, succedendo-se nesta
occupação umas ás
— 378 —
outras, de modo que a exerciam alternadamente,
num anno amas noutro anno outras, e assim por
diante. Os fructos repartiam-se com egualdade entre
as famílias, recebendo tanto as qne tinham gosado
o repouso, como as que se tinham fatigado com os
trabalhos da cultura.
Por seu lado, Vicente Paredes Guilleu suppõe que
uma parle dos habitantes levava os seus gados e os
dos visinhos a invernar em terras longínquas, pres-
tando-se assim, mutua e alternativamente, o serviço
da sementeira e da pastoricia. É por isso que os
fructos eram postos em commum e distribuídos por
cada um dos habitantes.
De modo diverso pensa D'Arbois de Jubainville,
pois, notando que o facto da distribuão de fructos,
constituindo um poderoso estimulo ao descuido e á
negligencia dos cultivadores, se encontra expresso
dum modo incompleto ou inexacto em Diodoro, julga
mais provavel que os vacceos não puzessem em
commum mais do que uma quota parte dos fructos,
revertendo a poão mais consideravel delles em
beneficio exclusivo do cultivador.
Se fosse verdadeira a interpretação que Masdeu
dá à passagem de Diodoro, os vacceos teriam seguido
um regimen identico ao dos getas, onde metade da
população trabalhava alternativamente para a outra
metade. Se pelo contrario fosse o illustre celtista
frans que estivesse na verdade, eno os vacceos
teriam praticado um regimen collectivista muito simi-
lhante ao do Mir russo, Inacceitavel, porém, é
sempre a interpretação de Vicente Paredes Gnillen,
como não tendo senão a phantasia a apoial-a.
Mas o mais natural é intender a passagem de Dio-
doro á letra, sem desvirtuar o seu sentido com
supposições arbitrarias: os vacceos possuiam a terra
— 379 —
em commum e distribuíam os fructos obtidos pelas
falias; unicamente, para evitar os inconvenientes
da cultora em commum, individualizavam o trabalho,
dividindo o solo em tantas sortes quantas as famílias
e entregando a cultura de cada uma daqnellas a cada
uma destas. Tal é a doutrina que sustenta o grande
historiador D. Joaquim Gosta a proposito deste
assumpto.
Deste modo, entre os vacceos existiu a communi-
dade de aldêa com repartição periodica das terras,
na sua primeira phase, era que as terras araveis se
sorteiam entre as falias para o effeito da cultura,
devendo, porem, estas entregar os fructos á commu-
nidade para serem repartidos segundo as necessida-
des de cada falia. Este regimen, como sabemos
o tem nada de inverosímil ou de irracional,
encontrando-o até Aristoteles em vigor em alguns
povos barbaros do seu tempo, não havendo por isso
motivo nenhum plausível para não admittir a inter-
pretação litteral da passagem de Diodoro.
É indubitavel, pom, que este regimen se devia
encontrar, no tempo em que Diodoro da Sicília com-
pilava a sua celebre Bibliotheca, num periodo de
decomposição e desaggregão, visto ser necessario
sanccionar com a pena capital o costume, a fim de
não se subtrahirem fructos ao accervo commum. As
falias deviam esforçar-se por se furtar ao regimen
da communidade de aldêa, procurando conservar
perpetumente certas porções de terreno, tendendo
assim esto regimen a desapparecer, para ser substi-
tdo pelo da communidade familiar e o da proprie-
dade privada 1.
1
Rafael Altamira, Historia de la propriedad communal, pag. 114
e seg.; D Joaquim Costa, Collectivismo agrario em Espana, pag.
419 e seg.; Hinojosa, Historia general del derecho
— 380 —
168. Caracter ethnico da propriedade collectiva
preromana. Como os vacceos eram celtiberos,
discute-se muito se a propriedade collectiva prero-
mana teve uma origem iberica ou. uma origem
celtica.
Não é possível adduzir em favor da origem iberica
da instituição nenhum argumento de peso. o ha
indicações precisas nos escriptores gregos e
romanos a respeito desta materia, e as inscriões
ibericas que abundam na Península ainda o foram
decifradas.
Os iberos encontravam-se no período da pastoricia,
que póde admittir quando muito a communidade
dos pastos. As sobrevivencias ibericas que conhe-
cemos, uão nos auctorizam tambem a attribuir a
origem da communidade agraria dos Vacceos aos
iberos. Os berberes e os vascos, que são conside-
rados como representantes dos iberos, não revelam
nada que se possa comparar com a communidade
agraria dos Vacceos. A philologia tambem não
fornece nenhum dado que permitia pensar na origem
iberica da propriedade collectiva da Península.
O mesmo já se não pode dizer dos celtas. Effecti-
vamente, por um lado, os celtas pertencem aos
povos primitivos que passaram mais rapidamente
do estado pastoril ao agrícola, como mostram as
suas tradições e a sua organização familiar e social,
e, por outro, entre os germanos e eslavos, irmãos
dos celtas, apparece a propriedade collectiva perfei-
mente caracterizada. A philologia tambem parece
espanol, tom. I, pag. 77 e seg.; Perez Pujol, Historia de las
instituciones sociales de la Espana goda, tom. I, pag. 39 e seg.
381
ser favoravel á origem celtica da propriedade
collectiva da Hespanha primitiva, como demonstra
largamente D. Joaquim Costa 1.
169. A doutrina tradicional sob a fornia primi-
tiva da propriedade romana. Por muito tempo
se julgou que a propriedade romana revestiu, desde
a sua origem, os caracteres que a definem e distin-
guem no fim da epocha classica e no direito justi-
nianeu. De modo que, por um singular privilegio,
de que a historia não nos apresenta outro exemplo,
os romanos ter-se-hiam elevado, desde logo, á idêa da
propriedade individual, não sómente para as cousas
moveis, mas tambem, o que é mais grave, para a
terra. A propriedade territorial não teria revestido
as multíplices fórmas que se encontram noutros
povos.
Entre os modernos ainda representa esta corrente
Padeleti, segundo o qual a propriedade romana teria
revestido, desde os seus inicios, um caracter accen-
tuadamente privado, e teria assumido desde logo a
fórma mais adiantada que se encontra na evolução
juridica dos outros povos.
Esta doutrina repugnava profundamente ao espirito
dos evolucionistas, que não podiam admittir que a
propriedade romana se furtasse á evolão historica
que se deu nos outros povos. E esta repugnancia
era tanto mais fundada e justificada, quanto é certo
que o direito romano, embora constitua a synthese
mais perfeita da evolução jurídica da antignidade,
1
José Maria Zumalacarregui, Ensayo sobre el origen y desar-
rollo della propriedad communal en Espana, pag. 28 e seg.; D.
Joaquim Costa, Estudos ibericos, passim; D, Joaquim Costa,
Collectivismo agrario, pag. 422 e seg.
— 382 —
nada apresenta de original sob o aspecto ethnogra-
pbico e evolucionista.
Impossível era, pois, em face desta orientação,
qne Roma tivesse começado a sua evolução
jurídica por um conceito da propriedade que os
outros povos unicamente chegaram a apresentar no
termo do desinvolvimento historico deste instituto.
Os estudos ultimamente realizados sobre a
propriedade entre os romanos vieram mostrar que
esta supposição era verdadeira, fazendo entrar, ao
mesmo tempo, a historia da propriedade romana
na evolução geral por que passou este instituto nos
outros povos 1.
170. Existencia da communidade de aldêa entre
os romanos. A primeira pbase da evolução da
prodriedade entre os romanos foi a da communidade
de aldêa. Effectivamente, primitivamente, os
cidadãos romanos, como os membros do Mir russo e
da Mark germanica, eram unicamente proprietarios
de um pequeno tracto de terreno contendo a casa e
o seu horto, sendo o resto das terras subtrahido á
propriedade privada. Mommsen demonstrou isto dum
modo completo.
Os romanos empregavam como designação
technica da fortuna individual e da heraa as
palavras família (escravos principalmente), pecunia
(gado), umas vezes reunidas e outras separadas,
sem se poder perceber uma distincção no seu modo
de empregos. Estas expressões mostram, porém,
dum modo decisivo que o solo não era
comprehendido na fortuna do individuo e do
direito de successão.
1 Giuseppe Carie, Origine del diritto romano, pag. 60 e seg.;
Padeletti, Storia del diritto romano, pag. 220 e seg.; Edouard
Cuq, Les institutions juridiques des romains, tom. I, pag. 75 e seg.
— 383 —
A adquisição da propriedade denominava-se
man-cipium, apprehensão com a mão (de manu
capere), que não se podia applicar aos immoveis,
mas sómente aos moveis. Do mesmo modo, a
noção da potestas, o poder de dispor do objecto,
que era o fundamento da primeira idèa da
propriedade entre os romanos, tambem não se
podia applicar senão aos moveis. Tudo isto
suppõe uma epocha em que se não alienavam
nem possuíam senão moveis.
Segundo uma tradição antiga, cada chefe de
família tinha como patrimonio hereditario (here-
dium) unicamente duas geiras de terra, cerca de
meio hectare, o que, não podendo bastar para a
alimentação delle e dos seus, suppõe a existencia
de terras araveis ou communs. O heredium
corresponderia assim ao pequeno patrimonio
individual dos membros do Mir russo e da Marck
germanica.
Na linguagem das XII Taboas, hortus designa
ainda a casa do lavrador e heredium o vergel que
depende delia. Affirma-se por isso ainda a idêa
de que a propriedade immobiliaria individual não
abrangia primitivamente as terras araveis,
limitando-se á casa e ao jardim que eram as
unicas cousas que origina-riameute passavam
para os herdeiros.
Mas quem era o titular dos direitos sobre o
solo, desde o momento em que elle, com a
pequena res-tricção do heredium, constituía
propriedade colle-ctiva ?
Mommsen, que propõe esta questão, nota que
podiam conceber-se dois titulares destes
direitos, o Estado e a gens, sendo no primeiro
caso o solo não comprehendido no heredium,
ager publicus, e no segundo ager priva tus. Entre
estes dois titulares) de taes direitos, Mommsen
prefere a gens, baseando
— 384 —
a sua opinião era considerações geraes e em factos
particulares. A gens é a instituição que primitiva-
mente é mais forte e que perde terreno relativamente
á cidade, que é primitivamente a mais fraca e que
adquire progressivamente predomínio. É, pois, á
gens que deve pertencer o solo primitivamente
apropriado.
A explorão e a cultura do solo commum tornar-
se-hiam muito mais complicadas, referindo a pro-
priedade a todo o povo, do que restringindo-a e
limitando a á gens. A applicação pratica do systema,
qualquer que fosse o modo de cultura ou de explora-
ção adoptado, offereceria menos dificuldades,
quando a gens fosse a titular dos direitos sobre o
solo, do que quando fosse o povo.
A gens formava um grupo vinculado a um certo
logar muito analogo à aldêa russa ou germanica,
sendo, por isso, natural que houvesse assim em
Roma uma organização primitiva mui similhante á
do Mir russo e à da Mark germanica. É um facto
incontestavel que as terras dos membros da gens se
encontravam reunidas no mesmo logar na epocba
mais antiga.
Finalmente, quando um membro da gens morria
sem herdeiro, os seus immoveis e os seus moveis
passavam para a gens, os immoveis, sem duvida,
porque lhe pertenciam directamente, os moveis, por-
que dependiam dos immoveis. E ainda no tempo
de Augusto, na falta de herdeiros testamentarios e
de agnados, os bens do membro duma gens patrícia
passavam para os seus genliles, que eram egual-
mente chamados, segundo a regra romana, á tntela
das mulheres e dos filhos da gens, e á curatela dos
genliles feridos de alienação mental. Deste modo,
o direito de successão esclarece tambem quem
— 385 —
deveria ser o Ulular da propriedade collectiva
primeiramente admittida entre os romanos 1.
171. Fórma da communidade de aldêa
admittida entre os romanos. Mas na
communidade de aldêa romana haveria a
repartição periodica das terras?
Laveleye inclina-se para a opinião afirmativa.
Não será provavel, diz elle, que o territorio
commu-nal ou tribal fosse periodicamente
repartido, como entre os germanos, pelas gentes e
pelas cognationes hominum, que cultivavam a
terra por meio dos seus escravos e dos seus
rebanhos? Quando as necessidades duma cultura
mais intensiva fizeram renunciar ás repartições
annuaes ou periodicas, as gentes viriam a ficar
proprietarias dos seus lotes, estabele-cendo-se
um regimen agrario mui similhante ao que ie
encontra nos eslavos meridionaes, onde existe a
Zadrugà.
Mommsen tambem aborda este problema,
embora não o resolva definitivamente. A posse
individual dos rebanhos e dos escravos, diz elle,
não se concebe ao lado da posse collectiva do
sólo, sem se admittir para este solo uma
repartição de facto de qualquer uatureza. Não
podemos advinhar como se realizou esta
repartição em Roma. Podemos pensar num uso
por meio de rotação dos lotes de terreno, ou
numa attribuição vitalícia dum lote determinado,
ou o que é mais conveniente numa attribuição
permanente feita á pessoa e á sua descendencia,
votando
1
Manuel des antiquités romaines, tom. VI, part, I Droit
public romain, por Mommsen, pag. 23 e seg.; Girard, Manuel de
droit romain, pag 251 e seg.; Laveleye, Lei communanté* de
famillie et de village, na Revue d'économie politique, tom. II,
pag. 315 e seg.
25
— 386 —
a gens no caso da extincção da família, não se
manifestando a falta da propriedade individual, senão
na ausencia do direito de alienar.
Oliveira Martins inclina-se para a doutrina de que
em Roma se passou do regimen da communidade
indivisa, para o da communidade familiar, sem se
atravessar o estado intermediario da repartão pe-
riodica das terras 1.
172. A phase da communidade familiar. Não
de tambem haver duvida relativamente á existencia
da phase da communidade familiar em Roma. Esta
phase deixou vestígios profundos na linguagem e
nas instituições romanas e especialmente no
systema das successões ab intestato. Os juriscon-
sultos classicos ainda explicavam esta successão
pelo principio, da com-propriedade familiar. A
palavra heres significava primitivamente o com-
proprietário e posteriormente continuou a significar
a mesma consa, mediante a expressão mais completa
de heredes sui. Se não houvesse o direito dos
herdeiros a pedir, por morte do chefe de família, a
partilha e se se não tivessem ampliado os poderes do
pater-famílias, diz Girard, a domus seria um exemplo de
com-propriedade familiar o claro como os do
direito servio e do direito índio.
0 direito de propriedade, embora pertencesse
realmente á falia, só podia ser exercido pelo pater-
1
Laveleye, Communantés de village et de famiUt, na Revue
d'êconomie politique, vol. II, pag. 347 e seg.; Manuel det anti-
quites romaines, tom. VIi, part. I, Le droit public romain, por
Mommsen, pag. 27; Oliveira Martins, Quadro das instituições
primitivas, pag. 95 e seg.; D. Rafael Altamira, Historia de ta
propriedad communal, pag. 85 e seg.
— 387 —
famílias, que encarnava em si toda a vida social e
judaica deste aggregado. 0 pater-familias era o
guarda e detentor do patrimonio familiar, no seu
interesse e no da prole.
Admittiam-se restricções a este direito, tendo
por fim a conservação do patrimonio familiar. É
o que se verificava relativamente ao heredium,
que era inalienavel. Ainda no fim da republica se
considerava uma deshonra o vender o heredium.
A decadencia do caracter politico da família, o
predomínio da cidade na vida social, e o
desinvolvi-mento da personalidade dos
indivíduos tiveram como consequencia natural a
transformação do patrimonio familiar em
individual. Para isso concorreram tambem as
faculdades que foram attribuidas ao pater-
familias. Nenhuma das sociedades em que se
formou o typo da propriedade familiar, diz
Oliveira Martins, o atacou mais cedo do que a
romana, inventando a faculdade de testar e dando
a auctoridade de vender. Em nenhuma das
sociedades primitivas foi mais rapida a formação
da sociedade civil, em que a molecula é o
individuo e o principio de cohesão a contiguidade
local, substituindo a família e a consanguinidade
1.
178. A propriedade collectiva entre os
germanos. A communidade de aldêa com a
repartição periodica das terras existiu tambem
entre os povos germanicos, sob o nome de Mark.
A Mark era o
1
Emílio Costa, Corso di storia del dirilto romano, tom. II,
pag. 3 e seg.; Oliveira Martins, Quadro das instituições primiti-
vas, pag. 120 e seg.; Azcarale, Historia del derecho de propridad,
tom. I, pag. 104 e seg.; Girard, Manuel èlémentaire de droit
romain, pag. 247 e seg.
— 388 —
territorio occupado collectívamente por um clan ou
uma tribu do povo germanico. Entravam na Mark,
segundo Von Mourer, tres elementos: a total demar-
cação da aldêa; terra indivisa e inculta (bosques,
prados, etc); terra cultivada ou aravel, que se
distribuía em lotes.
A propriedade hereditaria unicamente se admittia
relativamente á casa com o seu horto. Não havia
palavra para indicar a propriedade individual, visto
a palavra Eigenthum apparecer depois dos ger-
manos terem entrado em relações com os
romanos.
A terra era distribuída com inteira egualdade entre
as familias. Os lotes comprehendiam porções das
diversas zonas em que se dividia o territorio. Estas
zonas eram tres, correspondendo á rotação triennal
admittida na lavoura germanica. A repartão fazia-
se por sorteio, como indica a palavra sors applicada
ás parcellas. A egualdade na distribuição desappa-
receu depois, obtendo os chefes um lote maior.
A Mark tinha os seus altares e os seus
sacrifícios e depois da introdução do christianismo
a sua igreja e o seu santo como patrono. Tinha um
tribunal que conhecia dos delictos rurares e a
primitivamente dos outros crimes commethidos
no sen territorio. A Mark constituía assim não
uma associação economica, mas tambem uma
sociedade de ordem politica, tendo por fim a
manutenção da paz e do direito entre os seus
membros.
No tempo de Tacito se manifestava uma
tendencia pronunciada no sentido do communismo
familiar, ficando as familias permanentemente com
as sortes distribdas. A evolução da propriedade,
entre os germanos, o devia ler ficado por aqui e
por isso é natural que percorresse as graduações que
se encontram noutros povos até revestir a fórma
individual.
— 389 —
Appareceria primeiro a faculdade de alienar com
auctorizão dos parentes; depois sem esta auctori-
zão, mas com o direito de revogação; por ultimo,
admittir-se-ia o testamento qne corôa a individualiza-
ção da propriedade. Devia precipitar este movimento
entre os germanos a constituição da familia, mais
reduzida do que a romana. Effectivamente, na
Germania nem os filhos casados continuavam sob o
patrio poder, nem as noras caiam debaixo do poder
do sogro, nem os netos nasciam sob o patrio poder
do avô. A familia individualizava-se e a propriedade
tambem. A cadeia da historia, pom, interrompe-se
no tempo de Tacito, e por isso ficamos sem dados
seguros, até que os barbaros redigem as suas leis
em terra e língua latina.
Fustel de Coulanges contesta estas doutrinas sobre
a Mark germanica, que acabamos de expôr. Funda-
se para isso no testemunho de Tacito, pôndo com-
pletamente de parle o de Cesar. Este processo,
pom, de argumentar do illustre historiador não é
rigoroso, desde o momento em que todos sabem que
os germanos se encontravam em periodos de desin-
volvimento historico differentes no tempo de Cesar e
de Tacito 1.
1
Perez Pujol, Historia de las instituciones de Espana goda,
tom. I, pag. 338 e seg.; Fustel de Coulanges, Le problème del
origines de la propriété foncière, na Revue des questione histori-
ques, vol. 45, pag. 349; D. Rafael Altamira, Historia de la pro-
priedad communal, pag. 116 e seg.; Azcarate, Historia de la
propriedad, tom. I, pag. 154 e seg.; Oliveira Martins, Quadro
das instituições primitivas, pag. 100 e seg.; Laveleye, De la pro
priété et de ses formes primitives, pag. 78 e seg.; Letourneau,
Évolution de la proprièté, pag. 371 e seg.; José Maria Zomal-
carregui, Ensayo sobre el origem y desarrollo de la propriedad
communal em Espana, pag. 46 e seg.
— 390 —
174. A apropriação das terras da Península pelos
wipigodos. Os wisigodos, quando se
estabeleceram na Península, apropriaram-se de duas
terças partes das terras cnllivadas pertencentes aos
hispano-romanos sortes gothorum deixando
a estes a posse da terça restante tertia romana.
Não fizeram mais do que r em pratica assim um
principio de direito publico da epoca, segundo o qual
o solo conquistado pertencia ao conquistador. E se
os barbaros deixaram aos vencidos uma parte do
solo cultivado, nio foi em reconhecimento dum
direito, mas por consideração de ordem politica.
Esta doutrina a respeito da apropriação das terras
cultivadas pelos barbaros foi modernamente criticada
dom modo muito interessante, por Fustel de Coulan-
ges, na parle relativa ao estabelecimento dos francos
na Gaillia. Conservaram-se numerosos escriptos
d'esta epoca, diz elle. e em nenhum delles nos
apparece uma phrase que mencione um confisco geral
das terras ou uma repartição delias em beneficio dos
invasores. Não se concebe um acto tão grave como
este, que revolucionaria completamente a organização
economica da epoca, sem ser narrado pelos escri-
plores contemporaneos, alguns dos quaes nos deixa-
ram traçado um quadro muito completo do seu
tempo.
Encontra se na linguagem da epoca a palavra sors
empregada para designar uma terra e dahi conclue-se
que houve uma tiragem á sorte das terras do pais,
quando tal palavra tinha ha seculos o sentido de
propriedade e de patrimonio, applicando-se a toda a
terça possuída hereditariamente. As propriedades
dos romanos chamaram-se sortes, do mesmo
modo
— 391 —
que as possuidas pelos barbaros, mas nenhum
documento falia duma tiragem á sorte.
Por outro lado, os actos de doação de terras são
muito numerosos, e nenhum delles recáe sobre
terras tiradas aos particulares, tendo sempre por
objecto o solo do domínio publico, que tinha
passado dos imperadores para as mãos dos reis, e
que era suffi-ciente para recompensar largamente
os guerreiros.
Finalmente, o direito de guerra, tal como era
intendido pelos germanos, auctorizava a
pilhagem, a apropriação do ouro, dos objectos
mobiliarios e mesmo dos escravos, mas não
auctoriza o confisco do solo. Nos innumeraveis
escriptos deste tempo nunca vemos que um
homem de origem franca possua uma terra em
virtude da conquista ou do direito da espada.
Muitos documentos testemunham que se possue
a terra por herança, por compra ou por doação,
nenhum delles deixa suppor a posse em virtude
da conquista.
Esta mesma opinião foi defendida pelos Srs.
Gama Barros e Alberto Sampaio, relativamente á
Península. Segundo estes historiadores, tambem
o silencio dos escriptores coevos ou mais
proximos áquellos tempos, acerca dum
acontecimento tão grave como seria a espoliação
da maior parte das terras, constitue por si uma
presumpção fortíssima a favor da sua não
existencia. Póde acaso suppôr-se que, por
exemplo, Idacio e Isidoro de Sevilha, vivendo
aliás na Península, aquelle no seculo v, este no
seculo vII, não deixassem uma só palavra allusiva
a este acto ou ás consequencias inevitaveis delle,
se effectivamente houvesse succedido ?
E a presumpção que se deduz do silencio dos
escriptores adquire ainda maior grau de
probabilidade, quando se examinam os textos
legaes, os
— 392 —
únicos em que se tem pretendido achar a prova da
existencia da espoliação. Estudadas sem preoccupa-
ção as leis do codigo no liv. x, parece manifesto que
umas, as que distinguem os godos dos romanos,
expressam apenas o intuito de manter os contractos
particulares sobre divisão de terras que tenham sido
feitos entre indivíduos de differente raça antes da
fusão geral, emqnanto outros regulam a divisão entre
coherdeiros ou entre vizinhos.
Nenhuma dá indicio de presuppôr effectuado nal-
gum tempo um sequestro geral, ou uma partida de
todas as terras do imperio wisigotico: o sentido da
phrase divisio inter gotum et romanum facta é mais
forçado, sendo referido a um caso geral, do que
entendendo-se de direitos creados por actos parti-
culares que a lei manda respeitar, em vista da prova
que certifique a existencia, si tamen probatur cele-
brata divisio. A mesma quer o legislador que se
guarde para com os contractos celebrados antes da
vinda dos godos.
Os escriptores hespanhoes, como Perez Pujol é
Rafael Altamira, não se convenceram tão facilmente,
como os historiadores portuguêses, do fundamento
da doutrina de Fustel de Coulanges, e por isso
continuam a sustentar que os wisigodos se apropria-
ram de duas terças partes do solo aravel. E,
effeclivamente, esta é a opino que, apesar de tudo,
nos parece mais acceitavel.
As bases da repartição goda consigoaram-se na
Lex antiqua Wisigothorum, mas nem todas as suas
disposões passaram para o codigo wisigothico e
muitas das que ahi foram incluídas encontram-se
profundamente alteradas na sua redacção. O Palim-
psesio de Corbie nesta materia, para pouco mais serve,
do que para mostrar a insuficiencia dos seus fra-
— 393 —
gmentos. Em todo o caso, este documento refere-se
no capitulo CCLXXVII á repartição das terras, que é
confirmada pela lei VIII, titulo I, livro x do codigo
wisigothico, onde se dispõe que não seja alterada
a repartição das terras feitas entre os godos e os
romanos, não devendo os romanos tomar nem
demandar nada das duas partes dos godos, nem os
godos da terça dos romanos.
Não se tracta de direitos creados por actos parti-
culares, como pretende Gama Barros, mas duma
divisão geral, pois do contrario o se comprehen-
deria a razão por que os romanos não deviam tomar
nem demandar nada das duas partes dos godos nem
os godos da terça dos romanos. A lei falia, além
disso, da divisão das terras entre os romanos e os
godos como constituindo um facto geral, e não
como sendo o resultado de actos juridicos particu-
lares.
Nem devia ser grande a perturbão que da apro-
priação das terras pelos wisigodos podia derivar
para a economia da Península, desde o momento em
que ella recaia sobre a classe senatoria possuidora
dos latifundia, encontrando, além disso, o lavrador
laborioso meio de se tornar novamente proprietario,
cultivando os terrenos vagos e incultos. A servidão
tributaria de Roma esmagava a classe media, e por
isso. era frequente a emigrão para as províncias
pccupadas pelos barbaros, onde a liberdade germa-
nica era preferida ao titulo pomposo de cidadão
romano.
Ainda assim algumas dissensões derivaram desta
divisão das terras, a que os monarchas wisigodos
procuraram obviar por meio de certas providencias,
que se encontram consignadas no codigo wisigothico.,
Entre ellas, é notavel a que manda devolver aos
— 394 —
romanos as terras que lhes tivessem sido usurpadas,
a não ser que os detentores estivessem de posse
delias ha cincoenta annos (liv. xvI, til. I, liv. 10).
Eram o communs e continuas as usurpações a que
estavam sujeitos os romanos, que foi necessario
estabelecer esta prescripção especial de cincoenta
annos, egual á estabelecida para os bens menores,
a fim de que ellas não constituíssem um meio de
adquirir facilmente a propriedade. É a isto que se
reduz, o respeito que os barbaros na Península tive-
ram pela propriedade dos vencedores apesar do que
affirma Fustel de Coulanges !
Nem deve admirar que os escriptores coevos nada
digam a respeito deste assumpto, porque o procedi-
mento dos barbaros nada linha de estranho, em
face do direito publico da epocha. Compare-se o
que fizeram os barbaros com o procedimento dos
romanos, que, quando conquistavam uma rego,
confiscavam toda a propriedade torritorial em bene-
ficio do Estado 1.
175. A propriedade commum entre os wisigodos.
Eram de propriedade commum, em regra, entre
os wisigodos, os bosques e os prados.
1
Peres Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espana goda, tom. II, pag. 145 e seg.; Cardenas, Ensayo sobre
la historia de la propriedad territorial en Espana, tom. I,
pag. 159 e seg ; Rafael Altamira, Historia general de la Espana
y de la civilizacion espanola, tom. I, pag. 193 e seg.; Sr. Gama
Barros, Historia da administração publica em Portugal, tom I
pag. 389 e seg.; Sr. Alberto Sampaio, As villas do norte de
Portugal, pag. 85 e seg.; Fustel de Coulanges, Histoire des
institutions politiques de l'ancienne France (L'invasion germa-
nique et la fin de l'empire), pag. 536 e seg.
— 305 —
A unica norma que apparece no codigo wisigo-
thico o respeito do aproveitamento dos prados
communs é a da communidade dos pastos o veda-
dos, que se extendia aos vizinhos e transeuntes,
parecendo qne o feno, qne nos prados particulares
se considerava um fructo não sujeito áquella com-
muno, era proprio nos prados communs dos hos-
pites e consortes, sem que conheçamos o modo de o
aproveitar (Cod. wis., liv. vII, tit. v, 1. 2 e 5; tit.
III, I. 12).
Tambem havia bosques communs a hospiles e con-
sortes. Quando não tinham fructo, parece que era
geral o direito de aproveitar os seus pastos, podendo
até os transeuntes, os iter agentes, alimentar o gado
com ramos das arvores, na falta de herva. No tempo
do fructo, tempore glandis, não se permettia a entrada
nos bosques communs senão aos seus compartes
(Cod. wis., liv. vIII, tit. v, 1. 1 e 2). Havia o direito
de cultivar os bosques indivisos, mas os romanos
não podiam cultivar senão metade do bosque, per-
dendo a parte qne cultivassem a mais. Igual direito
pertencia aos godos relativamente aos romanos
(Cod. wis., liv. x, tit. I, 1. 9).
Nem todos os bosques e prados eram communs,
pois havia-os tambem de domínio particular. Estes,
quando se encontrassem vedados com parede on
com sebe, podiam ser aproveitados pelos seus
donos. Mas, se se encontrassem abertos, todos,
hospiles e consortes, podiam nelles apascentar os seus
gados, a não ser em tempo prohibido, em virtude do
principio da communidade das hervas não tapadas
(Cod. wis., liv. vII, tit. Iv, 1. 27).
O tempo prohibido era, para os bosques, o do
frncto, tempore glandis. Neste tempo, o dono podia
reter o gado alheio que se introduzia no seu bosque,
— 396 —
e exigir a indemnização devida (Cod. wisi.,1iv. vIII,
tit. v, 1. I). Nos prados, o tempo prohibido era
aquelle em que cresce a herva para se seccar e
aproveitar deste modo (Cod. wis., liv. vIII, tit. II,1.2).
Fóra deste tempo, era commum o aproveitamento
dos prados particulares abertos, o podendo mesmo
o proprietario prohibir esse aproveitamento por uma
disposição da sua vontade.
Havia ainda a terra vaga, proveniente da incom-
pleta apropriação do solo da península, e a terra
deserta, descora, constituída por campos abando-
nados. A evolução economica, que constituo os
latifundia, fez retrocer a producção, passando-se,
em grande parte, da agricultura para a pastoricia e
sendo assim abandonadas muitas terras. É por isso
que no Codigo Theodosiano ha um titulo, corres-
pondente a este peodo da decadencia da cultura,
denominado De agro deserto.
Uma unica lei, não deste titulo, mas do De bonis
vacantibus do Codigo Theodosiano, passou para o
Breviario de Alarico, a qual dá a entender que, em
virtude da invasão, as terras vagas, longe de augmen-
tar, diminuíram. Segundo ella, o rei godo, como
antes o imperador romano, concedia os bens vagos,
e a sua concessão garantia o possuidor contra a
reclamação dom direito anterior, que deveria, em
todo caso, ser satisfeito com outras concessões.
Do Breviario de Alarico passaram para o codigo
wisigothico os bens vagos, sendo ahi considerados
como cousas de aproveitamento commum a consort
e hospites, a vizinhos e transeuntes, sem a limitão
de tempo que se impunha aos prados communs e,
aos bosques communs, havendo nos bosques vagos
até o direito de utilizar os fructos e de cortar as
arvores (Cod. wis., liv. vIII, tit. Iv, 1. 26 e 27 ).
— 397 —
Para assegurar este aproveitamento geral prohibia-
se aos particulares tapar as terras vagas, podendo,
porém, adquirir-se a sua propriedade por meio da
coitara. Tanto peia legislação do Breviario de Alarico,
como pela legislação do codigo wisigothico, o rei
podia conceder a propriedade dos bens vagos; mas,
am desta concessão, tambem a coitara dos terrenos
incultos fazia obter a propriedade.
Ha em toda esta organizão da propriedade rural
a influencia evidente do primitivo communismo
agrario 1.
176. A propriedade commum na Reconquista.
Os godos, posto se tivessem atlribuido uma
grande parte do territorio da Península, respeitaram,
como vimos, a communidade de bosques e
montes e os usos de pastos. Com a invasão
musulmana, desap-pareceram em alguns logares
aquelles bens com-muns, que reapparecem depois
com a Reconquista, mediante a concessão de
terrenos, montes, bosques, etc., que os reis fazem
ás localidades, com o fim de facilitar a
repovoação do pais.
E os bens communs chegam assim a adquirir
uma tamanha importancia, que a elles se referem
frequentemente os fueros, dando-lhes grande ampli-
tude e liberdade. Nisto não fez a Hespanha mais
do que conformar-se com a evolução geral da pro-
priedade da Edade-Media, pois como nota
Azcarate, e um facto geral e constante na Edade
Media a
1 Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de Espana,
tom. I, pag. 35 e seg.; Rafael Altamira, Historia de la proprie-
dad commul, pag. 152 e seg.; Zumalacarregui, Ensayo sobre el
origen y desarrollo de la propriedade communal en Espana, pag.
58 e seg.
— 398 —
existencia de communidades ruraes ou agrarias,
que constituem unos logares verdadeiras republicas
independentes e o em outras unicamente institui
ções administrativas baseadas sobre a communidade
dos bosques, dos montes e dos pastos; & que ora
permanecem distinctas dos munipios, ora se con
fundem com elles.
Na Hespanha, as communidades ruraes ou agra-
rias encontravam-se confundidas com os munipios.
Os munipios tinham duas classes de terras: umas
cultivadas por todos os vizinhos, como serviço ou
encargo concelhio e cujo producto era destinado a
obras de utilidade commum, como caminhos, mura-
lhas, castellos, pontes, etc.; outras, cujos tractos
aproveitavam directamente aos vizinhos e que umas
vezes permaneciam indivisas e outras se distribuíam
em lotes ou porções annualmente, ou de tres em
tres annos, ou de cinco em cinco, etc. Às primeiras
terras denominaram-se bens proprios, as segundas
communaes ou de aproveitamento commum. Estes
eram constituídos por prados, montes, terrenos
lavradios, mas principalmente por montes e prados
de que os vizinhos aproveitavam, segundo certas
regras, os pastos, as lenhas e as madeiras de cons-
trucção.
Nem os proprios nem os communaes se podiam
vender, sendo nulla a venda que delles se fizesse.
Os primeiros, porém, podiam ser arrendados, em
logar de ser cultivados directamente pelo concelho.
Havia todo o cuidado em conservar estas terras,
visto ellas representarem a mais importante
riqueza e a base do bem estar dos vizinhos 1.
1
Azcarate, Ensayo sobre la historia del derecho de propriedad
y tu estado actual en Europa, tom. II, pag. 87; D. Rafael Alta-
mira, Historia de la propriedad communal, pag. 205 e seg.;
— 399 —
177. Vestígios do commumsmo agrario no direito
português. A evolução da propriedade, no sen-
tido da individualização, não se fez em Portugal,
sem deixar vesgios do antigo commumsmo agrario.
Ha na nossa historia dois exemplos, pelo menos,
de pura propriedade coilectiva, ambos citados por
Santa Rosa de Viterbo. É um a divio do pl de
Ulmar, em 1291, pelos moradores de Leiria; é
outro o de Vallada, ácerca do qual diz aquelle
escriptor: Conquistada Lisboa por D. Affonso Hen-
riques, ordenou o monarcha que a camara e o
concelho da cidade repartisse annualmente o campo
de Vallada aos moradores do seu termo que o
tivessem herdades, a hm de alliviar a sua pobreza
e attrai-los a fazerem em Lisboa as suas habitações
e moradas. Todos os annos se fazia escrupulosa-
mente a lista dos cidaos pobres e se lhes consi-
gnava o seu quinhão para cultura. Assim durou
até Sancho II, quando ricos e poderosos se apode-
raram inteiramente deste campo.
Evidentemente que o rei, como nota Oliveira
Martins, não applicaria o sorteio annual, se esse
regimen não fosse ordinario na economia coeva.
Era usual tambem a usurpação por direito de con-
quista e rapina dos ricos e poderosos: era então
usual pelos habitos militares, foi-o depois pelos
usurarios, e hoje o absolutismo do capital dá logar
a desordens similhantes.
A estes exemplos deve-se ajunctar o da terra de
Alqueirão, doada á camara de Lisboa por D. Affonso
D. Rafael Altamira, Historia de Espana y de la civilización
espanola, tom. I, pag. 423 e seg.
— 400 —
Henriques, para que os lavradores pobres da dicta
cidade, que bois tivessem e não tivessem terra em
que lavrar, lavrassem Delia e levassem a novidade
para si.
Além d'estes vestígios historicos da propriedade
commum, ha ainda vestígios actuaes delia. Entre
elles, figura o que se encontra no Minho de D. Anto-
nio da Gosta, que foi aproveitado por Laveleye, no
capitulo da sua obra De la propriété et ses formes
primitives, sobre a propriedade archaica na Penín-
sula iberica e na Italia.
Segundo D. Antonio da Gosta, a freguezia d'Entre
Rios divide-se em varios logares, cada um dos quaes
tem seu juiz e thesoureiro e se governa pela assem-
bléa geral dos vizinhos. O suffragio de todos regula
os negocios da communidade e as mulheres têem o
direito de votar como homens. Os rebanhos pastam
nos prados communs, guardados por pastores que
são vizinhos, revezando-se por turnos cada tres dias.
As terras lavradias são divididas em sortes, annual-
mente, entre as famílias. A sementeira e a ceifa
fazem-se em commum, dividindo-se o producto de
cada sorte. Ha um thesouro commum, formado
com o produeto da venda do carvão queimado na
freguesia. N'este thesouro, cuidadosamente guar-
dado, póde tocar-se perante a assembléa geral
dos vizinhos, em caso de necessidade urgente, para
indemnizar a perda de algum incendio, a morte de
animaes domesticos, um imposto extraordinario, ou
caso de utilidade geral. A pena com que são cas-
tigados os que violam os usos e regulamentos é
aquella que em Roma se chamava interdictio aquae
et ignis e que tambem se applicava entre os ger-
manos, isto é, a recusa do lume e. do acesso á
fonte e o não se lhe fallar mais. É a morte
— 401 —
civil e o reu não tem outro recurso mais senão
emigrar 1.
178. Baldios. Ainda se relaciona com a
persistencia do communismo agrario primitivo a
instituição dos baldios. Os baldios são terrenos
geralmente incultos que, por antigos usos e
costumes, se acham na posse e goso exclusivo e
directo dos vizinhos de certos logares do reino.
Segundo as Ordenações, os baldios são terras
incultas, mattos maninhos, ou mattos e bravios que
nunca foram aproveitados ou não ha memoria de
homens que o fossem, e que, não tendo sido
contados, nem reservados pelos reis, passaram
geralmente pelos foraes, com as outras terras aos
povoadores delias, para os haverem por sem em
proveito dos pastos, creões e logramentos que
lhes pertencem (Ord., liv. Iv, tit. xLIII, §§ 9.° e
12.°; Port. de 9 de abril de 1875). Não se podiam
dar de sesmaria, nem se permittia roteá-los, se
isso fosse contra o proveito dos moradores, no
uso dos pastos, criações de gados, logramento
das lenhas e madeiras.
A lei de 26 de julho de 1850 classificou os
baldios em parochiaes e municipaes, dispondo
que se presumem parochiaes aquelles em cujo
logradouro commum e exclusivo os moradores
da parochia tiverem posse por trinta ou mais
annos, e municipaes aquelles em cuja posse
tiverem estado os moradores do concelho
durante um egual espaço de tempo.
1
Oliveira Martins, Quadro das instituições primitivas, pag. 107
e seg.; Santa Rosa de Viterbo, Elucidario, verb. Cellareiro e
Vallada; Emite Laveleye, De la propriété et de ses formes pri-
mitives, pag. 272 e seg.
26
— 402 —
Em face da Ordenação, liv. Iv, tit. xLIII, § 9.°,
parece que a propriedade destes bens se deve attri-j
buir aos povos a quem foram dados para o seo
logradouro commum. A influencia no direito romano,
com a sua theoria da universitas personarum, que,
por uma ousada ficção, tinha uma vontade e um
poder jurídico, fez integrar a propriedade dos bal-
dios na pessoa moral que representa a conectividade
a que pertencem. Foi esta doutrina que triumphou
na legislação moderna, como se do alvará de 27
de novembro de 1804, dos artt. 471.° e 473.° do
codigo civil, da lei de 28 de agosto de 1869 e do
codigo administrativo, art. 429.° Deste modo, a
propriedade dos baldios individualizou-se, visto
elles não pertencerem ás pessoas que constituem
um aggregado social, mas á entidade moral que o
representa.
A individualização, porém, não ficou por aqui,
visto os baldios terem sido submettidos ao principio
da desamortização obrigatoria pela lei de 28 de
agosto de 1869. Deste preceito, ficaram apenas
exceptuados os que se reputem necessarios ao logra-
douro commum dos povos, dos municípios e paro-
chias, e que o governo designar para esse fim,
precedendo audiencia das corporões interessadas.
A desamortização faz-se ou por meio de venda ou
por meio de aforamento, e este ultimo póde verifi-
car-se ou em hasta publica, ou independentemente
de pra por arbitramento de louvados, quando se
resolver dividi-los pelos moradores, vizinhos do con-
celho ou parochia a que pertenceram.
O codigo administrativo actual, mantendo o prin-
cipio da desamortizão obrigatoria dos baldios, da
qual unicamente exceptua os declarados indispensa-
veis ao logradouro commum dos povos e os terre-
— 403 —
NOS arborizados, cuja arborização seja necessaria
para a fixação das donas, torna dependente essa
desamortização do inventario de todos os baldios
ou revisão dos inventarios organizados. A desa
mortização realizar-se-á, dividindo-os por aforamento
e em partes de egual valor, entre todos os chefes
de família, que ha mais de um anno sejam compar
tes na fruão delles, segundo os usos e costumes
estabelecidos (art. 429.° do codigo administra
tivo) 1.
170. Communidades agricolas da índia portuguêsa.
O systema das communidades da aldêa tem per-
sistido dum modo notavel na índia, apesar das
transformações por que tem passado este país. Mas
talvez em parte alguma se conservou melhor que
em Goa, ao tempo da sua conquista pelos portuguê-
ses, o typo da aldêa indiana e o seu regimen
primitivo.
As terras baixas suscepveis de cultura de arroz,
artigo principal da alimentão, eram adjudicadas
periodicamente em glebas, aos membros da commu-
nidade, mediante uma renda offerecida em licitação.
Os terrenos mais altos tinham sido distribuídos pelas
famílias fundadoras da communidade, para o estabe-
lecimento das suas moradas, com as hortas, arecaes
ou palmares annexos, constituindo os bairros. Os
seus donos tinham de pagar á communidade uma
1
Jacintho Antonio Perdigão, Apontamento de direito, legis-
lação e jurisprudencia administrativa e fiscal, vol. II, pag. 3 e
seg.; Sr. Dr. Teixeira de Abreu, Lições de direito civil, pag. 187 e
seg.; Nani, Storia dei diritto privato italiano, pag. 259 e seg.;
Revista de legislação e jurisprudência, tom. vII, pag. 449 e seg.;
vIII, pag. 337 e seg.; IX, pag. 184 e seg.; xII, pag. 343 e seg.
— 404 —
contribuição fixa e ajustada chamada cutumbana.
Os rendimentos da communidade eram applícados
no pagamento das contribuições a que ella fosse
obrigada para com o Estado e na satisfação das
despesas da ala, dividindo-se o resto pelos inte-
ressados.
Sob o domínio português, as communidades de
ala conservaram a mesma constituição e rma de
administração que antes tinham. As normas regula-
doras das communidades de ala goanas foram
compendiadas por Affonso Mexia, Vedor ou ministro
da fazenda da índia, o qual ordenou o Foral dos
usos e costumes de 1526. Nos dous seculos que se
seguiram ficaram as aldêas em regra fóra da lei,
primeiro por via de fanaticas e desordenadas perse-
guições á população gentílica, depois por extorsões
com que ellas eram despojadas e arruinadas, donde
resultaram emigrações e outras consequencias
funestas para a vida destas communidades
agrícolas.
No seculo xIx inicia-se outro systema de politica
colonial, cessando as oppressões e as extorsões
contra- as communidades indianas, sendo-lhe apenas
de longe em longe impostos alguns encargos, em
fórma de contribuições geraes, e despezas para
instrucção, viação, saude publica, segurança aldeana
e culto divino. O estado economico das communi-
dades de aldêa melhorou consideravelmente, princi-
palmente depois que se adoptou o principio da
fiscalização de juizes e administradores ingenas,
mais conhecedores dos respectivos costumes e pecu-
liaridades.
Foi-se assim preparando o terreno para as provi-
dencias do decreto de 15 de setembro de 1880 e
regimento de 1882, que remodelaram a organização
— 405 —
das communidades de aldêa da nossa índia. As
suas allribuições foram reduzidas á cultura das
proprias terras por meio de arrendamentos triennaes,
ou annuaes sob a fiscalização administrativa do
governo 1.
1
Filippe Nery Xavier, Bosquejo historico das communidades
agrícolas de Goa, vol. I, pag. 76 e seg.
CAPITULO IV
PROPRIEDADE INDIVIDUAL
SUMMARIO : 180. A propriedade individual na Hespanha
primitiva. — 181. Caracter da propriedade individual entre
os romanos. 182. Cousas mancipi e nec mancipi 183.
Domínio quiritario e domínio bonitario. 184. As
possessiones. 180. Os Latifundio. 186. As villas ro-
manas. 187. As sortes goticae e as tertiae romanorum.
188. Transformão das villas romanas. A pequena pro-
priedade. 189. A propriedade allodial, beneficial e cen-
sual.—190. As presurias.—191. Os reguengos.—192. As
jugarias. 193. Os coutos e as honras. 194. Os mor-
gados. 195. As capellas. 196. Lei das sesmarias.
197. Lei da avoenga. 198. Novo caracter judico assu-
mido pela propriedade individual nos codigos modernos.
180. A propriedade individual na Hespanha
primitiva. — Nos ultimos tempos da Hespaoba
primitiva, se manifestava a tendencia para a
propriedade individual. A terra começava a ser
usurpada pelos nobres. Os romanos sanccionaram
depois com a sua administração este estado de
cousas, tributando os nobres pelas terras que
tinham em seu poder.
Não ha nenhum documento que prove isto
relativamente á Península, mas deduz-se tal
conclusão da organização fiscal estabelecida por
Augusto na Galha. o é provavel que Augusto
mandasse administrar a Hispania dum modo
diverso da Gallia. Effectivamente, Cesar lançou
um tributo geral de 40 milhões de sestercios
sobre as cividades (pequenos povos com
organização politica autonoma), que ellas
rateavam entre si, obtendo esta somma de contri-
buições pagas pelos ricos em relação á area
explorada
— 408 —
por cada um. Augusto substituiu aquelle por um
imposto de quotidade que o detentor da terra pagava
ao fisco romano, adquirindo assim o occupante a
propriedade, que depois se tornou definitiva.
0 mesmo devia acontecer na Hispania, sendo de
presumir que o fisco romano taxasse os proceres
pela terra que possuíam, legitimando a sua apropria
ção. É por isso que a influencia romana na Peninsula
se accentuou no sentido da individualização da
propriedade, fazendo obliterar as tradições collecti
vistas da Hespanha primitiva 1.
181. Caracter da propriedade individual entre os
romanos. Desde as XII Taboas, a propriedade
romana apresenta-se sob a fórma individual, tanto
para os moveis como para os immoveis. É, na
evolução individualista da propriedade, o direito
romano conseguiu dar a este instituto a pbysionomia
e a constituição que todos os povos civilizados lêem
adoptado com ligeiras modificações.
Deve-se, pom evitar o erro antigo e commum de
considerar o direito de propriedade, no systema
romano, como um direito sem limites, dominado
unica e exclusivamente pelos interesses do proprie-
tario. Este erro tem levado os adversarios do direito
romano a apresental-o como um direito inspirado no
egsmo e revestindo, por isso, um caracter profun-
damente anti-social. A propriedade, diz-se, não
abrange unicamente direitos, comprehende tambem
deveres, e o direito romano desconheceu completa-
mente esta verdade.
1
Sr. Alberto Sampaio, As villas do norte de Portugal, pag.
27, e seg.
— 409 —
0 certo é, porem, que tambem foram impostos
deveres á propriedade pelos romanos. Estes deveres
o podem deixar de ser maiores no nosso tempo,
por causa da exigencia das modernas condições
sociaes, mas já no direito romano se encontram
sanccionados, em virtude das limitões que elle
estabelece ao direito do proprietario.
É certo que as fontes o ao proprietario o jus
utendi et abutendi da propria cousa, mas daqui não
se pode concluir que haja o direito de abusar delia,
pois as fontes ajunctam quatenus juris ratio patiatur,
e a maior parte das vezes referem o abu precisa-
mente a cousas de que se o pode tirar utilidade
senão consumindo-as, isto é, ás cousas quae in abusu
consislunt.
Reduzido, por isso, o conceito da propriedade
romana aos seus verdadeiros termos, vê-se que a
propriedade, segundo elle, não tem o caracter abso-
luto illimitado que alguns escriptores lhe attribuem.
Não deixaram, por isso, os romanos de soffrer nesta
materia a influencia do elemento ethico, que, na
phrase exaggerada de Goldschmidt, occupa no direito
romano um logar tão insigne, que nenhum outro
direito conseguiu sobrepujar 1.
182. Cousas mancipi e nec mancipi. Entre as
divisões das cousas que os romanos faziam, ha uma
que se liga intimamente com o desenvolvimento his-
torico da propriedade no direito romano. E a divisão
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 248 e seg.;
Azcarate, Historia del derecho de propriedad, tom. I, pag. 131
e seg.; Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 245 e
seg.; Edouard Cuq, Institutions juridiques des romains, tom. I,
pag. 244 e seg.
— 410 —
das cousas em mancipi e nec mancipi, que, segundo
Summer Maioe, tem tamanha importancia para o
estado da propriedade romana, que toda a historia
deste instituto, no intender deste escriptor, se reduz
á assimilação gradual das cousas mancipi ás cousas
nec mancipi, isto é, á assimilação da propriedade
fundiaria à propriedade mobiliaria individual, deter-
minando a mobilização da primeira.
As cousas mancipi eram os predios, casas on
terrenos, existentes no solo italico, as servidões
ruraes estabelecidas em beneficio destes predios,
os escravos e os animaes de carga e de traão, fos-
sem ou não empregados nestas funcções. Todas as
outras cousas eram nec mancipi, quer se tractasse
de cousas inanimadas, sem exceptuar os proprios
immoveis, quando se encontrassem situados nas
províncias.
A base da distincção das cousas em mancipi e nec
mancipi é a de ellas se poderem adquirir ou o por
meio da mancipação. Daqui a grande importancia
desta distincção, pois, sendo primitivamente a man-
cipação o unico meio de collocar uma adquisição sob
a protecção do Estado, as cousas o o susceptí-
veis de mancipão o podiam ser evidentemente
objecto da propriedade quiritaria.
A origem desta distinão prende-se com a dis-
tincção que os romanos faziam entre família e pecu-
nia. Effectivamente, as cousas comprehendidas sob
a denominão de família correspondem ás que os
jurisconsultos classicos chamam res mancipi, e as
cousas comprehendidas sob a denominação de pecu-
nia correspondem ás que os jurisconsultos classicos
chamam res nec mancipi. A família comprehendia as
cousas indispensaveis á existencia material da
família, os escravos e os animaes de carga e de
— 411 —
tracção, não abrangendo ainda os immoveis por
elles se encontrarem submettidos ao regimen da
communidade. A pecunia comprehendia as cousas
que não eram indispensaveis ás necessidades da
família, abrangendo primitivamente o gado, empre-
gado eno nas transaões a titulo de valor inter-
mediario. A significão desta expressão foi depoisj
ampliada, de modo a comprehender os frnctos e as
colheitas, bem como a moeda, que substituiu o gado
como instrumento de troca.
Só as cousas constituindo a família podiam ser
objecto de propriedade. Isso o nos deve surpre-
hender, pois o mesmo aconteceu, segundo Edouard
Cuq, noutros povos de raça aryana, onde se distin-
guiam dois elementos na fortuna dum chefe de
falia, o necessario e o superfluo, limitando-se a
noção da propriedade ao primeiro destes elementos.
A distinão entre cousas mancipi e nec mancipi
tornou-se desharmonica com as condições economicas
do povo romano, e por isso não podia deixar de
desapparecer. Foi por isso que Justiniano aboliu a
dislinão entre estas cousas, mas por tal modo que
mostra pronunciar-se sobre institutos de que não
encontra vestígios na vida judica, e de que já não
comprehende o verdadeiro espirito e importancia 1.
188. Domínio quiritario e domínio bonitario.— Os
romanos não conheciam primeiramente senão uma
especie de domínio, o domínio civil ou quiritario
dominium ex jure Quiritium. Aquelle que tinha
uma cousa como sua, sem haver o seu domínio qui-
1
Edouard Cuq, Institutions juridiques des romains, tom. I,
pag. 91 e seg.; Bonfante, Instituzioni di diritto romano, pag. 178
e seg.; Letourneau, Évolution de la propriété, pag. 352.
— 412 —
ritario, era um simples possuidor. Sob a republica,
surgia a necessidade de admiltir uma segunda espe-
cie de domínio, o domínio pretorio, tambem conhe-
cido pela denominão de dominio bonitario, por se
basear no facto do possuidor ler a cousa in bonis,
isto é, nos seus bens.
Podiam-se verificar tres combinações: existir o
pleno dominio sobre nma cousa, tanto o dominio
civil como o dominio pretorio plenum jus ex jure
Quiritium, haver o simples dominio civil sem o pre-
torio nudum jus Quiritium; ter logar unicamente o
dominio pretorio ou bonitario. Estas duas especies
de dominio não se devem confundir com a
propriedade dos peregrinos e com a propriedade
sobre os predios provinciaes, cujo dominio, segundo
o direito romano, pertencia ao Estado, ficando aos
particulares unicamente a posse e o usufructo.
Aquelle que tinha tanto o dominio civil como o
dominio pretorio sobre uma cousa gosava de todos
os direitos de propriedade e especialmente duma
acção real, que se podia exercer sobre qualquer
detentor, chamada rei vindicatio. Para que uma
cousa, porém, pudesse encontrar-se sob o dominio
quiritario, tornava-se necessario o concurso de tres
condições: a) a capacidade da pessoa; b) a idonei-
dade da cousa; c) a legitimidade do modo de adqui-
rir. Vejamos cada uma destas condições.
a) Capacidade da pessoa, Só eram capazes do
dominio civil as pessoas que gosavam do jus com-
merciis como os cidadãos romanos, os latinos e os
peregrinos que tivessem obtido este direito por con-
cessão especial.
b) Idoneidade da cousa. Unicamente as cousas
sujeitas ao commercio do direito civil é que podiam
constituir objecto do dominio quiritario, isto é, as
— 443 —
cousas moveis e os predios italicos, não os
predios provinciaes. Primeiramente, até eram
excluídas do domínio civil as cousas nec mancipi.
Os moveis tor-navam-se propriedade civil,
qnando passavam para as mãos dos cidadãos
romanos, mas o solo estran-j geiro não adquiria
pela conquista a condição de solo romano,
susceptível de dominio civil. Os predios
provinciaes differiam dos predios italicos, sob o
aspecto publico, por estarem submettidos ao
imposto, e, sob o aspecto privado, por os seus
possuidores terem sobre elles unicamente uma
especie de propriedade inferior, designada com os
nomes vagos de usufructo e de posse e
sanccionada por meios espe-ciaes. Os predios
provinciaes podiam ser resgatados desta dupla
inferioridade, em virtude duma decisão do
imperador, concedendo á cidade no territorio da
qual se encontravam a condição juridica dos
fundos italinos, o jus italicum. Esta distincção foi
decaindo, principalmente depois da extensão do
imposto á Italia, até que Justiniano a aboliu
completamente.
c) Legitimidade do modo de adquisição.
Para adquirir legitimamente o dominio civil,
tornava-se necessario empregar um modo de
adquisição reconhecido como efficaz para este
fim pelas leis civis. Não havia propriedade civil
senão a que se adquiria por um modo civil.
O dominio bonitarío tinha logar quando se
verificavam as duas primeiras condições do
dominio qui-ritario — capacidade da pessoa e
idoneidade da cousa mas faltava a terceira,
um modo legitimo de adquisição. É que a
propriedade adquirida por modos naturaes ou
pretorios, não reconhecidos como habeis para
fazer adquirir o dominio quintario, era, não
obstante este vicio, tutelada com acções especiaes,
o que fundamentava a possibilidade dum duplo
domi-
— 414 —
nio. Assim, se o cidadão romano adquirisse uma cousa
mancipi pela simples entrega, traditio, não adquiria o
domínio civil, mas simplesmente o donio bonitario.
Tal donio transformava-se, é verdade, mediante
a usucapio em domínio civil, mas emquanto esta se
não verificava, o transferente conservava o nudum
jus Quiritium, podendo usar de todas as acções
inberentes ao mesmo e especialmente da rei vindi-
catio. O adquirente, pom, podia defender-se me-
diante a exceptio doli, contra a reivindicação do
alienante ou dos seus successores e podia reclamar
a cousa de qualquer terceiro detentor mediante a
Publiciana actio. De modo que o dominio bonitario
conferia todas as vantagens materiaes provenientes
da propriedade, sendo unicamente os direitos do
dono bonitario restrictos e limitados sob certos aspe-
ctos, visto elle o se poder valer nem da rei vin-
dicatio, nem da mancipatio, nem da in jure cessio, etc.
E assim, quando uma cousa se encontrava in bonis
de alguem, ao transferente ficava pertencendo, sob o
nome de nudum jus Quiritium, um dominio mera-
mente formal, visto as vantagens materiaes prove-
nientes da propriedade competirem todas ao dono
bonitario. O nudum jus Quiritium era, além d'isso,
um direito transitorio, destinado a desapparecer,
visto durar unicamente até ao momento em que o
dono bonitario adquiria o donio quiritario, em
virtude da usucapião.
O dualismo entre os dois donios subsistia du-
rante lodo o periodo classico, mas estava condem-
nado a desapparecer, visto os modos pretorios de
adquisição serem o efficazes como os civis e dum
uso mais facil e simples. Justiniano, por conseguinte,
não fez mais do que conformar-se com a evolução,
extinguindo o nudum jus Quiritium, visto, mesmo
— 418 —
para as cousas mancipi, se terem posto de parte os
modos civis de alienação 1.
184. As possessiones. A propriedade privada
foi-se dissolvendo em Roma á casta das possessiones,
As possessiones eram porções de ager publicus occu-
padas pelos patrícios. Deviam reverter ao Estado,
o podendo nunca transformar-se em dominio qui-
ritario. De facto, porém, os patrícios conservavam
indefinidamente as possessiones, visto não estar deter-
minada a epocha em que elles as deviam entregar á
communidade. Os plebeus não tinham o direito de
occupar o dominio publico, sendo-lhes, comtudo, de
tempos a tempos, distribuídas algumas terras.
Para obstar aos progressos da desegualdade pro-
veniente da accumulão das terras e das riquezas
pelos patrícios, favorecida pela expansão da con-
quista sobre os povos italicos, que ia augmentando
o ager publicus, appareceram differentes providencias,
entre as quaes se salienta a famosa lei Lucinia. Esta
lei fixou em 500 jugera para os paes e em 250 para
os filhos a porção do ager publicus que podia ser
occupada. A parte das terras publicas retirada aos
que possuíssem mais do que esta lei auctorizava
devia ser distribuída pelos pobres.
A Lei Lucinia não tardou a ser violada na pratica,
accentuando-se os inconvenientes da concentrão
da propriedade. A Lei Licínia foi reeditada por
Tiberius Gracchus, determinando-se que não se po-
diam conservar terras publicas além dos limites
1
Girard, Manuel élémentaire de droit romam, pag. 352 e seg.;
Serafini, Instituzione de diritto romano, vol. I, pag. 307 e seg.;
Bry, Principes de droit romain, pag. 148 e seg.; Brugi, Doltrine
giur, degli agrim., cap. v e VI.
— 416 —
estabelecidos por aquella lei, mas que dentro desses
limites o direito de propriedade fosse pleno. As
terras possuídas a mais deviam ser restituídas á
communidade, mediante a indemnização das bemfei-
torias executadas, e repartidas pelos cidadãos pobres,
que não as poderiam vender.
A lei foi votada, mas em grande parte illudida na
sua execução, apesar de renovada por Caius Grac-
cbus. Era quasi impossível ao Estado entrar na
posse de terras ba tanto tempo usurpadas e confun-
didas com as propriedades privadas. Não bastava
uma lei agraria para resolver a queso, tornava-se
necessaria uma politica constante e energica no sen-
tido de luctar contra a grande propriedade e de
reconstituir a pequena.
Depois da morte de Gracchus, os patcios fizeram
adoptar entre os annos 121 e 100 tres leis agrarias
que asseguraram o triumpho da grande propriedade.
A primeira permittia vender a porção de terras
publicas recebida; a segunda prohibia toda a nova
divisão do donio publico, que permanecia no poder
dos possuidores actuaes mediante uma renda, cujo
producto seria distribuído pelos cidaos; a terceira
supprimiu mesmo esta renda. De modo que das
leis dos Gracchus ficou uma clausula inteiramente
favoravel á aristocracia, a que transformava em pro-
priedade a posse do domínio publico 1.
185. Latifundia. Prevaleceu deste modo o
typo da grande propriedade privada constituída pelas
1 Laveleye, De la propriété et de ses formes primitives, pag.
393 e seg.; Emílio Costa, Corso di storia del diritto romano, tom.
II, pag. 84 e seg.; Mommsen, Histoire romaine, tom. II, pag. 58 e
seg.
— 417 —
possessiones, consideravelmente amplificadas e con-
vertidas em donio particular. Assim appareceram
os latifundio, que eram immensos donios poss-
dos pelos capitalistas e que elles faziam agricultar
por legiões de escravos.
Todos conhecem a passagem em que Clumella falia
dos grandes proprietarios que possuem o territorio
de todo um povo e que não poderiam percorrer num
dia, mesmo a cavallo, os seus vastos donios. P-
nio diz que os latifundio arruinaram a Italia. Seneca
queixa-se dos homens opulentos que possuem do-
nios tio vastos como provindas.
Se, entre as grandes propriedades ficaram exis-
tindo algumas pequenas, na generalidade, os latifun-
dio tornaram-se o typo commum, dominando o
regimen agrario. A concentração da propriedade
triumphou dum modo completo, asphyxiando a pe-
quena propriedade.
Os 300 fundi da inscripção de Veleia (104 depois
de C.) pertenciam unicamente a cincoenta e um
proprietarios. O mesmo homem possue 10 ou 12.
Tres dentre elles possuem cada um mais de um
milhão de sestercios. Em menos dum seculo, cinco
sextos dos pequenos proprietarios desappareceram,
vendendo ou abandonando a sua terra. Alguns
ficaram, enriquecendo-se à custa da ruina dos
outros.
Os predios são primeiramente conservados distin-
ctos, mas as inscripções dão delles uma só avaliação.
É o inicio da transformação que ha de acabar por
os fundir numa só propriedade. O jurisconsulto
Papininiano, nota, como um facto muito trivial, a
reuno de varios fundi numa só propriedade.
Neste caso, cada um dos predios conserva o seu
antigo nome, ficando., porém, todos subordinados ao
27
— 418 —
mais importante dentre elles. Com os progressos
da grande propriedade, appareceu um termo novo,
na vida agricola — a massa, para significar um grupo
de varios predios, que conservam o seu nome indi-
vidual, mas cujo conjuncto tomou um nome unico,
que designa uma nova unidade rural. Daqui se
deduz como o agrupamento insensível e lento das
pequenas propriedades contribuiu para a formação
da grande.
Os latifundia foram funestos. A concentrão da
propriedade em algumas mãos fez decahir a agricul-
tura, esgotou a fonte natural da riqueza constituída
pelo trabalho livre, e, destruindo, como diz Laveleye,
a forte raça dos cultivadores proprietarios, simulta-
neamente excellentes soldados e bons cidadãos que
tinham dado a Roma o imperio do mundo, arruinou
o fundamento das instituições republicanas. A phrase
Latifundia perdidere Italiam resoa através dos
seculos como uma advertencia para as sociedades
modernas 1.
186. As villas romanas. O quadro territorial
das áreas culturaes constituía a villa. Esta palavra
denominou primeiramente a vivenda do dominus,
mas depois na Italia, na Gallia e na Hispania com-
prehendeu quando se continha dentro dum predio
rustico a habilitão do proprietario, a dos tra-
balhadores, os estabulos, os celleiros, os terrenos
cultos e incultos, constituindo tudo uma unidade
rural.
1
Laveleye, La propr et ses formes primitives, pag. 400 e
seg.; Fustel de Coulanges, L'alleu et le domaine rural, pag.
22 e seg.; Sr. Alberto Sampaio, As villas do norte de
Portugal, pag. 48 e seg.
— 410 —
Como a tendencia na evolão da propriedade
romana era para o typo da grande propriedade, não
deve admirar que as villas abrangessem vastos
domínios. Na Hispania nem sempre assim aconteceu
não se podendo duvidar que pequenos predios rela-
tivamente aos costumes do tempo se misturaram
com os grandes, não chegando mesmo estes á
extensão maxima.
A desegualdade, segundo o Sr. Alberto Sampaio,
no seu magnifico estudo sobre as villas do norte de
Portugal,o é explicavel pela maior ou menor
fertilidade do solo onde se fundava a villa, appare-
cendo uma em terreno montanhoso mais restricta
que outra em terra fertil. É mais provavel que essa
desegualdade derive da occupação preromana a
titulo precario de retalhos do territorio da cividade
por cada um dos nobres, retalhos maiores ou meno-
res, segundo a riqueza e influencia delles; essas
areas preoccupadas não juridicamente mas de facto,
ou usurpadas, tornaram-se detenções legaes imme-
diatamente depois da conquista, em virtude do
imposto ao fisco romano.
De modo que as villas da Península vêem a ser as
superfícies ruraes exploradas irregularmente desde
o tempo das cividades, e legalizadas depois pelos
romanos que lhes impozeram o cunho da sua forte
civilização 1.
187. As sortes gothicae e as tertiae romanorum.
Os proprietarios godos denominavam-se consortes
e as suas terras, sortes cothicae. Os proprietarios
1
Sr. Alberto Sampaio, As villas do norte de Portugal, pag. 49 e
seg.; Fustel de Coulanges, L"alleu et le domaine rural, pag. 16
e seg.
— 420 —
hispano-romanos, hospites, e as suas terras tertiae
romanorum. Às sorte gothicae e as tertice romanorum
constituíam a propriedade individual ou privada.
Havia, ao lado das terras de propriedade individual,
as terras de uso commum a godos e romanos, consti-
tuídas pelos bosques e pelos prados, além dos
terrenos incultos ou vagos que tinbam ficado fora
da divisão, de que já nos occupamos.
Relativamente â condição jurídica das terras de
propriedade privada, torna-se necessario distinguir
as terras vedadas das abertas. Em todas as terras
vedadas e nas abertas com horta, cearas e vinhas,
o domínio do proprietario era completo e illimitado,
nas outras o dominio era incompleto e limitado. É,
por isso, que as utilidades produzidas pela primeira
categoria de terras pertenciam exclusivamente ao seu
proprietario, quer fosse godo, quer fosse romano.
O mesmo já não acontecia na segunda cathegoria de
terras, onde os pastos eram communs dos hospites e
dos consortes (Cod. wis., liv. vIII, tit. III, I. 6; tit.
v, 1. 5; tit. III, 1. 10; tit. Iv, 1. 2).
Esta constituição da propriedade rural reflecte
profundamente a influencia do direito germanico. A
limitão que soffria a propriedade dos consortes e
hospites, quando se traotava de terras abertas, coor-
dena-se evidentemente com as idêas collectivistas
dos germanos, embora tambem se harmonize com
as antigas instituições das populações indígenas.
É tambem do direito germanico que deriva o res-
peito pela propriedade da terra vedada e qne o
codigo wisigothico defende energicamente. Effecti-
vamente, este respeito apparece nas leis godas como
consequencia da inviolabilidade do domicilio germa-
nico, que se extendia o a casa mas tambem á
cerca do pateo, curral ou horto, que a precedia ou
— 421 —
a rodeava, curtis. As leis dos differentes povos
germanicos, confirmando e desinvolvendo as indica-
ções de Tacito, dão a conhecer o que era a curtis,
e uma lei do codigo wisigothico, mencionando-a,
testemunha a sua existencia e inviolabilidade entre
os godos (Cod. wis., liv. vIII, tit. I, 1. 3) 1.
188. Transformação das villas romanas. A pe-
quena propriedade. As villas romanas, que, em
virtude da sna forte organização, tinham atravessado
incolumes o período godo, acabam por passar no
período neo godo por uma grande transformação.
Foi isto o resultado da apprehensão geral dos pre-
dios por direito de conquista ou proprio gladio, como
dizia Affonso II, e a transmissão subsequente de
fracções delles, quebrando a tradicção e a unidade.
A corôa estabeleceu o systema das doões parciaes,
e por isso a unidade do fundo estava naturalmente
partida, vindo a constituir-se predios independentes
com os elementos das villas.
Mas, convertidas em predios as subunidades de
outras epocas, a villa dissolve-se e verifica-se um
dos factos mais notáveis da sociedade astur-leonesa
a formação da pequena propriedade. Ha muitos
factos que demonstram este fraccionamento das vil-
las. Tal é o caso de Cartemiro e Astrilli que, em
870, possuíam na villa Sonosello (hoje freguezia
Souzello) um casal, a sexta parte delia, que lhes
tocara em partilha. As successões e alienações
abrangem frequentemente varias glebas das villas.
1 Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales de la
Espada goda, tom. IV, pag. 345 e seg.; D. Rafael Altamira,
Historia de la propriedad communal, pag. 151 e seg.
— 422 —
Assim, em 973 Teodilo vende varias glebas na villa
Zelsoni.
Exemplos similliantes succedem-se a miudo. Dir-se-
hia, nota o Sr. Alberto Sampaio, que as terras
cultivadas iam chegar a um parcellamento extremo:
e comtudo não foi assim: o genio da raça, sem
qualquer influencia governativa, disto o ha vestí-
gios, fez parar o movimento dentro de justos limites,
em media os das antigas subunidades; se eram
grandes ou pequenas demais, dividiam-se ou aggru-
pavam-se as glebas, de modo a formar-se, por mera
acção popular, o typo do casal historico, adequado
ás condições da terra e por ventura dos mesmos
homens; com o casal de lavradores, formou-se tam-
bem a parcella menor—a casa com campo e horta,
ou só com a ultima, a residencia do operario rural,
empregado sobretudo nos misteres relacionados com
a lavoura 1.
180. A propriedade allodial, beneficiai e censual.
Na Reconquista, a propriedade individual podia
ser allodial, beneficiai e censual.
A propriedade allodial era a propriedade absoluta
e completamente livre. Entravam nesta especie de
propriedade os domínios anteriores á invasão dos
arabes, as presurias e as concessões dos soberanos.
Os antigos proprietarios godos das províncias onde
primeiramente se organizou a resistencia ou onde
foi menos duradora a dominação musulmana, eram
muito independentes. Não vivendo em territorio
sujeito aos emires, não lhes deviam obediencia, e
1 Alberto Sampaio, As villas do norte de Portugal, pag. 95 e
seg.
— 423 —
unicamente se submetteram aos reis das Asturias,
em virtude da necessidade de ter um chefe que
ordenasse e dirigisse a guerra.
As presurias eram as terras adquiridas por occu-
pão. Delias tractaremos mais adiante.
Os reis das Asturias, considerando-se successores
dos reis godos e depositarios das suas leis e tradi-
ções, arrogaram-se, por direito de conquista e em
propriedade absoluta, todas as terras que conseguiam
subtrahir ao donio dos infieis. As cousas moveis,
incluindo os captivos, que formavam despojos da
guerra, deviam devidir-se entre os soldados, depois
do rei tirar a sua parte. O territorio, porém, o
entrava nesta divisão, porque ficava pertencendo
integralmente á corôa.
O rei não podia conservar as terras conquistadas,
sem as collocar em estado de defesa, e isto o se
podia conseguir, em face dos escassos recursos da
corôa, senão fazendo concessões delias. Estas con-
ceses eram feitas a principio com domínio absoluto,
originando, por isso, propriedade allodial.
Predominou, porém, o systema de o rei fazer estas
conceses com a obrigão da prestão de fideli-
dade e de serviços pessoaes, entre os quaes avultava
o servo militar. Este exemplo foi seguido pelos
nobres, que eram proprietarios de grandes allodios,
fazendo tambem conceses de terras com obriga-
ções identicas. Estas obrigações constitram a pro-
priedade beneficiai, qne se distingue da allodial por
os seus possuidores se encontrarem sejeitos a certos
serviços e vinculados por uma dependencia pessoal.
Chamava-se beneficial, porque era dada em beneficio
dos que a recebiam.
Além destas terras que se concediam aos nobres
e cavalleiros, havia outras que se davam aos colonos
— 424 —
para elles as cultivarem, em virtude da
necessidade de fomentar a povoação e a cultura.
Estas terras, que ficavam sujeitas ao pagamento
dum certo imposto ou renda, constituíam a
propriedade cen-sual. Distinguia-se da beneficial,
por esta se encontrar exempta de qualquer imposto
ou renda, como concedida a nobres e cavalleiros 1.
190. As presurias. Denominavam-se
presurias, como vimos, as terras adquiridas por
occupação. Essa occupação podia ter logar com ou
sem aucto-rização do soberano, que, em virtude da
anarchia que então dominava e das immensas
extensões de terrenos incultos e desertos que havia,
nem sempre podia fazer respeitar os seus direitos.
Desde o seculo vIII apparecem-nos frequentes
exemplos desta fórma da adquisição do dominio.
A presuria é o titulo que se allega em muitos actos
para fundamentar o direito de propriedade. Mas é,
como nota Gama Barros, sobretudo o povoamento
do territorio de Coimbra, depois da reconquista de
1064, que mais nos elucida sobre a adquisição de
terras por titulo de presuria. Em todos os exemplos,
que são muitos, se confirma que o principio geral
era ficar ao occupante e aos seus descendentes o
dominio do predio.
Na licea do rei para se occuparem por presuria
terrenos e desertos eram concedidos mais ou menos
privilegios, conforme a situação desses logares
inte-
1
Zumalcarregui, Ensayo sobre el origen y desarrollo de la
propriedad communal em Espana, pag. 60 e seg.; Chapado,
Historia general del derecho espanol, pàg. 294 e seg.; Cardenas,
Ensayo sobre la historia de la propriedad territorial en Espana,
tom. I, pag. 240 e seg.
— 425 —
ressava mais ou menos directamente á defesa do
territorio. É assim que, embora os presores se
pudessem considerar mais independentes do que os
que recebiam terras por mercê dos monarchas, se
encontravam entre as terras occupadas por pre-suria
algumas propriedades que dependiam mais on menos
directamente do rei.
A concessão de licença para a occupação por
presuria dependia de duas condições: o occupante
devia estar sujeito à obediencia do rei; não devia
alienar a terra no caso de querer ir viver noutra
parte, senão a vizinho do mesmo logar, sendo por
isso a residencia no predio condição essencial do
dominio. Nas doações que fizeram a igrejas os
proprietarios dos bens adquiridos por presuria o
mais frequentes os exemplos em que não apparece
a annuencia do delegado do rei, do que aquellas em
que ella está expressa 1.
101. Os reguengos. — Em Portugal a propriedade
individual apresenta differentes formas historicas.
Entre ellas devemos mencionar: os reguengos, as
jugarias, os coutos e honras, os morgados, as
capellas.
Os reguengos eram os bens da coa. Herculano
faz distincção entre reguengos e bens da corôa, con-
siderando reguengos os bens patrimoniaes do rei e
bens da corôa os bens do Estado. Esta distincção
não parece plauvel, desde o momento em que anti-
1 Cardenas, Ensayo sobre la historia de la propriedad terri-
torial en Espana, tom. I, pag. 181 e seg.; Sr. Gama Barros,
Historia da administração publica em Portugal, tom. II, pag. 11 e
seg.
— 426 —
gamente não se fazia distincção entre o patrimonio
do rei e o patrimonio do Estado.
Os reguengos constituiram-se principalmente á
custa da conquista. Alexandre Herculano pensa
doutro modo, pois, segundo elle, estes bens forma-
ram se em quatro classes de terras: 1.ª naquellas
em que havia colonias sarracenas e que ficaram sem
donos, em consequencia das guerras da reconquista;
2.ª nas terras fiscaes sarracenas, onde existissem;
3.ª nas que os particulares perdiam a favor do fisco
por crimes ou por qualquer outro motivo; 4.
a
nas
absorvidas pela corôa, pelo direito de maninhadego ou
maneira.
Esta opinião de Herculano foi ultimamente refutada
cabalmente pelo Sr. Alberto Sampaio. Eliminadas as
duas primeiras clssses de terras, diz elle, não exis-
tentes ao norte do Douro, restam as duas ultimas,
que de modo nenhum comprehenderiam a immensa
massa de bens, que a corôa possuia aqui ainda nos
primeiros reinados portuguêses, não obstante as
doões ás os largas durante os quatro seculos
anteriores; apesar dessa extrema liberalidade e de
usurpões sem numero, elles montavam tanto, no
principio da monarchia, que o Estado, sem exagero,
era o grande proprietario. Nas Inquirições vêem-se
apenas os restos dum patrimonio que fóra immenso;
mas por elles podemos facilmente recompôr o gigante
de outros tempos. Nem o pro judicato, isto é, as
terras perdidas para o fisco por effeito de actos cri-
minosos, nem a mafíeria, pela qual o rei herdava
do vilo sem filhos, se os bens deste não tinham
directo senhor particular bastam a explicar a
incorporação na coa dessa enormidade de immoveis.
Para se realizar tão extraordinario acontecimento
foi necessaria a applicação, não de excepções, mas
— 427 —
duma regra geral, e esta era a da incorporão na
corôa dos immoveis duma província conquistada, em
virtude do direito de guerra.
0 que caracterizava principalmente os predios de
similhante natureza era a indole das prestações
agrarias. O reguengo produz, em regra geral, para
o fisco, o uma canon certo, mas uma quota dos
fructos principaes, chamada porção ou ração (portio,
ratio), e ás vezes terdigo (terraticum), que con
siste na metade, no terço, no quarto, etc. Não raras
vezes, estas prestões convertem-se em renda certa,
mas isto è apenas um expediente fiscal, um meio de
simplificar a percepção dos direitos reaes.
Alem disso, os reguengos estavam ainda sujeitos
ás miunças ou direituras (directurae). As rações
recaiam especialmente sobre os cereaes, o vinho e o
linho, e ás vezes sobre os legumes ou outros produ-
ctos mais importantes; as direituras, sobre os pe-
quenos proventos da cultura, como os do pomar, do
horto, dos animaes domesticos, mas com especiali-
dade sobre a fruição da casa, onde o cultivador se
abrigava a si e aos seus gados. As miunças eram
um tanto em generos ou em moeda, não variavel
como as rações, e, do mesmo modo que ellas, paga-
vam-se geralmente nos casaes reguengos 1.
192. Jugarias. — As jugarias eram as terras
distribuídas pelos reis ao povo como patrimoniaes e
que estavam sujeitas a um tributo especial, denomi-
nado jugada. Chamam-se estas terras jugadeiras.
1
Alexandre Herculano, Opusculos, VI, pag. 207 e seg.;
Alexandre Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag. 353
e seg.; Sr. Alberto Sampaio, As villas do norte de Portugal,
pag. 99 e seg.
— 428 —
As Ordenões definem a jugada como um direito
real que os reis destes reinos antigamente ordena-
ram que lhes fosse pago em terras em que especial-
mente para si o reservaram, ao tempo em que aos
moradores e povoadores delias deram os seus foraes
(Ord., liv. II, tit. xxxIII, e alv. de 25 de maio de
1776).
A natureza da jugada mal se comprehende por
meio desta definição, que é adoptada por Silva Fero.
Sabe-se que a jugada é um direito real que incide
sobre certas terras, mas não se sabe em que consiste
este tributo. Ora, este tributo era constituído pela
quota parte que se pagava dos fructos (cereaes,
vinho e linho) que a terra lavrada por um jugo de
bois podia produzir. A regra parece que era, pelo
menos ao sul do Douro, pagar a jugaria, dos
cereaes um quantum fixo de pão terçado ou
quartado, e do vinho e linho uma quota incerta,
geralmente a decima parte.
Este tributo decaiu depois da sua primitiva sim-
plicidade. No novo foral, dado por D. Manuel ao
concelho de Ferreira de Aules, mencionam-se meias
jugadas, pagas pelos que tinham um só boi. quartos
de jugada, pagos pelos ceareios, isto é, indivíduos
que semeavam com bois alheios, e até alqueires da
medida corrente, pagos pelos caes, que lavravam
com enxada ou enxadão.
Mas, como nas instituições e nos costumes destes
tempos o ha nada de fixo e invariavel, não deve
admirar que as jogadas se encontrem muitas vezes
estabelecidas, sem attenção ao numero de arados
com que o agricultor fazia a lavoura. Apparecem
numerosos exemplos deste facto.
Herculano não considera as jogarias como repre-
sentando uma especie de propriedade á parte, que
— 429 —
inicialmente coexiste com o reguengo, movendo-se
numa orbita separada; mas considera-as como uma
nova fórmula do reguengo, fórmula trazida, tornada
necessaria, por um facto de ordem moral, o pro
gresso da liberdade popular combinado com as con
veniencias fiscaes. Ao passo que nos reguengos os
colonos se encontravam numa situação incerta, nas
jugarias adquiriam uma possessão hereditaria e pa
trimonial.
Herculano, porém, assenta a sua doutrina sobre a
idêa de que a conquista não concorreu para a for-
mação dos reguengos e das jugarias seo de um
modo accessorio e secundario. Ê sempre, diz elle,
o facto especial e secundario, convertido em funda-
mental e accessorio. Ora tal idéa é que não nos
parece muito exacta, como se deduz da critica da
opinião de Herculano feita pelo Sr. Alberto Sampaio
a respeito das origens dos reguengos.
Os reis reservavam para si uma parte das terras
conquistadas e distribuíam outras ao povo como
bens patrimoniaes. Eram estas terras que ficavam
sujeitas á jugada, constituindo as jugarias 1.
103. Contos e honras. — Além destas duas clas-
ses de terras, havia ainda as terras doadas pelos
reis aos nobres e que davam origem aos coutos e ás
honras.
A unica distincção que havia entre as terras dos
nobres e as dos populares consistia na immunidade
dos direitos fiscaes, pretendida por aquelles para si
1
Alexandre Herculano, Historia de Portugal, tom. III, pag.
364; Silva Ferrão, Repert. comment. sobre foraes e doações regias,
verb. jugadas.
— 430 —
e para os lavradores que as agricultavam, illegal
comtudo, se não havia o couto ou honra. vimos
em que consistem os coulos e as honras e por isso
não se torna necessario insistir sobre este
assumpto.
Os privilegios dos coutos e das honras eram rece-
bidos, com fundo agrado, pelo povo, que procurava,
por todos os modos, collocar-se sob o abrigo dum
poderoso para se livrar dos mordomos reaes. Sem
espontanea popularidade, teria sido verdadeiramente
impossível o alargamento destes privilegios, que
se fez por uma fórma tão rapida e caudalosa, que,
se a corôa, comprehendendo o perigo, se não
apressa a pôr-lhe um dique, muito antes de findar
a primeira dinastia teria perdido todos os bens ao
norte do Douro.
Os coutos e as honras costumavam ser
designados: per pendo nem Domini Regis, isto é pelo
pendão real que se alevantava num logar; per
cartam, pela carta que os concedia; per divisiones,
por marcos e balisas. O meio mais decisivo de os
designar era sem duvida a carta. Os nobres
tinham, como sabemos, juris-dicção nos coutos e
honras. Foi isto uma-consequência do movimento
historico que levou a attribuir á terra um caracter
politico e que triumphou soberanamente na Edade
Media 1.
194. Os morgados. — A influencia da nobreza
na organização da propriedade ainda se reflecte
nos
1
Salvioli, Manuale di storia del diritto italiano, pag. 369 e seg.;
Sr. Alberto Sampaio, As villas do norte de Portugal, pag. 136 e
seg.; Sr. Gama Barros, Historia da administração publica em
Portugal, tom. I, pag. 439 e seg.; Coelho da Rocha, Ensaio sobre a
historia do governo e da legislação de Portugal, pag. 72.
— 431 —
morgados, por meio dos quaes ella procurou perpe-
tuar o lustre das suas famílias. Os morgados eram,
como diz Mello Freire, bens deixados para perpetua-
mente se conservarem íntegros na falia,
deferindo-se, pela ordem da successão legitima, ao
primogenito mais proximo. É este sentido objectivo
do morgado, pois, além deste sentido, ainda ha o
sentido subjectivo, consistindo no direito de
succeder naquelles bens.
Nas Partidas, embora não se encontrem estabele-
cidos os morgados directamente, já apparece uma
lei, auctonzando os testadores a probibir os seus
herdeiros a alienação dos seus castellos e herdades,
sempre que allegassem uma razão competente. A
que apresentam as Partidas, como exemplo da
sua doutrina, parece-se muito com a instituição dos
morgados: como si dixesse (testador quiero que tal
gente. non sea enagenada... mas que fique siempre
a mi fijo o à mi heredero, porque sea siempre s
honrado é más temido (Part. v, tit. v, 1. 44). Não
tardou, porem, a constituir-se e a fixar-se, em
Castella, a nova instituição, que se encontrava
em germen nesta disposição.
De Castella passou para o nosso pais, sendo
conhecido no seculo xIv o morgado que D. Pedro I
permittiu instituir a Moysés Navarro, seu arrabir,
com a clausula de usar o appellido de Navarro.
Generalizou-se extraordinariamente a instituição, não
por causa da grande honra que se ligou á anti-
guidade das famílias, mas tambem por nada parecer
mais natural do que imitar os reis e adoptar o prin-
cipio do perpetuidade para a fundação e successão
das famílias. E porque era permittida, sem dis-
tincção de classe, a instituição de morgados, multi-
plicaram-se ao infinito, sob diferentes fórmas e
— 432 —
clausulas, em nos nobres e expressivas, noutros
ridículas e pueris.
Antes do reinado de D. Sebastião, não apparece
lei patria que regule esta instituição, visto nas
Ordenões Affonsinas não se encontrar menção dos
morgados, e nas Ordenações Mannelinas apenas se
fallar incidentemente delles no liv. II, tit. xxxv, §
48.º
Foi a lei de 15 de setembro de 1557 daquelle
infausto reinado a primeira que resolveu algumas
duvidas sobre a successão dos morgados, lei que,
junctamente com outras disposições extrahidas, pela
maior parte, das leis taurinas, passou depois para a
Ord. Filip. do liv. IV, tit. C.
Mas, o mal o desappareceu de todo, porque,
apesar da Ordenão citada no § 5.° reconhecer que
o fim da instituição dos morgados é a conservação
e memoria do nome dos grandes fidalgos e pessoas
nobres do reino, não restringiu a faculdade de os
instituir, nem emquanto ás pessoas, nem emquanto
aos bens, permittindo, além disso, aos instituidores
alterar completamente a ordem da successão. Fica-
ram dominando os inconvenientes da continuação e
multiplicação excessiva de amortizações, em prejuízo
da economia do Estado, aggravados com as dificul-
dades que tal artigo de legislação veio trazer â
jurisprudencia pela variedade de clausulas inseridas
na instituição.
Os praxistas, como Cabedo, Valasco e Pegas,
procuraram resolver estas difficuldades, ao mesmo
tempo que julgaram dignos de favor os morgados,
o porque realizavam a accumulão da riqueza
nas famílias, que era para elles um elemento de
prosperidade, mas tambem porque sustentavam e
facilitavam a nobreza, na opinião dos mesmos, cre-
— 433 —
dora de especiaes atlenções e privilegios. O mesmo
acontecia no estrangeiro e especialmente em Hespa-
nha, onde o celebre Molina fazia largas considerações
para demonstrar como e porque o primogenito
excede os outros successores.
Mas a propria multiplicação e diffusão dos morga-
dos devia demonstrar claramente quantos inconve-
nientes e perigos derivavam desta instituição e quão
prejudicial ella era para os interesses publicos e
privados. Não era justo que, por causa dum dos
membros da família, fossem despojados os outros do
que lhes devia pertencer, fundando-se sobre a miseria
o lastre da nobreza, representada pelo primogenito.
A economia publica era gravemente prejudicada pela
grande massa de bens subtrabida á livre disposão,
e possuída em condições de se não poder obter
facilmente o capital necessario para a valorizar.
Com a decadencia a que tinha chegado a nobreza
no seculo xvIII e com a defesa que muitos escripto-
res distinctos fizeram então da divisão da propriedade,
como vantajosa para a sociedade, accentuou-se a
antipathia por esta instituição. Foi, por isso, que o
Marquês de Pombal procurou reorganizar os mor-
gados, de modo a fazer attenuar alguns dos seus
inconvenientes.
Começou por abolir os nculos insignificantes
com a lei de 9 de setembro de 1769. No anno
seguinte, publicou a lei de 3 de agosto de 1770,
pela qual reformou radicalmente os morgados, decla-
rando-os injustos e anti-economicos e apenas tolera-
dos para sustentação da nobreza, indispensavel nas
monarchias. Cohibiu as instituições, o as permit-
tindo seo em bens de mui avultado valor e a favor
das pessoas de distincta nobreza ou benemeritas da
nação. Sujeitou-os á regia confirmão, estabeleceu
— 434 —
regras certas e inalteraveis para a successão, e
providenciou de novo no alv. de 23 de maio de 1773
sobre a sua abolição ou reversão á corôa.
O espirito restrictivo destas reformas continuou
na legislação posterior, principalmente nos diferen-
tes assentos da Casa da Supplicação, em que se
resolveram as duvidas que levantou a intelligencia
ou applicação da lei de 3 de agosto. E é a esta
orientação que obedece o grande Mello Freire, embora
elle não se occupe das queses commummente deba-
tidas sobre a justa, equidade e conveniencia dos
morgados.
O regimen constitucional, com as idèas de liber
dade e egualdade dos cidadãos perante a lei, veio
augmentar a desconsideração que ja havia por esta
instituição. Em harmonia com estas idèas, appareceu
o decreto de 4 de abril de 1852, facilitando a extin-
cção dos morgados pouco rendosos e removendo as
dificuldades dos aforamentos e dos outros meios de
cultura dos bens vinculados, que, antes eram diffi-
ceis, por dependerem da licença do Desembargo
do Po. ,
A evolução, porém, não ficou por aqui, visto os
morgados serem cada vez mais considerados como
inteiramente injustificaveis, sob o ponto de vista
economico e jurídico, apesar da camara dos pares
de então, com o seu caracter hereditario, parecer
exigil-os como elementos indispensaveis á sua con-
servação. Mas a instituição linha feito o seu tempo
e nada podia impedir que o movimento das idêas
produzisse os seus resultados. Appareceu, por isso,
a lei de 19 de maio de 1863, que aboliu todos os
morgados existentes no continente do reino, ilhas
adjacentes e provindas ultramarinas, conservando-se,
porém, o apanagio do príncipe real, successor á
— 435 —
coa, constituído em bens da casa de Bragança pela
carta patente de 27 de outubro de 1645.
E assim foram satisfeitos os votos daquelles que
tinham pugnado peia abolição desta instituição e,
nomeadamente de Herculano, que considerava o
vinculo a negação permanente duma das condições
da propriedade, visto o domínio não se encontrar
actualmente em parte nenhuma. Ficou chumbado na
campa dum tumulo: o tumulo retem-no até o fim
das gerações. O morto desmentiu o direito dos
vivos 1.
195. Capellas. Os morgados, abrangendo dis-
posições para além da morte, não podiam deixar de
receber a influencia do espirito religioso, em epocas
em que o clero a tudo procurava dar um caracter
ecclesiastico. É por isso que a instituição dos mor-
gados foi acompanhada de legados pios, sendo até
estes posteriormente impostos pelas leis, como
encargos necessarios.
Muitas vezes, porém, esses legados tornaram-se a
parte preponderante, derivando dahi a distincção
entre morgados e capellas. E, como os bens ficavam
inalienaveis, tanto num caso como noutro, adopta-
1
Cardenas Ensayo sobre la historia de la propriedad terri-
torial em Espana, tom. II, pag. 129 e seg.; Mello Freire, Institu-
tiones juris civiles lusitani, tom. III, pag. 134 e seg.; Coelho da
Rocha, Instituições de direito civil, tom II, pag. 700 e seg.; Liz
Teixeira, Curto de direito civil português, part. II, pag. 8 e seg.;
Herculano, Os vínculos, nos Opusculos, vol. IV, pag. 29 e seg.;
Ascárate, Ensayo sobre la historia del derecho de propriedad,
tom. II, pag. 235 e seg.; Salvioli, Manuale di storia del diritto
italiano, pag. 515 e seg.; Nani, Storia del diritto privato italiano,
pag. 595.
— 436 —
ram-se as expressões de vinculo, bens vinculados
para os designar.
Os nculos são os bens que devem andar perpe-
tuamente annexos a ama família, por uma fórma
especial de successão, sem poderem ser divididos
nem alienados. Os vínculos podiam ser morgados
ou capellas. A capella era constituída pelos bens
deixados com sujeição a encargos pios e sob prohi-
bão perpetua de se alienarem, cujo successor ou
effectivo administrador percebe uma porção certa e
determinada de rendimentos em retribuição do tra-
balho. Este é o sentido objectivo da capella, pois
além desse, ainda havia o sentido subjectivo consti-
tuído pelo direito de succeder naquelles bens.
A Ord. (liv. I, tit. LXII, § 53.°) declara expressa-
mente haver capella se os bens vinculados estão
sujeitos a missas ou outros encargos pios, assignan-
do-se porção certa ou quota determinada nos rendi-
mentos; quando deixados estes ao administrador
indistintamente, ou sem porção determinada e fixa,
ainda que onerados com taes encargos, constituíam
aquelles em morgado. A ordem de successão na
capella era a mesma porque se deferia o morgado
(Ord., liv. I, tit. LXII, § 53.º), sendo chamado um
unico successor para se perpetuar na família o
direito com os encargos.
Se o morgado se desinvolveu como meio de obter
a manutenção da nobreza, a capella floresceu como
meio de realizar a salvação eterna. Sendo este o
fim das capellas, não admira que em epochas de
profundo fervor religioso, apoiado pela influencia e
interesses do clero, ellas adquirissem uma notavel
importancia. Effectivamente, a instituão das capel-
las e os legados pios multiplicaram-se de tal modo,
que a lei de 19 de setembro de 1769 declarava que,
— 437 —
se se houvessem de cumprir todos os que se
acbavam registados nas provedorias, o chegaria
para isso o rendimento de todas as propriedades
do reino; ainda que todos os indivíduos de um e
outro sexo fossem presbyteros, apenas bastariam
para dizer o infinito numero de missas annuaes que
dos mesmos constavam; e poder-se-hia avançar
com exactidão que as almas do purgatorio eram
as senhoras de todos os bens do reino.
Para reformar um tal abuso, esta lei estabeleceu
muitas restricções á faculdade de deixar legados
pios, de beneficiar as igrejas e mosteiros e de
instituir capellas; e promoveu a abolição destas,
assim como em certos casos a reducção dos
encargos. Mas, as capellas não podiam, de modo
algum, resistir á evolução da propriedade no
sentido da liberdade, pois tinham todos os
inconvenientes, para a economia do Estado, dos
morgados, aggravados pelo destino profundamente
esteril a quem eram votados os bens vinculados.
Não admira, por isso, que a mesma lei de 19 de
maio de 1863, que aboliu os morgados, abolisse
tambem as capellas, realizando assim a
desvinculação completa da nossa propriedade 1.
196. Lei das sesmarias. A propriedade soffreu
algumas restricções em beneficio da agricultura.
Entre essas restricções avulta a da lei das sesmarias
do tempo de D. Fernando, dada em côrtes e publi-
cada em Santarem em 1375. Segundo Viterbo, a
designação desta lei provém da quota ou quinhão
1
Coelho da Rocha, Instituições de direito civil, tom. II, pag.
411 e seg.; Liz Teixeira, Curto de direito civil português, tom. II,
pag. 66; Mello Freire, Instituciones juris civilis lusitani, vol. III,
pag. 151.
— 438 —
de fructos que o agricultor das terras incultas era
obrigado a pagar ao proprietario, que consistia na
sexta parte, ou de seis um. Mas, se compararmos
a etymologia com as disposões da lei, não encon-
tramos que esta preceituasse escala para regular a
pensão que o agricultor devia pagar ao senhorio;
antes pelo contrario deixou a estipulação do pro á
liberdade dos contractantes e ao arbítrio de louva-
dos, quando era necessario recorrer a elles.
As principaes disposições da lei das sesmarias são
as seguintes:
a) Todos os senhores de bens prediaes aptos para
sementeiras de pão o obrigados a cultivá-los, por
sua conta ou a transmit-los por emphyteuse ou
arrendamento a lavradores que os cultivem, mediante
o pagamento doma pensão que entre si ajustem, ou
que na falta de accordo lhes seja arbitrada pela
justiça ou pelos louvados;
b) No caso dos proprietarios resistirem ao cum-
primento da lei, as justiças locaes devem-lhes tirar
as terras incultas e entregá-las a quem as queira
agricultar pela renda e tempo ajustado entre o culti-
vador e a justiça, sem que o proprietario possa
reclamar a entrega do predio, emquanto não finde o
tempo do arrendamento. O producto da renda era
applicado para o bem commum do respectivo conce-
lho; mas as municipalidades não podiam empregar
a importancia destas rendas sem ordem expressa de
governo;
c) Em todas as cidades e villas, havia de ser
creada uma commissão ou junta, composta de dom
homem bom dos melhores cidadãos, constituídos em
auctoridade, para inspeccionar as terras capazes de
dar o e para obrigar os donos a cultivá-las pelo
modo já dicto; mas, se os vogaes desta janta, não
— 439 —
concordassem na pensão que o inquilino devia pagar
pela renda do predio, cumpria ao juiz da localidade
a nomeação de um terceiro louvado para desempate.
Aos vogaes desta junta deu-se depois a denominão
de sesmeiros e de repartidores. Esta escolha que
pertencia ás justiças da localidade, não obstava á
nomeão extraordinaria de algum sesmeiro pelo
governo;
d) Os proprietarios que o fossem lavradores
não podiam ter a posse de manadas de gado, devendo
as justiças da localidade taxar o pro pelo qual se
deviam vender os animaes indispensaveis á lavoura
aos lavradores, que se encarregavam de cultivar as
terras abandonadas, caso os não tivessem para esse
trabalho;
e) Os vadios, os mendigos e outros ociosos deviam
ser presos e obrigados a trabalhar na lavoura. A
mendicidade unicamente se permittia quando
auctorizada por um alva, que mente se concedia
ás pessoas que fossem tão fracas, velhas e doentes,
que não pudessem applicar-se a trabalho algum, e
ás pessoas envergonhadas que,- tendo sido reduzidas
á penuria por effeito de alguma adversidade, morre-
riam á mingua, a o se lhes conceder licença para
mendigar. Do mesmo modo, se alguem fosse encon-
trado com habito de ordem religiosa o approvada,
ou, sendo-o, não tendo professado nella, deviam as
auctoridades obrigar o transfigurado aos trabalhos
agrícolas.
A lei das sesmarias passou para as Ordenações
Affonsinas, liv. IV, tit. LXXXI, § 1, com algumas
pequenas modificações, principalmente no que dizia
respeito ao poder dos sesmeiros, e ao modo como
se deviam tirar a seus donos os predios que elles
não cultivassem.
— 440 —
Nas Ordenações Manuelinas (Liv. IV,
tit.,LXVII) e nas Ordenações Filippinas (Liv. IV,
tit. LXVIII), a lei das sesmarias passon por
grandes transformações. Os sesmeiros, que ao
principio eram electivos nos concelhos, passaram a
ser de nomeação regia. O prazo dos annos por que
as terras deviam andar de sesmaria, que, segundo a
Ordenação Affonsina, era convencional, foi fixado
no maximo de cinco annos. Foi abolida a pena da
perda das terras de sesmarias applicada aos
proprietarios qne resistissem às deliberações das
jontas dos sesmeiros, ou áquelles qne, passado um
anno, depois da intimação, as não cultivassem. Foi
tambem abolida a renda que o cultivador tinha de
pagar pelas terras de sesmaria, applicada para os
municípios. Fizeram-se tambem varias excepções á
lei de D. Fernando, qne tinha um caracter
absoluto. Entre essas excepções, havia a de se não
concederem por sesmaria as mattas, pousios,
ribeiras, etc, que servissem para logradouros dos
povos ou das quintas e de quaesquer
estabelecimentos, porque esses terrenos adjacentes,
supposto incultos, eram dos proprietarios desses
estabelecimentos.'
Os princípios estabelecidos nesta legislação tnr-
nam-se confusos e incoherentes na evolução
jurídica posterior, em virtude da transformação
lenta do typo da sesmaria no typo emphyteutico.
Antiquou-se o vocabulo, desapparecendo o
preceito vital da lei das sesmarias, de obrigar os
grandes proprietarios negligentes á cultura das suas
terras, e encontran-do-se unicamente a idêa da
transmissão voluntaria por meio da emphyteuse.
A lei das sesmarias não deu os resultados qne se
esperavam relativamente á agricultura, porque, como
observa Oliveira Martins, as medidas
coercitivas,
— 444 —
quando querem contrariar os effeitos, sem curar das
causas e tendencias, o estereis. Esta lei o pro-
curava corrigir as causas da despovoão e abandono
das terras, limitava-se a prohibi-lo 1.
197. Lei da avoenga. — No sentido de promover
o desinvolvimento da agricultura tambem appareceu
a lei da avoenga, qne dava aos descendentes ou
parentes proximos o direito de preferencia no caso
de alienação ou venda dos bens hereditarios da
família e até o direito de retrair ou remir dentro
de certo prazo.
A lei da avoenga começou por apresentar uma
fórma muito radical. Effectivamente, D. Affonso II
determinou que se não vendesse ou empenhasse
fazenda de raiz que viesse por avoenga, senão a
irmão ou ao parente mais chegado. Isto, porem,
por ser contra direito, nunca se usou. D. Affonso IV
reduziu a escripto a lei da avoenga, que até seu
tempo se praticou, e D. Affonso V mandou que se
guardasse esta lei. É a esta fórma da avoenga, que
se refere a noção que demos (Ord. Aff., liv. IV,
tit. xxxvII e xxxvIII).
A lei da avoenga contribuiu para o desinvolvimento
da agricultura, visto associar a perpetuidade dos
bens com a das famílias.
1
Coelho da Rocha, Ensaio sobre a historia do governo e da
legislação de Portugal, pag. 81; Pereira Coutinho, Algumas
reflexões acerca do decreto de 13 de agosto de 1832, da carta de
lei de 22 de junho de 1846, e do Reportorio sobre foraes e doa-
ções regias de Silva Ferrão, na Revista de Legislação e de Juris-
prudencia, tom. VII, pag. 449 e seg., tom. VIII, pag. 129 e seg.,
241 e seg., 337 e seg.; Oliveira Martins, Projecto de lei de
fomento rural, pag. 42; Sr. Anselmo de Andrade, Portugal
economico, pag. 131.
— 442 —
Oliveira Martins faz derivar da lei da avoenga os
morgados, que elle considera como a transformação
num typo mais definido daquella instituição. Parece-
nos, porém, que nada têem de commum os morgados
com a avoenga. Aquelles herdam se
gratuitamente, e para adquirir os bens da avoenga,
com preferencia a estranhos, era preciso pagá-los
1.
198. NOTO caracter jurídico assumido pela pro-
priedade individual nos codigos modernos. Com o
florescimento do direito romano, o conceito da pro
priedade deste direito generalizou-se. Manifestou-se,
porém, a tendencia nos jurisconsultos para
intender o jus abutendi, que comprehendia a
propriedade segundo o direito romano, por uma
fórma absoluta no sentido do proprietario poder
abusar da cousa.
Foi com Bartolo que se aflirmou este caracter tão
illimitado da propriedade. Os seus successores con-
tinuaram com esta orientação, intendendo uns a
propriedade no sentido do direito de abuso sem
utilidade (Ancarano, Giasone), e outros no sentido
da faculdade de abuso enorme (Zasio).
O direito canonico procurou reagir contra esta
tendencia, mas debalde. Effectivamente, a doutrina
que se encontra consagrada pelo direito canonico
é de que o proprietario se deve considerar um
simples administrador dos seus bens, visto a terra
pertencer a Deus com tudo o que encerra.
0 exagero da doutrina romana não deixou de
ter
a sua influencia entre nós, visto alguns praxistas
1
Coelho da Rocha, Ensaio sobre a historia do governo e da
legislação de Portugal, pag. 82; Santa Rosa de Viterbo, Eluci
dario, verb. avoenga; Oliveira Martins, Projecto de lei de fomento
rural, pag. 40.
— 443 —
intenderem o jus abutendi no sentido do proprietario
ter o direito de abusar da sua cousa e dissi-la,
emquanto dabi não resulte damno para o Estado.
Certo é, porém, que a legislão não auctorizava tal
doutrina, visto ella reprimir até a prodigalidade.
As leis modernas, a partir do codigo civil francês,
abandonaram esta tradão e consideraram offensivo
para o elemento social, que nunca devia deixar de
acompanhar a propriedade, a destruição improdu-
ctiva da cousa 1.
Salvioli, Storia del diritto italiano, pag. 380; Borges Car-
neiro, Direito Civil de Portugal, vol. IV, pag. 38.
CAPITULO V
POSSE
SUMMÀRIO : 199. DifferenciSo da posse da propriedade.
200. Conceito romano da posse. 201. Fundamento da
sua proteão segundo o direito romano. 202. Os
interdictos possessorios. 203. A gewere germanica.
204. A posse entre os wisigodos. — 205. A posse na
Reconquista. — 200. Theoria canonica da posse.—207. A
posse no direito português.
199. Differenciação da posse da propriedade.
Houve um tempo, até onde não chegam noticias
seguras, em que a propriedade e a posse se
encontravam confundidas entre os romanos.
Depois distin-guiram-se estes instinctos,
pertencendo até aos jurisconsultos romanos a
gloria de ter creado a theoria da posse.
Mas, como se desinvolveu a idêa da posse no
direito romano? É esta uma das investigações
historicas mais arduas e difficeis, em virtude da
deficiencia dos monumentos juridicos dos
primeiros tempos de Roma, sendo certo que
todos os institutos, e nomeadamente a posse,
experimentaram notaveis alterações ao entrar na
compilação justinianea. rias são as theorias
que lêem sido imaginadas para explicar a
differenciação da posse da propriedade no direito
romano.
Segundo Vico, a posse desinvolveu-se em
Roma como uma consequencia do direito de
clientella. Os patrícios faziam concessões de
terrenos aos seus clientes, conferindo-lhes a
posse e reservando a
— 446 —
propriedade. Os clientes, o podendo defender a
terra como proprietarios, defendiam-na como possui-
dores. E a protecção primeiramente concedida uni-
camente às terras, acabou por se extender lambem
a todas as outras cousas.
Esta explicação é pouco plausível, pois a institui-
ção da posse não nos apparece em Roma limitada
aos clientes, mesmo nas suas origens.
Segundo Molitor, a posse teve por origem a pro-
priedade bonilaria, cuja condição era muito inferior
a quiritaria. A propriedade bonitaria, consistindo
num simples goso da cousa, não podia aspirar á
proteão concedida â quiritaria, tornando-se neces-
sario imaginar uma protecção jurídica especial para
a o deixar sem defesa. Dahi derivou a origem dos
interdictos possessorios e da posse.
Esta opinião não tem grande fundamento, pois o
explica a razão por que a proteão da propriedade
bonitaria se obtinha por meios differentes da prote-
cção possessoria. Accresce que a propriedade boni-
taria linha caracteres diversos da posse, pois involvia
a adquisição da cousa por um meio pretorio ou
natural.
Segundo Duroi, seguido por Wangeraw, Blandeau,
Puchta e Schiter, a posse, como instituto jurídico,
deriva do antigo uso das vindiciae, que substituíram
o processo ainda mais antigo das manus concertae,
e que consistiam em certas formalidades preparato-
rias do antigo juízo de reivindicação. Por meio
delias, o pretor assignava preliminarmente e mediante
caão, durante a acção, a posse da cousa contro-
vertida a uma das partes, com a obrigação de a
restituir, se fosse vencida. Neste caso, a posse linha
existencia autonoma, em face do direito de proprie-
dade contestado e incerto. É desta posição jurídica
— 447 —
creada pelo pretor, que derivaram os interdiclos
possessorios, que deste modo o o mais do que
um progressivo e gradual aperfeoamento das vin-
diciae.
Esta opinião tambem não parece justificada, pois
não consegue explicar a origem de alguns interdictos
possessorios, como o de vi, o de precario, e o de
clandestina possessione, que não apresentam relão
alguma com o processo vindicatorio. É certo que
ella se funda em algumas passagens de Ulpiano e
de Gaio; mas estas passagens não se propõem
explicar a origem historica da defesa possessoria,
mas esclarecer simplesmente o seu espirito.
Segundo Huschkte, a differenciação da posse da
propriedade prende-se intimamente com o dualismo
entre patrícios e plebeus, que domina todas as insti-
tuições civis e politicas nas origens da sociedade
romana. A posse, que seria o facto, era concedida
aos plebeus, e a propriedade, que seria o direito,
era concedida aos patcios. Os primeiros tiveram,
para proteger a sua posão, os interdictos, os
segundos as acções judiciarias.
Esta doutrina, porém, não se conforma bem com
a evolução jurídica, que se accentuou no sentido da
differenciação, cada vez mais precisa e tida dos
dous institutos da posse e da propriedade, quando a
separação entre plebeus e patrícios evolucionou
historicamente no sentido do seu desapparecimento.
Se a posse era uma instituição propria dos ple-
bleus, por elles não terem a propriedade, como é
que ella continou a subsistir, apesar de se ter
dado a equiparação entre estas duas classes so-
ciaes ?
Segundo Niebuhr e Savigny, seguidos por Carie,
Hölder e Scillama, a posse derivou da protecção juri-
— 448 —
dica conferida aos concessionarios do ager publicus.
O ager publicus era cedido aos particulares, para
que estes o usufrssem, mediante o pagamento dum
tributo, ou como recompensa de serviços prestados
á patria. A propriedade das concessões feitas aos
particulares pertencia ao Estado, que as podia
revogar, quando muito bem o intendesse. Por isso,
os concessionarios do ager publicus não podiam usar
das acções judiciarias inberentes ao domínio, não
obstante terem o direito de usufruir os terrenos que
lhes tinham sido cedidos. Dahi a necessidade de
estabelecer um processo especial para garantir a
estes concessionarios o pacifico usufructo do ager
publicus. Foi o que fizeram os interdictos posses-
sorios. Deste modo, a distincção entre a proprie-
dade e a posse deriva da distincção entre o ager
publicus e o ager privatus, pertencendo o primeiro
ao Estado e o segundo aos particulares. E a palavra
posse, originariamente inventada para designar a
posição jurídica do particular que usufruía uma
parte de terra propriedade do Estado, acabou por
se extender e applicar a todas as concessões ou
posições que não transferiam ou continham a pro-
priedade, mas unicamente o uso.
Esta doutrina, embora engenhosamente archile-
ctada, origina grande numero de dificuldades, que
foram postas em evidencia por Von lhering. Effecti-
vamente, nas fontos nunca se falia de interdictos
possessorios para o ager publicus, sendo até a posse
deste defendida por um interdicto especial de loco
publico fruendi. Ora, se para a tutella das conces-
sões do ager publicus existia um interdicto proprio
e particular, que necessidade havia de introduzir a
possessio e os respectivos tnterdicta para proteger
aquellas concessões?
— 449 —
Von Ihering afastou-se de todas estas doutrinas
sobre a origem da posse e apresentou uma nova,
que DOS parece constituir a doutrina mais admissível
sobre este assumpto. Segundo o notavel romanista
allemão, a protecção possessoria appareceu no
direito romano como meio de facilitar e alliviar a
proteão da propriedade. Em vez da prova da
propriedade, que o proprietario devia offerecer,
quando reclama a cousa do poder de terceiro (rei
vindicatio), basta a prova da posse, que é muito
mais simples do que a da propriedade, que muitas
vezes a é impossível, principalmente quando se
trata de moveis. A acção possessoria mostra-nos
a propriedade na defensiva e a reivindicação na
offensiva 1.
200. Conceito romano da posse. Os primeiros
vestígios da posse encontram-se na lei das XII Taboas
sob o nome de usus, não se tendo ainda introduzido
para designar esta situação jurídica a expressão
technica de possessio. A posse era considerada como
mera posição de facto, como simples uso da cousa
de outrem. Esta posição de facto transforma-se
numa posição jurídica, em virtude do direito pre-
torio, que lhe concede uma protecção distincta da
proteão da propriedade, por meio dos interdictos.
E assim a posse adquire o verdadeiro e proprio
organismo de instituto juridico.
1
Miraglia, Filosofia del diritto, tom. I, pag. 428 e seg.; Von
Ihering, Questiones jurídicas (traducção de Pousada ), pag. 105 e
seg.; Scillama, Sistema generale del possesso, tom. I, pag. 101 e
seg.; Carle, Origine del diritto romano, pag. 454 e seg.; Savigny,
Traité de la possession en droit romain, pag. 177 e seg.; Hölder,
Instituzione di dirito romano, pag. 157 e seg.
29
— 450 —
Os jurisconsultos da epocha classica não fizeram
mais do que coordenar, integrar e desinvolver os
princípios da posse que se encontravam no systema
do direito pretorio. A posse, em harmonia com a
orientão dos jurisconsultos romanos, era o poder
physico sobre uma causa com a intenção de estar com
ella numa relação directa e independente. Dabi dons
elementos da posse: corpus, o poder physico sobre
uma cousa; animus, a intenção de estar em relação
immediata e independente com ella.
É vulgar referir o animus ao domínio, conside-
rando-o como a intenção de o individuo se com-
portar como proprietario. Ora, não ha texto nenhum
legal que permitia esta restricção, visto nos monu-
mentos juridicos romanos nunca se fatiar do animus
domini. Segundo Von Ihering, seguido por um
grande numero de escriptores modernos, tracta-se
unicamente da inteão de possuir animus pos-
sedendi.
A protecção dos interdictos não se applicava senão
is cousas sobre que se podia exercer um poder
physico. É por isso que as cousas incorporaes o
podiam ser objecto de posse. E, dum modo geral,
não podia dar-se a posse sobre as cousas que não
eram susceptíveis de propriedade.
Parece que as pessoas incapazes de querer o
deveriam ser capazes de possuir, em virtude da falta
do animus. O direito romano, porém, admittiu que
as pessoas incapazes de querer pudessem adquirir a
posse pelos seus representantes, desde o momento
em que fossem suscepveis de propriedade, como as
pessoas jurídicas, os dementes, etc. As pessoas
incapazes de ter propriedade, como os filhos de
família no direito antigo, tambem eram incapazes
de possuir.
— 451 —
Para existir o corpus, o era necessario o conta-
cto com a cousa, bastando que a cousa se encon-
trasse numa tal relação com a pessoa, que esta
gosasse da possibilidade immediata e actual de dispôr
della.
O animus podia resultar duma declaração expressa
ou de outros actos e podia existir no proprio mo-
mento em que se adquiria o poder physico sobre a
cousa ou sobrevir depois.
Como a existencia da posse exigia dous elementos,
um subjectivo o outro objectivo, comprehende-se
facilmente que ella viesse a perder-se, desde o mo-
mento, em que desapparecesse algum delles. É
certo que, segundo uma doutrina, derivada dum texto
de Paulo, a posse não se perdia no direito romano
pelo desapparecimento do animus e do corpus, mas
por um animus e um corpus contrario. A formula
de Paulo o se encontra em nenhum outro auctor,
sendo, por isso, mais provavel o systema que admitte
a existencia da posse, emquanto algum dos seus
elementos não cessa.
0 conceito romano da posse obscurece-se um pouco
na epocha justinianea, que accusa, sem duvida, uma
decadencia do direito romano. Apparece, por isso,
a idêa de posse confundida com uma situação mate
rial, esqnecendo-se os principios que a respeito deste
instituto tinham ensinado os jurisconsultos classicos.
Tanto é verdade que as epocas de infancia e velhice
da vida jurídica dos povos se assimilham nos seus
resultados 1.
1
Scillama, Sistema generale del possesso, tom. I, pag. 110 e
seg.; Serafim, lnstituzioni di diritto romano, tom. I, pag. 283 e
seg.; Brugi, Instituzioni di diritto privato giustinianeo, part. I,
pag. 230 e seg.; Bonfante, Instituzioni di diritlo romano,
pag. 247 e seg.
— 452 —
201. Fundamento da protecção da posse
segundo o direito romano. —O fundamento racional
da posse, no systema do direito romano, tem dado
origem a duas theorias muito interessantes, a de
Savigny e a de Ihering.
Segundo Savigny, a protecção da posse foi esta-
belecida no interesse da manutenção da paz e da
ordem publica, a fim de evitar que os indivíduos
fizessem justiça por suas proprias mãos. Aquelle
que perturba a posse doutrem, querendo recuperar
a sua cousa sem julgamento, commette contra o pos-
suidor um delicio, que os interdictos procuram
reprimir. A protecção da posse nada tem com a
propriedade, refere-se unica e exclusivamente à pro-
pria posse, considerada em si mesma. Não tem por
fim a conservação dum direito real ou appa rente
sobre as cousas, mas a punão duma offensa feita á
pessoa do possuidor. Todos os interdictos suppõem
uma acção que, pela sua fórma, constituo uma
injustiça.
A doutrina de Savigny, apesar de parecer de uma
notoria evidencia, não se harmoniza com o caracter
que revestia a protecção possessoria no direito ro-
mano. Se os interdictos possessorios assentassem
sobre a idéa da manutenção da paz e da ordem
publica, eno deveriam extender-se tambem aos
possuidores naturaes, em que o ha intenção de
ter a «ousa para si, e aos que são incapazes de
possuir. Porventura, a ordem social é menos per-
turbada, quando se tracta da espoliação do simples
detentor duma cousa, do qne quando se tracta da
espoliação do verdadeiro possuidor delia? Não è
perfeitamente indifferente, sob o ponto de vista
em
— 453 —
que se colloca Savigny, que se tracte de capazes ou
de incapazes de possuir, desde o momento era que
a violencia, é sempre violencia, qualquer que seja a
pessoa contra quem ella é commetlida ?
A offensa da relação possessoria nada tem com a
personalidade. Não se diga que altentar contra a
relação possessoria em que se realizou e de certo
modo incorporou a personalidade é attentar contra
a propria personalidade. Esta considerão de
julgar-se exacta sob o aspecto da phliosophia do
direito, mas é inteiramente estranha ao direito ro-
mano. De contrario, os filhos de falia, por exem-
plo, deveriam poder reclamar a protecção possessoria,
visto serem tambem pessoas.
Segundo Von Ihering, a proteão possessoria foi
estabelecida no interesse dos proprietarios, a fim de
os dispensar da prova difficil da propriedade, todas
as vezes que a cousa tivesse sdo para ra do seu
poder. Em geral, o proprietario é ao mesmo tempo
possuidor e por isso a proteão da propriedade
assegura-se e reforça-se com a protecção possessoria.
A prova da propriedade é difficil e em muitos casos
quasi imposvel, e por isso a acção de reivindicação
não é sufficiente para garantir os direitos do proprie-
tario. Deste modo, a protecção possessoria apparece
como um complemento indispensavel da propriedade,
isto é, como uma facilidade para proteger a pro-
priedade.
E tanto esta ia explica o mecanismo da prote-
cção possessoria no direito romano, que, quando não
de conceber-se á propriedade, tambem não de
haver a protecção possessoria. É por isso que a
proteão possessoria não póde ter logar, quando se
tracta de pessoas que o o capazes de proprie-
dade ou de cousas que não podem ser objecto de
— 454 —
propriedade. A posse apresenta-se como a exterio-
rizão da propriedade, e por isso a sua protecção
unicamente é admissível quando se verifica a pre-
sumpção da propriedade.
Se para ser protegido como possuidor basta
demonstrar a posse, a consequencia logica é de que
a protecção possessoria de tambem aproveitar ao
o proprietario, beneficiando assim um individuo
para quem ella não foi estabelecida. Esta conse-
quencia é absolutamente inevitavel, tendo o direito
de a acceitar, a fim de alcançar a protecção da pro-
priedade. Para afastar tal consequencia, seria neces-
sario abrir a porta á questão do direito, com todos
os inconvenientes que dahi poderiam advir para os
proprietarios. É até esta uma das grandes vantagens
da protecção possessoria, que se realiza sem ser
necessario allegar ou provar o direito 1.
202. Interdictos possessorios. Exposto o fun-
damento racionai da proteão possessoria, no direito
romano vejamos agora como ella se realizava neste
direito. A protecção possessoria realizava-se no
direito romano por meio dos interdictos possessorios.
Os interdictos possessorios o acções introdu-
zidas pelo pretor para repellir os attentados arbi-
trarios commettidos contra a posse. Os interdictos
possessorios eram de duas categorias interdicta
retinendae possessionis e interdicta recuperandae
possessionis. A estes interdictos encontram-se coor-
denados nas Institutas os interdicta adipiscendae
1
Cimbali, Del possesso per acquistare é fruti, pag. 22 e seg.;
Von Ihering, Questiones jurídicas, pag. 104 e seg.; Savigny,
Traité de la possession en droit romain, pag. 69 e seg.; Girard,
Manuel élémentaire de droit romain, pag. 259 e seg.
— 455 —
possessionis, que, como não servem para tutelar a
posse, mas para adquirir uma posse ainda não
tida, não se podem considerar verdadeiras e
proprias acções possessorias.
Os interdictae retinendae possessionis são
concedidos ao possuidor que é perturbado na sua
posse. A. posse diz-se perturbada, quando a
vontade dum terceiro se põe em contraste com a
vontade do possuidor, quer esse terceiro exerça o
seu poder sobre a cousa, quer impeça o possuidor
de exercer o proprio.
No direito romano, os inlerdicla relinendae
possessionis eram dois: o interdictum uti
possidetis, para as cousas immoveis, e o
interdictum utrubi, para as cousas moveis,
correspondendo os seus nomes ás primeiras
palavras de cada interdicto. No interdicto uti
possidetis vencia aquelle que, no momento de ser
pronunciada a ordem do magistrado, possuia nec
vi, nec clam, nec precario. No interdicto utrubi
não se attendia á posse presente, vencendo por
isso aquelle que possuia ha mais tempo, no
decurso do anno anterior. No direito justinianeu
desappareceram estas differenças entre os dois
interdictos.
Os interdictos recuperandae possessionis eram
concedidos a quem fosse despojado da posse por
violencia ou pela injusta recnsa em restituir a
cousa por parte de quem a recebeu por concessão
precaria. Estes interdictos eram doas, interdictum
de vi e interdictum de precario.
O interdictum de vi era concedido a quem fosse
esbulhado da posse dura immovel. Não era
necessario que a violencia fosse exercida á mão
armada ou que consistisse em vias de facto mais
ou menos graves, bastava que o possuidor não
tivesse podido, resistir-lhe ou que fosse
impedido, sob a influencia
— 456 —
da força, de continuar a posse. O interdicto de vi
tinha por Sm obter a restituição da posse e a repa-
ração de todos os damnos.
0 interdictum de precario era admittido com o fim
de obter a restituição dama cousa concedida a outrem
sob a condição de a restituir logo qne lhe fosse
exigida. Se o concessionario se recusasse a esta
restituição, o concedente podia reclamá-la com o
interdicto de precario, abonando-se com a sua posse
anterior, sem necessidade de se fundar sobre a rela
ção contractual existente entre elle e o precarista.
Antigamente havia o interdictum de clandestina
possessioni, que desempenhava relativamente ás usur-
pações clandestinas de immoveis a mesma funcção
qne interdicto de vi, no caso de esbulho; mas, esta-
belecido o principio de qne a posse de immoveis
não se perdia sem conhecimento do possuidor, tal
interdicto tornou-se superfluo 1.
203. A gewere germanica. O direito germanico
não chegon, como o direito romano, relativamente
á posse, a isolar o facto do direito. Denominava-se
naquelle direito, com a expressão gewere, o goso
material da cousa. Quem tinha este goso era prote-
gido, por tal facto fazer presumir que havia o direito.
Tinha a gewere o proprietario, o usufructuario, o
fendatario, o credor penhoraticio e o tutor. o era
necessario, por isso, como para o possessio o animus,
visto este não poder existir nem no usufructuario,
nem no credor penhoraticio, nem no vasssllo relati-
vamente ao fendo.
1
Serafini, Instituzioni di diritto civile, tom. I, pag. 291;
Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 206; Savigny,
Traité de la possession dans le droit romain, pag. 361.
— 457 —
Como a gewere germanica não correspondia á posse
romana, facil é de comprehender que o direito ger-
manico não conhecesse as acções possessorias no
verdadeiro sentido da palavra. Ainda assim, a gewere
era tutelada pelo direito de dous modos. Sob o
ponto de vista penal, emquanto a perturbação do
estado de facto, de qne a gewere era a expreso,
constituía uma violencia, que era punida todas as
vezes que se desse. Sob o ponto de vista civil, em-
quanlo que no processo, qne um terceiro intentasse,
era privilegiada a condão daquelle qne gosasse da
gewere, podendo-se livrar da aão unicamente por
meio dum simples juramento e não havendo necessi-
dade de produzir o titulo sobre que se fundava a
posse. Militava em seu favor uma presumpção que
não podia ser destruída senão por um titulo mais
forte, apresentado pelo seu adversario.
O direito germanico reconheceu a necessidade de
uma posição de facto não se poder converter, numa
base de direito senão mediante uma sentença judicial,
mas não conseguiu organizar um systema de acções
possessorias completo. Limitou-se a admittir o inter-
dicto renitendae possessionis, para fatiarmos a lingua-
gem romana, sem o constituir numa acção auto-
noma 1.
204. A posse no direito wisigothico. A dou-
trina germanica exerceu uma influencia profunda
sobre a organização do instituto da posse no direito
wisigothico. É por isso que o instituto da posse
1
Cesare Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 268 e
seg.; Salvioli, Manuale di storia del diritto italiano, pag. 435 e
seg.
— 458 —
entre os wisigodos se afasta da doutrina romana e
reflecte a doutrina germanica.
Effectivamente, o direito wisigotico, por um lado,
não exigia o animus na posse, e, por outro não
assegurava a protecção da posse por meio das aões
possessorias, com caracter autonomo e existencia
independentemente, como faziam os romanos (Cod.
wis., liv. vIII, tit. I, 1. 2; liv. Ix, tit. II, 1. 19).
Quem despoja outrem duma cousa de que elle
esteja de posse, antes de ter havido sentença judicial
perde a acção, recuperando o esbulhado a sua posse
e devendo continuar a conserval-a em paz. Não
havia, pois, acções especiaes para proteger a posse,
como acontecia no direito romano. O possuidor
encontrava-se garantido pela perda da acção contra
aquelle que o esbulhasse da posse.
205. A posse na Reconquista. — O estado da
Península no tempo da Reconquista não era favoravel
aos progressos do instituto da posse. Era natural
por isso que a doutrina jurídica da posse continuasse
nos mesmos termos em que se encontra no direito
wisigothico.
Todo o direito medieval se encontra impregnado
dos prinpios da gewere germanica. Os proprios
glosadores, apesar da sua admiração pelo direito
romano, não deixaram de soffrer a influencia destes
princípios.
É por isso que a theoria da posse devida aos
glosadores se tornou complicada, difficil e obscura,
chegando Heusler a comparal-a a um labyrintho. Era
preciso coordenar elementos oppostos e contradicto-
rios, como eram os conceitos do direito germanico
e do direito romano sobre a posse.
— 459 —
É sem duvida de origem germanica a posse natural
de que faliam as Partidas (Part. 3, tit. xxx, 1,1).
Effectivamente, as Partidas distinguem a posse em
natural e civil, derivando a primeira unicamente da
occupação material da cousa e a segunda da retenção
da cousa como dono 1.
206. Theoria canonica da posse. A theoria
romana da posse foi profundamente modificada pelo
direito canonico, visto este direito lhe ter dado uma
extensão muito maior do que ella tinha no direito
romano. Effectivamenle, o direito romano tinha-se
limitado a crear a quasi-possessio para as servidões,
o ousando identificá-la na denominação com a posse
das cousas. Tinha-se chegado timidamente a este
resultado, sem ir mais longe, não se formulando uma
theoria completa da posse dos direitos. No Digesto,
ha passagens expressas dos jurisconsultos classicos,
em que se declara impossível a posse dos direitos.
Sómente, depois do seculo segundo da era vulgar, é
que a jurisprudencia acceitou a juris quasi possessio,
applicada ás servidões.
O direito canonico foi, pouco a pouco, gradual-
mente, ultrapassando os limites acanhados do direito
romano, conseguindo assim extender o conceito da
posse a todos os direitos que se exercem dum modo
continuo e repetido e cujo exercício podia ser pertur-
bado por outrem. Por isso, no direito canonico
encontrou-se applicado o conceito de posse a todos os
direitos de supremacia ecclesiastica ou civil sobre
1 Nani, Storia del diritto italiano, pag. 276; Salvadori Del Viso;
Lecciones elementales de historia y de derecho civil, mercantil y
penal de Espana, part. II, tom. 2, pag. 67 e seg.
— 460 —
communidades religiosas, ás dignidades ou officios
ecclesiasticos, aos encargos reaes, principalmente aos
dízimos, aos benefícios connexos com os officios
ecclesiasticos, etc.
Não se fez esperar a reacção contra as tendencias
do direito canonico, animada pelos glosadores, inter-
pretes e respeitadores do direito romano. Não foi
longa, porém, a resistencia e no seculo xIII a doutrina
do direito canonico triumpha soberanamente na juris-
prudencia. A posse applica-se tambem aos direitos,
segundo os criterios admittidos pelo direito canonico,
chegando a comprehender o estado de família, a
condão nobiliaria, os direitos matrimoniaes, o patrio
poder, a posição do filho, etc. Deste modo, os tros
caractesticos da possessio romana foram-se pouco a
pouco esbatendo, transformando-se completamente
este instituto.
O direito canonico tambem protegeu a posse com
uma nova e efficaz desa. Era um costume e uma
tradão da Igreja que a execão não pudesse pre-
ceder o julgamento, e que por isso um ecclesiastico
esbulhado do officio, devia ser reintegrado antes de
ser julgado (exceptio spolii). No grande trabalho
das falsificações canonicas realizado em França no
seculo IX, tendo por fim estabelecer a superioridade
do papa e definir a condão jurídica dos bispos
relativamente aos tribunaes leigos, aos metropolita-
nos e aos concílios nacionaes, a exceptio spolii, foi
elevada a privilegio dos bispos para impedir que
elles fossem processados facilmente e para obviar ás
difficuldades de desa, em que os expulsos das suas
sés se poderiam encontrar. A exceptio spolii appa-
rece sanccionada deste modo num celebre canon
daquella colleão Reintegrando, que deu uma
nova designação a este instituto.
— 461 —
Segundo o Pseudo Isidoro, a exceptio spolii era um
privilegio dos bispos applicavel unicamente às accu-
sações criminaes que fossem movidas contra elles,
o se podendo, por isso, considerar um remedio
possessorio. Depois a exceptio spolii foi ampliada ás
causas civeis e concedida a todos os possuidores. É
certo que Graciano considerava ainda a exceptio spolii
um privilegio dos bispos, mas nos decretistas tor-
nou-se um remedio possessorio. Àdmittiu-se, mesmo,
ao lado da exceptio spolii, a actio spolii, confiada á
iniciativa do lesado, para obter a restituição das
consas usurpadas. Tanto a acção como a excepção
suppunham o esbulho, mas a primeira tinha um
caracter restilutorio, moldado pelo direito leigo, ao
passo que a segunda tinha um caracter dilatorio e
declinatorio do jzo, segundo os prinpios cano-
nicos.
A elaboração doutrinal deste instituto levou a
tirar as ultimas consequencias delle e a dar-lhe uma
applicação muito ampla. Os proprios romanistas
não foram superiores á influencia do novo systema,
porquanto procuraram dar physionomia romana ao
remedio canonico, que era mais largo e flexível do
que o interdicto de vi, supprimindo as restriões,
segundo as quaes o esbulhado podia proceder
contra o esbulhador, e introduzindo a responsabili-
dade do terceiro possuidor perante os tribunaes
leigos 1.
207. A posse no direito português. Entre s,
não chegou a ser admittida a doutrina canonica,
1 Salvioli, Storia del diritto privato italiano, pag. 427; Viollet,
Histoire du droit civil français, pag. 582 e seg.
— 462 —
intendendo-se a posse DO sentido romano, isto é,
limitada is cousas. Coelho da Rocha falia da quasi
posse, comprehendendo a posse dos direitos quando
o dependem da posse duma cousa material, mas
afasta-se da jurisprudencia nacional e recorre á
legislação estrangeira e sobretudo ao Codigo da
Prussia para fundamentar tal fórma da posse.
neste tempo, porém, Savigny tinha publicado a
sua obra Das Recht des Besitzes, em qne este notavel
escriptor procurou reconduzir a doutrina da posse
ás suas origens romanas, restituindo-lhe a sua pby-
sionomia primitiva. Mas errou, julgando que podia
fazer reviver na pratica a theoria da posse, como
tinha sido admittida nos velhos tempos de Roma.
O illustre fundador da escola historica, que ensina
que a formação do direito é principalmente um
pbenomeno historico, devia reparar que um instituto
o se de mudar radicalmente, fazendo-o regres-
sar ás suas origens, quando já tem passado por
uma evolução secular. E' por isso que a tentativa
de Savigny se tornou notavel unicamente pelo seu
insuccesso, visto os codigos modernos, e nomeada-
mente o nosso codigo civil (art. 474;°) admittirem
a posse de direitos.
Tambem tinham apparecido opposões á defesa
canonica da posse, encontrando-se, por isso, na
jurisprudencia do seculo xv ao xvIII, manifestos
ataques contra a actio spolii do direito ecclesiastico.
Se a maioria dos juristas a admittiu, outros não lhe
reconheceram um caracter autonomo e independente,
fuudindo-a com o interdicto de vi e restringindo as
suas applicações. E estes ataques continuou-os a
scieucia romanista moderna, tendo á sua frente
Savigny.
— 463 —
A doutrina do direito canonico exerceu influencia
no nosso direito, porqnanto elle admittiu a acção de
espolio on de força espoliativa contra o espoliador,
seus herdeiros, on terceiro, para quem passou a
cousa, para qne lha restituam com os seus direitos
e interesses (Ord., lív. III, tit. LXXVIII, § 3.º e liv. IV,
tit. xxxvIII) 1.
1
Salvioli, Manuale de diritto italiano, pag. 427; Coelho da
Rocha, Instituições do direito civil português, tom. II, pag. 323
e seg.
CAPITULO VI
PRESCRIPÇÃO
SUMMARIO : 208. Usucapio. 209. Prescriptio longi tem-
porís e prescriptio longissimi temporis. 210. A prescripção
entre os germanos. 211. A prescripção no direito wisigo-
thico. — 212. A prescripção na Reconquista. — 218. Theoria
canonica da prescripção. 214. A prescripção no direito
português.
208. Usucapio. A usucapio é a adquisição da
propriedade mediante a posse acompanhada de deter-
minadas condições estabelecidas pela lei. A
expressão deriva de usu capere, adquirir pelo
uso. No direito antigo, a mesma idêa era designada
pelas palavras usus auctoritas, que indicam a
protecção concedida pela lei (auctoritas) ao que
faz uso da cousa durante o tempo necessario.
Relativamente á origem da usucapio tem-se
aventado tres hypotheses para a explicar. Segundo
uma dessas hypotbeses, a usucapião foi admittida
com o fim de validar as alienações nullas pela falta
da observancia das formalidades legaes,
necessarias para realizar a transmissão da
propriedade. Esta hypothese é pouco acceitavel,
visto ser pouco provável que o direito antigo, ao
mesmo tempo que organizava o seu rigoroso
formalismo, sanccionasse os meios de o illudir e
annullar.
Segundo outra hypothese, a usucapião appareceu
como meio de legitimar as vendas, quando o
vendedor não fosse verdadeiro proprietario e este
o reclamasse a cousa dentro de certo prazo.
Esta
30
— 466 —
hypothese tambem é pouco acceitavel, visto no antigo
direito romano não apparecer uma relação de causa-
lidade entre a venda e a usucapião, sendo além disso,
muito duvidoso que os modos de adquisição que
serviam de base á usucapião fossem primeiramente
applicaveis ás transmissões de immoveis.
Segundo outra hypothese, a usucapião desinvol-veu-
se como consequencia do respeito instinctivo que o
proprio facto da posse despertou nas sociedades
primitivas. Se o proprietario, diz o Sr. Dr. Monte-
negro, segnindo Edouard Cuq, entendia poder dis-
pensar os benefícios que lhe advinham da sua
propriedade, porque motivo havia de impedir-se
outrem de a cultivar, conservando-lhe a todo o transe
um direito cuja posse elle era o primeiro a
desprezar? E, se o estranho empregava as suas
forças nesse cultivo durante certo prazo, tractando
o campo como cousa sua, sem que o verdadeiro
dono com isso se inquietasse, parecia justo conferir-
lhe, em premio, o direito de propriedade.
É por isso que é muito plausível que primeira-
mente não fossem necessarios para a usucapião o
justo titulo e a boa fé, bastando que o individuo se
tivesse apoderado da cousa e tivesse feito uso delia,
À bona fides harmoniza-se muito mal com a índole
do direito primitivo, que systematicamente punha de
parte a determinação do pensamento individual,
quando elle se não revelasse por uma fórma positiva;
e a justa causa bem se podia dispensar numa socie-
dade pequena e laboriosa, como a primitiva sociedade
romana, onde a posse exercida durante um certo
lapso de tempo se devia considerar como uma pre-
sumpção, quasi invencível, de propriedade em favor
do possuidor. A inacção do proprietario equivalia
a uma renuncia tacita do seu direito, devendo por
— 467 —
isso a adquisição consumar-se no fim dam prazo
assás curto.
A lei das XII Taboas remediou o inconveniente
que podia originar este modo de adquirir, prohibindo
a usucapião das cousas roubadas. Com a influencia
que os jurisconsultos exerceram sobre a formação do
direito, a idêa que se encontrava em germen nesta
prohibição desinvolveu-se, recusando-se, o beneficio
da usucapião á posse que se não pudesse apoiar
sobre uma base legitima.
Eram requisitos da usucapião: a) o commerciun
no sujeito; B) o commercium no objecto; y) a posse
comada com justa causa e em boa fé e prolongada
pelo tempo estabelecido na lei.
a) Aquelles que não tivessem o jus commercii não
podiam usucapir. É o que acontecia aos peregrinos.
Se um peregrino possuísse uma cousa pertencente a
um cidadão romano, este podia reivindicá-la em
qualquer tempo.
B) Sómente as cousas que eram suscepveis de
propriedade civil podiam ser adquiridas por meio da
usucapião. Eram, por isso, excluídas da usucapo,
o só as cousas que estavam fóra do commercio,
mas tambem os fundos provinciaes. Entre as cou-
sas que estavam no commercio, havia algumas que
não podiam ser adquiridas por usucapião, em virtude
dum vicio que as attingia ou da qualidade do seu
proprietario. Era assim que eram excluídas da usu-
capião as cousas roubadas, as cousas occupadas por
violencia, os bens do fisco, etc.
y) A posse precisava de ter um justum initium,
isto é, precisava de comar com justa causa e em
boa fé. A justa causa é a relação com o alienante
que seria em si mesma, apta para legitimar a adqui-
sição da propriedade. Tal acto juridico realizaria a
— 468 —
transmissão da propriedade, se não bouvesse um
obstaculo proveniente da pessoa ou da cousa que se
oppuzesse a este resultado. Por exemplo, a venda é
um acto juridico apto para transmittir a propriedade,
mas de não realizar esta transmissão, quando o
vendedor não seja o verdadeiro proprietario da
cousa.
Poder-se-ha dar a usucapião, quando a justa causa
existe unicamente no espirito do adquirente, tendo-
se este illudido, julgando que ella existia
realmente? Por outras palavras, póde um individuo
usucapir em virtude duma causa imaginaria ou dum
titulo potativo, como dizem os commendadores? Os
jurisconsultos romanos dividiram-se a este respeito,
negando uns formalmente que o possuidor pudesse
usucapir em taes condições, e permittindo outros
usucapir, quando o possuidor tivesse tido motivos
serios para julgar que havia uma justa causa, sendo,
por isso, o seu erro plausível. E o erro é
considerado plausível, desde o momento em que
recáe sobre o facto doutrem, como acontece no caso
do meu mandatario me entregar uma cousa que lhe
mandei comprar, affir-mando-me que effectivamente
teve logar a compra, sendo isto falso.
À boa é a convicção em qne está o possuidor
de que recebeu a cousa do seu verdadeiro proprie-
tario, ou duma pessoa tendo o poder de alienar, a
titulo de mandatario ou de tutor. A boa assenta
deste modo sobre um erro. Este erro pôde ser de
facto ou de direito. Assim, se um individuo recebe
uma cousa dum pupillo, sem a auctoretas do tutor,
de considerar-se proprietario ou por se ter enga-
nado sobre a edade daquelle, julgando-o pubere
erro de facto, ou por intender que os pupilos
podem alienar livremente os seus bens — erro de
— 469 —
direito. Só o erro de facto é que póde servir de
base á usucapião.
A boa fé exige-se unicamente no começo da posse,
sendo inteiramente indifferente que o possuidor
adquira depois o conhecimento do verdadeiro estado
das cousas. A boa differe da justa cousa, como
uma opinião differe dum facto, sendo até diversas as
regras de prova para cada um destes requisitos,
presumindo-se a boa até prova em contrario, e
tornando-se necessario provar a justa cousa.
A posse devia prolongar-se durante um certo tem-
po, que era, segundo a Lei das XII Taboas, de um
anno para os moveis e dois annos para os ímmoveis.
Não podia ser interrompida, visto a interrupção fazer
perder ao possuidor o beneficio da posse anterior.
O direito classico admittia unicamente a interrupção
natural da usucapião, isto é, a que resulta da perda
da posse por o possuidor a ter voluntariamente
abandonado, ou por ter sido obrigado a isso, em
virtude dum caso de força maior ou da usurpação
dum terceiro. Nesta ultima hypothese, não se dava
a interrupção, desde o momento em que o pos-
suidor recuperasse a posse por meio dos inter-
dictos 1.
209. Prescriptio longi temporis e prescri-ptio
longissimi temporis. — A usucapião, sendo um
modo de adquirir de direito civil, o podia
aproveitar aos peregrinos, que o tinham o com-
mercium, e era inapplicavel aos predios provinciaes,
1
Dr. Montenegro, O antigo direito de Roma, pag. 182 e seg.;
Edouard Cuq, Les institutions juridiques des romains, tom. I,
pag. 147 e seg.; Girard, Manuel élémentaire de droit romain,
pag. 271 e seg.
— 470 —
de que o Estado se podia considerar, o verdadeiro
proprietario. Esta dupla lacuna foi supprida com a
praescriptio longi temporis.
A praescriptio longi temporis era um meio de
desa creado pelo pretor em beneficio dos possuido-
res de predios provinciaes e dos peregrinos, tendo
por fim paralysar a rei vindicatio do proprietario,
desde o momento em que houvesse posse nas con-
dições devidas. Esta defêsa devia ser inscripta no
cimo da rmula, derivando dahi a a sua denomi-
nação — prae scribere.
A praescriptio longi temporis estava submettida, em
principio, às mesmas condições que a usucapião.
Para a invocar tornava-se necessario possuir de boa
e em virtude duma justa causa. O pretor exigia
uma posse mais longa, sendo o prazo de dez annos
entre presentes e de vinte entre ausentes, quer se
tractasse de immoveis, quer se tractasse de moveis.
Por outro lado, a usucapio não podia ser interrom-
pido pela rei vindicalio, se antes da sentença final
se completasse o seu prazo, contrariamente ao que
acontecia com a praescriptio, que se interrompia, logo
que havia a litis contestatio. A praescriptio longi
temporis era um meio de desa e em regra geral
ninguem se póde prevalecer duma defêsa, se ella
não está adquirida no momento da litis contes-
tatio.
Como a praescriptio longi temporis era um meio
de defêsa e não um modo civil de adquirir a pro-
priedade, dahi resultava que o possuidor accionado
em reivindicação devia fazer inserir a praescriptio na
fórmula, pois do contrario perdia o seu beneficio.
Outra consequencia da natureza da praescriptio era
de que, se o possuidor, depois de ter prescripto,
vinha a perder a posse da cousa, não gosava da rei
— 471 —
vindicatio para a rehaver, visto não ser
proprietario delia, segundo o direito civil.
No tempo de Justiniano, pertencendo a
qualidade de cidadão a todos os subditos do
imperio e tendo desapparecido a differença entre
os predios italicos e os predios provinciaes, sob o
ponto de vista da propriedade, não havia razão
para conservar o dualismo entre a usucapio e a
praescriptio longi temporis, e por isso aquelle
imperador simplificou a legislação anterior,
fundindo aquellas duas instituições. Conservou o
nome de usucapio para a adquisição dos moveis
por meio da posse, elevando o seu prazo a tres
annos. Adoptou o nome e o prazo da praescriptio
longi lemporis para os immoveis. Mas, sob estes
dous nomes, a instituição tem um caracter
uniforme, ficando submettida a regras communs.
A usucapio não aproveitava senão aos
possuidores tendo justa causa e boa fé. O direito
bysantino intendeu que o proprietario cuja
inacção se tivesse prolongado por um prazo
muito longo devia perder, se não a propriedade,
pelo menos a acção de reivindicação contra o
possuidor da cousa, embora elle não tivesse justa
causa nem boa fé. E assim se chegou a
estabelecer a praescriptio longissimi temporis, em
virtude da qual se extinguiam todas as acções
pessoaes ou reaes, com excepção das
hypothecarias, no fim de trinta annos. Por isso,
no fim deste prazo, o possuidor sem justa causa e
sem boa deixou, daqui por deante, de estar
exposto á rei vindicatio do proprietario. Não
adquiria, porém, a propriedade, e por isso, se
viesse a perder a posse da cousa, não gosava da
rei vindicatio. Justiniano estabeleceu, porém,
que, se a posse de trinta annos tivesse começado
com a boa fé, não podia servir como meio de
repellir a acção de reivindicação, mas tambem
— 472 —
fazia adquirir a propriedade, embora o possuidor
carecesse de justa causa 1.
210. A prescripção entre os germanos. Parece
que entre os germanos o tempo não se considerou
um meio de adquirir a propriedade.
As disposições que se encontram sobre a prescri-
pção nas leis barbaras são devidas á influencia romana.
Por outro lado, o direito germanico não distingue
nitidamente a propriedade da posse, confundindo-as
até na gewere, e por isso a posse não podia produzir
naquelle direito o effeito da adquisão que lhe attri-
buia o direito romano.
Discute-se, porém, muito se os germanos teriam
admittido pelo menos uma especie de prescripção, a
prescrião de anno e dia, que mais tarde obteve o
nome de rechte Gewere. Viollet segue a affirmativa
com o fundamento de que o facto de cultivar um
terreno durante um anno deve ter sido, no momento
de se constituir a propriedade, um dos seus titulos
mais serios e justos.
A doutrina de Viollet, além de não ter em seu
favor facto algum, repugna fundamentalmente ao
conceito germanico da posse. É por isso que Nani
e Salvioli não adherem a esta opinião 2.
1
Serafim, Instituzioni di diritto romano, vol. I, pag. 312 e
seg.; Bonfante, Instituzioni di diritto romano, pag. 207 e seg.;
Eugéne Petit, Traité élémentaire de droit romain, pag. 194
e seg.
2
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 302 e seg.;
Sahroli, Manuale di storia del diritto italiano, pag. 414 e seg.;
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 570 e seg.
— 473 —
211. A prescrião no direito wisigothico.
Embora o instituto da prescripção se organizasse
DOS direitos barbaricos sob a influencia do direito
romano, é certo, porém, que este instituto se afas-
tou em taes direitos dos princípios fundamentaes
por elle estabelecidos.
Effectivamente, os povos barbaros não considera-
ram a prescripção como um meio de adquirir a pro-
priedade, mas simplesmente como um meio que ga-
rantia o possuidor contra determinadas contestações.
O possuidor ficava eximido de apresentar o titulo em
que se baseava a sua posse. Por outro lado, os ter-
mos da prescrião romana pareceram assás longos
a estes povos irrequietos, voluveis e preoccupados
unicamente com factos exteriores e materiaes, e por
isso estabeleceram prazos mais curtos e breves.
Entre os wisigodos, porém, as cousas não se pas-
saram deste modo, em virtude da influencia mais
effficaz e accentuada que teve o direito romano sobre
este povo. O tempo da posse necessario para a
prescrião era de trinta annos. Além desta pres-
cripção ordinaria, havia a extraordinaria de cincoenta
annos applicavel ás reclamações relativas á divisão
das terras entre godos e romanos, aos bens perten-
centes aos menores, e aos escravos fugitivos (Cod.
wis. liv. x, tit. 2, 1. 3, liv. Iv, tit. 3, 1. 2).
A prescripção fazia adquirir a propriedade ficando
extincto todo o direito de reclamão judicial. Exce-
ptuava-se desta regra a propriedade e os direitos do
a usente, que não se perdiam por prescripção durante
a ausencia 1.
1
Chapado Garcia, Historia general del derecho espanol, pag. 188
e seg.; Nani, Storia del diriyto privato italiano, pag. 302 e seg.
— 474 —
212. A prescripção na Reconquista. Na Recon
quista predomina a prescripção de anno e dia tão
bem acolhida pelos codigos barbaros. Os princípios
do direito romano que tinham actuado na organiza
ção da prescrião entre os wisigodos obliteraram se,
apparecendo a predilecção que os povos barbaros
manifestaram pela prescripção de carto prazo. No
caso de se admittir que a prescrião de anno e dia é
propria do direito germanico, então póde explicar-se
a prescrião da Reconquista como uma reviviscen-
cia daquelle direito, favorecida pelas condições sociaes
da epocha.
O Fuero de Cuenca estabelece como sufficiente
para a prescripção a posse por anno e dia com boa
fé, das cousas moveis e immoveis. Aquelle que as
reclamasse depois deste prazo pagava sessenta sol-
dos. Segundo o Fuero de Sepulveda, intendia-se por
anuo e dia o espaço de dous annos completos, lendo
de justificar-se este facto com o testemunho escripto
de dous vizinhos. O Fuero de Cuenca declara impres-
criptiveis as cousas da Igreja e as de corporação 1.
213. Theoria canonica da prescripção, Com o
florescimento do direito romano, a prescripção adqui
ria ama notavel efficacia. O direito canonico attenuou
es efficacia, introduzindo no instituto ama impor
tante modificação, pelo que diz respeito á boa fé.
0 direito romano o linha exigido a boa senão
no como da prescripção, pois mala fides superve-
niens non nocet. Esta maxima não foi acolhida pelo
1
Chapado Garcia, Historia general del derecho espanol,
pag. 359 e seg.
— 478 —
direito canonico, que julgou injusto exigir a boa
no começo e não em todo o decurso do prazo
da prescripção. Tal conceito já se encontra em
algumas passagens de S. Agostinho, adquirindo
depois fórma precisa em outros escriptos
ecclesiasticos. Foi claramente proclamado na
decretai Vigilanti de Alexandre III, mas
unicamente se tornou norma geral e absoluta na
celebre decretai de Innocencio III, com que se
promulgou um canon do concilio de Latrão, do
theor seguinte: synodali judicio definiram ut nulla
valeat absque bona fide praescriptio tam canonica
quam civiles; quum generaliter sit omni cons-
titutioni aque consuetudini derogandum, quae
absque mortali peccato non potest observari.
Onde oportet ut qui praescribit in nulla tempore
parte rei habeat conscientiam alienae. (Decretaes
de Gregorio IX, liv. II, tit. xxvI, cap. xx).
Esta disposição não tardou a peneirar na juris-
prudencia civil, em virtude da influencia da
Igreja. Os civilistas, porém, o acceitam a
doutrina canonica sem repugnancia e sem
reservas. Bartolo pro-nuncia-se em favor da
admissão desta doutrina, porque é necessario
observar o direito canonico, que se occupa do
peccado. Baldo tambm a approva, mas
observando que o vulgo diz que ninguem precisa
de ser mais sancto e justo do que a lei. Apesar
destas hesitações, a maxima do direito canonico,
que dispõe in nulla temporis parte rei habeat
cons-cientiam alienae, acabou por triumphar,
corrigindo o direito romano.
Outra innovação que o direilo canonico
consagrou no instituto da prescripção foi a da
prescripção immemorial, isto é, fundada numa
posse tão antiga, que excede a memoria dos
homens. É certo que no direito romano já se
encontram vestígios desta pres-
— 476 —
cripção, mas são o tenues e apagados, que bem se
de dizer, como faz Nani, que aquelle direito o
chegou a formular uma theoria da prescrião im-
memorial.
0 direito canonico, applicou largamente o principio
da prescrião immemorial, nas relões do direito
publico. Entre os casos de applicaçio da prescripção
immemorial feitos pelo direito canonico, podemos
mencionar os tributos cobrados desde tempos anti
quíssimos 1.
214. A prescripção no direito português. Entre
nós, primeiramente dominou a doutrina romana. É
o que se deduz da seguinte passagem das Ordenões
Affonsinas: E esta demanda lhe poderaa fazer ataa dez
annos compridos e contados des o primeiro dia, em
que a dita causa, foi a poder do possuidor com titulo
e boa fee, e se ambos eram moradores em huma
Comarqua... E indo essa causa ao possuidor sem titulo
algum, havendo acerqua delia maa fee, porque sabia bem
que nom era sua de Direito, nem lhe pertencia, em tal
caso lhe poderaa ser feita a dita demanda pelo dito
credor ataa trinta annos compridos. (Ord. Aff., liv. Iv, tit.
XLIX, § 3.°). Esta passagem contém uma applicação da
longi temporis praescriptio, em que se exigia a boa fe e o
justo titulo, e da longissimi temporis praescriptio, em
que se não exigia a boa fe nem o justo titulo.
Nas Ordenações Manuelinas continuou a ser admit-
tida a mesma doutrina (Ord. Man., liv. Iv, tit. xxxIII,
e tit. LXXX). D. João III afaston-se da corrente
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 303 e seg.;
Salvioli, Manuale di storia del diritto italiano, pag. 415 e seg.;
Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 576 e seg.
t
— 477 —
romanista e, acostou-se á canonica, qae julgava
offensivo da moral o procedimento de quem, estando
de , invocasse a prescripção. Foi por isso que
elle determinou, por lei de 4 de fevereiro de 1534,
qae a boa se devia exigir durante todo o espaço
de tempo necessario para a prescripção. Esta dis-
posição de D. Jo III foi a fonte duma disposão
identica que se encontra nas Ordenações Filippinas
(Liv. Iv, tit. III, § 3.°, tit. 79, pr.). Ahi se dispõe
terminantemente qae a prescripção o pode ter
logar em tempo algum, quando haja má fé, por se não
dar occasião de peccar, lendo o alheio indevidamente.
A doutrina do direito canonico a respeito da boa
fé destinava-se a impôr um freio ás violencias e ás
usurpões da edade media, mas abriu a porta aos
processos e ás incertezas e duvidas. Não admira,
por isso, qae o codigo civil francês e com elle os
codigos modernos se orientassem no sentido da dou-
trina romana, pondo de parte a theoria canonica.
Nesta corrente se lança tambem o nosso codigo civil
(artt. 520.° e 535.°).
Relativamente aos prazos da prescripção, o nosso
direito soffreu a influencia do direito romano dam
modo preponderante. Effectivamente, as Ordenações
Affonsinas (Liv. Iv, tit. XLIX) e Manuelinas (Liv. Iv,
tit. xxxIII), segundo as leis romanas dispunham que
a aão hypothecaria do credor contra o terceiro
possuidor dos bens hypothecados se extinguia, quan-
do este possuísse os bens por dez annos entre pre-
sentes e vinte entre ausentes, havendo justo titulo e
boa fé; na falta destes requisitos por trinta annos;
mas que contra o proprio devedor, ou contra terceiro,
a quem este a empenhasse, sómente prescrevia por
trinta annos entre presentes e quarenta entre au-
sentes.
— 478 —
Esta disposição passou para as Ordenações Filip-
pinas (Liv. Iv, tit. III) sem outra diferença do que a
necessidade da boa em todo e qualquer tempo,
em virtude do espirito do direito canonico, de que
se encontra imbuído o codigo filippino. Deste pre-
ceito especial, que permittia ao possuidor dum obje-
cto hypothecado a adquisição da propriedade livre
encargo, pela prescripção, em virtude da posse por
aquelles differentes espos, deduzia a nossa juris-
prudencia a applicação das disposições do direito
romano, emquanto á prescrião adquisitiva, dum
modo geral.
Relativamente á prescripção extinctiva, D. Dinis
fixou por lei de 1330 o prazo de dez annos para
que ella pudesse ter togar. D. Affonso V fixou o
prazo de trinta annos para a prescripção de dividas
de certa cousa; em razão de contracto, ou quasi
contracto. As Ordenações Manuelinas fixavam o
espaço de cinco annos, se o credor e devedor vives-
sem no mesmo togar, dez, se vivessem na mesma
comarca; e vinte, se vivessem em differentes comar-
cas (Liv. IV, tit. LXXX).
A lei de 4 de fevereiro de 1534 de D. João III
estabeleceu para estas prescripções o espaço de trinta
annos, exigindo, além disso, o requisito da boa a
que por direito romano se não attendia. É esta a
fonte da Ordenão Filippina, onde se estabelece que
se alguma pessoa r obrigada a outra em alguma
certa cousa, ou quantidade, por razão de algum con-
tracto, ou quasi contracto, pode ser demandado até
trinta annos, contados do dia, que essa cousa ou
quantidade haja de ser paga em deante. E, passados
os ditos trinta annos, o poderá ser mais deman-
dado por essa cousa ou quantidade... (Liv. Iv, tit.
LXXIX, pr.).
— 479 —
Os prazos da prescripção foram depois inteira-
mente remodelados no codigo civil, seguindo-se
para a sua determinação criterios differentes do
nosso antigo direito.
A jurisprudencia civil alargou a prescripção
imme-morial a todos os direitos em que era
possível um exercício duradouro ou um não
exercido. E assim a praescriptio indefinita tornou-
se quasi um supple-mento da ordinaria, definita.
Para provar a existencia da prescripção
immemòrial, recorria-se ao depoimento de
testemunhas, que attestassem ter-se praticado
assim ha quarenta annos e não terem noticia de se
ter procedido doutro modo no tempo anterior.
Com o mesmo fim, podiam ser empregados
documentos que attestassem a duração daquelle
estado de facto no período de duas gerações,
embora se duvidasse sobre a admissão desta
fórma de prova.
Os nossos praxistas, como Correia Telles e
Lobão, apontam alguns exemplos de prescripção
immemòrial, que tinha, principalmente
importancia, como meio de provar os bens
vinculados e as servidões descontinuas.
Além da prescripção immemorial, ainda se reco-
nheceu a de cem annos, de maior efficacia, visto
ella não poder deixar a menor duvida sobre a
legitimidade ou a realidade das cousas
prescriptas. Era no fundo a prescripção que
Justiniano tinha admittido contra os bens da
Igreja. Segundo Mello Freire, o nosso direito não
fez menção alguma desta prescripção 1.
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 306 e seg.;
Salvioli, Manuais di storia del diritto italiano, pag. 446 e seg.;
Correia Telles, Digesto português, art. 1377. Mello Freire, lns-
tituciones juris civilis lusitani, tom. III, pag. 33 e seg.; Coelho da
Rocha, Instituições de direito civil, tom. II, pag. 691 e seg.
PARTE TERCEIRA
FAMILIA
CAPITULO I
FÓRMAS PRIMITIVAS DA FAMILIA
SUMMARIO : 215. Importancia actual do problema da cons-
tituição da família primitiva.— 216. O patriarchado como
a rma primitiva da família e da sociedade. 217. Pro-
miscuidade ou hetairismo. 218. Matriarchado. 219. O
matrimonio ambiliano. 220. Passagem do matriarchado
para o patriarchado.—221. Critica da serie promiscui-
dade, matriarchado e patriarchado. — 222. O clan.—223. A
exogamia. — 224. O totemismo e o parentesco materno.
215. Importancia actual do problema da constituição da
família primitiva. Um dos assumptos do direito
privado mais estudados é, sem duvida, a família.
N'esta materia, que tanto apaixonou e apaixona os
historiadores, os sociologos e os juristas, é onde se
encontram as mais diversas opiniões e as mais
contrarias antitheses. Hoje, porém, em que os tra-
balhos e os estudos sobre este instituto se apresentam
em numero cada vez maior, é facil de verificar que
todas as questões e todos os problemas que
preoccupam os estudiosos se integram e reduzem a
um só — o da constituição primitiva da família.
Por muito tempo se julgou que a família existiu
sempre sob a fórma que nós conhecemos actualmente.
Foi Bachofen, professor na Universidade de Baziléa,
que ousou, pela primeira vez, em 1861, atacar, na sua
obra Mutterrecht, a theoria tradicional, sustentando,
talvez sob a influencia da doutrina do darwinismo,
que a humanidade devia ter percorrido uma phase de
vida puramente animal, em que não existia nem o
casamento, nem a família. Os homens deviam
— 484 —
eno ter vivido num estado de promiscuidade, não
havendo outro vinculo de parentesco, além do que
podia existir entre mãe e filhos.
A theoria pareceu tão paradoxal que os sabios e
principalmente as summidades da philosophia, do
direito e da sciencia social, na Allemanha,
abstiveram-se por largo tempo de tractar destas
investigações sobre a familia primitiva.
Effectivamente, doze annos depois do
apparecimento da obra de Bachofen, os livros de
direito e de sciencias sociaes, como a Ency-clopedia
do direito de Mobl (1872) e o Direito natural de
Ahrens (1874), ainda não faziam a menor refe-
rencia á nova theoria sobre as rmas primitivas da
familia. Dir-se-hia que os mais notaveis professores
allemães desejavam perder, pela guerra do silencio,
o escriptor que tinha ousado apresentar idéas tão
originaes, brigando com as opiniões universalmente
acceitas sobre a constituição primitiva da familia.
depois do francês Giraud-Teulon ter
publicado a sua obra Origines de la Famille,
dedicada a Bacho-ren, onde a materia era tractada
em harmonia com a nova orientão, é que a
Allemanha se começou a preoccupar com esta
queso, tão nova para os phi-losophos, para os
juristas e para os historiadores. Entretanto, as obras
mais importantes sobre esta materia provinham dos
países anglo-saes. A America com Morgan, a
Inglaterra com Mac Lennan, Maine e Lubbock, a
Dinamarca com Starcke, a Finlandia com
Westermack, forneceram-nos dados e elementos
muito preciosos sobre a familia primitiva. A Alle-
manha, além das grandes obras sociologicas de
Schaeffle e Lilienfeld, contribuiu depois para a solu-
ção do problema, com os trabalhos de Bastião, Lip-
pert, Post, Kohler, Grosse e Steinmetz. Deve-se
mencionar tambem a obra de Kovalewsky sobre as
— 485 —
origens e a evolução da família e da propriedade,
que contém, além da critica das theorias dos seus
predecessores, moitas observações colhidas sobre
este assumpto, nas províncias russas e especialmente
no Caucaso,
Em França, todos os sociologos se têem occupado
largamente deste assumpto, do mesmo modo que os
sociologos dos outros pses, e nomeadamente Her-
bert Spencer, que, consagra á família uma parte da
sua sociologia. Finalmente, na Italia, Morasso, Maza-
rella. Consentini e Amadori Virgili, bem como em
Hespanha, Posada e Sales y Ferre, tambem téem estu-
dado o problema com profundeza e originalidade.
216. 0 patriarcbado como a rma primitiva da
falia e da sociedade. A theoria sobre a família
primitiva qne tem em seu favor uma mais larga tra-
dão é, sem duvida, a tbeoria do patriarcbado. Esta
theoria admitte na origem da sociedade familias
diversas, cujos membros se encontram agrupados sob
a auctorídade e proteão do mais antigo dos ascen-
dentes masculinos. Por isso, a família apparece-nos
nos inícios da evolução social como um grupo cohe-
rente, organizado monarchicamente, sob a absoluta
e suprema auctorídade do pae, bastando-se a si
mesma e desempenhando na sua esphera de acção
as funões do Estado. Os homens constitam as-
sim primitivamente grupos isolados, sob o poder do
pae de família. Naturalmente o parentesco não podia
seguir tambem senão a linha paterna. Tal é a theoa
do patriarcbado, como a apresentou Summer
Maine, que, com Darwin e Herbert Spencer, tanto
contribuiu para o desinvolvimento dos estudos sociaes
na Inglaterra.
— 486 —
Antes, pom, de Summer Maine, a theoria do
patriarchado teve um passado glorioso. Platão e
Aristoteles o formulam, o primeiro ligeiramente,
o segundo com um grande desinvolvimento. Não se
limitam a simples conjecturas, pois ambos estes phi-
losophos procuram basear a theoria sobre observa-
ções reaes. Platão affirma que no seu tempo ainda
havia fórmas de sociedades correspondentes á hypo-
these dos grupos originaes. Aristoteles appella para
o estado social dos barbaros que eram seus contem-
poraneos.
Durante as pesadas trevas da Edade Media, a theo
ria patriarchal teria tido o destino de ontras espe
culações gregas, se a não salvasse do esquecimento
a sua harmonia com a narração biblica a respeito
dos patriarchas hebreus. Mais desastroso, porém,
foi para a theoria patriarchal o predomínio que, nos
seculos xvII e xvIII, adquiriram as theorias a priori
do estado de natureza, que, durante muito tempo,
satisfizeram a curiosidade do espirito sobre a
condão originaria da humanidade. Obliterou-se,
completamente, por isso, a theoria patriarchal e triura-
pharam soberanamente as theorias metaphysicas
sobre a origem da sociedade.
O resurgimento da theoria nos tempos modernos
remonta á descoberta feita por Niebuhr dos commen-
tarios de Gaio, que, embora não tractem directa-
mente do antigo direito romano, ainda assim
permittiram dividi-lo em differentes estadios, e obter
uma ia bastante perfeita da organizão social de
Roma. É certo que o recurso ao direito romano
podia prestar màos serviços á theoria patriarchal,
mostrando que a organização a que ella se refere
pertence a uma ordem social relativamente adiantada.
Mas, Summer Maine, Mommsen, Lang e Grot vieram
— 487 —
mostrar que o direito romano não fez mais nesta
instituão, bem como nas outras, do que conformar-
se com a evolução geral da humanidade.
A theoria do patriarchado não podia deixar de ser
bem recebida, visto ella se harmonizar com a orga-
nização que a familia nos apresenta desde o seu
apparecimento na historia. O campo das investiga-
ções era então muito acanhado, pois estudava-se o
problema unicamente na grande familia aryana e
sómente á luz do direito grego e indiano, com algu-
mas referencias ás raças celticas e particularmente
á Irlanda. Por outro lado, a narração bíblica dos
patriarchas hebreus dava nova auctoridade á theoria
do patriarchado, pois mostrava que as sociedades
teriam começado por organizações familiares, como
esta theoria descrevia. Finalmente, ainda concorreu
para divulgar a theoria do patriarchado a idêa de
que a familia é a cellula da sociedade, constituindo
assim o typo ultimo e irredutível das fórmas sociaes
mais simples 1.
217. Promiscuidade ou hetairismo. A theoria
do patriarchado que resistiu aos embates dos syste-
mas mais diversos, desde a antiguidade a ao nosso
tempo, entrou numa phase critica com as modernas
theorias sobre a origem da familia. Entre essas
1
Gustave Le Bon, L'homme el les sociétés, tom. II, pag. 287 e
seg.; Posada, Théories modernes sur les origines de la famille, de
la société el de 1'Étal, pag. 39 e seg.; Giovanni Amadori-Virgilii,
L'istituto famigliare nella società primordiali, pag. 53 e seg.;
Summer Maine, Études sur Vancien droit et le costume primitive,
pag. 260 e seg.; Consentini, La sociologie genétique, pag.. 66 e
seg.
— 488 —
theorias, a mais radical é sem duvida, a da promis-
cuidade ou do hetairismo.
Segundo esta theoria, defendida por Bachofen,
Lennan, Morgan, Lubbock, Giraud-Teulon, Post De
Greef e Kohler, o homem, DO começo da vida social,
constituía grupos, onde dominava a mais absoluta
promiscuidade. As mulheres pertenciam indiferen-
temente a todos os homens, não se encontrando o
instincto sexual sujeito a regras ou a limitações e
o tendo os filhos paes particulares, mas reconhe-
cendo como taes todos os homens que os rodeavam.
O regimen da promiscuidade foi denominado por
Bachofen hetairismo e por Lubbock matrimonio com-
munal. Esta doutrina, considerada a principio com
uma simples probabilidade, como um facto possível,
que podia explicar a existencia do parentesco ma-
terno, acabou por ser admittida como indiscuvel,
tanto mais que ella conformava-se com um pheno-
meno parallelo, o do primitivo communismo agrario.
E o estado da promiscuidade foi de tal modo exa-
gerado na elaborão doutrinal de que elle foi objecto,
que De Greef, o eminente sociologista belga, chegou
a concebê-lo por uma fórma muito diversa da que
tinha sido primeiramente admittida. Effectivamente,
segundo De Greef, a promiscuidade involve não
um desconhecimento completo dos laços de paren-
tesco, mas tambem uma certa confusão dos sexos,
não representando os vicios contra a natureza que
macularam as civilizações do Egypto, da Grecia e de
Roma e que continuam a subsistir no Oriente e exce-
pcionalmente na Europa, mais do que regressos ca-
racterísticos para habitos ancestraes quasi universal-
mente diffundidos. Em favor do estado de promiscui-
dade ou de hetairismo, tem-se argumentado com a
historia, com a ethnographia e com a sociologia.
— 489 —
A historia fornece testemunhos da existencia da
promiscuidade em diversos povos. Assim, Strabão
conta que em toda a Troglodica as mulheres e as
creanças eram possuídas em commum. Herodoto
diz que, entre os messagetas, cada um desposava
uma mulher mas que asavam todos delia em com-
mum. A existencia dam costume analogo entre os
antigos índios é-nos testemunhada pelas palavras do
Mahabbarata, de que as mulheres de todas as classes
são communs sobre a terra. O mesmo nos é attestado
pelos historiadores relativamente aos antigos habi-
tantes da Irlanda e da Inglaterra. Na Grecia existiu
a promiscuidade até ao tempo de Cecrops, segundo
se deduz do testemunho de Varrão.
A prostituição sagrada, commum a todos os povos
antigos, tambem não póde ter outra significão se-
não a de ser a consagração por meio da religo do
antigo regimen da commuuhão das mulheres. Se-
gundo refere Herodoto, na Babylonia cada mulher
devia prostituir-se pelo menos uma vez na vida no
templo de Venus, encontrando-se este costume tam-
bem na Armenia e em algumas partes da ilha de
Chypre, segundo narra Strabão.
Finalmente, não pôde haver duvida alguma a res-
peito da existencia em alguns povos do jus pritnae
noclis sociale, em virtude do qual a mulher, no dia
das suas nupcias, se entrega aos amigos e convida-
dos, antes de pertencer exclusivamente ao marido,
costume que representa indiscutivelmente um vesgio
da promiscuidade primitiva. Este direito existiu,
segundo Herodoto, na Lybia, e, segundo Diodoro da
Sicília, nas Balearas.
A ethnographia tambem foi chamada a depôr nesta
questão e os seus testemunhos foram completamente
favoraveis á hypothese da promiscuidade. Effectiva-
— 490 —
mente, a ethhographia apresenta-nos numerosos
exemplos de povos selvagens, em qne as relações
sexuaes se encontram dominadas pelo principio da
communidade. Entre esses povos notam-se os indí-
genas da California, os kurumbas, os irulas ndia),
cossacos zaporogos, etc. A facilidade com qne as
mulheres e as filhas dos selvagens se entregam aos
estrangeiros e hospedes, constituo uma nova prova
da promiscuidade primitiva. Muitas vezes, porém,
a communidade o abrange todo o grupo social,
restringe-se aos membros duma classe ou duma
associão menor, ou verificasse entre todos os mem-
bros dum grupo com os dum outro grupo. É o que
acontece em muitas ilhas do Pacifico, como em Ta-
hiti, Tonga, Hawaii, Nova Zelandia, etc. Os costu-
mes da prostituição sagrada e o jus primae noctis
sociale tambem foram encontrados em muitos povos
selvagens, como em diversas tribus da índia, da
Birmania, de Madagascar, da Nova Zelandia, teste-
munhando assim que o estado de promiscuidade
devia ter existido primitivamente entre estes povos.
A sociologia tambem não de adoptar outra dou-
trina a respeito da primitiva rma da vida sexual.
Effectivamente, as primeiras sociedades, com o seu
caracter incoherente, não permittiam a existencia
dos sentimentos que constituem a base da família.
O homem encontrava-se ainda muito proximo do
animal e por isso só podia comprehender e admittir
a satisfação bestial dos seus instinctos genesicos.
Nos grupos sociaes primitivos nada ha de organizado,
nada ha de definido, e por isso o mesmo devia acon-
tecer na funcção genesica.
Por ontro lado, a hypothese da promiscuidade é
a que melhor se harmoniza com a theoria da evolu-
ção, em que se parte duma homogeneidade indefi-
— 401 —
nida para uma heterogeneidade definida, visto deste
modo a família ser o resultado doma differenciação
que se realiza no decurso do desinvolvimento das
sociedades.
Finalmente, os abortos, os infanticídios, a prosti-
tuição, não se podem comprehender nos nossos
meios sociaes senão como a reminiscencia e o resí-
duo dum estado anterior em que esta situão era
commum a toda a sociedade. As camadas inferiores
e degradadas dos nossos centros de luz e progresso,
diz De Greef, mostram-nos claramente que, nos
tempos primitivos, devia existir um estado familiar
e moral analogo áquelle em que definha uma grande
parte dos nossos similhantes 1.
218. Matriarchado. Mas como é qne a huma-
nidade sáe deste estado tão baixo da evolução e
chega a organizar as primeiras famílias ? Por meio
do matriarchado, segundo os mesmos escriptores
que defendem a promiscuidade ou o hetairismo. O
matriarchado seria assim a segunda phase da evolu-
ção da família.
0 matriarchado, segundo Westermack, póde tomar-
se em tres sentidos. No sentido restricto, significa
um systema em que o pae não é membro da família
ou occupa ahi um logar subordinado e ás vezes
mesmo servil. No sentido lato, constituo um syste
ma em que o lio materno e não o pae é director da
1
De Greef, Introduction à la sociologie, tom. II, pag. 131
e seg.; D'Aguanno, La genesi e 1'evoluzione del diritto civile,
pag. 260 e seg.; Giovanni Amadori-Virgilii, L'instituto fami-
gliare nelle società primordiali, pag. 68 e seg.; Gust ave Le Bon,
L'homme et les sociélés, tom. II, pag. 269 e seg.; Groppali, Le-
zioni di sociologia, pag. 61 e seg.
— 492 —
família. No sentido latíssimo, é um systema em
que se admitte unicamente o parentesco pelo lado
das mulheres. É natural, como observa
Westermack, que uma palavra com significações tão
diversas, seja uma fonte constante de equívocos e
de confusões, sendo para desejar que se
restringisse o seu uso a limites convenientes. A
tendencia nos escriptores que admittem o
matriarchado, como a segunda phase da evolução da
família, é para o considerarem um systema de
organização familiar em que o homem é privado do
patrio poder e do poder marital. A supremacia que a
mulher teria na falia determinaria, como
consequencia natural e necessaria, o parentesco pela
linha materna, que seria deste modo um caracter
secundario do matriarchado.
Assim, Bachofen sustenta que as mulheres, que-
rendo sair do estado de abjecção em que se encon-
travam, por causa da promiscuidade primitiva, se
revoltaram, estabelecendo uma sociedade caracteri-
zada pela supremacia da mulher e pelo parentesco
materno. Esta explicação do apparecimento do
matriarchado foi vivamente combatida por as mulhe-
res o terem a possibilidade de reivindicar os seus
direitos e de se revoltar contra um costume
inveterado, admittido desde tempos immemoriaes.
A historia não nos apresenta exemplo algum de as
mulheres terem reivindicado os seus direitos, e a
sujeição absoluta em que se encontram as mulheres
entre os selvagens constituo um obstaculo
invencível a qualquer tentativa neste sentido.
D'Aguanno, por isso, dá outra explicão do appa-
recimento do matriarchado. Segundo este escri-
ptor, o matriarchado appareceu como consequencia
do desinvolvimento dos affectos domesticos, á
medida que o grupo social se torna mais compacto
e defi-
— 493 —
nido, em virtude da convivencia. A mãe começou
então a ministrar os seus primeiros cuidados aos
filhos, formando-se assim, sem revoltas e sem rei-
vindicões, pequenos nucleos, que eram as falias,
estabelecidos e organizados, em harmonia com os
princípios do matriarchado. Os filhos, que eram
creados pela mãe, recebendo os maiores carinhos,
o podiam deixar de ficar ligados a ella por uma
forte dedicação, radicando-se, no meio da promis-
cuidade, a auctoridade domestica na pessoa da mãe,
relativamente á qual o vinculo da consanguinidade
era certo e de facil reconhecimento. É daqui que
deriva a origem do matriarchado, que cbega a cons-
tituir-se definitivamente, quando se tornaram mais
fortes e íntimos os laços que prendiam os filhos á
mãe, fazendo com que estes não se separassem delia,
senão numa edade cada vez mais adeantada. A famí-
lia adquiriu então a cohesão e a foa duma verda-
deira sociedade, distinguindo-se, pela solidez dos
seus vínculos, do grupo social em que ella se acabava
de formar.
Mas, as explicões do apparecimento do matriar-
chado o ficaram por aqui, pois o materialismo
historico tambem procurou dar, em harmonia com
a sua doutrina do determinismo economico a rao
do apparecimento do matriarchado. Mas, neste cam-
po, é tambem difficil encontrar accordo entre os
escriptores.
Assim, Loria intende que a producção se reduzia
eno toda á agricultura e que esta se encontrava
exclusivamente confiada ás mulheres, dedicando-se
os homens ás funcções improductiveis, como era a
guerra. Ora, sendo o nucleo da producção primitiva
constituído pela mulher, era natural que ella viesse
tambem a formar o centro em volta do qual se agra-
— 494 —
passem os membros da família primitiva. A mãe
devia, por isso, tornar-se a base das relações de
parentesco, de filiação e de poder domestico, E,
deste modo, a organização materna da família pri-
mitiva assenta sobre um fundamento essencialmente
economico.
Bebei, pelo contrario, faz derivar a condição supe-
rior da mulher, qne originou o matriarchado, do
caracter rudimentar da producção primitiva, em que
se não differenciam as funcções masculinas e as
fnncções femininas, que deste modo em a ser equi-
valentes.
Brentano, por sua vez, considera o matriarchado,
como o resultado do predomínio feminino na econo-
mia privada. Com os progressos da agricultura, da
pastoricia e dos instrumentos do trabalho, o homem
torna-se o unico productor e constitue-se a proprie-
dade individual, e esta ao mesmo tempo qne deter-
mina a avero pela organizão matriarchal, fornece
tambem os meios de a derruir, tornando possível a
conquista ou a compra da esposa. Surge a escravi-
dão, o rapto das mulheres, e, por ultimo, como
epilogo desta radical evolução, o homem victorioso
e prepotente estabelece para a sua descendencia o
parentesco paterno.
Mas, qnalquer que seja a explicão qne se dê do
apparecimento do matriarchado, o que está fóra de
duvida para estes auctores é a existencia desta ins-
tituição como fórma primitiva da organização da
família e da sociedade. Encontram-se numerosos
vestígios delia no como dos tempos historicos sob
a rma de mythos, de lendas ou costumes admitti-
dos desde a mais remota antiguidade. No Egypto,
o mais antigo culto divino tinha por objecto uma
densa, a rainha gozava de prerogativas especiaes
— 495 —
relativamente ao rei, o direito regio justificava-se
com a genealogia materna e as molheres tinham:
grande auctoridade no seio da família. Entre os
aryanos, o filho chamava-se sunus, gerado, o que
prova ser conhecida unicamente a genealogia femi-
nina. No Mahabarata ha orna passagem donde se
deduz que, numa das raças indígenas, a dynastia
regia descendia pela linha feminina. No Genesis,
Abrao desposa a irmã Sara, reconhecendo ser
legitimo este facto por ella não ser filha da mesma
mãe.
A tradição das Amazonas, molheres guerreiras
que commandavam hordas numerosas, commum a
muitos povos antigos, tambem constitue um vestígio
do matriarchado. A fabula de Orestes, que matou
a e para vingar a morte do pae, assassinado por
esta e que teve no julgamento o voto contrario das
Eumenides, que reputavam o vinculo materno supe-
rior ao paterno, deplorando depois a sua absolvão,
obtida por intervenção de Apollo e Minerva, como
contraria ás antigas leis, reflecte tambem evidente-
mente a influencia do matriarchado. Entre os etrus-
cos, as inscripções funerarias quasi nunca contêem
o nome do pae do defuncto, mas o da mãe.
A falia baseada sobre a maternidade é commum
a muitos selvagens. Um exemplo perfeito do matriar-
chado foi encontrado pelos portuguêses quando se
estabeleceram na costa de Malabar. Effectivamente,
ahi a mulher tinha varios maridos, que eram consir
derados como hospedes no seio da família, sendo
ella que dirigia os negocios domesticos e exercia a
auctoridade sobre os filhos. Em Sumatra, ha uma
especie de casamento, em que a mulher compra o
marido, ficando este tendo na família da esposa uma
funcção subordinada. No momento da descoberta da
— 496 —
America, era regra geral nesta parte do mundo a
familia baseada sobre a maternidade.
Ha ainda uma prova do matriarchado no costume
da couvade, que apparece em diversos paises e de
que se encontram vesgios na antiguidade. Segundo
este estranho costume, o prodigalizados ao marido
todos os cuidados antes e depois do parto das mu-
lheres, como se fosse elle o parturiente.
É um parto ficcio, tendo por fim obter o reco-
nhecimento da paternidade numa epocha em que ella
não era admittida 1.
219. Matrimonio ambiliano As investigações
nltimamente feitas sobre o matriarchado levaram a
determinar e a precisar a condição jurídica do ma-
rido na família organizada em harmonia com este
typo social.
Segundo Post, os systemas fundamentaes a respeito
da condão jurídica do marido, quando se conside-
ram as sociedades humanas, no sen complexo, po-
dem reduzir-se a quatro: no primeiro, o marido,
por effeito do matrimonio, passa a fazer parte da
familia da' mulher; no segundo, cada um dos conju-
ges continua a fazer parte da familia propria; no
terceiro, o marido permanece na familia de origem,
da qual vem a fazer parte a mulher; no quarto,
ambos os conjuges se destacam das respectivas
falias e constituem uma familia nova e autonoma.
1
D'Aguanno, G
enesi e evoluzione del diritto civile,
pag. 264 e
seg.; Letourneau,
Évolution du mariage et de la famille,
pag. 394 e
seg.; Loria,
La sociologia,
pag. 276; Amadori Vir-gilii,
L'institute
famigliare nelle societá primordiali
,
pag. 54 e seg.; Westermarck,
Le matriarcat,
nos
Annales de l'Institut interna
-
tional de
sociologie
,
tom. II, pag. 114.
— 497 —
Ora, nem todos estes typos matrimoniaes o
compatíveis com os princípios sobre os quaes se
funda a organização das sociedades matriarchaes.
Só os dous primeiros typos é que o compatíveis
com o matriarcado, porque mente nelles o marido
se encontra privado do poder patrio e do poder
marital, privação que constituo o facto essencial e
característico da organizão matarchal. Só estes
dous systemas é que o praticados nas populações
que apresentam, na sua organização social, mais
largos traços do matriarchado.
Os dous ultimos typos suppõem que o marido ou
o chefe da falia a que elle pertence adquirem um
poder sobre a mulher e sobre a prole, mais ou me-
nos extenso, segundo o grau de desinvolvimento
social dos povos que os admittem, sendo, por isso,
inteiramente incompatíveis com o regimen do matriar-
chado. E, effectivamente, estes typos encontram-se
nas populões organizadas patriarchalmente, ou nas
populações que seguem o systema cognaticio ou
bilateral de parentesco e que sahiram, ha muito
tempo, do estado puramente matarchal da sua
evolão, ou em populações que atravessam uma
phase de transição do matriarchado para o patriar-
chado ou para a cognação.
Por outro lado, dos dous primeiros typos, o se-
gundo encontra-se em toda a sua pureza unicamente
entre os menangkabaos do centro da Sumatra e em
algumas tribus da America do Norte. E, embora
appareçam sobrevivencias delle, quasi esporadica-
mente, em varias populões, a área da sua diffusão
é relativamente restrícta e por isso esse typo não
póde considerar-se como um phenomeno de índole
geral, como a expressão dum estadio necessario do
desinvolvimento do casamento, tanto mais que elle
32
— 498 —
parece constituir simplesmente uma derivação das
fórmas do primeiro typo.
Este, pelo contrario, apresenta uma área de diffu-
são muito extensa, encontrando-se adoptado por
povos pertencentes a quasi todos os grupos ethnicos
fundamentaes, havendo, por isso razão para suspeitar
que elle constitue um phenomeno geralmente
diffundido no puro matriarchado. Ora, a rma mais
saliente e caractestica deste systema é o do ambil
anak, seguido pelos malasios e cujo caracter essen-
cial é constitdo pela posição subordinada, a mes-
mo servil, que occopa o marido relativamente á
mulher, de que elle vem a fazer parte por effeito do
casamento.
São inteiramente afins do ambil anak rias outras
fórmas matrimoniaes, que differindo delle relativa-
mente a elementos importantes, apresentam comtudo
mais ou menos accentuadamente o caracter funda-
mental do ambil anak, isto é, o vinculo de depen-
dencia do marido relativamente á familia da mulber.
A cada uma destas rmas matrimoniaes que
apresentam este caracter essencial, o Mazzarelia e
Amadori Virgilii a denominação de matrimonio am-
biliano, que, deste modo, comprehende o ambil anak
e as fórmas congeneres.
Mazzarella estuda o matrimonio ambiliano no seio
dos povos onde elle se encontra na sua rma para,
chegando á conclusão de que as instituições ambilianas
puras apparecem tanto mais diffundidas num povo,
quanto mais numerosos e caracteriscos o os vestí-
gios que o matriarcbado deixou nesse povo. Esta
doutrina, pom, não demonstra que o matrimonio
ambiliano se encontre universalmente admittido na
epocba matriarchal, visto as rmas ambilianas puras
existentes não serem suficientemente numerosas
— 499 —
para auctorizar tal conclusão. Com o fim de deter-
minar os limites da diffusão do ambil no matriarchado,
Mazzarella estudou um complexo bastante numeroso
de phenomenos, onde a analyse paciente e demorada
revela a existencia de outras tantas sobrevivencias
do matrimonio ambiliano. E assim faz entrar DO
quadro das populações do typo ambiliano um grande
numero de povos pertencentes a todas as raças e
dispersas sobre toda a superfície da terra, muitos
dos quaes atravessaram já ha muito o estadio ma-
triarchal da sua evolução, nada fazendo suspeitar áj
primeira vista a existencia de vestígios do matrimo-
nio ambiliano entre elles. E, deste modo, Mazzarella
chega á conclusão final, de que o matrimonio am-
bliano foi universalmente seguido no periodo do
matriarchado puro, sendo a esta a unica fórma
matrimonial admittida naquella obscura e remotíssima
phase da evolão social da humanidade 1.
220. Passagem do matriarchado para o patriar-
chado Mas como é que se passa do matriarchado
para o patriarchado, que constitue, segundo a nova
theoria, a terceira phase da evolução da família ? Por
outras palavras, como é que o pae se torna chefe da
familia e consegue substituir o parentesco paterno
no parentesco materno ?
Giraud Teulon recorre á theoria dos grandes ho-
mens para explicar esta transformação social. Foi
um homem de genio, um bemfeitor da humanidade
1 Mazzarella, La condizione giuridica del marito nella famiglia
matriarcale, na Rivista de storia e filosofia del dirtito, tom. II
pag. 81 e seg.; Giovanni Amadori Virgilii, L'Instituto famigliare
nelle società primordiale, pag. 60 e seg.
— 500 —
que teve pela primeira vez a idêa de dar o seu nome
a um filho, Bachofen tambem o è mais feliz na
explicação que deste facto, toda imbuída dum
sabor metaphysico. A apparição da não de pater-
nidade é uma conquista do espirito sobre a natureza
sensível e o seu progresso victorioso eleva o homem
acima das leis da vida material. Se o principio do
matriarchado é commum a todas as espheras da
creação terrestre, o homem, attribuindo um maior
valor ao poder procreador, sáe da sua antiga sujei-
ção e adquire a consciencia da sua funcção superior.
Pelo principio espiritual da paternidade, rompe as
caas do tellurismo e ergue-se para as reges mais
elevadas do cosmos. Estas explicações o
satisfizeram os adeptos da nova theoria, e por isso
elles procuraram dar uma nova explicação da
passagem do matriarchado para o patriarchado. Foi
o que fizeram Gustave Le Bon e D'Aguanno,
segundo os quaes a transformação do matriarchado
no patriarchado teria sido a consequencia da
escravio. Quando a vida da sociedade foi
melhorando, substituiu-se á morte dos vencidos a
sua escravidão, sendo natural que as mulheres
escravas servissem para satisfazer os instinctos se-
xuaes do vencedor, que devia conservá-las como
proprias, e com exclusão de qualquer outro. Os
filhos procreados deste modo consideravam-se pro-
priedade do pae, que se julgava com o direito de
dispôr delles, como dos outros escravos. Assim, se
constituo a primeira rma da sociedade paterna, não
baseada em sentimentos de affeição, mas na força e
na condição abjecta da mulher.
Esta fórma de sociedade devia obter bom acolhi-
mento, visto todos terem interesse em possuir indi-
vidualmente uma ou mais mulheres das outras tribus,
— 501 —
pois esta nova especie de presa satisfazia, no mais
alto gráo, o amor proprio, pela bravura que era
necessario empregar para a capturar e pelos serviços
que prestava. Assim se chegou a estabelecer o cos-
tume de raptar mulheres ás tribos vizinhas, quando
se não podiam conquistar na guerra.
Depois, a sociedade matriarchal primitiva foi-se
pouco a pouco transformando, com a introduão no
seu seio das famílias baseadas sobre a paternidade.
Estas, com o desinvolvimento obtido pelo grande
numero de mulheres, de filhos e de outros indivíduos
submettidos á auctoridade do chefe de familia, des-
tacaram-se da sociedade matriarchal e começaram a
ter uma vida autonoma e independente. E, como a
familia, assim destacada do tronco matriarchal, se
desinvolve pela multiplicação dos seus membros, que,
reconhecendo, as vantagens da nova communidade,
ficam sob a auctoridade do chefe commum, apparece
uma nova sociedade, tendo por chefe o ascendente
mais antigo, isto é, a sociedade patriarchal 1.
221. Critica da serie promiscuidade, matriar-
chado e patriarchado. Apesar de todos os ar-
gumentos que se apresentam, a hypothese da
promiscuidade não se póde por fórma alguma consi-
derar provada. Westermack demonstrou que a
maior parle das asserções relativas ao estado de
promiscuidade eram erroneas e que muitas das
outras provas, referentes principalmente aos povos
antigos, devem ser recebidas com grande reserva.
1
D'Aguanno, La genesi e 1'evoluzione del diritto civile, pag.
271 e seg.; Gustavo Le Bon, L'Homme et les sóciétés, tom. II, pag.
294 e seg.; Starcke, La famille primitive, pag. 240.
— 502 —
São numerosas as contradicções dos escriptores,
o sendo raro que um povo, considerado por um
viajante como vivendo no estado de promiscuidade,
venha a ser apresentado por outros como notavel
pelo seu amor de família e pelo sentimento de fide-
lidade conjugal a á morte. Os viajantes nem sempre
se encontram em condições de conhecer bem os
costumes e as instituões dos povos que visitam,
tornando-se necessario combinar os seus testemu-
nhos para apurar a verdade. Muitas vezes a fre-
quencia do divorcio e a ausencia da cerimonia do
casamento têem levado a admittir em alguns povos
o estado de promiscuidade, quando a conclusão a
tirar seria a da falta do casamento no sentido euro-
peu da palavra.
A ethnographia entre os antigos encontrava-se mal
estudada, e por isso os seus conhecimentos sobre as
tribus barbaras ou selvagens deviam ser muito im-
perfeitos e incompletos. Plínio, no mesmo capitulo
onde affirma que os garamantes viviam no estado
de promiscuidade, falia duma outra tribu africana,
cujos membros não tinham cabeça e apresentavam a
bocca e os olhos no peito. Herodoto contradiz-se,
pois affirma que os messagetas desposam uma mulher
e usam de todas em commum, quando este facto se
deve considerar antes como um exemplo de excessiva
dissolão, perfeitamente compatível com o caracter
grosseiro da moral primitiva.
Mas ainda mesmo que todas as affirmações dos
escríptores, a respeito da promiscuidade fossem
verdadeiras, ainda assim o seria licito considerar
este estado como uma phase pela qual tem passado
toda a humanidade. São casos inteiramente exce-
pcionaes e sobre elles o de assentar uma con-
clusão geral e absoluta. Por causas especiaes como
— 803 —
a falta de mulheres, póde-se ler imposto a nm
povo, por exemplo, aos fuegíanos, o hetairismo,
mas a propria relatividade da causa demonstra a
não universalidade do facto.
Nada auctoriza a considerar a promiscuidade
como o regimen sexual da vida primitiva do
homem, pois ha numerosos povos selvagens e
barbaros nos quaes as relações sexuaes fóra do
casamento se produzem raras vezes, sendo a
impudicicia da mulher considerada mesmo como
uma vergonha e como um crime. Parece até que o
contacto com civilizações mais elevadas tem sido
prejudicial para a moralidade dos povos
selvagens, desinvolvendo a irregularidade e a
desordem das suas relações sexuaes. Por outro
lado, a promiscuidade é rara nos vertebrados
superiores, o que constituo uma presumpção
muito forte contra a existencia da promiscuidade,
como um estado primitivo e necessrio das uniões
sexuaes da humanidade.
A prostituição sagrada, que se apresenta como
uma reminiscencia da promiscuidade, não pôde
ter esta interpretação, porquanto aquelle costume
faz parle do culto pballico, que unicamente
apparece em povos que abandonaram, ha
muito, o estado primitivo. É a voluptuosidade
genesica que faz surgir mythos e templos em
honra do instincto sexual personificado e
deificado, e desinvolve costumes estranhos em
harmonia com a moralidade de então.
O jus primae nocti sociale coordena-se com o di-
reito que tem o marido de emprestar a mulher,
derivado do conceito que delia se fórma nas
sociedades primitivas. A mulher nestas
sociedades não passa duma cousa, dum animal,
sobre que o homem tem um poder absoluto.
Nestas condições, o jus primae noctis sociale
de considerar-se simplesmente
— 504 —
como um acto de boa educação e de amizade, tor-
nado obrigatorio pelo costume.
A mesma explicação se de dar do jus noctis do
estrangeiro, pois este direito é unicamente devido ás
ias dos selvagens a respeito da hospitalidade. Wes-
termack nota contra a interpretão do jus noctis do
estrangeiro, como um vestígio da promiscuidade,
que não se cede ao hospede unicamente a mulher
mas tambem a filha. Esta consideração, porém, o
tem valor algum, pois a promiscuidade de esten-
der-se a todas as mulheres.
Mas a hypothese da promiscuidade não mente
o se encontra provada, como se oppõe a todas as
idéas que podemos formar do homem primitivo.
Summer Maine apresentava contra esta hypothese o
facto da promiscuidade ser muito desfavoravel á
fecundidade. Ora, a infecundidade, no meio de po-
vos perpetuamente em lucta, determinaria a fraqueza
e a destruição. E Darwin nota que, segundo o que
sabemos do ciume de todos os quadrupedes machos,
é quasi impossível ter a promiscuidade prevalecido
em alguma phase do desinvolvimento do homem.
Effectivamente, a promiscuidade é inteiramente
incompatível com o sentimento do ciume commum
aos mammiferos e predominante dum modo universal
na humanidade. Giraud Teulon e Gustave Le Bon
affirmam que o ciume é desconhecido de quasi todos
os povos o civilizados, mas esta asserção é abso-
lutamente erronea. É certo que os selvagens têem
o costume de ceder e de prostituir as suas esposas,
mas esse costume o é incompatível com o ciume
que, como o amor, o apresenta em todos os povos
o mesmo caracter. Uma mulher casadao póde
cohabitar com outro homem sem auctorizão do
marido, mas esta auctorização è concedida como um
— 505 —
acto de hospitalidade ou de amizade oa como um
meio de lacro. O ciume primitivo tem por isso um
caracter reflexo, derivapdo do pensamento que
tem o macho duma possível violação do seu
poder sobre a mulher. Não é fundado de modo
algum sobre o affecto, pois do contrario não se
poderia explicar a mísera condição da mulher
relativamente ao homem.
Ás condições do meio ambiente social
primitivo tambem não exigem necessariamente a
promiscuidade. Nada ha nelle que possa impedir
o homem de ter uma ou mais mulheres
individualmente. Ê pouco natural que os homens
fortes, que tivessem conseguido obter as
mulheres mais convenientes ao seu gosto,
concedessem voluntariamente aos seus rivaes
uma parte da sua preciosa presa.
A hypothese da evolução não fica prejudicada
com a não admissão do estado da promiscuidade
primitiva, pois nem por isso a família deixa de
ser o resultado, neste caso, duma longa e
progressiva evolução. Muitos evolucionistas
mesmo, como Her-bert Spencer e Letourneau,
rejeitam a promiscuidade. As desordens sexuaes
que se encontram nas sociedades modernas
podem ser o resultado do regresso a um estado
de moralidade inferior, como seria a do homem
primitivo, sem que seja necessario para as
explicar a admissão do regimen da
promiscuidade. Por conseguinte, podemos
concluir com Westermack, a hypothese da
promiscuidade, em logar de pertencer, como
pensa Giraud Teulon, á classe das hypo-theses
scientificamentc permittidas, não tem base
nenhuma real e é essencialmente anti-scientifica.
Do mesmo modo, concluiu tambem Grosse,
sustentando que a hypothese da promiscuidade
obrigatoria se deve considerar definitivamente
refutada.
—506 —
A theoria do matriarchado o se póde tambem
considerar verdadeira. Effectivamente a theoria ma-
triarchal funda-se unicamente sobre vagas presum-
pções. Os seus sectarios nem mesmo podem adduzir
em defesa de tal doutrina que o matriarchado appa-
rece nas raças selvagens mais grosseiras e inferiores.
Nos índios da America e nos negros da Africa
observa-se que o systema patriarchal é seguido pela
maioria das tribos mais inferiores.
Os sociologos que em escripto sobre a historia
primitiva em commettido frequentemente o erro de
inferir da existencia duma instituão entre alguns
povos selvagens, a soa universalidade num certo
periodo do desinvolvimento da humanidade. Ora,
do facto de se ter encontrado o matriarchado em
alguns povos selvagens não se pôde de modo algum
concluir que elle seja uma phase necessaria da evo-
lução da famila.
O matriarchado poder-se hia admittir, desde o
momento em que as causas da sua existencia pudes-
sem ter actuado universalmente na vida passada da
humanidade. As causas da existencia do matriar-
chado apresentadas pelos escriptores que defendem
esta instituição o podem ter tal caracter, e por isso
não ha razão para acceitar este typo de organizão
familiar como uma phase necessaria da evolução
social. Todos os factos historicos e ethnographicos
levam a admittir a influencia decisiva do homem na
sociedade e na família, desde os tempos primitivos.
O materialismo historico esquece que na vida eco-
nomica primitiva o predomínio devia ter pertencido
ao homem, visto eno as fórmas unicas da producção
terem sido a pesca e a caça.
O homem no estado selvagem não é tão indiffe-
rente ao bem estar da sua família e dos seus filhos,
— 507 —
como geralmente se suppõe. É por isso que os
deveres paternos se encontram reconhecidos em todos
os povos, ainda os de civilização mais inferior, como
já tivemos occasião de observar. Os miseraveis Bock
Veddas de Ceylão, segundo Emerson Tennent, reco-
nhecem a obrigação marital e o dever de sustentar
as suas famílias.
A instituão da couvade, em que tanto se tem
insistido, tambem não se póde considerar como um
vestígio do matriarchado. Effectivamente, segundo
Starck e ontros escriptores, approximando a couvade
de certos costumes cuja significão é clara e evi-
dente, verifica-se que ella não foi estabelecida nem
em beneficio da mãe, nem em beneficio do pae, visto
ter por fim unicamente o interesse do filho, ao qual
se julgava transmittir a bravura paterna, dando ao
pae occasião de a manifestar, pois era necessario
ter uma grande coragem para supportar prescripções
tão numerosas e tão duras.
Finalmente, os escriptores que defendem o ma-
triarchado em numa grave contradicção, pois, por
um lado, collocam nas primeiras fórmas da sociedade
uma organização familiar que attribue a supremacia
á mulher e, por outro, descrevem os costumes pri-
mitivos com côres muito carregadas. Ora, como
adverte Tarde, o reconhecimento da auctoridade da
mulher por sêres mais fortes do que ella só póde
explicar-se por um grande desinvolvimento do amor
ou da piedade filial.
Tudo leva a crêr, como conclue Grosse, que os
casos de matriarchado constituem verdadeiras ano-
malias e excepções 1.
1
L'annè sociologique, vol. I, pag. 332; Virgilii Amadori,
L'istituto famigliare nelle società primordiali, pag. 72 e seg.;
—508 —
222. 0 clan. Para se poder estudar a consti-
tuição primitiva da familia, livre das hypotheses da
promiscuidade e do matriarchado que a obscurecem
e dificultam, torna-se necessario conhecer a organi-
zação e a estructura do clan.
Segundo Durkheim, o clan é um grupo de indiví-
duos qqe se consideram parentes entre si, mas que
reconhecem o parentesco exclusivamente por um
signal particular: terem o mesmo totem. O totem é
umr, animado ou inanimado, mais geralmente
vegetal ou animal, de que o grupo se reputa descen-
dente e que lhe serve simultaneamente de emblema
e de nome collectivo. Se o totem é um lobo, todos
os membros do clan crêem haver tido um lobo por
antepassado, e consegnintemente ter cada um ainda
em si alguma cousa de lobo. E por isso adoptam
para si esta denominação: são Lobos.
Assim definido, o clan é uma sociedade domestica,
visto ser formada por pessoas que se consideram
procedentes da mesma origem, mas distingue-se das
outras sociedades desta natureza, pelo facto do pa-
rentesco se fundar unicamente na communidade do
totem e não em relações de consanguinidade defini-
das. Os membros do clan são parentes, não por
serem irmãos, paes, primos, uns dos outros, mas
porque usam todos o nome de tal animal ou de tal
planta.
Westermack, Origine du mariage dans L'espèce humaine, pag. 57
e seg.; Westermack, Le matriarcat, nos Annalet de l'Institut
de sociologie, tom. II, pag. 123 e seg.; Starckè, La famille pri
mitive, pag. 249 e seg.; Tarde, Transformations du droit, pag. 40
e seg.; Letourneau, L'évolution du mariage et de la famille,
pag. 46 e seg.
— 509 —
O clan parece ter sido universal. Todas as socie-
dades, nota Durkheim, passaram por esta organiza-
ção ou nasceram doutras que tinham primitivamente
passado por ella. O clan celtico, o rod dos eslavos,
os Geschlechtez germanicos constituem vestígios his-
toricos dos antiquíssimos agrupamentos totemicos.
Robertson Smilh demonstrou que os hebreus, do
mesmo modo que todas as populações semitas, pra-
ticaram o totemismo. Kobler tambem intende que
o clan com a organização totemica é a instituição
mais antiga que se conhece, tendo, pom, com a
falia relões evidentes, visto o totem ser honrado
como um antepassado do grupo.
0 parentesco do clan é superior a todas as rela
ções de consanguinidade. É delle que derivam os
unicos deveres domesticos que a sociedade sancciona,
os unicos que têem importancia social. Algumas
vezes, o clan, como o clan australiano, comprehende
no seu seio familias restrictas, formadas dum homem;
da mulher ou das mulheres com que elle vive e dos
seus filhos menores; mas estas familias constituem
grupos privados que os indivíduos fazem ou desfa
zem á sua vontade, sem que precisem de se confor
mar com alguma norma definida. A sociedade não
intervem na sua organizão. Os indiduos que
compõem o clan não só se consideram descendentes
dum antepassado commum, mas tambem sustentam
relações uns com os outros identicas ás que em todos
os tempos foram consideradas caractesticas do pa
rentesco. É o que acontece relativamente á vindicta,
que foi considerada sempre um dever dos parentes
e que incumbia ao clan 1.
1
Durkheim, La prohibition de 1'inceste et ses origines, no
Année sociologique, tom. I, pag. 2 e seg.; Giovanni Amadori
— 510 —
223. Exogamia. Um dos institutos mais cara-
cterísticos do clan é a exogamia regra em
virtude da qual é prohibido aos membros dum clan
unirem-se sexualmente entre si. Este costume é
muito geral e por isso não admira qne se tenham
apresentado as theorias mais diversas para o
explicar.
Mac Lennan intende que a exogamia foi o
producto do infanticídio systematico das mulheres
nas sociedades primordiaes, originado e justificado
pelo facto das mulheres constituírem um pesado
encargo para as organizações primitivas, que não
tenham meios sufficientes para as sustentar. A
pratica do infanticídio foi muito limitada e por isso
o se de fazer derivar desta causa um effeito o
geral. E se, effectivamente, a exogamia tivesse esta
causa, é claro que ella nada remediaria, visto ser
tambem difficil encontrar mulheres nos outros
clans. E sempre ficaria por demonstrar a razão por
que se prohibiu o tomar como esposas as mulheres
que existiam em pequeno numero no mesmo clan.
Herbert Spencer faz derivar a exogamia do facto
de ser considerado, como um grande guerreiro e
respeitado com a publica considerão, aquelle qne
conseguia obter uma mulher, por meio do rapto
violento, noutro clan. 0 desejo de imitação e de
emulação tornou depois este costume geral. Tal
explicão não mostra como este uso se
transformou, com o tempo, numa prohibição
rigorosa de apropriar as mulheres do proprio clan.
Virgilii, L'instituto famigliare nelle societá primordiale, pag. 99 e
seg.; Kohler, Zur Urgeschichte der Ehe, Totemismus, Gruppen-
che, Mutterrecht, no Année sociologique, tom. I, pag. 306 e seg.
— 511 —
Morgan e Steinmetz fazem derivar esta
prohibição do conhecimento que os primeiros
homens tiveram dos effeitos prejudiciaes dos
casamentos entre consangneos, pelo que diz
respeito á selecção natural.
Mas, os homens primitivos não podiam ter este
conhecimento, visto ainda não haver a idêa da
consanguinidade natural. A irreílexão e a
violencia dos povos primitivos estão em
desharmonia com a idêa dos resultados
prejudiciaes das uniões consanguíneas, os quaes
hoje são muito contestados pela sciencia.
Bachofen attribue a exogamia ao facto dos
homens unicamente poderem apropriar as
mulheres raptadas nas tribus estrangeiras, visto
relativamente ás outras dominar o regimen da
commnnidade. Ter-se-hia assim formado um
prejuízo desfavoravel aos casamentos
endogamicos. Esta explicação basêa-se na
hypothese do hetairismo, qne está longe de se
poder considerar provada.
Starcke considera a exogamia uma
consequencia do conceito primitivo que faz da
mulher a propriedade do homem. Procurava-se,
por este modo, evitar que a mãe se tornasse
propriedade do filho. Esta explicação tambem
não é satisfactoria. porquanto a exogamia não se
limita á mãe e ao filho sómente, e apparece antes
de se reconhecer uma verdadeira e propria
relação de filiação por toda a vida.
Westermack, seguido por Schmoller, explica a
exogamia pela aversão dos selvagens pelo
incesto, o como acto immemorial, mas por a
convivencia contínua deprimir a excitação
sexual. A exogamia teria sido estabelecida para
evitar estes incestos, não determinados pelo
criterio do parentesco, mas pelo da convivencia
unicamente. Não se comprehende, porém, como
um sentimento, tão puramente individual, e que
nada podia interessar á sociedade de
— 812 —
então, tenha dado logar a uma prohibição sanccio-
nada com penas tão graves, sendo até em alguns
paises punidos os transgressores com a pena de
morte. Depois, este effeito da convivencia sobre o
instincto sexual representa um tal refinamento da
sensibilidade, que é para duvidar que se tenha veri-
ficado nos homens primitivos.
Por sua vez, Loria intende que a exogamia foi um
resultado das exigencias imprescindíveis da produ-
cçSo nos primeiros tempos. Effectivamente., a exo-
gamia circumscreve os primeiros grupos familiares,
que ficam rigorosamente delimitados com a prohibi
ção imposta aos seus membros de se unirem entre
si matrimonialmente. Ora, esta delimitação torna
mais facil organizar no seio de cada um dos grupos
uma efficaz associação do trabalho. Além disso, a
exogamia serve ainda para ampliar vantajosamente
os grupos domesticos, pois, quando o marido deixa
o seu grupo para vir habitar com a mulher, dá-se
um augmento numerico no grupo familiar a que per-
tence a mulher. Este augmento é de grande utili-
dade, porque torna possível uma mais ampla divisão
e associação do trabalho, que desinvolve a sua
efficacia e productividade. Segundo Loria, por isso,
a verdadeira rao da exogamia é a de ella ser um
expediente destinado a circumscrever e a augmentar
numericamente os primitivos grupos familiares e a
desinvolver, por conseguinte, a sua força produ-
ctiva.
É pouco admissível, porém, que os homens primi-
tivos tenham organizado o instituto da exogamia,
como meio de obter e conseguir uma maior força
productiva. Uma o rigorosa regulamentão do
trabalho, o ferozmente sanccionada, briga inteira-
mente com o caracter da vida social de então, ainda
— 513 —
incerta e vacillante na maior parte dos seus
aspectos. Não se concebe como a exogamia possa
ter favorecido a divisão do trabalho, desde o
momento em que não se encontra relação alguma
de cansa e effeito entre os dous phenomenos. E,
como a exogamia se dava em todos os clans, não
podia verificar-se um augmento numerico delles,
por effeito daquella instituição, mas orna troca
continua de indivíduos entre estes grupos.
Amadori Virgilii explica a exogamia como a
consequencia da suprema necessidade de manter
as pequenas sociedades primitivas solidamente
unidas, evitando as luctas intestinas, que teriam
determinado a posse da mesma mulher. Estas
luctas seriam profundamente prejudiciaes,
tractando-se dum organismo debil e fraco, que
precisava de toda a energia possivel para reagir
contra as forças do ambiente e contra os outros
grupos sociaes.
Esta explicação que Amadori Virgilii da
exogamia tambem não nos parece acceitavel,
pois, se esta instituição podia evitar as causas
internas de dissolução do clan, podia provocar as
luctas com os clans vizinhos, que ainda podiam
ser mais prejudiciaes. Por outro lado, a exogamia
encontra-se tão intimamente ligada com a
constituição organica do clan, que ella não póde
ter uma explicação em conveniencias mais ou
menos admissíveis destes grupos sociaes,
Parece-nos, por isso, que a explicação mais
acceitavel da exogamia é a apresentada por
Durkheim, que filia esta instituição no
totemismo. Os membros do clan eram parentes
por julgarem que tinham a mesma origem e
reconheciam este parentesco pelo nome da tal
planta ou animal que usavam. Conside-ravam-se
como constituindo um só sangue, uma só
33
— 514 —
carne, que era a do ser mythico donde descendiam.
Nestas' condões, comprehende-se, que, em virtude
do parentesco tolemico, um homem que pertence ao
clan do Lobo, por exemplo, não se possa unir a uma
mulher do mesmo clan ou a uma mulher dum clan
differente, se o clan usa o mesmo totem. É isto o
que se tem observado.
Se os clans duma mesma triboem sempre e
necessariamente totems distinctos—visto elles o se
poderem distinguir um dos outros por outra fórma
assim não acontece com os clans pertencentes
a tribus differentes. Ora, qualquer que seja a tribo,
entre dous indiduos do mesmo totem são absoluta-
mente probibidas as relações sexuaes.
Segundo a maior parte das narrões, esta prohi-
bição applica-se a todas as relações sexuaes. Alguns
observadores notam que, em certas sociedades, só
estão sujeitos a esta regra os casamentos regulares.
Mas, além destes testemunhos serem a excepção, a
verdade é que primitivamente não podia haver esta
restricção á lei da exogamia, pela simples razão de
que não havia ainda criterio para distinguir uma
união regular duma união livre 1.
224. 0 totemismo e o parentesco materno. O
totemismo explica tambem satisfactoriamente o pa-
rentesco materno, a respeito de cuja existencia num
certo periodo do desinvolvimento da humanidade não
1
Durkheim, La prohibition de 1'incest et ses consequentes, no
Annie sociologique, tom. I, pag. 3 e seg.; Amadori-Virgilii, L'is-
tituto famigliare nelle società primordiali, pag. 100 e seg.; Loria,
La sociologia, pag. (78 e seg.; Westermarck, Origine du ma-riage
dons 1'espèce humaine, pag. 340 e seg.; Starke, La famille
primitive, pag. 210 e seg.
— 515 —
póde haver duvida alguma. Effectivamente, por um
lado, quanto mais rudimentares são as sociedades,
tanto mais predomina o clau materno. É mui geral
na Australia, onde se encontra quatro vezes sobre
cinco. É mais raro na America, onde a proporção
não é senão de tres ou mesmo de dous para um.
Ora, os Pelles-Vermelhas attingiram um estado social
sensivelmente superior ao dos australianos. Nunca
se dá a transformação dum clan paterno num clan
materno, tendo-se, porém, effectuado frequentemente
a transformação inversa.
Por outro lado, é um principio geral que ninguem
póde ter dous totems ao mesmo tempo. O individuo
que participasse simultaneamente de dons totems seria
um ser hybrido, um monstro inconcebível. o se
pôde ser ao mesmo tempo um lobo e uma lebre,
uma tartaruga e uma serpente. Mas, em virtude da
exogamia, os dous esposos não podem ter o mesmo
totem. Por conseguinte, o filho deve pertencer exclu-
sivamente ao totem do pae ou da e, E, como do
totem depende o parentesco, este ou ha de ser estri-
ctameote agnatico ou puramente uterino, não se
podendo possuir duas falias, porque se não podem
ter dous totems. De modo que a filiação tinha neces-
sariamente de ser unilateral. Em face, pom, da
precedencia que tem o parentesco uterino relativa-
mente ao masculino, parece indiscutível que o totem
se transmittia pela linha materna.
A filiação uterina, como nota Durkheim, vae sendo
abalada pela lei da exogamia, combalida com o uso
segundo o qual a mulher deve viver com o marido.
Deste modo, cada clan deixa estabelecer ra da sua
área gerações que lhe pertencem, recebendo outras
que lhe o estranhas. Dahi uma troca constante
de população, um movimento de integração e de
— 516 —
desintegração entre os clans, qne havia de trazer
como consequencia o enfraquecimento do grupo to-
temico.
É que as fracções de clans diversos que se encon-
tram assim rennidas num mesmo logar e vivem uma
mesma vida, fórmam uma nova sociedade, indepen-
dente do totem. Á medida que ellas se desinvolvem
vae assumindo um caracter secundario a organizão
do clan, que deste modo tende a desapparecer.
Ao mesmo tempo os filhos encontram-se sob a
dependencia dos parentes paternos, e conservam-se
por isso afastados do clan da e. Por todas estas
causas, o parentesco paterno dever-se-hia ter sub-
stituído ao uterino 1.
1
Dorkheim, La prohibition de 1'incest, no Année sociologique,
tom. I, pag. 22 e seg.
CAPITULO II
ORGANISMO DA FAMILIA
SUMMARIO : —225. As gentilitates da Península 226. A
família na Hespanha primitiva. — 227. A gens romana-
Conceito deste aggregado. 228. Organização da gens.
229. Família romana. Seus caracteres geraes.—230. Agna-
ção. — 231. Cognação.—232. A sippe germanica. Com-
parão deste aggregado com a gens. 233. Funões da
sippe.—234. A falia germanica. Sua estructura.—235. O
parentesco germanico. — 230. Falia wisigothica e da
Reconquista. 237. Família portuguêsa. 238. Desin-
tegração da falia moderna. Theoria de Herbert Spencer.
226. As gentilitates da Península. — Qualquer,
porém, que tenha sido a fórma originaria da
família, o certo é que entre os povos aryanos se
encontra como unidade social primitiva um
aggregado de caracter familiar, a gens, que
estudaremos mais desin-volvidamente no direito
romano. Não admira, em taes condições, que a
gens, tambem appareça na Hespanba primitiva.
A gens revestia na Hespanha primitiva um
caracter simílhante ao que tinha entre os
romanos. O nome com que se designa este
agrupamento, derivado evidentemente de gens,
diz Hinojosa, e ainda o silencio dos escriptores
classicos a respeito desta instituição, mostram
que ella não se differenciava essencialmente da
organização gentilicia dos gregos e dos romanos.
O unico meio porque podemos conhecer esta
instituição na Hespanha primitiva é o das
inscripções, não permittem que se ponha em
duvida a existencia das gentes, que se encontram
ahi designadas pelo
— 518
nome de gentilitates, por no imperio romano se ma-
nifestar a tendencia para applicar a expressão gens
as nações.
Segundo os estados feitos por D. Joaquim Costa
sobre estas inscripções, nota-se que frequentemente
os nomes das gentilitates terminam em cum, que
deriva da raiz sanskrita gan gerar, que deu origem
ao yev dos gregos e à gens do latim. Era pois o cum
dos celto-iberos a reuno de todas as familias colla-
teraes procedentes dum mesmo ascendente e agru-
pada em torno dum chefe commum. Quando o latim
penetrou na Península o bastante para se exprimi-
rem por elle as relões do direito indígena, Roma
tinha perdido a noção de gens, designando com esta
palavra as nões e tendo adoptado o vocabulo gen
tilitas para designar a organização politico-civil dos
parentes.
As gentilitates prestavam culto aos ascendentes
communs a todos os gentiles. Effectivamente,.cada
gentilitas suppunha um fundador, que era venerado
por ella como ama deidade ou genio. Assim, á gen-
tilitas Broccica corresponde o deus Brocco, à genli-
cas Bundalica o. deus Bundalo, à gentilitas Tullonica
o deus Tullonio, etc. É o que se dava tambem entre
os romanos, pois os Clauiius veneravam Clausus os
Julius, Julius, os Calpurnius, Calpus, etc. Tinham
tambem sepultura em commum, como mostram as
linhas, ora parallelas, ora circulares, de tumulos,
que se encontram frequentemente em certas regiões
da Península. Constitam tambem poderosas insti-
tuições de defesa e de vingança, com uma forte
organização para a guerra, como demonstra Perez
Pujol 1.
1
D. Joaquim Costa,
Poesia
popular
espanola y mitologia y
litteratura
celto hispanas,
pag. 232 e seg.; Hinojosa,
Historia
— 519
226. A família na Hespanha primitiva.
Pouco podemos dizer da organização das famílias
que constituíam as gentilitates, visto serem muito
imperfeitos e deficientes os elementos que
possuímos a respeito desta instituição na
Hespanha primitiva.
Ha vestígios do totemismo, pois apparecem-nos
nas inscripções differentes grupos sociaes, tendo
por emblema e nome collectivo, um animal ou
uma planta. É por isso tambem que se têem
encontrado na Península numerosas estatuas de
varias especies de animaes.
Temos tambem algumas noticias a respeito do
parentesco uterino ou materno. Estrabão, referin-
do-se aos cantabros, diz, como vimos," que as
mulheres são neste povo as herdeiras de tudo, de
modo que são ellas que se encarregam da
collocação de seus irmãos, resultando daqui uma
especie de ginecocracia, que é cousa mal
pensada em politica. Nas inscripções illustradas
por Fitta, encontram-se exemplos de famílias
com o nome, não do pae, mas da mãe.
Tambem apparece na Hespanha primitiva a
cou-vade. Effectivamente, segundo Estrabão,
entre os cantabros, as mulheres são tão fortes,
que, apenas têem dado á luz, servem os homens,
que se mettem na cama em logar delias.
Mas, pondo de parte estes elementos que têem
sido considerados como vestígios do
matriarchado, a organização familiar que se
encontra melhor caracterizada entre os iberos e
celtas é a do patriarchado.
general del derecho espanol, tom. I, pag. 72 e seg.; Perez Pujol,
Historia de las instituciones de la Espana goda, tom. I, pag. 28 e
seg.
— 520 —
0 patriarchado abrange a vida social do tempo, em
todo o seu conjuncto, sendo o pae senhor, juiz, legis-
lador, chefe militar e sacerdote da família.
Das noticias que nos dão incidentemente os escri-
ptores gregos e latinos, especialmente ao tractar das
mulheres dos caudilhos hespanhoes, de inferir-se,
segundo Hinojosa, que entre alguns povos hibericos
reinava a monogamia. Parece confirmar esta conclu-
são o facto destes escriptores, quando fallam destas
mulheres, empregarem o singular.
As falias praticavam e seguiam o culto domes-
tico. O pae era o sacerdote deste culto domestico,
como o patriarcha da gentilitas o era do culto genti-
licio. Os ascendentes transformavam-se em divin-
dades logo que desciam ao tumulo. As sepulturas
eram os templos deste culto, visto cada novo sepul-
chro que se abria, dar origem a uma nova consa-
gração aos manes dos antepassados 1.
227. A gens romana. Conceito deste aggregado.
A gens foi durante largo tempo a base da organi-
zação social dos romanos.
A reconstituição historica, porém, da gens offerece
muitas difficuldades, porque ella a partir das origens
do Estado romano, encontra-se dominada por um
processo de dissolão e de desintegrão, perfeita-
mente evidenciado no facto de muitas das snas fun-
cções doutros tempos, de caracter politico, militar
ou legislativo, terem sido absorvidas pela cidade.
Os estudos sobre este assumpto unicamente se orien-
1
Hinojosa, Historia general del derecho espanol pag. 73 e seg.;
Perez Pujol, Historia de las instituciones sociales en Espana, tom. I,
pag. 16 e seg.; Joaquim Costa, Poesia popular espanola y
mitologia y litteratura celto-hispanas, pag. 295 e seg.
— 521 —
taram no verdadeiro sentido, depois que as investi-
gações feitas sobre o grupo patriarchal no Oriente
demonstraram que, anteriormente á cidade, tinha
existido outro peodo de organização social, deri-
vando o seu caracter fundamental da gens. Circum-
stancias historicas especiaes tinham conservado
estacionario e immovel, nas suas principaes linhas,
o grupo patriarchal no Oriente, e isto permittiu
comprehender e reconstituir no seu caracter primitivo
a gens, que, na Grecia e em Roma, se tinha transfor-
mado com a creação da cidade.
Ainda assim apparecem divergencias nos escripto-
res relativamente á verdadeira natureza da gens.
Segundo Niebuhr, seguido por differentes tratadistas,
a gens era ama creação artificial da lei, orna asso-
ciação politica de varias famílias estranhas umas ás
outras. Constituía uma sub-divio da caria, formada
por dez famílias, como a caria o era por dez gentes
e a tribo por dez curias. Em favor de tal doutrina,
argumenta com as instituões gregas, onde appare-
cem as gentes como divisões das phratrias, corres-
pondentes ás carias romanas, com um texto de
Dionísio d'Halicarnasso, que falia da divisão das
carias em decurias, que no seu intender, o podem
ser senão as gentes, e com varias definições de gen-
tilidade, nas quaes o se faz menção de quaesquer
relações de parentesco.
Os argumentos apresentados por Niebuhr, não
lêem valor algum. Effectivamente, como diz o Sr.
Dr. Montenegro, o exemplo offerecido pelas institui-
ções da Grecia, quando acceitavel, que o não é,
pois a maior parte dos auctores tambem lá attribue
ás gentes uma origem familiar, nada provaria em
relação a Roma; o trecbo de Dionísio, ainda que
tivesse sido rigorosamente traduzido e interpretado,
— 522 —
o que bem póde contestar-se, visto fallar-se nelle em
decurias permaneceria um testemunho isolado, em
opposição a muitos outros que afrmam doutrina
contraria; as definições referidas, se lembram o pa-
rentesco, tambem não o negam, e, completando as
com outras que conhecemos, conforme manda o rigor
da critica, parece não ser temerario affirmar que o
suppõem; além disto, tal opinião, por um lado,
exige uma regularidade na composão dos referidos
aggregados, inconciliavel com o movimento dos nas-
cimentos e das mortes, que, fazendo variar a cada
passo o numero de famílias, tornava impossível
aquella uniformidade, por outro lado, implica o
absurdo de conceder a uma união artificial direitos
dl importancta dos da successão e da tutela.
Em diametral opposição com esta opino, encon-
tra-se a dos escriplores que, como Kovalewsky,
confundem a gens com o clan. Ora, embora estes
dous aggregados se approximem no sentido de se
basearem em vínculos de parentesco, é indubitavel
que ha entre elles differenças profundas.
O clan admitte o parentesco materno ou uterino,
embora não o exija necessariamente, a gens unica-
mente se coaduna com o parentesco agnatico. O
clan tem como caractestica da sua organização a
exogamia, queo apparece na gens, O clan fundasse
em superstições animistas e crenças anthropo-
morphicas, a gens assenta em tradições heroicas e
no orgulho da casta, tendo, por isso, uma feão
accentuadamente aristocratica.
Além destas opiniões, ha outra que traduz o per-
feito conhecimento da estructura organica de gens.
A gens é, segundo esta opinião, um aggregado
natural, que comprehende as famílias, que, consi-
derando-se descendentes dam antepassado commum,
— 523 —
usavam o seu nome e professavam e
perpetuavam o seu coito.
É um aggregado natural, porque a gens não é
uma creação artificial da lei, mas uma phase por
que passou a organização social dos povos
aryanos.
Que comprehende as famílias, visto a gens apre-
sentar uma grande elasticidade, tendo, umas
vezes, as proporções unicamente duma família e
abrangendo, outras vezes, um grupo tão avultado
de famílias, que chegava a attingir quasi a
extensão duma grande e numerosa tribo, como a
tradição narra ter acontecido com a gens Claudia
e a gens Fabia.
Que, considerando se descendentes dum
antepassado commum, porque a gens assentava
sobre esta descendencia dom antepassado
commum. O proprio sentido etymologico da
palavra gens involve a idêa de geração, pois que
do radical gen deriva gigno, genui, genus,
genitor, termos todos usados para significar a
filiação natural. É certo que algumas vezes a
gens comprehende pessoas que não descendem
do auctor commum, como, por exemplo, os
cidadãos que mudam de gens pela adrogação.
Mas, isto é a excepção, pois, em regra geral, para
entrar na gens, torna-se necessario ter nascido do
casamento legitimo dum membro da gens. Além
disso, o conceito é sempre exacto, porque as
famílias para que passava o adrogado é que se
consideravam descendentes dom antepassado
commum.
Usavam o seu nome, porque, por maior que
fosse o cuidado de conservar a recordação do
fundador da gens, ella ter-se-hia dissipado,
tornando-se impossível reconhecer todas as
pessoas que descendiam do aoctor commum,
desde p momento em que o hoovesse um
signal externo que os distinguisse.
— 524 —
Esse signal era o nome, fazendo até a identidade do
nome presumir a identidade da gens. O patricio
usava habitualmente tres nomes, exemplo: Publio,
Cornelia, Scipo. O nome propriamente dicto,
nomen, era Cornelio; Publio era um praenomen;
Scipo, um agnomen. O nomen, invariavelmente
terminado em ius era a designação patronymica, a
primeira em data e em importancia e constituía a
indicação do antepassado tronco da gens.
Professavam e perpetuavam o seu culto, porque,
segundo os princípios da velha religião domestica,
os antepassados deviam ser eternamente adorados
pelos successivos descendentes. Daqui a commu-
nidade religiosa que ligava os membros da gens,
tendo por base o culto do antepassado commum
divinizado.
A estes caracteres que as gentes latinas tinham
de commum com as gentes aryanas, devemos ajun-
ctar, segundo Carie, um caracter que lhe era
peculiar, consistindo em serem aggregados que
tinham conseguido manter-se perennemente inge-
nuos, isto é, immunes de qualquer relação de
escravidão ou de clientella '.
228. Organização da gens. Exposto o con-
ceito da gens, segue-se agora naturalmente dar uma
idêa da sua organização. A gens, com a constituão
do Estado romano, deixou de ser uma corporação
politica, conservando, porém, a sua organização e
1 Giuseppe Carle, Le origini del diritto romano, pag. 37 e
seg.; Edouard Cuq, Institution juridiques des romains, tom. I,
pag. 30 e seg.; Sr. Dr. Arthur Montenegro, O antigo direito de
Roma, pag. 238 e seg.; Pastel de Coulanges, La ci antique, pag.
124.
— 525 —
algumas das suas funcções. Em todo o caso, é
difficil determinar qual tenha sido a organização
interna da gens, em virtude dos poucos elementos
que temos para isso.
Assim, o se póde precisar se a gens tinha
sempre e constantemente um cbefe (princeps gentis),
ou se este era eleito pelo conselho dos paires ou
indicado por antiguidade de nascimento, quando se
tractava de levar a cabo alguma empresa impor
tante. É certo, porém, que a gens devia ter o con
selho de paires, que concentrasse em si a somma
dos poderes deste aggregado social e conservasse e
transmitisse as suas tradições. Era no seio deste
conselho que se escolhiam os arbitros e conciliado
res das controversias que podiam surgir entre os
varios chefes de família que pertenciam á mesma
gens; era este conselho que podia exigir o servo
militar, não só dos membros da gens (gentiles), mas
tambem dos indivíduos delia dependentes; era este
conselho que superintendia sobre a conducta publica
ou privada de cada um dos chefes de família, pre
venindo e reprimindo os abusos da auctorídade
domestica, etc. .
Entre os jura gentilitia notam-se: o jus heredita-
latis gentilitiae, em virtude do qual a successão era
deferida aos gentiles, caso fallecesse ab intestato um
membro da gens, sem herdeiros necessarios nem
outros agnados; o jus curas gentilitiae, que lhes
concedia, em termos analogos, a tutela do furiosus;
o jus sacrorum gentilitiorum, referente ao patrono
divino da gens, em cuja honra se celebravam, num
sacellum, sacrifícios annuaes; o jus sepulchri, em
virtude do qual os gentiles tinham direito a uma
sepultara commum; o jus decretorum, em virtude
do qual a gens tinha o direito de regulamentar a
— 526 —
Sua vida interna, publicando decretos obrigatorios
para os sens membros, como os da gens Fobia,
prohibindo aos seus membros o celibato e a expo-
sição dos filhos, o das gens Manlia, prohibindo o
uso do prenome Marcus, e o da gens Claudia, pro-
hibindo o uso do prenome Lucius.
Estes direitos têem um caracter privado. A res-
peito do jus heredilatis, do jus curas e do jus sepulchri
não póde baver duvida alguma. O mesmo acontece
relativamente ao jus sacrornm, porquanto os sacra
gentilia eram enumerados entre os sacra privata,
que eram celebrados á custa dos interessados, e
contrapostos aos sacra publica, que se celebravam
por conta do Estado. Parece, porém, fazer excepção
a este caracter geral dos direitos gentílicos o jus
decretorum, mas este direito exercia-se, nos tempos
historicos, de preferencia sobre cousas de ordem
privada, e póde facilmente explicar-se como um ves-
tígio das funcções politicas que outr'ora este aggre-
gado tinha desempenhado e que não podiam ter
desapparecido completamente com a formação da
cidade.
Ajuncte-se a isto que, entre os membros da gens,
existia a obrigação da reciproca assistencia, em vir-
tude da qual deviam ser alimentados, quando indi-
gentes, resgatados, quando prisioneiros, sustentados,
quando tivessem controversias, vingados quando
mortos ou injuriados, e ter-se-ha idêa da poderosa
unidade que representava este aggregado social.
Havia um vinculo de profunda solidariedade ligando
todos os membros das gens. Muitas obrigações pro-
venientes da solidariedade e união se o encon-
tram sanccionadas no direito romano por normas
jurídicas, mas ainda assim era um dever de honra
para a gens a assistencia a um confrade que delia
— 527 —
necessitasse. Conta Titio Livio que, por occasião
da accusação do decemviro Appio Claudio, se
apresentou para o defender um tal Clandio,
homem de valimento, mas inimigo pessoal do
accnsado, e que, dirigindo-se ao povo, fez a
declaração de que assim procedia, não por
dedicação, mas por dever 1.
229. Família romana. Seus caracteres geraes.
— A gens estava destinada a desapparecer com os
progressos da organização politica do Estado
romano. Foi, effectivamente, o que aconteceu,
deixando, ainda assim tal instituição alguns
vestígios da sua existencia em diferentes pontos
do direito civil romano.
Neste estadio da evolução social romana
adquire predomínio outro instituto, que
representa um mais pequeno grupo de pessoas
a família, que tinha sido um dos elementos
constitutivos da gens. É o processo de
especificação e de individualização que se vae
accentuando. Do grupo mais amplo destaca-se e
desinvolve-se a fracção, a cellula.
Effectivamente, a família, e, por cansa delia, o
seu chefe, o pater-famílias, constituiu em Roma
um grande poder, que, por largo tempo, resistiu a
todas as forças dissol-ventes que o minavam e
tendiam a abater.
A família romana não se funda nem sobre o
nascimento, nem sobre a affeição, mas no poder
do pater-famílias. Tem a sua base numa pura
concepção do direito e significa uma relação de
domínio e de dependencia. Família é tudo (pessoas
e cousas)
1
Giuseppe Carie, Le origini del diritto romano, pag. 43 e
seg.; Ibering, L'esprit du droit romain, tom. I, pag. 190; Sr. Dr.
Montenegro, O antigo direito de Roma, pag. 242 e seg.; Bouché-
Leclerq, Manuel des institutions des romains, pag. 8 e seg.; Nani,
Storia del diritto privato italiano, pag. 134 e seg.
— 528 —
que se encontra submettido ao poder do pater-fa-
milias.
Fustel de Coulanges intende que esta doutrina é
erronea, visto o poder patrio e marital não ser uma
instituição primordial. Para este escriptor, o que
une os membros da familia romana é alguma cousa
de mais poderoso do que a força physica é a reli-
gião e o culto domestico. Parece-nos, porém, que o
caracter religioso da familia romana, unicamente
serve para explicar a sua organização. Mas esta
organizão baa-se indubitavelmente na supremacia
do poder do pater famílias. É por isso que o poder
do pater-familia constituo o fundamento exclusivo
do parentesco que define a familia perante a lei.
Deste caracter da familia romana deriva outro que
é tambem essencial a esta instituição. Effectivamente,
do facto da familia assentar sobre o poder do pater-
familias resulta que este aggregado social nos appa-
rece organizado entre os romanos sob a fórma
patriarcbal. E o typo patriarchal encontra-se perfeita
e completamente realizado na familia romana, pois
nesta familia o patrio poder pertencia ao ascendente
mais velho e durava por toda a sua vida.
Além destes caracteres da familia romana, ainda
devemos mencionar a feição profundamente aristo-
cratica deste aggregado social. Uma multio, como
a plebe, de proveniencia diversa e de formação re-
cente, não podia possuir logo nos seus icios uma
organização familiar que suppõe uma longa serie de
antepassados e uma demorada elaborão historica.
Accresce tambem que originariamente o vocabulo
paires indicava principalmente os chefes das famílias
patrícias e até os senadores, que sahiam do patri-
ciado. O mesmo provam as nupcias confarreatas,
certameute proprias do patriciado, e que nas leis
— 529 —
attribuidas a Romulo e Remo parecem constituir o
unico modo de contrahir as justas nupcias.
Artificial, patriarcbal e aristocratica, eis os cara-
cteres com que se apresenta a família romana na
historia. A evolução, porém, actuou sobre esta insti-
tuição, no sentido de attenuar ou fazer desapparecer
estes caracteres. Effeclivamente, por um lado, os
vínculos de sangue acabaram por vencer os creados
pela lei, triumphando a realidade da fião, e, por
outro, o caracter aristocratico desta organizão
desappareceu com a equiparão juridica dos patrí-
cios e plebeus. Só prevaleceu a physionomia pa-
triarcbal da falia, bastante esbatida, ainda assim,
pela transformação porque passou o patrio poder,
que perdeu, com o tempo, o caracter gido e abso-
luto que primeiramente teve 1.
230. Agnação. Como a família romana se ba-
seava no poder do pater-familias, era por meio deste
poder que se determinava o parentesco que caracte-
rizava a família. Este parentesco civil baseado sobre
o poder do pater-familias chamava-se agnão.
É muito difficil dar uma definão completa de
agnados. Parece-nos mais acceitavel a seguinte:
agnados são os indivíduos submettidos ao patrio
poder ou ao poder marital do pater-familias ou que
estariam submettidos a estes poderes, se o pater-
familias tivesse vivido indefinidamente. A agnação
póde desinvolver-se continuamente, mas não se trans-
mute senão pela linha masculina. Quando um pater-
1 Nani, Storia del diritto prívato italiano, pag. 135 e seg.;
Fustel de Coulanges, La cité antique, pag. 42; Carie, La origini
del diritto romano, pag. 28 e seg.; Girard, Manuel élémentaire de
droit romaine, pag. 127 e seg.
34 .
— 530 —
famílias tem uma filha ou um filho, os filhos do seu
filho são seus aguados, mas os da sua filha encontram-
se sob o poder do marido que é seu pae, e por issoo
dem ser seus aguados. A agnação encontra assim
um limite ao seu desinvolvimento pelo lado da mulher.
A agnação adquiria-se pela sujeição ao poder do
pater-familias, quer occasionada por los de sangue,
como acontecia com os filhos nascidos de justas
nupcias, quer occasionada por meros laços civis,
como acontecia relativamente aos filhos adoptivos e
à mulher in manu. A agnação perdia-se, quando
deixava de existir a sujeição ao poder patrio ou ma-
rital por facto proprio, como no caso da mulher
passar in manu mariti, e conservava-se, quando o
mesmo succedia por facto do pater-familias, como
no caso do fallecimento deste.
A agnação produzia effeitos civis importantes,
principalmente no que dizia respeito á successão e
á tutela. A successão ab intestato dos agnados que
morriam sem herdeiros necessarios, pertencia ao
agnado mais proximo. O agnado mais proximo
tambem Unha a tutela dos agnados incapazes 1.
231. A cognação. Além da agnação, havia
ainda um parentesco natural a cognão. A co-
gnão è o parentesco que une as pessoas que des-
cendem umas das outras (linha recta) ou descendem
dum auctor commum (linha collateral), sem distin-
cção de sexo. É um parentesco que assenta sobre
os laços de sangue.
1
Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 136 e
seg.; Eugéne Petit, Traitè élémentaire de droit romain, pag. 83
e seg.; Sr. Dr. Artur Montenegro, O antigo direito de Roma,
pag 233 e seg.
— 531 —
Os parentes podiam ser só agnados, por
exemplo, o pae adoptante e o filho adoptado;
cognados, por exemplo, o pae natural e o filho
emancipado; agnados e cognados, ao mesmo
tempo, por exemplo, o pae e o filho legitimo in
patria potesiate. A cognaçSoo bastava para
constitnir a familia; pois aquelles qne não podiam
invocar a qualidade de agnados não faziam parte
da familia, segando o modo de ver do direito
romano.
Durante muito tempo, a cognação não foi
attendida senão na materia dos impedimentos
matrimoniaes. Mas, pouco a pouco,
gradualmente, e sem se poder precisar
rigorosamente a epoeha do começo desta
evolução, foram sendo reconhecidos aos
cognados direitos qne primeiramente só eram
attribuidos aos agnados. Este movimento para
estender os effeitos da agnação á cognação, que já
se esboça no fim da republica, accentuou-se
durante o Imperio, e adquiriu tamanha
importancia, qne Justiniano supprimiu a agnação,
apparecendo assim a concepção moderna da
familia, baseada sobre o parentesco natural. Esta
concepção nova da familia, sendo independente
do poder do pater-familias, permitte ao filho
adquirir direitos na familia materna e paterna,
visto elle pertencer a ambas 1.
232. A sippe germanica. Comparação deste
ag-gregado com a gens. É tambem admittida a
existencia na antiga Germania de dous grupos
sociaes a sippe e a familia, correspondendo
um á gens e outro á familia romana. Mas, em
virtude da falta
1 Girard, Manuel de droit romain, pag. 139 e seg.; Eugéne
Petit, Traiti élémentaire de droit romain, pag. 603; Edouard Cuq,
Institutions juridiques des romaines, tom. II, pag. 800.
— 532 —
de noticias a respeito do antigo direito germanico,
torna-se difficil determinar as relações entre estes
dous grupos.
Segando Heusler, a differença substancial entre
estes doas grupos proviria da familia ser de caracter
agnaticio e ter por fundamento como a romana o
poder do pae de família, comprehendendo assim
todos aquelles que por qualquer titulo se encontram
sob a sua dependencia, sem consideração alguma
pelo parentesco. A sippe teria por base unicamente
as relações de parentesco, comprebendendo egual-
mente agnados, conjunctos e affins. A familia exer-
ceria a sua acção dentro dos limites assignados ao
poder do pae de familia; a sippe teria importancia
unicamente sob o aspecto do direito hereditario.
A doutrina de Heusler não passa de uma hypo-
these, o se podendo adduzir nenhuma prova da
admissão de similhante distinão no antigo direito
germanico. Um só argumento se apresenta em favor
delia tirado da lei salica, onde se diz que o paren-
tesco abrange os parentes tam de paire quam de ma-
tre, tanto a generatio paterna como a materna. Mas
este facto póde explicar-se de outro modo, sem a
necessidade de recorrer á hypothese de Heusler.
Outros escriptores como Brunner, cuja opinião
tem um maior numero de sequazes, explicam doutro
modo a coexistencia da familia e da sippe, approxi-
mando-se muito dos conceitos romanos. A sippe é
como a gens romana uma mais larga associação de
indivíduos; no seio da sippe, como uma associão
menor, vive e desinvolve a sua acção a familia.
A sippe apparece designada com varios nomes,
indicando-se sempre com ella um certo numero de
homens e falias unidos pela communidade de ori-
gem e vivendo ao mesmo tempo em paz e amizade.
— 533 —
Pertencem á sippe todos os que são parentes por
um qualquer gráo proximo on remoto. Basta,
segundo um velho proverbio germanico, que haja
de commum uma gotta de sangue. Um vinculo
mais estreito prende aqnelles que são parentes
proximos, que convivem ou têem convivido na
mesma casa: paes, filhos e irmãos 1.
233. Funcções da sippe. A importancia da
sippe não se manifesta na ordem do direito
civil, pois ella tambem se revela na esphera do
direito publico. A sippe, antes do Estado
germanico se constituir, exerceu funcções
politicas. Constituído o Estado, não perdeu
completamente estas funcções, conservando-as
em grande parte e com tanta mais tenacidade,
quanto mais lento foi o desenvolvimento do
conceito do Estado entre os germanos e menos
vigorosa em todos os tempos a sua acção.
Como as gentes tambem as sippes precederam
o Estado e, mais do que as gentes, conservaram-
se unidas e poderosas dentro do Estado. As
funcções prin-cipaes da sippe eram as seguintes;
a) A sippe devia manter a ordem entre os seus
membros e fazer respeitar os seus direitos. Não
só impede a vindicta entre os seus membros, mas
vinga e pune a morte de algum delles devida a
um estranho. Ou a vindicta ou a composição. É
um negocio que interessa a toda a sippe, e por
isso todos os seus membros pegam em armas. Se
a composição vem a ser paga, é dividida por
todos os membros da sippe. Primeiramente, cada
sippe tinha a sua regra propria,
1
Cesare Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 139 e
seg.; Viollet, Histoire du droit civil français, pag. 390 e seg.
— 534 —
relativamente ao modo da divisão da composição.
Mais tarde o criterio da repartição foi estabelecido
pela propria lei. E como a orna sippe incumbe a
obrigação da vindicta, tambem á outra assiste o dever
de auxilar e defender o assassino. Dahi a existencia
de continuas guerras privadas, tanto mais terríveis
quanto mais poderosas eram as famílias. A assisten-
cia que prestava a sippe linha logar não só nos
casos de homicídio, mas em todas as offensas mais
graves que importam composição.
b) O auxilio da sippe aos seus membros o
ficava por aqui, pois manifestava-se mesmo no
processo que se promovesse contra algum delles.
Assistia-lhe em todo o desenrolar do processo,
chegando mesmo a jurar com elle. Era este um
juramento de solidariedade. A punição que os
Deuses reservaram para o perjuro não devia cahir
unicamente sobre a cabeça do réo, mas sobre todos
os membros da sua sippe. É um dever e um direito
para toda a sippe de prestar este juramento.
c) Antes da tutela sobre os menores e sobre as
mulheres se ter concentrado no parente mais proxi-
mo, era toda a sippe que a exercia ou directamente
ou mediante um delegado.
d) O matrimonio era considerado como um
assumpto que interessava a toda a sippe. Por isso
este grupo intervinha em todos os actos da sua
celebração e talvez num tempo mais remoto, quando
o casamento tinha logar por meio da venda da
esposa, se considerasse o matrimonio como um
negocio a tra-ctar entre as duas sippes — a do
esposo e a da esposa.
e) A sippe tinha a funcção de vigiar pela honra
dos seus membros, a fim de que ella não fosse com-
promettida. Se uma mulher livre deshonrava os
seus,
— 535 —
unindo-se a um escravo, os parentes tinham o
direito de exercer a vingança contra ella. Se o
marido accusava injustamente a mulher de graves
culpas, era a sippe qne a defendia com juramento
e duello. Se se provasse a culpa, tambem a sippe
tinha o direito de tirar a vindicta, visto ter sido
offendida a sua honra.
f) Finalmente, a sippe tinha funcções militares,
visto constituir a unidade tactica fundamental. Tacito
diz: Non casus nec fortuita conglobatio turmam aut
cuneum facit sed familiae et propincuitates.
Acima da sippe encontrava-se a centena, que
comprehendia os combatentes de cem famílias e
constituía uma divisão administrativa; e acima da
centena encon-travam-se os combatentes de mil
famílias, comman-dados pelo millenarius e
formaodo a inteira tropa de gau ou tribu. Deste
modo, a organização do exercito assentava toda a
sua divisão sobre a organização familiar 1.
234. A família germanica. Sua estructura. — No
seio da sippe existia, como uma unidade moral e
jurídica ao mesmo tempo, a família.
0 seu fundamento, ou antes o vinculo qne prende
os seus membros é tambem o poder do pae de famí
lia, como no direito romano. A família germanica
tem por isso um caracter accentuadamente agnaticio,
como a família romana. Não fazem parte da família
germanica os parentes por parte da mulher, como o
irmão da e, o tio. São considerados antes como
amigos da família; a algnns deites, como ao tio ma
terno são assignadas funcções de protecção.
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 140 e seg.
— 536 —
A falia germanicao é inaccessivel a toda a
auctoridade estranha. Acima delia encontra-se a
auctoridade da sippe, qne serve para temperar, den-
tro de certos limites, o poder do chefe de família no
qne elle possa ter de excessivo. O matrimonio do
Olho não interessa unicamente á família mas a toda
a sippe. A defêsa da honra domestica é confiada a
toda a sippe. Do mesmo modo não é illimitado o
poder do marido sobre a mulher. O pae e os iros
lêem o direito de a defender contra as accusações
calumniosas do marido. O patrio poder não era
perpetuo, como entre os germanos.
Estas e outras normas a que nos referimos a
proposito da condição jurídica da mulher e dos filhos,
mostram claramente como o poder do chefe da fa-
lia germanica não era o extenso como o do pater-
familias romano 1.
235. O parentesco germanico. O parentesco
materno parece que o foi admittido entre os ger-
manos. Quando o houvesse outra prova a demons-
tral-o, bastaria o facto de, segundo uma antiga lenda
popular, recordada por Tacito, as tres estirpes ger-
manicas derivarem de tres filhos dum deus. O pa-
rentesco podia ser agnatico ou cognatico, como entre
os romanos.
0 direito germanico, porém, avaliava o paren
tesco por uma fórma diversa do direito romano.
No circulo da falia germanica distinguiam-se tres
grupos: o do pae com os filhos; o dos ascenden
tes com os seus filhos, netos e collateraes; o dos
avós.
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 144 e seg.
— 537 —
O parentesco entre ascendentes e descendentes
computava-se do mesmo modo que no direito roma-
no, isto é, pelo numero de gerações: quot genera-
tiones tot gradus. Já não acontecia o mesmo na linha
cpllateral.
Ao passo que os romanos contavam o numero das
gerações, snbindo do parente cujo gráo de paren-
tesco se quer determinar até ao tronco commum e
descendo depois deste até ao ontro parente, os ger-
manos contavam as gerações dom só lado, e, qnando
houvesse desegualdade nas linhas, as da mais longa.
Não procuravam estabelecer a relação em que os
collateraes se encontravam entre si, fixavam para
cada um delles a sua posão relativamente ao ascen-
dente commum mais proximo. Os descendentes dum
pae commum constituíam outros tantos pequenos
centros que figuravam para com elle como tantas
outras descendencias independentes entre si.
0 systema germanico de avaliar o parentesco foi
depois adoptado pelo direito canonico de preferencia
ao romano. Tomou eno o nome de computatio
canonica, em opposição á romana. O que decide é
a maior ou menor distancia do tronco commum. Os
irmãos o parentes em segundo go pelo direito
romano e em primeiro pelo direito canonico 1.
230. Família wisigothica e da Reconquista. As
gentililates o foram abolidas pelos romanos, pois,
como nota Dr. Joaquim Costa, nem estava no poder
humano destrui-las, nem isso entrava nas suas vis-
tas. O criterio fundamental dos edictos provinciaes
1
Nani, Storia del diritto privato italiano, pag. 140; Salvioli,
Manuale di storia del diritto italiano, pag. 305 e seg.
— 538 —
era o respeito pelo direito consuetudinario e pelas
leis locaes.
Menos podiam acommetter, segundo o mesmo es-
criptor, o louca empresa os wisigodos, mais neces-
sitados de aprender direito do que em condições de
o ensinar. E assim se explica que a gentilitas pudesse
chegar até aos começos da Reconquista, embora
mudado o nome no de família, por o christianismo
ter alterado a significão do primeiro vocabnlo,
attribuindo-lhe um sentido que o devia tornar mal
soante aos povos convertidos ao Evangelho.
Uma das accepções que tomaram as palavras gens
e gentilis depois de Augusto foi a de estrangeiros,
barbaros, em contraposição aos romanos. Por sua
vez, os Padres da Igreja applicaram aquelle conceito
aos idolatras, em contraposão aos judeus e chrisos,
e designaram pela gentilidade a religião pa.
Desde este momento por diante, christianizada
mais ou menos profundamente a Península, devia
repugnar ás suas gentes o vocabulo gentilidade, com
que se tinha traduzido durante o Imperio a denomi-
não indígena, e adoptaram outro equivalente. Este
vocabulo foi o de família que em Roma significava:
o conjuncto de escravos e servidores; a casa e o
direito a ella relativo; a linhagem, a divisão interna
da gens. No seculo v estava todavia em uso a palavra
gentilidade a julgar pela inscrião de Santo Thomaz
de Collia ex gentilitate Pembelorum pertencente
a uma família não christã.
Um documento do seculo viu conservou-nos a me-
moria das famílias dos Desterigos, dos Agárigos, ou
Agarios, dos Avezanos, etc. Se o direito imperial
não supplantou o indígena, menos o podia fazer a
Reconquista, visto nos primeiros seculos delia, o pais
se reger pelos usos da terra.
— 539 —
A família propriamente dicta revestia entre os
visigodos o caracter cognaticio. Para isso concorreu
não a decadencia do parentesco agnaticio no
direito romano, mas tambem a acção do christianis-
mo adversa á constituição da família pagã. No codigo
wisigothico não se encontra disposição alguma a
respeito da legitimação e da adopção, o que mostra
que o parentesco não derivava da sujeição ao
poder do pae de família.
A família wisigothica não tinha o caracter patriar-
chal da do direito romano, não por causa das
limitações que se impunham ao patrio poder, mas
tambem porque este poder terminava com o casa-
mento dos filhos.
A família apparece na Reconquista com caracteres
similhantes aos da família wisigothica. As necessi-
dades da povoação do territorio levaram a reconhe-
cer, além da família legitima, a família illegitima. A
barregania, que era um verdadeiro concubinato,
attri-buiram-se alguns effeitos jurídicos, como se
deduz dos Fueros de Placencia e de Zamora 1.
237. Família portuguêsa. A família portu-
guêsa continua as tradições da Reconquista.
Nas Partidas, que vigoraram entre s, como se
sabe, encontram-se muitas disposições
permissivas da barregania, em harmonia sem
duvida com as tradições da Reconquista. Nem isto
deve admirar, desde o momento em que se note
que aquella collecção, embora se tenha inspirado
nas fontes do direito ro-
1 Dr. Joaquim Costa, Poesia popular espanola y mitologia y
literatura celto-hispanas, pag. 235 e seg.; Chapado Garcia, His-toria
general del derecho espanol, pag. 356 e seg.
— 540 —
mano e do direito canonico, contemporizoa bastante
com a legislação foraleira e feudal.
Nos comos da monarchia portugsa tambem a
barregania foi bem recebida pelos costumes. A sua
repressão unicamente coma DO tempo de D. João I,
que condemna esta uno como peccaminosa, reco-
nhecendo, porém, que se considerava outorgado pelo
direito que os homens solteiros podiam ter barregãs
e que os filhos delias deviam herdar os bens dos
paes (Ord. Aff. liv. v, tit. xxIII, tit. xvIII, tit. xx).
A familia portugsa foi sempre cognaticia. O
parentesco, porém, computava-se dos dous modos
romano e canonico visto as leis portugsas
mandarem seguir umas vezes o direito romano e
outras vezes o direito canonico. A organização arti-
ficial da familia sobre a base da agnão tinha-se
dissolvido, reconstituindo-se por isso este aggregado
por um modo mais conforme à natureza.
Finalmente, o poder do chefe da familia, embora
ainda forte, não gosava do absolutismo do pater-
familias romano. Isto, porém, por s foi obser-
vado a proposito da condição jurídica dos filhos e
da mulher 1.
288. Desintegração da familia moderna. Theoria
de Herbert Spencer. Resultado de toda a evolução
da familia é sem duvida o phenomeno da sua desin-
tegração. Essa desintegração manifesta-se na acção
do Estado sobre este aggregado e na maior indepen-
dencia e liberdade dos seus membros.
1
Sr. Dr. Araujo e Gama, Estudo sobre o casamento civil, pag.
129 e seg.; Coelho da Rocha, Instituições do direito civil
português, vol. I, pag. 40 e seg.
— 541 —
Houve tempo em que a família era regalada,
quasi exclusivamente, pela vontade privada e em
parte pela religião. Com o desinvolvimento
social, o Estado adquiria pouco a pouco orna
progressiva preponderancia sobre ella. Por outro
lado, todos os membros da família têem
conseguido maiores direitos. Os filhos, pela
maioridade, ficam tendo a plena capacidade de
direito e tornam-se os arbitros e os unicos
responsaveis pelos proprios actos. A mulher
tambem lacta pela equiparação jurídica ao
marido, gosando já, em algumas legislações e
nomeadamente na nossa, do patrio poder.
Herbert Spencer intende que se foi muito longe
na desintegração da família, impondo-se por isso
uma integração novamente no futuro. Não
julgamos, porém, que se possa regressar a uma
fórma de organização familiar que está em
relação com um systema social extincto. O
augmento continuo da actividade humana, a
consciencia nítida da personalidade, e o
desinvolvimento progressivo dos meios de
instrucção e tirocínio, tornam o homem cada vez
mais apto para se bastar a si proprio. Ora isto não
é evidentemente favoravel a orna maior
auctoridade do chefe de família. E'
verdadeiramente impossível hoje, com o pretexto
de apertar os vínculos domesticos, collocar os
filhos e a mulher sob o absoluto poder do chefe
de família. Talvez a lei venha a consagrar
obrigações que boje cahem sob o domínio da
moral, mas deve oppor-se a qualquer especie de
tyrannia domestica 1.
1
Herbert Spencer, Principes de sociologia, tom. II, pag. 481 e
seg.; Wautrain Cavagnari, Le leggi dell' organizazzione sociale,
pag, 265 e seg.
CAPITULO III
CASAMENTO
SUMMARIO : 239. O casamento na Hespanha primitiva.
240. Justas nupcias. Casamento cum manu. 241. Casa-
mento sine manu. 242. Condões das justas nupcias. 243.
O casamento entre os germanos. 244. O casamento no
direito wisigothico. — 246. O casamento na Reconquista.
246. Theoria canonica do casamento. 247. O
casamento no direito português. rmas do casamento.
248. Impedimentos matrimoniaes.
230. O casamento na Hespanha primitiva.
O organismo da família constitue-se pelo
casamento, e por isso está naturalmente indicado
o estado deste assumpto depois do anterior. São
muito imperfeitas as noticias que possuímos a
respeito do casamento na Hespanha primitiva.
Segundo Estrabão, os lusitanos celebravam o
casa* mento á moda dos gregos. Por isso, o
casamento devia constar entre elles dos tres actos
que o constituíam na Grecia e em Roma: o
sacrifício de despedida aos Lares, a conducção
da mulher a casa do marido, o banquete e o
sacrifício aos Lares do marido.
Diodoro da Sicília confirma esta conclusão, ao
descrever as bodas de Viriato. Mas da narração de
Diodoro da Sicília, alem da conformidade
parcial do rito lusitano com o rito grego, ainda se
deduz que a noiva era levada pelo marido num
cavallo, o que se pode considerar como uma
reminiscência do rapto.
— 544 —
0 sogro tambem recebia presentes constituindo o
preço da mulher. Este costume dos lusitanos encon-
tra-se em correspondencia com o dos cantabros que,
segundo Estrabão, dotavam as suas mulheres, sem
que estas levassem cousa alguma para o matrimonio.
E' verosímil, segando Perez Pujol, que o dote can-
tabrico fosse uma transformação do pretium puellae
que, começando por ser entregue ao sogro, viesse
depois a ser reservado para patrimonio da mulher.
E deste modo taes costumes parecem relacionar-se
com o matrimonio por compra.
E' verosímil que na Hespanha não fossem admit-
tidos os matrimonios temporarios por um anno,
que eram muito usados entre os celtas da Irlanda.
E' esta conclusão que se tira do facto dos historia-
dores romanos empregarem a palavra uxor, ao
tractarem as mulheres dos caudilhos hespanhoes,
bem como do silencio que elles guardam a respeito
do divorcio entre os povos indígenas da Península 1.
240. Justas nupcias. Casamento cum manu.
A falia constituia-se entre os romanos pelas justas
nupcias, que eram o casamento legitimo segundo o
direito civil romano. Este casamento podia ser cum
manu ou sine manu, conforme a mulher ficava ou
não loco filiae na família do marido.
Primeiramente, o houve senão o casamento cum
manu.
A manus adquiria-se e por conseguinte o casa-
mento realizava-se no antigo direito por tres modos:
a confarreatio, o usus e a coemptio. Parece ser a
1
Perez Pujol, Historia de las institutiones sociales de l'Espana
goda, tom. I, pag. 24 e seg.; Hinojosa, Historia general del dere-
cho espanol, tom. I, pag. 73 e seg.
— 545 —
confarreatio a fórma mais antiga do casamento.
Mas, este assumpto não se encontra ainda inteira-
mente liquidado na historia do direito romano.
Segundo Mac Lennan, o usus foi a fórma
primitiva, a que se seguia a coemptio e por
ultimo a confarreatio. Karlowa considera a
coemptio como devendo ter precedido o usus.
Carie resolve a questão, distinguindo entre a
historia dos modos de contrahir o casamento, nos
primitivos povos italicos, e a determinação da
ordem por que estas varias fórmas penetraram no
direito romano. No primeiro caso, admitte a
ordem estabelecida por Mac Lennan, visto julgar
que a mulher começou por ser raptada, vindo a
ser comprada pelo esposo mais tarde, numa
phase posterior da evolução. No segundo caso,
affirma que a ordem chronologica das fórmas do
casamento não podia ser senão a seguinte:
confarreatio, usus e coemptio.
A confarreatio foi a unica fórma de realizar o
casamento, admittida pelos romanos, emquauto
durou a edade exclusivamente patricia. Tinha um
caracter profundamente religioso. A
confarreatio, diz Marquardt, era celebrada
solemnemente; faziam-se diversas offertas aos
deuses; uma consistia num bolo de farinha (panis
farreus); e pronunciavam-se certa et solemnia
verba na presença de dez testemunhas, do
pontifex maximus e do flamen Dialis. A feição
accentuadamente religiosa desta fórma do
casamento, e que era propria dos actos jurídicos
dos patrícios, mostra claramente que a
confarreatio não podia pertencer á plebe. Para
esta, o casamento devia ter antes uma existencia
de facto, do que uma consagração de direito e
consistir numa união fundada sobre o reciproco
consentimento, manifes-
35
— 546 —
lado mais pela cohabitação dos conjuges, do qne
por certas cerimonias de caracter jurídico e reli-
gioso.
Dentro em breve, se reconheceu a necessidade de
consagrar, dum modo jurídico, as uniões sexuaes
das classes inferiores. Por isso, foi admittido o usus,
cohabitação por um anno sem interrupção, para a
realização do casamento entre os plebeus, pro-
curando, por meio desta interrupção, o direito de
fornecer á mulher um meio delia se furtar ao poder
do marido.
Quando mais tarde foi abolida a prohibição do
casamento entre o patriciado e a plebe, reconhe-
cen-se a necessidade duma fórma de casamento que
pudesse ser commum a estas duas classes sociaes.
Appareceu então a coemptio, que não é mais do que
uma applicaçio da mancipatio ao casamento. Havia
uma differença de palavras, segando testemunha
Gaio, mas as formalidades eram as mesmas.
Destas tres rmas do casamento, a primeira que
desappareceu foi a do usus. A confarreatio tornou-
se pouco frequente, persistindo unicamente no circulo
sacerdotal aao fim do paganismo. À coemptio, é
que dominou mais largamente, acabando,' porém,
tambem por cair em desuso no seculo Iv 1.
241. Casamento sine manu. Ao lado do casa-
mento cum manu, foi-se introduzindo o casamento
sine manu, que acabou por se tornar cada vez mais
frequente, até ao desapparecimento completo da
manus.
1
Carie, Le origine del diritto romano, pag. 522 e seg.; Mar-
quardt, Le culte chez les romains, vol. I, pag. 265 e seg,
— 547 —
O casamento sine manu não exigia a
intervenção da auctoridade publica, mas tambem
não se realizava pelo simples consentimento dos
contrahentes. Tor-nava-se necessaria a vida em
commum. Mas, a vida em commum entre
pessoas aptas para se casar originava sempre o
casamento? É esta uma grande dificuldade que
apresentava o casamento sine tnanu, em virtude
da necessidade de o distinguir do con-cubinatus.
Os romanos designavam com o nome de
concubinatos uma união de ordem inferior, mas
duradoura, e que se distinguia assim das ligações
passageiras consideradas como illicitas. O
concubinatos, que teve por causa a desegualdade
das condições, visto permittir tomar para
concubina a mulher que seria pouco digno tomar
para esposa, recebeu uma consagração legal,
precisando o direito as condições em que esta
união não passaria dum commercio illicito.
Facil era distinguir o casamento sine manu do
concubinato, quando se verificavam os factos que
precedem ou acompanham ordinariamente o
casamento, como os esponsaes, o casamento
religioso, o instrumentum dotale. Na falta destes
factos, e salvo prova em contrario, tinha o
espirito de se orientar pelas presumpções,
admittidas no direito classico. Antes de Justino,
presumia-se o casamento ou o concubinato,
segundo as pessoas eram ou não da mesma
classe, e depois de Justino presumia-se sempre o
casamento.
Além do concubinatos, havia ainda o
contubernium, que era a união entre escravos ou
entre uma pessoa livre e um escravo. Mas, como
esta união se dava entre pessoas que não eram
ambas aptas para con-trahir casamento,
constituindo tal união um simples
— 548 —
facto, destituído de todo o effeito civil, facil è de r
que o contubernium não podia offerecer confusões
com o casamento sine manu 1.
242. Condições das justas nupcias. Segundo
o direito romano, eram condições necessarias para
a validade das justas nupcias: o consentimento, a
aptidão physica e o connubium.
Primitivamente, o consentimento dos esposos uni-
camente se exigia quando eram sui juris, porque do
contrario bastava o dos patres-familias.
O direito que tinham os ascendentes de dar ou
negar o seu consentimento para o casamento dos
descendentes, apresenta-se como uma attribuição es-
sencial do patrio poder, e por isso é negado aos
ascendentes paternos nos casos em que o tenham
aquelle poder, e aos maternos dum modo absoluto.
Depois, o consentimento dos esposos tornou-se indis-
pensavel, e o dos patres-familias diminuiu de impor-
tancia, podendo ser supprido pelo magistrado, quando
o ascendente o recusava sem motivo justificado, e
tornando-se desnecessario, quando este estivesse
ausente, prisioneiro de guerra ou louco.
Assim, diz Girard, o casamento celebrado primiti-
vamente pelos paes em nome dos filhos tornou-se
um casamento realizado pelos filhos com auctoriza-
ção dos paes.
0 systema do consentimento conserva, porém, a
antiga physionomia, continuando a basear-se não
sobre o interesse do filho, mas sobre a ia do poder,
com excepção do caso do casamento da mulher sui
1
Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 141 e
seg.; Edouard Cuq, Les institutions juridiques des romains,
tom. II, pag. 801 e seg.
— 549 —
juris, em que, depois de abolida a tutela das mulhe-
res, se exigia para o seu casamento, aaos vinte
e cinco annos, o consentimento das pessoas que lhe
deviam dedicar mais affecto, como o do pae, na sua
falta, da mãe e dos outros parentes.
A aptidão physica era outra condição para a vali-
dade do casamento. Como esta aptidão não se ma-
nifesta na mesma edade em todas as pessoas, os
romanos recorreram ao exame individual, que, sub-
stitdo para as mulheres pela edade fixa de doze
annos, continuou para os homens em discussão du-
rante muito tempo, até que Justiniano adoptou a
opinião dos proculeianos, fixando a puberdade viril
aos quatorze annos. Por falta de aptio physica
tambem os castrati o podiam casar validamente.
O connubium era a capacidade legal para realizar as
justas nupcias, uxoris jure ducendae facultas, e
abrangia, como diz Schupfer. as condições que, além da
aptidão pbysica e do consentimento, eram necessarias
para a validade do casamento. Havia pessoas
absolutamente incapazes, que não podiam contrahir de
modo nenhum justas nupcias, como os escravos e os
peregrinos a que não tivesse sido concedido o jus
connubii, e relativamente incapazes, que, embora
podessem celebrar justas nupcias dum modo geral,
não podiam, com tudo, desposar certas pessoas, e|
isto em virtude de impedimentos relativos, que podiam
derivar ou da classe, ou do parentesco (cognaão,
quasi cognação e affinidade), ou de certas regras de
direito positivo. Por causa da diversidade de
classe, foram probi-bidos os casamentos entre
patrícios e plebeus, entre ingenuos e libertinos, entre os
membros da classe senatorial (senadores e seus
descendentes agnaticos até ao terceiro go) e
mulheres de costumes e pro-
— 550 —
fises vergonhosos. A primeira prohibição foi sanc-
cionada pela Lei das XII Tab. e abolida pela lei
Canuleia no anno 309 de Roma. A segunda foi de-
rogada pela primeira lei matrimonial de Augusto,
que estabeleceu a terceira, por sua vez abolida por
Justiniano.
Por causa da cognão, foi prohibido o casamento
em toda a linha recta, e primitivamente até ao sexto
grào na linha collateral, rigor que se foi attenuando
até ao ponto da prohibição do casamento entre pri-
mos co-irmãos desapparecer antes do fim da repu-
blica.
Por quasi cognão, foram prohibidas as nupcias
entre os paes adoptantes e os filhos adoptados, ainda
mesmo depois da adopção, e entre a mãe do ado-
ptado e todos os demais aguados do adoptante na
constancia da adopção.
Sob o imperio, prevaleceu a regra da permissão
do casamento entre collateraes, excepto quaudo um
delles distasse mente um gráo do auctor commum,
regra que soffreu duas derogações temporarias, que
desappareceram no tempo de Justiniano: a primeira,
permittindo o casamento entre o tio paterno e a
sobrinha, em virtude dum senatus-consulto destinado,
a consentir a Claudio o casamento com Agripina, e
a segunda, prohibindo o casamento entre primos co-
iros, devido à influencia do christianismo.
A affinidade não foi um impedimento matrimonial
até ao fim da republica, mas o direito do imperio
deu-lhe este caracter em qualquer gráo da linha
recta e na linha collateral entre cunhado e cunhada.
Por causa de disposições especiaes, foram prohi-
bidos os casamentos entre o esposo adultero e o seu
cumplice (lei Julia de adulteriis), entre o tutor ou
o filho deste e a sua pupilla (senatus-consulto do
— 551 —
tempo de Marco-Aurelio e Commodo), entre O
governador duma provinda e as mulheres della
(mandados imperiaes) e entre christãos e judeus
(constituições dos imperadores christãos).
As consequencias da inobservancia destas
disposões legaes eram a nullidade do casamento,
além da sancção penal que porventura tivesse
applicação, como no caso de incesto 1.
248. O casamento entre os germanos. — As fór-
mas mais antigas da realização do casamento entre
os germanos são o rapto da mulher e a compra da
esposa.
Heusler sustentou que o matrimonio por meio do
rapto precedeu o da compra, visto este ultimo sup-
por necessariamente o primeiro. O rapto é uma
injuria para a família a que pertence a raptada,
sendo a vingança d'este facto um direito e um dever
para aquella família. Se ella renuncia á vingança
de exigir a composição, que assim viria a repre-
sentar o valor da raptada. Tornados mais suaves
os costumes, deixou-se de recorrer ao rapto, pactuan-
do-se então o preço da esposa. Dahi o matrimonio
por compra.
Tem-se, pom, observado muito justamente con-
tra a doutrina de Heusler que, se o matrimonio por
meio do rapto de ser considerado a regra entre
pessoas pertencentes a grupos sociaes diversos, o
mesmo se não pôde admittir entre pessoas do
mesmo grupo. O caso mais frequente deveria ser
tambem então o casamento entre filhos de
visinhos,
1
Girard, Manuel élémentaire de droit romain, pag. 151 e seg.;
Cogliolo, Storia del diritto privato romano, vol. I, pag. 79;
Schupfer, La famiglia secando il diritto romano, vol. I, pag. 55,
— 552 —
de pessoas que se conhecem, com consentimento
das respectivas falias. Nas poucas vezes em que
tivesse logar o rapto, eno tambem se verificaria o
pagamento da composão. Uma rma de matrimo-
nio não póde ser derivada da outra: são indepen-
dentes,o se podendo determinar qual foi a que
primeiramente appareceu.
No tempo de Tacito o casamento effectuava-se
com a conduão solemne da mulher a casa do esposo,
tendo sido as negociações para a compra e venda
substitdas pelos esponsaes. Os esponsaes tinham
tamanha importancia no direito germanico que não
faltam escriptores, como Sohm, que considerem per-
feito o casamento neste direito unicamente por meio
delles. Mas, sem a entrega da mulher, o marido
não podia gosar do mundium sobre ella 1.
244. 0 casamento no direito wisigothico.
Embora pouco ou nada se diga a respeito da fórma
do casamento no codigo wisigothico, não póde haver
duvida de que este acto se tinha de celebrar perante
o sacerdote na Igreja.
Em todo o caso, tambem nos apparece o casa-
mento de mero consenso, que os canones reputavam
validos mas illicitos. Isto deduz-se de se permittir
aos judeus recentemente baptizados celebrar nupcias,
ou precedendo a convenção preliminar do dote, ou
recebendo a benção sacerdotal no seio da Igreja
(cod. wis., liv. xII, tit. III, 1. 8). Por conseguinte, o
casamento era valido sem sacramento, desde o
momento em que se fizesse escriptura ante-nupcial.
1
Nani,
Storia del diritto privato italiano,
pag. 157 e seg.;
Ciccaglione,
Manual di storia del diritto italiano,
vol. I, pag. 66
— 553 —
Precediam o casamento os esponsaes, que se con-
trahiam por escripto ou perante testemunhas pelos
contrahentes, se eram maiores de 15 annos, e por
seus paes ou irmãos, se eram menores desta edade.
Obrigavam á celebrão do casamento dentro dos
dous annos seguintes, não se prorogando por mutuo
accordo este prazo.
o se exigia edade para o matrimonio; bastava
que os esposos fossem aptos para a procreação; a
lei unicamente probibia que a mulher fosse de mais
edade que o varão (Cod. wis. liv. III, tit. I, I. 3).
Tambem estava prohibido o matrimonio da viuva,
antes de ter passado um anno depois da morte do
seu anterior esposo. Se a viuva não observasse esta
disposição, ou se entregasse a outro homem nesse
anno, perdia metade do que tivesse herdado do ma-
rido defuncto. Só o rei podia dispensar esta prohi-
bição (Cod. wis. liv. III, tit. II, I. 1).
Merece especial menção a disposição pela qual
Recesvindo, revogando a antiga prohibão, ordena
que possam casar mulheres godas com homens ro-
manos e vice-versa e os livres entre si, qualquer
que seja a sua condão (Cod. wis. liv. III, tit. I, 1.2).
Esta lei estabeleceu perante o direito a união defini-
tiva de ambos os povos pelo vinculo da familia.
era probibido o casamento entre livres e servos.
Os impedimentos por parentesco vão até ao sexto
gráo da linha collateral (civil), sem duvida por
influencia do direito canonico (liv. III , tit. vI, I. 1
e 2). As filhas não podiam casar contra vontade
dos paes, sob pena de serem entregues com os seus
maridos á disposição de quem os paes tivessem
escolhido para esposo 1.
1 Chapado Garcia, Historia general del derecho espanol, pag. 181
e seg.; Antonio Caetano do Amaral, Memoria III para
— 554 —
246. O casamento na Reconquista. O casa-
mento na Reconquista soffre a influencia das condi-
ções sociaes da epocha. Era tamanha a necessidade
de repovoar o territorio arrancado aos arabes, que
se estabeleceu, com o consentimento da Igreja, orna
nova fórma de contratar casamento — a de juras.
O matrimonio de juras tinha um caracter legitimo,
civilmente fatiando, e constituía um contracto de
esponsaes secreto que se consummava com a onião
carnal dos contrahentes. Esta rma de casamento
contrapnnha-se à fórma religiosa, que se realizava
com solemnidade perante o ministro da religião
catholica, na Igreja parochial dom dos contrahentes,
a quem o parocho benzia, bem como a casa e habi-
tações. À mulher casada religiosamente recebia os
nomes de mulher velada ou de benção, a mulher
casada pela outra fórma chamava-se de juras.
0 matrimonio solemne devia satisfazer a certos
requisitos, uns de caracter religioso e outros de
caracter civil, sendo destes o consentimento, os
esponsaes e as arrhas, e daquelles a benção sacer
dotal, conformando-se em geral os Filtros com o
disposto no Codigo wisigothico, devendo ser desher-
dada por lei toda a mulher que não obtivesse para
casar o consentimento dos seus parentes mais pro
ximos. Continua nos Fueros a prohibição da viuva
contrahir novo casamento, emquanto não decorrer
um anno depois da morte do seu esposo, sendo
punida, se assim não procedesse 1.
a historia da legislação e costumes de Portugal, Memorias de
litteratura portuguêsa, vol 6, pag. 279.
1
Chapado Garcia, Historia general dei derecho
espanol,
pag- 355 e seg.
— 555 —
240. Theoria canonica do casamento. A Igreja,
como nota Esmein, ensinou desde os primeiros tem
pos, regras prohibitivas e imperativas relativamente
ao matrimonio, mui differentes das que se continham
nas leis civis. A influencia que a Igreja exercia
sobre as consciencias, foi a base do poder que
depois se arrogou sobre esta materia. Antes de
Constantino a Igreja legislava sobre o casamento,
e, embora a sua legislação o tivesse valor official,
obrigava comtudo os christãos com a sua força e
prestigio espiritual.
Nestas condições, comprehende-se perfeitamente
que a Igreja, não podendo impôr uma legislação
matrimonial coordenada e completa, fosse pouco
exigente, limitando-se a estabelecer alguns princí-
pios e a prohibir o divorcio por mutuo consenso.
Depois de Constantino, a Igreja conseguiu fazer
penetrar o seu direito em grande parte na legisla-
ção official, mas não pôde obter que os imperadores
abdicassem da funcção legislativa em assumptos de
casamento.
Nos reinos barbaricos, a Igreja o conseguiu
logo centralizar a legislação e a jurisdicção sobre
materia matrimonial. Só no seculo xI, attingindo
grande desinvolvimento a auctoridade espiritual e
encontrando-se muito enfraquecida a auctoridade
real, é que a Igreja pôde conquistar um poder,
quasi absoluto, sobre o matrimonio. Affirma-se
eno a impossibilidade da separação do contracto
do sacramento. Os canonistas consideram frequen-
temente o casamento como um contracto; redu-
zem-no mesmo ao typo dos contractos consensuais
do direito romano; mas nunca separam o contracto
— 556 —
do sacramento, sendo o contracto simplesmente um
aspecto do sacramento. A sacramentalidade torna-
se deste modo nm caracter essencial do casamento.
Ao mesmo tempo a Igreja usava e abusava do seu
poder sobre o casamento, desinvolvendo e modifi-
cando o systema romano dos impedimentos. Os
impedimentos por parentesco foram tão extraordi-
nariamente ampliados pelo direito ecclesiastico, que
chegaram a ser prohibidos os casamentos até ao
septimo go canonico. As desordens que nasceram
d'este systema de impedimentos, exagerado a ao
absurdo, perturbaram seriamente os Estados. Tor-
nou-se inevitavel uma reaão, e o concilio de Latrão
de 1215, attendendo aos clamores geraes, conveio
em qne os impedimentos fossem reduzidos ao quarto
gráo canonico.
Com o concilio de Trento entra o casamento numa
nova phase, visto elle alterar o direito canonico ante-
rior sobre este assumpto. A Igreja, porém, já se
encontrava nesta epocha bastante decadente, em
virtude da dissolução do regimen catholico-feudal,
para conseguir manter o sen poder sobre o matri-
monio, em face do poder real, constituído dum
modo absoluto em quasi todas as nações da Europa,
e da emancipação do pensamento iniciada pela
Reforma. Apparece então uma nova corrente que
procura fazer entrar o casamento na esphera do
poder civil.
Tendo-se manifestado primeiro dum modo philoso-
pbico nos escriptos de alguns theoricos do seculo xvI,
qne pretendiam reivindicar para o Estado o direito
de estabelecer impedimentos sem approvão da
auctoridade ecclesiastica, esta tendencia accentnon-se
dum modo pratico no seculo xvII e adquiriu notavel
— 557 —
desinvolvimento no seculo xvIII. Travou-se uma
lucta encarnada entre o ultramontanismo, que,
confundindo o contracto com o sacramento, altribuia
á Igreja o poder exclusivo de regular o matrimonio,
e o regalismo que pretendia reivindicar para o
Estado as attribuições que este deve ter em materia
de casamento. Este movimento foi coroado de bom
resultado, pois delle derivou, no fim do seculo xvIII,
a emancipação completa do casamento consignada
na constituição de 91, que formulou nestes termos
o novo direito: O Estado considera o casamento
unicamente um contracto civil 1.
247. 0 casamento no direito português. rmas
do casamento. Nos princípios da nossa monarcbia
encontram-se duas rmas de casamento: os cele-
brados á face da Igreja (de benedictione e os de
publica fama (maridos conhuçudos).
Alexandre Herculano deduz dos foraes a existencia
de uma outra forma de casamento o casamento de
juras, similhante ao da Reconquista deste nome, em
que o mutuo consenso era firmado por juramento
na presença de um ministro do culto (in manu
clerici), não sendo, porém, conferido o sacramento,
porque os foraes consideram aquelle matrimonio
como diverso e inferior ao da benção.
Santa Rosa de Viterbo admitte tambem o casa-
mento á morganheira ou inorganica, que era, na
opinião deste escriptor, uma especie de casamento
segundo o direito natural derivando apenas da von-
1 Viollet, Histoire du droit français, pag. 398; Esmein, Le
mariage en droit canonique, pag. 78 e seg.; Alexandre Herculano,
Historia de Portugal, tom. II, pag. 104 e seg.
— 558 —
tade livre e seria dos conjuges, sendo o marido
quasi sempre nobre. A lei não protegia essas
uniões, não garantia a communhão de bens para os
conjuges, nem o direito de herança para os filhos.
Como não bavia um registro regular dos matri-
monios, para os provar, recorria-se á publicidade
do facto que se passou em face da Igreja. Succedia,
porém, muitas vezes que o matrimonio havia sido
clandestino on que os conjuges tinham mudado de
residencia e faltavam as testemunhas, recorrendo-se
então à fama publica. D. Diniz determinou que
fosse prova sufficiente a cohabitão por espo de
sete annos entre indivíduos tidos por marido e
mulher e que se apresentaram sempre como taes
nos actos publicos e civis.
Com D. Affonso TV começa uma serie de prohi-
bições contra os casamentos clandestinos, isto é,
effectuados sem as formulas instituídas pela Igreja,
quando contrahidos com mulher que estivesse sob a
tutela do pae, mãe ou outra pessoa que não consen-
tisse em tal matrimonio, até que D. Manuel ordenou
que todos casassem publicamente á face da Igreja
segundo os canones com a leitura dos bainos (pro-
clamas ou pregões), devendo os que assim não
cumprissem perder todos os seus bens, metade para
a camara real e metade para os captivos. Estas
prohibições tinham por fim unicamente manter
integra a auctoridade paterna, pois, se o casamento
clandestino se fizesse com o consentimento dos
paes cessava, segundo a lei, toda a criminalidade.
As Ordenações Manuelinas trasigem com os casa-
mentos clandestinos, considerando meeiros os con-
juges que casarem à porta da Igreja ou fóra delia
— 559 —
com licença do prelado e os que viverem em casa
teuda e manteuda, ou em casa dos seus paes ou em
outra, em publica voz e fama de marido e mulher,
ainda que não hajam casado á porta da Igreja. (Ord.
Manuelinas, liv. II, tit. XLVII ). Esta disposição passou
para as Ordenações Philippinas (liv. Iv, tit. XLVI),
embora com algumas alterações, segundo nos por
inadvertencia, visto ella estar em contra-dicção com
os canones do concilio de Trento, recebidos no reino,
que exigem que o casamento seja feito em face da
Igreja, segundo outros por as Ordenações Pbilippinas
permittirem o casamento civil. Parece mais provavel
que se tracte duma simples presumpção de ter havido
matrimonio.
Os casamentos clandestinos continuaram, apesar de
contrarios ao concilio de Trento. Foi, para evitar a
sua multiplicação, que D. João IV publicou o Alvará
de 13 de novembro de 1651, punindo os casamentos
clandestinos com o confisco dos bens e o desterro
para uma Conquista, incorrendo nestas peoas tanto
os contrabentes como as testemunhas.
Ficou assim constituída a legislação matrimonial do
antigo regimen. Esta legislação continuou a vigorar
durante o regimen liberal, até que o codigo civil lhe
veio dar um golpe profundo, admit-tindo o casamento
civil, embora por uma fórma um pouco disfarçada,
pelo que diz respeito aos catholicos 1.
1
Alexandre Herculano, Estudos sobre o casamento civil, pag.
22 e seg.; Sr. Dr. Araujo e Gama, Estudo sobre o casamento civil,
pag. 129 e seg.: Augusto Carneiro, O casamento civil e seus
adversarios, pag. 47 e seg.
— 560 —
248. Impedimentos matrimoniaes. Á Igreja,
valendo-se da sua influencia, de fazer prevalecer
no direito portugs o systema canonico dos impe-
dimentos matrimoniaes, cuja força legal se encontra
reconhecida por D. Affonso III.
Deste modo, fica a legislão canonica constituindo
a base do nosso systema de impedimentos matrimo-
niaes. Predomina no casamento a considerão do
sacramento sobre o contracto, e o poder ecclesiastico
consegue dominar soberanamente em tudo o que
respeita o matrimonio. Não admira, pois, que a
legislação patria, no seu desinvolvimento historico,
seja quasi omissa a respeito de impedimentos matri-
moniaes, que deixa ao direito canonico e mais tarde
tambem ás constituições dos bispados.
Como apreciar a influencia que a legislação cano-
nica teve entre nós em materia de impedimentos ?
A materia de impedimentos é sem duvida uma
daquellas que, póde dizer-se sem receio de errar, o
direito canonico mais profundamente viciou. Haja
vista ao que dizem Tissot e Letourneau sobre este
assumpto. É que, « para regular prudentemente as
cousas da terra, não é bom ter os olhos constante-
mente levantados para o céo ».
A influencia que o direito canonico exerceu entre
nós sobre este assumpto confirma plenamente esta
verdade historica. Bastará dizer que este direito
introduziu tal confusão sobre os impedimentos de
parentesco, que poucos casamentos, principalmente
de principes, como testemunha Coelho da Rocha,
podiam escapar ao risco de illegitimos. Demonstra
claramente isto o que se deu com duas filhas de
Sancho I, que tiveram de separar-se de seus maridos
— 561 —
por se considerarem nullos, em virtude do
parentesco, os respectivos casamentos, e com D.
Sancho II, D. Affonso III, D. Pedro I e D.
Fernando I, cujos matrimonios foram arguidos de
nullidade por cansa do mesmo impedimento.
Os nossos reis não deixaram, comtudo de
estabelecer alguns impedimentos de caracter
impediente, que passamos a examinar.
A) D. Diniz ordenou que fosse desherdada a
filha que casasse, « sem mandado do seu padre
ou de sua madre », antes dos vinte e cinco annos,
podendo, porém estes relevar-lhe o seu erro,
quando não tivessem outro descendente (Ord.
Aff., liv. Iv, tit. 98, § 1).
As Ordenações Manuelinas (liv. Iv tit. 72, § 2)
restringiram a amplitude das Affonsinas,
determinando que, quando a filha casasse sem
consentimento, melhor e mais honradamente do
que seus paes a poderiam casar, estes só, por
disposição expressa, a podessem privar de
metade da legitima, restricção que depois foi
admittida pelas Ordenações Filippinas (liv. Iv, tit.
88, § 1).
A lei de 19 de junho de 1775 ampliou as dispo
sições da Ordenação Filippina, impondo a pena de
desherdação e da privação de alimentos aos filhos
menores sem distincção de sexo, que casassem
con
tra vontade dos paes e, na falta delles, dos tutores
e curadores.
A lei de 29 de novembro de 1775 dispoz que
este consentimento fosse snpprivel, para os
nobres pelo Desembargo do Paço, e, para os não
nobres, em Lisboa, pelos Corregedores do Civel
da Corte ou da cidade, e, nas províncias, pelos
Corregedores ou Provedores das comarcas. Esta
disposição foi depois revogada pelo art. 340.° da
N. R. J.
36
— 562 —
B) Todas as Ordenações Affonsinas(liv. v, tit. 11),
Manuelinas (liv. v, tit. 18) e Filippinas (liv. v, tit, 24)
prohibiram o casamento do creado com a filha, con-
sanguínea ou affim do amo dentro do quarto gráo
sem consentimento deste, punindo com morte os
criados que transgredissem esta prohibição. Liz
Teixeira justifica este rigor dizendo: « Nem a gra-
duão deste crime para ser punido com a pena de
morte, que aliás não póde em tal caso executar-se
sem confirmação regia da sentença, é excessiva,
attento o systema penal da nossa Ordenação do liv.
5.°; porquanto este delicio contem abuso de boa fé,
ou aleivosia e perfídia, circumstancia aggravante num
caso que perturba o bem das falias e a sorte dum
sexo fragil ».
C) Às Ordenações Manuelinas (liv. II, tit. 47) e
Filippinas (liv. II, tit. 37) dispozeram que a mulher
com bens, jurisdião ou quaesquer direitos da corôa,
renda ou tença que passassem de 50$000 réis não
podesse casar sem licença do rei, sob pena de per-
der esses bens, direitos ou rendas.
A lei de 23 de novembro de 1616 ampliou esta
disposão a todas as pessoas nobres que adminis-
trassem bens da corôa ou tivessem fôro pelo menos
de moço fidalgo, embora fossem maiores e sui juris.
Estes bens da corôa foram extinctos, e portanto
revogadas todas as leis relativas a elles e á succes-
são d'elles, pelo decreto de 13 de agosto de 1832.
D) As Ord. Filippinas determinaram que os ma-
gistrados temporarios não podessem casar durante
a sua magistratura, sem licença gia, com as mu-
lheres naturaes ou domiciliadas dentro do territorio
da sua jurisdião, e, se procedessem dontro modo,
ficavam suspensos ipso facto e nullos os actos que
praticassem depois do casamento. O mesmo depois
— 563 —
acontecia a respeilo dos ministros que serviam em
quaesquer logares das conquistas, em virtude do
decreto de 26 de março de 1734. Mello Freire,
Correia Telles e Liz Teixeira discutiam se no sen
tempo ainda estaria em vigor esta disposição. Mello
Freire considerava-a em desuso, excepto no caso de
haver violencia ou concussão. Liz Teixeira julgava
a em vigor. Correia Telles restringia a ao caso de
matrimonio com mulher orphã ou viuva 1.
1
Mello Freire, Inst. Juris civilis lusitani, cit, III. lib. II, tit. V,
§ VI, pag. 115; Liz Teixeira, Curso de direito civil, tom. I, pag.
263; Corrêa Telles, Digesto portuguez, tom. II, art. 341°; Borges
Carneiro, Direito civil de Portugal, tom. II cit., tit. XI, § 110 pag.
47; Coelho da Rocha, Ensaio sobre a historia do governo e
legislação de Portugal, pag. 92; Tissot, Introd. phil. á l'étude du
droit, pag. 101; Letouraeau, Levolution du mariage et de la
famille, pag. 256.
ÍNDICE
PRENOÇÕES
1. A funcção organica do direito e as instituições jurídicas.)
2. Evolução das instituições juridicas. 3. Leis da evo
lução jurídica. 4. Conceito da historia das instituições
jurídicas. 5. Extensão da historia das instituições jurídi
cas. Theoria de Flach. — 6. A historia das instituições
juridicas e a sociologia jurídica. 7. Conceito da historia
das instituições do direito romano, do direito peninsular e
do direito português. 8. Relações da historia das insti
tuições jurídicas com a historia geral do direito. 9. Im
portancia da historia das instituições jurídicas. —10. Me-
thodos da historia das instituições juridicas. A) Methodos
de investigação: a) Methodo historico propriamente di-
cto. — 11. b) Methodo historico-comparativo. 12. c)
Methodo colonial.— 13. d) Methodo ethnographico.—14. B)
Methodos de exposição : a) Methodo chronologico.—15. b)
Methodo monographico. —16. Systematização classica da
historia das instituições juridieas. —17. Systematização
que adoptamos............................................... pag. 5 a 32
PARTE PRIMEIRA
A personalidade
CAPITULO I Pessoas sem
capacidade juridica
§ 1.° — Escravos
18. Classificação das pessoas sob o aspecto da historia da capa-
cidade judica. Doutrina de Nani. —19. Conceito da escra-
vidão. 20. Origem historica da escravidão. 21. A
escravidão no direito primitivo. 22. A escravidão na
Hespanha primitiva. 23. A escravidão romana. Desin-
volvimento historico da instituão. 24. Condição jurí-
dica do escravo. A) Condição jurídica do escravo relativa-
— 568 —
mente ao senhor: a) Quanto á pessoa. 25. b) Quanto
aos bens. 26. B) Condição juridica do escravo relativa-
mente á sociedade.—27. Influenciado christianismo sobre
a condição jurídica do escravo. 28. Fontes da escravi-
dão. 29. Fórmas da sua extincçSo. 30. A manumis-
são. 31. A escravidão entre os germanos. 32. A escra-
vidão goda. Diversas categorias de escravos. 33. Condi-
çSo jurídica dos escravos. — 34. Fontes da eseravidSo.
35. Cessão da escravidão. 36. Natureza da servidão
na Reconquista. Doutrinas de Herculano e Muitos y Ro-
mero. 37. A escravidão neste periodo. 38. Desinvol-
vimento historico da eseravidSo em Portugal. — 39. A
eseravidSo nas colonias. — 40. A abolição da escravidão e
o regimen do trabalho colonial. 41. Condão jurídica do
escravo entre nós. —42. Fontes da eseravidSo e rmas
da sua extincçSo ........................................... pag. 35 a 97
§ 2.° Servos da gleba 43. Conceito da
servidão da gleba. — 44. Origem da servidão da gleba. 45.
Comparação entre a condição do escravo e a condão do servo
da gleba. 46. A servidão da gleba entre os wisigodos. 47.
A servidão da gleba na Reconquista : Existencia da instituição.
—48. Condição jurídica desta classe social. 49. Fontes da
servidSo da gleba. —50. Fórmas da sua extincção.—51. A
pretendida influencia do christianismo na emancipação dos
servos da gleba.
52. Verdadeiras causas de transformação da servidSo da
gleba no colonato livre. 53. Progressos introduzidos na
servidão da gleba. —- 54. Complemento da evoluçSo no
direito português. 55. Ultimos vestígios da servidSo da
gleba............................................................pag. 98 a 122
CAPITULO II Pessoas com
capacidade jurídica limitada
SECÇÃO I
Pessoas com capacidade jurídica limitada em
virtude de causas economicas
§ 1.° — Colonos adscripticios 56. Classificação
das pessoas com capacidade jurídica limitada.
57. Colonato adscripticio. Conceito da instituição.
4
— 569 —
58. Origem do colonato adscripticio. Theorias que lhe
dão uma origem romana. 59. Theorias que lhe dão uma
origem germanica.—60. Theorias que lhe o uma origem
chris. — 61. A moderna doutrina de Fustel de Coulanges.
62. Condição jurídica dos colonos e adscripticios.
63. Obrigações dos colonos adscripticios para com os
proprietarios. — 64. Fontes do colonato adscripticio.
65. Cessão desta condão das pessoas. 66. Os Lites
dos povos germanicos. 67. Existencia do colonato ads-
cripticio entre os visigodos. 68. Destino da instituição
neste período do direito peninsular. Doutrinas de Hercu-
lano, Gama Barros e Perez Pujol. 69. Funão desem-
penhada pelo colonato adscripticio na evolução das classes
servas. Theoria de Doniol......................... pag. 123 a 157
§ 2.° Colonos voluntarios
70. O colonato voluntario no direito romano. A locatio condu-
ctio. 71. O colonato voluntario entre os wisigodos. O
precario. 72. O colonato voluntario na Reconquista.
Vexames e oppreses. 73. O colonato voluntario no
direito português............................................ pag 158 a 171
SECÇÃO II
Pessoas com capacidade jurídica limitada em
virtude de causas familiares
§ I º — Mulheres 74. Condão da
mulher no direito primitivo. — 75. A mulher no periodo
preromano do direito peninsular. — 76. A mulher no direito
romano. A tutela perpetua. — 77. A manus.
78. A mulher e o christianismo. — 79. A mulher entre
os germanos. O mundium. 80. A mulher no direito wisi-
gothico.81. A mulher na Reconquista. 82. A mulher
no direito português. Direito antigo. 83. Direito mo
derno. 84. O direito e o feminismo........ pag. 172 a 193
§2º - Os filhos
85. Os filhos no direito primitivo. 86. Os filhos no período
preromano do direito peninsular. 87. Os filhos no direito
romano. 88. Os filhos no direito germanico. 89. Os
filhos no direito wisigodo. — 90. Os filhos no direito da
Reconquista. 91. Os filhos no direito português. Direito
antigo. 92. Direito moderno ......................pag. 194 a 207
— 370
SECÇÃO III
Pessoas com capacidade juridica limitada
em virtude de causas religiosas....................
§ I.° Judeus
93. Os judeus no direito romano. 94. Predonio dos judeus
na Península. 95. Condição jurídica dos judeus entre os
Visigodos. Incapacidades com que foram feridos. 96. Per
seguições de que foram objecto. 97. Os judeus na
Reconquista. 98. Os judeus no direito português.
Regimen de tolerancia. 99. Regimen de persegui
ção.................................................................. pag. 208 a 225
§ 2.º — MOUROS
100. Os mouros na Reconquista. — 101. Os mouros no direito
portugs. Regimen de toterancia. 102. Regimen de per-
seguição. —103. Condidos de direitos entre mouros e
judeus e entre quaesquer destes e christãos. pag. 226 a 233
§ 3.° — Hereticos 104. Condição dos hereticos no direito
romano. —105. Os hereticos no direito wisigothico. —106. Os
hereticos na Reconquista. —107. Os hereticos no direito
português. — 108. A Inquisição. —109. A liberdade
religiosa... pag. 233 a 246
SECÇÃO IV
Pessoas com capacidade jurídica limitada.
em virtude de causas moraes
Libertinos 110. Conceito dos libertinos
no direito romano. —111. Sua condição jurídica neste
direito.—112. Os libertinos no direito germanico. —113.
Condição jurídica dos libertinos entre os wisigodos. —114.
Categorias de libertinos admittidas no direito wisigothico,
115. Os libertinos na Reconquista. —116. Os libertinos no
direito português, pag. 247 a 260
SECÇÃO V
Pessoas com capacidade jurídica limitada
em virtude de causas jurídicas
Clientes 117. A antiga clientela
romana.118. A nova clientela romana. —119. A clientela
no direito germanico. — 120. A
— 571 —
clientela no direito wisigotico. Bucellarios. —121. A clien
tela na Reconquista. Malados. —122. A maladia no direito
portugs................................................. pag. 261 a 275
SECÇÃO VI
Pessoas com capacidade juridica limitada em
virtude de causas politicas
Estrangeiros
123. Os estrangeiros no direito primitivo e nas sociedades
antigas. —-124. Os estrangeiros na Hespanha preromana.
125. Os estrangeiros em Roma. Desinvolvimento da
distinão entre cives e peregrini. 126. Direitos dos cida
dãos romanos. 127. Condição jurídica dos peregrini pro
priamente dictos. 128. Os latini e os seus direitos.
—129. Concessão do direito de cidade a todos os subditos
do Imperio. 130. Os barbari. —131. Os estrangeiros
entre os germanos.— 132. Os estrangeiros entre os wisi-
godos. —133. Os estrangeiros na Reconquista. 134. Os
estrangeiros no direito português. Tratamento benevolo
dos estrangeiros. 135. Privilegios concedidos aos estran
geiros.—136. Applicação directa do direito estrangeiro.
—137. Applicação indirecta ................... pag. 276 a 307
CAPITULO III Pessoas com
capacidade jurídica privilegiada
§ I.º Nobres
138. A nobreza na Hespanha primitiva. —139. O patriciado
e a nobilitas.—140. A nobreza do Baixo-Imperio. —141. A
nobreza entre os germanos.— 142. A nobreza entre os
godos. — 143. A nobreza na Reconquista. 144. A no
breza em Portugal. Transformação historica da classe.
—145. Privilegios da nobreza. 146. Adquisição da
nobreza ......................................................... pag. 311 a 325
§ 2.° — Clerigos
147. Os clerigos no direito romano. —148. Os clerigos no
direito wisigothico. —149. Os clerigos na Reconquista.
—150. Os clerigos no direito português. Preponderancia
do clero.—151. Privilegios eimmunidades do clero.—
152.O
clero nas sociedades modernas................... pag. 326 a 346
— 572 —
PARTE SEGUNDA
Propriedade
CAPITULO 1
Princípios geraes
153. Importancia actual da historia da propriedade. —154. No-
ção da propriedade. 155. Divisão da propriedade.
156. Fundamento historico da propriedade. —157. Lei so-
ciologica da evolução da propriedade de Carie. pag. 349 a 358
CAPITULO II Fórmas
primitivas da propriedade
158. Systemas sobre a primeira fórma da propriedade. 159. A
primeira rma da propriedade foi collectiva. 160. Pri-
meira fórma da propriedade collectiva. 161. Organização
da propriedade na communidade de aldêa. —162. Commu-
nidades de aldôa com repartição periodica das terras.
163. O Mir russo. —164. Communidades familiares.
165. Propriedade individual. 166. Valor historico dos
estadios da evolução da propriedade .......... pag. 359 a 376
CAPITULO III
Propriedade collectiva
167. A propriedade collectiva no período preromano. 168.
Caracter ethnico da propriedade collectiva preromana.
—169. A doutrina tradicional sobre a fórma primitiva da
propriedade romana. —170. Existencia da communidade
de ala entre os romanos. —171. rma da communidade
de ala admittida entre os romanos. —172. A phase da
communidade familiar. 173. A propriedade collectiva
entre os germanos. A Marck germanica. —174. A apro-
priação das terras da Península pelos wisigodos. —175. A
propriedade commum entre os wisigodos. 176. A
propriedade commum na Reconquista. 177. Vestígios
do communismo agrario no direito portugs. —178. Bal-
— 573 —
dios. 179. Communidades agrícolas da india portu
guêsa........................................................ pag. 377 a 405
CAPITULO IV
Propriedade individual
180. A propriedade individual na Hespanha primitiva.
181. Caracter da propriedade individual entre os romanos.
182. Coisas mancipi e nec mancipi. — 183. Domínio quiri-
tario e domínio bonitario. 184. As possessiones. 185. Os
Latifundio. 186. As villas romanas. 187. As sortes
gothicae e as tertio romanorum. 188. Transformação
das villas romanas. A pequena propriedade.189. A pro
priedade allodial, beneficiai e censual. 190. As presurias.
191. Os reguengos.—192. As jugarias. 193. Os coutos
e as honras. —194. Os morgados. 195. As capellas.
—196. Lei das sesmarias. 197. Lei da avoenga.
198. Novo caracter juridieo assumido pela propriedade
individual nos codigos modernos............... pag. 407 a 443
CAPITULO V
Fosse
199. Diferencião da posse da propriedade. 200. Conceito
romano da posse. 201. Fundamento da sua proteão
segundo o direito romano. 202. Os interdictos posses
sorios. 203. A gewere germanica. 204. A posse entre
os visigodos. — 205. A posse na Reconquista.206. Theo-
ria canonica da posse. 207. A posse no direito portu
guês ..........................................................pag. 445 a 463
CAPITULO VI
Prescripção
208. Usucapio. 209. Prescriptio longi temporis e prescri-
ptio longissimi temporis. 210. A prescripção entre os ger-
manos. — 211. A prescripçSo no direito wisigothico.
— ...........................................................212. A
prescripção na Reconquista. 213. Theoria
canonica da prescripção. 214. A prescripção no direito
português.................................................pag. 465 a 479
— 574 —
PARTE TERCEIRA
Família
CAPITULO I
Fórmas primitivas da família
215. Importancia actual do problema da constituição da falia
primitiva. 216. 0 patriarchado como a fórma primitiva
da família e da sociedade. 217. Promiscuidade ou he-
tairismo. — 218. Matriarchado. 219. O matrimonio ambi-
liano. 220. Passagem do matriarchado para o patriar-
chado.— 221. Critica da serie promiscuidade, matriar-
chado e patriarchado. — 222. O clan. 223. A exogamia.
224. O totemismo e o parentesco materno, pag. 483 a 516
CAPITULO II
Organismo da familia
225. As gentilitattt da Península. — 226. A família na Hespanha
primitiva. — 227. A gens romana. Conceito deste aggregado.
228. Organizão da gens 229. Falia romana. Seus
caracteres geraes. 230. Agnão. — 231. Cognâo.
232. A sippe germanica. Comparação deste aggregado
com a gens. 233. Funcções da sippe. 234. A falia
germanica. Sua estructura. 235. O parentesco germa-
nico. — 236. Familia wisigothica e da Reconquista.
237. Familia portugsa. — 238. Desintegração da familia
moderna. Theoria de Herbert Spencer........pag. 517 a 541
CAPITULO III
Casamento
239. O casamento na Hespanha primitiva. 240. Justas nu-
pciat. Casamento cum manu. 241. Casamento sine manu.
242. Condões das justas nupcias. 243. O casamento
entre os germanos. 244. O casamento no direito wisigo-
thico. — 245. O casamento na Reconquista. 246. Theoria
canonica do casamento. 247. O casamento no direito
portugs. Fórmas do casamento.—248. Impedimentos
matrimoniaes............... . ............................ pag. 543 a 563
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo