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A revista DEP Diplomacia, Estratégia e Política é um periódico trimestral,
editado em português, espanhol e inglês, sobre temas sul-americanos, publicado
no âmbito do Projeto Raúl Prebisch, com o apoio do Ministério das Relações
Exteriores (MRE/Funag Fundação Alexandre de Gusmão/Ipri – Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais), da Construtora Norberto Odebrecht S. A.,
da Andrade Gutierrez S. A. e da Embraer Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A.
Editor
Carlos Henrique Cardim
Endereço para correspondência:
Revista DEP
Caixa Postal 2431
Brasília, DF – Brasil
CEP 70842-970
revistadep@yahoo.com.br
www.funag.gov.br/dep
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
DEP: Diplomacia, Estragia e Política/Projeto Raúl Prebisch no. 8 (outubro/dezembro
2007) – . Brasília : Projeto Raúl Prebisch, 2007.
Trimestral
Editada em português, espanhol e inglês.
ISSN 1808-0480
1. América do Sul. 2. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana,
Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. I. Projeto Raúl Prebisch.
CDU 327(05)
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Argentina e Brasil: contraste e convergência
de estruturas
Torcuato S. Di Tella
Bolívia: processos de mudança e política externa
Jean Paul Guevara Avila
Cultura, diversidade e acesso
Gilberto Gil
Ensaio sobre as grandes mudanças da política
econômica chilena e seus principais legados
Osvaldo Sunkel
Colômbia: um país de contrastes
Alfredo Rangel
Equador: temas fundamentais
León Roldós
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 8 Outubro / Dezembro 2007
Sumário
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Guiana: impacto da política externa sobre os desaos
do desenvolvimento
Robert H. O. Corbin
Paraguai: identidades, substituições e transformações
Bartomeu Melià, s.j.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda
pendente da exclusão
Martín Tanaka · Sofía Vera
A República do Suriname e a integração regional
Robby D. Ramlakhan
Uruguai: breve evolução econômica e política
Alberto Couriel
O Estado de direito e de justiça social no quadro da
Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe –
ALBA
Isaías Rodríguez
Koki Ruiz
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Argentina e
Brasil: contraste
e convergência de
estruturas
Torcuato S. Di Tella*
D
esejo concentrar-me especialmente em ts etapas relativamente
recentes de nossa história: em primeiro lugar, os movimentos populares
dirigidos por Perón e por Vargas; em seguida, os regimes ditatoriais iniciados
na década dos 60, e nalmente os processos de democratização inaugurados
20 anos depois, com seus sistemas de partidos políticos. Começarei com um
breve olhar histórico um pouco mais extenso do que acabo de xar, porque
todos viemos ao mundo marcados pelo que nossos antepassados zeram.
Mas quem foram nossos antepassados? Que faziam quando nossos países
começaram a ter vida independente? Essa resposta é bem diferente para cada
um dos dois países: em sua maioria e em todos os níveis sociais, os tataravôs
dos brasileiros de hoje estavam no Brasil; os nossos estavam muito longe e
provavelmente nem sequer sabiam que essas nações existiam. O contraste é
* Universidade de Buenos Aires
Argentina e Brasil: contraste e convergência de estruturas
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muito forte e tem sido objeto de inúmeras análises, embora nem sempre com
um enfoque comparativo. Enquanto que a Argentina, durante décadas muito
formativas (digamos, entre 1880 e 1930), teve quase 30% de estrangeiros, no
Brasil essa cifra pouco superou os 5%. É verdade que em o Paulo e nos
estados do sul a quantidade foi signicativamente maior, mas essas pessoas não
constituem um país e o como uma ilha rodeada por um grande mar de outras
características étnicas e sociais. Um resultado inevitável é que deve haver, pelo
menos nas classes cultas, muito mais ampla meria histórica no Brasil do
que na Argentina, porque a memória se transmite em grande parte por meio
das tradições familiares. Nesse ponto a Argentina contrastao apenas com o
Brasil mas tamm com o Chile, país que tamm teve muito pouca imigração
estrangeira (no máximo outros 5%) e que possui um sistema político-partirio
muito moderno, o mais parecido com o europeu em nosso continente.
1
Nesse
caso, porém, o Chile e o Brasil deveriam ser muito parecidos, ambos comparados
com a Argentina? o necessariamente, porque as estruturas sociais de ambos
o bem diferentes, quase diria polarmente opostas. No que se refere à estrutura
social básica, o Chile é mais parecido com a Argentina, devido a seus já assentados
e antigos índices de urbanização, educação, vigor das classes dias e organização
operária e sindical iniciada muito cedo.
Uma conseqüência da maior quantidade de memória histórica existente
no Brasil (e no Chile) é que existem nesses países fortes partidos conservadores,
com este ou outro nome, característica que partilham praticamente com todas
as nações desenvolvidas e democráticas do mundo.
2
Por “partido conservador
entendo uma agremiação política que possui sólidas raízes nas classes altas e
que tem ideologia muito próxima da visão empresarial das coisas. Portanto,
incluo no Chile tanto o Partido de Renovação Nacional (PRN) quanto a União
Democrática Independente (UDI), ambos com mais de um século de história,
1 Tratei mais extensamente deste tema em “El impacto de la inmigración en el sistema político argentino”,
Estudios Migratorios Latinoamericanos, 4:12, agosto de 1989, pp. 211-230. Ver também Oscar Cornblit, “Inmigrantes
y empresarios en la política argentina”, Desarrollo Económico 6, no. 24, janeiro-março de 1967, pp. 641-691;
Fernando Devoto e Gianfausto Rosoli, orgs., La inmigración italiana en la Argentina, Buenos Aires, Biblos, 1985;
Carl Solberg, Immigration and nationalism: Argentina and Chile, 1890-1914, Austin, University of Texas Press, 1970;
Herbert Klein, “La integración de italianos en la Argentina y los Estados Unidos: un análisis comparativo”,
Desarrollo Económico 21, no. 81, abril-junho de 1981, pp. 3-27.
2
A Espanha e a Ilia, que até algumas décadas eram duas das principais exceções à presea de uma clara direita
no panorama partirio, “normalizaram-se” a partir do progressivo fortalecimento do Partido Popular de JoMaria
Aznar e do movimento Forza Italia de Silvio Berlusconi com sua aliada, a remodelada Alleanza Nazionale.
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devido a sua origem nos antigos partidos Conservador e Liberal. No Brasil,
incluo o Partido Progressista (PP), (ex-Progressista Brasileiro, PPB) e o Partido
da Frente Liberal, ambos lhos, ou netos, da Aliança Renovadora Nacional
(Arena) e da União Democrática Nacional (UDN), que incorporam inclusive
setores da antiga direita varguista, o Partido Social Democrático (PSD), que
nada tinha de social-democrata). No Chile, os dois partidos conservadores são
perfeitamente capazes de obter os votos de quase metade do eleitorado. No
Brasil, o PP e o PFL somados possuem um bom terço dos eleitores; e embora
em geral não se aliem, constituem entre si um reduto claramente conservador,
independentemente de sua fraseologia eleitoral, suas bandeiras regionalistas
ou das alianças a que o PFL se viu induzido em certo momento, com um
centro e um centro-esquerda encarnados em Fernando Henrique Cardoso.
Deve-se acrescentar que no Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), problematizado herdeiro, em certo sentido, do varguismo moderado,
há fortes tendências de direita, que seguramente são um mau augúrio para a
continuação de sua existência, erodida por múltiplas cisões sofridas durante
sua história desde que deixou de cumprir o papel aglutinador e anti-ditatorial
que desempenhou durante muitos anos
3
.
A força eleitoral de um partido de direita tem duas pernas. Uma, que se
debilita com o tempo, é a dos camponeses tradicionais, que vota em seus patrões
ou em parentes importantes de seus patrões. A outra, que se consolida com
o tempo, é a da classe média urbana e moderna; sem ela nunca seria possível
ganhar uma eleição. quem diga que existe uma terceira perna, os working
class tories, ou rednecks, ou sindicalistas burocratizados. Essa última perna é um
tanto claudicante, ou talvez não seja realmente conservadora; rero-me aos
sindicalistas. Poderiam ser “socialmente conservadores” (opostos aos hippies,
aos gays, aos imigrantes, despreocupados com os direitos humanos) mas não
existem praticamente casos em que integrem o principal partido conservador
do país, ou seja o que é dono do coração e do bolso das classes altas. Deixando
para mais adiante a análise do papel desses sindicalistas, vejamos agora a
3 Oscar Cornblit, “La opción conservadora en la política argentina”, Desarrollo Económico 14, no. 56, janeiro-
março de 1975, pp. 599-639; Douglas Chalmers, Atilio Borón e Maria do Carmo Campelo de Souza, orgs.,
The Right and democracy in Latin America, Nova York, Praeger, 1991; Edward Gibson, Class and conservative parties:
Argentina in comparative perspective, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1996. Para dados eleitorais
comparativos, ver Torcuato S. di Tella et al., Estructuras sindicales en la Argentina y Brasil: algunas tendencias recientes,
Buenos Aires, Biblos, 1995.
Argentina e Brasil: contraste e convergência de estruturas
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posição das classes médias. Para uma pessoa de classe média o normal é invejar,
porém ao mesmo tempo admirar, os membros da aristocracia ou do jet set, e
portanto aceitar a liderança proposta por seus superiores hierárquicos. Isso é o
que ocorre na maior parte dos países do mundo, e portanto eles dão seu voto,
em sua maioria, aos conservadores, sobretudo depois de passar por fases em
que sua preferência se dirigia em grande parte a partidos centristas como os
radicais, os democratas cristãos ou os liberais avançados.
4
Mas que acontece em
um país como a Argentina, caracterizado por um impacto imigratório? Esse
fenômeno foi muito maior entre nós do que praticamente em qualquer outro
lugar do mundo.
5
Criou-se nesse caso um grande vazio de participação, pois a
massa da burguesia urbana e da classe operária das cidades, esmagadoramente
estrangeira, não tinha direito de voto porque não adquiria a cidadania. Isso era
grave, pois tratava-se dos dois setores sociais mais estratégicos na consolidação
de um sistema político moderno. A conseqüência foi a debilidade de um partido
liberal burguês e de um partido social-democrata ou trabalhista.
Por outro lado, pode-se observar em escala internacional que a burguesia,
em geral, após ter sido o sustentáculo de um liberalismo rival dos conservadores,
acaba por unicar-se em um desses partidos: ou em um que os engloba, ou
dois quase sempre aliados, o que produz a mencionada solidez da direita
política. Mas se a burguesia, por sua esmagadora condição estrangeira, tendia
a uma atitude de afastamento da arena político-partidária, essa característica,
freqüentemente transmitida aos lhos, também afetou seriamente a saúde
de um partido conservador moderno, e não apenas ao liberalismo de uma
4 Freqüentemente se argumenta que a tendência hoje em dia é para o esfacelamento das bases classistas de
apoio partidário. De fato, nunca os partidos estiveram completamente apoiados em bases classistas nítidas;
sem dúvida muitos indivíduos aparecem em posições incongruentes, especialmente quando seu status é medido
pela educação, o que muitas vezes ocorre, porque é uma forma de aferição mais cômoda. Por outro lado, o
conservadorismo possui muitos votantes modestos, sobretudo rurais, enquanto que a esquerda é forte entre
pessoas de elevada instrução e nível médio de vida. A diferença entre um partido conservador e um partido
social-democrata não está somente nem principalmente no status social da massa de seus eleitores, e sim no fato
de que os grupos organizados do setor superior e inferior da pirâmide social se encontram predominantemente
em um outro hemisfério político. Ver Ronald J. Johnston, “Lipset and Rokkan revisited: electoral cleavages,
electoral geography and electoral strategy in Great Britain”, em R.J. Johnston, F.M. Shelley e P. J. Taylor, orgs.,
Developments in electoral geography, Londres, Routledge, 1990. Sem dúvida, onde existem fortes divergências
religiosas, étnicas ou lingüísticas, estes alteram muito profundamente a divisão direita-esquerda. Ver, em relação
aos Estados Unidos, Thomas Byrne Edsall e Mary D. Edsall, Chain reaction: the impact of race, rights and taxes on
American politics, Nova York, Norton, 1991.
5 Na Austrália e Nova Zelândia, onde a proporção de imigrantes era parecida com a da Argentina, tratava-se
de gente proveniente da Grã-Bretanha, que não perdiam a nacionalidade, e com eles se transferia o sistema
institucional da mãe-pátria.
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fase anterior. Foi isso, precisamente, o que ocorreu na Argentina: o país está
demasiadamente desenvolvido para que possa ter o tipo de conservadorismo
em boa medida arcaico do Brasil rural, e por outro lado tem um peso excessivo
de componente estrangeiro que o impede de emular o caso chileno. Em outras
palavras, a massa da classe média, ou burguesia, de origem imigratória, herdou
dos pais um certo desprezo pelo “país nacional” no qual se incluem até mesmo
as classes altas locais, que não foram capazes de infundir-lhes o respeito que,
ao contrário, ocorreu no caso norte-americano.
6
Passemos agora a analisar o que ocorre no setor popular, no que se refere
à estraticação social e suas conseqüências políticas. Sabe-se que no passado
o Brasil apresentou diferenças de renda por regiões e camadas sociais muito
mais marcadas do que as da Argentina, e nesse sentido pode-se falar, com
maior propriedade, de “dois Brasis”, fenômeno que ainda está ocorrendo,
embora em menor medida. A condição rural, acompanhada do menor peso que
historicamente tem tido a classe média moderna, está ligada à tardia aparição
do sindicalismo e de partidos de centro, como o Radicalismo. Somente depois
de 1945 é possível falar de um sistema de partidos no Brasil, acima dos clãs
“republicanos” da República Velha, ou das “legiões” e partidos estaduais que
se organizaram para apoiar Vargas no início dos anos 30.
Essa debilidade da classe média brasileira explica o fato de que durante os
anos 20 as atitudes dissidentes tenham sido geradas pelos níveis dios do exército,
através do tenentismo, que não teve equivalente na Argentina. Na Argentina existiam
o Radicalismo e a Esquerda (socialista e comunista) para canalizar os sentimentos
de protesto. Havia também nas forças armadas uma busca de novidades no campo
do desenvolvimentismo autoritário, mas estas estavam fortemente coloridas pela
Direita, até sua mutação, durante a Segunda Guerra Mundial, para as posições da
logia nacionalista, o Grupo Obra de Unicación, do qual emergiu Perón.
A partir de 1945 é que ocorre uma converncia e imitão mútua entre
Perón e Vargas, tema ao qual voltarei. Muito se escreveu sobre as condões
sociais por trás da emergência do peronismo e da fase populista do Vargas
transformado do pós-guerra. Minha interpretação tende a acentuar o papel
causal desempenhado pelo surgimento de novos industriais necessitados de
6 Nos Estados Unidos o total de estrangeiros nunca superou os 15%; eles adquiriam cidadania e seu status era
claramente inferior ao da população já estabelecida (com exceção dos ex-escravos).
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“proteção ou morte” e de novas massas de recém-chegados do campo às cidades.
É útil assinalar, de toda forma, neste momento, uma caractestica das massas
operárias urbanas do Brasil: elas o resultado da passagem das gerações e de
uma renovação humana muito maior do que na Argentina. Em outras palavras:
no Brasil, para um indiduo dos setores populares urbanos, o mais provável é
que seus pais não tenham morado na mesma cidade do que ele, e nem sequer
em outra parecida, e sim que tenham vindo do campo, de ambientes onde a
coneo com a rede de informação nacional era muito bil. Disso resulta uma
parca memória histórica, nesse nível de estraticação. Na Argentina, ao contrário,
o habitante urbano muito provavelmente terá ouvido os pais ou algum tio ou
a falar da emoção ao contemplar Evita na sacada, ou sobre uma greve perdida
ou ganha, ou da prio de Baln ou o fechamento dos jornais da oposição. É
dessa forma que são transmitidas as opiniões políticas. No Chile, que não possui
nem a extrema diferea entre o campo e a cidade existente no Brasil, e nem um
impacto imigratório tão marcado quanto o da Argentina, a memória histórica é
diretamente elefantina, em todos os níveis sociais.
Esses aspectos, unidos a outros conjunturais, o responsáveis pelas raízes
mais tênues, no Brasil, do femeno popular brasileiro o varguismo em
comparação com o argentino. Portanto, suas hostes estão mais dispostas a mudar
de lealdade. Assim, a versão mais radicalizada e caudilhista do varguismo, a do
Partido Democtico Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola, se encontra muito
debilitada; e a linha moderada, do PMDB, perdeu sua conotão varguista e
se converteu em uma versão dos diversos partidos centristas em muitas partes
do mundo, inclinados à direita e à esquerda, o que gera divisões em seu seio,
fenômeno muito marcante na Argentina com a União Cívica Radical (UCR).
A menor profundidade da coneo varguista com as camadas populares e
a muito mais intensa transformação de seu sistema produtivo industrial explicam
o fato de que no Brasil o panorama social e potico nesse nível social tenha
mudado muito mais radicalmente nos últimos anos. Ao desaparecer de cena, o
populismo getulista deixou espaço para uma nova esquerda, a do Partido dos
Trabalhadores (PT), cujo berço es na zona industrial da Grande São Paulo.
Tamm tem grande importância aqui o papel da Igreja Católica, que gerou no
Brasil uma ala de Teologia da Liberação muito mais inuente do que poderia
existir na Argentina. Essa Igreja de Comunidades de Base contribuiu em grande
medida para a expansão do PT, fornecendo-lhe proteção e dedicados militantes.
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Nesse particular o femeno se assemelha ao do Laborismo britânico, no qual
nas palavras de Herbert Morrison, que foi seu Secretário Geral por muito tempo,
a letra M mais importante é a da igreja Metodista, e não a de Marx. Por outro
lado, a competição das igrejas evanlicas e dos ritos afro-brasileiros obrigou o
clero brasileiro, em maior medida, a rejuvenescer-se para conservar sua grei, em
contraste com o argentino. Neste país, as massas tinham sido conquistadas
pelo catolicismo no início da década dos 40, através do peronismo, por um clero
também dissidente a seu modo, composto por aqueles que tinham simpatias
falangistas-populares, contrapostas às atitudes mais tradicionalmente liberal-
conservadoras, um tanto latitudinárias, vigentes entre as classes elevadas.
Se passarmos agora aos regimes militares, notaremos outra diferença
importante. No Brasil, o período 1964-1985 foi, senão genuinamente constitucional,
pelo menos regulamentar, pois as sucessões presidenciais se realizaram sem golpes
internos, com apelo ao eleitorado, ainda que de maneira indireta. Na Argentina, ao
contrario, todos os regimes militares, de 1943 a 1983, resultaram de pelo menos um,
e em geral dois ou três golpes internos, cuja lembrança ainda está sucientemente
viva para que seja necessário enumerá-los aqui. Porque essa diferença? Será porque
os militares argentinos eram mais indisciplinados, mais autoritários, mais ambiciosos
do que seus pares brasileiros ou chilenos? Talvez isso seja parte da resposta, porém
mais provavelmente se trate da conseqüência de uma causa subjacente. Essa
causa, em minha opinião, é a natureza forte e ameaçadora do peronismo, embora
não de todo revolucionária, que durou décadas. Esse movimento, representando
em ampla medida uma classe operia urbana com mais peso social do que
suas equivalentes no Brasil ou no Chile, e com importantes capitani del popolo
negociadores, sempre foi um aliado apetitoso para qualquer grupo civil ou militar.
As lutas entre facções governantes, que sempre existem, tiveram na Argentina,
desde a Segunda Guerra Mundial, uma forma possível de gerar um vencedor:
aliar-se com o peronismo, evidentemente com o objetivo de dominá-lo. Mas isso
não é tão fácil, já que caso a facção inovadora se imponha mediante um golpe
de Estado, um pacto eleitoral, como o de Arturo Frondizi em breve os aliados
se convertem em hóspedes insuportáveis, a aliança se rompe devido ao excessivo
peso de seu componente popular, e volta-se à estaca zero.
7
A maneira principal
de acabar com esse mecanismo é a conversão do peronismo em um movimento
7 Guillermo O’Donnell se referiu a esse processo como “o jogo impossível” em sua Modernización y autoritarismo,
Buenos Aires, Paidós, 1972, cap. 4.
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que o seja ameaçador, e sim no ximo distributivista, rival mas o inimigo
do Establishment, coisa que tem estado acontecendo.
Em conclusão, cam propostas como hipótese de trabalho as seguintes
características de ambos os países:
1. No Brasil maior diferença entre os níveis de vida dos setores urbano
e rural, e maior renovação humana nas camadas populares, o que se
junta a uma menor memória histórica nesse nível de estraticação e a
uma mudança mais fácil de orientações político-partidárias.
2. Na Argentina, o impacto imigratório gerou uma memória histórica
menor do que entre seus pares brasileiros e uma menor participação
política, unida a uma menor força de um partido liberal burguês, o
conservador, e de um partido de tipo trabalhista.
3. As Forças Armadas, em suas intervenções políticas, atuaram no Brasil de
maneira mais disciplinada, em parte devido ao controle sobre elas exercido
pelos setores civis de direita, em contraste com a tentação, na Argentina,
de usar o peronismo como potencial aliado na luta pelo poder.
4. Na Argentina, durante a primeira metade do século XX, um partido
social-democrata era mais bil do que em países de equivalente
desenvolvimento econômico e cultural (como o Chile, a Itália
ou a Austrália) devido à grande percentagem de estrangeiros o
nacionalizados existentes na classe operária.
5. Na Argentina, o peronismo foi mais forte e mais estreitamente ligado
à classe operária urbana do que no Brasil. Isso, somado à menor
intensidade das mudanças econômicas no país platino, facilitou ao
peronismo continuar a existir na atualidade. Em troca, no Brasil cou
vago o lugar ocupado pelo varguismo, o que permitiu a formação de
uma nova esquerda, o Partido dos Trabalhadores.
Contraste entre as trajetórias de Perón e Vargas
Um Plutarco redivivo, que quisesse dar a conhecer aos cidadãos do Mercosul as
façanhas de seus personagens mais célebres, seguramente incluiria o binômio Perón-
Vargas. Sem pretender emular o historiador grego cuja metodologia certamente
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seria objetada por meus colegas mais cientícos – uma exploração deste tema sob
o signo do comparativismo sociológico pode lançar luz sobre nossa evolução social
e perspectivas futuras. Vargas se suicidou para evitar um golpe de Estado, enquanto
Perón continuou vivo até morrer no exercício do governo. Mas o varguismo não
existe, enquanto o peronismo perdura, embora modicado. Por outro lado, Vargas é
hoje uma gura histórica pouco discutida, o que não ocorre com Perón. Este deixou
uma quantidade de livros nos quais desenvolve sua doutrina, enquanto que Vargas,
além de seus discursos, praticamente deixou apenas um interessante Diário íntimo
e uma família no sentido estrito e no mais amplo da palavra que se ocupa de
que diante de sua tumba sejam celebrados os ritos corretos.
8
As imagens mais conhecidas de “vidas paralelas” começam em 1945,
ano em que começou a haver uma forte convergência entre os pais
políticos de ambos os governantes. Vargas, porém (uns dez anos mais velho
do que Perón) tinha uma longa história política anterior, pois havia chegado
ao poder por meio da revolução cívico-militar de 1930 e antes disso tinha
sido Governador (“Presidente”) de um estado importante, o Rio Grande do
Sul. Ou seja, era membro da velha classe política. Por outro lado, embora
ostentasse uma patente militar, como era costumeiro entre os fazendeiros
tradicionais, nunca teve como prossão a das armas.
9
Desde 1930, passou
por diversas etapas, principalmente a de governante provisório” porém
renovador (até 1934), a de Presidente constitucional (até 1937), a de ditador
“desenvolvimentista” com uma Constituição de inspiração corporativista (até
ser deposto em 1945), e após um intervalo, novamente Presidente, desta vez
orientado para a esquerda (de 1950 a 1954). Será essa trajetória um exemplo do
“movimento browniano” que segundo alguns de nossos críticos caracterizaria
o comportamento dos políticos nesta parte do mundo? Como parte de uma
maior auto-valorização, que deveria caracterizar-nos, farei uma tentativa de
estabelecer um pouco de ordem nesse tipo de trajetória vendo se um sistema,
ainda que seja ptolomaico, pode esclarecer as coisas, até colocar-nos no nível
dos aclamados porém não muito conseqüentes whigs e tories que fundaram o
regime das liberdades públicas na Inglaterra.
8 Getúlio Vargas, Diário, 2 vols., Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1995; Alzira Vargas do Amaral
Peixoto, Getúlio Vargas, meu pai, Porto Alegre, Globo, 1960; Valentina da Rocha Lima e Plínio de Abreu Ramos,
Tancredo fala de Getúlio, Porto Alegre, L&PM Editores, 1986.
9 Virgílio A. de Melo Franco, Outubro 1930, 5ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
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Perón também oscilou entre uma inspiração mussoliniana entendendo
em seus últimos anos, que o Duce estava realizando “uma versão local do
socialismo” e uma admiração por Mao, cujas tentativas de construir o
socialismo talvez não estivessem tão distantes da meta quanto os do italiano,
ainda que tenham gozado de muito maior credibilidade até bem pouco tempo
atrás. Em seu início riograndense Vargas pertencia ao partido republicano
local, de raiz positivista comtiana, claramente orientado para a formação de
governos fortes, capazes de realizar transformações profundas no sentido da
modernização. Mas esse partido mal merecia aquele nome, e o mesmo ocorreu
em seguida com as várias tentativas de formar partidos ocialistas, ou melhor,
“legiões”, que os tenentes enviados como interventores procuraram estabelecer,
com êxito modesto e no máximo em escala estadual. De fato, ainda em 1937,
com o auto-golpe do Estado Novo, Vargas não conseguiu estabelecer um
partido ocial e por isso preferiu dissolver os poucos que existiam, tanto os
que o apoiavam quanto os opositores liberais, fascistas ou comunistas. Assim,
o Estado Novo nunca teve as características de um verdadeiro fascismo, pois
a inexistência de um partido ocial tornava difícil o exercício do totalitarismo,
e no máximo constituiu uma ditadura tecnocrática, o que é outra coisa. Vargas
tampouco organizou o sistema de representação corporativista que sua própria
Constituição ditada preconizava, pois por considerar crítica a situação foi
postergando esse momento até ser alcançado pela primavera de liberalização
do m da guerra.
10
Como se sabe, em 1945 Vargas convocou eleições livres, pressionado
pela opinião pública e pelos militares, cansados do prolongamento de seu
mandato e preocupados diante das tendências que agora se inspiravam nos
bem sucedidos exemplos de mobilização de massa que Perón realizava. Para
enfrentar essa encruzilhada Vargas criou dois partidos, assim como seu
êmulo argentino. Perón tinha, por um lado, o Partido Laborista, fortemente
apoiado no movimento sindical, cujo nome signicativamente imitava o do
partido operário inglês; e por outro, a União Cívica Radical, Junta Renovadora,
agrupação pouco orgânica na qual se juntavam políticos avulsos, muitos deles
ligados a redes caudilhistas provinciais. Signicativamente, ambos os partidos
10 Murilo de Carvalho, José. Armed Forces and Politics in Brazil, 1930-1945”, Hispanic American Historical
Review 62:2, maio de 1982, pp. 193-223; Virgínio Santa Rosa, O sentido do tenentismo, 3a. ed., São Paulo, Alfa-
Ômega, 1976 (1a. ed. 1933); Aspásia Camargo et al., O golpe silencioso, Rio de Janeiro, Rio Fundo Editora, 1989.
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foram unicados com uma canetada de Perón, pouco depois de sua vitória
eleitoral de 1946, evidenciando a característica verticalista e o grande poder
do líder que operava sobre uma massa em sua grande maioria bastante
mobilizada porém pouco acostumada com a ação associativa.
11
A aliança varguista e suas mutações
No Brasil, Vargas também formou dois partidos, ambos usando nomes
derivados da experiência social-democrata européia, mas nunca os de
unicar, não porque não quisesse, e sim porque não lhe foi possível, ou talvez
não o tenha querido por saber que não podia. Para o setor popular urbano,
que acabava de ser sindicalizado, e em estruturas muito mais dependentes
do governo do que as argentinas, formou o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB). Para os notáveis locais, sobretudo os estados mais periféricos, muitas
vezes solidamente conservadores ainda que ressentidos contra o domínio
centralista, organizou o Partido Social Democrático (PSD), cuja sigla, ao
contrário do PTB, era um mero nome de fantasia.
12
Dos dois partidos
varguistas, quase permanentemente aliados durante o período democrático que
se estendeu até 1964, no começo o que obtinha mais votos era o PSD, dadas
as características do eleitorado nacional. Mas a cada eleição, com o auxo de
gente às cidades, o peso do PTB aumentava, e os setores radicalizados em
seu seio se tornavam mais ativos. De todo modo, a aliança PTB-PSD era de
certa forma um equivalente do PRI mexicano, ou do Partido do Congresso
na Índia, ou seja um partido de integração policlassista, ainda que com duas
cabeças e sem uma revolução prévia. Essa ausência de uma revolução apesar
da característica renovadora do varguismo pode ajudar a compreender o
fato de que, à diferença do que foi o caso do México durante muito tempo,
no Brasil sempre houve, e continua a haver, uma direita eleitoralmente forte
(UDN, depois Arena e hoje PP mais PFL). No outro extremo, durante a
11 Não é possível citar aqui toda a extensa bibliograa sobre o papel dos sindicatos pré-existentes na formação
do peronismo, ou do grau de autonomia com que operaram os dirigentes que se aproximaram dele. Pode-se
ver o trabalho de Juan Carlos Torre, Perón y la vieja guardia sindical, Buenos Aires, Sudamericana, 1990, e minha
posição um tanto diferente, que enfatiza mais a dependência com que agiram os chefes sindicais, em Perón y los
sindicatos, Buenos Aires, Ariel, 2003.
12 Lucia Hippolito, De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira, 1945-64, Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1985; Ângela de Castro Gomes, A invenção do trabalhismo, São Paulo, Vértice/Iuperj, 1988; Edgard
Carone, Movimento operário no Brasil, 1877-1944, São Paulo, Difel, 1979.
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vigência da coalizão varguista havia uma esquerda eleitoralmente bil (o
Partido Comunista Brasileiro era seu componente principal), situação nesse
particular parecida com a mexicana.
13
Em breve chegou-se à radicalização extrema da fase goulartiana, em uma
convergência com toda a esquerda. Nessa conjuntura estavam ocorrendo as pré-
condões para um desenlace revolucionário, talvez promovido pelo Executivo
e sua entourage por meio de um auto-golpe, como em 1937, que desta vez
de esquerda. Seguramente a eventual revolução não teria sido exatamente
“socialista”, pom era sucientemente ameaçadora e expropriadora para tirar
o sono das classes proprietárias, seguindo um modelo intermediário entre a
Revolão mexicana, com uma altíssima mobilização de massas, e a posterior e
mais elitista Revolão peruana ou algumas das que ocorreram no mundo árabe
ou na África.
14
14 Essa reorientação de esquerda havia sido impulsionada pelo
Vargas da fase nal, quando armava existirem duas formas de democracia, uma
das quais era “liberal e capitalista, baseada na desigualdade”, enquanto que a
outra era “a democracia socialista, ou democracia dos trabalhadores”, pela qual
ele combateria em benefício da coletividade.
15
Durante a agitão que precedeu
o golpe militar de 1964 produziu-se a ruptura da aliaa varguista, pois a grande
maioria do PSD se opunha claramente às medidas contempladas por Goulart.
Assim, portanto, o golpe o foi um mero femeno militar, e sim a ruptura de
uma coalio, que signicou um amplo apoio civil para o novo regime, aprovado
pela maioria do Congresso formada pela direita liberal da UDN mais a direita
varguista do PSD, além de outros grupos regionais como o Partido Social
Progressista (PSP) de Adhemar de Barros.
O peronismo clássico
Ao contrário da aliança bifronte do varguismo, o peronismo sempre
esteve mais unicado, pelo menos no sentido formal. Não obstante, na verdade
possuía muitas correntes internas, que eu caracterizaria da seguinte maneira:
13 Maria Vitória Benevides, A UDN e o udenismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981; Edgard Carone, O PCB, 2
vols. São Paulo, 1982.
14 Denis de Moraes, A esquerda e o golpe de 1964, Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989.
15 Paulo Brandi, Vargas: da vida para a história, 2ª. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1985, pp. 204-205 e 211.
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1. O peronismo sindical, baseado nos setores operários urbanos da
parte próspera do país, muito mobilizados e com a não desprezível
experiência associativa;
2. O peronismo das províncias internas, mais caudilhista e baseado em
uma população pobre pouco mobilizada;
3. O peronismo das elites, minorias signicativas ainda que não bem in-
tegradas em suas classes de origem, entre as Forças Armadas, o clero,
os industriais, os intelectuais de direita e outros “entornos” mais idios-
sincráticos.
16
A corrente sindical (ponto 1) é parecida com a do PT brasileiro, mas se
diferencia no fato de que foi muito mais dominante. A das províncias internas
(ponto 2) é parecida com o PSD, porém com mais componentes mobilizadores,
embora os apresente em menor grau do que o ramo operário. O peronismo
das elites, bastante heterogêneo, tem equivalentes mais amplos no varguismo,
que este em geral obteve muito mais consenso entre as classes altas (periféricas
e também centrais) do que seu equivalente argentino. Portanto, no Brasil, o
setor varguista das classes altas, sendo bastante numeroso, não constitui uma
elite tão diferenciada do resto de sua classe como foi o caso na Argentina,
com o peronismo.
A elite peronista, embora sempre muito minoritária nas classes altas,
no inicio abarcava um amplo setor em algumas armas, além de uma parte
importante do clero menos modernizado, assim como certos industriais que
estavam fortemente divididos entre os benefícios que obtinham com a política
protecionista do governo justicialista e as dores de cabeça que a agitação social
– muito mais marcada do que com Vargas causava a suas empresas. Apesar
das semelhanças apontadas entre as correntes que poderíamos chamar de “tipo
PSD” e “tipo PTB”, do peronismo com suas equivalentes brasileiras, as do
“tipo PTB” eram muito mais vigorosas, relativamente, na Argentina. Quando
às do “tipo elite” (ponto 3), eram muito mais aventureiras e audazes, muito
menos ligadas a suas classes de origem do que no caso brasileiro, e além disso
16 Ver, entre outros, Christian Buchrucker, Nacionalismo y peronismo: la Argentina en la crisis ideológica mundial,
1927-1955, Buenos Aires, Sudamericana, 1987; Manuel Mora e Araujo, “Populismo, laborismo y clases medias:
política y estructura social en la Argentina”, Criterio 1755-1756 (1977), pp. 9-12.
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começaram a abandonar o movimento tão logo este demonstrou seu potencial
de mobilização e a eventual diculdade de controlar seus componentes diante
da desaparição do líder. Possivelmente esse panorama foi o que levou a Igreja
a enfrentar o governo, tomando precauções desde 1954 com a formação
de dirigentes próprios, o que sem dúvida teve resposta violenta de parte de
Perón. Assim, o golpe de 1955, como o brasileiro de 1964, também pode
ser caracterizado não apenas como uma intervenção militar, ou uma maior
combatividade da tradicional oposição de raízes na União Democrática, mas
sim como resultado de uma ruptura na coalizão peronista, pois também sua
direita a abandonou. Claro está que essa direita não conseguiu muitos votos,
como ocorreu no Brasil, e sim obteve importantes fatores de poder.
A radicalização do peronismo
A radicalização do peronismo é bem conhecida, iniciada por volta de
1954, intensicada com a resistência” e em seguida com a formação de
uma ala guerrilheira. Embora muitos dos indivíduos que compunham essas
formações não fossem de origem nem de grande convicção peronista, o fato
é que foram abrigados por esse movimento.
17
Em geral, pode-se armar
com base na experiência mundial, que em etapas iniciais ou intermediárias
do movimento popular este abriga fortes tendências confrontacionistas e
violentas. Tanto é assim que a incorporação das massas populares ao sistema
político, sua integração e participação no poder e na inuência, são o principal
problema a resolver num processo de democratização básica, como os que
estão sucedendo em muitos países do continente. Com o tempo, em países
de alto desenvolvimento urbano, industrial e cultural, há uma tendência para
a bipolarização da cena política entre direita e esquerda, ambas moderadas.
Superada a etapa freqüentemente convulsiva da integração das massas, chega-
se a uma espécie de equilíbrio, ou empate social, no qual vai-se formando
um certo consenso a respeito das regras do jogo político e uma aproximação
dos projetos de governo, que faz com que todos tendam para o centro, ainda
quando, paradoxalmente, os partidos de centro se enfraqueçam.
17 Donald Hodges, Argentina, 1943-1987: the national revolution and resistance, Albuquerque, University of New
Mexico Press, 1987; Daniel James, Resistance and integration: Peronism and the Argentine working class, 1946-1976,
Cambridge, Cambridge University Press, 1988; Roberto Baschetti, org., Documentos de la resistencia peronista, 1955-
1970, Buenos Aires, Puntosur, 1988.
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Ora, é possível que o modelo inicial que Perón tinha em mente se
parecesse com o do PRI, já muito estabilizado e de forte impacto na opinião
pública internacional desde a nacionalização do petróleo em 1938. Com
certeza na mente de Perón esse modelo interagiu com o que Vargas estava
desenvolvendo concomitantemente, e em momentos anteriores sem dúvida
o governante argentino havia reconhecido inspiração mussoliniana. Mas não
lhe foi possível imitar nenhum desses modelos, independentemente de sua
vontade. Mais ainda, nos primeiros momentos como membro do regime militar
de 1943-46, seguramente o escandalizaria a idéia de gerar um movimento tão
conitivo e confrontacionista como o que acabou por formar. Como ele dizia,
com estas palavras ou outras muito parecidas, e antes que ele o zera o político
francês dos tempos das barricadas, Alexandre Ledru Rollin, “sou o líder, tenho
de segui-los”.
18
Perón certamente aspirava a incorporar a maior parte dos
industriais dinâmicos, os prossionais liberais, a classe média urbana e rural
e os trabalhadores manuais, deixando de lado talvez algum setor recalcitrante
dos grandes proprietários de terras ou grupos extremistas entre os intelectuais
e os sindicatos. É difícil documentar isso, mas tudo nos faz pensar que assim
ocorreu. Não obstante, seu movimento orientado a consolidar a comunidade
argentina para realizar um grande esforço de expansão econômica e talvez
geopolítica, acabou por gerar alguns dos maiores episódios de confrontação
classista de que o país tem memória.
19
Assim, o peronismo se diferencia claramente do PRI mexicano, apesar de
que muitas vezes ambos são colocados no mesmo saco conceitual. É possível
incluí-los no conceito mais amplo do populismo, ou “nacionalismo popular”,
porém apontando as diferenças. Embora não seja este o momento adequado
para estender excessivamente o campo comparativo, devo dizer que em outros
trabalhos subdividi os movimentos que amplamente em um sentido lato podem
ser chamados “populistas” em:
1. De integração multiclassista: PRI mexicano e aliança varguista
PSD+PTB;
18 Ronald Aminzade, Ballots and politics: class formation and republican politics in France, 1830-1871, Princeton,
Princeton University Press, 1993, p. 52.
19 Sobre o projeto inicial de Perón, ver Carlos Waisman, Reversal of development in Argentina: postwar counterrevolutionary
policies and their structural consequences, Princeton, Princeton University Press, 1987.
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2. Populistas de classe média: com forte participação de uma classe média
provinciana além de setores sindicais não muito centrais, como o aprismo e
a Ação Democrática;
3. Social revolucionários: marcados pelo papel dirigente de minorias muito
radicalizadas das classes médias, com variável inuência operária e camponesa.
Os casos mais conhecidos entre nós são o delismo e o sandinismo;
4. Populistas operários: com importante participação operária urbana,
incorporação muito minoritária da classe média e elites dirigentes colocadas
bastante acima no espaço social. Os exemplos clássicos são o peronismo e o
trabalhismo varguista, e ainda mais o brizolismo que se aproxima a esses. Mais
recentemente, Hugo Chávez parece dirigir um fenômeno desse mesmo tipo na
Venezuela, assim como Rafael Correa no Equador e Ollanta Humala no Peru.
O movimento de Evo Morales na Bolívia tem alguma semelhança, embora
devido à origem popular seu movimento se aproxime mais do aprista.
A essa lista é preciso acrescentar no campo popular, embora não no
populista:
5. Partidos social-democratas: de raízes sindicais socialistas, o que não
impede a participação de outros setores, sejam intelectuais ou minorias às
vezes importantes das classes médias. Inclui-se a social-democracia européia
(incorporando a variante ex-comunista) ou suas versões mais radicalizadas, o
antigo Socialismo ou o Comunismo chilenos ou o Partido dos Trabalhadores
(PT) no Brasil.
20
Fora desse grupo, que representa de uma ou outra maneira o campo popular
da arena potica, estão os partidos de centro, como o Radicalismo ou a Democracia
Cristã, e mais afastados, os da Direita, a que já zemos referência.
20 Devo esclarecer que uso o conceito de “populismo” no sentido em que as ciências sociais o difundiram para
a América Latina nos anos 60, e não como se tornou moda entre jornalistas e mais de um cientista social, como
equivalente a mau governo e promessas populares impossíveis de cumprir. Também às vezes se tem dado o
rótulo de populista a qualquer movimento, tendência ou dirigente político que faça apelo aos sentimentos e
preconceitos populares. Nesse enfoque, tanto Margaret Thatcher como Ronald Reagan, e mais ainda Le Pen
ou Hayder, seriam populistas, o que anularia o signicado do termo. Outra coisa ocorre quando se arma, sobre
esses sentimentos e preconceitos populares, um movimento de forte mobilização social, com bandeiras anti-
oligárquicas, em cujo caso poderíamos falar de populismo. Ver a propósito Ghita Ionescu e Ernest Gellner,
orgs., Populism: its meanings and national characteristics, Londres, Weidenfeld and Nicholson, 1969.
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Transmutações do varguismo e do peronismo
O varguismo, como vimos, acabou por dissolver-se no oceano das
transformações urbanas, cortadas suas raízes em um proletariado de pouca
memória histórica ou em um acervo de notáveis marginalizado pelo avanço da
modernização. Criou-se assim um vazio de representação, que em seguida o PT
preencheu. O descendente radicalizado do varguismo, o Partido Democrático
Trabalhista (PDT) de Leonel Brizola, pareceu durante um momento continuar
a desfraldar as velhas bandeiras, mas nalmente demonstrou ser demasiada e
puramente personalista, em condições nacionais já modicadas.
21
Quanto ao peronismo, seu período de radicalização foi cortado pelo próprio
Perón, pois usou-o para voltar ao poder, emboracassem importantes resíduos
ligados ao movimento. Desde então começou a evolão no sentido reformista
e consensual, que opera tipicamente em um movimento popular depois que os
primeiros entusiasmos e lutas sem descanso deram lugar a competições mais
ordenadas. Esse processo ocorre tipicamente quando o movimento operário
consegue certas conquistas sociais e acesso a postos de responsabilidade, ainda que
na esfera provincial ou municipal, como no caso italiano. Na Argentina e em outros
países do continente, como o Chile, também está ocorrendo essa aproximação
entre antigos inimigos, apesar das más condições econômicas e de emprego da
maior parte da massa popular. Isso é em parte uma conseqüência conjuntural
do m do aspecto violento, inclusive de guerra civil, em que estivemos imersos
durante cadas. Daí o “pactismo” das elites poticas, desde os casos iniciais
colombiano e venezuelano até os mais recentes da Argentina, passando pelo
espanhol. O acesso do Justicialismo ao governo, em 1989, com Carlos Menem,
intensicou um processo que já estava ocorrendo gradualmente, sobretudo em
seus setores dirigentes com aspirações a exercer o poder político e não apenas a
confrontar-se com ele. Essa reorientação se deu praticamente em todos os partidos
reformistas, fossem eles de raiz social-democrata, comunista ou populista.
22
21 Moacir Gadotti e Otaviano Pereira, Pra que PT: origem, projeto e consolidação do Partido dos Trabalhadores, São Paulo,
Cortez Editora, 1989; Leôncio Martins Rodrigues, CUT: os militantes e a ideologia, São Paulo, Paz e Terra, 1990.
22 Uma apresentação recente desse tema pode ser encontrada em Seymour Martin Lipset, Political renewal on
the Left: a comparative perspective, Washington, Progressive Policy Institute, January 1990; ver também Alejandro
Foxley, After authoritarianism: political alternatives”, em A. Foxley, M. McPherson e G. O’Donnell, orgs.,
Development, democracy and the art of trespassing: essays in honor of Albert O. Hirschman, Notre Dame, Notre Dame
University Press, 1988, pp. 91-113.
Argentina e Brasil: contraste e convergência de estruturas
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Ora, essa orientação não permite classicar comoconservadores e nem
como “conservadores populares os partidos poticos de origem popular que a
praticam. Se zéssemos isso, teamos de colocar nessa categoria os socialistas
espanhóis e os laboristas britânicos. Que restaria então ao Partido Popular da
península, ou ao Conservador da Grã-Bretanha? Há quem diga que hoje todos os
partidos de certo peso são conservadores, mas nesse caso o termo perde signicado.
Também se arma que na atualidade os partidos são simplesmente mecanismos
orientados à conquista do poder, o mais pautados pela ideologia ou pelas raízes
classistas, e sim pela personalidade dos chefes e pelos projetos tecnocráticos
alternativos, porém muito parecidos, que adotam e que podem mudar como quem
muda de roupa. Creio que essa seja uma elocubração “pós-moderna que fornece
uma imagem distorcida, magnicando alguns fatos retirados do contexto.
Dito isso, é preciso estabelecer dois pontos adicionais a serem
incorporados à análise, a saber:
1. Em alguns casos, ocorrem alianças entre partidos de origem diversa,
que podem unir agrupações semelhantes, ou às vezes algumas delas
não são tão semelhantes assim, mas se unem por motivos táticos.
Isso ocorre desde os casos da “Grande Coalizão” que vigorou na
Áustria durante décadas, ou na Alemanha dos anos do pós-guerra e
na atualidade, até as coalizões dos partidos catalanistas e nacionalistas
bascos com o socialismo ou o Partido Popular, de maneira oscilante.
Nessa ordem de coisas está a aliança, no Brasil, entre o PFL e o Partido
da Social-Democracia Brasileira (PSDB), ou talvez o que aconteceu
na Argentina entre o Justicialismo dirigido por Menem e a União do
Centro Democrático (UCD), de orientação neoliberal, e outros grupos
da direita. Por si só, nenhuma dessas alianças permite atribuir a cada
um dos partidos que as integram as características de seus sócios, ainda
que seus militantes mais extremos assim acreditem.
2. Dentro da gama de partidos que aqui estamos considerando (social-
democratas, ex-comunistas e populistas), um lugar especial para os
de tipo populista, que em geral são visivelmente mais heterogêneos em
sua composição de classes do que os outros, ainda que não cheguem
ao extremo do PRI mexicano. O peronismo, como se indicou antes,
está em uma categoria particular, uma das que possuem mais raízes
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sindicais e operárias dentro dos que amplamente se denominam
“populistas”. Não obstante, compartilha com estes a presença de uma
elite dirigente marcadamente diferenciada da massa do movimento.
Isso se em certa medida em qualquer partido político, porém no
peronismo ocorre de maneira mais nítida.
O golpe argentino de 1966: pacto militar sindical?
Durante várias décadas o peronismo tem sido considerado pelas classes
altas como uma grave ameaça a seus interesses, embora na maior parte do
tempo não tenha assumido sionomia revolucionária. Atravessou, sem dúvida,
episódios de vioncia e agudo antagonismo em relão às classes dominantes,
desde o incêndio do Jockey Club e das igrejas e especialmente durante seu longo
ostracismo (1955-1973) que o levou a uma aliaa com os grupos guerrilheiros,
em parte gerados em seu seio e em parte vindos de fora. Mas o peronismo
também teve sempre, em sua elite dirigente e seus chefes sindicais, um setor
orientado para formas de nacionalismo autoririo terceiro-mundista, ou ainda
de fascismo. Esse último fato de direita lhe deu robustez, devido às raízes que lhe
confere entre as minorias signicativas das classes dominantes, embora lhe tenha
valido a alienação da intelligentsia e de amplos setores das classes médias. Apesar
de tudo, na maior parte do tempo o peronismo tem sido visto pelo Establishment
como potencialmente mais perigoso do que os partidos marxistas locais.
23
Na boataria política do nal da presidência do radical Humberto Illia (1966)
armava-se que existia entre os militares um pacto formal ou informal para
derrubá-lo, um pacto militar-sindical, uma espécie de acordo neo-corporativista
para repartir entre si o que restava do país, qualquer que fosse o resultado das
urnas. Verdadeiro ou suposto, esse pacto deve ser contraposto ao fato de que
o principal propósito de todos os regimes militares que tomaram o poder na
Argentina desde 1945 até 1976 tem sido o de derrubar ou impedir o acesso de um
governo peronista.
24
24 De fato, os peronistas eram os principais adversários dos
23 Para diversos enfoques deste tema, ver Carlos Waisman, op.cit.; Juan José Hernández Arregui, Peronismo
y socialismo, Buenos Aires, Ediciones Hachea, 1972; Oscar Terán, Nuestros años sesentas: la formación de la nueva
izquierda intelectual en la Argentina, 1956-1966, Buenos Aires, Puntosur, 1991.
24 Guillermo O’Donnell, El Estado burocrático-autoritario, 1966-1973, Buenos Aires, Editorial de Belgrano, 1982;
Eugenio Kvaternik, Crisis sin salvataje: la crisis político-militar de 1962-3, Buenos Aires, IDES, 1987, e seu El péndulo
cívico-militar: la caída de Illia, Buenos Aires, Thesis/Instituto Di Tella, 1990.
Argentina e Brasil: contraste e convergência de estruturas
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militares e das classes empresariais em geral, independentemente das intenções de
muitos de seus dirigentes. Isso os obrigava a tratar-se estando sãos, agindo com
especial cautela, posto que qualquer passo em falso de sua parte produziria reão
imediata e violenta do outro lado. Assim, sempre existiu um setor negociador
peronista sindicalista ou o que se extremava nas tentativas de aproximar-se
de seus inimigos eventuais a m de chegar a pactos de convincia a qualquer
custo, inclusive o de alienar setores de suas próprias bases. Foi assim que quando
da ascensão ao poder do general Onganía viu-se o metalúrgico Augusto Vandor e
outros dirigentes render homenagem às novas autoridades. Mas essa tentativa de
convivência não durou e em poucos meses o enfrentamento era grande. Apesar
de tudo, os setores negociadores nunca deixaram de esperar uma reconstituição de
uma aliança entre o Exército e o Povo, sem êxito algum. Os dirigentes peronistas
negociadores sabiam perfeitamente que o objetivo do golpe de 1966 era evitar o
segundo triunfo justicialista na futura renovação presidencial. Consideravam-se
sem foas para impedir a hegemonia militar, mas pensavam poder oferecer um
pacto que os reconhecesse como comensais menores na mesa do poder, dando
garantias de que dessa maneira seriam afastados os setores mais radicalizados
de seu próprio movimento. Mas esse raciocínio, nada absurdo, o deu frutos,
porque a natureza contestadora e inclusive violenta do movimento que dirigiam
se impôs a suas próprias estratégias conciliadoras. A força organizativa dos grupos
de pressão na Argentina, somada às características contraditórias do peronismo,
foram a causa do fracasso de todos os regimes militares argentinos, incapazes de
perpetuar-se de forma regular, como no Chile e no Brasil.
É preciso acentuar aqui que no mundo moderno é praticamente
impossível encontrar partidos políticos que englobem ao mesmo tempo
empresários, nancistas, prossionais bem sucedidos e em geral a maioria das
classes dias e os setores operários e populares. Certas experiências desse tipo
que vigoraram no passado, como o PRI mexicano, a aliaa varguista PSD-PTB
e o Partido do Congresso na Índia, estão em franco processo de desintegração
ou evolução no sentido de algo diferente. A Argentina não é campo propício
para a consolidação de um movimento integrador policlassista tão estruturado
como o PRI, e quanto ao conceito de “conservadorismo popular”, trata-se
de algo que não possui verdadeiras referências em nenhuma parte do mundo,
salvo se emprestarmos esse nome a qualquer partido conservador capaz de
ganhar eleições e apelar a sentimentos algo atávicos.
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A evidência comparativa existente indica, na verdade, que é difícil manter
uma convergência classista tão ampla quanto a que pareceu expressar-se com o
Justicialismo sob Carlos Menem (1989-1999) e isso cou claro com a evolução
posterior desse movimento reorientado por Néstor Kirchner. A existência dessa
aliança, de toda forma inegável, nos leva efetivamente a considerá-la como um
caso de coalizão tácita, típica de uma situação de pós-guerra. A guerra a que
me rero não é necessariamente a “guerra suja”, embora ela esteja incluída, e
sim abarca praticamente todo o período que vai desde 1945, ou talvez 1930,
até 1983. Não que “o peronismo possa ser qualquer coisa”, como às vezes se
arma, e sim que é um típico movimento de aglutinação de diversos setores
sociais, mais marcado nos países da periferia do que no Primeiro Mundo, e
que com o tempo tende a transformar-se. Mas não se trata de acreditar que
em regiões mais prósperas do planeta os partidos não mudem. Ou será que os
socialistas espanhóis e chilenos são também “peronistas” sem o saber, tendo
passado da revolução ao reformismo, ou os ex-comunistas italianos ou do leste
europeu, para não falar dos fascistas da Alleanza Nazionale?
Perspectivas futuras do sistema político-partidário
argentino
O sistema político argentino es sofrendo fortes tenes e muito
provavelmente se modicará de maneira quase irreconhecível dentro dos
próximos anos, tornando-se mais parecido ao europeu ocidental ou ao chileno,
para tomar um exemplo mais próximo. Isso é o que argumentarei nas próximas
ginas, apesar das enérgicas advertências de meus amigos de o meter-me em
futurologia, pois alguém somente pode ser dono das palavras antes de pronunciá-
las; depois torna-se escravo delas. Mas a curiosidade humana é insondável e a
minha é sucientemente forte para que me arrisque nesse terreno.
Nosso país teve por muito tempo uma forte organização de grupos
“corporativos” (associações empresariais, sindicais, prossionais, ruralistas,
Igreja, Forças Armadas), como é habitual nos países mais desenvolvidos do
mundo, porém tem tido um sistema muito peculiar de partidos. Esse sistema
apresenta as seguintes diferenças em relação ao modelo a que está destinado
– em minha opinião – a aproximar-se:
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1. A falta de uma Direita eleitoralmente forte, coisa que pode não ser
muito correto lamentar, mas que de toda forma contrasta com o que
ocorre na maioria das democracias realmente existentes;
2. A contínua força, até pouco, de um partido de centro, a União
Cívica Radical, apesar de não possuir robustas raízes em organizações
“corporativas”, tanto empresariais quanto sindicais;
3. A ausência de uma expressão social-democrata nas classes populares,
substituída por um movimento populista de sólidas bases sindicais.
Durante os anos 30 e início dos 40, o sindicalismo na Argentina era muito
semelhante ao do Chile e do Uruguai, países que compartilham muitas de nossas
características. Também seguia de perto as pautas européias. Diferenciava-se,
no entanto, do que ocorria no restante da América Latina, onde a organização
operia dependia muito do Estado e muita vezes tinha sido gerada e estimulada
a partir das altas esferas, sobretudo no México e no Brasil. Desde o aparecimento
do peronismo o movimento sindical argentino modicou-se até distinguir-se
nitidamente do Chile e do Uruguai, que mantiveram muitas de suas formas
tradicionais ideológicas e de organização, ainda que modernizadas. Entre nós,
impôs-se um tipo de liderança caudilhista que produz grupos dirigentes muito
mais distantes das bases do que é comum em países de estrutura democrática.
É verdade que diante dos avanços da vida moderna os sindicatos assumiram,
em toda parte, uma organização em certa medida burocrática, mas há limites
para isso, pois a característica associacionista se manteve e a violência, com
algumas claras exceções como os Caminhoneiros nos Estados Unidos não
é endêmica na luta interna. Na Argentina, a proliferação de grupos violentos
no sindicalismo foi em parte uma reação à ameaça de inltração por grupos
rivais, freqüentemente apoiados por governos autoritários, a começar pela
chamada Revolução Libertadora. Mas com a consolidação de um Estado de
Direito a possibilidade ou legitimidade de continuar aplicando esses métodos
não pode senão diluir-se lentamente.
No Brasil, tem sido óbvia a transição de uma liderança sindical muito
tradicionalmente manipuladora, a dos “pelegos”, a formas de esquerda mais
ligadas aos militantes, e essa foi a base do PT de Lula. Será esse processo
possível na Argentina? Talvez seja, embora com importantes diferenças, pois
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Torcuato S. Di Tella
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no Brasil o varguismo, como vimos, nunca penetrou tão profundamente nas
classes populares quanto o peronismo, e além disso o país se transformou
radicalmente, como resultado de uma macro-industrialização, que brilha por
sua ausência na Argentina.
Se olharmos agora a classe média, é preciso notar que longe de apoiar
em sua maioria algum partido conservador, com esse ou outro nome que é o
que faz em quase todo o mundo desenvolvido ela tem sido a base da União
Cívica Radical, que ostenta brasões de resistência democrática mas pouca
penetração em interesses corporativos. Sua força eleitoral estava declinando até
colocar-se em quase um quarto do eleitorado, ou ainda menos (21% na eleição
de Balbín contra o justicialista Héctor Cámpora em 1973), até que a condução
de Raúl Alfonsín lhe deu novo vigor, atraindo um grupo nutrido de intelectuais
e público de esquerda, cansado do sectarismo, e sem suas ilusões sobre o
peronismo revolucionário. Mas se contarmos os votos, Raúl Alfonsín ganhou
a presidência em 1983 graças à Direita, que preferia sua variante centrista um
tanto inclinada à esquerda moderada à ameaçadora e imprevisível mobilização
popular justicialista. Não obstante, apesar desse apoio, o alfonsinismo não foi
sucientemente conservador para converter-se em representante dos interesses
corporativos das classes altas, e muito menos da Igreja ou das Forcas Armadas.
Por outro lado, não tinha sucientes características de esquerda para identicar-
se com os setores sindicalizados da população, nem em nível das lideranças e
nem no das minorias opositoras em cada sindicato.
As mudanças no peronismo
O peronismo tem experimentado mudanças profundas praticamente
desde o início. Sua natureza protéica tem sido tal que o primeiro a sentir-se
surpreendido com o que havia criado deve ter sido o próprio Perón. Ele teria
preferido mil vezes algo parecido com o Partido Revolucionário Institucional
(PRI) do xico, que incla quase todo mundo, desde os empresários
industriais e os técnicos dinâmicos até a classe média, inclusive as maiorias
camponesas e operárias, porém tudo claramente sob controle. Perón rechaçava
veementemente a luta de classes, e todo o seu trabalho inicial dirigiu-se a
consolidar a nação e prepará-la para ingentes esforços na área industrial e
possivelmente o bélico. Mas na prática, como vimos, seu partido se viu
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protagonizando algumas das mais duras pugnas contra as classes abastadas
jamais experimentadas na Argentina.
Outros movimentos populistas, picos de países da periferia, e em
primeiro lugar o varguismo, também passaram por importantes mutações,
que em movimentos pendulares nos levam desde posições próximas, se não
idênticas, ao fascismo, até outras de clara feição anti-capitalista, como a que
João Goulart representou no início dos anos 60. Em todas as variantes do
populismo é central a participação de setores das classes altas ou médias, ou
de grupos funcionais como a Igreja e as Forças Armadas. São minorias dentro
de suas classes originais, porém muito estratégicas, pois trazem elementos de
poder a um movimento que se não contasse com elas se veria demasiadamente
reduzido a massas com pouquíssima organização ou a séqüitos íntimos de
seus líderes. É claro que essas minorias dão certa sionomia de moderação ao
movimento, mas é evidente a qualquer observador não muito comprometido
que o controle que possam exercer sobre as massas, especialmente no momento
da morte do líder, sempre teria um elemento de incerteza. No fenômeno social-
democrata (ou no eurocomunista, em certo momento) também setores das
classes acomodadas que apóiam o movimento, mas seu número é menor e
sobretudo é mais problemático seu enraizamento nas classes de origem. Além
disso, a minoria déclassée”, ou talvez oportunista, que rodeia como enxame o
populismo, nem sempre é uma garantia de moderação. Muitos deles, diante
de situações pessoais angustiosas, podem mudar subitamente apesar de sua
ideologia de raiz conservadora, e saltar por sobre o espectro ideológico. As
origens direitistas de muitos guerrilheiros ativistas, na Argentina e em outros
países, não devem surpreender-nos, neste sentido.
Em 1989 a perspectiva de um triunfo eleitoral de Carlos Menem, cada
vez mais segura segundo as pesquisas de opinião, gerou um verdadeiro
pânico, tanto na Direita quanto entre a intelectualidade, inquietas ambas, por
motivos diferentes, diante de um retorno do que parecia ser um peronismo
fundamentalista. Tanto é assim que é possível armar que a hiperinação se
deveu não tanto a erros do plano econômico alfonsinista – que podem haver
existido nem a especulações pontuais, que nesses casos inevitavelmente
ocorrem, e sim, mais profundamente, ao temor que dominou todos os que
tinham algo a perder. Era muito alta a perspectiva de uma repetição do cenário
Cámpora-Perón, ou de Allende no Chile, com sinal ideológico diferente porém
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conitividade semelhante. A reorientação adotada pelo Presidente Carlos
Menem e seus assessores, de buscar compartilhar o poder com os principais
grupos empresariais do país, contribuiu para a pacicação geral, apesar de seus
resultados econômicos, que sobretudo em certas conjunturas tiveram impacto
sobre os setores humildes, tradicionalmente peronistas. Mas ante a alternativa,
realmente elevada, de um cenário de luta civil e eventual golpe, o “pacto à
argentina” ajudou a consolidar o processo democrático. Repetia, por outro
lado, situações totalmente distintas vividas pelo socialismo espanhol ou pelo
francês, para não falar de muitos regimes pós-comunistas do leste europeu.
Porém teve também outros efeitos, inesperados, sobre o esquema político-
partidário, que se farão sentir cada vez com maior intensidade.
As possibilidades de fragmentação partidária
Estranhamente, a primeira tima da nova imagem dada pelo peronismo
ou menemismo, se quisermos, mas o fato é que todo o partido o acompanhou
foi a União Cívica Radical, que começou a perder votos em eleições legislativas
provinciais e nacionais. Ocorre que ante o pacto de Menem com a Direita
política e econômica, a ameaça peronista” começou a desaparecer. No início a
opinião pública duvidava de que as mudanças fossem genuínas, mas à medida
que passava o tempo, e o Presidente pagava o preço de alienar-se de muitos
militantes de seu próprio partido e de setores da CGT, o empresariado foi
capaz de respirar tranqüilo. Restava apenas a nuvem de saber se diante do grito
de “Traição!” tão amplamente ecoado pelos militantes, o governo caria em
pouco tempo reduzido ao nada no campo eleitoral. Algo semelhante havia
acontecido a outros em nossa região, como a Carlos Ibañez no Chile em 1954,
ou ainda ao trabalhista Ramsay MacDonald na Inglaterra, que aplicou remédios
“neoliberais” à crise dos anos 30 e cou sem partido, além de encalhado na
historiograa de seus antigos correligionários. Mas como bem se sabe, na
Argentina isso não aconteceu, pois o peronismo, em sucessivas eleições,
somente caiu do nível de 50% ao de 40%, exatamente o mesmo que ocorreu
a Felipe González na Espanha.
Diante da diminuição dos temores, não apenas entre a classe empresarial
mas também na intelectualidade, cada qual no campo tradicionalmente anti-
peronista se viu livre para seguir seu próprio caminho ideológico, sem ter
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de optar como antes pelo mal menor, ou seja a UCR. Em outras palavras,
os eleitorados de centro-direita e de centro-esquerda, base daquilo que o
alfoninismo havia juntado ao centrismo radical, caram liberados e formaram
suas próprias organizações no sentido da direita: o Recrear, de Ricardo López
Murphy. No sentido da esquerda, o elmoralismo e o ARI (Argentina por uma
República de Iguais) de Elisa Carrió, ambos ex-radicais. A persistência da
força eleitoral e portanto do apoio social, organizado ou não – do partido
Justicialista governante consolidou-se com as eleições presidenciais de 1995.
não se podia dizer que a prédica era contrária às ações. O justicialismo se
manteve com aproximadamente os mesmos 50% que havia conseguido em
1989. Sem dúvida um 50% diferente, porque pelo menos 10 pontos percentuais,
os mesmos sem dúvida perdidos para a esquerda, foram adquiridos por uma
direita que mal podia acreditar que depositava na urna a cédula com o escudo
da pátria, e que sem dúvida o fazia à contrecoeur.
Os componentes do peronismo
Antes de entrar no tema do futuro do peronismo, é preciso fazer uma
radiograa das partes que o compõem e que podem explodir sob os efeitos
das mudanças econômicas. A experiência comparativa mostra que na Europa
ocidental os partidos social-democratas que adotam políticas “neoliberais”
não perderam muito de seu eleitorado, embora os militantes e o número de
liados permaneça. Grupos divisionistas ou novos partidos à sua esquerda
caram reforçados, mas não constituem uma ameaça séria, em parte devido
ao descrédito em que caíram as utopias alternativas. Mas será essa experiência
aplicável? A situação econômica argentina não semuito pior do que a
enfrentada pela Europa em seus períodos de crise? E acaso o peronismo é
equivalente à social-democracia? Sem dúvida diferença, mas também é
preciso observar as semelhanças e as tendências à convergência que depois da
crise iniciada em 2001 vêm transformando o Justicialismo de maneira bastante
radical e formando um novo conglomerado em torno do Presidente Néstor
Kirchner, que inclui a parte principal desse partido mas também outros grupos
avulsos de centro-esquerda. As duas principais diferenças entre o peronismo
e a democracia social são a natureza do sindicalismo e a presença de setores
importantes, ainda que minoritários, das classes alta e média alta e das Forças
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Armadas e da Igreja. Também importante, embora em certo sentido derivada da
anterior, é a ideologia, em grande medida elaborada pelos grupos mencionados
acima, ou seja as elites não operárias.
Tomemos, de qualquer forma, os diversos componentes em ordem, para
ver se neles existem tendências de mudança.
a) O sindicalismo
De todas as variantes do populismo, é sabido que o peronismo se enquadra
em uma categoria especial, devido à forte presença do elemento sindical, maior do
que em todos os demais casos conhecidos, sobretudo em seus primeiros tempos.
Seja como for, a forma de organização desses sindicatos difere muito da de seus
hologos social-democratas. Isso de deve à maneira como foram criados, ou
radicalmente modicados, no momento em que se formou o movimento ou
logo depois, em conseqüência da pressão estatal. É verdade, como diz Juan
Carlos Torre, que alguns dos membros da Vieja Guardia sindical tiveram papel
protagônico na formação do Partido Laborista, mas creio que ele exagera no
que respeita a seu peso relativo. De fato, pouco tempo depois de criado, Perón
mandou dissolver o Laborismo e a resisncia foi muito pequena. Isso porque a
combinão de verticalismo e anncia popular é justamente a caractestica do
populismo em geral e do peronismo em particular. E somente certas condões
sociais permitem gerar essa combinação peculiar. Quando ela se forma, perdura
por bastante tempo, às vezes até mesmo quando mudam as condões que a
zeram nascer. Mas a longo prazo as novas condões se imem. Essas exigem
hoje em dia um tipo de organização sindical menos caudilhista, sem por isso
chegar à democracia interna total, com bases plenamente participativas, o que
o pertence a este mundo. A aceitão das políticas de privatizão e outras
receitas do livre mercadoo deriva necessariamente do verticalismo, mas sim
da leitura da seção internacional dos jornais, ou na falta dela de conversas com
os participantes das numerosas reuniões internacionais a que os dirigentes
são bastante assíduos. Nesse campo o ocorrer algumas transformações
importantes no sentido de adotar pautas mais associacionistas, o que implica
que os líderes estabelecidos o ter de levar mais em conta a opino das bases e
coexistir com setores de ideologia diversa. houve muitas mudanças, sobretudo
nos níveis locais, e isso obrigará a desenvolver novas versões da ideologia e da
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prática justicialistas. A perda de agremiões seccionais e a mesmo sindicatos
inteiros em favor de grupos de oposição mais militantes, peronistas ou não,
sem dúvida estimulará esse processo. Em outras palavras, antes de morrer o
sindicalismo peronista resolverá crescer, mas isso implica a adoção de práticas
social-democratas, sejam elas reconhecidas como tais ou não.
b) Elites de alto status
A presença, no peronismo, de numerosos setores – ainda que minoritários
recrutados nas camadas mais altas da sociedade, é uma das características que
o diferencia da social-democracia. o que nesta o existam indiduos de tal
origem, mas no peronismo esse tipo de componente tem sido em geral muito forte,
sobretudo na origem, mesmo quando debilitado pelos episódios confrontacionistas
dos tempos da Resistência e da luta guerrilheira. A contribuição de dirigentes e votos
conservadores que existiu sob o menemismo foi um fenômeno diverso, porque
não representam uma verdadeira fusão política e sim uma aliançatica, como a
que houve na Espanha de Felipe González entre o Partido Socialista e a muito
burguesa Convergência i Un da Catalunha. Aquela aliança tática evidentemente se
rompeu desde a crise que em ns de 2001 derrubou seu símbolo, a convertibilidade
(a paridade entre o dólar e o peso argentino). Por outro lado no vel da baixa
classe média intelectualizada o apoio ao peronismo é em geral muito menor do
que o recebido pela social-democracia em países em que esta predomina. Em
vez desses setores de classe média “ilustrada”, o peronismo se encontra bastante
carregado com grupos de orientão culturalmente conservadora e calica,
sobretudo no interior do país. O setor “alto do peronismo, do qual deriva grande
parte de sua liderança política, nem sempre esteve isento de certas debilidades
em relação ao modelo fascista, sem dúvida em suas origens e também depois. De
todo modo, hoje em dia se aproxima no nível explícito mais à democracia cristã
e outras variantes social-cristãs do que à social-democracia. Em geral se identica
com um modelo clássico de nacionalismo popular, nostálgico dos anos dourados
de Juan Domingo Perón, com sua luta anti-imperialista e anti-oligárquica, pouco
preocupada com a “democracia formal”. Não obstante, também no peronismo
numerosos setores, tanto em nível político quanto sindical, que se vêem a si mesmos
como mais à esquerda e que o descobrindo que a social-democracia o é uma
mera invenção do imperialismo. Com essa composição tão heterogênea não era
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fácil ao movimento peronista manter-se unido durante muito tempo; de fato ele
vem se esgarçando, sem por isso debilitar-se gravemente, ainda que na verdade
transformando-se. No peronismo, a principal força que se contrapõe à divisão é o
verticalismo e a convicção de seus membros de que seu movimento é consentâneo
com a nacionalidade. Mas o tempo não pode senão erodir essa crença na verdade
primitiva, como ocorreu com outras, adotadas com força igual e até maior, pelos
militantes de partidos populares na Europa e em outras partes do mundo.
c) Ideologia
A matriz de idéias peronistas é sucientemente rica para fornecer material
capaz de construir praticamente qualquer outro credo potico. No passado mudou
várias vezes, e o mesmo pode voltar a ocorrer. Sua heterogeneidade intelectual
se deve em parte à sua composição social contraditória, mas é também o legado
da capacidade de seu fundador de integrar elementos diversos em um todo
ecaz. Isso, que não é simples pragmatismo e sim algo mais, é uma contribuição
muito importante que certos dirigentes peronistas podem fazer a uma futura
Esquerda. Um dos principais componentes da variada gama do corpus peronista é
um reformismo pragmático pró-sindicalista, muito parecido com o New Deal de
Roosevelt. Este se mistura a um caudilhismo latino-americano de tipo populista,
com abundantes raízes em nossa história, desde as primeiras décadas de vida
independente. Nossos intelectuais em geral o m levado muito a rio essa
tradição popular nacional, salvo no período de entusiasmo pelas potencialidades
revolucionárias do peronismo, momento em que na verdade as miticaram. Não
seria mal recebida, passada a embriaguez do entusiasmo acrítico, uma volta ao
estudo e conhecimento de nossas tradições, dando-lhes pelo menos tanto valor
quanto os franceses dão às suas. Isso ajudará a colocar o peronismo em coordenadas
latino-americanas, sem por isso deixar de levar em conta, evidentemente, suas
vinculações e contrapartidas em outros lugares do mundo.
Uma excursão futurológica
O sistema atual de partidos na Argentina cumpriu seu papel histórico
e tem cada vez mais diculdade em representar a nova conguração de
forças sociais. Se é assim, teremos de enfrentar um período de desagregação
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e desorientação que colocará em perigo a solidez da ainda débil democracia.
Se conseguirmos atravessar a etapa de tensões, encontraremos no nal uma
estrutura rejuvenescida e modernizada de partidos políticos. Possivelmente
o peronismo, ainda eventualmente perdendo a maioria de que desfruta no
Congresso, continue a ser o partido considerado individualmente com
maior força eleitoral no país, com mais de um terço do total. Os Radicais
sofreriam uma progressiva redução do número de votos, tensionados por
estratégias alternativas em direção à direita e à esquerda, como aconteceu
a seus pares no Chile e na França. É possível a consolidação de uma forma
moderada de Esquerda, hoje dividida em diversas correntes. Em algum ponto
desse esquema produzir-se-ia uma divisão do peronismo, coisa que vem
ocorrendo, mas que ainda pode intensicar-se. Não posso nem quero predizer
o momento e ligá-lo a eventos ou personalidades. Na verdade, creio que esse
processo de divisão seria o resultado da atuação na Argentina de forças similares
às que operam em outros países de nível semelhante de desenvolvimento, que
geram uma bipolaridade entre um setor inspirado por valores empresariais e
outro inspirado pelos do tipo sindicalista ou igualitário. Deveria então emergir
uma coalizão conservadora, baseada nos vários partidos de centro-direita e de
tipo provincial, e sem dúvida com um importante componente peronista. Esse
setor do peronismo, então, se ajustaria à descrição do movimento, feita por
certos observadores, como sendo a principal expreso da Direita na Argentina,
porém com uma exceção importante: isso se aplicaria somente a uma parte
minoritária do conjunto. Do lado oposto, uma coalizão de esquerda poderia ter
como base numérica principal um setor majoritário do próprio peronismo, que
apelasse a suas tradições “nacionais e populares”, incorporando sindicalistas
algo renovados. Ao perder várias costelas, esse novo peronismo precisaria
de aliados, coisa que se tornará cada vez mais evidente, e para encontrá-los
deverá freqüentar os ambientes da esquerda, moderada ou não, e também do
radicalismo; este último fenômeno está claramente já ocorrendo.
Quanto ao futuro do sistema partidário brasileiro, prero o me aventurar
nesse tema, porque aqui muita gente que sabe muito mais a esse respeito do
que eu, embora eu já o tenha feito no passado. Quero não obstante acentuar
que em toda a nossa região está ocorrendo uma convergência de mentalidades.
Há 50 anos havia em cada país partidos que não se consideravam irmanados
a nenhum outro fora de suas fronteiras, e que além disso mal se conheciam.
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Torcuato S. Di Tella
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Agora essa situação mudou e se parece muito mais com a européia, onde a
existência, por sobre os limites nacionais, de partidos como os democrata-
cristãos ou os socialistas, ajudou imensamente a unidade continental. Diz-se
que uma andorinha não faz verão, mas já são muitas as que estão voando em
nosso céu.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Bolívia: processos
de mudança e
política externa
Jean Paul Guevara Avila*
Introdução
Contexto global de transformações
U
ma das características de nosso tempo é a mudança. O momento his-
tórico que estamos vivendo em todo o planeta é um tempo de transformação
que rompe padrões e tendências anteriores. Tendências que, na maioria dos
casos, respondiam a paradigmas obsoletos ou a inércias desequilibradoras
insustentáveis. Se algo caracteriza os tempos atuais, são os profundos e com-
plexos processos de mudança que estamos presenciando.
Em nível mundial, tal como se vinha construindo, a globalização se en-
contra hoje sob vigoroso questionamento. Tratava-se de uma tendência que
somente globalizava os custos e as dívidas, mas não os ganhos e benefícios.
Uma globalização que exacerbava a competição e os interesses particulares,
esquecendo a solidariedade, a complementaridade e o bem comum da huma-
* Embaixador. Ministério das Relações Exteriores da República da Bolívia
Jean Paul Guevara Avila
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nidade. Essa globalização é questionada porque se baseia e se constrói à custa
e apesar do meio ambiente e da natureza, sendo este planeta, nossa pachamama,
o único espaço que temos para viver como espécie humana.
Diante disso, vai-se formando um consenso mundial sobre a necessidade
de mudar esse caminho e modelo. Apesar de serem processos de mudança
que têm suas particularidades em cada país, e do fato de existir consciência
de que devem ser construídos, podemos dizer que se trata de um processo
global de busca de alternativas.
Mundo
O modelo de acumulação capitalista é incompatível com a subsistência
do planeta. É impossível generalizar os padrões de consumo da “civilização
ocidental” para o conjunto da humanidade porque os recursos naturais não
são sucientes e nem se renovam ao mesmo ritmo em que são consumidos
1
.
A crise energética mundial, a crise alimentar e a crise provocada pelos efeitos
da mudança de clima são expressões desse processo
2
.
Assistimos ao ocaso do Consenso de Washington e do modelo neoliberal
3
.
As políticas de ultra-liberalização comercial e de supremacia absoluta do
mercado são questionadas e reajustadas numa tentativa de reciclá-las com
uma nova face “público- privada”. A bolha nanceira imaginária é seis vezes a
produção mundial. A concentração de riqueza no mundo aumenta e a redução
da pobreza não progride.
1 A superfície de terra produtiva e de ecossistemas aquáticos que em média são necessários anualmente para o
consumo de uma pessoa em nível mundial é de 2, 23 hectares. Isso signica que atualmente gasta-se um ano e
três meses para produzir o que em media um indivíduo consome por ano. Um cidadão europeu precisa de 4,6
hectares. Se todos consumissem como os europeus seriam necessários dois planetas. Um cidadão dos Estados
Unidos precisa de 9,6 hectares. Se todos consumissem como os norte-americanos seriam necessários quatro
planetas. Na atualidade, crescimento econômico mundial não reduz a pobreza e sim aumenta as desigualdades e a
degradação do meio-ambiente. Segundo estudo da OCDE, Perspectivas do meio-ambiente 2001, a deterioração
do meio ambiente acompanha o crescimento do consumo.
2 Segundo dados da União Internacional para Conservação da Natureza (lista vermelha da UICN), das 40.170
espécies estudadas que habitam o planeta, 16.119 estavam em perigo de extinção: um pássaro em cada oito, um
mamífero em cada quatro, um anfíbio em cada três, oito crustáceos em cada dez e três insetos em cada quatro.
É a sexta crise de extinção de espécies vivas. A taxa de extinção é 100 vezes mais acelerada do que nas eras
geológicas. No centro do Pacíco há 3kg de plástico para 0,5kg de plâncton.
3 As 300 pessoas mais ricas do planeta têm renda equivalente à dos 416 milhões de pessoas mais pobres. As três
pessoas mais ricas do planeta têm renda superior ao PIB dos 48 países mais pobres (PNUD 1998).
Bolívia: processos de mudança e política externa
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
O monopólio e o domínio militares são sucientes para devastar um
país e até mesmo uma região, mas não para impor os desígnios da potencias
em crise. A força do mais poderoso acaba sendo insuciente para submeter os
mais débeis, mas em sua implementação desesperada só provoca destruição,
mais confrontação e crise.
Unipolaridade em crise
Governabilidade global debilitada
Crise energética
Economia privada em auge
América Latina
A necessidade de novas formas de ver e de mudança de pades
antigos também existe em nossa região. Um exame dos governos atuais,
democraticamente eleitos, nos mostra a dimensão da mudança. Temos um
operário na presincia do Brasil, uma mulher presidente do Chile e igualmente
uma presidente eleita na Argentina, um indígena presidente da Bolívia, assim
como correntes de esquerda (mais além das denominações) no Equador,
Uruguai, Venezuela e Nicarágua.
Não se trata de processos homogêneos nem homogeneizantes, e sim de
novos personagens e atores, que trouxeram novos ares, mais “genuinidade” e
um compromisso muito maior com suas populações e a região.
A Bovia é parte importante desse complexo processo de mudança. A
política externa de nosso país é um de seus instrumentos mais importantes, não
só como expressão dos processos de transformação interna vividos pelo país mas
também como instrumento para incidir de forma protagônica nesses processos
de mudança em nível mundial. O avanço da revolução democrática e cultural que
a Bolívia atravessa é interdependente da evolução dos processos mundiais.
Nesse contexto, os processos de mudança nos levaram a procurar a
fundação de um novo Estado, tratando de refundar a Bolívia mediante a
descolonização externa e interna.
O governo do Presidente Evo Morales, que eu represento, é produto
dessas tendências de mudança e as impulsiona vigorosamente.
Jean Paul Guevara Avila
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Por isso, necessidade de comunicar, compartilhar e proporcionar
elementos sobre os processos que estamos vivendo e protagonizando.
Nesse sentido, a ordem de exposição será a seguinte:
Imperativo histórico das mudanças: necessidade e sentido
Dupla institucionalidade que sobreviveu na história da Bolívia
Presença de um presidente indígena e suas realizações
O desao das relações internacionais no contexto atual: imperativo
histórico de propor novos paradigmas
Política externa da Bolívia em tempo de mudanças
Desenvolvimento
Imperativo histórico:
Três tempos que se esgotaram simultaneamente
Janeiro de 2006, toma posse o Presidente Morales:
Primeiro presidente indígena
Presidente mais votado na historia democrática contemporânea da
Bolívia
Com seis meses de mandato conrma sua votação e a amplia
Sinal da busca e necessidade de mudança da sociedade:
Crise do modelo liberal de modernização e desenvolvimento
· Surgimento da necessidade de mudança
Votação na Assembléia Constituinte
· Sentido da mudança
· Reivindicação das populações indígenas não modernas (por
exclusão; por vontade)
Se a mudaa tem sentimento e sentido (vontade de mudar e profundidade
histórica do sentido de comunidade indígena):
Construção de um novo Estado
Obrigação de re-projetar a política externa
Política da diversidade
Bolívia: processos de mudança e política externa
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Resultados do processo
Por se tratar de uma revolução em democracia, o processo de mudança
tem dois caminhos e vários instrumentos que se complementam:
As mudanças estruturais estão sendo realizadas por meio da Assembléia
Constituinte;
As mudanças imediatas, que nos permitem ir progredindo na conjuntura,
são realizadas por meio da nacionalização e recuperação de nossos
recursos naturais (hidrocarbonetos e minérios); mediante a revolução
agrária na democracia e o Plano Nacional de Desenvolvimento.
Com a nova Lei de Hidrocarbonetos e sua Lei de Nacionalização
que permitiu maior participação do Estado conseguiram-se os seguintes
resultados: as rendas do Estado passaram de 324 milhões de dólares em 2005
a 1.173 milhões em 2007. A recuperação de duas importantes renarias exigirá
um investimento de 98.286.000 de dólares, que permitirão renar 95 mil barris
por dia quando o projeto estiver concluído.
Como parte da re-fundação da Corporação Mineradora da Bolívia, a
nacionalização da colina Posokoni trouxe 5.135.000 dólares de renda líquida
até março de 2007.
A empresa de fundição Vinto, também nacionalizada/recuperada, gerou
2.820.000 dólares para o Estado no último ano.
Porém, como sempre, os interesses que se vêem afetados pelas mudanças que
estamos realizando colocam todos os tipos de obstáculos – como é de esperar-se.
Inicialmente, nos inculcaram a cultura do temor à mudança. Diziam que
as coisas “são assim mesmoe que sempre seriam assim; que nós, os indígenas,
não sabíamos trabalhar e nem tínhamos conhecimento.
Quando começamos a progredir, no caso boliviano, disseram-nos que
viria o isolamento internacional”, que a “insegurança jurídica” o atrai
investimentos, que sem investimentos externos não se pode fazer nada; que a
Bolívia era um “país inviável”, e muitas outras especulações.
Deixem que lhes conte que a cooperão externa e os créditos e doações
estrangeiras aumentaram nos últimos dois anos. O crédito comercial passou de
190 milhões de dólares, em 2004, para 35 milhões, em 2006, e 210 milhões, em
2007. O credito concessional passou de 51 milhões de dólares, em 2004, para 7
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milhões, em 2006, e 160 milhões, em 2007. As doações subiram de 114 milhões
de dólares, em 2004, para 51 milhões, em 2006, e 63 milhões, em 2007.
O projeto siderúrgico de Mutún prevê um investimento de 2,1 bilhões
de dólares, que gerariam 5 mil empregos diretos e 10 mil indiretos para
os bolivianos.
Atualmente, estão sendo investidos 9 bilhões de dólares na construção
de uma fábrica produtora de cobre catódico.
O investimento público passou de 670 milhões de bolivianos, em 2005,
a 905 milhões, em 2006, e será de 1.116 milhões ao nal de 2007.
Em matéria de estradas, como nunca se fez antes, está sendo realizado
um investimento de 38 milhões de dólares entre janeiro e julho de 2007.
As reservas internacionais quidas aumentaram de 1,856 bilhão de
dólares, em 2005, para 4,922 bilhões, em 2007.
A Revolução Agrária do governo do presidente Evo Morales tem três
componentes: a redistribuição da terra, a outorga de uma função social e
econômica de benecio para o povo e o respeito às terras trabalhadas. Nesse
âmbito, em comparação com gestões anteriores, entre 1996 e 2006 foram
distribuídos 36.815 hectares, enquanto que no governo atual foram distribdos
494.899 hectares. Da mesma forma, entre 1996 e 2006 foram registrados títulos
de 9,2 milhões de hectares, enquanto em dois anos de governo o Presidente
Evo Morales outorgou títulos para 5,5 milhões de hectares.
Conclusões
O desao atual das sociedades:
Institutucionalidade para viver entre gente diferente: comunidade
O desao das relações internacionais no novo milênio
Velhos atores, novos cenários (“Paradoxo de Davos”)
Novas corporações estatais paralelas: grandes grupos empresariais que em
cenários de crise e conitos substituem o Estado em muitos âmbitos. Trata-se de
antigas empresas que encontraram, em meio a crises políticas e desastres ambien-
tais, novos nichos de mercado nos quais conseguem lucros extraordinários.
Bolívia: processos de mudança e política externa
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Esse tema ocupou o centro das atenções no Foro Ecomico Mundial de
Davos, este ano. Isso levou a quali-lo como o “paradoxo de Davos”: o fato
de que, em um contexto de guerras, confrontações, preços elevados do petróleo,
ataques terroristas e quedas da Bolsa, empresas como a Exxon Móbil (que teve
lucros de 40 biles de dólares em 2006) ou Lockeed Martin (que conseguiu
contratos com o governo dos Estados Unidos no valor de 25 biles de dólares
em 2005) têm desempenho tão bom ou melhor do que antes. É um indicador
tão importante que recebeu nome (o índice “de canhões a caviar”).
Desmantelamento estratégico da capacidade de gestão do Estado e
Estados falidos
Não se trata somente de um fenômeno da América Latina e dos países
chamados “subdesenvolvidos”; trata-se de um enfraquecimento global do
Estado que engloba também os países “pós-industriais”, principalmente, os
Estados Unidos: as capacidades básicas de gestão se debilitaram tanto que
durante a tragédia do furacão Katrina, em Nova Orleans, a FEMA (Federal
Emergency Management Agency) teve de contratar uma empresa privada
para poder elaborar e levar avante os contratos com as empresas privadas que
tomariam a seu cargo a reconstrução
4
.
Decididamente, são muitas as experiências conseguidas em conseqüência
da guerra do Iraque, mas outra perspectiva direta de ver esses resultados, e
que tem a ver com o novo papel das corporações privadas diante dos Estados
desmantelados/debilitados, pode ser encontrada nas declarações de um ex-
comandante das Forças Delta no Iraque, atual consultor gerencial à revista
“Fast Company”, que descreve o “resultado nal’ da guerra contra o terror
como “a new and more resilient approach to national security, one built not
around the State but around private citizens and companies... Security will
become a function of where you live and for whom you work for, as much
as health care is allocated already” (John Robb).
Mas a “irrupção” de todas essas corporações em “âmbitos” estatais
não se reduz somente a contextos de crises ou emergências; nos últimos dois
anos, começa-se a falar nos Estados Unidos, em “contract cities”, cidades que
4 E – surpresa – as companhias que obtiveram os maiores contratos para a reconstrução são as mesmas que se
responsabilizaram pela reconstrução do Iraque: Halliburton KBR, Blackwater, Parsons, Fluor, Shaw, Bechtel,
CH2M Hill. Somados, esses contratos atingem aproximadamente 3,4 bilhões de dólares.
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contratam “terceiros” (leia-se companhias privadas) para que as “gerenciem”.
Sandy Springs, em Nova Orleans, inaugurou esse “modelo”. Por acaso, a
empresa que se encarregou do trabalho é a mesma que adquiriu experiência
no Iraque e na reconstrução de Sri Lanka, após o tsunami, e em Nova Orleans,
depois do furacão: a CH2M Hill.
Contexto de desastres e institucionalidade obsoleta
A institucionalidade internacional atualmente existente es demonstrando
sua obsolescência e inoperância nos cenários de crises ambientais, conitos
políticos e confrontações econômico-comerciais que vivemos: não contam
com mecanismos que possam levar e consensos e ao cumprimento de acordos
relativos ao cuidado com o meio ambiente e a natureza; a capacidade de decidir
e “legalizar” (mais além da inconsistência do termo) intervenções militares
diretas se encontra em mãos dos países que são interessados e beneciários
diretos dessas intervenções; a OMC, mais além dos postulados de livre
comércio” e abertura de mercados, ainda não pode impedir os subsídios aos
produtos agrícolas dos países industrializados que aprofundam e mantêm as
assimetrias e desigualdades econômicas existentes.
Imperativo histórico para a construção de novos paradigmas
As condões objetivas do contexto de prodão e reprodão da vida no
planeta nos obrigam a enfrentar o desao de criar novos modelos e paradigmas
nas relações internacionais. O complexo institucional internacional que responde
aos acordos de Yalta e Bretton Woods mostrou sua obsolesncia e inopencia
no peodo atual, em que novas tenncias e governos estão procurando exercer
sua autodeterminação e conquistar seu direito ao desenvolvimento.
Projetar esquemas de relacionamento que respeitem e reproduzam a
diversidade
Que as relações entre os Estados sejam regidas pela complementaridade
e não pela competição
O poder como prestígio e não como força
Paradigmas que superem ou permaneçam à margem da modernização.
Bolívia: processos de mudança e política externa
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Pilares de uma nova visão na política externa boliviana
Diplomacia dos povos: Um novo enfoque das relões internacionais somente
pode provir de uma nova articulação da diplomacia com os diferentes atores
sociais. A diplomacia dos povos implica em: a) ouvir, dialogar e trabalhar para
todos, e não apenas para alguns setores privilegiados; antepor os interesses
da nação aos interesses setoriais; b) promover não apenas o relacionamento
entre Chancelarias mas também entre povos, porque a seiva dos processos de
integração e de mudança está nos povos; e c) antepor os direitos humanos e
princípios de vida à lógica do mercado de do investimento.
Exercício efetivo da soberania: A soberania não é uma condição estática e sim
um processo dinâmico. o ocorre uma vez e para sempre, e sim se exerce,
constrói-se e se desenvolve por meio da capacidade propositiva e articuladora
do Estado. A soberania não tem somente uma função defensiva (proteger os
interesses do Estado) e sim prospectiva (contribuir para projetar novos modelos
de mudança para a convivência harmônica em nível internacional).
Diversidade cultural: A convivência pacíca, o respeito entre os povos e a
integração para um mundo mais equilibrado passam pelo respeito e a prática
da diversidade cultural. Não existe uma cultura única, moderna e menos
superior às demais. Aceitar e reconhecer os diferentes complexos de relações
entre os seres humanos, as diversas forma de produção, conhecimento e visão,
recuperar a história e a memória de todos os povos, respeitar as diferentes
identidades, os múltiplos códigos, crenças, expressões e valores daqueles que
habitam o planeta Terra é o cerne da mensagem da Cultura da Vida dos povos
originários e indígenas da Bolívia.
Harmonia com a natureza: As relações internacionais não apenas devem
compreender as relações entre seres humanos, sociedades e Estados, mas
também a de todos estes com a natureza. Promover um desenvolvimento
integral, diverso e integrador em harmonia com a natureza é a única alternativa
para a vida no planeta Terra.
Redução e superação das assimetrias: O aprofundamento das desigualdades
é o mais importante fator de injustas, conitos e destruição no planeta. Um
mundo desequilibrado exige normas internacionais desequilibradas em benefício
dos mais desfavorecidos. Buscamos a complementaridade e a solidariedade
antes que a competitividade e a reciprocidade que parte da premissa equivocada
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de que todas as nações e reges são iguais. A aplicão destes preceitos deve
estar plasmada em todos os níveis do relacionamento internacional: comércio,
cooperação, aspectos institucionais, solução de controvérsias, etc.
Revalorização da folha de coca: A folha de coca forma parte essencial da vida
dos povos originários andinos devido aos usos tradicionais, rituais e religiosos
enraizados em sua cultura e cosmovisão. Não obstante, a folha de coca foi
equivocadamente incorporada à lista 1 da Convenção Única das Nações Unidas
sobre estupefacientes de 1961, como se fosse uma droga em seu estado natural.
A revalorização da folha de coca exige uma avaliação critica dos convênios a
ela relativos, pesquisa cientíca sobre seus benefícios medicinais e nutritivos,
o inventário de seus usos tradicionais e culturais, o estudo dos componentes
demográcos, econômicos, sociais e ambientais de seu consumo legal no
país e no estrangeiro e o lançamento de iniciativas destinadas a promover sua
industrialização, comercialização e exportação.
Luta contra o narcotráco: A luta contra a elaboração, tráco e consumo de
drogas ilícitas responde à necessidade de enfrentar, no quadro do princípio da
responsabilidade compartilhada com a comunidade internacional e do respeito
à soberania nacional e aos direitos humanos, os efeitos negativos que essas
atividades geram na sociedade, na política, na economia e no meio ambiente.
Em nossa política não coca zero e nem livre cultivo de coca. Conscientes
de que uma parte da produção da folha de coca segue para a fabricação de
estupefacientes e que atualmente a produção excedente na Bolívia pode contribuir
com 9% da cocaína no mundo. O governo, junto com as organizações de
camponeses cultivadores de coca está desenvolvendo a racionalização voluntária
da folha de coca. O plano do governo é: a) estabilizar em uma primeira fase a
produção de coca em 20 mil hectares; b) retirar o equivalente ao potencial de 4
mil hectares por meio da interdão; e c) industrializar a produção de outros 4 mil
hectares reduzindo dessa forma de 9% a 2% a participão potencial em nível
mundial na fabricação de cocna. A isso se acrescenta a decisão do governo de
reforçar nas fronteiras o controle da cocaína em trânsito para países vizinhos,
especialmente o Brasil, e o acordo de cooperão coma Uno Euroia para
realizar um estudo integral do mercado de folha de coca.
Reintegração marítima: desde a guerra com o Chile, a Bolívia declarou como
objetivo permanente de sua potica exterior a reintegração matima ao litoral
do Pacíco, com base em direitos históricos e jurídicos. Justica além disso essa
Bolívia: processos de mudança e política externa
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integração por imperativos políticos, econômicos e comerciais, com o objetivo de
aceder à exploração dos recursos marinhos. Não obstante, depois de 128 anos, a
Bolívia não obteve nenhum resultado além do conseguido com o tratado de 1904.
A partir da elaboração de uma política de Estado baseada na Cultura do Diálogo,
estamos presenciando uma mudança histórica nas relações entre os dois países,
na qual o Chile se abre para o diálogo e conseguimos concordar pela primeira
vez em uma única agenda de 13 pontos, que inclui a reivindicação matima da
Bolívia e estabelece o conteúdo e cronograma de trabalho nos diversos temas
de interesse comum. O primeiro ponto dessa agenda é obter a conança mútua
que permita progredir no tratamento dos temas da agenda, a partir de uma
perspectiva de amizade e complementaridade em vez da tradicional de inimizade
e confrontação. Estamos trabalhando para abrir novos cerios e possibilidades
nas relações bilaterais entre a Bolívia e o Chile. É fundamental realizar ões para
a socialização, participação e transparência no tratamento do tema e compreensão
do novo enfoque em nível nacional; para informar e conseguir apoio dos povos à
causa marítima boliviana em vel internacional e continuar gestionando a inseão
e tratamento do tema matimo na agenda de foros internacionais como as Nações
Unidas, a OEA, o Movimento Não-Alinhado e outros.
Povos indígenas: Em quase todo o mundo os Povos Indígenas continuam
sendo tratados como estrangeiros em seus próprios territórios. Seus direitos não
são reconhecidos nem respeitados. Sua visão e sua mensagemo consideradas
resquícios do passado e sua identidade e cultura são reduzidos a folclore. O futuro
da Bolívia e de todo o mundo depende de mudar essa visão e atitude. Nos povos
indígenas está a reserva moral, a visão ética com a natureza e o compromisso com
a diversidade cultural e a democracia de consenso que nos pode permitir salvar o
planeta e a vida. Nesse quadro, é fundamental avançar na aprovação da declaração
das nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e de novos mecanismos
vinculantes que garantam esses direitos e projetem sua visão para o mundo.
Biodiversidade, água e mudança de clima: A diversidade biológica e á água que
sustentam a vida na Terra eso em perigo devido ao modelo de acumulação
capitalista e de liberalização comercial
5
. Os biocombustíveis
6
, a privatização da água e
5 24% dos peixes estão explorados. 52% estão no limite da sobrepesca.
6 Para fabricar uma tonelada de biocombustível é necessário em média um hectare de terra. No ano 2000 a
produção agrícola mundial representou o equivalente a 10 milhões de toneladas de petróleo, ou seja, 0,3% do
consumo mundial de petróleo.
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desenvolvimento dos transgênicos não fazem senão agravar essa situação
7
. A isso se
acrescentam os efeitos da mudança de clima
8
, que são a expressão da impossibilidade
de seguir por esse caminho para o desenvolvimento. A implementação da Convenção
da Mudaa de Clima e d o Convênio sobre Diversidade Biogica por parte dos
países desenvolvidos é essencial para salvar o planeta. Assim como se busca uma
exceção culturaltamm se deve alcançar uma exceção ambiental na aplicão
dos acordos comerciais. Devem existir mecanismos vinculantes nas Nações
Unidas acima das instâncias de cater comercial ou de outro tipo para garantir a
biodiversidade e a água e controlar os efeitos da mudança de clima na terra. Diante
desses impactos devidos a secas e inundões, a Bovia propõe às nações do mundo
assumir conjuntamente a responsabilidade de mudar o modelo energético e nossos
hábitos de consumo, ir mais adiante do cumprimento do Protocolo de Quioto,
cujas metas já não são mais do que uma frão das redões necessárias para frear
de forma signicativa o aquecimento global. Como base dessa política, a Bovia
propõe ao mundo assumir os valores da Cultura da Vida como única solução capaz
de lograr a sustentação e preservação de nosso planeta Terra.
Os bolivianos no exterior: O país nunca contou com uma política migratória
destinada aos cidadãos que migram por motivos sobretudo econômicos.
Atualmente, iniciamos a promoção da regularização da situação migratória dos
cidadãos bolivianos na Argentina, Brasil, Estados Unidos, Espanha e Itália, e
estamos denindo mecanismos para garantir o voto dos bolivianos no exterior.
Para resolver as causas estruturais da migração é necessário um conjunto de
ações que permitam superar as profundas desigualdades entre as nações do
mundo e promover uma cidadania plena que garanta o respeito aos direitos
humanos em todos os países.
Áreas de trabalho no exterior
São as seguintes as áreas fundamentais de trabalho do serviço exterior
na atual conjuntura:
7 Há três vezes mais água doce nas represas do que nos rios do planeta. 1,7 bilhão de pessoas vivem em países
que sofrem tensão hídrica. (Millenium Ecosystem Assessment, 2005).
8 Em 10 mil anos a variação de CO
2
no planeta foi de aproximadamente 10%. Nos últimos 200 anos tem sido
de 30%. Desde 1860, a Europa e a América do Norte contribuíram com 70% das emissões de CO
2,
e os países
em desenvolvimento com 25%. O ano de 2005 foi o mais quente dos últimos mil anos.
Bolívia: processos de mudança e política externa
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a) Diálogo Político: Para melhorar o conhecimento mútuo, a relação da
Bolívia com os outros países do mundo e projetar a imagem da
Revolução Democrática e Cultural vivido pelo país, com o objetivo
de chegar a acordos que permitam a busca de objetivos comuns e a
realização conjunta de programas e projetos de interesse mútuo.
b) Cooperação: Para o estabelecimento de mecanismos destinados a reduzir e
superar, em um quadro de mútua colaboração, as profundas assimetrias
que o conseqüência dos processos de colonizão e imposição de
receitas neoliberais.
c) Comércio e investimentos: Para tornar mais frutíferas as relações de
intercâmbio comercial e de promão de investimentos em nosso país,
buscando o benecio e inclusão no comercio exterior dos pequenos
produtores urbanos e rurais, e garantindo a segurança jurídica para todos
os que invistam respeitando a Constituição e as leis nacionais.
d) Turismo: Para promover o conhecimento de nosso ps por sua
diversidade cultural, sua biodiversidade e seu povo, potencializando esse
setor para o diálogo cultural, a geração de empregos e o fortalecimento
da economia nacional.
e) Cultura: Para dar a conhecer um aspecto essencial do processo de
mudança que está ocorrendo no país e reconhecer a imensa contribuição
dos povos indígenas e a formação da identidade nacional, superando
denitivamente a discriminação e a exclusão e projetando para o mundo
nossa visão do Bem Viver.
f) Bolivianos no exterior: Para prestar um serviço público de qualidade aos
compatriotas que por diversos motivos tiveram de abandonar o país
e radicar-se no estrangeiro.
g) Movimentos solidários: Para conseguir a articulação dos movimentos
sociais, redes e intelectuais solidários com o processo de mudança na
Bolívia e fortalecer sua relação com os movimentos sociais nacionais,
tornando realidade a Diplomacia dos Povos.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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49
Cultura, diversidade e
acesso
Gilberto Gil*
Introdução
O
concerto da globalização deslocou a cultura para um lugar singular e
estratégico do debate global provavelmente porque a geopolítica do mundo
contemporâneo vem mudando ela própria seu terreno tradicional. Sobre a
cartograa dos mapas nacionais, hoje vemos com mais lucidez emergir uma
paisagem global composta de vasta diversidade cultural, de milhares, talvez
milhões, de sistemas culturais diversos, nem todos coincidentes com as
paisagens nacionais. A região que une o norte da Argentina, o sul do Brasil,
parte do Uruguai e do Paraguai tem a força de um sistema simbólico que vai
além de fronteiras nacionais.
Cito esse exemplo não por acaso, na medida em que o Mercosul e a relação
com os pses da Arica do Sul têm sido uma prioridade no esforço geral do
Governo brasileiro para integrar a rego, não apenas economicamente, mas
culturalmente. Mas essa mudança o é apenas regional. A paisagem geral do
planeta é redesenhada quando a cultura se desloca para o centro de uma discuso
sobre o tipo de desenvolvimento que desejamos para o planeta. Quando
* Ministro da Cultura da República Federativa do Brasil
Cultura, diversidade e acesso
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vericamos os limites do modelo econômico que pautou o século XX, que
provocou a migração contemporânea da produção para formas leves e imateriais
de gerão de valor. Também é redesenhada quando constatamos a expansão
da democracia no mundo e a armão da educão como prioridade global.
Quando se evidenciam multies de sujeitos, antes excluídos, que passaram a
dizer, em alto e bom som: “queremos acesso à cultura”. Não se trata apenas de
um maior acesso ao consumo, mas de um maior acesso às formas de expreso,
às estruturas de produção e aos meios de circulação social.
Hoje, a agenda da cultura encontra uma interface com o debate econômico
internacional. Essa interface se intensica quando o debate econômico migra
para a discussão sobre formas de contrato, propriedade intelectual e direito
autoral, identicando a reposição de velhas assimetrias e de um comércio
injusto com os países pobres e em desenvolvimento. Não por acaso, uma
das pautas brasileiras de destaque, tanto no plano interno como externo, é
o movimento de reconhecer, examinar e efetivar políticas para a chamada
“Economia da Cultura”. São estas circunstâncias novas que fazem da agenda
cultural uma agenda tão importante para o Brasil e para o mundo.
Nesse concerto, somos nós, o Brasil, uma voz cada dia mais integrada
ao destino regional dos povos sul-americanos, uma voz que reconheceu sua
enorme dívida e irmandade cultural com a África. Recentemente, como forma
de ampliar laços no plano cultural, realizamos a II CIAD Conferência de
Intelectuais da África e Diáspora, em Salvador. Nos últimos quatro anos, o
Ministério da Cultura do Brasil assumiu sua responsabilidade com o plano
regional e internacional e, também, com a promoção da cultura brasileira no
mundo, tanto simbólica como economicamente. Um bom exemplo disso é
o Ano do Brasil na França, que envolveu dezenas de milhões de pessoas em
suas atividades, assim como a Copa da Cultura, que aproximou a diplomacia
cultural da diplomacia das chuteiras. Em muitas direções, temos assumido
uma responsabilidade de provocar esse bem-vindo deslocamento de agenda: a
cultura como forma modicadora de uma velha forma de desenvolvimento.
É importante lembrar o papel desempenhado pelo Brasil, ao lado de
muitos outros países, na formação de uma grande base para a aprovação
da Convenção da Unesco sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões
Culturais, em 2005. Nos próximos anos, essa convenção recém-raticada pelo
Gilberto Gil
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Parlamento Brasileiro poderá signicar para a agenda cultural do mundo
o que o Protocolo de Kyoto representa hoje para o avanço concreto das
políticas de meio ambiente: não apenas uma plataforma efetiva de princípios
fundamentais, mas um acordo sobre um novo papel do Estado no que diz
respeito à cultura e à diversidade.
O Brasil tem importante papel porque a formação brasileira, apesar das
enormes desigualdades ainda persistentes, é um feliz exemplo de diversidade e
encontro cultural. Somos mestiços, produto de populações e tradições diversas e
vivas que ocupam um vasto terririo, que compõem, juntas, um amplo imaginário.
Praticamos, a olhos externos, um modo singular de viver e estar no mundo. Há
uma mensagem universal de paz, convívio e enorme criatividade explícita na forma
como essa população abriu seus poros e assimilou os valores de outros países e
civilizações, na forma como essa população lida com seus costumes, etnias, raças
e credos. Essa mensagem de paz é um patrimônio do povo brasileiro. Nesse
sentido, nos últimos quatro anos de geso, buscamos atuar na promão da cultura
brasileira como portadora de conteúdos singulares e valores universais.
O que a Convenção nos aponta é que esses valores culturais, tangíveis e
intangíveis, vêm sendo cada vez mais desaados pelo processo da globalização.
A carga simbólica dos bens culturais revela a natureza especial desses bens
e serviços porque, anal, eles expressam o acúmulo de centenas de anos, o
investimento de diversas gerações que depositaram em suas expressões o
próprio signicado da existência humana. O alto valor agregado da cultura
manifesto no interesse de corporações pelos saberes farmacológicos e
tecnologias dos indígenas sul-americanos, na perícia das mãos de nossos
artesãos ou, ainda, na reprodução virótica das músicas e danças do Brasil
ganhou a consciência de muitos e, especialmente, do Estado e seus órgãos
responsáveis pela agenda da cultura.
É por tal razão que o governo Lula e o Ministério da Cultura vêm
deslocando as políticas culturais para o centro do debate do desenvolvimento
nacional e das relões de intermbio do Brasil com outros países. Entendemos
as políticas de cultura, ao lado das políticas do meio ambiente, como dimensões
que qualicam e, em certos casos, condicionam o desenvolvimento econômico
e sustentável. São políticas que promovem o equilíbrio entre a produção
econômica e o bem-estar da sociedade.
Cultura, diversidade e acesso
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A cultura possui uma inegável dimensão econômica. No ano de 2003,
as atividades culturais foram responsáveis pela movimentação de 7% do PIB
mundial
1
. As suas atividades não estão concentradas apenas nas expressões
simbólicas já reconhecidas como as cadeias produtivas da música, do
audiovisual e do livro, hoje mais evidentes mas em dezenas de externalidades,
em conteúdos que, apoiados na convergência tecnológica hoje em curso,
deslocam-se entre os meios de comunicação tradicionais e contemporâneos.
São conteúdos velozes, dinâmicos e intempestivos que hoje agregam valor a
sandálias, dribles e tecidos. O advento da tecnologia digital somente aguça essas
possibilidades de acesso, trabalho e intercâmbio que a cultura carrega consigo.
Também potencializa novas formas de circulação monetária e novos modelos
econômicos que, num futuro próximo, estarão plenamente sedimentados.
O desao aqui é compreender a dimeno econômica crescente da cultura
e encontrar formas de cooperação que permitam que as populações mais
pobres detentoras de saber, cultura e identidade, usufruam plenamente dos
benefícios e riquezas da propriedade intelectual. É preciso encontrar formas
e meios de permitir que os saberes cultivados, formatados e industrializados
possam circular e serem acessados, equilibrando direitos autorais, direitos de
investidores e direitos de acesso.
Contudo, essas características contemporâneas da cultura adquirem
outras feições quando encaradas no contexto dos países em desenvolvimento,
como é o caso da América do Sul. Nesse viés, a política cultural internacional
transforma-se em um dos principais elementos de enfrentamento de assimetrias
internacionais que, no limite, resultam em modelos hegemônicos, em formas
centralizadas de comunicação social, em formas concentradoras de gestão
de conteúdo e em indústrias que precarizam mão de obra e poluem o meio
ambiente. Trata-se, enm, de uma luta constante para que a democracia se
realize num plano mais efetivamente cultural e abrigue melhores condições de
acesso a conteúdos culturais e modelos de proteção da diversidade cultural.
Vivemos um momento histórico privilegiado. As mudanças das formas
de produção, signicação e distribuição dos conteúdos culturais apontam
para um espaço novo e dinâmico das políticas culturais. A revolução digital
abre novas portas aos países em desenvolvimento. Trata-se de uma chance
1 BIRD (Banco Mundial).
Gilberto Gil
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
única de intervenção no modelo de globalização vigente, uma oportunidade
de praticarmos o júbilo da diversidade cultural.
A cultura possui um incrível potencial de produzir sedimentos que
ativam a mudança histórica. Em muitos casos, ela é o lugar onde a mudança
efetivamente se realiza. Mas sua atuão discreta e incisiva nos rumos
das relações internacionais, suas novas potencialidades econômicas e sua
atuação transversal ainda padecem de um grande desconhecimento e até
desconança das burocracias públicas tradicionais. É hora de atentarmos
à força contemporânea da cultura, à força de modernizar agendas e atualizar
discussões públicas, de promover paz, prazer e conhecimento mútuo – para
o bem dos países em desenvolvimento, para o bem da América do Sul.
Do plano doméstico ao internacional
Nos primeiros quatro anos do Governo Lula, tentamos orientar as
políticas públicas de cultura no Brasil a partir de três diretrizes conceituais. A
cultura foi compreendida em suas dimensões simlicas, econômicas e cidadãs.
Tal conceituação representa uma tentativa de organizar o papel do Estado e
reconhecer a abrangência dos fenômenos culturais no mundo contemporâneo.
Representa uma forma de traduzir esses desaos, políticos e simbólicos, em
ações públicas efetivas.
O Mercosul cultural abriu uma nova frente de possibilidades. Um dos seus
principais eixos decorre, justamente, da ênfase dada ao Intercâmbio de Políticas
Nacionais de Cultura dos países membros do Mercosul. Focamos, portanto, na
interação de políticas estatais e programas voltados aos fenômenos culturais da
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai
e Venezuela.
Essa troca é extremamente salutar, pois potencializa nosso patrimônio
comum (como o solo arqueológico) e as nossas similaridades históricas e
culturais, além de incentivar o aprendizado mútuo de programas e mecanismos
que cunharam respostas consistentes e importantes para a complexidade dos
fenômenos culturais que nossos países abrigam hoje em dia.
O intercâmbio, no entanto, não deve estar restrito às políticas imple-
mentadas pelos Estados. É preciso considerar as manifestações culturais que
Cultura, diversidade e acesso
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
estão circunscritas, ou altamente inuenciadas, pelas dinâmicas de distribuição
das indústrias culturais. Dados da Unesco indicam que, no ano de 2002, os
Estados Unidos, Reino Unido e China, sozinhos, foram responsáveis por 40%
da circulação de mercadorias culturais no mundo.
2
Outra conseqüência das
assimetrias internacionais no campo da cultura é a importância assumida pela
língua inglesa, que se torna a grande intermediária dos contatos entre culturas
de outros idiomas. A maior parte das trocas culturais entre as diferentes regiões
“periféricas” do globo é controlada pelo centro do sistema, concentrado no
eixo Estados Unidos-Europa-Japão. As comunicações de massa, que consti-
tuem hoje um espaço fundamental na esfera pública de expressão, debate e
formação de pensamento, estão cada vez mais absorvidas por grandes con-
glomerados transnacionais que oligopolizam a produção e distribuição dos
bens culturais massivos. Existe um incrível potencial de interação entre as mais
diversas culturas do mundo, mas esse potencial é arrefecido pelas lógicas de
distribuição das mercadorias culturais.
É nessa seara que ocorre um encontro entre acesso, intercâmbio e
diversidade. A posição brasileira diante desse novo cenário deve se orientar pelo
exercício da pluralidade, contra a imposição de uma cultura única, ou da cultura
transformada em simples mercadoria. Isso implica na defesa e na promoção
tanto da diversidade cultural brasileira, no interior e exterior, quanto do acesso
a outras culturas e a trocas com nossos vizinhos da América do Sul.
Diversidade das expressões culturais, propriedade inte-
lectual e desenvolvimento
A implementação da Convenção da Unesco sobre a Promoção e Proteção da
Diversidade das Expressões Culturais representa um novo marco no ordenamento
jurídico internacional. Ela procura estabelecer um sistema internacional de trocas
de bens e serviços culturais mais equilibrado, assegurando o direito soberano
dos Estados de implementarem poticas culturais de proteção e promoção de
sua diversidade cultural e de garantia de acesso à diversidade cultural de todo
o mundo, por meio da implementação de uma rie de políticas regularias,
por exemplo. Essa convenção propicia a criação de um circuito de trocas sul-
2 International Flows of Selected Goods and Services, 1994-2003. UNESCO, 2005
Gilberto Gil
55
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
sul de bens e serviços culturais, criando a possibilidade de acesso, consumo e
intercâmbio da produção cultural entre os países em desenvolvimento, quebrando
eventuais hegemonias de segmentos do mercado cultural.
Outra frente internacional que o Ministério da Cultura do Brasil prioriza é a
participação na Rede Internacional de Políticas Culturais (RIPC), uma rede informal
de ministros da cultura de todo o mundo que se reúnem anualmente e que, talvez,
tenha sido a grande mola propulsora da aprovação da convenção na Unesco.
Em 2006, quando fomos antriões da reuno anual, escolhemos o tema
Acesso à Cultura, Direitos Autorais e Novas Tecnologias: Desaos em Evolução
à Diversidade Cultural” para reetir sobre duas de nossas principais preocupações
políticas: direitos autorais e acesso à cultura. Nossa principal concluo do estudo
foi a de que os direitos autorais podem representar um obsculo para o acesso à
cultura, principalmente frente às novas tecnologias, com conseências evidentes
para a diversidade cultural. Tal fato pode ser explicado pela crescente ampliação
do alcance e do escopo das leis e dos tratados que regulam o setor em todo o
mundo nas últimas cadas, fazendo com que rios países em desenvolvimento
venham contraindo obrigações muito restritivas em matéria de propriedade
intelectual, mesmo se não dispõem de infra-estrutura e capacidade institucional
necessárias à assimilação de novas regras.
Temos hoje um sistema de Propriedade Intelectual totalmente discordante
das modernas tendências tecnológicas, econômicas e sociais. Um sistema que
transforma a Propriedade Intelectual e, dentro dela, os direitos autorais, num
m em si mesmo.
Nosso encontro da RIPC em 2006 demonstrou que o problema com
os direitos autorais é mais grave para os países em desenvolvimento, uma vez
que são nesses países que as leis autorais são mais restritivas, seja pela maior
vulnerabilidade aos lobbies das grandes corporações transnacionais da indústria
cultural, seja pela ausência, nesses países, de organizações da sociedade civil
que defendam os interesses dos usuários de obras protegidas e o interesse
público, em geral, a exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos.
O Ministério da Cultura do Brasil também elaborou, em estreita parceria
com o governo argentino, a Agenda para o Desenvolvimento. Nossa preocupação
foi incorporar os temas relativos aos direitos autorais no estabelecimento de
Cultura, diversidade e acesso
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
um programa voltado ao desenvolvimento na OMPI (Organização Mundial
da Propriedade Intelectual). Dessa forma, defendemos um domínio público
robusto, com um efetivo respeito às limitações e exceções aos direitos autorais,
assim como à promoção de formas alternativas de licenciamento de obras,
como o Software Livre, o Copyleft e o Creative Commons.
As discussões na OMPI sobre esse tema continuam a ocorrer, com a
participação ativa do “Grupo dos Amigos do Desenvolvimento”, bloco de
países em desenvolvimento liderado por Argentina e Brasil em oposição ao
grupo dos países desenvolvidos. A depender dos resultados das discussões,
os países em desenvolvimento poderão contar, na OMPI, com um programa
onde a Propriedade Intelectual não seja um m em si mesmo e sim uma
ferramenta para o desenvolvimento, onde os países tenham espaço para a
implementação de políticas públicas que garantam à sua população o acesso
à cultura, ao conhecimento e à informação, bem como ao uxo internacional
dos ativos protegidos por Propriedade Intelectual de forma mais justa e menos
penosa ao mundo em desenvolvimento.
Um outro tema relacionado à Propriedade Intelectual que pretendemos
desenvolver nos próximos meses e anos – caro a todos os países da América
do Sul é o da Proteção dos Conhecimentos e Expressões Culturais Tradicionais. Existe
um comitê especializado sobre o tema na OMPI, cujos trabalhos têm deixado
muito a desejar. Pensamos que é fundamental que se chegue a algum tipo de
proteção internacional de tais ativos. Essa medida poderia vir a beneciar,
principalmente, países em desenvolvimento e menos desenvolvidos e, dentro
deles, suas populações tradicionais, que normalmente possuem grandes
cancias econômicas e sociais embora detenham um rico patrimônio cultural.
Torna-se importante uma agenda para a nossa região que inclua a proteção
dos Conhecimentos e Expressões Culturais Tradicionais como uma fonte de
renda econômica, digna e justa, para nossas populações.
Paz, cultura e a atual crise do multilateralismo
Meio século depois do m da Segunda Guerra Mundial, a agenda da
cultura volta a se apresentar no mundo pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro
como um elemento fundamental para a construção da paz entre os povos. O
Gilberto Gil
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
discurso do aparente “colapso simbólico”, referido às novas formas de terror
e intransigência, leva-nos novamente à reexão coletiva acerca do futuro, bem
como à necessidade de desfazer sentimentos belicosos, fundamentalistas e
igualmente etnocêntricos que retornam para assombrar a humanidade.
Assim como foi preciso erguer um novo organismo internacional no
pós-guerra, hoje cresce o consenso de que o Sistema das Nações Unidas carece
de uma reforma profunda para se fortalecer e se adaptar aos novos tempos,
tornando-se ainda mais plural e representativo. Não se trata aqui de apoiar
apenas uma reforma no Conselho de Segurança ou na Assembléia Geral,
instituições políticas mais importantes da ONU, mas de praticar em todas as
nossas relações essa agenda da centralidade da cultura para a democracia, a
paz e o desenvolvimento.
A Convenção da Unesco certamente será um instrumento fundamental para
a governança global no século XXI, mas precisamos ir além e aprofundar
leituras nacionais e regionais dessa convenção. Ela arma, por exemplo, o valor
da diversidade cultural num plano ainda mais amplo e global. Ao fazer isso,
enfrenta o discurso legitimador de conitos e até daquela forma de guerra que,
absurdamente, ainda se pela noção de choque de civilizações conitos
culturais que seriam a causa maior da indústria bélica e das intervenções
unilaterais. A tese de que a cultura está na nese dos conitos contemporâneos
tem o propósito de desviar as causas reais das assimetrias que marcam o destino
de multidões. O destino a formas restritivas de propriedade intelectual que
limitam a tecnologia e os direitos sociais e culturais da população.
Por tudo isso, a noção de diversidade é ampla e o instrumento da
conveão deve ir além da perspectiva de “protão”. Ela autoriza os países a
promover a cultura como elemento central da sua estratégia de desenvolvimento.
Isso signica, por exemplo, que rodovias e portos precisam ser construídos e
modernizados sob a ótica pública, pois são as populações a rao de ser dessas
estruturas, o elas o ponto de chegada e partida dessas estratégias. As populações
o podem ser suprimidas das análises de custo, nem das políticas de Estado.
Se tomarmos a restauração de centros históricos, por exemplo, desconsiderar
as populações envolvidas signicaria tamm desconsiderar todo o valor dos
centros históricos, esvaziar a vida e a dinâmica social desses centros, as feiras e
festas, que são o motivo profundo das migrações tusticas no mundo atual. Foi
Cultura, diversidade e acesso
58
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
o que em certo momento aconteceu na cidade de Salvador, no estado da
Bahia, quando resolveram tirar a população do Pelourinho, no Centro Hisrico
da cidade, para os trabalhos de restauração. Tal decio teve que ser enfrentada
a duras penas por todos os que ainda compreendiam que o valor da cidade está
em suas comunidades – e não exclusivamente em suas estruturas.
Do ponto de vista estritamente ecomico, uma visão realista ou pragmática
deixa de perceber que atualmente a economia da cultura é uma das que mais se
expandem no capitalismo globalizado, crescendo a um ritmo superior à evolução
do PIB mundial. A economia criativa concorre com a indústria da guerra nos
Estados Unidos, aparece como uma das mais signicativas na Uno Euroia
e mostra um forte desempenho em países menos desenvolvidos, como o Brasil.
A cultura é o setor da economia que mais cresce no mundo, pois gera, em dia,
melhores salários, mais empregos e, aindao que considero mais importante
– inclusão social com cidadania plena.
A idéia de cultura como direito, economia, política e identidade, espreitada
nas últimas décadas, deve mais do que nunca compor o ideário subjacente às
propostas de reforma das instituições internacionais. Em vez de choque entre
civilizações, a cultura deve ser vista como o barro exível das relações globais,
capaz de unir pela diversidade, distintas comunidades sociais, nações e, mesmo,
hemisférios inteiros.
A crise do multilateralismo não poderá ser superada sem o m de qualquer
e toda pretensão hegemônica. Hegemonia, se for a da diversidade. Se, por
um lado, versões unilateralistas do mundo contemporâneo servem apenas para
empobrecê-lo e ameaçá-lo, por outro, a fragmentação das relações internacionais
vericada nos últimos anos como fruto desse unilateralismo também reforça
o isolamento das culturas, impedindo que o intermbio cultural se coadune
com as amplas oportunidades abertas pelas novas tecnologias.
O Minisrio da Cultura do Brasil trabalha para restaurar o multilateralismo
em todas as suas dimensões e signicados. Não somente a face institucional e
decisória, mas o próprio espírito de coabitação ao multilateralismo movem as
ações internacionais do governo brasileiro. A concepção multilateral combina
com a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, assim
como o equilíbrio entre o respeito à propriedade intelectual e o acesso menos
assimétrico à cultura em suas mais diversas modalidades e vias tecnológicas.
Gilberto Gil
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Os laços históricos, culturais e mesmo geográcos nos impelem a combinar
nosso universalismo com preocupações de ordem mais local. Fortalecem,
em termos regionais, nossos nculos com a América do Sul e com os países
africanos e de língua portuguesa. Com os países sul-americanos podemos
constituir, nalmente, um espaço multilateral de paz e solidariedade, sobretudo
se comparado com outras regiões em situações econômicas semelhantes, com
aqueles que falam nosso idioma. Podemos também fortalecer nossa inserção
cultural no mundo ao mesmo tempo em que nos reconhecemos em nossa
própria identidade lingüística.
Da América do Sul e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa,
certamente partimos de bases mais sólidas para enfrentar, globalmente, os
desaos do mundo contemporâneo com iniciativas como o Mercosul Cultural,
a Recam (Rede Especializada de Cinema e Audiovisual do Mercosul), a CASA
Cultural da Comunidade Sul-Americana de Nações, a Comiso Interamericana
de Cultura da OEA e a Conferência de Intelectuais da África e Diáspora. No
entanto, a política de promoção de uma cultura de paz e humanista, seja em
nível local, regional ou global, deve reconhecer como ponto de partida todas as
diculdades existentes. A história é marcada por conitos. Não nos enganemos.
Mas a guerra tampouco é uma verdade inexorável quando a cultura de paz
deixa o campo da retórica e inuencia verdadeiramente as grandes decisões.
A cultura como agenda
Por m, um pequeno retrospecto. Desde o m da Segunda Guerra
Mundial, a cultura entrou na pauta internacional como um elemento impres-
cindível ao convívio harmonioso e pacíco entre os Estados, povos e nações.
A imagem devastadora da bomba atômica e do Holocausto levou homens e
mulheres das mais distintas origens culturais à reexão sobre a necessidade
de uma nova pactuação mundial.
É nesse contexto, no qual as questões culturais foram as principais nicas
do debate político, que emerge a moderna concepção dos órgãos multilaterais
consubstanciada no Sistema ONU. Paz e cultura, nessas caractesticas
históricas, tornaram-se forças e fenômenos complementares. Como pensar a
paz, anal, senão pelo convívio cultural, harmônico e equilibrado entre povos
e nações? Como pensar um novo mapeamento geopolítico, teoricamente
Cultura, diversidade e acesso
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
multilateral, sem reconhecer o direito a diferenças culturais e às formas distintas
de organizar a vida no plano simbólico?
Não por acaso, a Unesco, pouco após a sua fundação, convidou um
grupo de intelectuais renomados para elaborarem uma série de reexões com
o objetivo de revisar cienticamente as teorias racistas que singularizaram a
primeira metade do século XX
3
. É nesse contexto que o antropólogo Claude
Lévi-Strauss argumenta que a diversidade cultural é o principal elemento
fomentador do desenvolvimento humano.
Lévi-Strauss lançou uma das primeiras sementes teóricas da Convenção sobre
a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural da Unesco que foi raticada em mais
de três dezenas de países, no ano de 2006. Ele realçou a riqueza propiciada pela
inevitável interação entre as culturas.
Essa nova concepção não emergiu como um debate apenas teórico. Ele
despertou por meio da luta pelos movimentos de independência e descolonização,
no contexto s-colonial, por meio de poticas armativas de nero, grupos
e etnias – além das inúmeras searas abertas pelo multiculturalismo.
Nesses sessenta anos, portanto, a cultura passou a ser armada e praticada
como um direito, que está sendo aprofundado agora, num cenário ainda mais demo-
crático. Um cenário que parece demandar cada vez mais a universalização do direito
à cultura. Os Estados estariam aptos a garantir esse direito aos cidadãos? Que novas
atualizações são necessárias para que a diversidade cultural seja um ponto de partida
das formas atuais de desenvolvimento? Como as instituições nacionais e globais que
nanciam o desenvolvimento podem incorporar a cultura como diretriz assim
como, no passado, incorporou-se o meio ambiente? Como a tecnologia social que
os povos desenvolveram pode ser potencializada, sem tutela e autoritarismo?
Estamos hoje, como sessenta anos, diante de um grande desao e
uma enorme perspectiva de reposicionamentos, com a oportunidade de
aprofundar o marco da presença da cultura não apenas no debate mundial,
como adereço do desenvolvimento, mas como fator estruturante e regulador
das relações sociais e do próprio projeto de desenvolvimento de nossos países.
A sociedade avançou, as culturas avançaram – a agenda precisa avançar.
DEP
3 Raça e Ciência Vol. 1. UNESCO (Organizadora). Editora Perspectiva, São Paulo, 1960.
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
61
Ensaio sobre as
grandes mudanças da
política econômica
chilena e seus
principais legados
*
Osvaldo Sunkel**
1. Introdução
A
s escolas de pensamento econômico que influíram de maneira
determinante na política e na realidade econômica do Chile desde meados
do século passado foram basicamente quatro: o pensamento da CEPAL nas
décadas de 1950 e 1960, o pensamento socialista no nal dos anos 60 e início
dos 70, o pensamento neoliberal em sua versão mais ideologizada desde 1974
até o término da ditadura, e a partir de 1990 um híbrido entre o neoliberalismo
mais pragtico do nal do governo militar e um neo-estruturalismo incipiente,
* Agradeço a colaboração de Camilo Lagos
** Universidade do Chile
osunkel@manquehue.net
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
62
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
denominado “crescimento com eqüidade”, orientado para a recuperação de
uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico de longo prazo.
Neste trabalho pretendo concentrar-me em algumas das expressões
concretas em que se traduz em m de contas a evolução do pensamento
econômico através das políticas econômicas respectivas. o me escapa,
naturalmente, que não existe aqui uma relação unidirecional do pensamento
à prática da política econômica e dali à realidade histórica concreta. Teoria,
política e realidade interagem e se inuenciam e modicam mutuamente, como
ca evidente sobretudo nos períodos em que mudam radicalmente de sinal.
Assim, por exemplo, a Grande Depressão dos anos 30 com sua seqüela de
crises nanceiras, do corcio internacional e de desemprego maciço generalizado,
constituiu a gênese do pensamento e das políticas keynesianas que prevaleceram
até a cada de 1970. Inversamente, a desaceleração do equilíbrio econômico
desde o m da cada de 1960, os crescentes desequilíbrios scais e pressões
inacionárias e a inecácia das políticas scais na década do stop-go dos anos 70,
além da crise do petróleo e da prodigiosa expansão do sistema nanceiro privado
internacional, contribram poderosamente para o deslocamento do keynesianismo
e o renascimento do liberalismo do século XIX, ou neoliberalismo.
A evolução histórica da política econômica no Chile no último culo foi-se
caracterizando por modicões substanciais do papel do Estado, do mercado,
do setor privado, das políticas sociais, do comércio exterior e das relações
nanceiras internacionais, entre outras. Neste ensaio, em cuja natureza preliminar
me permito insistir, proponho-me três tarefas. Por um lado, tratarei de mostrar
como essas profundas modicações da política ecomica tiveram como uma
de suas origens mudanças profundas em seu contexto sociopolítico interno. Por
outra, destacarei também o importante papel desempenhado nas modicações
mais fundamentais pelas grandes mudanças do contexto internacional. Por
último, assinalarei algumas das conseqüências de longo prazo mais importantes
das diversas poticas ecomicas, que foram determinantes na acumulação de
capital ecomico, social e humano nos principais peodos de desenvolvimento
da economia chilena, e que se constitram dessa maneira em legados positivos
ou negativos para os períodos subseqüentes. Em outras palavras, sustento a tese
de que embora se tenham produzido grandes mudanças na potica ecomica,
esta não opera no vazio e sim sobre a base de realidades hisricas herdadas,
acumuladas em períodos anteriores.
Osvaldo Sunkel
63
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Interessa-me especialmente mostrar que, em contraste com o discurso
neoliberal ortodoxo prevalecente, que teceu uma lenda negra a respeito da
etapa estatista de meados do século passado, foi durante esse período que
se lançaram muitos dos alicerces básicos de uma economia moderna, em
termos de acumulação de capital econômico, social e humano, que facilitaram
enormemente o estabelecimento do modelo neoliberal na fase histórica
seguinte. Por essa razão dedicar-se-á neste ensaio uma seção relativamente
extensa e detalhada ao mencionado período.
Em relação com a fase mais recente de transição entre o neoliberalismo
fundamentalista inicial do governo militar em direção a um neoliberalismo
mais pragmático primeiro, e a um conjunto de políticas de natureza
crescentemente neo-estruturalista dos governos democráticos, interessa-me
destacar especialmente duas coisas: por um lado, que ao lado de suas graves e
reconhecidas deciências, o neoliberalismo deixou também um conjunto de
legados muito positivos; por outro lado, no entanto, que as poticas econômicas
e sociais dos governos da Concertação inovaram substancialmente em relação
ao programa neoliberal clássico, constituindo-se a meu ver cada vez mais em
uma alternativa de caráter neo-estruturalista.
2. Três hipóteses básicas
Seria possível organizar uma apreciação das tendências e fatos estilizados
da evolução das políticas econômicas do Chile durante o último século em
torno de três hipóteses gerais principais e inter-relacionadas.
A primeira hipótese se refere a que, em última análise, desde o
surgimento da economia capitalista internacional no século XVIII, os debates
de política econômica de cada país se alinham sistematicamente em uma de
duas vertentes principais: uma em que prevalece uma visão que atribui papel
predominante ao mercado e à empresa privada, que mais adiante chamarei
“mercadocêntrica”, e outra que empresta papel de destaque ao Estado, a
que chamarei “estadocêntrica”. Cada modicação signicativa da política
econômica se inscreve, em última análise, ou sob o signo de outorgar maior
amplitude ao jogo de forças do mercado ou, pelo contrário, sob o signo de
uma maior intervenção estatal destinada a regular ou substituir em maior ou
menor medida as forças do mercado.
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
É claro que, na prática histórica, Estado e mercadooo excludentes e
sim complementares, ambos estão sempre presentes, inclusive nas formas mais
extremadas de economia de mercado ou de economia planicada. Não existe, o
existiu e nem poderá jamais existir uma economia de mercado sem um Estado que
estabeleça as regras do jogo do livre intercâmbio e as faça serem cumpridas, nos
casos em que o mercado funciona razoavelmente, e regule o dos bens públicos e
semipúblicos, nos casos em que o funciona. Por outro lado, ainda na planicação
socialista mais radical e centralizada sempre haverá mercado, embora este esteja
formalmente proibido, e nesse caso se exprimirá como mercado negro.
Assim, Estado e mercado se combinaram em doses diferentes segundo
diferentes períodos hisricos, de tal sorte que a política ecomica tem tendido
a favorecer um maior predomínio do Estado sobre o mercado nos períodos
“estadocêntricos”, enquanto que ao contrário, tem tendido a ampliar a função
dos mercados e da empresa privada nos períodos “mercadocêntricos”. Essa
referência histórica é importante para apreciar a variabilidade dos arranjos
institucionais ao longo do tempo em uma perspectiva histórica prolongada.
No caso chileno, desde os ns do culo XIX até o início da cada de
1930 prevaleceu um modelo “mercadocêntrico”. Posteriormente, desde a cada
de 1940 até o início da de 1970, instalou-se um modelo “estadontrico”, que
culminou em uma tentativa de instaurar uma economia socialista no governo da
Unidade Popular. Posteriormente, em meados de 1970 estabeleceu-se novamente
um modelo “mercadontrico”, caracterizado em sua primeira etapa por um
neoliberalismo radical, atenuado na segunda fase do governo militar e que
experimentou diversas revies e modicões desde o retorno da democracia
em 1990. A substituição de um modelo por outro foi um processo traumático de
profunda mudaa estrutural e institucional que derivou, entre outras coisas, de
uma mudança signicativa na estrutura do poder político interno. Essa mudança,
pom, não foi inteiramente independente; pelo contrio, sofreu tamm forte
inuência das transformações ocorridas no âmbito internacional. Por outro lado,
junto à drástica mudança das políticas econômicas, houve tamm importantes
continuidades na infra-estrutura sócio-econômica acumulada historicamente,
legados que constituirão vantagens ou inconvenientes para a nova etapa.
Por isso, minha segunda hipótese é que o grau de predomínio do Estado
ou do mercado no vir a ser histórico é decisivamente condicionado pelo grau de
integração ou desintegração dos mercados comerciais e nanceiros internacionais,
Osvaldo Sunkel
65
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
particularmente no caso de economias pequenas altamente dependentes da
economia mundial, como é o caso da economia chilena. Nesse aspecto, é provel
que existam diferenças importantes entre os casos do Brasil e do Chile.
Além disso, é necessário relacionar os arranjos institucionais em matéria
comercial e nanceira com as estruturas econômicas, sociais e de poder e com
as políticas econômicas. Em particular, é importante examinar a transição
entre um período e o outro, porque é nessa ocasião que mudam as estruturas
nanceiras e de poder político, e com elas as estratégias de desenvolvimento,
e é também quando orescem os debates sobre teoria e política econômica.
Por último, segundo minha terceira hipótese, importa destacar que
não obstante a profundidade das mudanças que possam ocorrer entre um
período e outro de predomínio de uma determinada política econômica,
permanecem importantes legados, como foi indicado, como herança do
período precedente, especialmente de tipo institucional e capital acumulado,
que exercerão signicativa inuência sobre o desenvolvimento posterior.
3. O contexto internacional de meados do século XX
Nesta seção desejo desenvolver um pouco mais a idéia de que existe
uma forte relação entre o grau de integração ou desintegração da economia
internacional e em particular dos mercados nanceiros internacionais, de um
lado, e o grau de protecionismo ou abertura das economias nacionais, suas
orientações em matéria de atribuição de recursos, suas opções entre consumo e
investimento, a conguração de suas estruturas de poder, o grau de intervenção
do Estado e a orientação da política econômica de outro; tudo isso se traduz
em reformulações teóricas e de política econômica.
Durante o período que se chamou de desenvolvimento “para fora” e que
se estende desde meados do século XIX até 1930, havia uma estreita integração
econômica, comercial e nanceira internacional que se traduzia no predomínio da
libra esterlina, moeda fortemente sustentada tanto econômica quanto militarmente,
e se expressava em amplos e crescentes uxos internacionais de comércio, créditos,
investimentos e também migrarios. A essa conguração global do Império
Britânico e suas zonas de inuência, como a América Latina e certamente o Chile,
correspondiam em geral economias nacionais com Estados pequenos e beis,
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economias muito abertas e de escassa proteção, tanto nas economias centrais
quanto na periferia latino-americana. Foi a etapa domercadocentrismo liberal
do século XIX sob o predomínio do Império Britânico.
Isso levou a um período de atribuição de recursos em função das
vantagens comparativas. Como as vantagens comparativas adquiridas pelos
países centrais ao longo do processo da Revolução Industrial se encontravam
principalmente nas manufaturas, suas exportações se especializaram em
produtos fabris, e como os países da periferia não haviam adquirido essas
vantagens, especializaram-se na exportação de produtos derivados diretamente
de seus abundantes recursos naturais.
A essa situação estrutural correspondia uma certa organização do poder
político: os setores exportadores (manufatureiros no centro, produtores de
marias primas na periferia), os setores importadores (de matérias primas no
centro e de manufaturas na periferia) os grandes comerciantes e sobretudo os
setores nanceiros, constitram uma coalio dominante de caráter internacional
ou transnacional. Seus interesses de maximização do corcio e das naas
internacionais se traduzem numa intervenção do Estado na economia
relativamente escassa, exceto nas esferas em que o Estado traz serviços políticos
e de infra-estrutura de transportes e comunicões necessários para o modelo
do crescimento para fora e para impor regras do jogo adequadas. Predominam
as políticas de laissez-faire, de livre câmbio e a racionalização dessa conguração
histórica em termos teóricos e ideogicos, isto é, a teoria liberal clássica da
atribuão de recursos por meio do mercado, tanto em nível nacional quanto
internacional (teoria estática das vantagens comparativas).
Aquela fase do desenvolvimento capitalista terminou com a crise de 1930,
que junto com a Segunda Guerra Mundial deu lugar a uma série de profundos
reajustes. Desintegraram-se os mercados internacionais, desapareceram tanto
o mercado nanceiro internacional quanto os investimentos privados diretos e
somente se conservaram alguns uxos reduzidos de comércio. A crise generalizada
do comércio, das nanças e dos investimentos internacionais expressou-se em cada
país por meio de graves desequilíbrios em suas transações internacionais, em uma
forte depressão da atividade econômica e em profundas crises sociais e políticas.
Todos os países fecharam suas economias mediante medidas protecionistas no
âmbito comercial e nanceiro e estimularam a recuperação e crescimento da
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
economia e do emprego por meio do gasto blico e da ão deliberada do Estado.
Com isso, iniciou-se uma prolongada etapa “estadocêntrica”.
Neste ponto me interessa sublinhar de passagem algo que não tem
sido sucientemente destacado na literatura. Este protecionismo e ativismo
estatais ocorrem simultaneamente tanto nos países do centro quanto nos da periferia. A
substituição de importações não foi uma tentativa perversa de Prebisch e da
CEPAL, como pareceram acreditar alguns economistas de reduzida cultura
histórica; foi fundamentalmente o recurso utilizado pelos países centrais para
enfrentar suas próprias crises nanceiras e de comércio exterior, a recessão e
o desemprego. Foi o início de uma etapa “estadocêntrica” em todo o mundo,
que acabou gerando o Estado do Bem-Estar europeu, as políticas de pleno
emprego e desenvolvimento regional nos Estados Unidos, o nazismo e o
fascismo na Alemanha, Itália e outros países, seguidos posteriormente pelas
economias sociais de mercado dessas nações. Tudo isso coincidiu também
com a expansão do socialismo que havia sido instaurado na União Soviética
em 1917 e se ampliou posteriormente aos países da órbita soviética, assim
como o desenvolvimentismo estatista que se instalou em praticamente todo o
restante do mundo subdesenvolvido depois da Segunda Guerra Mundial.
Todos acorreram ao Estado para impulsionar, por meio do protecionismo,
o gasto social e o investimento público, a proteção social e a expansão do
emprego, assim como o crescimento e o desenvolvimento. Em especial,
procuraram proteger e fomentar o que antes importavam: os países centrais –
Estados Unidos e países europeus protegeram basicamente a agricultura, o
que originou um enorme conjunto de instituões estatais de apoio e fomento
agropecuário, que mais de meio século depois constitui ainda um grave empecilho
ao corcio internacional e ao desenvolvimento dos países periféricos. Não se
deve esquecer que a Europa manteve suas políticas protecionistas e de controles
até já bem avançada a cada de 1960, e que a proteção à agricultura ainda não foi
abandonada nem pela Comunidade Européia e nem pelos Estados Unidos.
Enquanto nos países industriais a Grande Depressão de 1930 levava às
mudanças mencionadas, no caso dos países latino-americanos, que no período
anterior haviam atingido certo grau de industrialização, como o Brasil e o
Chile, ela deu lugar à proteção da indústria manufatureira e marca o início da
fase de industrialização substitutiva. Produziu-se assim uma separação entre
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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o sistema interno de preços e o internacional, reetido numa modicação dos
preços relativos em detrimento dos produtos agrícolas e a favor dos industriais.
Isso induziu um reajuste na atribuição dos recursos produtivos: na periferia,
em direção ao desenvolvimento manufatureiro e no centro, em direção ao
desenvolvimento agrícola.
Esse processo não ocorreu automaticamente e sim por meio de uma
rearticulação, também em ambos os tipos de países, da coalizão hegemônica
de poder dentro das classes dirigentes. Esta, que se apoiava em exportadores,
importadores, comerciantes e nancistas, foi substituída, não sem conitos
políticos profundos e generalizados, por uma coalizão, intermediada pelo Estado,
de grupos médios, intelectuais, prossionais e setores operários organizados,
junto com setores empresariais que produziam para o mercado interno.
Trata-se das décadas de 30 a 70, caracterizadas em muitos países da
América Latina por governos social-democratas e/ou populistas, que apoiavam
uma ativa intervenção do Estado em uma série de campos mais além dos
tradicionais. Favorecia-se o desenvolvimento industrial e os investimentos em
infra-estrutura, propiciando certas reformas estruturais, como a agrária e a
redistribuição da renda por meio da ampliação dos gastos sociais e de políticas
públicas que favoreciam os setores médios e de menores rendimentos. A
modernização institucional e o planejamento aparecem como instrumentos
orientadores que interferiam e complementavam o mercado.
As teorias ecomicas prevalecentes se referiam basicamente ao
crescimento e às políticas de desenvolvimento, assim como à planicação. O
debate teórico orientava-se para uma critica da teoria econômica tradicional
neoclássica em função das necessidades de uma teoria dimica do crescimento
e desenvolvimento em países subdesenvolvidos e dependentes. Foi o período
de maior inuência do pensamento de Raul Prebisch e da CEPAL, baseado
em uma interpretação própria do subdesenvolvimento latino-americano e na
necessidade de políticas econômicas e sociais orientadas para a industrialização
e modernização ecomica e social e do correspondente instrumento
operacional de política econômica para implementá-las: o planejamento. De
fato, a CEPAL realizou naquela época em muitos países uma série de estudos
baseados nas técnicas de programão do desenvolvimento ecomico
desenvolvidas por uma equipe liderada por Celso Furtado.
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Esse pensamento teve enorme inuência na América Latina, especial-
mente no Brasil e no Chile e eventualmente em todo o mundo. Muito espe-
cialmente, porém, no caso chileno. A sede da CEPAL estava instalada em
Santiago e suas idéias inovadoras foram amplamente difundidas, tanto por
meio do relacionamento pessoal de seus funcionários com as elites intelectuais
e políticas do país quanto através dos cursos de desenvolvimento econômico
que a CEPAL começou a oferecer, e também devido à grande utilização e
difusão de suas publicações, especialmente pelos professores e estudantes das
faculdades de Economia e Sociologia da Universidade do Chile, assim como
pelos da Escolatina e FLACSO.
Enquanto isso ocorria no plano interno na maioria dos pses, e certamente
no Chile, o sistema econômico internacional procurava tamm ressurgir do
desastre de 1930 à base da ão dos Estados nacionais. Na cada seguinte o
corcio internacional se reanimou de maneira preria, mas os investimentos
privados, tanto diretos quanto nanceiros, desapareceram completamente. Em
troca, foram criadas algumas instituições públicas nacionais, como o Eximbank
nos Estados Unidos e instituões similares de nanciamento de exportações
em outros países desenvolvidos. Diante da desaparição do sistema nanceiro
privado internacional, depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, foi criado
adicionalmente um sistema nanceiro internacional de caráter público. Trata-se
das instituições estabelecidas pelos acordos de Bretton Woods, especialmente o
Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e posteriormente o GATT. A
essas instituições foram-se acrescentando posteriormente os bancos regionais de
desenvolvimento, como o BID, as instituões bilaterais e multilaterais de ajuda
nanceira e as agências estatais para concessão de créditos de exportação. Até
meados da cada de 1960 estava criado, desse modo, um sistema nanceiro
internacional de caráter público.
O que me interessa destacar é que tal mecanismo de nanciamento
implicava em critérios sociais de atribuição de recursos, posto que os recursos
nanceiros públicos internacionais passavam por esse sistema através da
medião do Estado, tanto no país doador quanto no receptor. Estabeleciam-se
critérios públicos de atribuição de recursos e promovia-se o planejamento, para
que apoiasse opções sociopolíticas tais como promover a industrialização, dotar
de capital social sico, instaurar reformas estruturais e modernizar a agricultura,
economizar divisas e dar emprego (recorde-se, por exemplo, a Aliança para o
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Progresso). Respondiam a critérios que os parlamentos dos países desenvolvidos
impunham a seus próprios Estados e a seus organismos de ajuda e nanciamento,
que eram negociados e adotados pelo Estado do país subdesenvolvido, na medida
em que também reetiam interesses nacionais de longo prazo.
4. Instauração, apogeu, decancia e crise do modelo
“estadocêntrico”
Voltando ao caso chileno e às mudanças mais importantes e
signicativas de política econômica que representaram a passagem do modelo
“mercadocêntrico” do século XIX ao modelo “estadocêntrico” inaugurado
com a crise da década de 1930, estes se referem ao controle do comércio
exterior e às mudanças internacionais assumidas pelo Banco Central, assim
como às medidas de política monetária e scal destinadas a enfrentar, entre
outros problemas, a crise externa, a queda das receitas públicas e o desemprego.
O Estado passou, assim, de agente relativamente passivo a muito ativo em
matéria de política econômica de curto prazo, isto é, em macroeconomia.
Não obstante, do ponto de vista do desenvolvimento econômico de
longo prazo, a inovação mais transcendental na política econômica foi sem
vida a adoção da idéia de planejamento do desenvolvimento, entendido como
atividade pública deliberada para conseguir mudanças profundas nas estruturas
econômicas e sociais tradicionais do Chile, especialmente a industrialização e
a modernização das estruturas produtivas, levando em conta as inter-relações
existentes entre os diversos setores e regiões, as nalidades sociais e os limitados
recursos disponíveis. O planejamento foi executado em uma instituição-chave
na história econômica do último século no Chile: a Corporación de Fomento de
la Producción (Corfo) estabelecida em abril de 1939. O Conselho dessa nova
instituição foi encarregado por lei de “formular um plano geral de fomento
da produção, com o objetivo de elevar o nível de vida da população por meio
da utilização dos recursos naturais do país, a redução dos custos de produção
e o melhoramento do balanço internacional de pagamentos; levando em
conta, na preparação do plano, que se mantenha equilíbrio adequado entre o
desenvolvimento da mineração, da agricultura, da indústria e do comércio, e
tratando de satisfazer às necessidades das diversas regiões do país”.
Osvaldo Sunkel
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A criação da Corfo e o nascimento do planejamento no Chile estão
intimamente relacionados com dois acontecimentos signicativos. O primeiro
foi o terremoto devastador ocorrido em janeiro de 1939, e o segundo o
terremoto político de novembro de 1938, que levou ao poder, pela primeira
vez, uma coalizão de partidos de centro-esquerda – a Frente Popular – em cujo
ideário tinham posição fundamental a industrialização, a modernização da
agricultura e as políticas sociais. A crise econômica externa e a reorganização
das estruturas do poder político interno foram a chave dessa mudança radical
da política econômica.
O abalo sísmico que devastou totalmente as regiões central e sul do
país, nas quais se concentra a maior parte da população e das atividades
econômicas, criou uma situação de emergência nacional de magnitude sem
precedentes. Essa situação teve de ser enfrentada por um governo novo, que
não apenas carecia de qualquer experncia administrativa, como também, dado
o liberalismo tradicional que caracterizava o aparelho administrativo chileno,
achava-se também impotente do ponto de vista institucional. Não existiam
os meios instrumentais necessários para proporcionar ajuda e reconstruir as
regiões devastadas. O próprio governo de encontrava em situação precária
para obter os fundos necessários a esse objetivo, devido ao débil e limitado
sistema impositivo então existente.
O papel importante e positivo desempenhado pela Corfo no
desenvolvimento do planejamento no Chile, assim como também suas
limitações, somente podem ser compreendidas à luz do terremoto político que
o acesso da Frente Popular ao poder signicou em 1938. Esse acontecimento
político, por sua vez, não é senão uma conseqüência de mudanças profundas
na economia e na sociedade, derivadas do processo de transformação estrutural
iniciado várias décadas antes e vigorosamente estimulado pelas conseqüências
da Grande Depressão Mundial para o Chile.
Até 1930, a dinâmica da vida econômica do Chile se baseava quase
totalmente na mineração, que produzia aproximadamente um terço da renda
nacional. Durante as últimas décadas do século XIX incorporaram-se à
economia do país os ricos depósitos de salitre das províncias do norte e pouco
antes da Primeira Guerra Mundial desenvolveu-se também uma moderna e
poderosa mineração de cobre. O setor exportador primário trouxe à economia
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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chilena a tecnologia moderna e as formas de organização empresarial que na
época predominavam na Europa e nos Estados Unidos, afetando profunda
e substancialmente alguns setores da estrutura sócio-econômica do país,
particularmente nas zonas urbanas e mineiras. Não obstante, esse processo teve
pouca repercussão sobre o restante das estruturas produtivas e sociais, as quais
continuaram operando à base de métodos tradicionais, com grandes excedentes
de mão de obra, baixa produtividade e formas primitivas de organização; esse
era o caso, particularmente, nas zonas rurais.
Com a expansão do comércio exterior, o Estado obteve importantes
receitas adicionais provenientes dessa fonte de recursos, fundos que foram
investidos na ampliação dos serviços públicos básicos e na construção de infra-
estrutura urbana e de transportes. Com o desenvolvimento dessas atividades
surgiram novos grupos de assalariados urbanos e de classe média, que vieram
juntar-se ao proletariado mineiro e aos setores médios que se agrupavam em
torno das atividades do comércio exterior. A própria indústria se desenvolveu
até certo ponto, estimulada pela demanda interna resultante do auge das
exportações mineiras e pela expansão das atividades do governo, assim como
pelo crescimento dos setores médios urbanos.
As mudanças na estrutura social tiveram repercussões importantes sobre
a vida política da nação. O desenvolvimento de um proletariado industrial
nas minas preparou o terreno para a criação e rápida expansão de agrupações
populares de esquerda, especialmente os partidos Socialista e Comunista. Por
outro lado, a expansão da classe média e grupos ans serviu para aumentar
as leiras da esquerda moderada e anticlerical, liada preponderantemente no
partido Radical. Essas novas e crescentes forças sociais foram diversicando
o espectro político-social do Chile e tiveram seu primeiro impacto importante
sobre a política do Estado durante os anos 20, quando juntaram forças para
apoiar a criação de um importante corpo de legislação social.
Do ponto de vista político, esses grupos e forças acabaram fortalecidos
com os efeitos catastrócos da Depressão Mundial sobre o Chile. A crise
produziu uma contração drástica do comércio exterior; a demanda externa de
importações do Chile declinou gravemente e a atividade mineira praticamente
se estancou, criando grande desemprego. A crise produziu também uma súbita
e substancial redução das reservas de moeda estrangeira e das receitas scais.
Osvaldo Sunkel
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Ao desemprego nas indústrias exportadoras seguiu-se crescente desemprego
nas cidades e uma rápida deterioração da situação política.
Além de contribuir de maneira fundamental para a aceleração das
mudanças na estrutura política, a crise teve também efeitos importantes para a
estrutura produtiva, que com o tempo induziram transformações substanciais
na economia do país. Essas transformações fortaleceram nos anos seguintes
a posição política dos partidos de centro e de esquerda nas eleições de 1938,
desempenhando também papel importante no processo de industrialização e
portanto nas funções da Corfo e do planejamento.
Esses foram os principais antecedentes sócio-políticos e econômicos do
primeiro período de planejamento no Chile, com a Corfo como organização
central de planicação no sentido técnico e também como instituição executiva
responsável pela implementação dos planos. A enorme quantidade de poder
econômico conada a essa nova agência do Estado somente pode ser explicada
pelas mudanças fundamentais que haviam ocorrido na estrutura econômica e
social. Essas mudanças trouxeram à baila novas forças políticas com diversos
matizes de ideologia socialista e uma classe média crescente, da qual saíram
os engenheiros, técnicos e especialistas que junto com os grupos empresariais
emergentes se dedicaram à industrialização e à exploração dos recursos naturais
do país, assim como à modernização da agricultura.
A estratégia de desenvolvimento adotada pela Corfo estava fortemente
condicionada por aquela experiência de dependência externa que frequentemente
submetia a economia nacional a graves desequilíbrios derivados de causas externas
incontroláveis. Daí a preferência por uma estratégia de desenvolvimento “para
dentro”, baseada numa utilização maior e mais racional dos recursos humanos e
naturais do país. Essa orientação acentuou-se ainda mais com a Segunda Guerra
Mundial, deagrada no exato momento em que a Corfo iniciava suas operações. O
conito internacional ilustrou mais uma vez a dependência do país em relação aos
acontecimentos externos. Embora os recursos nanceiros fossem relativamente
abundantes em conseqüência da expansão da exportação de minerais estratégicos,
houve grandes diculdades para obter no exterior a maquinaria, equipamento e
demais bens necessários à expansão da indústria manufatureira. A capacidade
industrial dos países desenvolvidos assim como seus meios de transporte se
achavam completamente absorvidos pelo esforço de guerra.
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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Em conseqüência desses acontecimentos externos e da mudança sócio-
política interna, a estratégia de desenvolvimento do novo governo se reduziu
a duas orientações básicas: política social e industrialização. A primeira se
manifestou especialmente em salários urbanos mais elevados e em programas
mais amplos de seguridade social, saúde, educação e moradia. Os efeitos foram
impressionantes e duradouros em matéria de seguridade social e saúde pública
e a partir daí foram criadas novas e poderosas instituições, especialmente o
Serviço Nacional de Saúde. A educação, especialmente secundária e técnica,
também recebeu novo impulso.
É importante compreender que a Corfo não precisou inventar uma
política industrial. Pelo contrário, como foi explicado anteriormente, o efeito
da Segunda Guerra Mundial sobre a economia chilena, assim como sobre
outras economias em situação semelhante, foi induzi-las um processo de
industrialização, estimulado pelas condições expansivas da economia e pela
escassez de bens manufaturados e insumos industriais importados. Na altura
de 1940 esse processo de industrialização se encontrava em marcha, de
maneira que a Corfo herdou uma orientação geral que de certa forma se
praticava, uma estratégia implícita, que precisava somente ser racionalizada e
levada adiante de maneira mais sistemática.
O processo de industrializão havia começado de fato durante oculo
anterior, recebendo impulso considerável e constante depois da Depressão
Mundial e sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial. A crise no balanço
de pagamentos e as diculdades de importação de mercadorias deram lugar a
um forte protecionismo, enquanto os governos mantinham ou aumentavam os
gastos públicos, am de enfrentar o desemprego. Dessa maneira estimulou-se
a instalação de instrias para fabricação de bens de consumo. Em economias
tradicionalmente especializadas na prodão de matérias primas exportáveis,
isso signicava necessariamente a importação de bens de capital e dos produtos
intermediários de que as novas fábricas precisavam. Dessa maneira, a importação
de bens de consumo nais ia sendo gradualmente substituída pela de maquinaria
e outros insumos destinados à prodão daqueles bens de consumo no país. Isso
provocava uma mudança na composição das importações, que constitui outra
face do processo de industrialização por substituição de importações.
O resultado necessário da rápida expansão do setor industrial foi o aumento
da demanda de combustíveis, matérias primas, metais básicos, produtos químicos,
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energia, transportes, comunicações e serviços nanceiros e comerciais. Eram
também necessários trabalhadores especializados, administradores e empresários
experientes. Am disso, devido ao forte esmulo à concentração urbana derivada
da industrializão, aumentavam de maneira aguda as necessidades de servos
urbanos: moradias, escolas, água potável, energia etrica, esgotos e sistemas de
comercialização e distribuição. O pido avanço do setor industrial e a urbanização
revelavam graves decncias, assim como a falta de exibilidade na oferta desses
serviços, originando tensões e desequilíbrios através de toda a economia. Esses
femenos foram descritos pela nova instituão de planejamento industrial
como “um grande mero de problemas concretos que caram sem solão
por muitos anos e que exigem solução imediata”.
Segundo sua lei orgânica, a primeira tarefa da Corfo era apresentar um
plano geral para o desenvolvimento da produção. Não foi, porém, possível
cumprir essa tarefa em prazo tão curto. Faltavam informações prévias, não havia
censos industriais nem agrícolas disponíveis, as idéias sobre as potencialidades
de nossos recursos naturais eram incompletas e desorganizadas e as estatísticas
eram decientes. Por conseguinte, não foi possível apresentar um plano geral
de desenvolvimento dentro de um período razoável de tempo. Decidiu-se então
preparar os chamados “planos de ação imediata”, isto é, esforços tendentes a
vencer as deciências e vazios mais notórios da estrutura produtiva.
Obviamente, as necessidades mais urgentemente sentidas foram as
relativas aos insumos industriais estragicos, tais como o o, os combustíveis e
a energia. Como esses produtos e serviços intermediários são usados em todas
as atividades do setor industrial, sua demanda começou a crescer com rapidez
sem precedentes, mostrando claramente que o desenvolvimento desses setores
industriais constituía a tarefa principal a ser executada pela Corfo. A escassez
desses produtos durante a Segunda Guerra Mundial e as graves diculdades que
isso ocasionava, a importância estratégica que lhes era atribuída no processo de
industrialização, assim como as preferências prossionais que os engenheiros
do estado-maior da Corfo lhes votavam, contribuíram para que o esforço de
planejamento se concentrasse nessas áreas.
Ao empreender tarefas de tal envergadura, a Corfo teve de iniciar também
uma rie de atividades de estudos e pesquisas básicas no campo dos recursos
naturais, especialmente uma análise sistemática do potencial hidráulico do país,
assim como de suas orestas, solos e recursos do subsolo. Um plano nacional de
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eletricidade baseado na utilização da energia hidrelétrica, um programa nacional
de aço, um plano para o desenvolvimento dos recursos petrolíferos e outro para
modernizar a agricultura foram os primeiros planos setoriais concretos formulados
e aprovados. Cada um deles foi levado a efeito por meio de uma empresa subsidiaria
da Corfo: respectivamente, a Empresa Nacional de Eletricidade (Endesa), a
Companhia de Aço do Pacíco (CAP) a Empresa Nacional de Petróleo (ENAP)
e a Indústria Açucareira Nacional (Iansa). Cabe mencionar aqui também, por
sua importância crítica no desenvolvimento posterior do setor agro-industrial
exportador, o Plano Chile-Califórnia desenvolvido pelas respectivas universidades
com nanciamento da Fundação Ford para investigar o potencial agroindustrial
do Vale Central do Chile.
O extenso programa de pesquisas empreendido pela Corfo teve como
resultado a primeira Geograa Econômica do Chile mais ou menos completa, moderna
e séria. A Corporação de Fomento também pode reclamar para si o mérito de
haver iniciado a pesquisa econômica moderna no país, especialmente em matéria
de renda nacional e contas nacionais. O primeiro resultado desse trabalho foi o
lculo da Renda Nacional do Chile. Tudo isso tinha importância fundamental,
que hoje é fácil subestimar, pois essa informação se encontra dispovel ate
mesmo em forma digital. Mas antes que a Corfo produzisse esses dados, o
era possível ter uma vio global do desenvolvimento da economia. Portanto,
tampouco havia a possibilidade de formular um plano coerente e equilibrado de
desenvolvimento, que pudesse levar em considerão as inter-relões entre os
diversos setores e atividades, assim como os equilíbrios macroeconômicos.
Dessa forma, a estratégia de planejamento seguida pela Corfo durante as
primeiras décadas de sua existência foi de crescimento setorial e desequilibrado,
tanto devido a seu condicionamento econômico e sócio-político quanto
à precariedade dos sistemas de informação econômica. Não obstante,
conseguiram-se resultados notáveis nas atividades para as quais estavam
dirigidos os principais esforços. A prova é a crucial importância daquelas
empresas e atividades para o desenvolvimento posterior, tanto assim que
a maior parte delas acabaram sendo privatizadas durante o regime militar e
constituem até hoje pilares básicos do desenvolvimento chileno.
O equilíbrio macroeconômico do processo chileno de desenvolvimento
entrou em diculdade crescente por volta da metade da cada de 1950. A
inação escapou a quaisquer controles em conseqüência de uma profunda crise
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nas exportações de cobre, e a economia se estancou. Esses dois fenômenos
estavam, naturalmente, relacionados entre si, e em suas causas deve-se buscar a
explicação da ênfase colocada sobre as políticas macroeconômicas de curto prazo
que prevaleceram entre 1953 e 1964, assim como também as novas estratégias
de desenvolvimento e planicação que iriam ser adotadas depois de 1964.
Em 1954 o percentual de inação no Chile excedeu 70%, e por isso
nos anos seguintes houve um esforço maciço para detê-la. Foram os anos
dos conhecidos “programas de estabilização” e de uma aguda e prolongada
controvérsia sobre os enfoques monetarista e estruturalista da inação.
Posteriormente, com o governo do Presidente Jorge Alessandri (1956-
1964) a planicação e a visão de longo prazo perderam importância, pois
representavam a primeira tentativa da direita política e do setor empresarial de
deter o avanço das políticas “estadocêntricas”. As circunstâncias, porém, os
obrigaram, em 1960, a aderir formalmente ao Programa Nacional de Desenvolvimento
Econômico 1961-70, que havia sido preparado pelo pessoal da Corfo vários anos
antes e que foi apressadamente atualizado. Duas circunstâncias levaram a essa
decisão: outra vez um fator interno, o devastador terremoto de maio de 1960,
e uma importante mudança externa, uma reviravolta radical da política exterior
norte-americana promovida em 1961 pelo Presidente Kennedy: a Aliança para
o Progresso. Ambos esses acontecimentos signicaram um aumento da ajuda
externa para o Chile, porém condicionada à apresentação de um plano global
de desenvolvimento. O antigo programa da Corfo serviria para esse objetivo,
porém sem muita inuência efetiva sobre a política, a qual continuou dominada,
ao longo de toda a década, por considerações e problemas macroeconômicos
de curto prazo.
Em 1964 surgiu nova situão potica com a viria do Presidente Eduardo
Frei Montalba e a irrupção do partido Democrata Cristão. Antes de examinar
sua experiência planicadora, porém, devemos retroceder aos graves males
ecomicos que conduziram à elevada inão e ao estancamento de meados da
cada de 50, pois o diagstico daquelas diculdades constituiu importante base
para a formulação da estratégia de desenvolvimento adotada pelo governo.
Como foi assinalado, o modelo de industrialização por substituição
de importações constituiu a principal força impulsionadora da economia e
elemento dinâmico básico do processo geral de desenvolvimento. A industria-
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lização induzida, baseada na permanente escassez de moeda estrangeira e em
uma política governamental expansionista, provocou não apenas um grande
aumento da demanda de materiais e serviços básicos, tais como o aço, o pe-
tróleo e a energia elétrica mas também de toda a gama de insumos industriais.
A expansão urbana e o aumento da renda nas cidades estimularam além disso
a demanda de todos os diversos serviços urbanos, assim como dos produtos
manufaturados e de origem agropecuária.
Com o objetivo de conservar certo equilíbrio geral nesse processo e
vencer gargalos especícos, a produção de toda a economia deveria ter-se
expandido pari passo com o crescimento e diversicação da demanda, dada
a limitada disponibilidade de recursos externos. Para que isso tivesse sido
conseguido teria sido necessária uma estrutura de produção altamente exível,
elástica e dinâmica, isto é, uma forte taxa de formação de capital, recursos
humanos altamente qualicados, emprerios “Schumpeterianos e uma
moldura adequada de instituições, valores e atitudes. A falta dessas condições é,
naturalmente, uma das características básicas do subdesenvolvimento e explica
em grande medida as diculdades e tensões que costumam acompanhar um
vigoroso processo de industrialização.
O principal esforço para vencer esses obstáculos teve de ser empreendido
pelo setor público, que se encontrava mal preparado para tarefas tão ingentes. O
Estado teve de participar ativamente da criação e reorganização da infra-estrutura
produtiva a m de sustentar o empresariado privado e induzi-lo a instalar e expandir
novos ramos de atividade. Teve de assumir a responsabilidade de desenvolver
determinadas atividades industriais básicas, criando para isso as respectivas
empresas públicas. Viu-se sob forte pressão política para melhorar a distribuição
da renda e estender os serviços sociais básicos a uma população urbana em rápido
crescimento. Viu-se também pressionado para absorver funcionários que não
encontravam colocação na atividade econômica privada. Todas essas tarefas e outras
que não vêm ao caso mencionar aqui, signicaram uma formidável expansão do
setor público, tanto em termos absolutos quanto relativos.
Para cumprir as novas funções e ampliar as existentes, o governo
precisou utilizar um aparelhamento nanceiro e administrativo obsoleto. O
antiquado sistema administrativo foi culpado de grande parte da ineciência e
obstáculos que se apresentaram, constituindo uma limitação enorme em todos
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os setores da administração para o emprego das técnicas de planejamento,
programação e projetos. O idoso sistema scal e nanceiro foi fator de agra-
vamento da sistemática tendência a incorrer em grandes décits orçamentários,
tendência inerente à estrutura impositiva chilena.
Com efeito, uma elevada proporção das receitas scais provinha das
atividades exportadoras e do comércio exterior em geral. Esse setor se
contraiu em relação ao Produto Interno Bruto ao mesmo tempo em que o
setor público se expandia, ou seja, uma redução relativa da base tributária mais
importante. Além disso, muitos direitos de importação e exportação eram de
tipo especíco, de modo que seu valor real e sua incidência declinavam com
a elevação dos preços. Por outro lado, a estrutura cambiante das importações
reduziu gradualmente o volume relativo das importações de mercadorias
de tributos elevados (as de consumo), substituindo-as por outras de tarifas
baixas ou isentas de direitos (matérias primas e bens de capital), assim como
por importações crescentes do setor público, também isentas de direitos de
importação. Transferir à atividade econômica interna a carga tributária do
comércio exterior e do sistema de câmbios múltiplos não era tarefa cil,
porque a estrutura política do país dicultava uma reforma tributária ampla
e o estabelecimento de uma administração scal eciente. O resultado foi
um aumento desordenado anual de taxas e a criação sucessiva de uma grande
variedade de novos impostos, o que acabou por produzir um sistema impositivo
desarticulado e com escassa elasticidade ou exibilidade.
O processo de longo prazo que acabamos de descrever se manifestara
prematuramente com uma crise aguda em 1953. Nesse ano, graves diculdades
no mercado de cobre forçaram o abandono do sistema de câmbios múltiplos,
que subvencionava fortemente as importações “essenciais”, produzindo-se
uma desvalorização substancial da moeda nacional. Esse fato, junto com o
aumento simultâneo dos salários, numa tentativa de compensar o consumidor
pela elevação dos preços, deagrou a centelha de um movimento inacionário
explosivo que ameaçou tornar-se totalmente incontrolável.
Esse problema de curto prazo contribuiu para tornar mais aguda a crise
scal de longo prazo que acaba de ser mencionada. As crescentes necessidades
do setor público haviam sido nanciadas em grande parte por uma pesada e
crescente tributação sobre os principais exportadores de cobre por meio da
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aplicação de uma taxa de câmbio cada vez mais supervalorizada. A tributação
chegou a ser tão elevada que a produção de cobre se estancou, o que levou
em 1956 à revisão do tratamento tributário com o objetivo de estimular novos
investimentos. Visto em perspectiva, essa mudança na política do cobre que
se estava aplicando por mais de 20 anos foi na verdade o primeiro passo na
reorientação da estratégia de desenvolvimento “para dentro” que vinha sendo
seguida desde 1940. O segundo passo a “chilenização” das minas seria
uma das vigas mestras da nova estratégia adotada em 1964.
Outra diculdade que se tornou mais aguda na década de 50 foi a ausência
de resposta do setor agrícola à crescente demanda de alimentos por parte de uma
população urbana em rápido aumento e com rendimentos crescentes, além de
um setor manufatureiro cuja demanda de matérias primas também aumentava
constantemente. A lentidão da expansão da produção e produtividade agrícolas
inuiu igualmente de forma decisiva no estancamento da economia em seu
conjunto, não apenas pela importância relativa da agricultura mas também
porque o estancamento rural tendia a limitar a expansão industrial. Era também
uma causa básica da pressão inacionária e tendia a agravar as diculdades do
balanço de pagamentos.
A agricultura chilena havia se caracterizado desde sempre pela
existência da uma estrutura antieconômica de propriedade da terra, na qual
predominavam o minifúndio e o latifúndio. Isso teve como resultado a falta
de utilização ou o mau uso da terra. Tal situação dicultou a introdução de
tecnologia moderna e a racionalização do uso dos recursos agrários. Portanto,
era difícil conseguir aumento da produção e dos rendimentos, possibilitando
assim a expansão dos abastecimentos agrícolas necessários para a expansão
industrial e desenvolvimento e equilíbrio global do sistema.
Por volta de 1950 a Corfo começou a expandir suas atividades ao setor
rural, introduzindo o cultivo agroindustrial da beterraba açucareira. Como
o Chile era importador de açúcar, havia sem dúvida uma clara motivação
de substituição de importações. Mas através dos efeitos secundários sobre a
atividade agrícola, e em especial sobre a criação de gado e a produção de leite,
pretendia-se que fosse um fator de modernização nas zonas rurais. Por outro
lado, a Corfo iniciou um programa de mecanização agrícola cujo efeito, mais
do que o aumento da produção, foi a elevação da produtividade por homem,
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o que contribuiu a acelerar o processo de emigração rural. Porém, na medida
em que se constituía em obstáculo crescente, emergia como área básica para
a futura estratégia de desenvolvimento.
O próprio desenvolvimento industrial tamm encontrou diculdades. O
Estado havia feito investimentos substanciais na infra-estrutura de transportes,
energia, etc. Além disso, havia criado algumas indústrias básicas. A empresa
privada, fortemente protegida e estimulada, avançara de maneira considevel na
substituição de um número apreciável de mercadorias leves de consumo. Cada
nova linha de substituição de importações prometia benefícios substanciais,
atraía numerosos empresários e originava uma rápida expansão da capacidade
produtiva. Mas tão logo se preenchia o vácuo deixado pela suspensão do
abastecimento externo, a demanda interna continuava a aumentar somente
em forma moderada, de maneira que pouco a pouco começou a haver excesso
de capacidade produtiva em várias atividades.
Por outro lado, com o objetivo de continuar substituindo importações, a
indústria teve de começar a produzir bens de consumo durável, maquinaria e
equipamento, além de produtos intermediários. Isso apresentava diculdades
consideravelmente maiores para os empresários privados locais. Os recursos
nanceiros necessários eram muito superiores, os problemas técnicos mais
complexos, a necessidade de recursos humanos qualicados mais essencial
e os problemas administrativos muito mais complicados. Além disso, com o
avanço da industrialização para essas atividades, era necessário cada vez mais
capital, e o tamanho econômico mínimo das fábricas aumentou, excedendo
com freqüência o tamanho do mercado. Por esse motivo, ou devido a situações
monopolistas – que tendem a desenvolver-se facilmente em situações como
esta uma parte crescente da estrutura industrial operava abaixo de sua
capacidade instalada. Por todas essas razões, o processo de industrialização
chegou a um ponto de rendimentos reais decrescentes por cada unidade
adicional de capital investido.
Esse complexo de fatores, somado ao efeito do estancamento agrícola,
produziu várias conseqüências importantes. Em primeiro lugar, o ritmo do
crescimento industrial tendeu a reduzir-se. Em segundo lugar, a Corfo teve
de tratar de apoiar, com ajuda nanceira, técnica e de várias outras formas, a
criação ou expansão de indústrias nesses novos campos, convertendo-se nesse
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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processo em uma espécie de banco industrial. Em terceiro lugar, abriram-se
as portas e foi dado amplo estímulo ao investimento privado estrangeiro,
ao nanciamento externo, à associação com capitais do exterior, ao uso de
licenças e patentes, etc.
O processo de desenvolvimento industrial experimentado pelo Chile durante
essas cadas padeceu de graves falhas. Iniciado e desenvolvido em um mercado
quase absolutamente protegido e de tamanho relativamente pequeno, algumas
de suas características negativas mais notáveis foram a inecncia, o despercio
de recursos, a elevada concentrão da propriedade e a forte depenncia de
fontes estrangeiras de nanciamento, tecnologia e de administração. Mais ainda,
o cater cada vez mais capital-intensivo da estrutura industrial – devido a que
se iniciavam linhas novas e tecnicamente mais avançadas e substituição do
equipamento obsoleto nas fábricas existentes, passando da manufatura primitiva
para a indústria moderna – resultou na criação de um número insuciente de
novas oportunidades de emprego. O desenvolvimento industrial converteu-se
assim em outro setor problemático da atividade econômica, que exigia uma
reorientação básica para que voltasse a ser um dos fatores dinâmicos mais
importantes de crescimento e desenvolvimento.
Por outro lado, o Chile se caracterizava, como outros países subdesen-
volvidos e dependentes, por entradas de divisas relativamente estacionárias e
altamente instáveis.
Menos conhecida é a forma pela qual o processo de substituição de
importações dinamizou uma parte importante das importações, agravando o
estrangulamento externo.
A substituição de importações consistiu basicamente em fabricar dentro do
país os artigos de consumo que antes eram importados. Mas como não existia
no país um complexo industrial básico, foi necesrio importar a maquinaria,
o equipamento e tamm uma ampla gama de produtos semimanufaturados e
insumos necessários à fabricação do artigo nal de consumo. Desse modo, um
processo dimico de industrializão deu origem a um processo igualmente
dinâmico de demanda de insumos industriais e bens de capital importados.
Enquanto era possível poupar moeda estrangeira deixando de importar
mercadorias de consumo nal a m de empre-la na importação de bens de
prodão, tudo ia bem. Mas quando a substituição de bens de consumo chegava
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ao m, a continuão do desenvolvimento industrial exigia importações industriais
em rápido crescimento, enquanto as exportações cresciam em ritmo lento e já
o se podia economizar divisas deixando de importar bens de consumo; era
preciso utilizar cada dólar para a importação de algum artigo essencial, e por
isso as novas importações essenciais somente podiam ser nanciadas mediante
o deslocamento de outras importações igualmente essenciais.
O nanciamento externo é, naturalmente, a resposta de curto prazo à
necessidade de continuar o desenvolvimento industrial apesar dessa verdadeira
armadilha cambial; mas como o desenvolvimento industrial o havia contribuído
signicativamente para dinamizar as exportações, por motivos óbvios ineciência
e altos custos, investimentos estrangeiros orientados para o mercado interno por
meio de subsidiárias e dos contratos de licenças e patentes, falta de acesso aos
mercados dos países desenvolvidos, etc. o nanciamento externo, sob qualquer
forma, em breve passou a ser fator de desequilíbrio do balanço de pagamentos.
Nessas condições, era necessário encontrar rapidamente novas fontes de moeda
estrangeira, que a substituição de importações havia se esgotado como meio
de conseguir recursos externos, enquanto a indústria gerada por esse processo se
mostrava incapaz de contribuir signicativamente para o aumento das exportões
e ao mesmo tempo crescia o peso da dívida externa. A única maneira para que o
Chile ssse dessas diculdades era conseguir grande expansão na produção de
cobre e obter algum controle sobre a potica de pros das empresas. Nesse ponto
emergiu a pedra angular da nova estratégia de desenvolvimento do governo da
democracia cristã que chegou ao poder em 1964.
O último elemento que deve ser considerado é o efeito da estratégia de
desenvolvimento sobre a distribuição da renda e a marginalidade. As estimativas
estatísticas mostravam que a distribuição da renda melhorou durante a década de
1950, pelo menos no sentido de que os grupos de rendas mais elevadas perderam
espaço em favor dos grupos de rendas médias e baixas. o obstante, os 10% da
população com rendas ainda mais elevadas recebia quase 36% da renda total. Mais
ainda, se levarmos em conta o problema do excesso de oferta e da insucncia
de oportunidades de trabalho para operários não especializados, dois movimentos
divergentes ocorriam no interior dos grupos de menores rendas.
Os operários mais organizados, urbanos, semi-especializados e ocupados
em atividades modernas tiveram aumento de salários reais e até melhoraram sua
posição relativa dentro da estrutura de rendas. Por outro lado, os trabalhadores
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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rurais, os pequenos proprietários e os negócios familiares, o comércio de
rua e os artesãos, assim como os trabalhadores urbanos não especializados e
desorganizados continuaram recebendo salários de subsistência.
A proporção da população representada por esses grupos aumentava. Dada
a coexisncia, em todos os setores e em todos os veis da atividade econômica,
de métodos avançados de produção e de outros muito mais primitivos; dado
que uma proporção sempre crescente da atividade ecomica é levada a cabo
mediante o emprego de tecnologia moderna e levando em conta que o volume
de emprego por unidade produzida é muito menor em nível de tecnologia
moderna do que em nível da primitiva, as oportunidades de emprego não
crescem substancialmente e podem até diminuir em certas circunsncias. Por
outro lado, com uma foa de trabalho em rápido crescimento, a mão de obra
despedida pode muito bem ter aumentado. Uma indicão clara nesse sentido
foi a ampliação das populações chamadas callampas ou “marginais” nas zonas
urbanas, que caracterizam as cidades grandes e dias do Chile e que se converteu
em outro problema cuja solução exigia nova estratégia de desenvolvimento.
O diagnóstico anterior de alguns dos problemas fundamentais do
desenvolvimento do Chile foi feito por um grupo de economistas chilenos
durante os últimos anos da cada de 1950 e da de 1960. Um dos esmulos mais
fortes para essa análise foi a acesa controvérsia sobre as políticas de estabilização
entre “estruturalistas” e “monetaristas”. A análise estrutural dos problemas
que afetavam o desenvolvimento do Chile, acima esbada, foi a interpretação
adotada pelas duas principais agrupões políticas que competiam pelo poder
em 1964. Portanto, os programas da Democracia Cristã e da Frente de Ação
Popular (FRAP) se baseavam praticamente na mesma estratégia, embora os meios
propostos para implemen-la fossem muito diferentes. Além disso, as duas
agremiões políticas tinham como um dos pontos centrais de seus programas a
criação de um sistema de planejamento forte, efetivo e amplo, e se comprometiam
a utilizá-lo como instrumento básico em sua política de desenvolvimento.
Essa atitude dos partidos poticos era em parte resultado da forte inuência
exercida pelos grupos de economistas de cada um deles, mencionados.
Chegaram a ser estabelecidos escritórios de planejamento como parte da
campanha eleitoral, aos quais foi conada a preparação dos respectivos planos de
governo, e o núcleo técnico ligado à Democracia Cristã se transformou na base
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da nova repartição de planejamento (Odeplan). Essa situão reetia em parte a
posição ideológica dos principais partidos políticos e a experncia das últimas
cadas. Mas o consenso nacional sobre a nova estragia de desenvolvimento
e a importância do planejamento se viu também inuenciado pelo acordo
celebrado em 1961 entre a Arica Latina e os Estados Unidos com o novo
governo Kennedy: a Aliança para o Progresso.
Esse programa coincidia em grande parte com o que viria a ser a política de
desenvolvimento do Presidente Frei, a “Revolução em Liberdade, e se baseava
na mesma aceitação das reformas estruturais, o planejamento e a ajuda externa.
Na realidade, a ajuda externa era oferecida de forma condicionada, exigindo-se a
apresentação de planos de desenvolvimento que deveriam incluir a reforma agrária,
programas de melhoria social, reforma tributária, etc. Foram estabelecidos arranjos
internacionais o Comitê dosNove Sábios para avaliar planos e realizações e
para conceder a autorização de ajuda nanceira segundo o grau de cumprimento
dos compromissos com a Aliança. Por conseguinte, a preparação de planos e a
criação de sistemas de planejamento foram fortemente estimuladas e até mesmo
impostas aos países recalcitrantes, por meio de pressões de nanciamento externo.
Com essa nalidade foi criada a Repartição de Planejamento Nacional (Odeplan)
como assessora da presidência da República.
O programa do novo governo incluía os seguintes objetivos principais:
reforma agrária, expansão das exportações de cobre, forte expansão dos
servos sociais (principalmente moradia e educão), desenvolvimento
industrial e sobretudo controle da inação. Em conseqüência, e com a
nalidade de levar a cabo sua política de reforma agrária e melhoramento da
agricultura camponesa, fortaleceram-se consideravelmente duas instituições:
a Corporação de Reforma Agrária (CORA) e o Instituto de Desenvolvimento
Agrícola (Indap). A m de dar impulso vigoroso ao programa habitacional do
governo que se achava em marcha no setor privado foi criado o Minisrio
da Habitação e várias corporações complementares da existente Corporação
da Habitação (Corvi), como a Corporação de Melhoramento Urbano (Cormu),
a Corporação de Serviços Habitacionais (Corhabit), etc. Na área da mineração
de cobre criou-se a Corporação do Cobre e tratou-se da “chilenização” das
empresas por meio de sociedades mistas. A Corfo criou novas subsidiárias
ou comissões especiais (Comissão Automotora, Comissão Eletrônica, etc.)
para impulsionar o desenvolvimento industrial em determinados ramos.
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O Ministério da Educação foi reorganizado, com a concessão de vultosos
recursos adicionais. A política macroeconômica de estabilização foi conada
inteiramente aos Ministérios da Fazenda e da Economia e Banco Central,
enquanto que uma Comissão Econômica informal da qual participavam
alguns ministros e representantes de certas entidades públicas – atuava como
agência coordenadora da política de curto prazo.
Como se pode vericar, todas as principais políticas da estratégia governa-
mental de desenvolvimento e de estabilização foram encomendadas diretamente a
poderosas corporações estatais ou a determinados ministérios, todos com ampla
autonomia no setor público e apoiados por importantes grupos de interesse,
como a Câmara da Construção no caso dos Ministérios de Obras Públicas e
de Habitação, ou por fortes compromissos políticos, como no caso da reforma
agrária e do controle da inão. Diante dessa fragmentão do poder público
e dos organismos encarregados de tomar decies, um corpo consultivo como
a Odeplan tinha poucas possibilidades de chegar a desempenhar papel decisivo
na coordenação das políticas desses diversos gigantes, ou de fazê-los aderir de
maneira coordenada a algum programa de desenvolvimento de longo prazo
dentro de um quadro de equilíbrios macroeconômicos de curto prazo.
Não obstante, especialmente durante os três primeiros anos de governo,
conseguiu-se certa coordenação, sobretudo por se tratar pela primeira vez de
um governo de um partido, de forma que era possível chegar a acordo sobre
certas decisões básicas de longo prazo no âmbito do partido e do governo. Mas
quando, com o tempo, veio a deteriorar-se essa condição de unidade política,
com o aumento dos conitos entre o partido e o governo e dentro do próprio
partido, esse elemento de coordenação também se debilitou.
A situão se agravou pelo fato de que o governo tinha se obrigado a
conseguir alguns objetivos extraordinariamente ambiciosos nas atividades men-
cionadas mais acima, enquanto ao mesmo tempo se encontrava absolutamente
comprometido em deter a inação por meio de um programa de desacelera-
ção em três anos. Como a economia se encontrava relativamente deprimida,
conseguiu-se durante vários anos o milagre de acelerar o crescimento reduzindo
simultaneamente o aumento de preços. Como os preços do cobre aumentaram
consideravelmente e o mercado mundial era muito favovel, e ao mesmo tempo
a tributação interna também aumentava, foi possível uma considerável expansão
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dos gastos do governo durante os primeiros anos, quando os ministérios e as
principais corporações começaram a realizar seus ambiciosos objetivos. Pom
tão logo a economia recuperou níveis elevados de atividade, as pressões ina-
cionárias comaram novamente a acumular-se e a projetada redão do ritmo
de aumento dos preços se converteu no contrio. A necessidade de conter a
expansão scal constituiu a prova denitiva para o planejamento, pois era ne-
cessária uma redução coordenada dos vários programas, a m de evitar uma
depreso ou graves desequilíbrios na economia. Nesse momento crucial para
o planejamento cou patente que indubitavelmente não era posvel que cada
fragmento do poder público empregasse todo o seu peso a m de manter seu
próprio programa a expensas dos demais.
Novamente, a necessidade de obter um mínimo razoável de equibrios
macroeconômicos complicou o cumprimento das metas de longo prazo. A
frustração das políticas “estadocêntricas” para conseguir a industrialização, a
modernização e o melhoramento das condões sociais da maioria da populão
gerou durante a década de 1960 um reexame crítico dessas políticas e um
profundo debate que originou três posições e propostas claramente denidas.
Por um lado, uma incipiente proposta neoliberal, que rechaçava de maneira
radical as políticas que vinham sendo implementadas nas décadas anteriores a
partir de uma perspectiva “mercadocêntrica”. Foi formulada inicialmente pela
missão Klein-Sachs, contratada para combater a crise inacionária da segunda
metade dos anos 50 e desenvolvida posteriormente de forma sistemática e
progressiva pelos economistas norte-americanos e chilenos que renovaram
o ensino da economia na Universidade Católica com base em um convênio
de colaboração com a Universidade de Chicago. Esse convênio foi inspirado
e promovido pelo governo dos Estados Unidos para enfrentar as correntes
de pensamento socialista e da CEPAL, no contexto de uma das etapas mais
álgidas da Guerra Fria e da crescente inuência da revolução cubana.
Em segundo lugar, uma corrente de aprofundamento da proposta
desenvolvimentista do governo do Presidente Frei que acaba de ser resumida:
industrialização, reforma agrária e sindicalização camponesa, políticas sociais
e promoção popular, reforma tributária, planejamento, etc.
Terceiro, uma proposta radicalizada também fundamentalmente baseada
no diagnóstico desenvolvimentista porém de inspiração marxista, a partir da
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crítica derivada de uma das correntes do enfoque da “dependência” que se
popularizou desde meados da década de 1960. Argumentava-se basicamente
que o desenvolvimento o era viável dentro do sistema capitalista internacional
porque este, segundo a formulação de um dos autores mais populares dessa
corrente, tendia ao “desenvolvimento do subdesenvolvimento”.
Esse pensamento teve importante inuência no programa de governo da
Unidade Popular, corrente política de esquerda que levaria Salvador Allende
à presidência em 1970, com um programa que além das reformas estruturais,
como a reforma agrária, criava um setor socializado formado por meio da
expropriação das grandes empresas privadas, nacionalizava a grande mineração
do cobre, ampliava a participação popular, etc.
O surgimento da Unidade Popular e seu posterior e dramático colapso não
podem ser entendidos senão no contexto do próprio desenvolvimento do modelo
estadocêntrico e em particular no da asceno das classes operias e camponesas
e do desenvolvimento da intelectualidade em vel das classes dias, produto das
grandes transformações no aspecto econômico e social dos anos 50 e 60.
O fortalecimento das organizações operárias e dos partidos da esquerda
chegou ao zênite com o triunfo de Salvador Allende em 1970. Foi impulsionado
um programa de governo que, com base em um modelo desenvolvimentista
porém com uma crítica marxista ao capitalismo, aspirava à construção de
uma sociedade socialista por meio do desenvolvimento das forças sociais e
produtivas vinculadas a um Estado muito mais ativo e com maior ingerência
em todos os âmbitos da atividade econômica. Isso tudo, e estava a novidade,
num ambiente de legalidade democrática.
O primeiro ano do governo da Unidade Popular se caracterizou por
ação ativa do Estado. Aplicou-se forte impulso à política scal e monetária,
com o objetivo de elevar as rendas e aumentar dessa forma a demanda interna.
Isso se traduziu num incremento de 70% dos gastos públicos, provocando
um décit scal equivalente a 8% do PIB. Não obstante, grande parte desse
décit foi nanciado por meio de créditos do Banco Central, o que resultaria
em aumentos inacionários já no segundo ano.
O aumento da demanda interna levou ao crescimento do PIB em 9%,
enquanto que o desemprego (na época medido somente na Grande Santiago)
baixou para 3,8% em dezembro de 1971, tendo sido de 8,3% no ano anterior.
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Mas o nanciamento do décit scal pela via da emissão de moeda desatou
uma escalada inacionária que alcançou níveis de 163% em 1972 e cerca de
500% em 1973, com os conhecidos efeitos sobre salários e contratos. Isso
levou a administração econômica a xar preços máximos, gerando excesso de
demanda e por conseguinte escassez de produtos. O décit scal subiu em
1972 a 12,7% do PIB, que por sua vez reduziu-se em 2%.
O agravamento do conito social e político e a radicalização tanto do movi-
mento popular quanto dos setores mais moderados e conservadores conduziram a
uma desordem produtiva sem precedentes. Entre janeiro e julho de 1973 a produção
industrial caiu 94%. Já em meados de 1973 o país estava paralisado e a capacidade de
manobra do governo da Unidade Popular era extremamente limitada. O desenlace
foi dratico e é conhecido por todos. Em 11 de setembro de 1973 não apenas
iniciou-se um período sumamente doloroso para o país em termos de perda de
direitos cidadãos e graves violões aos direitos humanos, como tamm marcou
om de um projeto que mobilizou miles de pessoas, fez nascer entre os mais
humildes esperanças de mudança de suas condições de vida que até então não ti-
nham sido resolvidas. Desse modo, o modelo de desenvolvimentoestadocêntrico,
que havia atravessado uma fase extremamente positiva para o desenvolvimento e
modernização do país, acabou por entrar em colapso de forma dramática.
5. O contexto internacional nos anos 70: transnacionalizão,
ascensão do neoliberalismo e decadência do Estado
Durante a década de 1960 reapareceu o investimento privado direto
internacional, encarnado agora na emergente empresa transnacional,
inicialmente unicamente norte-americana e posteriormente também européia
e japonesa. Este tipo de empresa aproveitava os mercados nacionais criados
nos pses periféricos graças às medidas protecionistas e às poticas de
fomento industrial para vencer as barreiras comerciais por meio da instalação
e/ou aquisição de liais manufatureiras locais. Foi o começo do processo de
transnacionalização (globalização) em nível de estrutura produtiva e de sua
extensão e aprofundamento em nível dos padrões de consumo.
Nesses anos começou também a recriar-se, com o auge dos eurodólares,
um mercado nanceiro privado internacional, cuja expano alcançou dimensões
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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extraordinárias durante a década de 1970, depois das crises do petróleo de 1972
e 1979, facilitando um endividamento generalizado e desmesurado do mundo
subdesenvolvido. Essa situação insustentável desembocou na crise da dívida
externa de 1982, quando foram aplicadas no mundo desenvolvido políticas
monetárias extraordinariamente restritivas de altíssimas taxas de juros para
enfrentar os desequilíbrios desencadeados pela crise do petróleo.
Em síntese, o pêndulo regressava a um novo período de integração
econômica internacional, conhecido agora como o fenômeno da globalização,
que começou com a recuperação do comércio, prosseguiu com a expansão
do investimento privado transnacional e foi completado, sobretudo depois de
1973, com a criação de um gigantesco mercado nanceiro transnacional de
caráter privado. Esse fenômeno teve uma série de conseqüências, mas o que
interessa destacar em primeiro lugar é o enfraquecimento do sistema nanceiro
internacional público e em geral de todo o sistema internacional de assistência
bilateral e multilateral ao desenvolvimento.
Durante a década dos 70, uma parte considerável da estrutura institucional
nacional e internacional que emergiu do período anterior de mudanças sistêmicas
foi novamente objeto de uma substancial reorganizão. O processo de reforma
econômica que se generalizou na atualidade se iniciou na prática em meados dos
anos 60: a eliminação de controles de câmbio sobre as transões nanceiras
que ainda persistiam em certos países pertencentes à Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Europeu (OCDE) desde o período do pós-
guerra (lamentavelmente, seus esquemas de “substituão de importações” para
apoio e proteção à agricultura estão ainda vigentes); as tentativas de liberalização
nos países socialistas tais como a Hungria, a URSS, a Polônia e a China; a
passagem decidida das estragias de substituão de importações para as de
promão de exportações na Coia e Taiwan. Tamm na América Latina e no
Chile foram dados passos nessa direção: esquemas de redução e simplicação
tarifária, introdução da reajustabilidade cambial, substituição de controles
quantitativos das importações por depósitos a prazo, redão e simplicação
de controles e subsídios de câmbio e de preços, promoção deliberada de
exportações manufatureiras no Brasil e de frutas, peixes e produtos orestais no
Chile, ores na Colômbia, etc. Em vários países esse processo se viu frustrado
por tentativas abortadas de levar a cabo revoluções socialistas e posteriormente
pelo “mal holandês”, síndrome produzida pelos efeitos do auge petrolífero nos
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países exportadores de petleo e pela permissividade nanceira e “boom” de
endividamento do nal dos anos 70.
O nascimento da nova era em nível internacional foi anunciado de forma
dramática com o colapso do sistema de relações econômicas internacionais
de Breton Woods, as duas crises do petróleo dos anos 1972 e 1979 e a adoção
de políticas neoliberais radicais pelos governos Thatcher e Reagan. Tudo isso
faz claramente parte central do processo global de transformações, mas esses
acontecimentos e os que explodiram de forma repentina e inesperada nos
antigos países do bloco soviético tinham ocultado forças mais profundas que
se encontravam em movimento durante várias décadas nesses países e em
outras partes do mundo.
Alguns dos fenômenos que possuem mais signicação para nossos objeti-
vos são os seguintes: os Estados Unidos consolidaram o esmagador predomínio
de que gozou durante mais de meio culo e continua a manter e exercer seu
indubitável poderio militar: a Europa e a Ásia, especialmente a China, estão emer-
gindo como potências econômicas e comam a exercer o correspondente papel
potico; o sistema público multilateral de relações econômicas internacionais
que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial viu-se erodido pela expano
das empresas multinacionais, a emergência das corporações globais e a desregu-
lamentão nanceira internacional. Desse modo, surgiu um setor empresarial
transnacional privado estreitamente integrado e muito poderoso, especialmente
nas esferas nanceiras e de investimentos assim como por mecanismos informais
e sumamente elitistas de coordenação econômica internacional.
O socialismo, tal como existiu nos países do bloco soviético, desmoronou;
e com ele a confrontação Leste-Oeste que caracterizou o sistema mundial
bipolar da Guerra Fria; a desaparição do Segundo Mundo eliminou na prática a
confrontação Norte-Sul, deixando os países que anteriormente compunham o
Terceiro Mundo, assim como os restos do socialismo, em processo de reabsorção
por um novo sistema capitalista globalizado ou simplesmente abandonados no
limbo e desintegrando-se econômica, social e inclusive politicamente.
Ocorreu uma profunda revolução cientíca e tecnogica que modicou a
ênfase anterior nas disciplinas sicas, transferindo-a para as biogicas, por meio
do desenvolvimento da microeletrônica; e a revolução da informação, a robótica,
a biotecnologia e os novos materiais produziram mudanças fundamentais em
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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todo o sistema econômico e social, inclusive a natureza das relações inter e
intrarmas e os processos trabalhistas, assim como as vantagens comparativas
e de localizão internacional de caráter tradicional. A degradação do meio
ambiente, o esgotamento dos recursos naturais e as ameas aos ecossistemas
locais, regionais e globais, introduziram toda uma nova dimensão nos assuntos
humanos a necessidade de uma guinada em dirão a um desenvolvimento
sustentável segundo o proclamado na Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro.
Finalmente, e de fundamental importância para nossa argumentação, o
papel predominante do Estado que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial,
sob diversas formas sócio-ecomicas e poticas, cedeu lugar a uma sociedade
civil renovada e fortalecida nas esferas social, potica e cultural. Poder-se-ia
argumentar que os acontecimentos de maio de 1968 em Paris e a Primavera
de Praga que se seguiu foram sinais premonitórios, tanto no mundo capitalista
quanto no socialista, a respeito do fortalecimento dos movimentos sociais que
representam os direitos das minorias e das mulheres, o poder verde, a juventude,
a descentralização e a participação democrática, a defesa dos direitos humanos,
etc.; tudo isso levou à correspondente proliferão das organizações de base e
organizações não governamentais, e a um relativo recuo do Estado.
Foi esse também o caso no campo econômico, inclusive como aspecto mais
destacado o crescente predomínio do mercado e o fortalecimento da empresa privada,
junto com uma participação declinante do gasto público no PIB, um processo
maciço de privatização de empresas e serviços blicos e um maior investimento
privado em relação ao investimento blico. Esse processo foi reforçado por sua
vinculão com a grande expansão das corporações transnacionais que, como
foi assinalado, deram origem a um processo de globalização sem precedentes e a
novas formas de relacionamento entre elas, o Estado e o capital nacional. Tudo
isso signica uma profunda reorganização das relações entre os setores público e
privado, tanto em nível nacional quanto internacional.
Com a globalizão e as formas mais complexas de inter-relão
econômica privada dos mercados, os fenômenos antes mencionados geram
novos problemas, tais como, por exemplo, os ligados às diferentes práticas
nacionais que afetam a competitividade internacional. Isso se converte
inevitavelmente em parte da condicionalidade sob a qual se busca a reforma
econômica. Em conseqüência, as agendas de negociações internacionais e
também as regionais se encontram em uma conjuntura crítica em que tais
Osvaldo Sunkel
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negociações avançam desde o tratamento dos produtos até o tratamento
das políticas. Essa é a razão da busca de um mandato mais amplo para a
Organização Mundial do Comércio no sentido de avaliar diferenças de políticas
e formas institucionais como fontes de “distorções”.
Nesse contexto global de integração capitalista e transnacional produziu-
se no Chile o traumático colapso do “estadocentrismo” e a implantão drástica
e brutal do “mercadocentrismo” neoliberal.
6. O “mercadocentrismo” neoliberal no Chile
O Chile é um país atípico em relação a outros países da América Latina
no que se refere ao retorno das orientações “mercadontricas”. Sem dúvida
a implementação de um programa radical de desmontagem das instituições e
poticas “estadocêntricasdas cadas de 40 a 70 se antecipou em mais de um
lustro à crise da vida externa de 1982, em conseência da qual os demais
países da América Latina se viram forçados a empreender também nos anos
seguintes profundos processos de ajuste macroeconômico e reformas estruturais
neoliberais. Isso foi conseência da profunda crise econômica, social e potica
que desembocou no governo da Unidade Popular e do golpe militar em que ela
culminou. Daí derivou outra singularidade do processo chileno, isto é, o fato de
que foi levado a cabo nas condões poticas de um rreo regime ditatorial. Isso
contrasta com a experncia do restante da Arica Latina, onde na cada de
80, ao contrário, generalizaram-se os regimes democráticos.
Das três opções de política econômica que haviam sido denidas nos
anos 60, o aprofundamento do desenvolvimentismo se esgotou com o governo
do Presidente Frei e a opção socialista com o do Presidente Allende. Depois
de um ano de indecisões, o governo militar optou pela terceira alternativa, a
neoliberal. Esta lhe oferecia um programa completo e detalhado de drásticas
reformas econômicas, uma equipe humana que durante muito tempo se
preparava para uma oportunidade como essa e um apoio decidido dos setores
empresariais nacionais e estrangeiros, da comunidade nanceira internacional
e do governo norte-americano. Tudo isso, como se acaba de resumir, num
contexto internacional em profunda transformação num sentido coincidente
e muito favorável ao retorno do “mercadocentrismo”.
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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A crise interna dos modelos anteriores e o desenlace particularmente
catastróco da experiência socialista coincidiram assim com a retomada e forte
expansão dos investimentos estrangeiros privados. Esses se materializavam
agora por meio da multiplicação das corporações transnacionais junto com a
enorme ampliação do sistema nanceiro privado internacional. Tal ampliação
se iniciou com o mercado dos eurodólares em ns da década de 1960 e se
multiplicou exponencialmente com a acumulação das reservas de petrodólares
na banca privada internacional em conseqüência da crise do petróleo. Tudo
isso coincidiu com a mudança que estava ocorrendo em matéria de políticas
econômicas e de pensamento ecomico diante do crescente fracasso
das políticas keynesianas durante os anos 70 para estabilizar as economias
desenvolvidas e recuperar o crescimento.
A crise da dívida externa obrigou depois, nos anos 80, a que os países
devedores realizassem profundos ajustes macroeconômicos, e foi a ocasião
aproveitada pela nova constelação internacional de interesses nanceiros para
impor um conjunto de reformas estruturais, batizadas posteriormente como
“Consenso de Washington”, destinadas a desmontar a institucionalidade
“estadocêntrica” montada em décadas anteriores, mediante a redução drástica
de tarifas alfandegárias e controles cambiais, abertura nanceira, privatização
das empresas e serviços públicos, desregulamentação e liberalização dos
mercados, política social focalizada e em geral o encolhimento do Estado e
seu nanciamento basicamente mediante impostos indiretos. Tratava-se de
restabelecer e ampliar ao máximo o predonio do mercado em uma economia
aberta e desregulada com a menor intervenção estatal possível.
A integração nanceira transnacional, o reinício do acesso fácil e amplo
ao sistema nanceiro privado internacional e a possibilidade de endividar-se
em grande escala signicaram uma grande preso e esmulo para a adão de
poticas de abertura comercial e nanceira. Quando o conito político entre
diversas coalizões se deniu nesse sentido, isso induziu uma redistribuão de
recursos em direção aos setores de vantagens comparativas naturais, ampliado em
alguns pses para atividades manufatureiras com vantagens adquiridas durante
o processo de substituição de importações. Isso constituiu um fato novo da
maior importância: o dinamismo das exportações não tradicionais o poderia
ser explicado sem a criação de capacidade produtiva na etapa anterior.
Osvaldo Sunkel
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Ora, os critérios de mercado respondem à distribuição da renda, às
preferências dos consumidores de rendas mais elevadas e às estratégias de mercado
dos grupos privados nacionais e transnacionais de maior poder e dinamismo
econômico. Os empresários têm liberdade muito maior, mas é duvidoso que
essa maior liberdade de manobra seja necessariamente vantajosa para os países
que recebem esses grandes uxos de capital privado, a menos que existam
estímulos institucionais no país a m de investi-los produtivamente e condições de
estabilidade macroeconômica para assegurar seus retornos. A menos que se trate
de sociedades rmemente comprometidas com políticas de desenvolvimento, a
folgada disponibilidade nanceira privada externa pode desviar-se para o consumo
e/ou para a fuga de capitais em vez de contribuir para ampliar e diversicar a
atividade produtiva. Além disso, o mercado, por si só, não é o instrumento mais
adequado para orientar os recursos no sentido do desenvolvimento de um sistema
produtivo diversicado, com justiça social e sustentável a longo prazo. Sem vida
isso não é de responsabilidade dos bancos que emprestam, e sim dos países que
recebem os recursos. A pergunta fundamental é saber a que se destinam esses
abundantes recursos nanceiros internacionais.
Tudo isso vem acompanhado da consolidação da nova coalizão
hegemônica: aparecem com renovado vigor apoiados pelo nanciamento
privado internacional os exportadores, os importadores, o comércio e
os setores nanceiros, integrados agora nas corporações transnacionais,
comandadas e integradas pelo setor nanceiro, formando uma coalizão que
procura substituir a que os setores industriais, grupos medianos e setores
operários haviam formado. A redução da intervenção do Estado deixa que
o mercado – sobretudo os principais grupos econômicos funcione o mais
livremente possível, numa reatualização das políticas de laissez faire e de toda
a ideologia do mercado, o livre câmbio, as vantagens comparativas, o maciço
apoio dos novos centros de poder nanceiro, etc.
Nesse contexto, no Chile, a receita neoliberal no sentido estrito foi
aplicada fundamentalmente desde 1974 e até o início da década de 1980.
Seus elementos básicos são os seguintes: um drástico ajuste scal baseado na
redução dos gastos públicos correntes, sociais e de investimento, ampliação
da base tributária mediante impostos indiretos, privatização da maior parte
das empresas públicas e de parte dos serviços públicos, eliminação da política
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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industrial, focalizão compensatória do gasto social, abertura externa unilateral
comercial e nanceira e a desregulamentação dos mercados de bens e serviços
e de fatores produtivos: terra, trabalho e capital.
Trata-se de erradicar completamente o modelo “estadocêntrico” das
décadas anteriores, não apenas na recente versão extrema do governo da
Unidade Popular mas também desde suas origens na legislação e políticas
sociais pioneiras da década de 1929. Houve um esforço de fundação para
criar uma economia e uma sociedade de livre mercado, baseada no respeito
irrestrito da propriedade privada, no papel subsidiário do Estado, reduzindo
seus compromissos sociais e produtivos e concentrando-o na tarefa de manter
os equilíbrios macroeconômicos (entendidos como estabilidade do nível de
preços) a eliminação das instituições corporativas (colégios prossionais,
sindicatos, associações, etc.) e a plena integração ao mercado internacional.
Isso vem a ser a culminão das tentativas da direita econômica de reverter
a orientão estatista implantada a partir dos anos 50, primeiro na época da
missão Klein-Sachs e em seguida durante o governo de Jorge Alessandri, muito
vinculada ao empresariado nacional e à direita potica. No caso do governo de
Pinochet, este desconava profundamente dos políticos, inclusive os da direita, e
os economistas de Chicago por sua vez desconavam do empresariado nacional,
tradicionalmente protegido e favorecido até o advento do governo socialista. Ao
assumir todo o poder econômico, com pleno apoio potico do governo militar e
sem ter de preocupar-se com as conseqüências sociais e políticas de suas ações,
a equipe ecomica contou com toda a foa do regime ditatorial para impor
integralmente seu programa.
A fase mais purista da implantão do novo modelo de potica econômica
durou até meados dos anos 80. A crise da vida externa no início dessa década
produziu, entre outros efeitos, a quebra do sistema banrio e nanceiro e elevou
a níveis desmesurados o desemprego gerado pelas políticas anteriores. Diante
dessas circunstâncias, abandonou-se parcialmente a ortodoxia neoliberal de recuo
do Estado. Pelo contrio, este voltou a atuar energicamente reorganizando
o sistema nanceiro por meio de uma forte intervenção e subsídios estatais,
desvalorizando substancialmente a moeda a m de estimular as exportações e
a substituão de importações, expandindo o gasto e os investimentos blicos
para ativar a demanda e o emprego, criando condições extremamente favoráveis
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leia-se subdios para estimular o investimento estrangeiro, particularmente
na mineração e nos setores de empresas e serviços públicos privatizados,
estabelecendo as condições para a crião de empresas privadas administradoras
de fundos de previdência acumulados historicamente pelo antigo sistema de
Previdência Social e orientados aos setores de rendas altas e dias, fundos que
contribuem substancialmente para a crião de um sistema de nanciamento de
longo prazo, controlado e orientado pelo Estado.
É necessário e importante recordar também que em seu começo, antes
da irrupção da equipe econômica dos chamados Chicago boys, o governo militar
empreendeu duas ações de política industrial de enorme transcendência, que
sobreviveram ao embate neoliberal da equipe econômica. Trata-se da política
de subsídios ao desenvolvimento do setor orestal e da criação da Fundação
Chile, instituição pública apoiada e administrada conjuntamente pelo Estado e
pelo setor privado, destinada a fomentar o desenvolvimento de novos setores
produtivos exportadores que incorporaram inovações tecnológicas avançadas.
Ambas essas políticas tiveram extraordinário êxito em estimular o crescimento
e diversicação das exportações.
O novo governo recebeu também dos anteriores algumas heranças
excepcionalmente positivas. De um lado, os benefícios da nacionalização da
Grande Mineração. Ao ser omitida do programa de privatização de empresas
estatais por pressão de alguns militares nacionalistas, a principal empresa
pública nacional, a Codelco, constituiu-se em outra exceção notória ao projeto
neoliberal de eliminar a função produtiva das atividades do Estado, conservado
além disso, dessa forma, sua considerável contribuição às nanças públicas e
à gestão da política cambial.
De importância semelhante são os benefícios de longo prazo deixados
pelos processos de modernização agropecuária e de reforma agrária das
décadas anteriores, por haverem criado as condições para o desenvolvimento
das novas atividades produtivas agro-exportadoras e para o surgimento de
novos proprietários rurais, que terminaram por formar uma classe empresarial
moderna e dinâmica.
A autonomia de que gozou a equipe econômica durante os primeiros
anos do regime militar se viu tamm reforçada pelo enfraquecimento da classe
empresarial manufatureira herdada do período de substituição de importações,
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que sofreu um maciço processo de expropriações durante o governo de Salvador
Allende e que também foi substituída por uma classe empresarial nova ou
renovada, que começou a operar em condições extremamente favoveis: fortes
incentivos ao investimento, custos de mão de obra baixíssimos, estabilidade das
regras do jogo, etc., assim como pela repressão e esmagamento das organizações
operárias e sindicais urbanas. Tudo isso permitiu a crião e rearticulão de
um setor empresarial privado dimico e moderno e a geração de um processo
acelerado de capitalização e crescimento a partir da década de 1980.
7. Do neoliberalismo ao neoestruturalismo
Foi nesse contexto que se deu a recuperação da democracia em 1990 e
realizou-se o processo de transição negociada no aspecto político e de continuidade e
mudanças na política ecomica. Foi assumido em grande parte o sistema instaurado
pela ditadura, para em seguida empreender reformas e ajustes graduais, enfocadas
particularmente no plano social e na inserção produtiva internacional do país.
Algumas das principais mudanças na política econômica e social desde
1990 foram os seguintes:
Importante reforma tributária para aumentar as receitas do Estado
Redistribuição do gasto público para aumentar substancialmente o
gasto social
Reforma trabalhista
Aumento do salário real mínimo
Estabelecimento de critérios para reajuste periódico do salário mínimo
Implementação de várias medidas nanceiras, entre elas o depósito
compulsório, para reduzir e controlar a entrada de capitais voláteis de
curto prazo
Implantação do sistema de concessões de obras públicas (investimentos
em estradas de rodagem, aeroportos, represas, tratamento de águas
servidas, etc.)
Programas sociais especiais para redução da pobreza (Chile Bairro,
Chile Solidário, etc.)
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Cobertura total e reforma da educação
Reforma da saúde pública (plano AUGE)
Reforma da justiça processual penal
Reforma da administração pública
Tratados de livre comércio (EUA, Comunidade Européia, Ásia)
Reinserção na América Latina (Mercosul e tratados bilaterais)
Criação de diversos organismos regulatórios (Superintendências)
Criação de uma institucionalidade e política ambientais
Em minha opinião, essas mudanças e muitas outras puderam ser realizadas
em boa parte porque foi possível conseguir uma transição negociada entre o regime
militar e a coalizão de partidos pela democracia. Não écil explicar a quem não
viveu o período de transição os motivos pelos quais optou-se por uma transição
negociada e paca entre o governo militar e o novo governo democrático em
1990. Como parte desse processo, também o motivo pelo qual foi assumido
em parte o sistema econômico instaurado pela ditadura para em seguida, como
acabamos de ver, ir reformando-o e ajustando-o gradualmente. Para compreender
o fenômeno, seja-me permitida uma digressão sócio-política muito pessoal.
As décadas de 60 a 90 foram sem vida as mais traumáticas da história
do Chile. A convincia cidadã foi-se desfazendo devido às transformações de
todo tipo que o país começou a experimentar com especial intensidade a partir de
meados da década de 1960. O tecido social foi-se rompendo com antagonismos
que dicultavam cada vez mais as relações normais entre grupos sociais, correntes
de pensamento e setores políticos. A ppria vida quotidiana se ressentiu ao
deteriorarem-se as relações entre colegas, companheiros, amigos e até familiares.
Nessas décadas experimentaram-se os profundos processos de reformas
institucionais e estruturais que se desencadearam nos anos 60 e se acentuaram
posteriormente; o predomínio adquirido pelo pensamento e ações de caráter
revolucionário e contra-revolucionário das esquerdas e direitas; o caráter
crescentemente descontrolado e conitivo do governo da Unidade Popular
e da oposição; a violenta derrubada do Presidente Allende por meio de
intervenção militar com sua aguda seqüela de ações repressivas e violações
dos direitos humanos; a intensa luta pela restauração democrática e as ações
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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de violência e terrorismo contra o governo militar, assim como sua implacável
repressão; as drásticas transformações econômicas, institucionais e culturais
impulsionadas sob os lemas de “revolução em liberdade”, “caminho chileno
ao socialismo” e “neoliberalismo” e que em certa medida se impuseram e se
deszeram parcialmente nesse período.
Esse tumultuoso e dramático período deixou em muitos setores uma
herança negativa de profundas divisões, ódios e desconanças. Numerosos
grupos sociais e os indivíduos e famílias que os compõem, alguns mais e alguns
menos, sofreram perdas, agravos e injustiças, atribuídas a outros setores, grupos
e indivíduos, que por sua vez sentem o mesmo em relação aos primeiros. E
cada um tem um pouco, ou muita razão. Todos temos ou conhecemos casos de
familiares, amigos e conhecidos que sofreram a morte, a repressão, a tortura,
o exílio e a expulsão de seu trabalho; ou a expropriação, tomada, ocupação
ou quebra de seu fundo ou sua empresa; ou que se viram obrigados a deixar
a atividade de toda uma vida, inclusive abandonando o país. Isso porque os
processos acelerados e agudos de mudança macrossocial se traduzem no nível
quotidiano individual e familiar em traumas e esfacelamentos de toda ordem,
que alteram drástica e profundamente a convivência diária e os projetos de vida
das pessoas e suas famílias, com muito sofrimento e tremendas injustiças.
Não obstante, todo esse sofrimento, por muito doloroso que tenha sido
para muitos, parece não ter sido em vão. Foram sendo superadas as recrimina-
ções mútuas, ainda que aorem periodicamente, e fez-se um grande esforço
para apreciar também a parte positiva da herança desse período tão traumático.
Em seus distintos níveis e facetas, a sociedade chilena deu ao longo destas
décadas passos transcendentais que a colocam em condições relativamente
favoráveis, em contraste com seu próprio passado e em relação a outros países,
para enfrentar os desaos de consolidar uma democracia solidária, uma eco-
nomia dinâmica e justa e uma cultura compartilhada, e também para enfrentar
os desaos das profundas transformações de todo tipo que vive o mundo no
início do terceiro milênio.
Assim, por exemplo, pareceria que no plano político a exacerbação
militante dos projetos ideológicos globais e excludentes da esquerda, centro
e direita cedeu o passo, na maioria da cidadania, à busca de consensos funda-
mentais para restabelecer o jogo democrático, em que cada setor revê e renova
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sua proposta ideológica utópica, porém compreende que para governar aqui e
agora é necessário chegar a entendimentos básicos por meio de negociações
em que todos têm de ceder alguma coisa daquilo que é fundamental para
consolidar a convivência democrática.
No plano econômico, por outro lado, começa-se a reconhecer, por exemplo,
que sem a reforma agrária e as políticas de implantação e estímulo a novos
setores comerciáveis que se iniciaram na cada de 1960, dicilmente teamos
na atualidade um setor agro-exportador dinâmico. Porém seria preciso aceitar
também que sem a profunda reorientação da potica ecomica no sentido de
favorecer a abertura da economia e ação do empresariado privado, esses passos
iniciais talvez não se tivessem materializado tão rápida e ecazmente.
Poder-se-ia tamm argumentar que a nacionalização da grande mineração
de cobre foi um marco histórico fundamental no aspecto estritamente
econômico-nanceiro porque signicou uma contribuição considerável ao
nanciamento scal e ao balanço de pagamentos, contribuindo desse modo
para uma gestão mais expedita e ecaz das políticas scal, cambial e monetária
e ao decidido esforço de ordenamento, modernização e saneamento do setor
público empreendido e realizado em boa medida pelo governo militar.
Mais polêmica continua a ser a política social, de desregulamentação gene-
ralizada e de privatizações que foram efetuadas e que afetaram tanto empresas
quanto serviços públicos, com enormes repercussões sociais e econômicas, nas
quais se reconhecem efeitos positivos e negativos objeto de debate apaixonado.
Talvez também seja possível esclarecer e racionalizar essa pomica, sobretudo
quando colocada em seu contexto hisrico. Nas décadas posteriores à Segunda
Guerra Mundial,o obstanteltiplas decncias, a expansão da função do
Estado cumpriu papel fundamental na modernizão da economia e da sociedade
chilenas; muitos dos êxitos dos últimos anos talvez não tivessem sido possíveis
sem a importante trajeria pública em matéria de saúde e educão, de criação
de infra-estrutura enertica e de transportes, de expano e diversicão da
capacidade produtiva em seus diversos setores.
Porém dever-se-ia aceitar igualmente que esse ativismo do Estado,
que constituiu apoio decisivo ao setor privado durante esses anos, adquiriu
posteriormente um caráter desmesuradamente estatizante que conduziu
sem dúvida a múltiplos problemas de inibição e deslocamento da iniciativa
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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privada, assim como de protecionismo exagerado e ganancioso, de entraves
burocráticos de todo tipo, de distorção do sistema de preços e de profundos
desequilíbrios macroeconômicos.
O exame desapaixonado desses movimentos pendulares no sentido do
excesso de intervenção ou de desnecessidade do Estado deveria dar lugar a
uma apreciação mais pragmática a respeito das formas mais apropriadas de
complementação do Estado e do mercado e do papel da sociedade civil e das
organizações cidadãs nas novas condições, desaos e tarefas, tanto nacionais
quanto externa, que o país enfrenta.
Em relação a essas últimas, uma análise estratégica que antecipe
reexivamente as tarefas do futuro deve ter como eixo principal de preocupão
o rápido avanço da integração transnacional nos campos ecomico, potico e
cultural, aos quais se juntaram mais recentemente, com especial intensidade e
velocidade, os circuitos nanceiros e tecnológicos. Esse complexo e penetrante
processo de globalização gerou pautas que operam como verdadeiros
“imperativos” aos quais nenhum Estado pode subtrair-se. O problema ecogico
representa, em outro sentido, um cririo universal similar. Por outro lado, esse
mesmo processo de transnacionalização se desenvolve através de circuitos
segmentados que tendem a aprofundar a fragmentação de nossa sociedade
dividida. Nãoo, pois, somente as experiências trauticas de nosso passado
mas também esse novo contexto, caracterizado pelo duplo movimento de
integração e exclusão, o que nos obriga a repensar o Estado.
Considerando a nova situação, visualiza-se a magnitude do tema, pois
torna-se necesrio não apenas reexaminar as tarefas que incumbem ao
Estado e sua ação concreta mas também, inclusive, a própria noção da coesão
do Estado nacional nessa nova fase histórica. Na perspectiva da nova etapa
democrática parece oportuno e conveniente, portanto, organizar uma reexão
coletiva acerca de novas modalidades de organização, ação e gestão do Estado
e da sociedade civil, sugeridas e motivadas pelas grandes transformações
ideológicas, socioeconômicas e políticas recentes, que se sucedem tanto no
país quanto no mundo, com o propósito de examiná-las à luz da realidade
chilena e chegar eventualmente a propostas concretas.
O processo de consolidação democrática se iniciou com um rico caudal
de ideais acerca das tarefas e desaos que devem ser enfrentados nos principais
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setores do desenvolvimento do país e das orientações de políticas que devem
ser aplicadas em cada um deles, porém temos menos experiência sobre como
materializar institucionalmente e organizar a gestão dessas políticas através de
um Estado renovado e de uma sociedade civil reorganizada. Isso inclui novas
formas de interação entre o Estado e o mercado e também entre estes e o
cidadão, a sociedade civil, as organizações solidárias de base e as regiões; uma
maior ênfase na ecácia, exibilidade e descentralização; e uma preocupação
primordial com os aspectos tecnológicos.
8. Algumas conclusões preliminares e uma mensagem da
experiência chilena
Período da CEPAL – décadas de 1950 e 1960
A crise de 1930 marcaria o m de uma época de desenvolvimento capi-
talista que se caracterizou por um extenso processo de integração econômica
internacional. Essa crise deu lugar a um profundo processo de reajuste das
políticas de desenvolvimento seguidas até então, caracterizando esse processo
com a instauração crescente de políticas protecionistas e de estímulo à produ-
ção, e com o emprego mediante o incremento do gasto público e a intervenção
direta, ativa e crescente do Estado.
Nesse contexto internacional, no nível dos países da América Latina, a
contribuão teórica da CEPAL desempenharia papel chave. Em particular, o
pensamento de Raul Prebisch, baseado numa interpretação própria das causas do
subdesenvolvimento latino-americano e a necessidade de poticas orientadas à
industrializão e modernizão das economias do continente, alcançou enorme
inuência nas camadas intelectuais e políticas, particularmente no Chile, dado
que a proximidade geográca (a sede da CEPAL estava radicada em Santiago)
permitiu maior difusão, especialmente no nível das instituições acadêmicas.
Nesse sentido, o Estado passou a ser um agente muito ativo na adoção de
políticas econômicas. A criação de um conjunto de instituições e o impulso de
políticas blicas universais por parte do Estado podem ser consideradas como
os principais legados positivos dessa época. Entre essas políticas, destacam-se
sem dúvida a criação de um grupo poderoso e durável de instituições para o
impulso do desenvolvimento produtivo de longo prazo (Corfo): a criação de
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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um conjunto de empresas públicas para o fornecimento de uma infra-estrutura
enertica (Endesa, ENAP), ou de fornecimento de insumos industriais sicos
(CAP) para a modernização da agricultura (Iansa); o desenvolvimento do
transporte aéreo nacional (LAN); e o desenvolvimento das telecomunicações
(ENTEL) entre outras. Junto ao desenvolvimento de instituições estatais
poderosas, essa época se caracterizou também pelo impulso, a partir do Estado,
de políticas sociais universais nos âmbitos da saúde, habitação, educação e
previdência social.
A sociedade chilena também sofreu nessa época importantes mudanças.
O maior acesso à educação por parte das camadas médias permitiu maiores
níveis de mobilidade social. Formou-se uma classe empresarial e prossional
pública de alto nível, em torno do desenvolvimento das empresas públicas.
Junto com isso, fortaleceram-se as organizações operárias e os partidos
populares de esquerda.
Se o desenvolvimento da indústria e as políticas sociais do Estado per-
mitiram o desenvolvimento e crescimento dos setores médios urbanos, no
setor rural a reforma agrária e a sindicalização camponesa seriam o motor de
grandes transformações estruturais, tanto econômicas quanto sociais.
Apesar das enormes realizações desse período também surgem alguns legados
negativos que é preciso destacar. A persistente instabilidade macroeconômica,
com a sucessão de surtos inacionários, os programas de estabilização e o
estrangulamento externo devido à ausência de desenvolvimento exportador foram
a meu ver os maiores legados negativos de uma etapa caracterizada por uma
profunda transformação e modernização industrial e social do país.
Unidade Popular – 1970 a 1973
O surgimento da Unidade Popular e seu posterior e dramático colapso o
podem ser entendidos senão no contexto do próprio desenvolvimento do modelo
“estadontrico” e em particular na ascensão das classes operias e camponesas,
no desenvolvimento da intelectualidade ao nível das classes dias, resultado
das grandes transformações no aspecto econômico e social dos 50 e 60.
O governo de Salvador Allende teve de enfrentar um período de agudas
contradições sociais e radicalização política tanto da esquerda quanto da
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direita, tanto em nível nacional quanto internacional, que provocou além disso
grave desordem social e desordem produtiva importantes, no contexto do
esgotamento nacional e internacional do modelo “estadocêntrico”.
Apesar da grave crise institucional vivida pelo país nesses três anos,
podem-se indicar algumas importantes realizações desse período, como a
nacionalização da grande mineração de cobre e o aprofundamento da reforma
agrária, que permitiu o m do latifúndio e portanto a geração das condições
para o aumento da produtividade e uso da terra. Entre os legados negativos
estão os profundos desequilíbrios macroeconômicos, a inação descontrolada
e a desorganização produtiva.
Ortodoxia neoliberal – 1974-1980
O esgotamento do modelo “estadocêntricoe a crise econômica e
institucional gerada a partir da experiência da Unidade Popular no Chile,
coincidiram em nível internacional com uma reacomodão das idéias
dominantes, particularmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde estava
ocorrendo profunda mudança das políticas econômicas de estilo keynesiano
para políticas neoliberais.
Em matéria econômica, o governo militar optou por essa última alternativa.
O controle total do poder do Estado, a auncia e inclusive a proibição de todo
tipo de organização sindical ou social, permitiu a aplicação, sem contrapesos, de
um completo programa de reformas econômicas. Seus elementos básicos foram:
um drástico ajustescal baseado na redução de gastos blicos correntes, sociais
e de investimento, e a ampliação da base tributária mediante impostos indiretos, a
privatização da maior parte das empresas públicas e de parte dos serviços públicos,
a eliminação da política industrial, a focalização compensatória do gasto social,
a abertura externa unilateral comercial e nanceira e a desregulamentação dos
mercados de bens e serviços e de fatores de produção: terra, trabalho e capital.
O período mais purista de aplicação das receitas neoliberais estendeu-se
desde 1974 até meados de 1980. Não obstante, o país sofreu uma forte recessão
econômica entre 1982-1984, em seguida à qual adotaram-se medidas mais
pragmáticas de política econômica que permitiram a recuperação da economia e o
início de um processo de aceleração do crescimento com relativa estabilidade.
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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Nesse sentido, o cabe dúvida de que entre os principais marcos positivos
da aplicação mais ortodoxa do modelo neoliberal de mercado se destacam os
relacionados com uma busca permanente dos equibrios macroecomicos,
o saneamento das nanças públicas, a criação de condições macro para o
desenvolvimento exportador, instituições e políticas para o desenvolvimento
produtivo, a privatizão de empresas públicas (não obstante seus criticáveis
procedimentos), a formão de novas classes empresariais privadas e a
manutenção de um Estado forte.
Apesar desses êxitos, a aplicação dessa ortodoxia econômica resultou
em uma rie de legados muito negativos: uma profunda deterioração social, o
desmantelamento dos serviços sociais públicos, especialmente a saúde e a educação,
a acentuação da desigualdade social, uma alta concentração do poder e da riqueza,
o endividamento externo e uma forte deterioração das classes médias.
Período neoestruturalista – 1990 em diante
O retorno à democracia marcou o fim de um período de agudos
enfrentamentos na sociedade chilena. Entre as cadas de 60 e 90 ocorreram
profundas reformas institucionais e estruturais do país, sob os lemas revolução em
liberdade”, “caminho chileno ao socialismo” e “neoliberalismo”. Impulsionaram-
se estas reformas e até certo ponto elas se impuseram ou se deszeram.
A esta altura consenso de que o retorno à democracia foi um processo
cuidadoso e negociado. A administração nascente optou por uma política de
consensos no plano político e também no econômico. O sistema econômico
instaurado pela ditadura foi assumido em grande parte, para em seguida
reformá-lo e ajustá-lo gradualmente, com particular enfoque no plano social
e na inserção internacional do país.
Nesse contexto, pode-se resumir dizendo que os principais êxitos do
peodo s-1990 se referem à conservação e fortalecimento dos equibrios
macroeconômicos, instaurando uma regra de equilíbrio scal, respeitada ao longo
do tempo, gerando alta credibilidade sob esse aspecto; ao impulso de uma reforma
tributária, sustentada no curto prazo por uma política social muito mais expansiva
e focalizada, dirigida em particular à diminuição da pobreza, que se reduziu de
45% em 1990 para 18% em 2003; procurou-se corrigir as externalidades pprias
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do mercado, mediante o estabelecimento de uma forte institucionalização
regulatória; introduziu-se o mercado no desenvolvimento de tarefas tradicionais
do Estado, como por exemplo as obras públicas, desenvolvendo-se uma vigorosa
política de concessões; estimulou-se o desenvolvimento tecnológico e produtivo;
criaram-se instituões em maria de política ambiental; e nalmente não
vida de que o aprofundamento da inserção internacional no plano ecomico
e político foi também uma realização desse período.
Não obstante os enormes êxitos do período, continuam pesando
muitos dos legados negativos do período neoliberal mais ortodoxo, quais
sejam a excessiva concentração de riqueza e poder; uma elevada desigualdade
distributiva; auncia de política de ordenamento territorial e de vio
estratégica de desenvolvimento de longo prazo.
À guisa de conclusões: a mensagem da experiência chilena
A alise e exame do processo histórico de mudaas na potica
econômica vivido pelo Chile permitem extrair importantes conclusões, e
certamente esclarecer também certas confusões que estão no imaginário de
uma parte importante daqueles que tratam da ciência econômica e que tendem
a ver a aplicação das políticas econômicas fora do contexto do período concreto
no qual se desenvolvem, tanto em nível nacional quanto internacional, e de
seu contexto histórico.
Do exame da política econômica chilena no último século posso
então retirar algumas das seguintes conclusões a respeito do período
“mercadocêntrico” mais recente:
(1) a importância determinante do legado de empresas produtivas públicas
estratégicas criadas no período “estadocêntrico” e privatizadas pelo
regime militar;
(2) a importância crucial das reformas estruturais e institucionais básicas
dos períodos da CEPAL e socialista, especialmente a reforma agrária
e a nacionalização do cobre;
(3) o caso chileno não constitui um exemplo quimicamente puro de
políticas neoliberais bem sucedidas, como se costuma considerá-lo; o
Estado cumpriu um papel decisivo em importantes políticas públicas
Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legados
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de desenvolvimento produtivo desde começo do governo militar e
de reativação keynesiana depois da crise da dívida;
(4) desde 1990, o modelo chileno se identica ainda menos com o
neoliberalismo. Não se deve confundir neoliberalismo com o respeito
aos equilíbrios macroeconômicos e à economia de mercado, que são
inerentes a qualquer economia contemporânea. Por outro lado, desde
1990 o Estado tem-se fortalecido com reformas tributárias, sociais,
regulatórias, produtivas, concessões, obras públicas, etc., e
(5) a receita do relativo êxito chileno desde 1990 parece basear-se
principalmente, entre outros elementos, nos seguintes:
o legado de uma economia em relativo equilíbrio macroeconômico
e elevadas taxas de investimento, exportações e crescimento;
manutenção e aperfeiçoamento dos equilíbrios macroeconômicos;
reforma tributária;
forte ênfase em políticas sociais, especialmente trabalhista, de
pobreza, saúde e educação;
fortalecimento das políticas de inovação tecnológica e
desenvolvimento produtivo;
criação de incentivos ao investimento privado em infra-estrutura,
especialmente mediante o sistema de concessões;
estabelecimento e fortalecimento de diversas instituições regu-
latórias, e
políticas ativas de promoção de exportações e inserção internacional.
Dessas conclusões sobre a experiência chilena destaca-se um denominador
comum: um Estado forte e pró-ativo, que não se inibe diante do mercado e sim
desenvolve um amplo leque de políticas públicas para nele inuir.
Osvaldo Sunkel
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DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
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Colômbia: um país de
contrastes
Alfredo Rangel*
Alguns dados gerais
A
Colômbia é o terceiro país mais populoso e a quinta economia da
América Latina. É o quarto país latino-americano em extensão e sua superfície
equivale às de Portugal, Espanha e França reunidas. Possui geograa privilegiada
e de enorme diversidade, pois é o único país com saída pra os dois oceanos,
sendo simultaneamente caribenho, andino e amazônico. Com apenas 0.7% da
superfície da terra, a Colômbia possui 15% da biodiversidade global, superado
somente pelo Brasil.
Com 42 miles de habitantes, é demogracamente muito desconcentrada:
28% da população vive nas quatro cidades principais, Bogotá, Medellín, Cali e
Barranquilla. Somente em Bogotá habita 15% da população total. Na Combia
8 cidades com populão superior a meio milo de habitantes e 22 com mais
de 100 mil. O país é também economicamente desconcentrado: 22% da atividade
econômica se localiza em Bogotá, 15% em Medeln e 12% em Cali. A economia,
no entanto, é muito diversicada; 55% das exportações são constitdos de uma
grande variedade de produtos diferentes do petleo, carvão e café, que são
* Diretor da Fundação Segurança e Democracia.
alfredorangelsuarez@yahoo.com
Colômbia: um país de contrastes
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
os principais itens de exportação e representam 25%, 13% e 7% do valor das
exportações, respectivamente. Mas é uma economia muito pouco globalizada:
as exportações representam somente 17% do produto interno.
Sua intrincada geograa dicultou durante decênios a integração nacional.
As diculdades de comunicão obstaculizaram a integração das economias
regionais entre si e destas com os mercados externos. A Colômbia tem sido
um país muito insular que apenas recentemente está se abrindo ao mundo.
Não obstante, sempre contou com uma das elites políticas, intelectuais e
empresariais mais cultas e sosticadas da região. Hoje, junto ao Brasil e à
Argentina, a Colômbia é um dos países que possui maior mero de prossionais
competentes, principalmente nos mais elevados níveis corporativos, e converteu-
se em exportadora líquida de capital humano qualicado.
Simultânea e paradoxalmente, tem sido também o país mais violento
da região e o mais estável, econômica e politicamente, durante os últimos
decênios. Tem a Constituição mais antiga da América, com exceção da dos
Estados Unidos. Também tem os partidos políticos mais antigos da região e
nela habita e combate o guerrilheiro mais velho do mundo.
É um país de contrastes e paradoxos. Um país com grande tradição
civilista no qual as forças militares nunca tiveram inuência potica signicativa,
embora tenha atravessado durante o primeiro século de sua existência
independente nove guerras gerais e 54 revoluções locais, que culminaram na
Guerra de Mil Dias no início do século XX e em seguida uma confrontação
entre partidos durante os anos 50 daquele século e um conito armado interno
de caráter insurgente nos últimos 40 anos, que ainda não terminou. Um país
civilista, sem tradição de militarismo, porém com arraigado sectarismo político-
partidário entre os civis, talvez sem igual na região, que acarretou no passado
freqüentes enfrentamentos armados entre membros dos principais partidos
políticos tradicionais, o Liberal e o Conservador.
História recente
Depois da Guerra dos Mil Dias, ocorrida nos últimos anos do século XIX
e nos primeiros do século XX, na qual se enfrentaram membros do partido
Liberal contra seus correspondentes do partido Conservador, a Combia viveu
Alfredo Rangel
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
meio século de paz política, interrompida por novo enfrentamento político-
partidário durante os primeiros anos da década de 50 do século passado. Esse
período recebeu o nome genérico de la Violencia e ocasionou entre 300 mil e
500 mil mortos, gerando um imenso deslocamento de camponeses em direção
às principais cidades do país.
Essa confrontação foi interrompida pelo golpe militar cujo caudilho foi o
general Gustavo Rojas Pinilla, apoiado por uma frão do partido Conservador,
curiosamente o partido ao qual pertencia o presidente deposto pelo golpe. Foi
oferecida uma anistia geral que desmobilizou a maioria das hostes partidárias
que se haviam erguido em armas. Essa ditadura durou somente quatro anos e
foi substituída por um governo militar muito breve, que preparou o retorno
à democracia. Para dar m à violência partidária, os dois partidos tradicionais,
Liberal e Conservador, chegaram a um acordo para alternar-se no poder
durante os 16 anos seguintes, repartindo entre também de maneira milimétrica
toda a burocracia do Estado.
Esse pacto se denominou Frente Nacional, e embora tenha permitido o m
da violência partidária causou um importante fechamento dos espos políticos
e uma asxia do pluralismo democrático. Durante as décadas dos anos 60 e 70 o
país se urbanizou aceleradamente, comou a surgir uma classe dia educada,
multiplicaram-se os meios de comunicação de massa e o regime político da Frente
Nacional começou a dar sinais de esgotamento. No entanto, alguns dos grupos
armados camponeses da vioncia partidária, que o haviam aceitado a anistia,
transformaram-se na guerrilha das FARC, adotaram uma ideologia comunista
e assim começou a gestar-se o processo insurgente. Simultaneamente, com o
impulso dos ventos da revolução cubana, surgiu outro movimento guerrilheiro,
o ELN, cujos quadros dirigentes eram predominantemente estudantes
universitários mas que conseguiria inicialmente uma pequena base camponesa
que lhe serviria de sustentação. Posteriormente, no icio dos anos 70, surgiria
o M-19, movimento guerrilheiro urbano que reivindicava o suposto triunfo
eleitoral do general Rojas Pinilla, que segundo seus adeptos fora usurpado pela
aliança frente-nacionalista dos partidos tradicionais.
No início esses grupos guerrilheiros eram muito débeis, mal armados e
insucientemente nanciados, não contavam com apoios sociais signicativos e sua
capacidade militar era muito precária. Tanto o ELN quanto as FARC hibernaram
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durante os primeiros 20 anos de sua existência em zonas muito marginais da
Colômbia, e somente de tinha notícia deles por ataques ocasionais a povoados
muito distantes para assaltar pequenos bancos ou para roubar armas a um par de
policiais. O M-19 era tão pobre quanto as guerrilhas rurais, mas compensava essa
carência com ações audazes de propaganda armada nas cidades, o que lhe trazia
grande ressonância nos meios de comunicação de massa. Essa situação mudou
quando o ELN, que no começo dos anos 80 estava prestes a extinguir-se, encontrou
na extorsão às companhias petroferas uma imensa fonte de recursos econômicos,
e as FARC zeram o mesmo com os recursos do narcotráco, depois de alguns
anos de hesitação por motivos ideológicos. O M-19, por sua vez, nunca teve uma
estratégia nanceira ecaz e por isso continuou a ser pobre, e acabou vendo-se
obrigado a refugiar-se em zonas rurais depois de ter sido quase desarticulado pelos
órgãos de segurança do estado no nal dos anos 70.
A década de 80 seria uma das mais convulsionadas do país, devido à
irrupção do narcotráco com força inusitada, com grandes cartéis da droga
que enfrentaram violentamente o Estado a m de evitar a extradição de
narcotracantes aos Estados Unidos. Foram os anos do narco-terrorismo durante
os quais candidatos presidenciais, juízes, militares, policiais, altos dignitários do
Estado, parlamentares e centenas de pessoas comuns foram assassinados pelas
as, tanto em homidios seletivos como em massacres indiscriminados que
procuravam gerar terror na população. Essa foi a época de Pablo Escobar e
Rodriguez Gacha, dois dos nomes mais famosos da máa colombiana.
Simultaneamente, as guerrilhas das FARC e do ELN se fortaleciam,
ampliavam sua presença territorial, multiplicavam o numero de seus homens
em armas, aumentavam sua capacidade militar e seus apoios sociais e políticos.
O M-19, fortalecido nas zonas rurais, continuava a realizar ações espetaculares,
como a invasão da embaixada da república Dominicana em Bogotá, quando
tomou dezenas de diplomatas como reféns. Ao mesmo tempo, o presidente
Belisario Betancourt iniciava a era das negociações de paz com as guerrilhas,
em particular as FARC e o M-19, proclamou-se uma anistia geral para as
guerrilhas e implantou-se a busca de uma solução política para o conito
armado como elemento essencial da agenda política nacional. Infelizmente
essa primeira tentativa de paz terminou catastrocamente com a tomada do
Palácio da Justiça em Bogotá por parte do M-19, após uma acidentada trégua
salpicada de violações de parte a parte.
Alfredo Rangel
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Não obstante, no nal dessa cada o governo de Virgilio Barco conseguiria
chegar a um acordo de paz com o M-19 e seu sucessor, César Gaviria, faria o
mesmo com outros quatro pequenos grupos, o EPL, o Quinn Lame, o PRT e
a CRS. Simultaneamente foi convocada uma Assembia Nacional Constituinte
que ampliaria os espaços poticos e realizaria reformas institucionais muito
importantes para democratizar o regime político. Poucos anos depois seriam
desmantelados os principais cartéis da droga, sem que isso signicasse o m do
narcotco, e sim o surgimento de dezenas de pequenos cartéis que, ao contrio
dos anteriores, não buscavam confrontação violenta com o Estado, optando pela
corrupção de políticos e funciorios, e assumiam baixo perl social político,
mesmo quando continuavam a auferir enormes fortunas.
Os diálogos de paz tentados pelo governo Gaviria conjuntamente com
as FARC e o ELN, primeiro em Caracas e em seguida em Tlaxcala, no México,
fracassaram. Seu sucessor Ernesto Samper, presidiria um governo afetado pelo
esndalo gerado pêra penetração de recursos do narcotráco no nanciamento de
sua campanha eleitoral. A crise política resultante impediu que os diálogos de paz
avançassem; ao contrario, essa crise foi o pano de fundo da maior escalada militar
das FARC, que valeu ao exército colombiano os mais graves golpes da historia
da luta contra a insurreão. Simultaneamente, apareceram com muita foa no
cenário os grupos paramilitares, os quais mesmo quando se tratava de organizações
basicamente regionais, conseguiram articular-se e coordenar-se em uma organização
nacional denominada AUC. Essas organizões iniciaram uma ação automática
de extermínio contra aqueles que em sua opino serviam de apoio às guerrilhas,
provocando deslocamentos maciços de pessoas em todo o país. Em pouco tempo
as guerrilhas responderiam comticas semelhantes contra as bases de apoio dos
paramilitares, gerando-se assim uma verdadeira crise humanitária, originada pelo
transbordamento bárbaro do conito armado interno na Colômbia.
O ambiente de fracasso militar, a escalada guerrilheira, o auge dos
paramilitares e a crise humanitária levaria o país a clamar pelo reinicio dos
diálogos de paz com a guerrilha. Esse fator decidiria a suceso presidencial
ganha por Andrés Pastrana, que pouco tempo depois de eleito desmilitarizou
uma ampla zona do país, de mais de 40 mil quilômetros quadrados, a m de
iniciar as conversações de paz com as FARC. Foi uma tentativa tortuosa que
culminou em rotundo fracasso, com responsabilidades divididas de ambas as
partes. A guerrilha adotou uma atitude triunfalista em conseqüência de suas
Colômbia: um país de contrastes
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recentes vitórias militares e com a expectativa de continuar avançando no terreno
militar para derrotar o exército nacional e tomar o poder no país utilizou os
diálogos de paz comotica potica dentro de sua estragia de guerra. Nunca
houve vontade real de chegar a um acordo. Por seu turno, o governo de Pastrana
nunca teve uma estratégia clara de negociação, apostando mais nos gestos de boa
vontade do que na ecia potica, e apareceu diante da opino blica como
exageradamente innuo e débil frente a uma guerrilha cada vez mais soberba.
Os abusos da guerrilha contra a populão na zona desmilitarizada nalmente
acabariam com os dlogos de paz, os quais se deszeram poucos meses antes das
eleições que escolheriam o sucessor de Pastrana, o presidente Álvaro Uribe.
A situação atual
As eleições presidenciais de 2002 se transformariam em um plebiscito
contra a guerrilha e a favor da linha dura contra ela. Candidato Álvaro Uribe
foi quem convenceu o eleitorado de que ele era a melhor opção para devolver
a segurança ao país e dominar os violentos. Uribe entrou na disputa eleitoral
como candidato independente apesar de ter sido durante toda a vida membro
destacado do Partido Liberal, derrotando no primeiro turno o candidato desse
partido, que inicialmente parecia ser o mais provável ganhador, coisa inédita
até esse momento na história eleitoral colombiana.
Fiel ao mandato recebido de seus eleitores, a política de segurança
democtica seria o eixo principal do governo do presidente Uribe. Seu objetivo
era recuperar o controle do território nas zonas até então dominadas pelos
violentos, assegurar à população o exercício das liberdades até o momento
constrangidas pela insegurança e debilitar os grupos irregulares a m de obrigá-
los a negociar segundo as condições do Estado. Para isso, buscaria fortalecer
e modernizar as forças estatais de segurança, ampliar sua base força, melhorar
as comunicações, incrementar sua mobilidade, aperfeiçoar seu treinamento e
dotação. Também buscaria fazer com que a cidadania, de maneira voluntária, se
organizasse para dar apoio efetivo ao estado na derrota dos violentos por meio
de amplas redes de informantes. Procurava dessa maneira manter e incrementar
de forma substancial o esforço iniciado por seu antecessor utilizando o Plano
Colômbia, um amplo programa de cooperação com os Estados Unidos que
começara dois anos antes, motivado pela preocupação suscitada naquele
Alfredo Rangel
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
momento no governo norte-americano pela eventualidade de que as guerrilhas
colombianas pudessem vir a derrubar o sistema democrático no país.
Não obstante, o governo Uribe deixou a porta aberta para eventuais
negociões de paz com qualquer grupo irregular, porém ampliando as condições
para fazê-lo. As principais eram uma tgua unilateral e incondicional por parte
do grupo interessado, uma agenda limitada exclusivamente a acordar as condições
jurídicas e sociais de sua desmobilização e desarmamento, uma vigilância
internacional que garantisse a seriedade das conversões e os compromissos
assumidos e uma clara negativa a desmilitarizar qualquer zona do território
nacional para realizar esses diálogos. As guerrilhas se negaram de maneira
peremptória a aceitar essas condições, mas os grupos paramilitares concordaram.
Assim comou a desmilitarizão desses grupos, que terminou três anos mais
tarde com o desarmamento da maioria deles.
Para conseguir essa desmobilização o Congresso colombiano aprovou
um quadro judico especial que se denominou Lei de Justiça e Paz, que será
aplicado aos paramilitares acusados de delitos de lesa-humanidade ou de crimes
de guerra. Essa lei oferece uma redução substancial de penas sob a condição de
que o condenado revele a verdade de todos os seus crimes e entregue todos os
bens que possua a m de compensar suas vitimas. Se algumas dessas condições
o forem observadas, o culpado será levado à justa comum, caindo sobre ele
todo o peso da lei, o que implica na multiplicação por muitas vezes dos anos de
prisão que teria de cumprir por seus delitos. Os paramilitares acusados desse tipo
de crimes serão indultados do delito de associação simples para delinqüir.
Como resultado desse processo, 32 mil pessoas pertencentes a grupos
paramilitares se desmobilizaram, 16 mil dos quais entregaram suas armas.
O restante fazia parte de grupos de apoio logístico, de inteligência, etc. Os
50 principais lideres desses grupos se encontram reclusos em uma prisão de
segurança máxima, e muitos parlamentares e políticos que se uniram a eles
também estão detidos e sendo julgados por esses fatos.
Paralelamente, as guerrilhas têm sido debilitadas pelo Estado e se viram
obrigadas a retroceder, perdendo bases de força e diminuindo substancialmente
o número de suas ações violentas. Assim, o ELN passou a ter de 4.500
homens a apenas cerca de 1.200, de o numero de seqüestros realizados, que
foi de 680 em 2001, passou a 60 em 2006. Por sua vez, as FARC passaram de
Colômbia: um país de contrastes
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18 mil homens em armas a cerca de 14 mil, e realizou somente 4 tomadas de
povoados em 2006, depois de conseguir 60 em 2002.
Devido ao fortalecimento do Estado, à desmobilizão dos paramilitares
e ao debilitamento da guerrilha, a seguraa foi recuperada de forma muito
signicativa na Colômbia. Com efeito, nos últimos cinco anos a taxa de
homidios por 100 mil habitantes passou de 63 para 33, de 1.700 seestros
extorsivos cometidos em 2002 passou-se a cerca de 280 em 2006. No mesmo
peodo o número de barreiras ilegais nas estradas caiu de 180 para 4, e o de
ataques guerrilheiros contra povoados declinou de 32 para 4. Essa melhoria
substancial das condões de seguraa incidiu de maneira muito positiva na
economia nacional, que está crescendo a veis próximos de 8% ao ano, quando
sua dia hisrica recente era de apenas 3% anuais. O investimento estrangeiro,
que era em dia de 2 biles de lares anuais, passará este ano a 7 bilhões. Em
conseqüência, a taxa de desemprego, que em 2002 era de 17,5%, está agora em
10,5%. Estes são apenas alguns dos indicadores do efeito positivo dos progressos
de segurança sobre a economia.
Apesar disso, o narcotráco é um problema que resiste a ceder na
Combia. O fracasso do atual governo se acrescenta ao de governos anteriores,
que não conseguiram aplicar uma estratégia de sucesso para reduzir a quantidade
de cocaína produzida e exportada na Combia. Depois de cerca de dez anos de
fumigações de plantações de coca e centenas de extradões de colombianos aos
Estados Unidos, a quantidade de cocaína produzida o diminuiu. O que diminuiu
foi a área de cultivo da coca, mas trata-se de uma vitória de Pirro, pois agora
produz-se a mesma quantidade de cocna em metade da área cultivada, graças
aos progressos dos cultivadores e narcotracantes para elevar substancialmente
a produtividade dessas plantações. Diante dessa situação o governo parece estar
examinando de maneira mais critica os resultados da luta anti-narcóticos e por
enquanto anunciou uma redução das fumigações de cultivos e um esfoo maior
de erradicão manual e de interdição de drogas ilícitas. Porém a alta rentabilidade
desse comércio e a ampliação constante dos mercados internacionais atentam
contra as possibilidades de êxito dessas novas medidas.
Mas outros indicadores relativos à liberdade política, na qual também
houve progressos substanciais. As recentes eleições locais realizadas em
outubro de 2006 foram as mais seguras e menos violentas dos últimos dez
Alfredo Rangel
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anos. A Colômbia registrou um record histórico de participação eleitoral e em
número de candidatos inscritos. Apesar das intenções dos grupos violentos de
sabotar as eleições, desta vez houve duas vezes menos assassinatos políticos
do que nos comícios de 1997, 36 vezes menos seqüestros e o número de
municípios afetados pela violência foi três vezes menor.
Sobre essas eleições é preciso dizer também que elas demonstraram a
fortaleza e o pluralismo da democracia colombiana. Candidatos independentes,
tanto de centro quanto de esquerda, que enfrentaram máquinas políticas
consolidadas, ganharam as prefeituras de Bogotá, Medellín, Cali e Cartagena,
entre os casos mais notáveis. Também saíram fortalecidos pelo menos quatro
partidos nacionais de criação recente, como o Partido de la U, Cambio Radical,
Convergencia Ciudadana e Pólo Democrático Alternativo. Não obstante, os
partidos tradicionais, Liberal e Conservador, para os quais recentemente alguns
haviam expedido o atestado de óbito, demonstraram renovado vigor e força,
colocando-se em primeiro e em segundo lugar na preferência dos votantes,
porém não são mais os partidos que algumas décadas dominavam ampla
e exclusivamente o panorama político nacional.
Perspectivas de segurança e paz
Apesar dos importantes avanços conseguidos nos últimos cinco anos,
a segurança e a paz continuam a ser os temas principais da agenda política
nacional. É necessário consolidar os progressos alcançados em matéria de
segurança e continuar a avançar no caminho em direção à paz.
O governo de Álvaro Uribe, eleito pela segunda vez no primeiro turno no
ano de 2006, estruturou um plano de consolidação da segurança democtica.
Para isso, contará nos próximos quatro anos com o mais elevado orçamento de
segurança que jamais existiu no país, robustecido por um imposto extraordinário
a ser pago pelos setores de rendimentos econômicos mais altos da sociedade.
Esses recursos servirão para fortalecer a presença do Estado em todo o território
nacional, continuar debilitando a capacidade e reduzindo a presença dos grupos
armados ilegais, recuperando para o estado o monolio da foa e ampliando
as garantias de todos os cidadãos para o exercício de seus direitos e o gozo de
suas liberdades. No caminho da paz resta concluir com êxito o processo com os
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grupos paramilitares e obter acordos de paz com os grupos guerrilheiros FARC
e ELN. Como foi mencionado, os principais chefes dos grupos paramilitares
submeteram-se à Lei de Justa e Paz, e se espera que os processos judiciais
produzam doses signicativas de verdade, de justiça e de reparação às vitimas, o
que não se havia conseguido em processos de paz anteriores com organizações
guerrilheiras. Na verdade, essa Lei é talvez a mais avaada e rigorosa do mundo
quando se trata de justiça de transição aplicada para obter a paz e resolver conitos
armados. Paralelamente, espera-se que o Estado consiga o desmantelamento de
alguns grupos emergentes surgidos recentemente, de pequenos bandos que o
aceitaram a desmobilizão ou formadas por paramilitares reincidentes. Esses
grupos parecem ter natureza distinta, o contra-insurgente com os anteriores
desmobilizados, e estarem mais dedicados ao narcotco e à obtenção de
rendimentos ilegais de outros tipos em algumas regiões do país.
Por outro lado, o governo es avaando há dois anos em conversões
de paz com o ELN em Havana, Cuba. Mesmo que não se tenham conseguido
progressos muito signicativos, o importante é que aparentemente esse grupo
insurgente tomou a decisão de abandonar as armas como forma de ação política
e de aceitar um acordo de paz com o Estado. Seu próprio enfraquecimento e
os sucessos eleitorais alcançados na Combia e no continente pela esquerda
democrática o fatores que eso por trás da decio do ELN de abandonar
a luta armada. O processo de negocião talvez seja lento, mas ao contrario
de outras ocasiões, desta vez parece irreversível. A desmobilização do ELN é,
portanto, questão de tempo, dois ou três anos no máximo.
A parte mais difícil é a desmobilização das FARC. Esse grupo não parece
ainda muito convencido de haver chegado ao limite de suas possibilidades
políticas mediante o apelo à luta armada. Apesar de haver reduzido pela
primeira vez em sua história o número de homens em armas, e de haver sido
obrigadas a sair de zonas onde antes tinham muita presença e relativo controle,
as FARC consideram que o governo não conseguiu derrotá-las depois de haver
realizado o maior esforço militar nos 40 anos de luta contra a insurgência,
como foi a campanha denominada Plano patriota. Isso nos leva a assumir uma
atitude muito dura diante de eventuais negociações de paz.
Não obstante, o acordo fundamental, que consiste em um intercâmbio
de seqüestrados políticos em mãos da guerrilha por guerrilheiros presos nos
Alfredo Rangel
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cárceres do país, é o passo prévio indispensável para poder-se realizar novas
conversações de paz entre o governo e as FARC. Após infrutíferas gestões de
parte de mediadores nacionais, inclusive ex-presidentes da República e a Igreja
Católica, o processo de intercâmbio humanitário para haver-se destravado
com a solicitação feita pelo presidente Uribe ao presidente da Venezuela para
que sirva de mediador nessa gestão humanitária. Chávez impôs ao tema uma
dinâmica muito ativa e sua gestão tem altas probabilidade de ver-se coroada
de êxito, pois conta com a conança e respeito de ambas as partes, condição
necessária para ó êxito de uma mediação. Depois de falar com Uribe e com
as FARC, espera-se que um encontro direto entre as duas partes que
poucos meses era impensável – seja possível na Venezuela e que Chávez lhes
apresente propostas que permitam superar os principais escolhos processuais
que até agora impediram a realização desse acordo humanitário.
Se a gestão de Chávez tiver êxito, o intercâmbio se realizaria antes de
transcorridos seis ou oito meses. É improvável que com uma agenda interna e
internacional tão complicada e conituosa como a sua, Chávez possa dedicar
mais tempo ao assunto. Se for realizado o intercâmbio, o passo seguinte
seria acordar as condições de uma nova negociação política entre o Estado
colombiano e as FARC. No melhor dos casos poderia pensar-se que em dois
anos se iniciariam conversações de paz e nos três ou quatro seguintes poder-
se-ia chegar a um acordo. Isso coloca as perspectivas mais otimistas de paz
na Colômbia em um horizonte de mais de cinco anos.
Esta dinâmica terá grande inuência sobre as perspectivas políticas e
eleitorais na Colômbia, onde se começa a discutir a possibilidade de um terceiro
mandato para o presidente Uribe. Caso venha a gerar-se uma expectativa favorável
a diálogos frutíferos de paz antes do m de seu atual mandato, as possibilidades
de sua segunda reeleição poderiam ser muito altas.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Equador: temas
fundamentais
León Roldós*
N
ão existe Estado, nação ou sociedade com possibilidade de autarquia,
isto é, que não necessite outro conglomerado para ser auto-suciente social,
política e economicamente; mas o grande esforço coletivo é e deve ser que as
relações ocorram em condições de dignidade e desenvolvimento. A principal
responsabilidade estará sempre com as classes dominantes, e o papel dos
governantes é o de fazer com que sirvam à justiça e à equidade, assim como
para impedir e punir a injustiça e a iniqüidade. Ninguém deve se excluir; todos
têm obrigação de contribuir.
A dignidade se vincula principalmente com os princípios e o “dever ser”,
mais do que com os resultados.
Os atores devem atingir o êxito com dignidade, não corrompendo e nem
submetendo-se à corrupção, não mentindo e nem gerando falsas expectativas,
não sendo desleais com os que tornaram possível o êxito, mas tampouco
assumindo a condição de todo-poderoso e infalível, e ainda pior no caso
de o êxito ter tido motivações de engano e isso inclui as meias verdades.
Os atores devem ser magnânimos no triunfo e justos nas responsabilidades
* Reitor da Universidade Estadual de Guayaquil
leonroldos@yahoo.com.mx
León Roldós
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que assumem. A justiça implica, por um lado, não entregar-se a excessos e à
desvalorização dos demais, por prepotência, perseguição ou revanche, e de
outro, não acreditar que perdoar ou esquecer o infrator ajuda o bem comum,
pois a impunidade é uma forma de justiça e estimula a reincidência.
No revés e no sacrifício deve-se também ser digno, jamais humilhar-se
nem tampouco nutrir amargura, recordar que também no que é singular a morte
não é o m, porque a ausência física pode potencializar-se em outras formas
de vida. Se os processos coletivos se despersonalizam, como deve ser, porque
ninguém é imprescindível nem insubstituível, sempre haverá a possibilidade
de novos atores e de construir uma realidade diferente.
O desenvolvimento também implica necessariamente justiça e eqüidade.
reside a diferença em relação ao simples crescimento e acumulação. É
verdade que é preciso criar riqueza, não é possível distribuir pobreza; mas é
criminoso que as cifras macro-econômicas do crescimento e da acumulação
resultem da exploração sem respeito aos valores sociais força de trabalho e
outros – e da deterioração ambiental.
O aspecto territorial e limítrofe
A redução do território nacional a 256.310 quilômetros quadrados marca
boa parte de nossa história. No século XVI, em Quito, iniciou-se a expedição de
Francisco de Orellana, que demonstrou a possibilidade de chegar-se ao Atlântico
pelo rio das Amazonas, porém desde a Real Audiência de Quito, condição
política imposta pela Espanha quanto aos Vice-reinados de Bogotá e Lima.
Até os acordos com o Peru de outubro de 1998, a percepção dos equatorianos
é a de que fomos sendo progressivamente reduzidos territorialmente.
Não vamos analisar o aspecto jurídico dos conitos limítrofes e as
ameaças militares, e nem os ambientes em que temerosos negociadores se
viram cercados, e sim as circunstâncias em si: nos séculos XIX e XX, a política
internacional foi condicionada pelos aspectos territoriais e no século XXI a
sensação é a de que as amputações foram feitas. Hoje é preciso trabalhar
no Equador real.
O desao é fortalecer o desenvolvimento nos setores fronteiriços com a
Combia e o Peru, o que parece posvel onde haja populão economicamente
Equador: temas fundamentais
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ativa e mais difícil na Amazônia, onde o aspecto ambiental que nunca se
pode excluir – condiciona severamente qualquer investimento.
Mesmo que o Brasil e o Equador não compartilhem limites, a macro-
política da Amazônia obriga a acordos entre os países da bacia do Amazonas,
rumo em que existem trabalhos importantes, mas são necessárias decisões
oportunas, não guiadas por empresas interessadas em investir e obter
rendimentos e sim pelas conveniências nacionais e da humanidade. Se o
benefício da conservação ambiental vai mais além das nações e Estados da
Amazônia, temos direito a ser credores de compensações de outras nações e
Estados que ademais principalmente os de maior crescimento econômico
são responsáveis pela deterioração ambiental que devemos reverter para tentar
recuperar a qualidade do meio-ambiente.
No aspecto fronteiriço e limítrofe, há dois temas que geram
preocupações.
Primeiro, a presença dominante da guerrilha colombiana em parte
dos setores limítrofes; talvez com certo exagero, mas a m de alertar para
o problema, o Ministro da Defesa do Equador expressou dias atrás que
em determinados setores do norte o Equador, em vez de limitar-se com a
Colômbia, que tem governo eleito e efetiva soberania, limita-se com a guerrilha
colombiana e o poder do narcotráco. Até agora, as principais conseqüências
têm sido as fumigações aéreas com produtos altamente tóxicos, hoje suspensas,
e os deslocados. O Equador pediu indenizações à Colômbia, mas parece que
essa solicitação é mais uma tomada de posição do que uma pretensão de tornar
efetiva a reclamação.
O tema vinculado com a Colômbia é o da base norte-americana em
Manta, que será analisado mais adiante.
Segundo, em relação ao Peru: os acordos de outubro de 1998, no Brasil,
entre os governos do Equador e do Peru, com base na opinião dos governos
dos países chamados garantes do protocolo do Rio de Janeiro de 29 de janeiro
de 1942, ao qual foi dado caráter vinculante, foram relativos ao Equador
continental, sem menção especíca aos limites marítimos, o que possivelmente
não foi considerado necessário pelos instrumentos subscritos pelo Equador,
Peru e Chile que zeram parte do Acordo do Pacíco Sul na década de 1950
León Roldós
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
que xava o mar territorial em 200 milhas, posição não aceita por outros
Estados e nem pela Convenção do Mar havendo os três países declarado
que a linha marítima era o paralelo correspondente ao ponto de união da terra
rme com o mar. Não obstante, em 2005 o Peru assumiu a tese da bissetriz
gerada pelo prolongamento da linha limítrofe continental, e não o paralelo
geográco antes explicado, e assim foi comunicado ao Chile, expressando
que os instrumentos do Acordo do Pacíco Sul não geravam fronteiras e sim
zonas econômicas. Em relação ao Equador, os governos de Toledo e Garcia
têm sido explícitos: todas as divergências terminaram com os instrumentos de
outubro de 1998, mas no Equador não deixa de haver a preocupação de que
poderia ser suscitada uma pretensão peruana contra o Equador semelhante à
reclamação apresentada pelo Chile, e vozes que propõem uma aproximação
com o governo chileno a m de unir posições.
O desejável é que o se alimentem dúvidas nem desconaas e
que tampouco ocorram pretensões de confrontação. A integração social e
econômica é indispensável. Os bons exemplos devem constituir referência, e
a Europa nos deu vários, com centenas de conitos e duas guerras mundiais,
com dezenas de milhares de mortos e gastos bélicos para matar e destruir,
com o argumento – ou pretexto – de fronteiras, que cou superado.
Composição demográca
A população do Equador se aproximará a 14 milhões de pessoas, em
ns de 2008, com uma emigração que pode ser da ordem de dois milhões,
principalmente concentrada nos Estados Unidos e na Europa.
O Equador é multiétnico e pluricultural.
A população que se declara ou se reconhece indígena representa pouco
mais de 10%, habita principalmente na Serra com elevado nível de integração
e no Oriente ou Amazônia, com um grau menor de integração, existindo
inclusive povoados que até hoje não se vinculam com a mestiçagem.
Os que se consideram com raízes afro-equatorianas chegam a 4%.
Os nascidos no Equador, descendentes de europeus e orientais, que ainda
não foram assimilados pela mestiçagem, pouco superam 1,5%.
Equador: temas fundamentais
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Não se deve confundir os pedidos de nacionalidade e cidadania dos
países de origem pelos descendentes de estrangeiros, como negação ou
resistência à mestiçagem, e sim interesse por tratamento preferencial em frutos
migratórios, devido à espoliação e exploração que signica a tramitação de
vistos para entrar nos Estados Unidos e nos países europeus.
Existe a prática de setores de rendimentos altos e médios de viajar aos
Estados Unidos para que seus lhos nasçam ali o que seria explicável se
houvesse motivos de saúde a m de que tenham cidadania norte-americana
em razão do lugar de nascimento.
Os mestiços são entre 84% e 85%.
As culturas indígenas e a afro-equatoriana têm potencializado a fortaleza
e a uma espécie de orgulho de suas etnias.
No caso dos ingenas, reclamam eles o tratamento de nõese
o reconhecimento do Estado equatoriano como “plurinacional” e não
apenas multiétnico.
O tema da plurinacionalidade alimentou a organização política dos
indígenas, que passou à vanguarda das causas sociais na década dos anos 90
do século XX, devido à crise do movimento sindical e de outras organizações
sociais. Será questão de peso na Assembléia Nacional Constituinte convocada
para reformar a institucionalidade do Estado e ditar uma nova Constituição.
Não creio que a maioria da Assembléia Constituinte 80 membros do
Movimento País, liderado pelo Presidente Correa, dentre 130 constituintes
permita muito mais do que o enunciado da plurinacionalidade, que deve
ser incorporada à Carta fundamental, junto com o reconhecimento da
diversidade cultural e de idiomas, além de alguns direitos econômicos e
sociais, como a aplicação de sua justiça consuetudinária no que não seja
contrário às convenções de direitos humanos.
Entre os pontos que não acredito venham a ser aceitos dentro do
macro-tema da plurinacionalidade está a territorialidade das nacionalidades,
porque limitaria severamente o direito do governo central de tomar decisões
de investimentos em petróleo, mineração e obras de infra-estrutura. Podem
vir a ser estabelecidos processos de audiências com as diversas nacionalidades,
mas o Presidente Correa não renunciará ao poder decisório.
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Divisão política teritorial. Sua administração.
Centralismo e autonomias
A Cordilheira dos Andes gera no Equador continental a divisão natural
em três regiões.
A Costa, entre a Cordilheira ocidental e o oceano Pacífico, hoje
subdividida em seis proncias, das quais cinco históricas Esmeraldas, Manabi,
Los Rios, Guayas e El Oro. A sexta província, Península de Santa Elena, de
criação muito recente, foi separada da Província de Guayas, deixando-a sem
maiores acessos ao mar aberto, isto é, o oceano Pacíco, cando estes reduzidos
a setores próximos do golfo de Guayaquil.
A Serra, historicamente situada entre a cordilheira Ocidental, incluindo
seus prolongamentos ocidentais, espécies de terraços em dirão ao litoral, e
a que antes se chamava Oriental ou dos Andes, hoje conhecida como Central,
a m de identicar com o nome de Oriental alguns cordões montanhosos no
prolongamento em direção à Amania. Até o icio do culo XXI, havia dez
proncias: Carchi, Imbabura, Pichincha, Cotopaxi, Tungurahua, Chimborazo,
Bolívar, Canar, Azuay e Loja. Recentemente foi criada a de Santo Domingo de los
Tsalichas, no prolongamento ocidental, antes parte da província de Pichincha.
A Região Oriental esta na Amazônia e sua divisão política territorial
responde principalmente à presença e força dos colonos provenientes de
diversos setores do território do Equador, na maioria mestiços, do que da
vontade dos povos originários. Hoje são seis províncias: Sucumbíos, Orellana
– ambas depositárias da maior riqueza petrolífera da Pátria – Napo, Pastaza,
Morona e Zamora.
As ilhas Galápagos constituem hoje uma província.
As regiões geográcas do Equador continental não possuem condição
jurídica para gerar sua própria gestão como região. De fato, províncias
litorâneas social e economicamente mais vinculadas com províncias da Serra
do que com outras da Costa.
A divisão territorial legal divide as províncias em cantões, e no último
quarto de século foi impossível deter a febre de cantonização a m de assegurar
rendimentos que se destinem ao desenvolvimento local.
Equador: temas fundamentais
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Os cantões se dividem em paróquias urbanas integradas às sedes
cantonais – e rurais, com juntas paroquiais de pouca signicação real.
As etnias dos povos indígenas ou nacionalidades, se assim vierem a
ser denidas na Serra e na Amazônia, e as organizações de setores sociais
originários em partes da Costa e da Serra, que se chamam Comunas, possuem
seus próprios governos e normas para sua organização e seus bens coletivos
ou comunais, reconhecidos parcialmente nos textos legais nacionais.
As províncias, desde a constituição de dezembro de 1946, se fortaleceram
com a criação de governos setoriais, chamados Conselhos Provinciais, com
prefeitos e conselheiros de eleição popular.
Não obstante, os governos locais de maior signicação social e política
são os dos municípios, nos quais a principal autoridade é o Alcaide eleito
popularmente, assim como os Conselheiros. Desde a Constituição de 1998
sua forca econômica aumentou devido a importantes transfencias de
competências e recursos do governo central e do Orçamento do Estado.
O governo do Presidente Rafael Correa anunciou a intenção de propor
à Assembléia Constituinte uma divisão política territorial diferente, com base
em regiões – menciona-se a possibilidade de sete a nove regiões – integradas
por províncias de leste a oeste, sem importar sua localização natural, seja ela
preferencialmente na Costa, Serra ou Oriente, com distritos metropolitanos
que seriam as cidades de mais de um milhão de habitantes, Quito, Guayaquil
e o distrito especial de Galápagos.
A tentativa de regiões integradas, como propõe Correa, se baseia nos u-
xos sociais, em economias semelhantes ou complementares, nos leitos e bacias
uviais, assim como nas vias de comunicação, existentes ou projetadas.
No governo militar dos anos 70, com muito dinheiro do petróleo, já se ha-
via tentado esse projeto, denindo-se a chamada “Rego Um. Integrada pelas
províncias do norte Esmeraldas, Carchi, Imbabura e Napo (ainda não existia na
Amazônia a fragmentação desta última com as províncias Sucumos e Orellana)
mas não deu certo devido à oposição dos setores dominantes das províncias, com o
argumento de que a regionalização era imposta para aprofundar o centralismo.
Recordemos que nos tempos anteriores à ocupação espanhola, antes
do Incario e durante este, a vinculação ingena era com a Serra, e parece ter
León Roldós
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havido contatos espodicos com os povos do litoral. A vinculação da Costa
com a Serra data do tempo da colônia espanhola e da jurisdição estabelecida
em Quito, realizando-se expedições em direção à Amazônia. Não esqueçamos
que Orellana, que chegou ao oceano Atlântico pelo rio das Amazonas, foi o
espanhol que fundou Santiago de Guayaquil em sua localização na colina situada
na conncia dos rios Babahoyo e Daule para formar o rio Guayas, principal
bacia hidrográca da América do Sul na vertente do Pacíco, que derrama suas
águas no golfo de Guayaquil, a mais importante incursão de mar da região.
Na época em que os maiores uxos de comunicação e transporte se
davam pelo mar, até o início do século XX, a importância de Guayaquil era
condão de sobrevivência. Por isso Guayaquil, independente na revolução de
9 de outubro de 1820, iniciou a campanha libertária que apoiada pelas forças de
Bovar, comandadas por Antonio José de Sucre, depois Marechal de Ayacucho,
e por um dos batales de San Martin, culminou na batalha de Pichincha que
libertou Quito da submissão à Espanha em 24 de maio de 1822, cujo povo já
havia proclamado sua independência em 10 de agosto de 1809, nessa ocaso
para assumir na América a defesa da Espanha contra a invasão napoleônica.
Guayaquil gerou a preteno de Bovar de anexá-la à Colômbia, enquanto
San Martín reclamava sua vinculação com o Peru, propiciando o encontro de
ambos em Guayaquil, em 25, 26 e 27 de julho de 1922, acontecimento e acordos
que levaram em seguida às batalhas de Junín e Ayacucho, ambas em território
peruano, que acabaram com o domínio espanhol na América do Sul.
As três cidades mais importantes da Real Audiencia, Quito, Guayaquil
e Cuenca, foram os eixos designados por Simón Bolívar para o sul da Gran
Colômbia e para a República do Equador, em 1830.
O federalismo nunca foi assumido pelo Equador porque não houve
desenvolvimento de cidades sede de estados federais, com suciente peso
econômico e político fora de Guayaquil, e seu enunciado que também foi
formulado em Loja – foi mais entendido como pretensão de separatismo.
Talvez tenha também pesado, na manutenção do estado unitário, que
setores dominantes de Guayaquil, desde Vicente Rocafuerte, segundo presidente
do Equador, tenham exercido o poder em boa parte da história tria, embora
lamentavelmente com práticas centralistas. Os principais acontecimentos
Equador: temas fundamentais
130
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
históricos que marcaram processos políticos, qualicados de revolução, tiveram
Guayaquil por cerio principal: a revolução marcista, assim chamada por ter
ocorrido em 6 de março de 1845, contra o poder do general venezuelano Juan
José Flores, primeiro e terceiro presidente do Equador; a Revolução Liberal
de 5 de junho de 1895, com a qual chegou ao poder o general Eloy Alfaro; a
revolução Juliana, de 9 de julho de 1925, que encerrou uma etapa de burguesia
liberal banqueira – Alfaro fora assassinado em 28 de janeiro de 1912 – e junto
com a modernidade do Estado fortaleceu paradoxalmente o centralismo; a
revolução de 28 de maio de 1944, que com a Assembléia Constituinte de 1944-
45 promoveu reformas de cunho socialista, mas que foi sobrepujada pelo único
equatoriano a exercer por cinco vezes a presincia da República, invencível nas
urnas, determinante da história desde meados dos anos 30 até 1972, quando
foi deposto: José Maria Velasco Ibarra, conservador e liberal do século XVIII e
inícìo do XIX, porém profundamente latino-americanista e anti-imperialista.
Guayaquil, que passou por processos políticos transcendentais e de
maior importância econômica, sobretudo com a agro-exportação, berço de
dezenas de governantes, declara-se afetada pelo centralismo e realmente isso
é verdade mesmo quando nas outras províncias de menor desenvolvimento
se fala de “bicentralismo: Quito e Guayaquil.
Possivelmente também tem peso uma prática muito característica de
Guayaquil desde o século XIX, a de que diante de necessidades insatisfeitas
dá-se preferência a soluções locais. Na área da saúde, mais de um século
os melhores hospitais públicos pertencem a uma fundação privada de grande
importância, a Junta de Benecência, que além disso administra a única loteria
autorizada no Equador; no setor do desenvolvimento de vias de comunicação,
o Comité de Vialidad, que na ditadura de 1970 foi suprimido; em matéria viária
e de trânsito, a Comissão de Trânsito do Guayas, cujo controle acaba de
ser assumido pelo governo central ao aproximar-se o 60º aniversário de sua
existência, com a modicação da estrutura de sua diretoria.
Iniciaram-se a partir de Guayaquil, por exemplo, entidades especializadas
de saúde, contra a tuberculose e contra o câncer, além outras de gestão,
autoridades portuárias e marítimas e de transito aéreo.
Não esquamos que antes da exportação de petróleo o Equador obtinha
a maior parte de suas divisas por meio da exportação de produtos agrícolas
da Costa.
León Roldós
131
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Não me furto a apresentar denições em relação a um dos macro-temas
mais sensíveis: o regime político-territorial e sua administração:
Sou contrário ao centralismo e à acumulação de poder; creio na efetiva
descentralização que não deve ser confundida com a simples desconcentração de
providencias administrativas e em avanços em direção às autonomias nanceiras
e de gestão, tendo como eixo os governos locais, com a maior transferência de
competências, porém com qualicação de gastos e auditorias conáveis.
As autonomias devem contribuir para a solidariedade e complementaridade
de maneira a fortalecer macro-politicas de identidade nacional e auxiliar jurisdições
deprimidas e de menor desenvolvimento. Devem apoiar o Equador inclusivo e
demonstrar que não se deve ser separatista – exagero acusado em Santa Cruz da
Bolívia. Tampouco devem permitir a formação de grupos dominantes protetores e
protegidos pelos poderes locais, que mais cedo ou mais tarde desaam o governo
central por causa de seus interesses, esquecendo-se de que as migrações internas
que formam os bairros marginais e marginados das grandes cidades geralmente
provêm dos setores territoriais e sociais mais deprimidos, e por isso seus cidadãos
nunca deixam de sentir-se vítimas dos maiores grupos dominantes.
As regiões impostas, sem consensos que somente poderiam obter-se
mediante consultas populares, correm o risco de fortalecer o centralismo, a
menos que possuam órgãos de governo independentes do poder central.
Ao assumir o conceito de autonomia, não confundo sua vigência com
a razão de ser do modelo autonômico da Espanha, porque o Equador, com
uma mestiçagem entre 84 e 95%, não pode ser de forma alguma comparado
com o que signicam as alegadas nacionalidades e suas regiões que convivem
na Espanha, nem a conciliadora Catalunha e nem o exigente povo basco.
No Equador matizes diferentes entra as regiões naturais e grupos
populacionais, e por isso deve ser respeitada a diversidade, trabalhando sobre
essa realidade, porque tais respeito de trabalho se constituirão nos melhores
sustentáculos da unidade nacional.
Crescimento e desenvolvimento
O Equador não é exceção na América Latina. Seu crescimento
econômico é superior a seus níveis de desenvolvimento, porque a acumulação
Equador: temas fundamentais
132
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tem nichos de beneciários onde estão os que realizam práticas monopolistas
e os cartéis empresariais, mas também o próprio Estado, que não é exemplar
na distribuição de recursos.
O modelo constante do texto constitucional é de economia social de
mercado; na prática, o social é meramente uma palavra e o mercado é em boa
parte uma cção.
Nos anos da década de 90 do século XX, o sistema judico econômico e
empresarial do Equador entrou na dimica da modernização e abertura para
a região, e por isso, citando os avanços nas privatizões na Argentina com
Menem e Cavallo, na Bolívia com Sánchez de Lozada e no Peru com Fujimori,
advertia-se o Equador de que ia perder o trem da história”. Depois de alguns
anos, o modelo argentino de convertibilidade se desfez, Sanches de Lozada está
hoje processado penalmente e teve de fugir da Bolívia, e Fujimori está preso.
A referência anterior não se destina a defender o estatismo nem o antigo
modelo cepalino de substituição de importações e subsídios.
O denominador comum de todos os atrasos e fracassos está na corruão
estimulada pelos privilégios e pela impunidade.
O pro do petleo e as retificações na participação do Estado
incrementaram os recursos scais.
O aumento das importações nos últimos anos afetou a conta corrente
não petrolífera do balanço de pagamentos, mas as exportações não petrolíferas
têm bom nível de volumes e preços.
A tendência à desaceleração da economia, por dúvidas políticas quanto
às expectativas dos atores econômicos, no momento atual, pode signicar
redução das exportações, o que no relativo a bens de consumo pode vir a ser
conveniente para escoar os estoques cumulados, mas se ocorrer em bens de
capital poderá afetar a produção e o investimento. Mais ainda, essas dúvidas
podem acarretar fugas de recursos líquidos, e por isso tanto o Executivo quanto
a Assembléia Constituinte devem agir gerando certezas.
No que se refere ao endividamento externo, o Presidente Correa armou
que fora os créditos comprometidos com a Corporação Andina de Fomento
e os reembolsos pendentes, é provável que o Equador não necessite mais
León Roldós
133
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
créditos externos. Quanto à dívida anterior existente, cada vez com menor
peso relativo no orçamento do Estado, e em proporção ao PIB, o discurso
político de sua depuração, sob a pecha de existência de endividamento ilícito,
não passa de palavras e o serviço da dívida é absolutamente normal.
Politicamente, Correa distanciou-se do Fundo Monetário Internacional
e por isso não haverá e nem é necessária nenhuma carta de intenções.
Distanciou-se também do Banco Mundial, acusado de condicionalidades. A
atitude é diferente em relação ao Banco Interamericano de Desenvolvimento
e à Corporação Andina de Fomento.
Tem sido muito importante o papel de Correa na promoção do Banco
do Sul, como fonte de crédito e depositário da liqüidez do Banco Central e
do Estado. O prossionalismo e a não politização desse Banco poderiam
signicar seu êxito.
Outra coisa será a pretensão de uma moeda regional, imposvel no curto e
médio prazos. Devido à necessidade de homogeneização de políticas econômicas.
Não parece possível modicar aceleradamente os tempos, talvez não fossem
necessárias as décadas da Europa, mas nunca será coisa para poucos anos.
No Equador, a questão monetária é complexa. Tanto o Presidente Correa
quanto o possível presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Alberto
Acosta, ao tratar de teoria econômica antes de exercer o poder, sugeriram a
eliminação da dolarizão estabelecida em janeiro de 2000, quando desapareceu
a denominação monetária em sucres. Na campanha eleitoral e no exercício
de suas funções ociais ambos foram enfáticos quanto à manutenção da
dolarização como realidade insubstituível nos anos imediatos, mas rechaçando,
é verdade, a pretensão da direita política e de setores empresariais de dar à
dolarização caráter constitucional.
Nos últimos dias o Presidente Correa tem se referido com dureza à perda
do valor do dólar em relação ao euro e outras moedas que se valorizaram,
armando que em verdade não desvalorização em moeda nacional o sucre
até inícios de 2000 mas que a dolarização deteriora nossa realidade monetária:
somos arrastados pelo dólar. O presidente propôs que as exportações de
petróleo poderiam ser liqüidadas e cobradas em moedas mais fortes do que o
dólar, o que faria com que parte da liqüidez pública no exterior e a das contas
nacionais se reram a tais moedas.
Equador: temas fundamentais
134
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Como receberiam e assimilariam os atores sociais a existência de duas ou
três moedas circulando no Equador? A defesa feita pelo presidente Correa será
convincente, caso a Assembléia se decida pela diversidade monetária? Assustar-
se-ão os atores que manejam a liquidez, qualquer que seja o montante? É difícil
encontrar respostas. Se a decisão me coubesse, eu manteria a dolarização na
liqüidez dos pagamentos, e contabilizaria em dólares os valores cotados em
outras moedas, creditando como incremento cambial as difereas geradas pela
desvalorização do dólar, caso esta prossiga, e pela revalorização das moedas
fortes; estas, porém, devem ser denidas seletivamente, e não apenas usar
signos monetários de outros países por motivos políticos, ainda que estejam
encobertos em uxos de negócios ou de investimento, e nem criar novas
moedas para eliminar os zeros nas que estejam em circulação, por maior que
seja a disciplina ou liqüidez conjuntural do país emissor.
A pergunta que se espera é: por que motivo o Presidente Correa pode
orientar mudanças radicais na economia equatoriana, mesmo com matizes
estatistas e centralistas? Sem dúvida devido à profunda iniqüidade das relações
econômicas, acumuladas e potencializadas pelos nculos de grupos dominantes
com aqueles que exerciam o poder político real.
A quebra generalizada de bancos com o congelamento de depósitos e
desvalorização da moeda nacional o sucre entre 1998 e 2000, que redundou
na dolarização, produzindo quebras empresariais, extinção de poupanças,
emigração decorrente do desespero por causa da pobreza e da falta de trabalho,
ainda não teve o castigo que merece. Os atores econômicos e políticos que a
provocaram, permitiram e ocultaram, gozam de impunidade; mais do que isso,
continuaram governando nos anos seguintes e alguns até mesmo se atrevem
a aparecer em diversos cargos, ponticando em política e economia.
Ao que foi dito acima aliam-se as práticas de evasão tributária, os
círculos de negócios do Estado, as simulações e rendas não transparentes nas
concessões do Estado e outras formas de corrupção.
Os monopólios e cartéis empresarias devido aos quais desaparece toda
a competição continuam a existir. O caso mais patético, vinculado ao cartel
das instituições bancárias, é o dos custos do dinheiro, que na economia
dolarizada, e por tanto sem desvalorização diante dólar, inação que não
chega a 3% anuais, pagamentos em operações passivas que não excedem 5%
León Roldós
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e excessos de liqüidez, os juros dos créditos, nos diversos segmentos, superam
amplamente, em média, 15% anuais, porque a base de cálculo usada pela
autoridade é o que os bancos desejam cobrar mês a mês.
Participarei da Assembléia Constituinte, e defenderei as certezas, como
armei. Cito algumas: o gerar incertezas monetárias; fortalecer a capacidade
de regulamentação e controle do Estado, porém não ampliar desnecessariamente
a estatização da economia. Tornar transparentes as concessões. Respeitar a
propriedade privada com função social, sem tentativas conscatórias. Estimular
investimentos produtivos e competitivos. Incorporar maior número de atores
econômicos e sociais à produção. Estabelecer regrar claras de benefício
tuo para o investimento e a força de trabalho. Desmantelar monopólios e
impedir cartéis empresariais. Punir a corrupção, inclusive os responsáveis pelas
impunidades. Resgatar a contratação pública, sem fundações que canalizem
necios em círculos dominantes, nem emergências declaradas para escapar à
norma contratual pública. Impulsionar a integração regional latino-americana.
O entorno ambiental e o uso e aproveitamento adequados da água devem ser
transversais em todo investimento e obra pública ou privada.
Quanto ao gasto público, privilegiar a distribuição de recursos para a área
social, inclusive a sustentação econômica dos historicamente marginalizados,
em matéria de fontes de trabalho, moradia e outras rubricas.
A saúde, a educação, a cultura, o esporte e a segurança social não apenas
exigem recursos, mas também qualidade. As melhores estatísticas pouco valem
nos algarismos, se não houver qualidade.
Devemos ter expectativas positivas, objetividade, coragem e oportunidade
para assumir posições, sabedoria e tolerância para gerar coincidências.
A governabilidade
A deterioração social, econômica e política do Equador se acelerou desde a
década de 90. Com o pretexto de governabilidade foram reformadas a Constituição
e as leis a m de perpetuar partidos e grupos dominantes aos quais, respectivamente,
o Presidente Correa acusou de “partidocracia” e pelucones (“cabeludos).
Em certo momento, qualiquei de trapaça o exercício real de poderes
dominantes no Equador, porque atores que chegaram ao poder político
Equador: temas fundamentais
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questionando a perversa e realidade logo acabaram se acomodando até que,
por serem desnecessários, eram expulsos como bagaço.
O entorno internacional foi propício para que Rafael Correa chegasse
ao poder. Foram determinantes, entre outros fatores, seu questionamento em
relação aos Estados Unidos, especialmente no que toca às negociações para um
Tratado de Livre Comércio e o m da base de Manta, a simpatia da esquerda
latino-americana e a evidente e aberta inuência do coronel Hugo Chávez.
Rafael Correa se benecia com as experiências de Hugo Chávez, mas o
creio que seja de forma incondicional. De fato, os Estados Unidos e a Colômbia
cujos governos foram questionados por Correa preferiram o enfrentá-lo e
proporcionam espaços não ortodoxos de comunicação. A esquerda com matizes
de social-democracia os governos do Brasil, Chile, Argentina e Uruguai lhe
abriram espaços, inclusive os governos da Espanha e Itália.
No âmbito interno, Correa gera e reage a confrontações, em palavras
e ações. Além de sua eleição presidencial, ganhou com maioria absoluta os
dois processos relativos à Assembléia Nacional Constituinte: a consulta para
sua convocação e a eleição dos constituintes. É claro que no segundo desses
processos utilizou todos os espaços do poder, inclusive os recursos do Estado
para dar publicidade ao governo e incrementar e criar novos subsídios, devendo
mencionar-se que não foi a primeira vez em que isso foi feito, pois foi sempre
a prática da partidocracia acusada por Correa.
A explicação da fortaleza do governo está dada no contexto dessa
posição: desaou, e continua a desaar, os poderes dominantes reais. Não se
pode pedir-lhe que transija com eles, mas sim que haja tolerância e respeito
pelas liberdades fundamentais.
A m de fortalecer as mudanças, na democracia e na construção da
nova institucionalidade, sem tibieza, e da ordem jurídica e constitucional que
permita pensar e agir com justiça e equidade, todos iremos, constituintes e
cidadãos, à Assembléia Constituinte.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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137
Guiana: impacto
da política externa
sobre os desaos do
desenvolvimento
Robert H. O. Corbin*
Prefácio
E
m publicação recente
1
, o ex-ministro do Exterior da Guiana Rashleigh
Jackson, reetiu da seguinte forma sobre a tradição diplomática brasileira:
“Meu primeiro contato com a alta qualidade da diplomacia brasileira ocorreu em
1963 quando compareci a um curso de treinamento de diplomatas para funcionários
caribenhos, organizado pelas Nações Unidas e realizado em Barbados. No painel
de ilustres conferencistas estava o Embaixador Roberto Campos, do Brasil. Ele
impressionou os participantes pelo brilho de seu intelecto e pela demonstração de como
deveria ser um bom diplomata... Meu contato com esses dois diplomatas (o outro era o
1 Rashleigh Jackson (2003). Guyana´s Diplomacy: Reections of a Former Minister, Free Press Georgetown,
ISBN: 667-8178-11-6
* Ex-Secretário-Geral do Congresso Nacional do Povo (PNC)
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
138
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Sr. Costa e Silva) despertou meu interesse pelo treinamento dos diplomatas brasileiros.
Posteriormente, tomei conhecimento da elevada reputação e excelentes instalações do
Instituto Rio Branco. Foi para mim motivo de grande satisfação, quando exerci a
função de ministro, que jovens diplomatas guianenses fossem escolhidos para freqüentar
aquele Instituto com bolsas de estudo brasileiras. Eles se desempenharam bem”.
2
Esta instituição, entre outras, pode orgulhar-se da excelente tradição
diplomática brasileira. Sinto-me privilegiado por ter sido convidado para fazer
uma conferência sobre a Guiana a esta ilustre instituição, que desempenha
papel de tanta relevância no treinamento de alunos de relações internacionais
em todo o continente. O fato de que outros países do continente conem o
treinamento de seus diplomatas a este Instituto atesta a estima de que goza.
Introdução
A Guiana é uma sociedade plural, multicultural e multiétnica que
enfrentou numerosos problemas antes e depois de sua independência da
Grã-Bretanha em 1966. Entre os muitos desaos estão a consecução da
unidade nacional e coesão social em uma sociedade assolada por conitos e
confrontações raciais, étnicas e políticas, pela aceleração do desenvolvimento
econômico e redução da pobreza num ambiente global cada vez mais hostil,
pela preservação de sua integridade nacional diante de reivindicações de dois
vizinhos e pela exploração de seus abundantes recursos naturais.
Esta conferência faz um breve esboço da Guiana e da origem e natureza
de alguns de seus problemas, cuja solução trouxe graves desaos à população do
país. Não bastaria, no entanto, simplesmente fornecer um resumo biográco da
Guiana. Eu não me aventuraria a dar orientão técnica sobre as cnicas necessárias
para o desenvolvimento de relações entre Estados que envolvam negociações
complexas e consultas nos bastidores que exigem grande habilidade. Os sucessos
dos esforços diploticos provocam manchetes atraentes mas o trabalho árduo
e o planejamento cuidadoso no mais das vezes não despertam interesse maior
3
.
Espero, no entanto, poder pelo menos fornecer-lhes uma perspectiva da Guiana
que seja relevante para os próprios afazeres prossionais dos senhores.
2 Ibid., pág. 40
3 Ver Jackson (2003) pág. 1.
Robert H. O. Corbin
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Como esta apresentação se destina a praticantes de relações prossionais,
proporciona uma visão sobre a maneira pela qual a ação da política externa e
das relações internacionais da Guiana contribuíram para a solução de alguns
daqueles problemas e a consecução dos objetivos nacionais, especialmente
a preservação da integridade territorial
4
. Foi dada ênfase especial às relações
bilaterais entre o Brasil e a Guiana.
Brasil – uma potência econômica
Tive o privigio de servir no governo da Guiana na administração potica
que foi pioneira das relações formais com o Brasil. Na época, eu tinha a impressão,
que ainda conservo, de que abarcávamos nosso “destino continentalquase
quatro cadas ao estendermo-nos am de nossas fronteiras para estabelecer
contato com vizinhos dos quais tínhamos cado desligados por acidente
histórico. Apresso-me a acrescentar, no entanto, que esse desligamento era um
fenômeno absolutamente litorâneo, pois sempre houve laços entre os povos
indígenas cruzando as fronteiras. Tais laços permanecem e se fortaleceram.
Os brasileiros recordarão a imagem dramática do jaguar invocado pelo
Tesouro Nacional a m de ilustrar o robusto desempenho da economia do
país durante a apresentação dos resultados econômicos no início de 2006. Em
junho deste ano, durante uma apresentação em Georgetown, Sua Excelência
Arthur Corrêa Meyer, Embaixador do Brasil na Guiana, notou que, desde o
início da atual década, o crescimento do PIB brasileiro foi de cerca de 3%
anuais e que as previsões atuais para 2007 indicavam um crescimento de cerca
de 4%. Quanto ao setor externo da economia brasileira, ele armou:
“Houve superávits na conta corrente do balanço de pagamentos nos últimos três
anos. O comércio de mercadorias representa cerca de 25% do PIB, enquanto que a
importância total de exportações de bens ultrapassa amplamente os 100 bilhões de
dólares. Em conseqüência, o montante total da dívida externa brasileira tem decrescido
constantemente e as reservas brasileiras de divisas atingem hoje o signicativo nível de
140 bilhões de dólares. Os investimentos estrangeiros diretos e os investimentos em
4 A Venezuela continua a reivindicar cerca de dois terços do território da Guiana no oeste, em Essequibo; o
Surinam e reivindica terras no leste, no triângulo do Novo Rio. As fronteiras marítimas foram recentemente
resolvidas mediante arbitragem.
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
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títulos no Brasil também cresceram a taxas elevadas. O Brasil é hoje em dia um dos
países em desenvolvimento mais importantes em termos de atração de investimentos
estrangeiros. As perspectivas da economia brasileira são cada vez melhores.”
O status do Brasil como potência econômica global emergente
simplesmente não pode ser negado. Além disso, por meio de instituições como
o Tratado de Cooperação da Amazônia e o Mercosul, o Brasil se encontra
integralmente envolvido no progresso econômico do restante do continente.
Longe de ser o que poderíamos chamar de um vizinho de porta, o Brasil é para
a Guiana um aliado estratégico vital. Nas palavras do ex-ministro Jackson,
essas relações não possuem apenas conotações políticas e ecomicas; têm tamm
implicações para o aspecto da segurança. As relações com o Brasil tiveram um componente
de política de fronteiras coerente e internamente consistente. Foram também importantes
para ajudar a consolidar a identidade da Guiana como Estado sul-americano sem diminuir
seu papel ou causar impacto negativo em seu caráter como Estado do Caricom”.
5
Essa opinião foi endossada pela atual administração política da Guiana,
a qual, quando estava na oposição, havia expressado dúvidas quando em 1969
o governo da Guiana estabeleceu uma embaixada no Brasil
6
. O valor das
relações da Guiana com o Brasil foi reconhecido tanto pelo ministério das
Relações Exteriores em Georgetown quanto pelo presidente Bharrat Jagdeo
7
.
Nossa história tem sido de engajamento construtivo, de coexistência pacíca
e boa vizinhança e creio que, sem dúvida, serve de modelo para relações mais
amplas entre os Estados do continente.
Guiana: a gênese dos desaos
Os desaos da Guiana começaram com as lutas de nossos povos indígenas
contra a colonizão e a ameaça de genodio. Depois, houve a escravidão, a luta
contra o colonialismo e a batalha pela independência potica. Houve tamm
lutas pelos direitos dos trabalhadores e pela independência econômica.
5 Ibid., pág. 45.
6 Ver PPP Comunicado de Imprensa de agosto de 1969, “The latest waste of public funds is the setting up of an
Embassy in Brazil”.; ver Mirror de agosto de 1972, “The Question of Brazil”; ver também Jackson (2003), p. 42.
7 Ver Relatório Anual do ministério das Relações Exteriores de 2000; ver também discursos do presidente
Jagdeo durante a recente reunião de cúpula do Grupo do Rio realizada em Georgetown.
Robert H. O. Corbin
141
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
A Guiana contemporânea é produto de uma interessante circunstância geo-
cultural. Embora estejamos situados no continente sul-americano, nossa história
e cultura m sido decididamente caribenhas. Compartilhamos com o Brasil a
experiência de povos indígenas cuja presença no hemisrio é muito anterior à
chegada de europeus e as demais raças que atualmente formam nosso país.
A Guiana
8
, único país de expressão inglesa na América do Sul, tem
fronteiras com nações que falam espanhol, português e holandês
9
, e nisso é
também original. Fornece uma interessante oportunidade para estudo de um
país que luta pelo desenvolvimento no contexto de uma sociedade multicultural e
plural, na qual o conito étnico tem dominado a política. A população de menos
de um milhão de cidadãos
10
compreende povos de seis origens étnicas
11
que
habitam uma massa territorial de 83 mil milhas quadradas (214.970 quimetros
quadrados). Deve-se notar que 90% da população da Guiana reside na estreita
faixa litonea do Atlântico, de 470 milhas de extensão. Infelizmente, essa antiga
colônia britânica
12
teve diculdade para explorar seus abundantes recursos
naturais
13
e proporcionar qualidade de vida razoável a todos os seus cidadãos.
As viagens de Colombo ao Novo Mundo inauguraram um período de
prolongada rivalidade entre os europeus para o estabelecimento de colônias nas
Índias Ocidentais e na América do Sul, com objetivo de extrair riquezas, que
inicialmente se acreditava existirem em cidades de ouro. Essa busca do fugidio El
Dorado estimulou muitas viagens. A última, feita por Sir Walter Raleigh (1617)
custou-lhe a cabeça, devido ao fracasso em levar de volta à Coroa o cobiçado
metal. A armão de Raleigh de que no Eldorado havia “mais abunncia de
ouro do que em qualquer parte do Peru e tantas grandes cidades quanto lá, e
talvez mais”
14
jamais foi conrmada. Foi a agricultura que deu à Europa a riqueza
8 Palavra ameríndia que signica “terra de muitas águas”, em alusão aos muitos rios e cursos d´água que cortam
nosso panorama.
9 A Venezuela a oeste; o Brasil ao sul e sudeste e o Suriname a leste
10 Pelas últimas estatísticas censitárias do ano 2000 a população naquele ano era de 750 mil habitantes.
11 Indígenas ameríndios de diversas tribos; europeus, africanos, caribenhos, portugueses e chineses.
12 Embora a Grã-Bretanha tenha sido a última potência colonial, o país foi também periodicamente colonizado
por holandeses e franceses.
13 Ricas orestas tropicais, uma variedade de minerais, inclusive ouro, diamantes, bauxita, urânio, petróleo; uma
planície costeira arável que sustenta diversas culturas agrícolas, inclusive cana de açúcar, arroz e legumes; uma
rica plataforma marinha no Atlântico, que permite uma orescente indústria pesqueira e de camarões.
14 Ver Adamson e Holland (1969), p. 232; ver também Barber e Jeffrey (1986), Guyana: Politics, Economics
and Society, ISBN: 0-86187- 418-8, p.4.
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
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vinda do Caribe
15
. O úcar tornou-se o rei. A riqueza mineral veio muito depois,
mas naquela altura o úcar, junto com o arroz e a bauxita, era o sustenculo
da economia da Guiana. Esse status quo prevaleceu durante quase doisculos,
até as façanhas da BG Consolidated Gold Fields Ltd
16
. Mais recentemente, a
Omni Gold Mines
17
descobriu seu próprio El Dorado.
Muito antes que começassem as rivalidades na Europa, os povos aborígenes
tinham se assentado nessas terras
18
. Sobreviveram aos piores rigores de doenças
e tratamento desumano e hoje representam cerca de 10% da população
19
.
Igualmente signicativo é o fato de que conservaram suas diversas línguas
20
.
Os holandeses estabeleceram o primeiro assentamento na Guiana, em
1816, um entreposto comercial no rio Essequibo
21
. Originalmente dividida
em três colônias, Essequibo, Demerara e Berbice, separadas por três rios de
nomes semelhante, que correm para o oceano Atlântico, e com uma fronteira
marítima a noroeste de 432 quilômetros, a Guiana foi nalmente unicada, em
1831, sob controle britânico. No período seguinte, as três colônias mudaram
de mãos diversas vezes entre holandeses, franceses e ingleses
22
. Indícios dessa
evolução podem ser vistos na arquitetura contemporânea e nos nomes de
diversos lugares na Guiana de hoje
23
. Os britânicos prosseguiram a extração de
riqueza e mantiveram o controle até a independência em 26 de maio de 1966,
com uma Constituição tipo Westminster. Em 1970, a Guiana se transformou
em república com presidência executiva.
O declínio da prodão de algodão e fumo e os grandes lucros
provenientes do açúcar foram o catalisador da conguração do panorama
15 Algodão, tabaco e açúcar.
16 Empresa que extraiu grandes quantidades de ouro da área de Tumatumari, na região de Mazaruni, construindo
nesse processo a primeira instalação hidrelétrica a m de facilitar as operações.
17 Uma empresa canadense estabeleceu-se na área do mesmo nome em 1989 e exportou a maior quantidade
de ouro de qualquer operação na Guiana.
18 Segundo um relato, desde 900 D.C.
19 Ver Relatório do recenseamento de População e Habitação na Guiana, 2002.
20 Os Arauaques e Caribs perderam em grande partes suas línguas, mas os ameríndios das comunidades do
interior ainda falam duas várias línguas: arauaque, carib, uarau, patamona, acauaio, arecuna, macushi, uapishana
e uai-uai, sendo o inglês a segunda língua.
21 Os historiadores discordam quanto ao local o primeiro assentamento, entre New Zeelandia ou Kyk-Over-Al,
mas a Guiana aceita o segundo.
22 Ver Barber e Jeffrey.
23 Hoje em dia, muitos lugares conservam nomes franceses e holandeses, como o mercado Starbroek, La
Reconnaince, La Bonne Intention.
Robert H. O. Corbin
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físico
24
e da demograa
25
próprios da Guiana. A população de escravos
africanos cresceu de 2.500, na década de 1660, para 100 mil, na altura de 1812
26
.
em 1891, o recenseamento decenal informou uma populão total de 278.328
habitantes
27
. Alguns historiadores, no entanto, consideram que milhões de
africanos partiram para o Novo Mundo, porém jamais chegaram.
A abolição do tráco negreiro (1807) e mais tarde da escravidão (1838),
obrigou os proprietários de fazendas a procurar mão de obra alhures. A
experiência com europeus fracassou lamentavelmente e como disse um autor,
a experiência com alemães foi um desastre: em certo momento eles chegaram
recusar-se e sair para o campo”
28
. Os portugueses de Madeira deram-se melhor
(foram trazidos inicialmente 40 deles, em 1834, e mais 429, em 1835), mas
assim como os chineses, importados em 1853, mostraram-se fonte instável de
trabalho devido á preocupação em dedicar-se ao comércio tão logo terminava
o período de seus contratos
29
.
A maior parte dos trabalhadores sob contrato veio da Índia; os primeiros
registros de chegadas datam de 1838. Quando o sistema de contratos foi extinto
em 1917, haviam chegado à colônia um total de 31.645 portugueses, 238.979
indiano, 14.189 chineses e 42.343 provenientes das Índias Ocidentais, e na
altura de 1921 o relatório do recenseamento indicou uma população de cerca
de 279.691 habitantes
30
. 81 anos depois, em 2002, o relatório do recenseamento
revela uma população em declínio. Hoje, a população compreende 43% de
oriundos das Índias Ocidentais, 30% de africanos, 10% de ameríndios, 17%
de mestiços e 1% para os demais grupos
31
.
24 Retomada de terras do mar: a muralha maciça do quebra-mar construído pelos holandeses se estende ao
longo da costa para torná-la cultivável, 1,80 m abaixo do nível do mar; o grande complexo de canais, sistemas
de drenagem, fossos e barragens construídos em grande parte com trabalho escravo, que hoje em dia são ainda
essenciais para produção agrícola no litoral.
25 Importação de escravos e trabalhadores sob contrato vindos de vários países.
26 ARF Webber.
27 Censo Decenal, 1841-1891, citado em Moore, B.L. (1987): Race, Power and Social Segmentation in Colonial
Society, Londres, Gordon & Breach, p. 274; ver também Kampta Karran (2004), Racial Conicts in Guyana,
reproduzido em Racial Conict resolution and Power Sharing in Guyana, Selected Readings, Kampta Karran,
org. (2004) ISSN: 10128239 Offerings (Georgetown) p. 69.
28 Ver Barber e Jeffrey, Guyana Politics, Economics and Society (1986), p. 12.
29 Ver Mary N. Menezes (1986); Scenes from the History of the Portuguese in Guyana, Londres, p. 6.
30 Barber e Jeffrey (1986), p. 13.
31 Relatório do Recenseamento de População e Habitação da Guiana, 2002.
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
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Conito social, político e étnico
Alguns autores armam que a coexistência involuntária de grupos étnicos na
Guiana criou as condições para o conito e que isso foi estimulado pela potência
colonial a m de facilitar a existência de um sistema de “dividir para governar”
32
.
Outros apontaram as inuências da economia de grandes fazendas, pluralismo
cultural
33
, os problemas inerentes a uma sociedade plural
34
, o impacto das divisões
de classe
35
, rivalidade política
36
e diferenças culturais
37
. Um estudo recente
38
cita a
inuência da religião aliada a idéias de superioridade racial como fatores principais
na criação de um ciclo de antagonismo racial na Guiana. Embora alguns líderes
políticos
39
tenham procurado desqualicar a raça como fonte principal de conito,
o país enfrenta hoje grandes desaos na busca de formas de tratar do conito
étnico crescente
40
e de queixas contemporâneas de marginalização racial, dignas
de crédito
41
,resultantes de mau uso do poder político. Adiante debaterei o papel
das relações externas nos esforços de solução desses desaos.
É improvável que o verdadeiro desenvolvimento econômico possa ser
realizado nas condições atuais de divisão étnica. Diversas organizações
42
e
intelectuais
43
propuseram mudanças institucionais como forma de tratar o
problema, sendo a mais recente a do governo compartilhado, sugeso recebida com
pouquíssimo apreço pelo atual governo. A “National Development Strategy
(2001-2010): Erradicating Poverty and Unifying Guyana”
44
arma:
32 Ver Barber e Jeffrey, p. 13.
33 Ver George Beckford (1972): Persistent Poverty: Underdevelopment in Plantation Economies of the Third
World, Londres: Routledge.
34 Ver J.S. Furnival (1948): Colonial Policy and Practice: a comparative study of Burma and Netherlands
India, Cambridge University Press; M.G. Smith (1965) The Plural Society in the British West Indies, Berkeley,
University of California Press; Leo Despres (1967), Cultural Pluralism and Nationalistic Politics in British
Guyana, Chicago: Rand MacNally & Co.; ver também Kampta Karran (2004) Racial Conict Resolution and
Power Sharing in Guyana, 1831-1905, Selected Readings, págs. 13-15.
35 Clive Thomas (2000), Revisiting Theories of Class and Ethnicity in the Caribbean, Kapta Karran (org.), Race
and Ethnicity in Guyana: Introductory Readings, Guyana: Offerings Pub; ver ainda Barber e Jeffrey, capítulo 3,
Guyanese Social Structure – Race and Class, pp. 38-54.
36 Ver Jagan Cheddi, West on Trial.
37 Ver George Beckford (1972): Persistent Poverty: Underdevelopment in Plantation Economics in the Third
World, Londres: Routledge.
38 Kean Gibson (2003): The Cycle of Racial Oppression in Guyana, University Press of America.
39 Cheddie Jagan, Forbes Burnham, Walter Rodney.
40 Ver Barber e Jeffrey, Guyana: Politics, Economics and Society (1986).
41 O partido político PNCR, a ACDA (African Cultural Development Association), e muitas outras organizações.
42 ACDA, PNCR.
43 Dr. David Hinds, Kampta Karran, Clive Thomas.
44 Publicação governamental: National Development Strategy (2001-2010): Erradicating Poverty and Unifying
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O principal obsculo ao desenvolvimento da Guiana pode ser encontrado na natureza
divisiva de sua vida política. Desde os anos que levaram à independência do país, todas
as atividades da nação foram dominadas por dois partidos políticos, cujos principais
adeptos pertencem a um ou outro dos dois maiores grupos raciais. Em grande parte,
os indo-guianenses apóiam o Partido Popular Progressista e os afro-guianenses, o
Congresso nacional do Povo (hoje Congresso Nacional Reformista do Povo).
Em parte devido à prevalência de ferozes rivalidades políticas entre esses dois grupos, e em
parte porque a Constituição da Guiana é fortemente baseada no modelo de Westminter,
que pouco faz para adotar a inclusão no governo... tem havido pouco ou nenhuma
concordância entre esses poderosos partidos políticos sobre qualquer dos grandes temas
políticos, sociais ou econômicos desde que a Guiana se tornou independente.
É evidente, no entanto, que para que a Guiana possa atingir até mesmo um grau dico
de desenvolvimento nos próximos dez anos, é essencial tomar certo número de decisões
com base em debates e consultas objetivas e inteligentes entre os dois partidos”.
O Capítulo 3 do Documento Estragico, inteiramente dedicado à queso
do bom governo, conclui que “o panorama que surge é muito inquietante”.
45
recomenda a institucionalizão de consultas e procedimentos participativos em
todos os aspectos do governo. Assinala que a história da atividade de governo
na Guiana demonstra que a própria origem do país, suas diversas constituições,
suas congurações políticas, etc., têm militado contra a democracia consultiva.
Os atuais sistemas de governo regional e local
46
tampouco se prestam a uma
participação signicativa e na verdade nada mais fazem do que acentuar as
imperfeições do governo central. Finalmente, entre outras recomendações,
gura a de que todas as oportunidades sejam aproveitadas.
“a m de examinar a relevância do sistema de governo de Westminster para a Guiana,
e organizar uma série de debates e nacionais estruturados sobre: i) o signicado do
associativismo e do federalismo e outras formas de inclusão e partilha do poder, e ii)
sua aplicabilidade à Guiana”
47
.
Guyana, a Civil Society Document.
45 Ibid., p. 8, parágrafo 3, II, 2.
46 O país está dividido em dez regiões administrativas e políticas e 65 entidades governamentais locais,
denominadas Conselhos Democráticos de Vizinhança. Existem também Conselhos de Aldeias Ameríndias que
administram os assuntos locais nas respectivas comunidades.
47 Ibid., pág. 15, parágrafo 3, IV, 1.1.10.
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
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Apesar de modicações constitucionais
48
, reformas eleitorais
49
e diálogo
50
entre os principais partidos e líderes políticos, o objetivo de um novo e
esclarecido sistema de governo permanece fugidio.
A existência de um Documento Estratégico de desenvolvimento é em si
mesma um exemplo do impacto das relações externas da política doméstica. A
gênese do documento é o envolvimento do ex-presidente dos Estados Unidos
Jimmy Carter na busca de servir de mediador para soluções das divergências
políticas entre os principais partidos. O envolvimento do Caricom, o papel
do Secretariado da Comunidade Britânica de Nações, inclusive a designação
de um enviado especial para facilitar a resolução de conitos políticos são
indicadores do impacto das relações externas na política doméstica.
A economia da Guiana
Na apresentação do orçamento ao Parlamento da Guiana, em 2 de
fevereiro de 2007, o ministro das Finanças, dr. Ashui Singh, pintou um quadro
brilhante da economia do país. Utilizando como ponto de referência a mais
recente edição do World Economic Outlook, que estima o crescimento global,
em 2006, em 5,1% (com crescimento recorde de 3,4% nos Estados Unidos),
argumentou que o crescimento de 4,7% registrado na Guiana era elogiável.
Armou que a produção de açúcar crescera 5,5%, chegando a 252.588
toneladas, e que o arroz ultrapassara o níveis de 2005 em 12,4%, atingindo
307.041 toneladas. Disse também que embora tivesse havido declínio em
alguns setores
51
, diversos outros sub-setores da área agcola tinham registrado
desempenhos robustos
52
. Com a taxa de inação declarada em 4,2%, uma leve
48 A mais recente ocorreu após a violência eleitoral de 1997 e do envolvimento do Caricom; foi nomeada
uma Comissão Constitucional e houve modicações em 2000; em 1980 a Constituição também tinha sido
modicada anteriormente em 1980, transformando-se em constituição socialista.
49 Modicações eleitorais fundamentais em 1992, 1997, 2001; ver Relatório sobre as recomendações da
Comissão de Reforma Constitucional, 1999.
50 Entre líderes da oposição e o presidente, Hoyte/Janet Jagan 1997. Hoyte/Jagan 2001, Corbin Jagdeo 2003;
e também entre os principais partidos políticos.
51 O setor de mineração e pedreiras caiu 22,4%; a produção de bauxita atingiu 1.538.597, um declínio de 9,2%;
o ouro declarado experimentou queda de 23,3%, em 200 mil onças.
52 O sub-setor de produtos orestais, cresceu 11%, o manufatureiro, em 4%, estimulado pela expansão de 36,5%
no crédito para o setor privado; o setor de engenharia e construção, 12%; o de transportes e comunicações,
12%; o balanço total de pagamentos passou de 8,1 milhões de dólares dos EUA para 44,9 milhões em 2005; a
reservas declaradas do banco da Guyana atingiram 278 milhões de dólares dos EUA.
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depreciação de 1,13% do dólar guianense em relação ao norte-americano e o
aumento em salários e remunerações de 5%, assegurou que a Guiana estava
tendo um bom desempenho econômico.
Os cidadãos, no entanto, não compartilhavam dessa opinião. Na verdade,
reconhece-se, em geral, que se não fosse o alto nível de remessas do exterior
o custo e vida teria impacto ainda mais grave sobre a existência do povo.
Uma análise do orçamento
53
feita pela rma de contabilidade Ram &
McRae rejeitou o quadro pintado pelo ministro. Questionou abertamente as
verdadeiras estatísticas de crescimento e inação, assinalando que os números
da taxa de crescimento da produção de açúcar e arroz não eram sucientes
para reverter as perdas de 2005. Concluiu, inter alia, que na ausência de medidas
importantes, e com o crescimento e a inação projetados em 4,9% e 5,2%,
respectivamente, “não conança de que a Guiana possa regressar em breve
ao elevado crescimento observado no início da década de 90”
54
. Deve-se
assinalar que “as altas taxas de crescimento da década de 90” foram resultado
do Programa de Recuperação Econômica (PRE) introduzido, em 1989, pelo
governo do presidente Desmond Hoyte (1985-1992).
Tyrone Ferguson
55
fornece uma análise estruturada da economia da
Guiana, das circunstâncias contextuais da reforma da Política Econômica e do
impacto da PRE. Ferguson argumenta que é possível dizer as manifestações da
política econômica guianense posteriores à Segunda Guerra Mundial podem
perfeitamente ter sido motivadas pela interação entre considerões domésticas
e inuências externas durante períodos especos. Ele identica esses períodos
como a fase de luta pela descolonização potica da década de 1950 e início da de
1960, caracterizada por “uma pugna interna em busca do controle da economia
política que envolveu divergências ideológicas, rivalidade raciais e étnicas e as
ambições personalistas de lideranças política preeminente”
56
. A economia se
tornou refém do envolvimento externo, porque houve manipulação proposital
da situação de tensão e conito prevalecente em nome de um imperativo
global-estratégico mais amplo, ligado à Guerra Fria.
53 Focus on the Budget (2007), publicado por Ram & McRae, Contadores, Firma de Serviços Prossionais
54 Ibid., p. 6.
55 Tyrone Ferguson (1995), Structural Adjustment and Good Governance: the Case of Guyana, Public Affairs
Consulting Enterprise, ISBN 976-8136-69-3.
56 Ibid., pág. 1.
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Ferguson caracterizou o período seguinte, o da década de 1970, como
de “transformação estrutural radical das relações políticas e econômicas do
país”
57
, com modicações e amplo alcance, ligadas ao prosseguimento de forte
competição pelo controle dos recursos naturais, relativamente escassos em
nome de interesses nacionais. Isso somente foi possível devido a um ambiente
internacional altamente permissivo que dava aos países em desenvolvimento
uma gama de opções tanto para a organização e funcionamento de suas políticas
econômicas quanto para a condução das relações externas.
O período focal de seu estudo, de 1985 a 1992, reete padrão semelhante.
No entanto, ao contrário dos períodos anteriores, houve “lutas mais acesas
pela ascendência política acompanhadas da reversão da experiência econômica
socialista e a reconguração radical da economia em consoncia com
princípios capitalistas de organização e triunfo da economia de mercado”
58
58.
Isso foi facilitado, arma ele, pela intrusão ativista de importantes governos
e instituições internacionais ocidentais a m de assegurar a implantação das
características orientadoras da economia política.
O Programa de Recuperação Econômica (PRE 1989-1992) também
foi acompanhado por uma guinada na direção ideológica e é geralmente
reconhecido como de sucesso econômico
59
. O custo social foi elevado e o
Programa não poderia ter tido êxito sem o apoio da comunidade de doadores
60
.
O papel do serviço Exterior da Guiana na realização do PRE foi fundamental.
Dirigindo-se à Conferência de Chefes de Missões Diplomáticas da Guiana,
em 17 de julho de 1987, o presidente Hoyte armou, inter alia:
“Nossa política externa deve promover nossos objetivos domésticos e não pode divorciar-
se deles. Por isso, nenhum embaixador pode ser ecaz a menos que tenha conhecimento
claro da situação interna em evolução e possa fazer pessoalmente a ligação entre objetivos
nacionais, a situação interna e a política externa que é chamado a executar”
61
57 Ibid.
58 Ibid.
59 Ver Erradicating Poverty and Unifying Guyana: National development Strategy, 2001-1010, cap. 4 parágrafo 4.1.
60 Ver Guyana: The Economic Recovery Programme and Beyond: report for a Commonwealth Advisory
Group, Commonwealth Secretariat Document (agosto de 1989).
61 Hoyte (1991) Guyana Economic Recovery: Leadership, Will Power and Vision, Selected Speeches, Free
Press Gergetown, pág. 48 “Economic Independence and Self Reliance”; ver também Ibid. pág. 23, discurso em
11 de julho de 1986 aos Chefes de Missão, “The Economy: The Diplomatic Effort”.
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O presidente Hoyte rearmava o que seu antecessor
62
compreendera e
promovera
63
e o presente governo emulou em sua busca de perdão da dívida
64
e investimento externo.
o desacordo entre os economistas sobre o fato de que os progressos
econômicos registrados na década de 1990
65
, muito depois do m do governo
Hoyte, devem ser atribuídos ao PRE
66
. No entanto, o exame do orçamento
de 2007 revela que a Guiana ainda é fortemente dependente desses setores
tradicionais para o sucesso econômico, apesar do ensinamento contido no
documento da Estratégia Nacional de Desenvolvimento de que
“O problema básico é que a economia da Guiana tem base muito estreita e não é
sucientemente diversicada. Além disso, o país depende quase exclusivamente, para
seu desenvolvimento econômico, na produção e exportação de matérias primas”
67
.
Não obstante, o ministro das Finanças, ao descrever a Visão 2011
68
assinalou
o “projeto-capitânea”: 169 milhões de dólares dos EUA para o Projeto de
Modernização de Skeldon
69
, com término previsto em 2008, que facilitará a produção
de valor agregado e reduzi o custo da produção do úcar. Tem sido questionada
a expansão desse setor no momento em que o “Rei Açúcar” é novamente refém
da Comunidade Européia
70
no novo ambiente global de comércio. Quaisquer
que sejam seus ritos, a aquisição dos recursos para empreender tal projeto tem
de ser saudado como sucesso diplomático. Tendo em vista o status do açúcar na
economia global, a constante necessidade de extremo esfoo diplomático não pode
ser subestimada. Nisso, também, a cooperação bilateral entre a Guyana e o Brasil
poderá mostrar-se mutuamente benéca, especialmente por causa da experiência
e conhecimento brasileiro em energias alternativas e produção de etanol.
62 Linden Forbes Burnham, primeiro ministro de 1964 a 1980 e presidente de 1980 a 6 de agosto de 1985.
63 Vínculos com a URSS, Iugoslávia, China, Índia e Movimento Não Alinhado, Caricom,Grupo dos 77, ACP
etc., a m de anular a hostilidade ocidental a suas atividades socialistas.
64 O presidente Jagdeo demonstrou seu reconhecimento ao recusar-se a delegar a conduta das relações com
os IPIs e realizou pessoalmente o esforço diplomático relativo aos assuntos econômicos, isto é, as negociações
ACP sobre o futuro do açúcar.
65 1991: 5,9%; 1992:7,7%; 1993: 8,3%; 1994: 8,5%; 1995: 5,1%; 1996: 7,9%; 1997: 6,2%; 1998; -1,3%. 1999:
3,0%: ver National Development Strategy p. 22, parágrafo 4.1.6.
66 Ferguson (1995) Structural Adjustment and Good Governance: the Case of Guyana.
67 NDS, p. 23, parágrafo 4.1.13.
68 Discurso do orçamento 2007, pág. 24.
69 Construção de uma nova e grande renaria de açúcar na região de Berbice.
70 Ver Reform of the EU Sugar Regime: ACP Sugar Industries Under Threat, a compilation of speeches and
articles, printed Ministry of Foreign Affairs: Pavnick Press (2005).
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
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Mirando o futuro, o governo esboçou um propósito de reestruturar a
economia, inclusive pelo fortalecimento dos setores tradicionais; desenvolver um
setor manufatureiro vibrante, diversicado e globalmente competitivo; promover
o setor do turismo; estimular o desenvolvimento e expansão dos setores de
pecuária, pesca e aqüicultura, assim como de orestas, focalizando maiores
esforços no setor emergente de tecnologia da informação (TI) e preparar-se para
os efeitos do aquecimento global. Além disso, há muita expectativa quanto ao
êxito da exploração de petróleo, especialmente após a conclusão satisfatória da
disputa com o Suriname sobre a fronteira marítima do nordeste.
Resta ver se isso satisfará as exigências da diversicação. É preciso
reiterar dois pontos: primeiro, uma solução política é essencial para o progresso
econômico duradouro na Guiana; segundo, uma diplomacia ecaz é essencial
para o sucesso econômico.
Política e relações externas
Entre os objetivos da Guiana após a independência se incluíam os de
preservar a integridade territorial do país, forjar a unidade nacional e realizar o
desenvolvimento econômico
71
. Seu status independente exigia novas relações
políticas e ecomicas e a reestruturão de antigas associões tradicionais.
Conseqüentemente, entre 1964 e 1992, a diplomacia guianense se colocou a
cavaleiro das fronteiras ideológicas e abrou os países do Terceiro Mundo e
do Caribe. Naturalmente, a associação com a região tinha outros objetivos além
dos econômicos, tais como o de sobreviver num ambiente hostil de Guerra Fria
e facilitar o apoio ativo à independência do sul da África, mas a prioridade da
preservão do território era uma condicionante fundamental. Como reetiu certa
vez o primeiro ministro Burnham, “é preciso possuir o território antes de pensar
em desenvolvê-lo. A liação ao Movimento o-Alinhado, Grupo dos 77 e
Nações Unidas foi também considerada importante no contexto de desenvolver
alianças para prevenir a violação da integridade territorial da Guiana.
Por exemplo, a participação no Movimento Não-Alinhado sem dúvida
estimulou o primeiro ministro Forbes Burnham a anunciar contribuições
71 Ver Rashleigh Jackson (2003), Guyana´s Diplomacy: Reections of a Former Foreign Minister, Free Press
Georgetown, ISBN: 976-8178-11-6, prefácio do dr. Cedric Grant, p. vii.
Robert H. O. Corbin
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nanceiras anuais aos movimentos de libertação do sul da África na Reunião
de Cúpula em Lusaca, Zâmbia (1970).
A posição de princípio da Guiana sobre a luta de libertação da África, e, als,
nas lutas de libertação em todo o mundo, não era informada por considerações
dosticas estreitas, e sim pelos prinpios de sua política externa quanto ao
direito dos povos à autodeterminão e ao prinpio da o-intervenção nos
assuntos internos de Estados independentes. Foi essa posão de prinpio o
que facilitou à Guiana condenar a invao de Granada pelos Estados Unidos,
assim como condenar a intervenção da URSS na Tchecosloquia, ilustrando o
pronunciamento anterior do primeiro ministro Burnham de que “não seremos
piões nem do Leste e nem do Ocidente”. Da mesma forma, quando surgiu
a queso das ilhas Malvinas, e uma república ir da América do Sul se viu
diante de um conito com uma potência importante do Norte, foi dicil para a
Guiana recuar de sua posição de princípio. Primeiro, fazê-lo colocaria em xeque
sua própria posição em relação a suas duas controvérsias de limites, isto é, de
que questões de fronteira resolvidas no passado não deveriam ser reabertas; e
segundo, a posição de prinpio sobre a solão pacíca de controrsias. o
foi essa a primeira vez em que o interesse dos países da região entrou em conito,
e tampouco foi a última. Os interesses do Brasil, da Guiana e outro ps iro
do Caricom entraram em choque, em 1985, quanto à eleão de um Juiz para a
Corte Internacional de Justiça
72
. No entanto, graças a esforços diploticos, essa
diferea temporia de posiçõeso levou à frião permanente nas relações
diploticas. É nessas situações que o verdadeiro valor e qualidade dos assuntos
externos é testado, e talvez seja o motivo pelo qual o Brasil tanta ateão ao
treinamento de seu pessoal diplomático.
Destino caribenho ou continental
As circunstâncias geo-culturais da Guiana zeram surgir um debate sobre
onde devem situar-se nossas lealdades principais no que respeita às relões com
outros Estados. Os adeptos do que costuma ser chamado “destino continental
da Guiana armam que a geograa, ou se quisermos, a proximidade, deveria ser
72 O dr. Mohammed Shabudeen, ex-ministro da Justiça, era o candidato da Guiana e foi eleito; os outros
candidatos eram um Juiz brasileiro em exercício e um candidato da Jamaica; ver Jackson (2003), pág. 9.
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
152
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
a principal determinante de nossos vínculos diplomáticos. Existem, por outro
lado, aqueles que argumentam que a experiência do colonialismo britânico
que compartilhamos com o Caribe, e as conseqüentes semelhanças sociais,
econômicas e culturais nos legaram um destino caribenho.
O que ambas as escolas de pensamento talvez tenham ignorado é o fato de
que as “circunstâncias geo-culturais da Guiana posicionaram o país para abraçar
ambos os “destinospor assim dizer sem comprometer nem um nem outro.
Com efeito, a realidade que cada vez mais emerge é a de uma Guiana que serve
de ponte entre o Caribe e o continente. Essa, em minha opino, é a realidade
a que a Guiana deve se dedicar. Sem dúvida, com o advento do Suriname e do
Haiti ao Caricom, o movimento perdeu a unidade linística que costumava ser
sua característica.
As realizações da Comunidade do Caribe (Caricom) e a considerável
contribuição guianense para forjar uma posição comum de política externa nos
temas de interesse compartilhado por seus membros, mais do que justica as
relações da Guiana com o Caribe. A recente emergência de um Mercado Único
do Caricom promete ser um dos êxitos principais da Comunidade
73
. Além disso,
a importância do Caricom e do Grupo Africa-Caribe-Pacíco (ACP) é melhor
entendida no contexto dos esforços em curso para salvar o mercado internacional
do açúcar no ambiente anteriormente protegido da Comunidade Européia.
O relacionamento da Guiana com o Continente tem sido prejudicado
por uma política colonial que ditava as relações bilaterais entre as colônias
e a potência imperial. Mesmo no período pós-colonial imediato, a realidade
do “bilateralismo colonial” que abarcava as relações comerciais, políticas e
humanas, continuou a desestimular quaisquer gestos agressivos para com
nossos vizinhos no continente.
O futuro
Embora provavelmente os principais determinantes da política externa
guianense não venham a modicar-se, haverá mudanças em áreas de ênfase no
contexto das circunsncias globais em mutação. A mudaa de clima e suas
73 Ver Hall, Kenneth O. (org.) (2001), The Caribbean Community: Beyond Survival, Ian Randle Publishers,
UJnivesity of West Indies, Mona Campus, ISBN 976-637-047-8
Robert H. O. Corbin
153
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
implicações para o meio ambiente tornaram-se maria de alssima importância
global. Naturalmente, a importância do meio-ambiente foi reconhecida há vários
anos, quando um milhão de hectares de nossa oresta úmida foram legados ao
mundo como imenso laboratório ambiental para uso e estudo cuidadosos.
Os termos de comércio internacional, tais como reetidos pelas recentes
e atuais negociações da Rodada de Doha
74
e os outros pontos da complexa
agenda da OMC, turismo e a promoção de novos investimentos, assumirão
maior grau de prioridade na agenda de política externa da Guiana
75
.
Relações Guiana-Brasil
Espero que os participantes de outros países do continente me perdoem
por dedicar especial atenção às relações entre o Brasil e a Guiana, mas a verdade
é que estou no Rio. Em 1968, a Guiana e o Brasil estabeleceram relações
diplomáticas. Desde então, tem havido intercâmbio de diversas delegações
de alto nível, a começar pela visita do vice-primeiro ministro da Guiana, dr.
P.A. Reid. O estabelecimento da embaixada do Brasil e do Centro Cultural
Brasileiro em Georgetown seguiram-se a essa visita. A busca pela Guiana de
relações ativas com o Brasil, no entanto, começou com mais vigor no nal
da década de 1970 e segundo o dr. Mark Kirton
76
, decorreu da “necessidade
de diversicação de contatos internacionais assim como das perspectivas de
novas oportunidades econômicas e diplomáticas na América Latina”.
Outro fator que retardou relações bilaterais estreitas entre a Guiana e
o Brasil durante a primeira década da independência da Guiana foi a histeria
anticomunista impulsionada pelos Estados Unidos, que o aprovava as
políticas socialistas do governo da Guiana. Com efeito, o período mais difícil
das relações entre a Guiana e o Brasil coincidiu com o uso do território da
Guiana para reabastecimento de aviões cubanos a caminho de Angola durante
a guerra de libertação daquele país.
O florescimento das relações entre a Guiana e o Brasil começou
ativamente por volta de 1978, quando segundo o dr. Kirton o governo brasileiro
74 Doha Development Agenda (DDA); ver também discurso do Presidente Jagdeo na Reunião de Cúpula do
Rio, Georgetown (2007).
75 Ver discurso do presidente Jagdeo na Cúpula do Rio, Georgetown (2007).
76 Um dos maiores estudiosos guianenses das relações com o Brasil.
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
iniciou “uma nova abordagem na política externa... na região em geral e em
ralação com a Guiana em particular, com redução da desconança e suspeitas
mútuas que haviam caracterizado essas relações anteriormente a esse período”.
Com efeito, a partir de 1977, começaram a surgir sinais de um realinhamento da
política externa hemisférica do Brasil. Foi um período durante o qual o Brasil
começou a considerar seu próprio desenvolvimento muito mais em conjunto
com o do restante do continente e quando a inuência do Movimento Não-
Alinhado o fez abraçar o conceito de “Cooperação Sul-Sul”. Essas mudanças
na política externa brasileira, que incidentalmente foram também inuenciadas
por sua busca de novos aliados econômicos no hemisfério, coincidiu com o
estabelecimento de ralações mais próximas com a Guiana.
A assinatura do Tratado de Cooperão Amazônica, em 1978, promoveu a
cooperão bilateral em uma ampla gama de temas, inclusive a pesquisa cientíca
e técnica, o desenvolvimento econômico e social e também consultas para o
desenvolvimento de regiões de fronteira, do transporte, comunicação, turismo
e saúde. Em geral, os acontecimentos, durante o período do nal dos anos 70,
inclusive o orescimento do Não-Alinhamento, criaram uma plataforma que
permitiu ao Brasil, à Guiana e a diversos outros países em desenvolvimento
forjar políticas externas mais independentes de Washington.
A reunião inaugural da Comissão Conjunta Guiana-Brasil, em janeiro de
1979, testemunhou a assinatura de vários acordos
77
. Em seguida, foi realizada
a visita à Guiana do então ministro brasileiro das Relações Exteriores, Ramiro
Saraiva Guerreiro (janeiro de 1982) seguida por uma visita de Estado ao Brasil
do presidente Forbes Burnham no mesmo ano. É signicativo que quatro dos
seis presidentes executivos da Guiana tenham visitado o Brasil. Essas visitas
não foram meras excursões diplomáticas; reetiram o reconhecimento da
importância do Brasil como vizinho estrategicamente importante.
Naturalmente, foi inteiramente acidental que minha vinda aqui coincida quase
exatamente com o 25º aniversário da assinatura em 1982 do acordo de inter-conexão
entre a Guiana e o Brasil sobre a construção de uma rodovia entre os dois países.
Esta ocasião, no entanto, me dá a oportunidade de reetir sobre a natureza visionária
da política externa guianense que, tantos anos, pensou em profundidade sobre o
77 Os acordos incluiam o treinamento de técnicos da Guiana, a provisão de equipamento médico e farmacêutico
e o desenvolvimento do setores agrícola e industrial neste país.
Robert H. O. Corbin
155
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
papel de tal rodovia para cimentar as relações com o Brasil. É um tributo a ambos
os países que a ponte sobre o rio Takatu esteja quase terminada.
No início de seu mandato como sucessor de Burnham, o falecido
presidente Hugh Desmond Hoyte notou que “as relões exteriores da Guiana com
seus vizinhos e particularmente com o Brasil se tornaram prioritárias na potica externa da
Guiana”. A ênfase do governo Hoyte na livre empresa ampliou o escopo da
cooperão ecomica bilateral. Se não me engano, foi o Presidente José Sarney
que argumentou que as relações do Brasil com a América Latina e o Caribe e especialmente
com todos os seus vizinhos imediatos estão entre nossas maiores prioridades. Nossa Magna
Carta entronizou a interação regional como um imperativo constitucional”.
O que também foi signicativo a respeito do período entre meados de
1960 quando a Guiana obteve a independência e meados de 1980, foi
o signicativo aumento da atividade econômica entre os dois países. Não
é fácil acreditar, por exemplo, que em 1967 as importações guianenses do
Brasil montavam a meros 183 mil dólares dos EUA. Na altura de 1980, esse
montante atingira 6,6 milhões, importância que embora ainda minúscula, serve
para ilustrar a movimentação nas relações econômicas e comerciais, que pouco
menos de uma década antes eram virtualmente inexistentes. Durante o mesmo
período, as exportações da Guiana para o Brasil passaram de 48 mil dólares,
em 1967, para 2,48 milhões, em 1980. Mais uma vez, os números são muito
menos relevantes em si mesmos do que na evidência que trazem de um gradual
fortalecimento das relações Guiana-Brasil. Por exemplo, é digno de nota que
o governo brasileiro forneceu valioso nanciamento para a construção da
estrada que liga Georgetown a Bela Vista, por meio da Agência Financiadora
de Promoção de Exportações do Banco Central brasileiro (CACEX).
Os primeiros anos do século XXI testemunharam um fluxo de
atividade diplomática, começando com o Primeiro Encontro do Mecanismo
de Cooperação Política Bilateral
78
; o término de mais uma fase do exercício
conjunto de demarcação de fronteiras pela Comissão Mista de Fronteiras
Brasil-Guiana; e a segunda reunião do Grupo Guiana-Brasil de Cooperação
Consular realizada em Georgetown (2005).
Os resultados da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Guiana,
em novembro de 2005, estão amplamente documentados no Comunicado
78 Junho de 2005
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
156
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Conjunto expedido na conclusão da visita, e que acrescento como apêndice
a esta apresentação. A visita do presidente brasileiro representou importante
desenvolvimento nas relações entre os dois países.
desaos, no entanto, alguns dos quais mencionarei brevemente.
Primeiro, as barreiras de idioma e cultura que persistirão a que haja
aceleração signicativa no movimento de pessoas em ambas as direções
através da fronteira. Segundo, existem implicações de segurança no aumento
do intermbio transfronteiriço, algumas das quais se manifestam na
Guiana. Terceiro, a aparente falta de capacidade da Guiana para aproveitar
plenamente a assistência bilateral que vem do Brasil. Quarto, os desaos que
o setor produtivo guianense enfrentará ao reagir à signicativas oportunidades
de mercado que ocorrerão com o término e utilização da ligação rodoviária.
Quinto, há o desao para ambos os países de reconhecerem e executarem de
forma responsável suas obrigações para com a proteção dos povos indígenas,
suas terras ancestrais e os recursos naturais compartilhados.
É importante que ambos os governos tratem da necessidade de
estabelecer um mecanismo que examine esses desaos antes que a ligação
rodoviária esteja pronta.
As novas oportunidades que surgem para as relações entre a Guiana e o
Brasil podem ter impacto sobre as relações continentais como um todo e criar
novos vínculos entre o Caribe e a América do Sul. Em minha opinião, isso
acontecerá certamente. Tanto a Guiana quanto o Brasil, portanto, parecem
estar prontos para causar um impacto sobre as relações internacionais regionais
e hemisféricas de uma forma que transcenda os limites de ambos os países.
Isso, a meu ver, promete ser uma conquista extraordinária.
Conclusão
Ao examinar os problemas e desaos enfrentados pela Guiana na busca
de seu desenvolvimento econômico a m de proporcionar vida melhor a
seu povo, é claro que a política e as relações externas têm inuenciado de
forma signicativa sua solução. O papel do serviço diplomático para criar o
ambiente para assistência internacional tem sido claramente ilustrado pelos
exemplos citados nesta apresentação, tais como o Programa de Recuperação
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Econômica, arranjos com as instituições nanceiras internacionais, o projeto
açucareiro Skeldon e, mais recentemente, os amplos perdões da dívida. O
impacto da associação com o Caricom e outras organizações como o ACP
também tem relevância na abordagem comum da negociação com a Comissão
Européia sobre açúcar e estabelecimento do mecanismo conjunto caribenho
de negociação.
Da mesma forma, os benefícios das relações internacionais para a
preservação da integridade territorial são também evidentes. O envolvimento
da Comunidade Britânica de Nações, do Caricom e do Centro Carter ilustra,
igualmente, o impacto da política e das relações internacionais sobre temas
domésticos como a solução de conitos.
A premência de tempo impede uma elaboração mais profunda desses
temas, mas espero ter dito o suciente para fornecer uma base informada para
avaliação e exame da situação na Guiana e auxiliar qualquer diplomata que
deseje preparar-se para uma missão em meu país.
Finalmente, desejo concluir assinalando minha incapacidade para
descrever outros aspectos da Guiana nesta curta apresentação. Um autor
descreve o país como “terra de contradições e superlativos”. Referia-se ao
que considerava a verdadeira beleza e sutileza de espírito que somente se pode
apreciar viajando ao interior. Um interior que é também a terra das ariranhas
gigantes, do jaguar, da maior preguiça de casco bído e do Arapaim, o maior
peixe de água doce do mundo. Ali podem ser tamm encontrado o ecossistema
biologicamente diversicado da oresta tropical úmida, que faz parte da
Amazônia. Até o momento, 6.100 espécies de plantas, 1.00 espécies de árvores,
450 tipos de pássaros, 400 de peixes, 120 de anfíbios e 180 de mamíferos foram
registrados na região que forma 80% da superfície do país.
Acrescentando-se a isso a mescla cultural original que expressão à
gastronomia e às comemorações nacionais cristãs, hinduístas, muçulmanas,
africanas e indígenas, além de outros festivais e ocasiões, e o fato de que a cada
ano dedica-se uma temporada ao reconhecimento dos vários grupos étnicos,
um panorama mais amplo acaba por emergir.
Outro autor arma que a Guiana apresente “uma tabula rasa, uma
lousa virgem na qual podemos registrar nossa própria visão do paraíso,
Guiana: impacto da política externa sobre os desaos do desenvolvimento
158
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
transformando miraculosamente o modo de ver nossa existência na Terra”.
Mas eu digo, no entanto, que com a miríade de problemas de desaos que
experimentamos, o povo muito deixou para trás o estágio de desejar gravar
sua visão do paraíso. Querem que o paraíso se manifeste aqui e agora na Terra,
e não em seus sonhos.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
159
Paraguai: identidades,
substituições e
transformações
Bartomeu Melià, s.j.*
E
m sua forma atual, o Paraguai surgiu do processo colonial, que ainda o se
pode considerar estar concluído. Por sua vez, a colonização dos tempos modernos,
na qual se inclui a hispânica desde o século XVI, parece ter tido objetivos comuns,
ter-se regido por estruturas análogas e seguido processos semelhantes. Ao mesmo
tempo, porém, nela podem distinguir-se formas particulares, devidas não tanto à
ação do colonizador quanto ao modo de ser daqueles a quem se pretendia colonizar,
nesse caso o substrato lingüístico dos povos guaranis.
O processo histórico colonial pode ser categorizado de diversos modos,
precisamente pela forma de contato entre dois ou mais povos e os resultados
que dele derivam. Os efeitos imaginários da história são bem conhecidos. A
história é sempre memória seletiva. Em história, as causas são geralmente
resultados históricos de idéias contemporâneas.
É verdade que os processos e reultados mudam de sentido segundo a
ideologia com que são considerados. Uma coisa é a idéia do colonizador, que
* Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch – CEPAG
Paraguai: identidades, substituições e transformações
160
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
possui e tem à sua disposição documentos e imagens que são por sua vez rei-
terpretadas segundo seu próprio sistema, e outra é a visão e o imaginário com
que as sociedades colonizadas viram e sofreram a nova forma de vida que lhes
chegava e que frequentemente lhes era imposta. O novo poder não afetava so-
mente a liberdade individual da pessoa, e sim se estendia a seu sistema linístico,
religioso e econômico, para citar alguns aspectos mais fundamentais.
Convenciona-se dividir a história do Paraguai em seu processo colonial
em uma pré-história guarani, um intervalo colonial (1537-1811) e um
período independente. Embora essa periodização tenha forte aceitção popular
e cultural é o que foi transmitido pelos historiadores ideólogos e ocialmente
pela escola deve-se perguntar se ela não age como uma nuvem de ópio que
impede encarar as novas e decisivas formas de colonização mais recentes, não
somente a que foi introduzida depois da chamada Guerra Grande de 1865-
1970, e sim a mais moderna, iniciada após o Tratado de Itaipu (1973).
O andaime colonial
A chegada dos outros abre processos que podemos qualificar e
caracterizar esquematicamente da seguinte maneira:
1. destruição;
2. encobrimento;
3. substituição;
4. transformação;
5. criação.
Nenhum desses processos costuma completar-se totalmente em si mesmo,
nem agir inteiramente de forma separada, mas cada um é sucientemente
determinante para que possamos tomá-lo como indicador especíco. Esse
esquema é o que se aplica ao mundo colonial por antonomásia, mas suas
categorias são provavelmente transtemporais e reincidentes
Bartomeu Melià, s.j.
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Destruição
Da quase totalidade dos povos e sociedades encontradas nos primeiros
anos de conquista restou somente a memóia de seus nomes, sem que sequer
tenhamos dados sobre a língua que falavam e nem em que tipo de sociedade
viviam. O lito da nova presea européia foi mensageiro de morte irreversível.
É difícil calcular a dimensão do desastre e a magnitude do genocídio, e embora
seja verdade que se pode cair em exageros tanto minimalistas quanto maxinalistas,
o fato é sucientemente grave para alertar para as conseências da aventura
colonialista. Os chamados povos do Ocidente dicilmente tomam conscncia
desses resultados destrutivos, quando lhes parece que seu projeto “civilizador”
justicava e continua a justicar sucientemente esse danos “colaterais”.
No Rio da Prata, assim como em outras regiões, a destruição de povos foi
um fenômeno de amplo espectro. Que aconteceu aos Arechanés e Carijós? Onde
eso os Chandules e Querandis, os Charruas, Yaros, Bohanes, Chanáes e Mepenes?
Qual foi o destino dos famosos Aguaves e Paraguas de rio acima? Poderia
comparecer aqui a lista interminável de povos indígenas que surgem nos relatos
da conquista. É verdade que nem todos pereceram na primeira hora, mas muitos
desapareceram antes que se encerrasse o ciclo colonial e a maioria antes do culo
XX. Às vezes o que desapareceu foram os nomes, e algumas dessas sociedades do
Chaco ressurgiram depois com outras denominações, como veremos.
quem resolva a questão com essa ligeireza e desenvoltura tão
próprios da mentalidade vigente ainda hoje, de que os povos indígenas estão
“naturalmente” destinados a morrer.
Com o avanço espanhol, todas essas gerações foram declinando sensivelmente, até
que umas desaparecessem e outras se fundissem em raças mais robustas. Algumas
delas formaram Reduções sob os padres serácos [franciscanos] Cayetano Bruno,
História de la Iglesia en la Argentina, Buenos Aires 1966, p. 37).
Somente quanto ao idioma, como se pode ver a partir dos catálogos de
línguas indígenas de Cestmir Loukottka (1968) e Antonio Tovar (1984), as perdas
foram enormes e irrepaveis. Mas isso tamm ocorreu no sentido cultural,
embora continuemos a o prestar atenção, por motivos de disncia temporal,
esquecimento e desprezo. De fato, povos milenares não conseguiram resistir
sequer a uns poucos dias de contato colonial, durante os quais desencadearam-se
Paraguai: identidades, substituições e transformações
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
epidemias, guerras e maus tratos. Seu m não era inevitável e nenhuma teoria
cultural, econômica ou política poderia justicá-lo. Essa destruição é um fato
histórico, e portanto humano, e tem de assumir sua própria responsabilidade.
Por outro lado, o fato de que alguns povos indígenas não tenham sido
completamente destruídos, como é o caso dos guaranis, somente reforça o
projeto de apreciar e revalorizar suas contribuições como meria de futuro.
o apenas a ngua, mas diversas formas de seu modo de ser indígena de seu
tako econômico, político e religioso, se mostram cada vez mais modernos em
um mundo cujos valores estão se desgastando rapidamente e surgem como de
todo insustentáveis. Os problemas indígenas não são problemas, são soluções.
2. Encobrimento
Menos cruel do que a destruição, mas de efeitos análogos, ainda que
mais ambíguos, é o encobrimento colonial. O descobridor se torna encobridor.
Persiste em não ver, não saber ver ou cobrir o que às vezes, não obstante,
vislumbra entre admirado e temeroso.
Diversas obras da Dra. Branislava Súsnik, como Los aborígenes del Paraguay I
e III/1, cujos subtítulos o “Etnologia do Chaco Boreal e sua periferia (Séculos
XVI e XVII)” e “Etnohistória dos chaquenhos (1650-1910)” apresentam
com bastante detalhe a situação de marginalização dos indígenas do Chaco
em relão ao processo colonial paraguaio, do qual prescindiram e fugiram,
sempre que puderam, ou o qual ameaçaram repetidamente, sem nele integrar-se
propriamente. Encobertos durante séculos, apareceram e surgiram novamente
quando foram atrdos pelas empresas de tanino do Chaco ou pelas incipientes
fazendas de gado, sob um regime de verdadeira escravidão, ou contactados
por projetos religiosos, não de todo alheios a interesses da colonizão, como
a missão inglesa com os Enlhet-Lengua. A mesma autora, junto com Miguel
Chase-Sardi, em Los índios del Paraguay (Madrid 1995) mostra em mais resumida
ntese o mesmo processo tão marcado pelo encobrimento e desprezo, que faz
com que o Paraguai tenha praticamente desconhecido a exisncia desses povos
e portanto não haja incorporado conscientemente nenhum de seus valores, nem
mesmo os relativos à ecologia na qual são mestres. Pode-se dizer que pelo menos
à primeira vista a cultura paraguaia nada soube receber desses povos do Chaco,
de cujas raízes e desenvolvimento pouco ou nada conhecemos.
Bartomeu Melià, s.j.
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No que toca aos guaranis a situação é mais complexa. Costuma-se pensar
que o mundo guarani é o substrato comum da identidade do Paraguai e que o
mundo guarani foi de tal forma assimilado pelo paraguaio que este o fez seu.
É uma forma de encobrir a realidade. O guarani “tribal”, constituído por seis
povos diversos, está vivo e culturalmente goza de boa saúde. Não se pode tapar
nem encobrir essa realidade, como de fato ocorre; o Paraguai desconhece os
guaranis livres, discrimina-os e os marginaliza O Mundo Guarani, no entanto,
não poderá ser construído sem as grandes contribuições dos povos guaranis
do Paraguai. É precisamente graças à sua existência que o mundo guarani é
ainda aproveitável no mundo paraguaio e lhe dá sentido.
O encobrimento muitas vezes é resultado da incapacidade estrutural de
ver e entender sistemas que nos o estranhos. Somente a atenção e a admiração
pelo que é estranho seria capaz de levantar em parte o véu que encobre uma
realidade da qual todos podemos aprender.
Já tratei desse encobrimento e de seus mecanismos e derivações nos ensaios
“El encubrimiento de América” (Razón y Fe 1.108, Madrid fevereiro de 1991: 159-
167) e “El quid pro quo del descubrimiento-encubrimiento de América”(Fronteiras:
Revista Catarinense de História, n. 8, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis 2000: 9-31), idéia que foi retomada por Augusto Roa Bastos na parte
XLVI de La vigília del Almirante (Madrid, Alfaguara 1992: 331-333).
A esse propósito deve-se perceber a incoerência e até estupidez que em
muitos casos caracteriza a tarefa às vezes assumida pela sociedade ao pretender
legislar sobre realidades que lhe estão quase completamente ocultas, ou pior,
que ela mesma encobriu.
3. Substituição
O colono recém-chegado ocupa um espaço do qual pouco a pouco exclui
os antigos habitantes, desarraigando as populações de suas terras, atraindo-
as ao âmbito do domínio espanhol ou relegando-as a zonas mais ou menos
longínquas e marginais. Os próprios indígenas fogem, em vez de atacar.
Fora de seu lugar as coisas são diferentes e isso ocorre muito especialmente
nas sociedades indígenas e camponesas.
Paraguai: identidades, substituições e transformações
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
A partir da colônia o traslado e deslocamento de pontos de referência
tradicionais foi notável. Por um lado, a cidade era um enclave onde a sociedade
indígena já não tinha lugar. A nudez era substituída pelas roupas, os dias e as
horas por um calenrio novo e tarefas obrigatórias, a economia de reciprocidade
pelo preço vingativo das coisas, conforme explicaremos. Paulatinamente, os
“:naturais” (assim eram chamados os indígenas) eram obrigados a abandonar
suas terras, cada vez mais ocupadas pelas implacáveis vacas.
[As vacas] danicam as plantações e lavouras dos índios da comarca desta cidade,
o que lhes causa padecerem de grandes necessidades e fome, abandonarem seus
assentamentos e partir para lugares remotos, afastando-se da doutrina cristã e do serviço
dos espanhóis aos quais estão subordinados” (Ordenança de Juan de Garay de
17 de outubro de 1578, em Aguirre, Diário, I, 1
a
parte: 197-98).
A Redão de Altos em 1580 nascera como resposta cultural e social para
proteger os agricultores guaranis dos pecuaristas espanhóis (ver Necker 1979: 64).
Visto como os espanhóis iam se aproximando dos índios para estabelecer
fazendas, e que eles estavam divididos em parcelas... zeram de uma parte deles
uma Redução no local que até hoje em dia está em um povoado a que chamam Los
Altos” (“Información de 1618”, em Enrique de Gandia, “Orígenes Del
franciscanismo en el Paraguai y Rio de la Plata, Revista Del Instituto de
Ciências Genealógicas, ano 5, n. 6-7, Buenos Aires, 1946-47: 48-82 (p.60).
Domingo Martinez de Irala percebeu com muita clareza o problema,
que redundava em diminuição da produtividade. Assim, diria ele:
“ninguém poderá estor-los em suas terras, campos, pastos, caças, pesqueiros,
assentamentos de povoados e termos que possuem e que têm possuído por usos e costume
[...]” (Ordenanças de Irala 1556, citado por Susnik, 1979-1980: 112).
A mudaa do panorama ecológico e da espacialidade, além de constituir
um atentado aos direitos fundamentais, era contraproducente tanto para a cultura
quanto para a economia. Na verdade, a substituão de espos sicos e culturais
continua a ser praticada ainda hoje, com os mesmos efeitos nefastos.
Sempre procurada, porém nem sempre conseguida, a substituição
pretendeu estender-se a todos os aspectos da vida e da cultura. Disso
trataremos adiante. A historiograa paraguaia, ao colocar a mestiçagem como
Bartomeu Melià, s.j.
165
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
chave interpretativa de seu processo colonial, faz supor que os espaços foram
respeitados e que a nova sociedade se formou com inclusões saudáveis e sem
exclusões traumáticas. As repetidas rebeliões e fugas dos guaranis fora do
quadro colonial fazem pensar o contrário.
4. Transformação
O pudor histórico diante da morte e destruição de tantos povos e formas
de vida e a necessidade ideológica de criar uma sociedade homogênea de
cidadãos iguais perante a lei alentaram o paradigma da mestiçagem cultural
como interpretação global da formação do povo paraguaio. A seleção de dados
parciais e certas explicações ingênuas e mal documentadas criaram a ilusão de
estar-se diante de algo original. A generalização do uso da língua guarani em
todas as camadas da sociedade paraguaia reforçava a explicação.
Os guaranis não teriam sido nem destruídos, nem encobertos e nem
substituídos, e sim simplesmente transformados, em uma mistura harmônica
de sangue e culturas. Claro que tampouco os espanis teriam desaparecido, e
se manifestam por toda parte. Essa tese é a predominante a agora, e embora
nem sempre saibamos com certeza em que consistiria a transformação, nós a
supomos e para ela buscamos argumentos. Essa mesma “informação” deveria
arrolar provas nesse sentido. Assim o fa, mas com intenção ctica, examinando
o duvidoso passo entre substituição e transformação. Essa é a questão.
Tratando-se de mestiçagem não se pode prescindir das estatísticas de
população, embora nos tempos coloniais estas não tenham passado de “ciência
de opiniões”, como já notava Silvio Zavala (1977: 138).
De todo modo, as sucessivas contagens e censos, ao revelar a pouca
densidade do elemento espanhol, não são capazes de armar uma intensa
mestiçagem biológica, especialmente se levarmos em conta que nos povoados
de índios – governados por clérigos, por franciscanos ou por jesuítas – onde
estava a maior parte da populão da província, esta era absolutamente ingena.
Por outro lado, não se deve esquecer tampouco que em 1782, às vésperas da
independência, a elevada percentagem de “pardos” signicava 10.846 pessoas
numa população de 96.526, ou sejam 11,1%, enquanto que em Assunção, com
apenas 4.941 habitantes, eles representavam 24,9%. Também com eles ao longo
Paraguai: identidades, substituições e transformações
166
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
do tempo ocorreu a coexistência e a comunicação social e cultural com seus
próprios conitos. A eventual transformação ou substituição não se opera
por meio dos genes ou do que é biológico, e sim na imaginação, constante e
agressiva, sustentada por traços físicos e cores; aquilo a que chamamos racismo,
do qual raramente nos libertamos.
Nessa mesma época de 1782 os espanhóis” representavam pouco
mais da metade da população paraguaia: 55.616 pessoas, ou sejam 57,8%. Em
Assunção os espanhóis europeus ou peninsulares eram somente 82 (1,7%) e
os espanhóis americanos 2.038 (41,2%).
Durante a colônia os que hoje supomos serem mestiços se identicavam
como espanhóis americanos, em contraposição à minoria peninsular ou
européia. Ora, sem levar em conta o lugar de nascimento, a diferença mais
profunda provavelmente consistia em que os primeiros falavam guarani quase
exclusivamente guarani e os segundos não, ou muito pouco. A sociedade não
era bilíngüe, embora a administração “ocial” (seja em relação à metrópole
ou outras províncias, a jurídica e em alguns aspectos a religiosa) fosse feita em
castelhano. Esse bilingüismo diglósico, como o designam os sócio-linguistas,
dá a medida das transformações culturais operadas.
Em termos de transformação tinha ocorrido uma mudança genética
que, no entanto, não afetava a prática cultural, isto é, a econômica, social e
política, com a mesma simetria mecânica da biológica. No mestiço ocorriam
simultaneamente destruições, substituições e transformações, que não podem
ser pensadas genericamente, mas tampouco apenas individualmente. Muitas
dessas transformações se davam também no seio da sociedade indígena
colonizada. A colonialidade tende a ser global nos espaços onde se instala,
embora nem sempre no mesmo grau e na mesma extensão.
As transformações culturais do Paraguai seguem o que poderíamos chamar
de linhas isobáricas segundo pressões coloniais especícas e relativamente
homogêneas. No Paraguai a evolução dessas pressões não foi nem constante
e nem uniforme, porém fazendo certos cortes no tempo podemos visualizar
uma cartograa com regiões bastante denidas.
O primeiro período da conquista, que podemos delimitar entre 1537 e
1556, e sua continuação de 1556 a 1610, representa uma horrenda e espantosa
Bartomeu Melià, s.j.
167
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
queda demográca, que de 200 mil guaranis é uma hipótese muito plausível
para o que se entendia como área de inuência espanhola – teria se reduzido
a não mais de 20 mil (ver Necker 1979: 145-46). Somente as Reduções, ou
povoados de franciscanos, iniciados a partir de aproximadamente 1580 (ibid.:
62) conseguiram estabilizar a população, que em vez de cair verticalmente
seguiria uma trajetória quase horizontal, com pontos de diminuão e
recuperação segundo os lugares e os anos.
Se zermos um corte temporal cerca de 1650, quando a conquista
estava interrompida, veremos umas poucas cidades de espanhóis e três tipos
de povoados dos índios: os governados pelo clero secular, pelos franciscanos
e pelos jesuítas, e suspeita-se de uma população indígena livre nos montes,
tanto na região oriental quanto no Chaco. É portanto a partir desse panorama
que se desenha a complexidade da colônia paraguaia.
A mestiçagem, mais como construção imaginária e cultural do que como
fato biológico, pode ser aceita como síntese acertada e bem humorada que
parece haver evitado tensões sociais durante algum tempo. O paradigma pode
ser aplicado com relativo êxito a diversas épocas, apesar de que as proporções
de seus elementos foram muito variadas.
Desde a data da expulsão dos jesuítas (1768) desenvolveu-se uma série
de acontecimentos, entre os quais a independência em 1811 é um episódio
menor cujo sentido se concretizará na ditadura do dr. José Gaspar Rodrigues
de França. Para os viajantes franceses e ingleses do século XIX a visão exótica
de nosso Paraguai não deixa de ter seu encanto, ao mesmo tempo em que
mostra as irreversíveis substituições e transformações que ocorreram. Ao
estrangeiro que chegava ao Paraguai entre 1811 e 1853 oferecia-se uma imagem
romântica (Nagy 1969) que até hoje permanece como referencia nostálgica
de um Paraguai perdido.
Neste trabalho procuraremos analisar em detalhe as transformações que
nos parecem mais signicativas do tempo colonial e as que permaneceram
no século XIX.
O quadro do século XX, no entanto, acusa a profunda ruptura instalada
depois da Guerra Grande que terminou em 1870 e produziu um país fragmentado
sob a ilusão de uma democracia de partidos de ideologia liberal.
Paraguai: identidades, substituições e transformações
168
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
5. Criação
A transformação é movimento de geração de novas formas por meio do
diálogo entre dois ou mais elementos postos em contato, que em suas várias
relações, ainda conitivas, conduz a um novo modo de ser. A transformação
cede passo à invenção de novas realidades que acabam em criação. A formação
do povo paraguaio pode ser observada dessa perspectiva, que não se deve
descartar por ambígua e ilusionista Também as substituições podem ser criativas
e extravasar os termos impostos em sua origem. A crião se distingue pelos
saltos qualitativos que a ação livre e imaginativa lhe outorga. Por isso mesmo
condões de criatividade relativas e especas que se dão em certas ocasiões e
não em outras. Onde e como ocorreu a criatividade do povo paraguaio?
As criatividades são várias, segundo os diálogos levados a cabo, e é isso
o que deveríamos rastrear sistematicamente neste ensaio.
O mundo guarani paraguaio
Quando se procura o mundo guarani no mundo paraguaio, e se exclui
a língua, estamos num jardim de trilhas que se entrecruzam sem rumo xo.
Os ecos que se adivinham parecem quebrar-se em mil pedaços sem chegar a
formar uma frase claramente inteligível.
O Paraguai foi denido, e se dene, como um país mestiço e bilíngüe.
Nessas imagens se a síntese de contrários, quando esses contrários na
realidade impossibilitam qualquer síntese ou levam a uma síntese enganosa.
No Paraguai, o chamado criollo
1
é mestiço e o mestiço passa por criollo.
Já desde o tempo de Azara, no nal do século XVIII, cou congurada essa
nova invenção – um tipo de pessoa que se chamará paraguaio – que poderia
sustentar muito bem a nacionalidade paraguaia independente.
O processo paraguaio que nalmente se impôs foi o de uma população
majoritariamente guarani por parentesco e por língua, por seus traços
siológicos e por seu modo de ser e cultura, porém na qual o sistema político
e o sistema econômico se haviam “desguaranizado” sem pressa porém sem
1 Chama-se criollo o descendente de espanhóis nascido na colônia (N. do T.).
Bartomeu Melià, s.j.
169
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
pausa, profunda embora não radicalmente. A classe dos encomenderos
2
e seus
sucessores, os ociais militares, criou a condição camponesa com a qual o
Paraguai tradicional tem se identicado.
No século XX começou um novo colonialismo no Paraguai, anunciado
de vários modos, mas que foi se armando decididamente a partir do Tratado
de Itaipu (1973). A modernidade, projetada e prometida pelos mecanismos
capitalistas que lhe são próprios, o redundou em avanço nem desenvolvimento
da nação. Desse modo, a sociedade se encontra “deslocada”, como dizia A.
Galeano (2002) entre os caçadores, para usar uma imagem, e os agricultores, cujo
trabalho passa a ser caçadonum sistema que gera exclusão novas e amplas
migrações internas e ao exterior, por exemplo – pobreza e frustração.
O contínuo processo de colonização em que estamos imersos repercute
de modo especial na maioria camponesa, que não deixou de repente sua
condição pelo fato de haver migrado aos centros urbanos. Poder entender
esse novo processo é uma tarefa premente. O rápido deorestamento em
que se vê submergido o Paraguai atual não é apenas uma questão de desastre
ecológico e economia insustentável, e sim inquietante metáfora de desastres
e impasses de todo tipo.
Será preciso aceitar uma ruptura radical entre o Paraguai anterior a 1870
e o que surgiu depois, no século XX? Se aceitamos que se trate de uma nova
colonização, seria ela do mesmo tipo da de antes a Guerra Grande?
Hoje parece que o lugar da cultura se encontra em um mítico e místico
esconderijo de entrada estreita onde somente os “peritos em paraguaidade
seriam capazes de penetrar. Mas esses peritos, anal de contas, não trazem
nas mãos algo signicativo e comunicável. A identidade morre assim como
frágil anedota, algo tradicional e folclórico, que no máximo não nos interessa.
A identidade estaria em atitude de vergonha, escondida atrás da porta, sem
atrever-se a reclamar um lugar sob o sol.
De fato, o processo segue uma linha de continuidade histórica, na qual
uma parte da sociedade se distancia da outra, unida apenas pelo frágeis os
de uma suposta herança comum, que seria o guarani.
2 Pessoa que por concessão real, durante a colônia, recrutava um grupo de índios cujo trabalho explorava em
troca de catequizá-los e “protegê-los” (N. do T.)
Paraguai: identidades, substituições e transformações
170
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Mas esse mesmo mundo guarani, embora fosse mais bem conhecido, é
relegado de fato a um passado distante, alheio e estranho. As virtudes do mundo
guarani, que por outro lado são muito reais e dinamizadoras, não contam para
a construção do país, nem no plano econômico e nem no político. As próprias
palavras guaranis que se referem a esses campos karaí, mburuvichá, joói, tepy
sofreram transformações tão radicais que quase tornam irreconhecíveis
sua origem e sentido. É ilusório pensar que a reivindicação e convalidação
do mundo guarani no Paraguai atual; veja-se o estado em que se encontram
as duas experiências mais autenticamente guaranis: os povos indígenas e as
ruínas jesuíticas. De nenhuma forma se constituem em referência real para a
construção da nação.
Nestes anos iniciais do século XXI o Paraguai está exposto ao processo
colonizador mais amplo e radical de toda sua história. Em nenhum momento
anterior o Paraguai havia aberto tão “generosamente” (valha a ironia) seu
território à colonização. Também as terras que passaram à propriedade de
grandes rmas Industrial Paraguay, Carlos Casado, Mate Larangeira tiveram
melhor sorte: seus donos e senhores as possuíam e exploravam, sem dúvida
as degradavam, mas não as colonizavam propriamente.
Desde a colonização menonita, timidamente iniciada em 1927, com um
pequeno contingente de cerca de 1.250 pessoas, e a brasileira, cuja origem
pode ser simbolizada pela abertura da Ponte da Amizade em 27 de marco
de 1965, o colonialismo adquire outras características: o que é paraguaio,
seja o que for o que se entenda por isso, não conta como referência, e nem
sequer o Estado como tal. Porém não se trata somente dessas comunidades,
que estão no Paraguai mas não são do Paraguai e sim de um setor variegado
da sociedade econômica, supostamente moderno na gestão da tecnologia e
produtos pecuaristas, plantadores de soja e comerciantes de informática,
para citar os mais notórios mas que responde a um modelo de colonialismo
atrasado e paralisante, e ao mesmo tempo muito ativo e eciente. Para esse
setor o mundo guarani e suas variações são um elemento residual.
Traduzida em termos culturais, essa tendência exclui como supéruo –
como um “ainda” que deve ser superado – o mundo guarani, língua e modo
de ser, que caso apareça somente poderá fazê-lo travestido de exotismo e
história de uma “parcialidade”, a paraguaia, em vias de maior concentração
Bartomeu Melià, s.j.
171
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
em direção aos antigos núcleos de população, em condição de marginalidade
e de potencial migração para o exterior.
Algumas notas bibliográcas
Da frondosa selva de títulos sobre o Paraguai indígena, jesuítico, colonial e
contemporâneo que aparece em Mundo Guarani (Bartomeu Melià, Assunção, 2006,
p. 187-261) pode-se recuperar Carlos PASTORE, 1972, La lucha por la tierra en el
Paraguay, Montevidéu, 526 p., e a produção de alguns pesquisadores estrangeiros
porém de inuência muito escassa nos meios paraguaios como Jan M.G.
KLEINPENNING, 1992, Rural Paraguay, 1870-1932 (Amsterdam, CEDLA,
1992, 528 p.) e Paraguay 1515-1870: A Thematic Geography of its Development (2 vols.,
Madrid, Frankfurt am Main: Iberoamericana Vervuert, 2003, 1820 p.) e estudos
mais recentes sobre a entrada brasileira no Paraguai, como o de Sylvain Souchaud,
Pionniers Brésiliens au Paraguay (Paris, Karthala, 2002, 406 p.), agora em castelhano.
Sobre a mobilidade e reconguração de um mapa em plena formação que parece
ser o do Paraguai atual – terra sem homens, homens sem terra – mais do que a
potica dá conta da situão o jogo de interesses ecomicos e culturais tipicamente
coloniais em que continuamos submergidos. À falta de estudos hisricos e
sociológicos relevantes seria preciso buscar no campo especializado da economia
e população, sem descartar a literatura de cção. O 2
o
Congresso Paraguai de
População; 16 a 18 de novembro de 2005, Memórias (Assunção UNFPA/ADEPO,
2007, 178 p.) por exemplo, é do maior interesse a esse respeito. É de lamentar-se
a pouca produção universitária institucional sobre a realidade paraguaia.
Não admira que certas organizações internacionais desejem realizar um
estudo sobre a identidade do paraguaio e sua herança guarani, com especial
ênfase na população camponesa e urbana parte da população mestiça, à
parte da língua guarani, que levaria a rever as políticas existentes em matéria
cultural e as instituições responsáveis; identicar os hiatos e contradições, em
nível de políticas, leis e organização institucional; e elaborar uma proposta
de política cultural realista e viável. A política deverá integrar, entre outros,
os seguintes temas: a recuperação da identidade guarani dos paraguaios, a
valorização dessa identidade e a adoção das facilidades necessárias para a
mencionada valorização, inclusive medidas no campo educativo, na gestão da
publicidade e meios de comunicação, as normas e incentivos necessários para
Paraguai: identidades, substituições e transformações
172
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
facilitá-la; a identicação do Paraguai como centro do Mundo Guarani perante
a comunidade internacional; a denição do papel da identidade guarani na
convivência entre os cidadãos; e a diferenciação do papel do governo central
e setorial, do setor privado, da sociedade civil, dos povos indígenas e demais
minorias étnicas na implementação dessa política.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
173
Peru: entre os
sobressaltos eleitorais
e a agenda pendente
da exclusão
Martín Tanaka*
Sofía Vera**
Resumo
2
006 foi um ano de eleões no Peru. Durante esse ano foram substituídas
todas as autoridades cuja designão depende de eleições populares. O fato
mais saliente foi a vitória de Alan Garcia nas eleições presidenciais, assim como
o surpreendente auge e posterior queda do candidato anti-sistema, Ollanta
Humala, entre a eleição presidencial de abril e as eleições regionais e municipais
de novembro. O discurso anti-sistema e a imagem de autoridade projetada
pelo capitão reformado Ollanta Humala suscitaram amplo apoio eleitoral, cuja
distribuição geográca pôs em evidência algumas das clivagens sociais que
* Diretor Geral do Instituto de Estudos Peruanos
mtanaka@iep.org.pe
** Pesquisadora Assistente do Instituto de Estudos Peruanos
svera@iep.org.pe
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
atravessam o país. Esses resultados zeram com que a inclusão social se tornasse
o tema central da agenda potica. Não obstante, a debilidade da oposão ao
governo de Garcia fez com que esse tema fosse se dissipando, embora continuem
a subsistir os motivos de fundo que mereceriam estar presentes.
1. Conjuntura
2006 foi um ano de eleições no Peru. Durante esse ano foram substituídas
todas as autoridades cuja designação depende de eleições populares: o Presidente
da República e os congressistas, os presidentes regionais, os prefeitos provinciais
e distritais e suas respectivas assembléias. O fato mais saliente foi a vitória de Alan
Garcia nas eleições presidenciais, apesar da lembrança negativa que se tem de sua
primeira gestão no governo (1985-1990). A vitória foi possível porque Garcia
conseguiu propor uma candidatura que ocupou o centro político, alternativa tanto
em relação à “candidata dos ricos”, Lourdes Flores, da Unidade Nacional, como ao
candidato radical anti-sistema, Ollanta Humala, cuja irrupção no cerio eleitoral
foi inesperada. Esta última candidatura se impôs com a votação mais elevada no
primeiro turno, em abril de 2006, e embora o total de seus votos chegasse a 47,4%,
no segundo turno, em junho, foi ele vencido por Garcia, que obteve 52,6%. O
discurso anti-sistema e a imagem de autoridade que o capitão reformado Ollanta
Humala projetou suscitaram amplo apoio eleitoral, cuja distribuição geográca
pôs em evidência algumas das clivagens sociais que atravessam o país. O outsider
Humala alcançou suas maiores votões nas regiões do sul andino, nas zonas mais
empobrecidas e abandonadas e nas localidades onde presea de grupos étnicos
minoritários. Garcia ganhou na cidade de Lima e nas cidades mais modernas e
integradas aos circuitos econômicos mais dinâmicos, localizadas na costa.
Esses resultados zeram com que a inclusão social se tornasse o tema central
da agenda política. Embora a economia em geral caminhe bem, o que se expressa
em bons indicadores macroeconômicos, e comece a perceber-se certo otimismo
em relação ao futuro do país, no aspecto social, o Peru não deixa de ser um país
com metade da população em condições de pobreza. Assim, por um lado, temos
que a economia cresceu durante 60 meses consecutivos, projeta-se um crescimento
do produto bruto interno (PIB) de 7,7% em relação a 2006 e que a arrecadação
tributária em 2007 cresça 98% em relação a 2001
1
. Não obstante, os indicadores de
1 Fonte: Banco Central de Reserva do Peru, Memória 2005 e Apoyo Consultoria SAC.
Martín Tanaka · Sofía Vera
175
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
pobreza e desemprego, assim como o nível de salários e emprego, não mostraram
melhora nos últimos anos. Tudo isto: a combinação de uma situação econômica
relativamente boa, o aumento dos recursosscais, uma gestão política prudente
e a debilidade da oposição, fez com que os primeiros sete meses do governo de
Alan Garcia cassem marcados por uma relativa estabilidade.
No plano internacional, os temas mais relevantes foram, entre outros, a
busca da aprovão de um tratado de livre corcio com os Estados Unidos, tanto
pelo governo de Alejandro Toledo quanto pelo de Alan Garcia, até o momento
infrutífera; a intervenção de Hugo Chávez na campanha presidencial em favor do
candidato Ollanta Humala, o que turvou o relacionamento bilateral, dada a vitória
de Garcia; e as reiteradas tensões na relação bilateral com o Chile (uma das quais,
por exemplo, foi o tema da delimitação marítima da fronteira), que os presidentes
Garcia e Bachelet trataram de melhorar por meio de um contato pessoal.
Em seguida, apresentamos uma resenha dos aspectos políticos mais im-
portantes do período de 2006 até o presente em 2007 e dos processos políticos
em marcha que podem congurar novas perspectivas para o país.
2. Mudanças institucionais
A mudança de governo não produziu modicões drásticas nas políticas
públicas ou mudanças substantivas no funcionamento das instituições no Peru.
No período presidencial iniciado em julho de 2006 começou-se a tomar certas
decies no sentido de uma reforma do Estado, enfatizando a austeridade como
valor e buscando melhores níveis de ecácia. Cabe mencionar que, durante
o governo anterior, foram implementados algumas mudanças no sistema
eleitoral e na legislação sobre partidos, que foram aplicados recentemente,
na conjuntura eleitoral de 2006. A lei sobre partidos políticos, de novembro
de 2003, estabeleceu requisitos mínimos para as agremiações políticas que
quisessem apresentar candidatos e a lei de barreira eleitoral (outubro de 2005)
procurou evitar a fragmentação extrema do parlamento. Os resultados das
eleições, como veremos mais adiante, demonstraram que essas mudanças
parciais não resolvem por si sós a debilidade do sistema de partidos: nem o
número de candidatos foi menos neste ano e nem se formaram no Congresso
blocos partidários consolidados.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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3. Eleições
Em 2006 realizaram-se ts tipos de eleões: a presidencial, a do Congresso
e as regionais e municipais. A eleição presidencial, cujo vencedor foi Alan Garcia
Perez, desenvolveu-se em dois turnos, o primeiro, em 9 de abril e o segundo, em
4 de junho. O sistema eleitoral peruano estabelece que nas eleições presidenciais
o candidato vencedor deve obter pelo menos 5% mais um dos votos lidos. Se
essa cifra não for conseguida, os dois candidatos mais votados são convocados.
Ollanta Humala, candidato da União pelo Peru, que cou em primeiro lugar,
com pouco mais de 30% dos votos, teve de competir no segundo turno com
Alan Garcia Perez (Partido Aprista Peruano), líder do partido mais antigo do
país e ex-presidente da República entre os anos de 1985 a 1990.
Ollanta Humala tentou participar das eleições com um partido novo, o
Partido Nacionalista Peruano (PNP), mas ao o conseguir inscrição apresentou a
candidatura sob os auspícios da Uno pelo Peru. Humala se perlava como liderança
de oposição radical às políticas neoliberais, o candidato que encarnava a “guinada
para a esquerda” ocorrida também na Venezuela e na Bolívia, cujos presidentes
deram mostras públicas de apoio político a sua candidatura
2
. Embora Garcia tenha
vencido o segundo turno eleitoral, Humala ganhou o primeiro. Embora Garcia
tenha se imposto a Lourdes Flores por uma diferença muito pequena, os votos
de ambos se somaram para derrotar a Humala. Os resultados foram imprevistos,
à luz do desenvolvimento da campanha. Lourdes Flores encabeçou a intenção
de voto até fevereiro de 2006, mas cou fora da contenda eleitoral por menos de
um ponto percentual de diferença diante do candidato aprista. Outra surpresa foi
o grupo fujimorista Aliança para o Futuro, que conquistou o quarto lugar, apesar
dos acontecimentos que obrigaram Fujimori a abandonar a presidência em 2001
e dos processos judiciais abertos contra ele. Martha Chavez conseguiu mais votos
do que Valentin Paniagua, candidato da Frente do Centro, apesar da avaliação
positiva de sua gestão como presidente provisório em 2000-2001.
A distribuição de votos no primeiro turno mostra em termos gerais que
Humala ganhou na maioria das regiões, Lourdes Flores somente em Lima e
Garcia na costa norte. A votação de Humala esteve acima da média nas regiões
do sul dos Andes, onde vive a maioria da população de origem indígena e
de maiores níveis de pobreza. Pelo contrário, os setores mais integrados aos
circuitos econômicos modernos apoiaram opções políticas mais moderadas.
2 Considerar a reunião em Caracas em março de 2006 com Evo Morales, da Bolívia, e Hugo Chávez, da Venezuela.
Martín Tanaka · Sofía Vera
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Tabela 1 – Percentual de votos em eleições presidenciais
Candidatos (# 20)
Primeiro
turno
(9 de abril)
Segundo
turno
(4 de junho)
Ollanta Humala (UPP) 30.62 47.4
Alan Garcia (APRA) 24.32 52.6
Lourdes Flores (UN) 23.81
Martha Chávez (Alianza para el Futuro) 7.43
Valentín Paniagua (Frente de Centro) 5.75
Outros candidatos (menos de 5% da votação) 8.06
Total 100.00 100.00
Gráco 1 – Resultados das eleições
presidenciais por regiões (primeiro turno)
A eleição do Congresso é simultânea com a eleição presidencial e ocorreu
em 9 de abril. O Congresso peruano consiste em uma única câmara com
120 legisladores, eleitos em 25 circunscrições plurinominais. O tamanho das
circunscrições vai de 1 a 7 cadeiras, com excão de Lima, que é maior, com
35 cadeiras. Cada eleitor vota por alguma das listas que competem em sua
UPP
APRA
UN
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
circunscrição, e, em seguida, pode votar especicamente por dois candidatos
dentro da lista (voto preferencial). A aliança UPP-PNP obteve a maior quantidade
de cadeiras no Congresso (45 lugares), seguida pelo partido Aprista, com 36
representantes. É importante ressaltar que apesar de a percentagem de votação
de ambas as forças políticas foi de 21 por cento (2.213.623 contra 2.274.797), a
distribuição nacional de seus votos permitiu à UPP obter muito mais cadeiras.
Tabela 2 Percentual de votos e mero de cadeiras obtidas pelas
agremiações políticas nas eleições de 2006 para o Congresso
Partido Político
Unión por
el Perú
Partido
Aprista
Unidad
Nacional
Alianza por
el Futuro
Frente de
Centro
Perú Posible
Restauración
Nacional
Outros 1/ Total
Região
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
% votes
n° wardss
Amazonas
23 1 22 1 10 0 10 0 18 0 3 0 3 0 12 0 100 2
Ancash
21 2 26 2 13 1 7 0 4 0 3 0 4 0 21 0 100 5
Apurímac
34 2 17 0 9 0 3 0 5 0 1 0 4 0 27 0 100 2
Arequipa
35 3 14 1 14 1 10 0 4 0 2 0 0 0 22 0 100 5
Ayacucho
54 3 6 0 8 0 11 0 4 0 1 0 0 0 16 0 100 3
Cajamarca
20 2 18 1 12 1 17 1 7 0 2 0 2 0 20 0 100 5
Callao
14 1 26 2 22 1 12 0 5 0 5 0 5 0 9 0 100 4
Cusco
39 4 19 1 7 0 4 0 8 0 1 0 3 0 19 0 100 5
Huancavelica
46 2 11 0 8 0 17 0 6 0 3 0 0 0 10 0 100 2
Huánuco
36 2 13 1 8 0 6 0 7 0 2 0 9 0 20 0 100 3
Ica
22 1 25 2 22 1 6 0 5 0 4 0 3 0 13 0 100 4
Junín
29 2 18 1 13 1 15 1 6 0 2 0 0 0 16 0 100 5
La Libertad
10 1 45 5 11 1 7 0 2 0 2 0 4 0 19 0 100 7
Lambayeque
16 1 32 2 11 1 13 1 5 0 1 0 3 0 19 0 100 5
Lima
14 6 17 7 20 8 19 8 8 3 7 2 5 1 10 0 100 35
Loreto
22 1 15 1 10 0 2 0 17 1 1 0 14 0 19 0 100 3
Madre de Dios
20 0 12 0 15 0 3 0 4 0 14 0 21 1 12 0 100 1
Moquegua
30 1 22 1 14 0 3 0 14 0 2 0 2 0 13 0 100 2
Pasco
18 1 1 0 8 0 20 1 10 0 3 0 6 0 35 0 100 2
Piura
19 2 28 1 13 1 9 0 7 0 5 0 4 0 15 0 100 6
Puno
36 3 12 3 7 0 7 0 9 1 3 0 4 0 22 0 100 5
San Martín
29 1 21 1 13 0 17 1 7 0 1 0 6 0 6 0 100 3
Tacna
32 1 20 1 12 0 3 0 11 0 1 0 0 0 20 0 100 2
Tumbes
19 1 22 1 14 0 11 0 11 0 5 0 8 0 11 0 100 2
Ucayali
22 1 21 1 12 0 5 0 10 0 1 0 4 0 25 0 100 2
Total
21 45 21 36 15 17 13 13 7 5 4 2 4 2 15 0 100 120
1/ Com menos de 4% da votação válida total
Martín Tanaka · Sofía Vera
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Resultados das eleições para o Congresso por região
Congressistas UPP Congressistas APRA Congressistas UN
A UPP-PN tem congressistas em todas as regiões do país, salvo em
Madre de Diós; o APRA colocou congressistas em 21 das 25 regiões, com
votações expressivas em La Libertad, Piura e Ancash. A terceira força política
no Congresso, Unidad Nacional, tem votos evidentemente na Costa e em Lima
(suas mais altas votações se encontram em Lima, Callao e Ica). Embora sete
grupos tenham alcançado representação, é importante assinalar que 24 listas
foram apresentadas.
As eleições regionais e municipais foram celebradas somente cinco
meses depois das eleições gerais, em novembro de 2006. Nelas foram eleitos
representantes para 25 governos regionais, 195 municipalidades provinciais e
1830 municipalidades distritais. Os governos regionais com autoridades eleitas
foram criados recentemente, no ano de 2002, como resultado do processo de
regionalizão. Foram instalados com base na circunscrição dos departamentos,
que durante a época de Fujimori funcionaram subordinados a Conselhos
Transitórios de Administração Regional (CTAR) designados pelo Executivo.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Tabela 3 – Percentagem de votos válidos, cargos obtidos
e candidatos apresentados por organização
política nas eleições regionais e provinciais
Organizações políticas
Presidência regional (25) Governos provinciais (195)
%
votos
validos
%
cargos
obtidos
%
candidatos
apresent.
%
votos
validos
%
cargos
obtidos
%
candidatos
apresent.
Partido Aprista Peruano 18% 8% (2) 100% (25) 14% 9% (18) 94% (184)
Partido Nacionalista 8% 0% (0) 100% (25) 6% 5% (10) 79% (155)
Unión por el Peru 6% 4% (1) 68% (17) 5% 9% (17) 72% (140)
Unidad Nacional 3% 0% (0) 36% (9) 17% 2% (4) 26% (51)
Restauración Nacional 3% 0% (0) 40% (10) 7% 4% (7) 35% (69)
Fuerza Democrática 3% 4% (1) 16% (4) 1% 2% (4) 15% (29)
Partido Movimiento
Humanista Peruano
3% 4% (1) 8% (2) 0% 0% (0) 4% (8)
Si Cumple 2% 0% (0) 64% (16) 3% 1% (1) 36% (71)
Acción Popular 2% 0% (0) 40% (10) 4% 5% (9) 51% (100)
Avanza País - Partido de
Integración Social
2% 4% (1) 16% (4) 1% 0% (0) 7% (14)
Perú Posible 2% 0% (0) 24% (6) 0% 1% (2) 12% (23)
Other Political Parties 1/ 6% 4% (1) 12% 12% (23)
Independents 2/ 43% 72% (18) 30% 51% (100)
Total 100% 100% (25) 100% 100% (195)
1/ Com menos de 2% da votação válida total nas eleições regionais.
2/ Apresentaram-se 81 organizações independentes nas eleições regionais e 217 nas provinciais.
Os resultados rearmam a dispersão do sistema peruano de partidos e
mostram cenários regionais desarticulados entre si e de pouca coesão no interior.
Em 7 das 25 regiões venceram candidatos apoiados por algum partido potico
nacional, e o resto (18) cou em mãos de organizações políticas “independentes”
de alcance regional. Isto é, no mapa político predominam os deres independentes
que o m laços poticos com outras presincias regionais do país, e que
pertencem a organizações políticas sem alcance nacional. Embora não tivesse
dimindo signicativamente o percentual de votão que obteve na eleição
presidencial do mês de abril, o APRA perdeu 9 das 12 presincias regionais
que ganhara em 2002, cando sua representão reduzida somente às regiões
de Piura e La Libertad, seus “redutos eleitorais” tradicionais. Quanto aos demais
grupos, nesta ocasião apresentaram-se separados o Partido Nacionalista de
Martín Tanaka · Sofía Vera
181
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Ollanta Humala e a Unión por el Peru. Eles obtiveram 8% e 6% da votação
válida total, depois que a UPP obteve 30% dos votos no primeiro turno da
eleição presidencial e 21% dos votos válidos na eleão para o Congresso. Os
demais partidos nacionais praticamente desaparecem, nos âmbitos regionais e
locais, quem predomina são os lideres independentes.
Que se pode dizer sobre a grande diversidade de movimentos regionais?
Eis algumas constatações: somente um dos eleitos em 2002 conseguiu ser
reeleito; muitos dos eleitos se haviam apresentado nas eleições de 2002;
em algumas regiões, o movimento vencedor ganhou também em rios
dos governos provinciais, enquanto que em outras, sobressai uma grande
desarticulação entre o âmbito regional e o provincial; um bom número de
presidentes regionais conta com experiência política e administrativa prévia, à
diferença dos eleitos em 2002; tudo isso permite nutrir esperanças moderadas
de que haverá gestões importantes. Por outro lado, temos outros presidentes
eleitos sem maior experiência previa, eleitos por margens estreitas e com uma
percentagem muito alta de votos, situação que poderia levar a problemas de
governabilidade em um contexto regional fragmentado.
Tabela 4 – Percentagem de votos válidos e percentagem
de diferença com o 2
o
lugar em eleições regionais
Região Presidentes regionais eleitos
% votos
válidos
Puno
Pablo Fuentes
(Avanza País - Partido de Integración Social)
18.8 0.4
Lima
Nelson Chui
(Concertación para el Desarrollo Regional Lima)
20.3 0.0
Piura César Trelles (APRA) 24.7 2.5
Ayacucho
Isaac Molina
(Frente Independente Innovación Regional)
25.2 6.2
Pasco Félix Serrano (Movimiento Nueva Izquierda) 25.5 5.2
Junín Vladimiro Huaroc (CONREDES) 25.8 8.1
Huancavelica Federico Salas (PICO) 26.6 1.2
Amazonas Oscar Altamirano (Fuerza Democrática) 26.8 6.1
Moquegua
Jaime Rodríguez
(Movimiento Independente Nuestro Ilo-Moquegua)
26.9 0.5
Huánuco Jorge Espinoza (Frente Amplio Regional) 27.0 9.1
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Região Presidentes regionais eleitos
% votos
válidos
Apurímac David Salazar (Frente Popular Llapanchik) 27.0 4.2
Ancash
Cesar Álvarez (Movimiento Independente Regional
Cuenta Conmigo)
28.3 10.8
Cajamarca Jesús Coronel (Fuerza Social) 29.2 11.8
Ica Rómulo Triveño (PRI) 32.1 10.1
Cusco Hugo Gonzales (Unión Por el Perú) 32.6 5.1
Tacna Hugo Ordoñez (Alianza por Tacna) 32.7 13.1
Tumbes
Wilmer Dios
(Movimiento Independente Regional Faena)
32.8 1.3
Madre de Dios
Santos Kaway
(Movimiento Independente Obras Siempre Obras)
33.5 18.1
Ucayali Jorge Portocarrero (Integrando Ucayali) 34.1 3.5
Arequipa Juan Guillén (Arequipa, tradición y futuro) 34.9 14.7
Lambayeque
Yehude Simon
(Partido Movimiento Humanista Peruano)
39.6 20.9
Loreto Yvan Vasquez (Fuerza Loretana) 42.0 17.1
San Martín César Villanueva (Nueva Amazonía) 44.5 21.8
La Libertad José Murgia (APRA) 48.0 34.1
Callao Alexander Kouri (Chimpun Callao) 49.6 16.3
Em todos os processos eleitorais de 2006, a participação eleitoral foi maior
do que 85%: 88,71% nas eleições gerais (presidencial e para o Congresso);
87,71% no segundo turno presidencial e 87,41% nas regionais e municipais.
Com relação a anos anteriores, a participação eleitoral foi ligeiramente maior.
Por exemplo, nas eleições regionais de 2002, a participação foi de 84%
3
Deve-se levar em conta que no Peru o ato de votar é obrigatório até os 70
anos e a ausência às urnas é penalizada com multa. O eleitorado é formado
pela população de idade superior a 18 anos, inscrita no registro civil peruano
(RENIEC). Desde 2005, os membros da forças armadas e da polícia nacional
também têm direito ao voto.
3 12.800.000 eleitores sobre 15.298.237 qualicados segundo o eleitorado de 2002 da ONPE
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Tabela 5 – Participação eleitoral nos processos eleitorais de 2006
Eleições 2006
Eleições presidenciais
1o turno
(9 de abril)
Eleições
para o
Congresso
Eleições
Presidenciais
2o turno
(4 de junho)
Eleições
regionais e
municipais
(19 de novembro)
Total de votos
Depositados
14,632,003 14,625,000 14,468,278 14,505,647
% de
participação
eleitoral (1/ e 2/)
88.71 88.66 87.71 87.41
1/ Eleitores habilitados em eleições presidenciais e para o Congresso: 16.494906
2/ Eleitores habilitados em eleições regionais e municipais: 16.594.824
Quanto à representação dos grupos minoritários, vemos que entre os novos
congressistas 35 mulheres, enquanto que em 2001 somente 22 foram eleitas.
No Poder Executivo, o gabinete de 16 pastas ministeriais designado pelo novo
governo aprista conta com 6 ministras
4
. Não obstante, esseo é o caso entre
as novas autoridades regionais e locais. Nenhum dos novos presidentes regionais
é mulher, e somente 4 dos governantes municipais o do sexo feminino (isto é,
2%), e 46 mulheres são governantes distritais (3%)
5
. Em favor da participação
de mulheres na política existe uma regulamentão sobre quotas de gênero que
vigorou nas últimas eleições, e que estabelece que 30% das listas de candidatos ao
Congresso e aos governos regionais e locais deve ser de mulheres
6
; não obstante,
a lei não estipula em que lugar da lista devem estar localizadas as candidatas.
4. O Executivo
Como foi mencionado linhas acima, o Poder Executivo conta com 16
minisrios, em que, segundo a Constituão, “o Presidente da República nomeia
e demite o Presidente do Conselho. Nomeia e demite os demais ministros, por
proposta e com o acordo, respectivamente, do Presidente do Conselho”
7
. Alan
Garcia Perez assumiu a presidência da República em 28 de junho e nomeou
como seu Presidente do Conselho um aprista de conança, Jorge del Castillo.
4 Até o momento, Pilar Mazzetti, ministra do Interior, foi destituída e substituída por Luís Alva Castro.
5 Transparência, dados eleitorais no. 27.
6 Segundo as resolucos 1230-2006-JNE, 1230-2006-JNE, 1247-2006-JNE, 1234-2006-JNE.
7 Constituição do Peru, 1993.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
O gabinete tem composição plural com apristas e independentes de orientões
diversas, que em conjunto projetam certa competência prossional.
Tabela 6 – Gabinete do início do governo da
Alan Garcia Perez (28 de julho de 2006)
Ministério Nome Partido Nascimento Prossão
Presidência do Conselho
de Ministros
Jorge del Castillo APRA 2 julho 1950 Advogado
Agricultura Juan José Salazar APRA Eng. agrônomo
Comércio Exterior e
Turismo
Mercedes Aráoz Independente 5 agosto 1971 Economista
Defesa Alan Wagner Tizón Independente 7 fevereiro 1942 Rel. internacionais
Economia e Finanças Luis Carranza Independente 21 dezembro 966 Economista
Educação José Antonio Chang Independente 19 maio 1958 Eng. industrial
Minas e Energia Juan Valdivia APRA 6 fevereiro 1948 Arquiteto
Interior Pilar Mazzetti Soler Independente 9 setembro 1946 Médica cirurgiã
Justiça María Zavala Independente 15 janeiro 1956 Advogada
Mulheres e
Desenvolvimento Social
Virginia Borra Toledo APRA Economista
Produção Rafael Rey Rey
Renovação
Nacional
26 fevereiro 1954 Eng. industrial
Relações Exteriores José A. García Belaúnde Independente 16 março 1948 Diplomata
Saúde Carlos Vallejos APRA Cirurgião
Trabalho Susana Pinilla Independente 31 maio 1954 Antropóloga
Transporte e
Comunicação
Verónica Zavala Independente 1968 Administração e direito
Habitação e
Construção
Hernán Garrido Lecca APRA 1960 Economista
Além do Presidente da República e do Presidente do Conselho de Ministros
o Poder Legislativo também tem a faculdade de demitir um ministro. Segundo a
Constituão, “Qualquer moção de censura contra o Conselho de Ministros ou
contra qualquer dos ministros deve ser apresentada por não menos de 25% do
mero legal de congressistas. Sua aprovação exige o voto de mais da metade
do número legal de membros do Congresso. O Conselho de Ministros ou o
ministro censurado deve renunciar”
8
. Isso mostra expressivamente o peso político
de que goza o Legislativo diante do Executivo.
8 Constituição do Peru, 1993, artigo 132.
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Quanto ao funcionamento do Conselho de Ministros presidido por Jorge
Del Castillo e sua relação com a presidência de Alan Garcia, encontramos
nele uma condução com notório protagonismo presidencial e subordinação
do Conselho de Ministros. Nos primeiros meses do governo de Garcia, este
se apresentou como “acima” dos erros e conitos no interior do gabinete,
aparecendo como poder dirimente. Até o momento isso está dando certo, o
que se expressa nos altos níveis de aprovação da gestão do presidente, acima
de seus ministros, e alguns escândalos que afetaram a legitimidade de seus
ministros não atingiram o presidente.
5. O Legislativo
O período legislativo 2006-2011, como foi mencionado, iniciou-se com um
Congresso no qual a UPP tem a maior quantidade de assentos (45), sem chegar a
uma maioria. o obstante, alguns congressistas eleitos militam na UPP enquanto
outros o do PNP de Ollanta Humala. A aliança entre ambos rapidamente se
desfez no Congresso. Além disso, a UPP sofreu deserções adicionais
9
. Por sua vez, o
partido do governo obteve 36 congressistas, que constituem somente 30% do total
de membros do Congresso. Se compararmos o Congresso atual com o Congresso
2001-2006, encontraremos um grau menor de fragmentação. O Congresso 2001-
2006 sofreu além disso graves problemas de disciplina interna: por exemplo, Peru
Posible (PP) sofreu deserção contínua de congressistas, a tal ponto que no último
ano do mandato de Toledo esse partido passou de 47 assentos a 34. Da mesma
forma, a Unidad Nacional teve diculdade para manter-se coesa durante o peodo
2001-2006 e perdeu 6 dos 17 congressistas com que começou.
Composição do Congresso 2001 Composição do Congresso 2006
9 Foram três: Gustavo Dacio Espinoza, Rocio de Maria González e Carlos Alberto Torres Caro.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Entre os partidos políticos mais inuentes do Congresso, nos dois últimos
períodos estão a UPP, APRA, UN e PP. O UPP foi fundado em 1994 por Javier
Pérez de Cuellar (ex-secretario-geral das Nões Unidas) e participou das eleições de
1995 contra Fujimori (Pérez de Cuellar se afastou da UPP pouco depois de 1995).
Em 2005, aliou-se ao Partido Nacionalista para apoiar a candidatura de Ollanta
Humala. Sua tendência política é de centro-esquerda. O APRA é o partido político
mais antigo do Peru, fundado em 1924 por Raúl Victor Haya de la Torre; Haya
não pôde ser presidente do Peru; o primeiro governo do APRA foi encabeçado
por Alan Garcia (1985-1990). Neste momento, sua gestão governamental poderia
ser qualicada como de centro-direita. O Peru Posible foi fundado em 1999 e seu
candidato, Alejandro Toledo, competiu contra Fujimori nas contestadas eleições de
2000; Toledo ganhou a presidência em 2001, derrotando Alan Garcia no segundo
turno. O PP pode ser considerado um partido de centro.
O Congresso é organizado em 25 comises ordinárias (além de comissões
de investigação, especiais e de ética, que se instalam extraordinariamente), que
se encarregam de debater os projetos de lei que entram no Congresso. Uma
vez que as comises se pronunciam favoravelmente a um projeto de lei, este
passa a ser debatido por uma sessão pleria do Congresso, na qual, para ser
aprovada, a lei necessita o apoio da maioria dos legisladores. No período 2001-
2006 o Legislativo aprovou 4.116 normas legais, e no transcurso de 2006-2011
até o momento aprovou 117, o que pressue que a eciência na adoção de leis
aumentou em relação a anos anteriores
10
.
Durante o atual governo, embora o APRA não conte com maioria no
Congresso, não tem tido problemas para obter maioria, tanto com a UPP, a
UN ou a AF, dependendo dos temas em debate. Em geral, a percepção é a de
que na atualidade não existe oposição signicativa ao governo.
6. Relação entre poderes do Estado e níveis de governo
A combinação entre uma situação econômica relativamente boa, bonança
scal e debilidade da oposição, fazem com que Garcia possa exercer sua liderança
política com comodidade, até o momento. Entre os sinais preocupantes estão, em
10 Congresso da República. Relatório dos indicadores da gestão parlamentar correspondente à primeira Congresso da República. Relatório dos indicadores da gestão parlamentar correspondente à primeira
legislatura 2006-2007.
Martín Tanaka · Sofía Vera
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
primeiro lugar, a manutenção de uma brecha entre a dimica da capital (onde a
popularidade de Garcia aumenta) e o conjunto do país (na qual a popularidade se
mantém ou diminui); a continuidade de altos veis de pobreza e excluo, sem que
se percebam ainda iniciativas importantes de reforma; nalmente, um certo mal-
estar social em alguns setores do país, onde se percebe que, apesar do crescimento
econômico e do aumento dos recursos orçamentários, a situação das famílias
não muda, o que poderia expressar-se em protestos, os quais, ocorrendo em um
contexto de debilidade dos partidos, tendem a seguir caminhos o estruturados
nem institucionais e bastante propensos ao uso de violência. Por enquanto, as
preocupações do governo de Garcia não estão no Congresso nem nos governos
regionais ou provinciais, apesar de o contar com presença majoritária nesses
âmbitos. Por agora, os principais conitos que colocam o governo em diculdades
se relacionam com as pugnas no interior do partido governante, que o presidente
administra de maneira a aparecer sempre como o poder dirimente.
7. Avaliação geral sobre o funcionamento e qualidade da
democracia
A democracia no Peru se acha em uma espécie de encruzilhada, ilustrada de
maneira muito clara nos resultados das últimas eleições presidenciais. De um lado,
viu-se um país mais integrado, moderno, basicamente limenho e litoneo, que
assiste com expectativa ao atual ciclo de crescimento econômico e que opta por
correções graduais ao modelo econômico e político seguido pelo país nos últimos
anos; por outro, um país marcado pela pobreza e desigualdade, basicamente nas
regiões da serra e na selva, as quais percebem que os benefícios do crescimento
o as alcançam, desconam das instituões e das elites políticas e sociais e
consideram necessária uma mudaa radical, uma refundão institucional, a
m de que o país possa seguir adiante. Essas duas visões mostraram foas
semelhantes na eleão presidencial de abril e junho de 2006, mas nalmente
ims-se a primeira, o que fez com que o Peru se afastasse do caminho que hoje
parecem estar trilhando a Venezuela, a Bolívia e o Equador, e se aproxime mais
do caminho hoje seguido pela Colômbia, por exemplo. Dependerá do destino
do governo do presidente Garcia que o Peru se consolide nesse caminho ou
descambe para uma senda de polarizão e instabilidade como em outros casos
ou como em sua própria história passada.
Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusão
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
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político en América Latina? Em Democracia, descentralización y reforma scal
en América Latina y Europa del Este. Lima: Grupo Propuesta Ciudadana,
31-46.
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Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
190
A República do
Suriname e a
integração regional
Robby D. Ramlakhan*
Informações gerais
O
Suriname está localizado ao norte da América do Sul e faz fronteiras
com a Guiana Francesa a leste, com o Brasil ao sul, com a Guiana a oeste e
é banhado pelo Oceano Atlântico ao norte. É o menor país da América do
Sul em termos de superfície e população. Tem uma área de 163.820 km², da
qual 80% é coberta por orestas tropicais. Até o nal de 2006, tinha uma
população de 498.000. A capital é Paramaribo, com 220.000 habitantes. A
língua ocial é o holandês, mas o sranan tongo (dialeto local), o hindustani, o
javanês e o inglês, também são usados. Devido à presença de muitos brasileiros
e chineses, o português e o chinês também são falados. O sistema de governo
é a democracia parlamentar, o que signica que o povo elege os parlamentares
para a Assembléia Nacional e que estes elegem o presidente e o vice-presidente.
O presidente é Chefe de Estado e de Governo.
* Embaixador. Ministério das Relações Exteriores, República do Suriname
Robby D. Ramlakhan
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O nome “Suriname” é oriundo da denominão de uma tribo indígena,
os Surinen, e “Paramaribo” é uma variação de Parmurbo, um povoado indígena
que se localizava onde hoje ca a capital. No século XVI, o país foi descoberto
pelos espanhóis e, desde o início do século XVII, rias tentativas foram feitas
por holandeses e ingleses para colonizar o país. Com o Tratado de Breda, em
1667, a Holanda se apossou denitivamente do Suriname. Um detalhe marcante
é que à época, o Suriname era posseso inglesa e foi trocado com a Holanda
por Nova Amster, atual Nova Iorque. Escravos foram trazidos da África para
trabalhar nas plantações de úcar e algodão, mas foram muito mal tratados pelos
fazendeiros. Muitos fugiram para a selva e começaram a atacar as plantações.
Estes fugitivos eram chamados de Marrons (quilombolas) e as ações deles também
contribuíram para a abolição da escravidão no Suriname em 1863.
Para suprir a falta de trabalhadores nas plantões, os holandeses
trouxeram trabalhadores da China para o Suriname e depois, trabalhadores
contratados da Índia e Java.
Isso explica a diversicação na composição da população do Suriname:
37% é de origem indiana,
31% de origem africana,
15% javanês,
10% marrom,
2% indígena,
2% chinês e
3% europeu e outros.
Esses números precisam ser ajustados, porque ao longo dos últimos
anos muitos brasileiros, estima-se entre 30.000 e 40.000, mudaram-se para o
Suriname para morar e trabalhar, principalmente nos garimpos. Além disso,
muitos chineses também migraram para o Suriname e estão trabalhando
principalmente no comércio.
Dos surinameses:
27% é hindu,
25% protestante,
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23% católico,
20% maometano, e
5% tradicional e outros.
O aspecto mais importante dessa miscigenação é a aceitação mútua, o
que leva o Suriname a ser descrito como uma pequena Nações Unidas por
sua união em meio à diversicação.
Política
Em 1954, o Suriname ganhou autonomia parcial, e a independência foi
declarada a 25 de novembro de 1975. O país foi vítima de um golpe militar
em 1980 e a democracia foi restaurada em 1987, por meio de eleições gerais.
Em 1990, o governo civil foi novamente derrubado pelas forças armadas e
desde setembro de 1991, o Suriname tem um regime democrático de governo.
As últimas eleições foram realizadas em 2005 e as próximas serão em 2010. O
governo atual é formado por uma coalizão de 8 partidos. Nas eleições de 2005,
a coalizão de 4 partidos tradicionais perdeu 10 das 33 cadeiras num Parlamento
de 51 assentos. Um novo partido, que tem a sua base principalmente nos
Marrons do interior do país, ganhou 5 cadeiras e a coalizão antiga assinou um
convênio de cooperação com esse partido.
Logo depois, outro parlamentar se juntou à coalizão e o governo pôde
contar com 29 cadeiras no Parlamento. Assim, o maior partido político do
Suriname, com 15 cadeiras, foi para a oposição. Esse partido tem como
principal expoente o mesmo militar que liderou os dois golpes.
Vale mencionar que esse militar é condenado pela justiça holandesa por
tráco ilegal de drogas e está sendo procurado pela Interpol.
Economia
Em termos ecomicos, o Suriname passa por um peodo de crescimento
e melhorias nos fundamentos. No Relatório Anual da CEPAL, de outubro de
2006, o Suriname é referenciado como um país com um crescimento contínuo.
O PIB real cresceu 8% em 2004, devido aos novos investimentos na mineração.
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Em 2005, o PIB do Suriname foi de US$ 1,4 bilhão, um crescimento de 5%
em relação ao ano anterior. A inação subiu para 17% em 2005 devido ao
aumento do preço do petróleo. O crescimento econômico anual nos últimos
5 anos foi de 4,2%. A renda per capita em 2004 foi de US$ 4.300. Em 2005, a
balança comercial tinha décit de US$ 42 milhões, e em 2006 obteve um saldo
positivo de US$ 96 milhões. Tal resultado é fruto de melhores preços das
nossas commodities, como petróleo, alumina e ouro, e de um grande aumento
no setor de turismo.
O Suriname tem um grande potencial. Explora, entre outros produtos
comerciais: o ouro, a bauxita, a madeira, o arroz, a banana, o petróleo e a pesca.
O ecoturismo e a agricultura também oferecem grandes oportunidades. O
Banco Mundial concluiu que o Suriname está entre os países com abundância
em riquezas naturais. Hoje, a dependência da mineração é grande: 70% a
80% das exportações do Suriname são provenientes de minérios. Em 2005, a
produção de petróleo chegou a 4,4 milhões de barris, um aumento de 5% em
relação a 2004. A exportação de alumina em 2005 chegou a US$ 450 milhões,
e subiu para US$ 643 milhões em 2006. A produção ocial de ouro era de
2.500 kg em 2005, e subiu para 16.000 kg em 2006, porém dados conáveis
são difíceis de obter, devido à atividade ilegal de inúmeros garimpeiros que
tracam uma grande quantidade de ouro para fora do país. O setor agrícola
contribui com 5% do PIB e com 7,5% das exportações (pesca, arroz e
bananas). O turismo é considerado um dos setores prioritários, pois contribui
substancialmente para a diversicação econômica. O número de turistas subiu
de 100.000 em 2000 para 138.000 em 2004, acompanhando um aumento médio
de 8% ao ano. Em 2006, 160.000 turistas visitaram o Suriname e, ultimamente,
diversos cruzeiros vêem fazendo escala no país.
Conforme esses dados, o Suriname, com seu potencial e população
pequena, tem todas as condições de ser um país rico. Mas porque não
desenvolvimento sustentável no Suriname?
Parte da explicação pode ser encontrada na distribuição de renda. Uma
pequena parcela da população detém vasta riqueza. Porém, uma redistribuição
equilibrada depende da vontade política, que não se mobiliza facilmente.
É possível argumentar também que o Estado não usufrui devidamente
das riquezas nacionais, uma vez que empresas estrangeiras dominam setores
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importantes tais como o da exploração de bauxita e ouro. A exploração desses
recursos é regida por acordos não favoráveis, resultantes da falta de experiência
do Estado em negociações com empresas multinacionais.
As utuações dos preços das nossas commodities no mercado internacional
também trazem conseqüências para a balança comercial do país. O saldo
positivo da balança comercial no ano passado se deve mais ao aumento dos
preços do ouro e da alumina que propriamente a uma maior produção.
A liberalizão do corcio mundial com a globalização e a eliminação de
preferências tradicionais, tais como os acordos taririos com a Uno Euroia,
também pressionam nossa competitividade. Tudo isso signica que o mundo
está mudando e, nas atuais circunstâncias, não a favor dos países pequenos.
O mundo em transformação
Os acontecimentos contemporâneos confirmam cada vez mais a
existência de uma nova ordem mundial. Características dessa nova ordem
são, entre outras:
O novo contexto político e econômico como resultado do processo
de globalização;
A imposição de práticas neoliberais nas relações econômicas
internacionais;
A criação de blocos regionais;
A eliminação de preferências contidas em acordos tradicionais de
preferências;
A importância crescente das telecomunicações em nível mundial;
Os efeitos dos atentados de 11 de setembro de 2001, quais sejam, a
ênfase nas questões de segurança e o combate ao terrorismo;
O enfraquecimento do multilateralismo e a manifestação do
unilateralismo, e
O surgimento de países emergentes, tais como o Brasil, a Rússia, a
Índia e a China.
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Comecei dizendo que o mundo está mudando e também mencionei
algumas características dessa mudança. Um exemplo pode ser encontrado
na atual composição do comércio mundial. A participação das commodities no
corcio mundial diminuiu de 23% em 1985, para 12% em 2000. A fatia dos
manufaturados produzidos com recursos naturais diminuiu de 20% para 16%
no mesmo período. Mas a participação de produtos de tecnologia básica e
intermediária subiu de 43% para 46%, e de tecnologia de ponta de 12% para 23%.
Isso signica que mais de dois terços das exportações mundiais é composto por
produtos tecnológicos e que a participação dos produtos high-tech es crescendo
rapidamente. A exportação de commodities e semi- manufaturados ainda é a fonte
de renda mais importante para nossos países, mas não podemos permanecer
produtores de commodities para sempre. Precisamos alcançar um vel de tecnologia
mais elevado para continuar participando do comércio internacional.
Um outro exemplo da mudança é o crescimento da participação dos serviços
na economia mundial, de US$ 400 bilhões em 1980, para US$ 1.600 bilhões em
2002. Setores como turismo, informática e comunicação, outsourcing, ocupam cada
vez mais espaço na economia mundial. Trata-se, portanto, de uma mudança na
composição do comércio na economia mundial, de commodities e produtos baseados
em recursos naturais, para produtos tecnológicos e servos. O que devemos fazer é
transformar nossa economia baseada em commodities, numa economia com produtos
tecnológicos, e avaliar como prestar serviços especializados. Para nossos países,
é de suma importância levar em conta essas tendências e tentar criar espaço para
assegurar e garantir os nossos interesses nacionais.
Mas, quanto espaço nós, como países em desenvolvimento, temos?
A OMC precisa garantir a observação das normas e regras destinadas à
liberalização do comércio mundial. Cada país, seja grande ou pequeno, forte ou
fraco, rico ou pobre, deve seguir essas regras para poder participar do comércio
internacional. Um estudo mais detalhado mostra que os países ricos têm todo
interesse em que as regras da OMC sejam seguidas rigorosamente. Do ponto
de vista dos países em desenvolvimento, as vantagens serão maiores para os
países mais industrializados, como o Brasil, a Índia, a China, a Coréia do Sul,
a África do Sul, etc., que têm mais acesso ao mercado internacional graças a
uma base produtiva maior. Os países menores não apresentam essas condições
e dependem muito de preferências que, aliás, estão sendo eliminadas.
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As indústrias subdesenvolvidas não o sobreviver à concorrência
mundial e a arrecadação de impostos sobre exportações vai diminuir, devido à
liberalização do comércio internacional. Pedidos para um tratamento especial
e diferenciado não ganham ouvidos. Também é fato que grande parte desses
países obtêm as arrecadações com exportação de produtos agrícolas para
países ricos e que estas constituem sua fonte de renda mais importante. A
liberalização do setor agrícola, portanto, poderia abrir oportunidades para os
países pequenos. Porém, justamente nesse setor, os países ricos se negam a
abrir seus mercados internos.
A política externa do Suriname
Na execução de sua política externa, o Suriname é guiado pelos seguintes
princípios:
Respeito à dignidade do Suriname e dos surinameses;
Manutenção de relações com outros países baseada em respeito e
benefício mútuo, conança e manutenção da soberania;
Manutenção, promoção e expansão da segurança nacional, regional e
internacional;
Promoção de laços de cooperação voltados para o crescimento e o
desenvolvimento sustentável;
Respeito aos princípios da democracia e do Estado de direito;
Respeito aos direitos humanos, e
Proteção do meio ambiente.
Os objetivos principais da política externa são:
Desenvolvimento econômico sustentável, onde o comércio baseado
em concorrência honesta é visto como instrumento importante;
Participação em processos de integração relevantes para o Suriname;
Laços de cooperação com países amigos e organismos multilaterais, e
Regulamentação do trânsito migratório e defesa dos interesses dos
cidadãos surinameses no exterior.
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A “diplomacia comercial”, ou seja, a diplomacia voltada para o desen-
volvimento, é um instrumento importante da política externa, o que signica
que as representações diplomáticas e os Cônsules Honorários do Suriname
no exterior divulgam as oportunidades que o país tem a oferecer, para assim
contribuir para o desenvolvimento socioeconômico.
A contribuição dos surinameses na diáspora também é de importância
nesse contexto.
No que diz respeito aos países fronteiriços, a política externa se baseia
nos princípios de boa vizinhança, cooperação e solução pacíca de disputas/
controvérsias. Os seguintes países são considerados fronteiriços: o Brasil, a
Guiana, a Guiana Francesa e a Venezuela. As relações com esses países serão
intensicadas e a cooperação será baseada nas necessidades próprias das áreas
de comércio e investimentos, educação, saúde, agricultura, justiça, defesa,
cultura e assistência técnica.
Importância é dada à relação com o Brasil devido:
à sua localização geográca como país fronteiriço;
à presença de uma grande quantidade de cidaos brasileiros no
Suriname;
à liderança política, comercial/econômica, militar, tecnológica e cultural
do Brasil;
ao potencial da cooperação bilateral, o na área técnica, mas também
no combate à criminalidade internacional;
à cooperação no contexto da Comunidade Sul Americana de Nações
(CASA), a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)
e a Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional na América
do Sul (Iirsa), e
ao apoio do Brasil para ter acesso ao mercado do Mercosul (o Norte),
como foi o caso com o acordo de arroz que foi assinado em 2005 quando o
Suriname teve a oportunidade de exportar arroz para o norte do Brasil.
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A importância da cooperação com a Guiana deve ser colocada no
contexto:
de sua localização geográca como país fronteiriço;
de sua situação similar/idêntica em diversos setores como produção,
comércio, exportação e infra-estrutura;
dos uxos migratórios intensos como conseqüência do melhor acesso
aos territórios de ambos países;
da cooperação no âmbito do Caricom, CASA, OTCA e Iirsa, e
da disputa fronteiriça, tanto na fronteira norte como na do sul.
No que diz respeito à disputa fronteiriça ao norte, vale mencionar que
em 2004 a Guiana impetrou um processo contra o Suriname. O procedimento
para arbitragem no contexto da United Nations Convention on the Law of the Sea
para determinação da fronteira marítima entre ambos países está sendo
nalizado e, em junho próximo, uma decisão será tomada (quanto à fronteira
norte). Quanto à controrsia envolvendo a fronteira sul, vale dizer que ambos
os países buscam resolver este problema através do diálogo.
O Suriname tamm busca melhorar suas relações com a Guiana
Francesa, que faz parte da França, em decorrência:
de sua localização geográca como país fronteiriço;
da existência de uxos migratórios;
da presença de muitos cidadãos surinameses na Guiana Francesa;
do fato de que a Guiana Francesa faz parte da Europa;
da cooperação com a França no contexto EU-ACP;
do interesse da França em contribuir para o desenvolvimento da área
fronteiriça, e
da possibilidade de se construir, através da Guiana Francesa, uma
conexão terrestre com o resto do continente.
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A relação com a Venezuela também tem importância devido à:
localização geográca deste país;
cooperação que já existe no contexto da CASA, OTCA e Iirsa, e
cooperação existente na área de pesca e petróleo.
Na implementação da política externa, prioridade também é dada à
integração do Suriname à região.
Como país de economia frágil, o Suriname necessita continuamente de
se manter a par dos desenvolvimentos internacionais para estar apto a proteger
seus interesses. Quanto ao processo de integração que ocorre a nível mundial,
o Suriname procura se aliar aos blocos econômicos e políticos regionais.
A participação do Suriname, desde 1995 no Caricom, e na Comunidade Sul
Americana de Nações desde 2004, deve ser visto nesse contexto. Na formulação
e implementação da política externa se continuará a dar atenção à integração da
região Caribenha, principalmente devido ao estabelecimento do Mercado e da
Economia Única do Caribe. O Suriname participa intensamente da Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), da iniciativa para Integração da
Infra-estrutura Regional Sul Americana (Iirsa) e da Comunidade Sul Americana de
Nações (CASA). Uma possível participação na Associação para Integração Latino
Americana (Aladi) será estudada, que esta será a porta de acesso à zona de livre
comércio da CASA. Nesse contexto, se leva em conta também os compromissos
do Suriname no Caricom. A política de integração do Suriname não se limitará aos
aspectos nanceiros e econômicos, uma vez que a integração da infra-estrutura
física, energética e da área de telecomunicações serão parte integral dessa potica.
O Suriname está numa posição estratégica, que tanto a Guiana como a Guiana
Francesa são acesveis através da coneo Leste-Oeste. Uma conexão permanente
através da construção de uma ponte sobre o rio Marowijne e o rio Corantijn, e
uma conexão terrestre com o Brasil também são tarefas a se realizar. Em sendo
uma economia pequena, o Suriname precisa acompanhar de maneira contínua os
desenvolvimentos internacionais para poder defender e garantir seus interesses
nacionais. As tendências mundiais, como a criação de blocos, a liberalização do
comércio internacional, o combate ao terrorismo, a ameaça ao meio ambiente, etc.
e as suas conseqüências, são tão abrangentes e drásticas que um monitoramento
permanente e adaptação o necessários. A realidade obriga reconhecer que o
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Suriname, sozinho, não terá condições de enfrentar tais desaos, e que a melhor
resposta é a intensicação das relações bi e multilaterais, e a participação em blocos
e acordos regionais e extra-regionais.
Com a assinatura da Declarão pelos Chefes de Estado da Comunidade
Caribenha para estabelecer o Mercado Único do Caricom durante sua
inauguração formal, em 30 de janeiro de 2006, foi iniciado o processo para a
realização da Economia Única do Caricom em 2008. A participação do Suriname
no Caricom desde 1995, na OTCA, Iirsa e CASA devem ser colocadas nesse
quadro. Nessa estratégia de integração cabe também a intensicação das relações
com a Guiana Francesa, ou seja, a França. Com isso, objetiva-se otimizar o uso
do posicionamento do Suriname no cruzamento das rotas de comércio entre o
Caribe, a América do Sul e a Europa através da Guiana Francesa.
Com participão ativa no Caricom, na CASA e na Iirsa, o Suriname tenta
servir de ponte nas relações entre o Caribe, a América do Sul e a Europa.
Uma outra estratégia é a identicação de setores e parceiros estratégicos.
O ponto de partida são os objetivos nacionais de desenvolvimento,
onde setores estratégicos são identicados, que em curto prazo possam
contribuir para melhorar as condições de vida do cidadão. Nessa fase, são
identicados os setores de petróleo, ouro, serviços, pesca, agricultura, bauxita
e derivados, informão e telecomunicações, turismo e madeira. Nossas
relações internacionais são orientadas para a manutenção de laços estreitos de
cooperação com parceiros externos, tais como os Estados Unidos, a Europa,
o Brasil, o Japão, o Canadá, o Caricom, a Índia, a China, etc. Parceiros que
podem contribuir para alcançar o nosso desenvolvimento.
Exemplos:
Dados do Departamento de Geologia dos Estados Unidos (o US
Geological Survey) mostram que o Suriname possui uma reserva de gás de 15
bilhões de barris, a terceira maior da região, apenas inferior à da Bacia de
Campos e do Lago Maracaibo, na Venezuela. Três empresas da Espanha,
Dinamarca e Estados Unidos, já executaram atividades de exploração na área
off-shore do Suriname e agora estão se preparando para a produção.
Na área do ouro, o Canadá tem grande experiência. Conseqüentemente,
uma empresa canadense obteve a licença para explorar o mineral no Suriname.
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Posso dizer que recentemente a Companhia Vale do Rio Doce tamm mostrou
interesse no setor de mineração do Suriname.
No setor da pesca, temos uma cooperação tradicional com o Japão
e, levando em conta as nossas experiências positivas, a cooperação se
intensicada e expandida.
No setor agrícola, ca cada vez mais claro que as semelhanças climáticas
e geográcas fazem do Brasil o melhor parceiro para o Suriname em prol
do desenvolvimento desse setor. O Brasil acumulou grande experiência em
pesquisa agrícola e, em certos setores, como café e etanol, ocupa a posição de
líder mundial. A Embrapa é reconhecida mundialmente. Assinou um acordo
de cooperação com o Ministério da Agricultura do Suriname para compartilhar
das experiências brasileiras com meu país.
Com relação à área de informação e comunicação, a Índia tem uma boa
reputação. O Suriname se orgulha muito de ter uma relação histórica e intensa
com esse país.
Seguindo o exemplo da Jamaica e Barbados, cujas economias exploram cada
vez mais as vantagens do outsourcinge do processamento de dados, o Suriname
pode optar pela Índia como parceiro no desenvolvimento desse setor.
Com esses exemplos desejamos salientar que o Suriname conscientemente
promove o estreitamento da cooperação com países amigos que podem
contribuir para o nosso desenvolvimento econômico sendo, portanto, uma
diplomacia voltada para este. Com isso não queremos dizer que as relações
com outros países o contribuem para o nosso desenvolvimento, mas
chegamos à conclusão de que acordos iguais de cooperação com vários países
não trazem o desenvolvimento desejado. Logo, por uma questão de eciência
e efetividade, acordos de cooperação setoriais serão concluídos depois de
realizada uma avaliação dos pontos fortes e fracos. Além da identicação de
parceiros estratégicos, também é preciso que o Suriname identique produtos
estragicos que possam servir como catalisadores do desenvolvimento
econômico. O mais importante produto de exportação ainda é a alumina.
Por muito tempo o setor de bauxita serviu de motor da economia, porém a
produção e exportação está nas mãos de empresas multinacionais. O Suriname
não tem condições de inuenciar os volumes e os preços da produção e
da exportação e, por esse motivo, o setor não pode servir de catalisador. A
A República do Suriname e a integração regional
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exportação de arroz e bananas nunca foi capaz de trazer desenvolvimento
econômico duradouro, e hoje esses setores enfrentam grandes problemas
devido à eliminação de preferências concedidas pela União Européia.
Mas, existem outros produtos que podem alavancar a economia do
Suriname. Como foi dito antes, o país tem grandes reservas de petróleo
e, dado o alto preço dessa commodity no mercado internacional, podemos
transformar esse setor em catalisador para o desenvolvimento econômico. O
maior problema, porém, se na medida em que o Suriname mantém uma
produção ainda muito pequena (13.000 barris diários). Portanto, um aumento
da produção no curto prazo, usando de tecnologia e capital estrangeiro, é
uma necessidade urgente. O Suriname também tem grandes depósitos de
ouro. As exportações totalizaram mais de 15 toneladas no ano passado,
mas não se pode denir com precisão a quantidade contrabandeada pelos
milhares de garimpeiros. O preço do ouro subiu substancialmente. Mas o
Estado não está se beneciando em função do acordo desfavorável rmado
com a multinacional. Neste momento, estamos avaliando as nossas opções
para aumentar a arrecadação mediante renegociação do acordo e combate
ao contrabando. Dois outros produtos que, no médio prazo, oferecem boas
perspectivas para o Suriname, são o etanol e a soja. O etanol é visto como a
fonte de energia do futuro, e a soja como o ouro branco.
Em ambos os casos, o Brasil acumulou grande experiência e know-how, e
se declarou disposto a compartilhar desses atributos com os demais países da
região. O Suriname era uma colônia de plantação e as velhas áreas de plantio
ainda possuem uma boa infra-estrutura. Com poucos esforços, estas podem
ser transformadas para o cultivo da cana de açúcar e da soja.
Como já foi mencionado, o território do Suriname é coberto por
orestas tropicais. Hoje, fala-se muito em crédito de carbono como fonte de
renda para países cobertos por grandes orestas. Trata-se aqui de uma nova
modalidade de preservar o bioma e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro. Aliás,
esta é a explicação dos protagonistas. Também podem ser encontrados críticos
que armam ser a proposta uma farsa, que se resume apenas a possibilitar
aos países desenvolvidos continuar poluindo o meio ambiente. De qualquer
forma, vale estudar a proposta. No Suriname, os debates a esse respeito estão
apenas começando.
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
No início desta apresentação, mencionamos que os serviços estão
ocupando espaço cada vez mais importante na economia mundial. O Suriname
está consciente de que as estruturas atuais de produção não têm condições de
enfrentar a concorrência internacional. Precisa-se, então, de uma reorientação,
onde mais atenção seja dada à prestação de serviços internacionais. Já
mencionamos também a contribuição crescente do turismo para a economia
surinamesa, mas a prestação de serviços não se limita apenas a este. Outsourcing,
processamento de dados, offshore banking (com bom monitoramento) e serviços
nas áreas de seguros e telecomunicação também podem contribuir para o
desenvolvimento econômico.
Em nossa opino, esses setores e produtos oferecem boas oportunidades
para o crescimento econômico do Suriname em curto e médio prazos. Nosso país
ainda é muito dependente da exportação de commodities. Devido à concorrência,
pros baixos no mercado internacional e subsídios enormes nos países ricos,
nossas arrecadões com a exportação diminram bastante. Infelizmente, não
estamos numa posição de exigir mudanças. Por isso, a colaboração com outros
países e a diversicão de nossa infra-estrutura de prodão e exportação o
elementos importantes para poder participar com êxito no comércio mundial.
A integração da América do Sul
O que vale para o Suriname, vale para a maioria dos países da América
do Sul. Nós sabemos que a região dispõe, entre outros, de muitas riquezas
naturais, de um grande mercado interno e uma população relativamente bem
instruída. Por outro lado, são também conhecidas as assimetrias entre os
diversos países, suas estruturas econômicas não sucientemente competitivas
e a grande desigualdade de renda.
Como integrar o nosso continente ao âmbito da economia mundial, levando
em considerão esses fatores é o grande desao do momento. Na América do Sul,
sabemos que participar do processo de globalizão é uma necessidade. Por meio da
integração continental, estamos tentando nos adaptar da melhor maneira possível
às circunsncias contemporâneas. Iniciativas como o Mercosul, CAN, CASA,
OTCA e Iirsa, m como objetivo harmonizar e intensicar a cooperação potica,
econômica e técnica entre os nossos países, para garantir a participação efetiva no
comércio mundial. O continente tem dois sistemas de integrão, o Mercosul e a
A República do Suriname e a integração regional
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CAN, e os nossos líderes se comprometeram a integrá-los para facilitar a criação
do espaço econômico sul-americano. O Mercosul é composto por cinco membros
que, juntos, são responsáveis por 75% do PIB da América do Sul. A CAN foi
muito enfraquecida com a sda da Venezuela que, em termos econômicos, era o
membro mais importante do bloco. Se a saída da Venezuela enfraqueceu a CAN,
a sua adeo é de suma importância para o Mercosul, devido à ligação geográca
entre a rego amazônica e o Caribe e às grandes reservas de gás e petróleo do país.
Recentemente, o Uruguai assinou um acordo bilateral de corcio com os Estados
Unidos, fato que certamente não vai derrubar ou desestabilizar o Mercosul.
Na medida em que faz parte do continente sul-americano, é importante
para o Suriname acompanhar esses acontecimentos de perto. Por enquanto,
o somos membros nem do Mercosul nem da CAN. A CAN é uma entidade
exclusiva para países da Comunidade Andina, da qual o Suriname o pertence.
Porém, por outros motivos, dentro do quadro da Iirsa, estamos discutindo a nossa
participação na CAF. O Suriname tampouco é membro do Mercosul. Não se
trata de falta de interesse, mas uma eventual adesão precisa de maiores estudos.
Uma condição para tal adesão é a participação do Suriname na Aladi, que, por
enquanto, o é o caso. Por outro lado, o Suriname é membro pleno do Caricom,
onde também tem obrigações. De acordo com estas, precisamos saber primeiro
se a participação da Aladi será compatível com nossas obrigações no Caricom.
Além disso, o Mercosul es em negocião com o Caricom para uma
cooperação mais estreita, e não queremos gastar tempo, energia e dinheiro
procurando um entendimento bilateral com o Mercosul. Iremos esperar o
andamento das negociões entre os dois blocos. Mas a participão na Aladi
para nós é muito importante. Sem ela, não poderemos participar do processo de
integração econômica do continente. Vale mencionar que estamos trabalhando
juntos com a Secretaria Geral da Aladi para preparar e facilitar a entrada do
Suriname nesta organização.
A nossa política é orientada para continuar como membro do Caricom, e
também fazer parte da união sul-americana. Tal estratégia se integra perfeitamente
à nossa política de servir como ponte entre a Arica do Sul e o Caribe. Ademais,
outros acontecimentos na região obrigam o Suriname a prestar muita atenção.
Estou me referindo às relões extra-regionais, como a ASPA (América do Sul
Países Árabes), a Afras (África América do Sul) e, em breve, o Focalal (o
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
rum de Cooperão entre a América Latina e a Ásia do Leste). O Suriname é
membro da CASA e por isso apóia plenamente tais iniciativas, partindo da posição
de que um pequeno país pode barganhar melhor e ganhar mais através de um
esfoo em conjunto. Mas a realidade nos obriga tamm a olhar atentamente
para os nossos próprios interesses. O Suriname, dentro do quadro da CASA,
o tem voz forte. É o menor membro e é natural que os maiores membros
desejem cuidar primeiro de seus próprios interesses.
À primeira vista, as vantagens para o Suriname em tais iniciativas serão
mínimas. Por outro lado, o Suriname tem uma cooperação intensa com os países
árabes, pois é membro da Organização da Conferência Ismica (OIC). Dentro
dessa cooperão, já temos alguns projetos em fase de execução no Suriname,
como por exemplo nas áreas de educação e saúde. O Suriname historicamente,
tem uma ligação forte com a África, e a intensicação dos laços bilaterais com
esse continente ocupa um lugar importante em nossa política externa. Com o
Focalal, a situação o é muito diferente. Os laços bilaterais com alguns dos países
da Ásia, principalmente os chamados países de origem, de onde vieram muitos
dos nossos ancestrais, o dos melhores. A cooperão bilateral com esses países
tem contribuído bastante para o nosso próprio desenvolvimento. E, certamente,
não colocaremos em risco uma cooperação bilateral sólida por uma outra regional
cheia de incertezas. Para esclarecer, é preciso dizer que apoiamos as iniciativas
destinadas à cooperão bi-regional, mas a continuação da cooperão bilateral
ganha maior destaque em nossa política externa. Evidentemente desejamos e
estamos prontos para contribuir para a integração do continente sul-americano.
Mas ainda temos um longo caminho a percorrer.
Até então, vamos enfrentar muitas diculdades. Mas, a integração é um
processo histórico e não pode ser julgado por acontecimentos aleatórios. A
unicação européia também não se deu sem percalços, e mesmo hoje nem
todos os países aceitaram o Euro como moeda única. Na América do Sul,
o processo de unicação também deverá demorar, pois a região lida com
interesses diversos e, em muitos casos, conitantes.
Os problemas atuais servem como aprendizagem para o processo de
integração continental. Mas, juntamente com a integração política e econômica
da América do Sul, o problema das assimetrias econômicas no continente deve
ser tratado. Providências especiais devem ser tomadas para apoiar os países
A República do Suriname e a integração regional
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
economicamente mais fracos, como aconteceu na União Européia. o nos
referimos às vantagens de curto prazo ligadas à demanda de grupos de interesse,
mas sim a uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo que seja o motivo
principal da integração econômica. Não podemos esquecer que a união é um conditio
sine qua non para que a América do Sul possa assegurar e garantir os nossos interesses.
Negociações feitas a partir de uma posição fraca e fragmentada nunca levou a bons
resultados. O Mercosul mostrou, nas negociações sobre a ALCA, que é um ótimo
veículo para defender os interesses sul-americanos. Nesse caso, é recomendável que
a cooperação dentro do Mercosul seja aprofundada e, eventualmente, ampliada.
Conclusões
A globalização o trouxe os resultados prometidos pelos protagonistas do
neoliberalismo. Parece que as regras do comércio internacional contemponeo
servem para defender os interesses da oligarquia. Somente os grandes países
em desenvolvimento poderão se adaptar às novas regras e se beneciar das
vantagens da liberalização. Os pequenos países em desenvolvimento não têm
condições de responder aos desaos da globalização com esforços próprios.
As suas estruturas de produção e exportação não são competitivas. Para o
setor privado, dessa forma, trata-se de uma tarefa difícil a de servir de motor
de desenvolvimento econômico. Nesses países portanto, o Estado deve
continuar exercendo um papel importante na vida econômica. Na América do
Sul, os nossos lideres políticos estão conscientes que integração e cooperação
intensiva oferecem as melhores respostas para os desaos da globalização. Mas
o continente é muito fragmentado. Para que a integração continental seja bem
sucedida, temos primeiro que diminuir as assimetrias econômicas entre os
países. Temos que tentar também chegar a uma distribuição melhor da renda,
a um melhoramento das infra-estruturas de produção e exportação, etc.
O Suriname está tentando se proteger da melhor maneira possível
contra os impactos negativos das mudanças na constelação internacional.
A integração regional e a identicação de setores e parceiros de cooperação
oferecem possibilidades. O desao é grande, mas o Suriname tem bastante
potencial para garantir prosperidade e bem-estar para cada cidadão.
É só uma questão de fazer as escolhas certas.
DEP
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207
Uruguai: breve
evolução econômica
e política
Alberto Couriel*
A. O Uruguai diferenciado na região
O
Uruguai está localizado como uma espécie de Estado-tampão entre a
Argentina e o Brasil. Seu território abarca 178.000 quilômetros quadrados e a
população chega a 3.300.000 habitantes. A renda média por habitante, medida
pela paridade do poder de compra, atinge atualmente cerca de US$12.300, en-
quanto que a Argentina tem 17 mil, o Chile 13.800, o Brasil 9.500 e a Venezuela
7.400. A esperança de vida ao nascer é de 76 anos de idade. Historicamente,
o Uruguai se diferenciou dos demais países latino-americanos devido a sua
estabilidade política e social, pelo apego à democracia, por sua qualidade de
vida e sua integração social.
A diferenciação surgiu desde o primeiro terço do século XX, quando
o crescimento econômico vinha da exportação de produtos pecuários que
cobriam todo o território nacional, com proprietários uruguaios na produção
primária e certo grau de industrialização que dinamizava a cidade-porto.
* Senador da República Oriental do Uruguai
acouriel@parlamento.gub.uy
Uruguai: breve evolução econômica e política
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País de alto grau de urbanização, o Uruguai teve a criatividade de instaurar
um estado de bem-estar anterior às experiências nórdicas européias que
forneceu educação gratuita, atenção à saúde e regimes de segurança social
que foram pioneiros na região. A criação de empresas públicas no campo
nanceiro, nos serviços energéticos, em combustíveis e ferrovias constituiu
outra demonstração da originalidade do modelo uruguaio. Esses elementos
econômicos e institucionais permitiam alto nível de integração social com
baixas taxas de analfabetismo e de mortalidade. É um país sem conitos étnicos
após os processos de extermínio de setores indígenas na primeira metade do
século XIX. A parte inicial do século XX foi uma etapa de elevada imigração
européia que trouxe seus conhecimentos, seus valores e sua cultura e que se
integraram muito bem na sociedade uruguaia, a qual começou a mostrar seu
apego à democracia, ao respeito e à tolerância de outros valores, outras culturas
e outras religiões.
As características de seus produtos de exportação, antítese dos enclaves
de outros países da região, e a criatividade do Estado de bem-estar, permitiram-
lhe uma excelente distribuição da renda, que se mantém até os dias de hoje,
sendo o coeciente Gini de 0,44 um dos mais baixos da América Latina.
A história do Uruguai mostra um país aberto e receptivo. Aberto a pro-
cessos migratórios e inclusive a receber exilados políticos do Brasil, Argentina,
Paraguai e Bolívia. Aberto no plano nanceiro, procurando durante vários
períodos congurar uma praça nanceira apresentando desde 1974 liberdade
irrestrita pata o movimento de capitais. Um país sem conitos fronteiriços,
com segurança pública aceitável e cultura democrática, e nas palavras de Carlos
Real De Azúa, é “o país das vizinhanças”: todos se conhecem, tudo ca perto
e um elevado grau de igualdade nas relações pessoais entre os diferentes
setores sociais. Apresenta nível cultural muito bom na comparação regional,
com muita inuência européia, a tal ponto que os currículos de matérias do
ensino médio provêm da educação francesa.
É um país estável, onde as mudanças ocorrem de forma gradual e no qual
o grau de integração social facilitou a existência de acordos sociais implícitos
e também explícitos, e sobretudo com um cultura de acordos políticos como
atesta a história da convivência do bipartidarismo.
Alberto Couriel
209
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
B. Breve evolução econômica
O Uruguai teve importante crescimento para além de suas fronteiras, com
base no dinamismo de suas exportações até a crise de 1929. Tal como outros
países da região, que haviam iniciado processos de industrializão, a indústria
manufatureira do Uruguai continuou crescendo com ímpeto durante a Segunda
Guerra Mundial. Aproveitando o aumento dos pros internacionais derivados
da guerra da Coréia, manteve forte dinamismo até 1955, quando o processo de
industrializão declinou e o país entrou em longa fase de estancamento que
durou mais de 20 anos. A entrada de capitais que facilitou o crescimento na
segunda metade dos anos 70 se viu afetada por uma potica cambial inadequada,
conhecida como “la tablita”, que gerou elevada fuga de capitais, com forte
endividamento externo e profundas crises nanceiras. A década de 80 é conhecida
no Uruguai e na maioria dos pses latino-americanos como “década perdida”.
A política econômica esteve primordialmente preocupada em assegurar o
pagamento do serviço da dívida externa, baseada nas clássicas receitas do FMI:
altas desvalorizões e contrão da demanda interna por meio das políticas de
crédito, scal e salarial, a m de garantir saldo positivo da balaa comercial. As
elevadas desvalorizações causavam inação e as restrões à demanda interna
prejudicavam o nível de atividade ecomica e o próprio crescimento. Os custos
da dívida externa eram pagos exclusivamente pelos países devedores, com uma
transferência líquida de recursos de cerca de 4% do PIB. Na década de 90 foi
retomado o crescimento com o inuxo de uma nova entrada de capitais. Foi
a cada do auge do neoliberalismo, que procurou minimizar a ação estatal
porque se armava que o setor privado e o mercado estavam em condições
de resolver os problemas ecomicos e os conitos sociais. Foi a época das
privatizações, de liberalização comercial e nanceira, da desregulamentação
econômica e da exibilidade trabalhista. No caso do Uruguai, aprofundou-se a
liberalização comercial com uma abertura unilateral extra Mercosul, enquanto
a liberalização nanceira havia sido realizada em 1974, com a liberdade
irrestrita dos movimentos de capitais. Em troca, não foi possível completar os
clássicos processos de privatizão, porque um referendo em 1992, impediu a
privatização da empresa estatal de comunicões. A política econômica esteve
centrada em assegurar a pra nanceira, e avançar na estabilização de preços
por meio da âncora cambial, ao estilo da lei de convertibilidade implantada na
Argentina. Os atrasos cambiais da Argentina, Brasil e Uruguai entre 1994 e 1998
Uruguai: breve evolução econômica e política
210
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
aprofundaram os intercâmbios comerciais no interior do Mercosul. Em 1998,
53% das exportações uruguaias tinham por destino os países do Mercosul. A
desvalorização de janeiro de 1999 no Brasil deixou evidentes os atrasos cambiais
da Argentina e do Uruguai, gerando diculdades no processo de integração que
se manm até nossos dias. O estilo de desenvolvimento permitiu crescimento
com crises produtivas, especialmente no setor da indústria manufatureira, e crises
sociais que culminaram em uma profunda crise nanceira em 2002.
C. Principais características políticas
O sistema político e a sociedade do Uruguai têm grande vocão para a
democracia, a liberdade e a justa, o sufgio universal e pluripartidarismo, a
garantia dos direitos humanos, a independência do Poder Judiciário e a vigência
total do Estado de Direito. A democracia está profundamente arraigada na
sociedade uruguaia, que é muito informada, muito politizada e muito participativa.
Os uruguaios gostam de votar e normas que permitem formas de democracia
direta. No Uruguai há formas constitucionais de enfrentar qualquer lei sancionada
pelas autoridades correspondentes, pela via do referendo. Por essa via foram
enfrentadas as privatizações e também por meio do referendo evitou-se naquele
momento uma lei de caducidade em defesa dos militares que violaram os direitos
humanos durante a ditadura sofrida pelo país entre 1973 e 1985. Esse processo
ditatorial coincidiu com regimes similares em vários países da região, onde sob
a liderança dos Estados Unidos combatia-se o comunismo internacional e ações
guerrilheiras que se supunha terem vinculações com a revolução cubana. Para
um ps com elevada cultura democtica poderíamos considerar essa etapa da
ditadura como uma exceção à regra. Houve outro rompimento da democracia
na década de 1930 porém sem intervenção das Forças Armadas.
As instituições políticas exibem as seguintes características:
(a) O Poder Executivo é integrado pelo Presidente da República, designado
diretamente por sufrágio universal e pelo Conselho de Ministros. Para
aceder à presidência é necesrio o voto de 50% mais um dos cidadãos
que participaram no processo eleitoral, regime que se instaurou em
1996 por temor a um triunfo eleitoral da esquerda. Nas eleições de
1999, venceu a Frente Ampla no primeiro turno, mas por não conseguir
maioria absoluta, houve um segundo turno. Nesta uniram-se os partidos
Alberto Couriel
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Blanco e Colorado, que obtiveram a viria. Na eleição seguinte, em 2004,
a Frente Ampla venceu no primeiro turno, alcaando mais de 50%
dos votos. Historicamente, o Uruguai tem tido um Poder Executivo
baseado em regimes colegiados, o que junto com a coesão social e o
apego democrático, facilitava a denominação de “Suíça da América”.
(b) O Poder Legislativo se baseia em um regime bicameral, com muito
pouca diferenciação de funções. Os legisladores são eleitos direta-
mente por sufrágio universal, sob o regime de listas, e conrmados
proporcionalmente ao total de votos obtidos.
(c) um predomínio do Executivo sobre o Legislativo, baseado na
possibilidade de vetos e de dissolução das câmaras, e por meio de
iniciativas privativas do Executivo, como a isenção de impostos ou
limites aos gastos orçamentários. O Legislativo ca subordinado ao
Executivo na medida em que, por exemplo, o conta com informação
própria, ou porque somente a política scal é objeto de atenção do
legislativo, o que não ocorre com o restante da política econômica. Em
esncia, o Poder Executivo es mais diretamente vinculado aos fatores
de poder, inclusive os ligados ao campo internacional, o que aprofunda
seu predomínio, derivado das próprias normas constitucionais. Salvo em
caso de interpelões, os debates são raros no âmbito parlamentar. De
fato, os grandes debates ocorrem através dos meios de comunicação.
Os partidos políticos apresentam elevado grau de estabilidade. Os dois
partidos tradicionais, o Blanco e o Colorado (Vermelho) existem mais
de século e meio e governaram o país durante toda a história, até o recente
triunfo da Frente Ampla em 2004. São partidos policlassistas com diversidades
ideogicas internas, e foram determinantes na construção do país. Em essência,
existiu um regime bipartidário no qual governaram os colorados, com exceção
dos períodos de 1959 a 1967e de 1990 a 1995, quando venceram os blancos.
A grande mudança potica foi a fratura do bipartidarismo, com a presea
da Frente Ampla nas eleições de 1971, com 18% dos votos. A Frente Ampla é
combinação de coalizão e movimento, em cuja origem participaram os partidos
comunista, socialista e democrata-cristão, setores políticos provenientes dos
partidos Blanco e Colorado e setores independentes. A criação da Frente
Ampla foi causada pelos seguintes fatores principais:
Uruguai: breve evolução econômica e política
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
(a) Na década de 60 aprofundaram-se os conitos sociais e os enfrenta-
mentos políticos. Foi um período de crise econômica, de paralisia da
produção, de fuga de capitais, de crises nanceiras e inação muito
elevada. Esta última derivava do estancamento econômico que gera-
va forte pugna pela distribuição da renda, basicamente entre setores
pecuaristas e exportadores, de um lado, e trabalhadores urbanos
sindicalizados, de outro;
(b) A unidade sindical, em meados dos anos 60, foi uma etapa importante
que colaborou para a unidade da esquerda;
(c) A profunda crise dos partidos tradicionais, que não encontravam
fórmulas adequadas para sair da crise econômica;
(d) A própria existência da guerrilha urbana multiplicava os conitos,
mas tinha representação própria na criação da Frente Ampla;
(e) Também auxiliaram imensamente na criação da Frente Ampla ilustres
guras políticas como ber Seregni, Zelmar Michelini, Rodney
Arismendi, Juan Pablo Terra, ctor Rodriguez e José Pedro Cardozo,
entre outros.
A Frente Ampla foi muito perseguida pela ditadura, sofrendo prisões,
tortura, mortes e exílios. Isso aprofundou a unidade da esquerda, que em 1984
chegou a obter 21% dos votos, embora seu líder principal, Líber Seregni, não
tivesse podido ser candidato. Tampouco pôde ser candidato nessa eleição uma
gura predominante do Partido Nacional, como Wilson Ferreira Aldunate –
que também sofreu longos anos de exílio e nem Jorge Battle, do partido
Colorado. Em 1989, depois de uma divisão interna, a Frente Ampla voltou a
obter 21% dos votos, mas ganhou pela primeira vez o governo do departamento
de Montevidéu, cargo que conserva até a atualidade. Em 1994 conseguiu mais
de 30% dos votos, muito próximo do vencedor, o que gerou em conseência a
reforma constitucional que obrigava ao segundo turno caso nenhum candidato
obtivesse a metade dos votos mais um. Em 1999 ganhou no primeiro turno
com 40% dos votos, mas perdeu a eleição no segundo turno. Em 2004 venceu
pela primeira vez a eleição nacional com mais de 50% dos votos, no primeiro
turno. Obteve também o governo de oito departamentos.
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D. Situação atual
O governo da Frente Ampla, que tomou posse em 1 de mao de 2005,
recebeu um país com diversas situações críticas. Uma dívida muito elevada
em moeda estrangeira, de 100% do PIB, em conseência da profunda crise
nanceira do ano de 2002. Uma situão social crítica, com níveis de pobreza
em quase um terço do total da população, 13% de desemprego urbano ostensivo
e sarios reais médios inferiores em 22% aos de 2000, am de forte processo
emigratório no qual os jovens e os mais qualicados deixavam o país. A isso se
acrescenta um elevado nível de informalidade e precariedade que aumentou nos
anos 90 e aprofundou-se na crise de 2002, gerando um processo de fragmentação
social que desmentia a história do Uruguai integrado, do Uruguai com coesão
social. A existência de guetos de ricos e sobretudo de guetos de pobres, com
valores e motivações diferenciados, com cultura de pobreza que precisará de
muito tempo para resolver-se mostra um novo Uruguai. O novo governo
recebeu um Estado muito debilitado pelos governos anteriores e pela própria
ão do neoliberalismo, com pessoal de baixa qualicação, sem capacidade de
reexão e nem de lideraa, havendo perdido funções básicas como a integração
social e a redistribuição da renda. As empresas públicas se encontravam
deterioradas, com irregularidades e sobrecarregadas pela potica de clientelismo
dos partidos tradicionais. Uma das poucas instituões que conservou seu grau
de prossionalismo foi o Banco Central, com predomínio de ideologias oriundas
dos organismos nanceiros internacionais.
As relações de poder revelam a inuência de fatores internacionais,
especialmente através da hegemonia dos Estados Unidos sobre o sistema
nanceiro, meios de comunicação, Forças Armadas, as próprias empresas
transnacionais instaladas no país e até mesmo no campo ideológico, como
aconteceu no debate sobre um tratado de livre comércio com os Estados
Unidos. As relações de força marcam um primeiro nível de poder do sistema
nanceiro, com predomínio de bancos internacionais, dos proprietários de
meios de comunicação e das empresas transnacionais instaladas no país e seus
aliados nacionais. Num segundo nível, colocaríamos as diferentes associações da
produção e do comércio, com capacidade de inuência limitada, os sindicatos
de trabalhadores muito afetados na década de 90 e as próprias Forças Armadas,
que vêm se debilitando desde a abertura democrática. Vale a pena assinalar a
baixa ponderação atribuída aos intelectuais e às universidades, que perderam a
Uruguai: breve evolução econômica e política
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capacidade de fazer propostas especícas para a região e apresentam limitadas
possibilidades de pesquisa.
A crise do ano de 2002 e o triunfo da esquerda em 2004 indicam
com clareza um elevado nível de estabilidade política do país e a robustez
das instituições democráticas. No ano eleitoral em que se previa o triunfo
da esquerda não houve fuga de capitais nem processos especulativos ou
inacionários e inclusive ocorreu alto grau de recuperação econômica.
E. O governo da Frente Ampla
Os anos de 2005 e 2006 e os três trimestres de 2007 foram de elevado
crescimento econômico, muito acima das expectativas e da história dos últimos
50 anos no Uruguai. O PIB aumentou 6,6% em 2005, 7% em 2006 e 6,2%
no primeiro semestre de 2007, cifras sucientemente signicativas. Os fatores
determinantes desse crescimento o a evolução positiva dos pros internacionais
dos produtos de exportação, fruto da demanda proveniente da China e Índia,
aumentos importantes de investimentos no setor da construção com nanciamento
externo e capacidade do governo de gerar conança e credibilidade junto aos
agentes econômicos. Isso permitiu melhora nos salários reais e queda signicativa
do desemprego ostensivo, que atualmente está em 8,5%, o que facilita melhorias
sociais. A inação se situa em cifras de um dígito e embora a dívida continue a ser
alta, os prazos se ampliaram de maneira muito adequada. No âmbito social foram
retomadas as negociações entre empresários e trabalhadores por meio de convênios
coletivos, restabeleceram-se os conselhos de salários e os sindicatos de operários
adquiriram maior poder de negociação. Aumentou o grau de sindicalização e o
numero de sindicatos e dessa forma equilibraram-se as relações de força entre
capital e trabalho. Implementou-se um plano transitório de emergência social,
para atender especialmente a indigência, ao estilo dos programas realizados em
vários pses da região. Reduziu-se a pobreza, que ainda é de 24% da população,
a indigência e a mortalidade infantil. O novo governo teve um êxito importante
no campo dos direitos humanos. Foram procurados, encontrados e identicados
corpos de detidos/desaparecidos, e estão na prisão notórias guras do exército
que cometeram atos de violação aos direitos humanos.
Iniciaram-se processos de reformas estruturais. No ano de 2006 foi
aprovada uma reforma tributária com a introdução do imposto de renda das
Alberto Couriel
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
pessoas físicas, embora de caráter duplo, diferenciando os rendimentos do
trabalho e os de capital, que pagam alíquotas diferentes. A reforma eliminou uma
rie de impostos de alto custo administrativo e não aumentou a carga tributária.
Analisa-se atualmente no âmbito parlamentar uma importante reforma da saúde,
que mantêm um sistema misto, descentralizando os hospitais públicos e tratando
de resolver os problemas nanceiros que vinham caracterizando mutrios do
setor privado de enorme contribuição histórica no país. Na medida em que
a reforma tributaria o contemplou o nanciamento da reforma da saúde,
instaurou-se um sistema contributivo que tem problemas devido ao desnível
entre ativos e passivos. Os ativos se em afetados pela baixa taxa de natalidade
e pela emigração, enquanto o número de passivos cresce por causa do aumento
da esperança de vida. Por outro lado, nos regimes contributivos relevantes para
a história da seguridade social no Uruguai, a maioria dos trabalhadores eram
formais e contribuíam para o regime respectivo. Na atualidade, mais de 50%
eso fora do regime de seguridade social e do seguro nacional de saúde por
serem informais e desempregados ostensivos e somente têm a possibilidade de
serem atendidos em instituições públicas.
A política econômica de curto prazo conserva características ortodoxas,
especialmente em maria moneria e cambial. Esta última o é implementada
em função das exigências de competitividade e tende-se a voltar a cometer
erros signicativos, como foram o regime da “tablita” de ns dos anos 70 e
inicio dos 80 e o atraso cambial da década de 90, que culminaram em profundas
crises nanceiras.
F. A política internacional e o Mercosul
A potica internacional se manteve dentro das caractesticas históricas do
Uruguai, baseada na paz internacional e nos princípios de auto-determinação
e não-intervenção. Continuam a manter-se boas relações com os Estados
Unidos, que ajudou o país durante a crise nanceira de 2002, enfrentando
o FMI que propunha um calote da dívida e transformando-se em um dos
maiores importadores do Uruguai, especialmente de carne, devido aos
problemas da vaca louca no Canadá e da aftosa na Argentina e no Brasil. Mas
também tentou introduzir uma cunha no Mercosul, procurando chegar a um
tratado de livre comércio (TLC) bilateral com o Uruguai. A realidade revelou
Uruguai: breve evolução econômica e política
216
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
posições divergentes no governo uruguaio: setores que defendiam o TLC com
os Estados Unidos procuravam aprofundar, com declarações agressivas, os
problemas do Mercosul, diante de ouros setores que não aceitavam o TLC e
lutavam por melhorar as possibilidades abertas pelo processo de integração
regional. De fato o TLC com os Estados Unidos não se realizou a União
Aduaneira do Mercosul não o permitia e o Uruguai se incorporou ao Grupo
dos 20, liderado pelo Brasil no plano comercial, a m de enfrentar os problemas
originados pelos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos.
A situação internacional exige a formação de um bloco regional. Vivemos
em um mundo de globalização nanceira, tecnológica e de comunicações,
com fortes blocos econômicos, especialmente na América do Norte, liderado
pelos Estados Unidos, e da União Européia. Os Estados Unidos têm nítida
hegemonia no âmbito militar, no campo nanceiro dada a relevância das
políticas da Reserva Federal e do centro nanceiro de Nova York e no plano
das comunicações, no qual cerca de 80% das imagens vistas no mundo provêm
daquele país. Isso lhe conferiu forte predomínio no campo político, que se viu
afetado pelo repúdio internacional resultante da invasão do Iraque.
É imprescindível a necessidade de um bloco latino-americano para
construir a integração regional com unidade de propostas e o maior grau
possível de cooperação política para negociar com o mundo desenvolvido.
As negociações passam pelos planos político e econômico. Entre estes se
destacam as negociações comerciais, nanceiras e produtivas.
No plano comercial são indispensáveis as negociações para enfrentar os
subsídios agrícolas dos países desenvolvidos, diversas formas de proteção para-
tarifária e medidas de política econômica que afetam os termos de intercâmbio
dos países da região. Como a América Latina representa apenas cerca de 5% do
comércio internacional, torna-se imprescinvel a necessidade de aliados, como
se conseguiu no G-20, incorporando a China, a Índia e a África do Sul.
No plano nanceiro, é importante a negociação para modicar as
condicionalidades dos organismos nanceiros internacionais, para regular os
movimentos especulativos de capitais – que em 90% dos casos são de prazo
inferior a uma semana e encontrar novos mecanismos para resolver com
maior equanimidade os problemas da dívida externa dos países da região.
Alberto Couriel
217
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
No campo produtivo pode ser de interesse a negociação coletiva com as
empresas transnacionais e regionais para enfrentar tentativas como o Acordo
Multilateral de Investimentos.
O processo de integração regional apresenta uma série relevante de
potencialidades econômicas, entre as quais se destacam:
(a) A integração energética, aproveitando as reservas de petróleo e gás
da Venezuela e da Bolívia;
(b) Obras de infra-estrutura vinculadas ao transporte e aos próprios
processos de integração energética;
(c) A integração nanceira que surge como um fenômeno novo na
região. Os altos preços internacionais dos produtos de exportação e a
melhora dos termos de intercâmbio para alguns países signicaram a
possibilidade de um grande aumento de reservas internacionais e certo
grau de autonomia diante do FMI. A isso se acrescenta a existência
de instituições nanceiras estabelecidas como a CAF (Corporação
Andina de Fomento) e a criação de novas instituições nanceiras como
o Banco do Sul, que pode fornecer créditos para o desenvolvimento e
ajudar os países da região a enfrentar em melhores condições eventuais
crises nanceiras conjunturais;
(d) A integração produtiva, baseada na complementaridade produtiva, é
um elemento central do processo de integração, cujo grau de progresso
na atualidade tem sido muito limitado. Em essência ocorreu uma
espécie de integração passiva, na qual se xam reduções tarifarias,
enquanto o mercado e o setor privado denem as relões comerciais.
É necessário passar a uma integração mais ativa para o que deve
haver linhas estratégicas, que permitam formar estruturas produtivas
centradas em competitividade e emprego, como parte de projetos
nacionais dos países componentes do processo de integração. A história
de nossos países mostra que a especializão produtiva, e portanto a
estrutura produtiva, foi xada do exterior, atendendo às necessidades
dos países desenvolvidos. Chegou a hora de que os países da região
avancem em dirão a projetos nacionais que sejam determinantes
nas futuras estruturas produtivas. Essas linhas estragicas devem ser
Uruguai: breve evolução econômica e política
218
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
coordenadas e compatibilizadas até poder alcaar projetos regionais
que permitiriam atender as atuais assimetrias, favorecendo os países de
menor desenvolvimento relativo ou de menor tamanho. Dessa forma,
esses países poderiam participar de processos produtivos dinâmicos,
podendo beneciar-se de medidas que lhes permitam colocar rubricas
com maior valor agregado e mais conteúdo tecnogico. Essas
estruturas produtivas devem ser propostas de maneira muito exível
e aberta para levar em conta a velocidade das mudanças tecnogicas
que ocorrem no campo internacional. Um bom exemplo de novas
formas de complementaridade produtiva poderia surgir no caso de
demandas do Brasil. Este país solicita regimes especiais ou tarifas mais
elevadas para as rubricas de bens de capital, infortica e indústria
automobilística. O Uruguai pode aceitar as necessidades do Brasil, mas
pode pedir participação em algum grau de especialização na prodão
e exportação desses bens, ou uma parte da produção dos mesmos.
O processo de integração tem problemas. Houve extraordinários avanços
entre 1994 e 1998 quando o Brasil, a Argentina e o Uruguai tinham fortes atrasos
cambiais, o que multiplicou o corcio entre esses paises. A desvalorizão
de janeiro de 1999, mostrou claramente os atrasos cambiais do Uruguai e da
Argentina e ali começaram diversas disputas e reclamações entre os paises do
Mercosul que se multiplicaram com as crises nanceiras posteriores. alguns
conitos poticos, como o atual entre a Argentina e o Uruguai por causa das
bricas de celulose instaladas no Uruguai, que afetam as potencialidades. Não
instituões comunirias nem supranacionais, não se aplicam decisões de
tribunais arbitrais e barreiras para-tarifárias, às vezes estaduais, que prejudicam
o funcionamento normal do processo de integração. O ponto de partida de
baixo relacionamento comercial entre os diferentes componentes, afeta as
possibilidades de coordenar políticas macroeconômicas do tipo em que foi
possível progredir na União Européia. criticas de caráter ideológico dos que
nunca aceitaram processos de integração, porque entendiam que estes geravam
desvios de comércio e propugnaram por aberturas unilaterais, especialmente em
relão aos paises desenvolvidos. Existem relações de poder que afetam também
o processo de integração, como o peso das grandes empresas transnacionais,
cujos interesses podem ou não coincidir com o que se consiga concordar entre
os países. tamm elementos ideogicos e poticos quando se critica o
Alberto Couriel
219
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
processo de integração, porque se deseja alcaar tratados bilaterais de livre
comercio com os Estados Unidos muito dirigidos, especialmente, para os países
localizados na costa do oceano pacico.
Em essência, o futuro da integração depende dos acordos políticos
relevantes, mas também da capacidade de gerar emoções, valores e motivações
que facilitem avanços em direção a uma consciência regional hoje em dia
muito limitada – e inclusive a formas de identidade regional.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
220
O Estado de direito
e de justiça social no
quadro da Alternativa
Bolivariana para a
América e o Caribe –
ALBA
Isaías Rodríguez*
H
á um jornalista que dirige um programa de notícias na Venezuela.
Sempre começa com uma referência ao “planeta Terra”, como se esta fosse
uma “nave espacial”.
Essa mefora da nave espacial é originária de Kenneth Ewart Boulding,
economista de grande prestígio, ecologista e militante ostensivo do pacismo.
Como em qualquer aeronave, diz Boulding, a sobrevivência depende do
equilíbrio entre a capacidade de carga e as necessidades dos passageiros que
* Procurador-Geral da República Bolivariana da Venezuela.
isaiasrodriguez@scalia.gov.ve
Isaías Rodríguez
221
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
viajam dentro da nave. Para que haja equilíbrio, arma ele, não basta a justiça
do pistoleiro solitário dos lmes norte-americanos, ministrada a tiros, sem
admitir outras regras que não sejam as do pistoleiro.
Com efeito, quem pode garantir a justiça e a harmonia é a sociedade
como um todo, e nunca um pistoleiro solitário. Isso é o que alguns consideram
equilíbrio, e realmente, no fundo, equilíbrio não é senão a humanidade com
a qual se exprimem nossos atos e ela é exatamente o contrário, o oposto, ao
que o “pistoleiro solitário” conhece com o nome de mercadoria.
Tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos quanto o Pacto
de Direitos Ecomicos, Sociais e Culturais (assinados em o José da Costa
Rica, em 22 de novembro de 1969 e em São Salvador, em 17 de novembro de
1988, respectivamente) progrediram no direito positivo a m de oferecer uma
resposta ao que se denomina “mercadoria”, contra todas as estruturas, estatais
ou o, que se constituem em ameaças draticas contra os direitos humanos.
Uma mitologia convertida em doutrina, que vem desde Hobbes e desde o Leviatã,
sustenta que o Estado é a única entidade capaz de violar os direitos humanos.
Essa mitologia, transformada em ideologia tanto em seu tempo quanto agora,
coloca o Estado como o “único órgão ameaçador da liberdade individual” e é
por isso que a “doutrina liberal sobre direitos humanos”, desde Locke até nossos
dias, pretende fazer-nos crer que “a única” necessidade permanente para proteger
os indiduos contra o Estado é torná-lo responsável, somente ele e nunca os
particulares, pelas agressões a seus direitos humanos individuais e/ou coletivos.
O tempo passou e hoje se colocam dois temas que aparentemente
não estiveram nas cogitações do legislador dos dois Pactos Internacionais
anteriormente mencionados.
O primeiro e vale a pena reetir sobre isso por meio do qual ca
claro que o Estado (além de organismo supostamente ameaçador dos direitos
humanos) é também o “garante de tais direitos”; e o segundo, por meio do
qual se conclui que também as organizações econômicas privadas, tal como
o Estado, podem perfeitamente ser obstruidoras e provocadoras de sérias
ameaças, severas, graves e certas, contra esses direitos humanos, até o ponto
de interferir e intimidar em relação a tudo o que tem a ver com os direitos
cidadãos contidos nos dois citados Pactos Internacionais.
O Estado de direito e de justiça social no quadro da Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe – ALBA
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Embora seja correta a visão liberal segundo a qual os Estados violam
ou podem violar essas conquistas irrenunciáveis da humanidade, não é menos
certo que essa eventual violação é somente uma parcela quase insignicante
dos problemas enfrentados pelos cidadãos no momento de efetivar seus
direitos humanos.
Edgardo Lander, estudioso venezuelano desse tema, chama a essas
situações “expressão do Estado mínimo”, levando em conta que não é o
Estado como entidade quem auspicia tais violações e sim o próprio Estado,
em sua condição de intermediário de regras que nem sempre emanam dele
mesmo, mas de vasos comunicantes onde “a propriedade privada do capital e
dos meios de produção” geram uma superestrutura que lesa esses direitos.
Em conseqüência, para Edgardo Lander, essa manipulação em si mesma
é per se uma interferência expressa e manifesta nas políticas do Estado, que
se expressa em uma clara, palpável e evidente violação dos direitos humanos
a qual não brota necessariamente a partir do próprio Estado como único e
absoluto responsável por essas políticas.
Claro está que o pensamento único consagrou a propriedade privada
acima da liberdade e isso fez com que o conceito de “propriedade se
manifestasse através dessas políticas.
Com efeito, com a intenção de confundir ou simplesmente de manipular,
colocam-se num mesmo plano os bens “de uso pessoal” e os “bens de ou para a
produção”, e não é verdade que uns e outros se encontram num mesmo nível.
Os bens que provêm do trabalho pessoal de seu proprietário (como
uma casa, um aparelho de TV, um veículo ou uma geladeira) são diferentes,
absolutamente diversos, dos que provêm da acumulação de capital.
Eles têm, sem dúvida alguma, um tratamento diferente, menos
privilegiado, do que aqueles outros bens derivados da acumulação e exploração
do capital, e embora também tenham como origem o trabalho, essa causa é um
labor dependente, comprado com um salário por aquele que dirige o trabalho
como uma ação subordinada.
o é, em conseência, resultado do esforço pessoal de quem o
produz, e sim do suor e da energia de outrem, dos quais se explora a fadiga.
Os exemplos são muitos: uma empresa têxtil, uma marca registrada utilizada
Isaías Rodríguez
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
para explorar outras pessoas, uma instria metal-menica e a bendita
“propriedade intelectual” com a qual os que expropriam o trabalho pessoal,
os laboratórios repito como exemplo empacotam produtos farmacêuticos
e medicamentos dos quais depende mercantilmente nossa saúde e, quase
sempre, a vida dos mais pobres.
Talvez cause espanto a alguns teóricos do neoliberalismo (e sem
dúvida aos mais pragmáticos desse uso indiscriminado da exploração dos
trabalhadores) que um Procurador-Geral, competente apenas para tratar de
temas relativos a delitos, fale a respeito destes assuntos.
Das atribuições conferidas ao Ministério Público pela Constituição da
República Bolivariana da Venezuela consta: “Velar pela estrita observância
da Constituição e das leis”; e como expressa seu artigo 285, “garantir, nos
processos judiciais, o respeito aos direitos e garantias constitucionais, assim
como o respeito aos tratados, convênios e acordos internacionais.
Foi tal a sabedoria do constituinte venezuelano que, a m de que não
sucedesse o que ocorreu ao legislador dos Pactos de Direitos Civis, econômicos,
sociais e culturais antes citados, com esclarecedora sapncia intuiu ele que as
funções expressamente atribuídas ao Ministério blico poderiam ser ultrapassadas
pelo decurso do tempo, e acrescentou uma atribuição enunciativa, que não consta
dos pactos internacionais mencionados. A Constituão venezuelana acrescentou:
“as demais que sejam estabelecidas por esta Constituição e pela lei.
É com essa competência que nos atrevemos a tocar o tema e com a qual
invocamos, de maneira expressa, a resolução 1.803 da Assembléia das Nações
Unidas, de 1962, onde se declara:
“O direito dos povos e das nações à soberania permanente sobre suas riquezas e
recursos naturais e o exercício dessa soberania para promover o respeito mútuo entre
os Estados.
Igualmente, com a mesma competência citada invocamos a Carta de
Direitos e Deveres Ecomicos dos Estados, publicada pela mesma Assembléia
Geral das Nações Unidas em 1974, segundo a qual:
Todo Estado tem o direito soberano, inalienável, de escolher seu sistema econômico,
assim como seus sistemas políticos, sociais e culturais, de acordo com a vontade de seu
povo, sem interferência externa, coerção ou ameaças de nenhum tipo.”
O Estado de direito e de justiça social no quadro da Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe – ALBA
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Cada Estado, segundo expressa o artigo 2 dessa Carta:
“...tem direito a: 1 Regular e exercer autoridade sobre os investimentos estrangeiros
dentro de sua jurisdição nacional e de acordo com suas leis e regulamentos em
conformidade com seus objetivos nacionais e prioridades, e 2 Regular e supervisionar
as atividades das corporações transnacionais dentro de sua jurisdição e tomar medidas
para assegurar que tais atividades respeitem suas leis...”
A Carta Internacional mencionada declara, igualmente, que os Estados “...
têm direito a associar-se em organizações de produtores de bens com o objetivo de desenvolver
suas economias nacionais”.
Hoje, pouco mais de 40 anos de existência desses Acordos ou Pactos
Internacionais, temos obrigação de visualizar e analisar todos os diferentes
universos que derivam do desenvolvimento dessas economias nacionais.
Santiago Ramentol, sociólogo espanhol da universidade de Barcelona,
identica seis desses universos a serem visualizados: (1) O globalismo imperial
(universo que Robert Kagan considera benévolo); (2) O liberalismo planetário;
(3) O expansionismo automaticista; (4) O pós-industrialismo; (5) A sociedade
da informação e (6) O chamado choque entre civilizações.
Até agora, somente transitamos por um desses universos: o “globalismo
imperial”. Com ele, a democracia representativa conviveu com o mercado em
uma suposta relação de tranqüilidade.
Essa menção à “tranqüilidadenão é totalmente correta. Houve instantes,
longos instantes, em que “a liberdade não existiu em nossos países” e nem se
ajustou à suposta estrutura democrática da sociedade liberal.
Tampouco é certo que o imperialismo tenha sido benfeitor e nem
que os mercados tenham regulado de maneira benévola a repartição justa
da riqueza.
A isso o citado professor de Barcelona, Santiago Ramentol, chamou “o
multi-universo II”, no qual o “globalismo imperial” benecia, fundamental e
essencialmente, as transnacionais.
Nesse multi-universo II o poder se exerce numa dimensão planetária;
menospreza-se o poder das Nações Unidas e não se aceita a autoridade do
Tribunal Penal Internacional.
Isaías Rodríguez
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Com efeito, nesse multi-universo II modicou-se o âmbito do que é blico
e também o dos direitos humanos mencionados nos Pactos Internacionais
citados; transformou-se o direito humano do cidadão ou cidadãos em uma
vulgar relação “cliente-empresa”, de absoluto caráter mercantil.
Nesse multi-universo foi quase absolutamente despolitizado o conceito
“jurídico-cultural” de todas as noções conhecidas do direito. Foi imposta, nessa
relação, a lógica do direito mercantil, contra a lógica dos direitos democráticos e es-
pecialmente contra a lógica dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais.
O neoliberalismo ou “globalismo imperial” literalmente “pisoteou”, ou
em termos acadêmicos, desvalorizou os direitos econômicos, sociais e culturais
e os colocou, com habilidade digna de melhores causas, tacitamente, em um
escalão inferior aos chamados “direitos civis e políticos”.
Eles, os neoliberais, criaram uma corrente que sustenta que a natureza dos
direitos sociais é distinta da dos direitos civis e políticos, e até mesmo aludem
a uma classicação de direitos de primeira, segunda e terceira geração, para
colocar os “econômicos, sociais e culturais” como direitos de “segunda”. Não
sei se de “segunda geração” ou simplesmente de “segunda importância”.
Em todo caso, o que se pretende sustentar é que “somente os direitos
civis e políticos” pertencem à esfera da justiça, porque o Pacto que consagrou
os econômicos, sociais e culturais estabeleceu, a respeito deles, somente a
“possibilidade” de seu cumprimento “... até o máximo dos recursos de que
disponha cada Estado...”; em outras palavras, o Estado não estará obrigado a
cumpri-los se não dispuser desses recursos, enquanto que para os outros deve
forçosamente dispor de tais recursos.
O mais grave é que não basta a concepção anteriormente desenvolvida, e
sim que esses direitos dos povos são de cumprimento voluntário ou facultativo,
enquanto que os direitos mercantis (sem vida causados pelos pactos
civis internacionais) não apenas são coercitivamente reclamáveis senão que,
além disso, foram institucionalizados através de tratados internacionais cujo
cumprimento pode ser exigido por meio de mecanismos coercitivos.
Os instrumentos de direito mercantil internacional, arma o citado
Edgardo Lander, “têm cada vez maior capacidade para impor normas de
cumprimento obrigatório em quase todos os países do mundo”.
O Estado de direito e de justiça social no quadro da Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe – ALBA
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
O direito liberal mercantil vem se convertendo em uma espécie de “direito uni-
versal” e até mesmo em uma espécie de “direito constitucional global paralelo”.
Devemos armar, com absoluta responsabilidade, que não é verdade que
os acordos comerciais sejam convênios “nos quais se ganha em algumas coisas
e se perde em outras”; não, não é verdade. Estamos diante de uma questão
que arrasta consigo uma parte muito signicativa dos direitos humanos de
nossos países e de nossos cidadãos.
O realmente certo é que como os Estados Unidos não conseguiram
consagrar, na Organização Mundial do Comércio das Nações Unidas, de
maneira unânime e planetária, a prioridade desses “direitos mercantis” sobre
os direitos humanos, zeram em seguida todo o possível para consegui-lo em
níveis regionais e, com sua costumeira habilidade, inventaram a ALCA.
E que é a ALCA?
São tratados comerciais que propõem uma área de livre comércio. Trata-
se com isso, aparentemente, de eliminar barreiras tarifárias e impostos sobre
as importações entre países.
A ALCA inclui a agricultura em seu âmbito, mas a menciona como
“disciplina de comércio internacional” como comércio de bens, e por essa
razão a vincula à proteção do investimento estrangeiro.
A ALCA foi laada em 1994 e a proposta foi posteriormente formalizada
depois da Cúpula de Presidentes em Santiago do Chile, em 1998.
Porque foi formalizada nessa data e não antes?
Porque o Presidente dos Estados Unidos necessita da autorização do
Congresso de seu país para assinar esses tratados comerciais e o parlamento
a havia negado ao Presidente Bill Clinton. Depois da Cúpula de Presidentes
em Quebec, no ano de 2001, George W. Bush solicitou ao parlamento essa
autorização, que foi outorgada no ano de 2002.
E porque, se foi formalizada nessa época, não foi posta totalmente
em prática?
Devido à agricultura. A tranca da ALCA foi a agricultura. Os Estados
Unidos mantêm um sistema de subsídios internos à agricultura, que inclui
também outros subsídios, os da exportação agrícola.
Isaías Rodríguez
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Mas não apenas por esse motivo.
Desde 1980, a produção mundial de cereais tem crescido com rapidez menor
do que a da população, por causa das restrições impostas pelas grandes potências
a m de evitar a queda de preços de seus cereais. Essas potências com nada se
importaram a m de manter a distribuição assimétrica da riqueza agrícola.
O Mercosul, o Caricom e a Comunidade Andina de Nações se negaram
a negociar, nessas condições, o tema da agricultura, além de todos os demais
temas, enquanto não seja oferecida uma solução eqüitativa e adequada à ques-
tão dos subsídios.
Com algumas exceções resultantes de pressões políticas e econômicas,
o Mercosul manteve sua negativa a subscrever tratados de livre comércio
(TLC) com os Estados Unidos enquanto essas condições sejam desigualmente
mantidas na região. O Brasil, por exemplo, negociou com tato comercial e
diplomático, privilegiando sempre a integração regional.
Nesse sentido, lamentamos a assinatura de TLC pela Colômbia e
Peru com os Estados Unidos, porquanto os mercados desses países serão
absorvidos por empresas norte-americanas e forçosamente será imposta a
“desregulamentação” que afetará, inexoravelmente, as receitas públicas do
Peru e da Colômbia como Estados.
A maioria dos liberais – arma um tratadista espanhol não pratica sua
religião. Os liberais têm uma muito volúvel. Suas medidas de proteção se
chocam com toda a sua retórica e sua religião neoliberais. Na OMC de Cancún,
por exemplo, em 2003, os Estados Unidos se negaram a reduzir os 3,3 bilhões
de dólares com os quais protegem seus produtores de algodão.
Coisa idêntica zeram a Europa e o Japão, em novembro de 2005. É sabido
que em cada situação os países ricos impuseram seus interesses comerciais
aos países pobres e que os pequenos progressos no tema da agricultura foram
anulados por um rolo compressor de serviços e tarifas industriais que afetam
e deterioram o desenvolvimento dos países pobres.
A Europa, o Japão e os Estados Unidos se negaram a abrir os mercados
nos setores em que, excepcionalmente, os países mais pobres podiam competir
e acordaram “liberdade de tarifas para seus produtos” nas situações em que
O Estado de direito e de justiça social no quadro da Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe – ALBA
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essa competitividade não os afetava. Para isso, temos na Venezuela uma palavra
estigmatizante: “caradurismo”.
Com efeito, enquanto as tarifas sobre bens manufaturados (naturalmente,
manufaturados nos países ricos) passaram de 40% a 4% entre 1950 e 2001, as
referentes a produtos agrícolas dos países pobres se mantiveram acima de 40%.
Mas essa não é a única problemática. Os Estados Unidos complementam
suas medidas protecionistas com as chamadas “leis anti dumping e seus
conhecidos direitos compensatórios”. Porém, como se fosse pouco, os
Estados Unidos também reivindicam a faculdade irrenunciável de aplicar suas
próprias leis na jurisdição de seus próprios tribunais.
Trata-se de uma assimetria econômica e mercantil grotesca e imoral. E se
isso não bastasse, todos os países pobres estão obrigados a fazer concessões,
menos os Estados Unidos.
A isso chama Héctor Moncayo “recolonização por meio de tratados de
livre comércio”.
O mais grave é que, o obstante, a globalizão exige, a m de assegurar
a sobrevivência dos seres humanos (8 bilhões de pessoas no ano 2020), um
sosticado e terrível plano de extermínio que reduza a população a 4 bilhões
no ano 2020.
O protecionismo de certos países ricos em favor de certos produtos poderia
ser uma expreso “dessa sosticação”, destinada a matar os pobres, porque,
para o neoliberalismo, “somente o crescimento dos pobres” põe em perigo o
futuro do planeta. Certamente, no ano 2050 o mundo seria incapaz de alimentar
tantos seres humanos, e a solução neoliberal é “matar esses pobres”.
Segundo dados cientícos, a superfície de terras cultivadas por pessoa
no mundo era de 0,26 hectares em 2002. Em 2050 será de 0,15 hectares, com
2 bilhões de habitantes a mais, com menor quantidade de água e com essa
loucura de mudanças climáticas que não tem nenhuma diferença com o que
passou a ser chamado “inverno nuclear”.
Para a globalização imperial, o plano de extermínio é a única forma e
maneira de salvar a humanidade, ou melhor, a “sua humanidade”.
Tudo isso tem a ver, ademais, com um direito fundamental e essencial
dos povos: o direito à segurança alimentar, o direito à alimentação.
Isaías Rodríguez
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Deve-se levar em conta que a produção não é apenas a produção de
mercadorias; é também uma forma de vida que implica, entre outras coisas, a
preservação cultural e a relação com a natureza; e tudo isso tem a ver com a
segurança e a soberania de nossos povos.
Existe, em conseqüência, uma contradição ou uma grande hipocrisia
quando os Estados Unidos elaboram uma doutrina para os direitos humanos e
paralelamente elaboram outra doutrina para os “tratados de livre comércio”.
Esta última nega a primeira.
Essa incompatibilidade já foi detectada na Colômbia pelos juristas
colombianos. O Tribunal Constitucional desse país irmão estabeleceu
“que os tratados constitucionais são os tratados internacionais de direitos humanos e
não os econômicos, e que os primeiros têm preeminência sobre os segundos e inclusive
sobre qualquer outro tipo de tratado”.
Por esses motivos, que não são nossos e sim dos juristas daquele país,
temos armado que a Colômbia será afetada pelo Tratado de Livre Comércio
que assinou recentemente com os Estados Unidos. Porém, mais do que
isso, segundo seus próprios juristas, ao subscrevê-lo a Colômbia violou sua
Constituição, assim como foi indicado por seu Tribunal Constitucional.
Essa decisão soberana do Tribunal Constitucional colombiano foi
suciente para que o desqualicassem, o chamassem irresponsável, lhe
pespegassem o apodo de ignorante e o acusassem de “submeter o Estado
colombiano a um suposto gasto público que não leva em conta as condições
macroeconômicas deste país”.
Novamente, não se sabe de quem é essa ignorância, nem quais poderiam
ser os limites entre o cinismo, a impuncia, a provocação e a atrevida insoncia
da imoralidade.
Tudo isso não quer dizer e muito menos concluir que não se deva rmar
tratados comerciais, e nem tampouco que devamos colocar-nos no absurdo do
isolamento, ou separar-nos do mundo, não nos comunicarmos com nossos vizinhos
ou nos abstrairmos e retirar-nos, como eremitas, para viver em íntima solidão.
Não; o que isso quer dizer é que estamos obrigados a rearmar o direito
que nos outorga a Carta de Direitos e Deveres Econômicos, aprovada pela
O Estado de direito e de justiça social no quadro da Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe – ALBA
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Organização das Nações Unidas em 1974, “a ser soberanos e escolher nosso sistema
econômico, social, político e cultural de acordo com a vontade de nossos povos, sem interferência
externa, sem coerção e ameaças de nenhum tipo...”
A Venezuela propôs a ALBA como alternativa contra a ALCA. A ALBA
é um instrumento para atacar os obstáculos à integração: a) a pobreza; as
desigualdades e assimetrias entre países; o intercâmbio comercial desigual; d) o
peso de uma dívida externa impavel; e) a imposão de políticas estruturais de
ajuste por parte do FMI, o Banco Mundial e a OMC que, sem dúvida, solapam
as bases de apoio social e político de cada um de nossos Estados.
A ALBA é uma estratégia para vencer os obstáculos que nos impedem
aceder à informação e à tecnologia derivadas, entre outras coisas, de acordos
sobre propriedade intelectual.
A ALBA nos orienta sobre como enfrentar, com decisão, a desregulamentação,
a privatização e a desmontagem do aparelho institucional, supostamente
desenhado pelos organismos internacionais incondicionais ao império para um
“êxito econômico” que está plena e absolutamente demonstrado não ser tal.
A ALBA é uma proposta centrada na luta contra a exclusão social. É
um conjunto de critérios básicos para fazer da solidariedade uma bandeira
emblemática que nos sirva para defender o papel do Estado contra as leis
da selva, em benecio de nossas soberanias, de nosso desenvolvimento e de
nossa integração.
Noam Chomsky exprimiu muito bem por meio de sua gramática ge-
rativa transformacional: “A gramática de qualquer língua – disse o lingüista
é constituída por um sistema de regras que permitem elaborar ‘orações
compreensíveis’”.
Essa gramática determina a estrutura profunda e a estrutura supercial.
Vejamos, por favor, a estrutura profunda da ALBA e esqueçamos, por alguns
instantes, sua estrutura supercial.
Para Chomsky, a estrutura gramatical é universal, está dentro do cérebro
humano e é hereditária. As crianças aprendem a falar de maneira espontânea;
existe neles uma predisposição natural para comunicar-se. Constroem suas
frases intuitivamente. Todos começam dizendo “papai”, “mamãe” e “água”
sem nenhuma experiência prévia.
Isaías Rodríguez
231
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Comecemos, como as crianças de Chomsky, a dizer “papai”, “ma-
e” e “água” a partir da integração e atrevamo-nos a dar uma resposta
de soberania contra um sistema injusto, desigual, deformador, arbitrário e
absurdamente hegemônico.
A luta pela democracia é uma bandeira digna e devemos converter
em realidade as novas formas em que vai se manifestando o “humanismo”.
A defesa desses direitos nos obriga a conjurar o perigo de que uma elite
supostamente instruída tome decisões em nosso nome e afete nossa liberdade
e também nossa soberania.
A democracia é nobre e delicada. Sempre está em perigo. É preciso mimá-
la, mantê-la, fortalecê-la e sobretudo aperfeiçoá-la para evitar que se converta
em refúgio daqueles que a desejam somente para manter e consolidar um poder
que não se detém para olhar as maiorias e que além disso mira de soslaio a paz
e por cima do ombro nossos desejos de soberania e de autodeterminação de
nossa ordem jurídica, cultural, econômica e política.
Norman Mailer, grande escritor, nos ajudará a concluir estas idéias dispersas
com as quais tentamos traduzir nossas preocupações sobre a fragilidade de nossa
democracia. Ninguém melhor do que ele exprimiu essas inquietações.
No discurso que pronunciou em São Francisco ele exprimiu, com uma
convicção que chega até os ossos, que a verdadeira democracia nasce de muitas
batalhas humanas, individuais e sutis, que são combatidas ao longo de décadas e
até mesmo de séculos: batalhas que realizam e conseguem construir tradições”.
A democracia, conclui Mailer, é perecível, e suas únicas defesas são,
precisamente, essas “tradições” que, social e democraticamente, ela conseguiu
construir com paciência e perseverança. Ela é rearma o escritor “um estado
de graça que chega a todos os países que possuem indivíduos dispostos não apenas a gozar
de suas liberdades mas também a trabalhar duramente para conservá-las”.
Eu somente acrescentaria às palavras de Mailer que além de trabalhar
duramente para gozar e conservar nossas liberdades, é indispensável ter coragem
e alentar, com vontade política, a união e fraternidade de nossos povos.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
233
Koki Ruiz
N
asci no interior, entre gente simples, gente trabalhadora: carpinteiros,
pedreiros e agricultores. Donos de seu tempo, soberanos de suas amenas tarefas
quotidianas. Com mulheres vitais: fortes e ternas. Crianças de casas abertas,
amplos pátios nas escolas e praças cheias de pássaros.
Banda Koygua
Koki Ruiz
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Em minha infância conheci cada um dos futuros personagens de meus
quadros de hoje. Carpinterios cobertos de serragem, mãos calejadas: prego,
martelo e serrote. Pedreiros, construindo casas pequenas, mistura de cal,
areia e tijolos. Camponeses, queimados a pleno sol, levando suas colheitas em
montanhas de carretas.
Músicos alegres, feitos de vinho e paio nos redutos noturnos.
Maternidades, nas enfermarias coletivas ou esperando hospitais. No mercado
ou na missa do domingo. Rostos curtidos pela vida. Crianças de colo no oco
do peito cálido da mãe.
Passeios infantis, algaravia de grarda-pós brancos na saída da escola.
Brinquedos de papagaios ou jogos de bola a qualquer hora do dia
Com as matizes da memória pinto o povo de minha infância.
Pinto meu povo de hoje com as cores de seus sonhos e esperanças”.
(Koki Ruiz)
Biograa
1957 Nasceu em San Ignacio, Misiones, Paraguai
1977-1978 Freqüentou as Oficinas de Artes Plásticas da Universidade
McKenzie em São Paulo, Brasil, onde realizou suas primeiras
exposições coletivas
1985 Primeira exposição individual, Galeria “PropuestaAssunção, Paraguai.
Galeria “El Viejo Galpón” – San Bernardino, Paraguai
1986 Expôs em ARCO 86”, Madrid, a mais importante exposição de arte
contemporânea da Espanha.
1987 Exposição na “Canning House”, Londres – Inglaterra.
_____ Memorial “Juscelino Kubitschek”, Brasilia – Brasil
_____ Fundação “Las Malvinas”, Buenos Aires – Argentina
_____ Salão de Exposições “Dusseldorf Hotel” – Alemanha
1988 Exposição itinerante nos salões de Rabo Bank – Holanda
Koki Ruiz
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1990 Exposição Galeria “Michelle Malingue”, Assunção – Paraguai
1992 Exposição Galeria “Pueblo Blanco”, Punta del Este – Uruguai
1993 Exposição “Galerie de France”, Miami – EUA
1995 Exposição Galeria “Montalbán”, Madrid – Espanha
_____ Galeria “Della Rovere”, Madrid – Espanha
_____ Centro Cultural “El Escorial” (Complexo Arquitetônico do Convento),
San Lorenzo del Escorial – Espanha
1997 Exposição Salão “Scorpio”, Punta del Este – Uruguai
1998 Exposição “Segundo Salão de Arte Latino-americana” Centro Cultural
Mexicano, Nova York – EUA
1999 Exposição Galerie “Renoir” de Le Latine, Paris – França
_____ Exposição no Salão de Eventos da Municipalidade de Taipé”, Taiwan
2000 Museu de la Perine”, Laval – França
2001 “Galeria Amal”, Punta del Este – Uruguai
2002 “Pintores de la Copa del Mundo” – Busan, Chon Ju e Seul – Coréia
_____ Exposição “Galeria Malletz”, Paris – França
Monumentos, esculturas e eventos
“Tañarandy, el arte con la gente”
Criador do projeto “Tañarandy”, que desde 1992 vem se realizando na
comunidade ignaciana de Tañarandy. Sem nalidades lucrativas, é um projeto
de desenvolvimento social através da arte e conta com a participação ativa
da comunidade.
Tañarandy se assemelha a uma galeria de arte popular ao ar livre. São
conhecidas as pequenas tabuletas pintadas nas fachadas das casas simbolizando
a atividade e o nome da família que ali reside.
Ali se realiza a “Sexta-feira Santa de Estacioneros”, uma grande instalação
artística conhecida internacionalmente como “Barroco efêmero” que conjuga
Koki Ruiz
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elementos da religiosidade popular e da arte universal: o canto plangente dos
estacioneros, os candeeiros de ape, a música barroca e as representações ao
vivo de grandes obras da arte universal, pelos membros da comunidade.
Criador do projeto “Teatro El Molino”: Sem ns lucrativos e com os
mesmos objetivos foi transformado um velho moinho de arroz para que assim
os acionados ao teatro, de todas as idades, contem com um espaço próprio.
Monumentos
“El Reloj Solar” – Está localizado no acesso à cidade de San Ignacio –
Misiones, Paraguai (Primeira Redução fundada pelos jesuítas)
É um monumento que celebra os indígenas que defenderam sua cultura
contra a invasão estrangeira, simbolizando-a com um relógio solar e o “bom
uso do tempo”. Os indígenas rebelados vêem o nascer do sol com símbolo
de vida, e os condescendentes se voltam para o ocaso.
“La Caballería del 70”, San Ignacio Misiones – Paraguai.
“La Fuente de los Reducidos”, Praça Central de Santa Rosa, Misiones
(Antiga Redução jesuítica). Monumento em pedra.
“El Kurupi”, Praça de Santa Rosa – Paraguai.
Talhado em pedra, foi criado para um povo eminentemente agrícola. O
Kurupi, nio da cultura guarani, simboliza a fecundidade e a colheita
prolíca.
“El Kurupi II”, Parque da “Arte Latino-americana”, Seul – Coréia.
Cometários sobre suas obras
“Koki Ruiz cria obras imersas em um pós-impressionismo desenhado
com cores primárias. Suas “Maternidades” são plasmadas com mulheres de
grande vitalidade e são carregadas de primitivismo. A série “Os Ofícios” é
muito bem resolvida; sua pintura santica o trabalho, buscando o contraste
com negros e outros tipos de obscuridade bosquejando o corpo com dicção
expressionista, insinuando-se apenas com um golpe do dedo ou da espátula,
porque o pintor se resguarda para delimitar as precisões”.
(Carlos García Osuna – Diário ABC de Madrid – Suplemento Cultural).
Koki Ruiz
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“Os personagens do paraguaio Kokí Ruiz se movem pelas telas com cores
insulares e jogos de inocência carregados de ritmo entre luzes e sombras de
traços doces, longos, atrevidos, num ambiente cheio de expectativas”.
(Lidia Garrido – Revista “El Siglo” – Espanha).
A exposição de Koki Ruiz descobre uma arte cheia de força e cor. Sua
pintura se abre como uma dimensão a mais na forma de entender o manejo dos
pincéis e como um modo diferente de interpretar a força da cor para perlar
o pequeno detalhe esquecido entre um tom e outro. Sem formas difíceis, nem
rebuscadas, com uma conjugação precisa da simplicidade e da luminosidade,
sua pintura trouxe mundos distantes e próximos, mundos semelhantes e
diversos. Por isso, e pela singularidade de suas obras, a passagem de Ruiz por
San Lorenzo del Escorial foi um êxito”.
(Margarita Martín – Diario “El Mundo” – Madrid – Revista “Sierra”).
Koki Ruiz conhece a virtude do sincio. E esse exercio pessoal, essa pausa
entre os atos do mundo, lhe permite captar a realidade com intuitiva nitidez.
Seus personagens embora vivos, reconhecíveis e quotidianos se afastam
da mera representão e chegam a s transformados, carregados de mutão,
após percorrer o amplo espaço de seu tempo interiorNo território recente de
sua experncia aparecem o amor secreto, a cumplicidade dae e seulho; a
nudez de mulher cujas formas aludem vigorosamente a um erotismo adolescente,
violento e atrevido, lutando por libertar-se de tabús e imposições.
Sua prática artística, honesta e sem preocupação pelas modas culturais,
é uma característica de seu trabalho. Elege o homem como objeto de suas
preocupações conceituais e coloca-o em um ambiente próprio, vivamente
harmonizado com as expressões de seu corpo, o ritmo de suas atividades e
seu universo cromático”.
(Adriana Almada – Jornalista – Assunção – Paraguai).
Koki Ruiz
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
“Dizem que o homem não mudou em mais de dois mil anos e que nada
mais se pode propor sobre sua condição e seus conitos que não tenha sido
proposto pelos gregos.
Dizem que nas Artes, quando o homem é o tema, nada de novo pode ser
dito. Talvez seja certo, mas em troca existe a opção da forma com que se proe
o que se diz, escreve ou pinta. Mais denidamente, a alternativa de renovar
temas, revitalizar interrogações, segundo a agudeza ou o individualismo exposto
no discurso. Elege o homem como objeto de suas preocupações conceituais e
coloca-o em um ambiente próprio, vivamente harmonizado com as expressões
de seu corpo, o ritmo de suas atividades e seu universo cromático.
Isso vem à mente quanto à pintura de Koki Ruiz, a sua linguagem esquiva
para ser localizado no tempo, a sua concepção simplesmente clássica em seu
aspecto temático”.
(Juan Manuel Prieto – Crítico de Arte – Fotógrafo – Jornalista –
Assunção – Paraguai).
DEP
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Construtora
Norberto Odebrecht
Destaques da Odebrecht em 2007
na América do Sul
O
compromisso da Construtora Norberto Odebrecht com o
desenvolvimento socioeconômico dos países sul-americanos remonta ao ano
de 1979, quando se iniciou o processo de internacionalização dos negócios da
empresa. As primeiras e bem-sucedidas obras no exterior foram a construção
da Hidrelétrica de Charcani V, no Peru, e a realização do desvio do Rio Maule
para o sistema hidrelétrico de Colbún-Machicura, no Chile. Estes primeiros
contratos assinalaram o início da interação com outras nações, culturas e
tecnologias; dinâmicas estas que viriam a apoiar o desenvolvimento das
equipes da empresa e gerar resultados econômicos para o Brasil e os países
clientes. Além disso, estas iniciativas lançaram as bases para o estabelecimento
do relacionamento de conança que a Odebrecht mantém até o presente
com seus clientes da América do Sul, assim como abriram as portas para
a conquista de parcerias e oportunidades de longo prazo para a empresa e
seus contratantes.
Em 1987 a Odebrecht iniciou sua atuação no Equador com a construção
do projeto de irrigação Santa Elena, na região de Guayaquil. Em 1989,
www.odebrecht.com.br
240
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construiu a Hidrelétrica de Pichi-Picún-Leufú, na Patagônia, sua primeira
obra na Argentina. No decorrer da década de 1990, a Odebrecht passa a atuar
na América do Norte e Ásia, expande sua presença na África e aprofunda
decisivamente sua inseão nos países da América Latina. No Peru, desenvolveu
a segunda etapa do projeto Chavimochic, iniciado em 1990, para irrigação
de áreas desérticas no país. Em 1992, começou a operar na Venezuela, com
a construção do Centro Lago Mall, no Uruguai, onde executou as obras de
saneamento de Montevidéu, e no México, com a execução da barragem de
aproveitamento múltiplo de Los Huites. No ano seguinte (1993), leva seus
serviços a dois novos países, após ganhar as concorrências para construir a
Ferrovia La Loma-Santa Marta, na Colômbia, e a rodovia Santa Cruz de La
Sierra-Trinidad, na Bolívia.
Atualmente, a Odebrecht opera projetos em quatro continentes, reunindo
mais de 46 mil integrantes, de 20 diferentes nacionalidades, cinco religiões e
que falam cerca de duas dezenas de línguas. Ademais, nos últimos cinco anos,
ingressou em quatro novos mercados: República Dominicana, Emirados Árabes
Unidos, Panamá e Líbia. Contudo, mesmo com sua projeção em continentes
no além-mar, a América do Sul se mantém como nosso principal mercado e
fonte de nossos mais consolidados laços com clientes e as comunidades às
quais servimos.
Seguindo a macrotendência global de crescimento econômico e promoção
do comércio internacional, a região sul-americana demanda progressivamente
que lhe seja provida malha infra-estrutural para viabilizar o incremento da
produção e a melhoria do transporte. A demanda por estes fatores essenciais
para integrar as cadeias produtivas regionais, formar economias de escala e
aprimorar as condições de competitividade dos produtos sul-americanos,
permitiu à Odebrecht ser contemplada durante o ano de 2007 com novas
oportunidades de trabalho e novas chances de reiterar seu papel de liderança
no setor de Engenharia Civil na América do Sul.
Em 2007, a Odebrecht completou 20 anos de atuação no Equador.
Durante este peodo realizamos 10 projetos de grande porte, entre as
áreas de transportes, irrigão, energia e saneamento. Em junho de 2007,
o governo equatoriano recebeu a Usina Hidrelétrica de San Francisco, a
mais recente obra conclda pela Odebrecht no país. A usina aproveita a
descarga das águas turbinadas da Hidrelétrica de Agoyán e tem potência
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
instalada de 230 MW. Desde sua inauguração, as duas turbinas estão
produzindo 1.446 GW/hora ano, o que equivale a 12% de toda a energia
disponível no Equador.
Usina Hidrelétrica de San Francisco, no Equador
San Francisco impressiona, pois é composta quase que totalmente de
neis, galerias e cavernas subterrâneas. Dessa forma, é invisível para quem passa
pela rodovia que acompanha o rio Pastaza e que leva à Amazônia equatoriana,
alguns quilômetros à frente. No auge dos serviços aproximadamente mil
trabalhadores empregados eram da região. Os outros 600 moravam em dois
alojamentos, um próximo das obras e outro na cidade de Baños de Água Santa,
onde residem cerca de 10 mil habitantes.
Atualmente, a geração hidráulica responde por 52% da matriz energética
equatoriana. Para suprir a demanda remanescente, o Equador faz uso de usinas
termelétricas, o que inibe uma maior diversicação em sua matriz energética.
Contudo, mesmo recorrendo a essas fontes alternativas, o país ainda necessita
importar energia da Colômbia e do Peru. Neste cenário, o Projeto Hidrelétrico
San Francisco, surge como um empreendimento de caráter estratégico para
compensar o atual décit de energia elétrica no Equador.
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No ano 2000, em Brasília, 12 chefes de Estado sul-americanos
assinaram o compromisso de construir nove eixos de integração no
continente, em um projeto que cou conhecido como IIRSA (Iniciativa
para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana). Quatro
desses nove eixos cruzam o território peruano. De um deles, o Eixo
Interoceânico, a Odebrecht participa intensamente: constrói o Corredor Sul
(conhecido como IIRSA Sul), com 2.603 km, que conecta Urcos a Iñapari,
e o Multimodal Amazonas Norte (IIRSA Norte), formado por uma rodovia
de 955 km que liga o Porto de Paita, na costa peruana, ao porto uvial de
Yurimaguas, na região amazônica do Peru, integrando-se às hidrovias que
chegam a Iquitos e Manaus.
No Peru, ao longo de julho foram entregues à população peruana alguns
trechos das obras rodoviárias em andamento. No Corredor Interoceânico
Sul obra que beneciará 10 departamentos peruanos (30% do território
do país) e 6 milhões de pessoas (20% da população) – a Odebrecht entregou
parte da primeira etapa do trecho 2, que compreendeu a pavimentação de
40 km de via e construção de 42 pontes, entre outros serviços, nos distritos de
Ccatca e Ocongate, em Cusco. Entregou também a primeira etapa do trecho
3, no trajeto Ponte Inambari-Iñapari, que compreendeu a pavimentação de
60 km de estrada, 162 m de pontes e muros de contenção, entre outras obras.
no Corredor Viário Norte, foram concluídos os trechos 1, que faz o trajeto
Yurimaguas-Tarapoto, e 5 e 6, trajeto Paita-Piura-Olmos.
As obras em execução também beneciaram a sociedade no âmbito
sócio-ambiental. A equipe do Corredor Viário Interoceânico Sul implementou
o projeto Estrategia Integral de Acción y Contribución Socio Ambiental e
estruturou dois planos de ação para o período de execução das obras (2006-
2010). 1) Plano de Manejo de Assuntos Sociais, integrado pelos programas
“Relações Comunitárias”; “Contratação de o-de-Obra Local”; “Negociação
de Terrenos”; e “Incentivo à Produção Local”. 2) Plano de Responsabilidade
Social, integrado pelo “Programa de Formação em Hotelaria e Turismo” e
“Programa Itinerante de Apoio à Saúde e Educação”. Entre os resultados
das ações, destacam-se 11.500 pessoas beneciadas pelo programa itinerante,
mais de 60% do efetivo total do contrato proveniente de mão-de-obra local
e emissão de documentos de identidade para mais de quatro mil crianças e
jovens, entre outros.
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Obras em execução na IIRSA SUL, Trecho 2, no Peru
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Além destas realizações, a Odebrecht mantém em andamento as obras
do Projeto Olmos de irrigação e geração de energia através da construção de
um sistema de transvase de águas através do Tunel Transandino e da represa de
Limón. Ademais, ainda a Planta de GLP de Pampa Melchorita e o sistema
de água potável de Iquitos. Atualmente, a Odebrecht é a maior exportadora
brasileira de serviços de engenharia para o Peru onde atua há quase 30 anos
e já desenvolveu mais de 50 projetos.
Na Argentina, a Odebrecht iniciou recentemente a constrão das
obras de ampliação do Sistema Argentino de Transporte de Gás. Trata-se de
dois novos contratos, compreendendo a construção de loops, ou seja, novos
trechos de gasodutos paralelos a outros existentes. No gasoduto Cammesa
serão executados 979 km de gasodutos e 12 plantas de compressão. o projeto
do gasoduto Albanesi terá 648 km de extensão e três plantas de compressão.
Os dois gasodutos cortarão o país desde o extremo sul ao norte e, quando
concluídos, aumentarão a capacidade de transporte do sistema argentino de
gás em 15 milhões de metros cúbicos/dia.
Na Venezuela, onde a Odebrecht completa 15 anos de atuação. No
ano de 2007, o destaque principal vai para a construção da terceira ponte
sobre o Rio Orinoco. Com 4,8 km de extensão, torres que chegarão em 137m
de altura e uma ferrovia em sua parte inferior, a ponte ligará os municípios
de Caicara del Orinoco, no Estado Bolívar, e Cabruta, no Estado Guárico. A
obra foi iniciada em 2007 e incluirá ainda dois viadutos, um ao norte com 3,5
km e outro ao e sul com 2,5 km de extensão.
Igualmente importante foi a conquista do projeto de construção da
Hidrelétrica Manuel Piar (Tocoma), a primeira obra no setor de energia que
a Odebrecht realiza no país. A obra iniciada também em 2007 tem lugar em
Tocoma (15 km a jusante da Hidrelétrica Simón Bolívar), em Guayana, último
ponto de aproveitamento do Complexo Hidrelétrico do Baixo Caroní, o
segundo maior rio da Venezuela. Quando nalizada, a hidrelétrica de Tocoma
terá capacidade instalada de 2.160 MW.
Também relevante foi o início da construção da Linha 5 do Metrô de
Caracas, que tem extensão prevista de 7,5 km e 6 novas estações que deverão
ser conectadas a duas outras existentes. A obra possibilitará o atendimento
de 227 mil a 300 mil passageiros por dia e faz parte do conjunto de obras no
setor de transportes na Venezuela que tiveram início com a construção da
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linha 4 do Metrô de Caracas, em 1998, e a construção da Linha 3 (que está
em andamento, terá 5,9 km, 4 estações e atenderá à 240 mil passageiros ao
dia). Além destas obras, iniciou-se também em 2007 a extensão do Metrô de
Los Teques, com a construção de uma nova linha de 12,1 km e seis estações
no município da região metropolitana de Caracas.
Na Bovia, a Odebrecht constrói a rodovia El Cármen Arroyo
Concepcn, obra com 102 km de extensão e conforma o trecho 5 da
rodovia que ligará Santa Cruz de la Sierra a Puerto Suárez. Nas obras o
empregadas 900 pessoas, das quais 95% são membros da comunidade local.
A estrada nalizará a ligação entre Bolívia e Brasil. O trecho 5, contratado pela
Administradora Boliviana de Carretera (ABC) e nanciado pela Corporação
Andina de Fomento (CAF) no valor US$ 75 milhões, faz parte do Corredor
Bioceânico, que ligapor terra portos brasileiros, como o de Santos, à costa
do Peru e do Chile, o que irá facilitar e baratear o transporte entre o Mercosul
Obras da Rodovia El Cármen – Arroyo Concepción, Corredor Bioceânico, na Bolívia
Koki Ruiz
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e a Comunidade Andina. Ademais, a constrão implicará em signicativa
melhora nas condições de transporte entre a fronteira do Brasil e a província
de Santa Cruz, percurso que atualmente exige pelo menos 20 horas de viagem
de trem, carro ou ônibus, mas que passará a demandar menos de 8 horas de
locomoção quando a estrada estiver conclda em meados de 2008.
As ações da Odebrecht na Bolívia se estendem ainda às comunidades
vizinhas de suas obras. É o caso do povoado de Yacuces, que ganhou iluminação
e reforma na praça principal, além de uma Campanha de Assistência Médica
Social que inclui consultas gratuitas com médicos. No total, a Odebrecht
atendeu, com ações de caráter social, mais de 3 mil bolivianos. São ações que
o desde a retirada de toneladas de lixo de um terreno baldio até o atendimento
médico, quando solicitado, de pessoas da comunidade.
Os destaques apresentados acima servem para ilustrar a relevância que
a América do Sul tem desempenhado para a Odebrecht e como serviços de
engenharia em infra-estrutura contribuem tanto para o desenvolvimento dos
países sul-americanos quanto para a melhoria na qualidade de vida dos cidadãos
de nosso continente. Desde que iniciou sua internacionalização, a Odebrecht
realizou mais de 700 obras em quatro continentes em que atua e a América
do Sul contribuiu largamente para estas conquistas.
Atualmente, mais de 65% da receita bruta anual da Odebrecht é
advinda de obras fora do Brasil, enquanto em 1985 as obras no exterior
representavam o mais 30% dos contratos em carteira da empresa. Em
ns de 2006, o número de integrantes da empresa no exterior superou pela
primeira vez o total empregado no Brasil: hoje, a Odebrecht tem mais de
26 mil integrantes em terras estrangeiras e quase 20 mil em solo nacional.
Estes dados, somados às conquistas e realizações mencionadas, evidenciam
que o ano de 2007 representou mais uma importante etapa do corrente
processo de internacionalização da empresa, uma dinâmica que nos permite
disponibilizar maiores subsídios para desenvolvimento integrado das nações
sul-americanas e nos incentiva a sempre servir melhor às comunidades nas
quais estamos inseridos.
247
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Grupo
Andrade Gutierrez
América do Sul: o desao da infra-estrutura
E
m matéria de política externa, o discurso do atual governo brasileiro
dá alta prioridade à América do Sul, cuja integração é vista como um projeto
político, indo, pois, bem além da mera noção de entrosamento econômico dos
países da região. Essa ênfase na nossa circunvizinhança geográca certamente
não envolve um abandono do velho ideal de solidariedade latino-americana,
mas parece dar-lhe uma orientação mais pragmática, no sentido de delimitar
melhor o que é possível fazer em cada área.
Tal situação torna-se mais clara pela observação da nossa prática
internacional desde o começo do atual governo do que pela simples leitura das
manifestações públicas de nossas mais altas autoridades durante a campanha
eleitoral de 2002 ou logo no início da atual gestão. Assim, existe um claro
interesse no desenvolvimento de relações mais estreitas com o México e
mesmo com países da América Central e do Caribe, além de uma presença
crescente de empresas brasileiras na área. Aparentemente por considerações
de factibilidade, o grande projeto político integracionista limita-se, entretanto,
à América do Sul, que não seria realista estendê-lo a países já diretamente
vinculados aos Estados Unidos por laços jurídicos de conteúdo econômico.
www.agsa.com.br
248
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Isso não signica, porém, que não estejamos desenvolvendo ou que não
pretendamos desenvolver, neles e com eles, uma forte presença brasileira.
Em certo sentido, poder-se-ia dizer que, no seu discurso básico, o
governo Lula retomou, aparentemente com ainda maior ênfase, parte da
visão regional do de Fernando Henrique Cardoso, a cuja iniciativa se deve a
realização da primeira reunião de cúpula dos países da América do Sul. Na
época, em artigo publicado na Carta Internacional
1
, seu Ministro das Relações
Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, deixou claro ter havido uma decisão de não
incluir países “vinculados de forma mais próxima e direta à América do Norte,
em particular aos Estados Unidos”, numa reunião cujo objeto deveria ser um
“projeto pragmático de organização do espaço sul-americano”. Apesar de
quaisquer diferenças de meios e de estilos, há, pois, uma certa continuidade
no sentido do estabelecimento, no continente, de um novo regionalismo, o
sul-americanismo, distinto tanto da noção monroísta de pan-americanismo
quanto do latino-americanismo tradicional, de remota inspiração bolivariana.
Esse novo regionalismo deniria melhor os tipos de atuação adequados a
cada região, mas não excluiria antes procuraria reforçar os laços com
outros países da América.
A orientação atual trataria assim de, sem choques ou atritos com a
“hiperpotência” setentrional, contornar o pan-americanismo absorvente, que
tenderia, pela dinâmica das forças em presença, a levar, de maneira mais ou
menos formal, todos os países do continente para a órbita de Washington.
Por outro lado, haveria a intenção de, no dizer de nosso atual Ministro das
Relações Exteriores, Celso Amorim, desenvolver com os Estados Unidos
uma relação madura, de caráter mais estratégico, na qual nosso país seria
visto como “parceiro indispensável para a estabilidade da América do Sul e
mesmo da África”. Tratar-se-ia, pois, de assegurar nossa posição geopolítica
na América do Sul, ao mesmo tempo em que se procuraria dar um salto
qualitativo nas relações com os Estados Unidos e se evitaria uma situação
de manejo mais delicado, ao deixar uma espécie de indenição construtiva à
forma de relacionamento concreto com aquela área de facto particularmente
vinculada aos Estados Unidos. Com alguma simplicação, poder-se-ia
dizer que nossa visão geopolítica do continente se escalona em círculos
1 “Cúpula da América do Sul”, Carta Internacional, no. 87, ano VIII, maio de 2000.
249
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
concêntricos: no primeiro, coloca-se a América do Sul, que desejamos ver
integrada numa estreita comunidade de Estados Democráticos; algo mais
distante em termos da denição prévia de nossa ação futura, situar-se-iam
o México, a América Central e o Caribe, onde nossa capacidade de ação
diplomática seria menos signicativa, inclusive em função dos fortes vínculos
daquela área com os Estados Unidos; nalmente, os Estados Unidos e o
Canadá, com os quais nossas relações teriam um caráter claramente distinto
das duas regiões anteriores.
Assim, em vez das opções mais abrangentes e algo difusas do pan-
americanismo e do latino-americanismo, que efetivamente pouco prosperaram
no passado, propõe-se hoje o Brasil, em sua política regional, dar ênfase à
integração da América do Sul a partir de um projeto integrativo já existente,
o Mercosul, apesar de suas conhecidas mazelas e limitações. Para tanto, seria
preciso fortalecer o que existe, habilitando-o assim a tornar-se o núcleo de
Usina binacional de Itaipu (Brasil – Paraguai)
Foto: Arquivo Andrade Gutierrez
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
um futuro bloco integrado subcontinental. O objetivo último é, portanto, a
integração da América do Sul como um todo, aparecendo o Mercosul como
uma primeira etapa ou um instrumento necessário para a consecução
daquela meta.
Trata-se de um projeto altamente positivo, tanto para o Brasil como para
o conjunto da América do Sul, já que a cooperação sistemática e abrangente
entre todos os países do nosso subcontinente vistos em conjunto possibilitará
a exploração de sinergias potenciais, até hoje adormecidas ou esquecidas.
E esse caráter positivo não se deve apenas ao evidente incremento da
projeção política externa dos países envolvidos em tal empreendimento, mas,
em sentido mais estrito e concreto, a áreas como a defesa do meio ambiente
e o desenvolvimento de uma infra-estrutura regional, indispensáveis ao
desenvolvimento econômico pleno e sustentável da área. Resta saber se tal
esquema é viável, ou mais exatamente, dentro de que horizonte temporal ele
seria exeqüível.
Pela própria essência do projeto, a primeira etapa para a sua concretização
seria o fortalecimento da estrutura criada pelo Tratado de Assunção, que
a pedra angular do projeto sul-americano de Brasília seria um Mercosul
que zesse jus ao seu ambicioso rótulo de Mercado Comum do Sul. Como
grande parte dessa etapa se resumiria no cumprimento de compromissos
assumidos naquele instrumento internacional, duas perguntas que se
impõem de imediato. A primeira é por que, decorridos cerca de dezessete anos
da assinatura do referido tratado, tão poucos desses compromissos puderam
ser efetivamente cumpridos. A segunda é se, hoje, haveria condições de, num
prazo razoável, estabelecer um mercado comum e o quadro institucional
necessário ao seu funcionamento. Em outras palavras, se os quatro signatários
do Tratado de Assunção consideram poder realizar hoje aquilo com que se
comprometeram em 1991, mas até agora não conseguiram concretizar.
Em termos econômicos, demográcos e territoriais, Brasil e Argentina
representam cerca de 95% do Mercosul. Desse ponto de vista, os dois
países praticamente são o Mercosul. O progresso do conjunto passa, pois,
necessariamente, por um entendimento político profundo e estável entre os
dois grandes parceiros sobre o que ambos solidariamente consideram que
aquele agrupamento político-econômico deve representar, no continente e
no mundo, para os países que o integram. Enquanto qualquer dos dois ou
251
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
ambos – perceber o Tratado de Assunção como um mero acordo comercial
ou como parte apenas de sua política sub-regional; enquanto Brasília e
Buenos Aires não tiverem uma percepção comum ou pelo menos percepções
convergentes sobre como uma genuína integração dos países do Mercosul
(e a mais longo prazo de toda a América do Sul) afetará positivamente a
projeção internacional e o desenvolvimento sustentável de cada um dos dois
países e que, conseqüentemente, se impõe uma atuação acordada e solidária
de ambos na área externa; enquanto tal situação prevalecer, será impossível
chegar a efetivos compromissos políticos e a transformações institucionais
capazes de fazer do Mercosul algo mais do que uma espécie de Mini-Aladi.
E o que é pior. o risco de que como aparentemente vem acontecendo
sua relevância para os próprios Estados-Partes passe a diminuir em vez
de aumentar.
Assim, uma convergência de percepções políticas entre o Brasil e a
Argentina é essencial para o avanço do Mercosul mas não basta. O progresso
de um agrupamento político-econômico exige um grau de eqüidade no seu
funcionamento que assegure o desejo dos sócios menores de contribuírem para
o avanço do conjunto. Hoje, nem paraguaios nem uruguaios parecem acreditar,
entretanto, que o processo de integração de que vêm participando assegure
tal eqüidade ou que o quadro institucional do Mercosul, tal como existe,
seja capaz de corrigir as injustiças percebidas ou de dirimir adequadamente
as divergências entre os Estados que o integram. No caso do Paraguai, é
ilustrativo que a Senhora Bianca Ovelar, candidata à presidência do seu
país nas eleições de abril próximo, se tenha referido muito recentemente,
em entrevista a um jornal brasileiro
2
, ao sentimento dominante no seu
país de repúdio “à histórica unilateralidade do Brasil quando se trata de
questões bilaterais”. Embora assinalando que esse sentimento mudou de
forma expressiva durante o governo do Presidente Lula”, explicitou que
“ainda temos de avançar muito para ter um relacionamento plenamente
justo”. Não importa examinar aqui se tais acusações se justicam ou não.
O que se pretende ressaltar é que, se o existisse na opinião pública do
país vizinho uma signicativa percepção de injustiça, fundada ou não,
semelhantes armativas o teriam sido feitas por alguém que disputa a
2 O Globo, 10 de fevereiro de 2008, p. 37.
252
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
presidência do Paraguai. No tocante ao Uruguai, são notórios seu interesse
em concluir um acordo bilateral de comércio com os Estados Unidos o
que provavelmente teria incidências negativas sobre o sistema oriundo do
Tratado de Assunção e sua insatisfação com o Mercosul tal como existe
hoje. Paralelamente, a desavença com a Argentina em torno da construção
de uma fábrica de celulose em território uruguaio, porém perto da fronteira
com aquele país vizinho, mostra a falta de regulamentação adequada numa
área-chave como a proteção do meio ambiente e a inecácia das instituições
do mercado comum para dirimir controvérsias sobre questões relevantes
para a integração regional.
Tais divergências e frustrações são comuns a todos os esquemas de
integração onde existem grandes assimetrias materiais entre os Estados-
Membros. Resolvê-las, de modo a evitar que percepções de injustiça, fundadas
ou não, venham a minar a estabilidade da integração desejada, é, entretanto,
indispensável. O Mercosul não pode fugir a essa regra.
Note-se, porém, que até agora estivemos tratando essencialmente de
problemas ligados diretamente ao Mercosul, ainda que tenhamos deixado
claro que ele é apenas a etapa inicial no longo caminho para o objetivo
último de integração da América do Sul. E embora com as especicidades
inerentes a cada situação nacional, os problemas exemplicativamente
mencionados até aqui tenderão a multiplicar-se à medida que se amplie o
âmbito da integração.
Numa área de integração ampla e caracterizada por grandes assimetrias
internas, como é o caso da América do Sul, colocam-se inevitavelmente
dois tipos de problemas. O primeiro é a necessidade de um certo grau de
harmonização das posições e percepções dos sócios maiores no tocante às
linhas mestras e aos objetivos centrais da integração. Tal harmonização é
indispensável para que as divergências inevitáveis no curso das deliberações
nos órgãos decisórios comunitários possam manter-se em níveis manejáveis,
de modo que os principais protagonistas tenham condições de atuar de
forma convergente, promovendo o avanço do projeto comum. O exemplo
clássico é o da cooperação franco-alemã na construção da Europa atual, que
permitiu evoluir de um passado de conitos sangrentos para a edicação
da União Européia. O segundo é o estabelecimento de um sistema cujo
funcionamento assegure um mínimo de eqüidade estrutural na distribuição,
253
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
entre os seus integrantes, dos benefícios da integração, de modo que mesmo
os sócios menores sintam que as concessões tópicas necessárias são mais do
que compensadas pelas vantagens decorrentes do avanço do projeto comum.
De novo, a construção da União Européia, para a qual foi preciso criar
mecanismos capazes de, sem prejuízo da integração econômico-comercial,
promover a prosperidade de regiões menos aquinhoadas, é um exemplo
relevante. Tais mecanismos possibilitaram a integração de algumas das
economias mais avançadas do mundo com outras relativamente pobres na
época de suas respectivas adesões e, assim, muito contribuíram para viabilizar
a expansão de uma Europa de Seis (os signatários do Tratado de Roma) para
os vinte e sete que hoje integram a União Européia.
Evidentemente, situações mencionadas acima a título exemplicativo
e que ilustram, com relação ao Mercosul, os dois tipos de diculdades
indicados no parágrafo anterior tenderão a multiplicar-se e acentuar-se
na medida em que se trate de estender o processo de integração a toda a
América do Sul. Isso é perceptível em países hoje apenas associados ou
em processo de adesão ao Mercosul. Sem aprofundar o exame nem, muito
menos, entrar no mérito das posições respectivas, é fácil perceber que a
orientação de política externa e o ativismo do governo venezuelano, por
exemplo, divergem substancialmente da posição de alguns países da região
ao mesmo tempo em que se aproximam da de outros ou a inuenciam. Isso
não nos pode impedir, entretanto, de ter presente que a Venezuela é peça-
chave em qualquer esquema geral de integração da América do Sul. Por outro
lado, é igualmente válido apontar que, na eventual negociação de uma
adesão plena, um país como a Bolívia, hoje associado ao Mercosul, terá bons
argumentos para pleitear dispositivos capazes de compensar algumas de suas
atuais desvantagens econômicas.
O problema é particularmente complexo porque cada situação
nacional, embora enquadrável nas categorias gerais acima apontadas, tem
peculiaridades que tornam extremamente difícil sua solução satisfatória no
quadro de fórmulas gerais aplicáveis a todos os Estados-Membros. Assim,
pode ser relativamente simples formular princípios gerais de eqüidade ou
de compensação para situações de agrante assimetria, porém muito mais
árduo passar dpara fórmulas operacionais capazes de compensar falhas de
eqüidade reais ou percebidas. Da extrema diculdade de operacionalizar
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
um instrumento abrangente como o Tratado de Assunção dando
cumprimento efetivo aos compromissos e boas intenções nele contidos
e, mais ainda, fazer o mesmo com algum ainda hipotético instrumento
semelhante que abarque toda a América do Sul se e quando for possível
concluir um.
Em suma, temos uma meta de política regional válida, cuja consecução
muito poderia aumentar a projeção internacional dos países envolvidos, bem
como contribuir para encaminhar a solução de problemas comuns da região e
que, em tese, é aceita por todos os participantes potenciais nenhum país sul-
americano é declaradamente contrário à integração do nosso subcontinente.
O grande problema é que distintos países têm, compreensivelmente,
percepções diferentes do que tal integração deveria ser na prática. Conciliar
tais divergências a ponto de possibilitar o estabelecimento de um sistema
de integração que, ao mesmo tempo, seja aceitável por todos os países da
região e além de um elenco de boas intenções e de compromissos que
se mantenham apenas no papel é, entretanto, algo que provavelmente se
conseguirá a muito longo prazo. E, tomando emprestado a conhecida frase
de Keynes, a longo prazo estaremos todos mortos...
Que fazer? Abandonar um projeto político meritório porque não
pode ser realizado plenamente num futuro previsível? Tentar levar avante a
negociação prematura de algum grande esquema integracionista, num esforço
quixotesco que poderá terminar por desacreditar um objetivo desejável? Ou
partir para empreendimentos menos abrangentes e por isso mesmo mais
exeqüíveis – que possam, entretanto, contribuir concretamente para a efetiva
aproximação entre países da América do Sul e, conseqüentemente, de forma
direta ou indireta, para o objetivo último da integração regional?
Em tese, qualquer empreendimento que envolva mais de um país sul-
americano na consecução de um objetivo de interesse comum contribui para
desenvolver hábitos de cooperação entre eles e, portanto, ainda que de maneira
modesta e indireta, facilitará um esforço maior no sentido da integração
regional. É evidente, porém, que áreas que terão de ser contempladas
em qualquer esquema integracionista e onde, conseqüentemente, tais ações
transnacionais de âmbito limitado terão uma incidência mais direta sobre
a meta nal. Assim, arranjos tendentes a facilitar o comércio entre países
vizinhos, entendimentos binacionais ou plurinacionais relativos à proteção
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
do meio ambiente ou empreendimentos relacionados com a infra-estrutura
regional ou mesmo nacional que envolvam entidades de mais de um país
cairiam em tal categoria. Nesse contexto, é essa última categoria a infra-
estrutura regional que parece ser a mais relevante, na medida em que é
essencial para a integração física dos países da América do Sul, sem a qual a
desejada integração político-econômica será pouco mais do que uma expressão
retórica. Abundando no óbvio, sem rodovias, ferrovias e hidrovias ecientes,
bem como uma adequada rede de comunicações, o mais bem concebido
dos tratados de integração valerá pouco mais do que o papel em que for
escrito. Assim, a diplomacia e a engenharia civil terão de andar de mãos dadas
se quisermos tornar realidade o objetivo maior da integração econômica
sul-americana.
O Brasil encontra-se em situação particularmente favorável para
desenvolver tais ações. Maior e mais desenvolvida economia da América
do Sul, com uma população de mais de 180 milhões de habitantes, é um
mercado particularmente atraente para os países vizinhos. Pode, pois,
com mais probabilidade de êxito do que a maioria, promover arranjos
geogracamente limitados que, mesmo sem a abrangência substantiva de um
esquema de integração, levem em conta eventuais assimetrias e contribuam
para o desenvolvimento sustentável próprio e dos parceiros.
Ao mesmo tempo, a extensão territorial do nosso país que o torna
limítrofe de dez dos doze países da América do Sul e o adiantamento da
nossa indústria de engenharia civil tornam particularmente importante para
nós o desenvolvimento de uma rede regional de transporte e comunicações
e dão-nos condições de contribuir destacadamente para a sua construção.
Recorde-se, a título ilustrativo, que numa lista das cinqüenta maiores empresas
mundiais de construção civil, as únicas latino-americanas são brasileiras. Isso
explica a forte presença de empresas brasileiras como a Andrade Gutierrez
e outras, de grande porte no setor, num número considerável de países
sul-americanos, como Argentina, Equador, Peru e Venezuela. Em última
análise, a participação da iniciativa privada brasileira na realização de grandes
projetos de infra-estrutura do interesse de nossos vizinhos cria hábitos de
cooperação entre os países e contribui para a integração física da América
do Sul, algo indispensável para a concretização do objetivo unanimemente
aceito de integração político-econômica.
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
A importância acima atribuída ao desenvolvimento de uma infra-
estrutura regional adequada pelos governos do nosso subcontinente é bem
ilustrada e corroborada pelo lançamento e aprovação unânime da iniciativa
para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (Iirsa), há cerca
de oito anos. Surgida na primeira reunião de cúpula dos países da América do
Sul, realizada em Brasília, em agosto de 2000, a Iirsa é um foro de diálogo entre
as autoridades responsáveis pela infra-estrutura de transporte, comunicações
e energia nos doze países sul-americanos. Seu objetivo é desenvolver tal
infra-estrutura dentro de um enfoque regional, de modo a favorecer a
integração física dos países que dela participam e promover um padrão de
desenvolvimento territorial eqüitativo e sustentável. O órgão central da Iirsa
é o Comitê de Direção Executiva (CDE), integrado por representantes de
alto nível de todos os países participantes, pertencentes àquelas entidades
nacionais que cada governo julgue competente na matéria. Abaixo dele, o
Comitê de Coordenação Técnica (CCT) é composto de representantes não
apenas dos governos, mas também das três entidades nanceiras internacionais
diretamente relacionadas com a iniciativa BID, CAF e Fonplata. A Iirsa
elaborou uma Agenda de Implementação Consensuada 2005-2010”, que
Rodovia Interoceânica (Iirsa)
Foto: Arquivo Andrade Gutierrez
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
compreende um primeiro conjunto de trinta e um projetos, sobretudo na
área de transportes, já acordados pelos governos que dela participam.
Talvez seja ainda um pouco cedo para analisar a contribuição efetiva
da Iirsa para o desenvolvimento da integração física da América do Sul,
que obras de infra-estrutura são demoradas por sua própria natureza.
O trabalho por ela feito até agora e nele incluo tanto o esforço de
coordenação plurinacional como as obras concretas de grandes empresas
de engenharia como a Andrade Gutierrez parece, entretanto, ilustrar e
corroborar a sugestão central deste artigo, que é a conveniência de concentrar
esforços em empreendimentos substantiva e/ou geogracamente limitados,
mas que representem uma contribuição signicativa para qualquer esquema
de integração mais abrangente. o se trata evidentemente de abandonar
a idéia mais ambiciosa de integração político-econômica dos países sul-
americanos, mas simplesmente de tirar certas ilações práticas de fatos
que parecem indiscutíveis. O primeiro é que, embora desejável, aquele
projeto grandioso de integração de toda a América do Sul suscita, pela sua
envergadura, diculdades muito maiores e, conseqüentemente, sua realização
demanda muito mais tempo. Nesse interregno, iniciativas concorrentes ou
conitantes certamente surgiriam, tornando ainda mais problemática a
realização do grande projeto subcontinental. Em certo sentido, foi o que
ocorreu com o lançamento da Iniciativa para as Américas, do Presidente
Bush (pai), de que terminou resultando a proposta já bem mais concreta da
Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). No mínimo, tal processo
distraiu a atenção dos países latino-americanos da idéia de uma possível
integração entre eles com a miragem da abertura irrestrita do imenso
mercado dos Estados Unidos. No caso da América do Sul, fez mais do que
isso, seduzindo países integrantes de um sistema sub-regional existente ou
a ele associados com a perspectiva de acordos bilaterais com Washington,
considerados mais atraentes do que a integração com mercados muito mais
modestos do nosso subcontinente. O segundo é que podemos contribuir
para o êxito do projeto nal avançando em áreas menos controversas,
com empreendimentos cuja realização, embora também requeira tempo
e esforço, como no exemplo citado da construção de uma rede de
infra-estrutura regional, deverão, em muitos casos, ser levados a cabo em
qualquer hipótese, antes ou depois de formalizada a decisão política da
integração subcontinental.
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Em suma, o que aqui se defende é manter vivo o objetivo da integração
sul-americana, porém de forma realista, priorizando aquelas áreas em que
temos uma vantagem competitiva e que sejam mais relevantes para o objetivo
nal, como é o caso da construção de uma rede regional de transporte e
comunicações, e aquelas em que as dimensões e o desenvolvimento relativo da
nossa economia nos atribuam uma posição natural de especial preeminência
na América do Sul.
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Embraer Empresa Brasileira
de Aeronáutica S.A.
A internacionalização da Embraer
I
ntrodução
A Indústria Aeroespacial, da qual a Indústria Aeronáutica constitui o
segmento mais expressivo, reúne uma combinação de características altamente
demandantes, que a fazem especial e diferenciada.
Poucas indústrias no mundo embutem combinação de desaos o
formidáveis como a indústria aeronáutica: do emprego simultâneo de múltiplas
tecnologias de vanguarda, passando pela mão-de-obra de elevada qualicação,
pelas exigências de uma indústria global por denição, à exibilidade necessária
para reagir a abruptas mudanças de cenário e os grandes volumes de capital
exigidos em sua operação.
Como fruto da experiência acumulada em mais de três cadas de atuão
neste mercado competitivo, agressivo e sosticado, na Embraer costumamos
armar que o negócio aeronáutico se fundamenta em cinco grandes pilares,
que tem como base única a satisfação dos nossos clientes, fonte geradora dos
www.embraer.com.br
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resultados que permitirão o retorno aos nossos acionistas e a continuidade da
Empresa ao longo dos tempos:
Tecnologias avançadas: em decorrência de requisitos operacionais muito
exigentes quanto à segurança, de variações ambientais extremas, e de
restrições de peso e volume, a indústria aeronáutica emprega uma
multiplicidade de tecnologias de ponta e reconhecidamente constitui
laboratório para o seu amadurecimento, antes que sejam repassadas
a outros segmentos e atividades produtivas. Tecnologias complexas
e sosticadas estão presentes não somente no produto, mas também
nos métodos e processos de desenvolvimento e fabricação, sendo
necessário ainda a utilização das melhores práticas disponíveis no que
concerne à gestão nanceira e de pessoas.
Força de trabalho de elevada qualicação: para que se possa fazer uso
eficiente e produtivo compatível destas tecnologias avançadas,
é fundamental que pessoas capacitadas estejam dispoveis, em
todos os níveis de atividades da indústria: no projeto apoiado por
computadores, no relacionamento com fornecedores e clientes
baseados nos cinco continentes, na manufatura com base em quinas
de controle numérico sosticadas, e na construção de elaboradas
soluções nanceiras com instituições internacionais.
Flexibilidade: abruptas mudanças de cenário afetando a economia e a
ordem geopolítica em escala mundial, das quais o exemplo mais recente
vem dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, tem imediato
impacto sobre a instria de transporte reo e, por decorrência, sobre os
fabricantes de aeronaves. A exibilidade para adaptar-se a estas mudaas,
com mínima perda de eciência e custos, constitui característica crucial
para assegurar sua sobrevivência e preservação.
Intensidade de Capital: investimentos maciços requeridos para o
desenvolvimento de novos produtos e melhorias em qualidade e
produtividade, aliados a longos ciclos de desenvolvimento e maturação,
fazem da intensidade de capital outra característica marcante deste
negócio. Apenas para exemplicar, o desenvolvimento da nova família
de aeronaves comerciais EMBRAER 170/190 requereu investimentos
da ordem de US$ 1 bilhão e o novo avião Airbus A350 deverá requerer
nada menos que US$ 15 bilhões!
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Indústria global: os baixos volumes de produção e os custos elevados fazem
com que a indústria aeronáutica seja exportadora e global por natureza,
tanto no que se refere à sua base de clientes, como a de fornecedores,
ou das instituições nanceiras e investidores que a apóiam. A mesma
aeronave EMBRAER 170 que opera sob as cores da empresa nlandesa
Finnair no rigoroso inverno escandinavo deve igualmente suportar as
condões de elevadas umidade e temperatura do sul dos Estados Unidos,
operando sob as cores da United Express. Em ambas as circunstâncias, a
Embraer deve se fazer permanentemente presente junto a seus clientes,
provendo apoio técnico local e acesso imediato a peças e componentes,
demonstrando compromisso com o êxito de seus necios e objetivando,
sempre, a satisfão plena que assegura novas encomendas no futuro.
Ao mesmo tempo, tem que viver os diversos ambientes em que opera
para perceber tendências e mudanças nos cenários, positivas ou adversas,
e ter a capacidade de reagir com rapidez.
Legacy 600
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Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Todas essas características tornam a indústria aeronáutica um negócio, ao
mesmo tempo, fascinante e de elevado risco. O insucesso de um novo produto
pode implicar a inviabilidade e conseqüente saída do mercado da empresa que
o desenvolveu. O desaparecimento de empresas tradicionais, como a holandesa
Fokker, e a saída da sueca Saab do mercado aeronáutico civil, dentre outras,
constituem duro atestado desta realidade.
A despeito dos grandes riscos envolvidos, desenvolver uma indústria
aeronáutica autóctone, forte e autônoma, tem sido parte da agenda estratégica
de muitas nações, que através dos anos investem pesadamente em sua
implantação, apoiando-a de forma recorrente por meio de vários expedientes:
rmando grandes contratos de sistemas e produtos de Defesa, nanciando
programas de desenvolvimento de novas aeronaves em condições favoráveis
e propiciando incentivos scais de toda a sorte
A internacionalização da Embraer
Consciente de que a conquista de novos mercados, fundamentais para o
crescimento e consolidão da empresa, somente se dará de forma efetiva se
acompanhada de sua presença física nestes mercados, por meio de unidades
industriais ou de prestão de serviços de pós-venda e apoio ao cliente, a Embraer
adotou, a partir de sua privatizão, em 1994, a progressiva internacionalização
de suas operações como um objetivo estratégico a perseguir.
Longe de signicar perda de sua identidade brasileira e afastamento de
suas origens, a internacionalização da Embraer assegurará novos negócios, o
fortalecimento da nossa marca e a criação de mais empregos de alta qualicação
no Brasil, em proporções sempre superiores aos empregos gerados em suas
subsidiárias e controladas localizadas fora do país.
A partir do ano de 1997, em franca recuperação após o lançamento
no mercado do jato regional ERJ 145, a Embraer deu partida à sua estratégia
de internacionalização por meio de um misto de ações que envolveram:
1- a expansão ou implantação de escritórios de vendas e marketing e centros
de distribuição de peças de reposição; 2- realização de “joint ventures” e;
3- aquisição de empresas especializadas em serviços aeronáuticos tradicionais
e reputadas no mercado.
263
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Phenom 100 e Phenom 300
Estados Unidos e Europa: presenças consolidadas
Em território norte-americano e europeu a Embraer encontra-se presente
de longa data: desde 1978 e 1983, respectivamente, por meio de escritórios de
vendas e marketing e unidades de apoio ao cliente (peças e serviços).
Ambas as unidades tiveram e têm papel vital na expansão de seus
negócios nos dois principais mercados de Aviação Comercial em todo o
mundo, onde voam hoje, incluído o Brasil, cerca de 950 jatos comerciais,
que se somam aos cerca de 800 aviões turboélices e mais aviões militares
fabricados pela Empresa. Os mercados norte-americano e europeu são
responsáveis por cerca de 95% do total das exportações.
No caso da unidade norte-americana, baseada em Fort-Lauderdale,
no Estado da Flórida, as instalações foram expandidas para fazer frente
ao crescimento dos negócios da Empresa a partir da primeira entrega do
jato regional ERJ 145, em dezembro de 1996. Em novembro de 2006 esta
unidade empregava 234 pessoas e gerenciava um estoque de peças com mais
de 50 mil itens.
264
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Como resultado do aumento de seus negócios e da base de clientes
estabelecida em território europeu, a Embraer decidiu reunir em uma única
sede, localizada em Villepinte, nas proximidades do aeroporto de Roissy-
Charles de Gaulle, em Paris, suas unidades de vendas e marketing e apoio
ao cliente, incluindo importante depósito de peças sobressalentes, até
então divididas entre a mesma localidade de Villepinte, e o aeroporto de
Le Bourget. As novas instalações, integradas, deverão proporcionar maior
ecácia operacional a um corpo de 194 empregados, responsáveis pela gestão
de € 172 milhões de ativos e servir mais de 37 clientes.
China e Ásia-Pacíco: mercados estratégicos
Pela importância de sua economia, que cresce ininterruptamente a taxas
elevadas mais de duas décadas, somada ao valor estratégico do transporte
reo como elemento integrador e viabilizador do desenvolvimento em um
território dimensões continentais, a China foi eleita pela Embraer como objetivo
estratégico a alcaar, exigindo tratamento próprio e diferenciado, em face de
características culturais próprias, muito distantes do mundo ocidental.
O estabelecimento da presença da Embraer em território chinês deu-
se inicialmente em maio de 2000, por meio da abertura de um escritório de
vendas e marketing, na cidade de Pequim, logo seguido da abertura de um
centro de distribuição de peças de reposição na mesma cidade.
Nos anos 2001 e 2002, a Embraer negociou com autoridades chinesas
um acordo que lhe permitisse instalar uma unidade industrial destinada à
fabricação de aviões da família ERJ 145 destinadas ao mercado chinês.
Finalmente, em dezembro de 2002, foi rmado um acordo com a
Aviation Industry of China II (AVIC II), que levou à criação da Harbin
Embraer Aircraft Industry (HEAI), “joint venture” da qual a Embraer detém
o controle, com 51% das ações com direito a voto.
Em fevereiro de 2004, a Embraer anunciou a sua primeira venda
na China por meio da HEAI seis jatos ERJ 145 para a empresa China
Southern. Seguiram-se outras importantes vendas, do mesmo modelo e na
mesma quantidade, para a China Eastern Jiangsu, março de 2005, e para a
China Eastern Wuhan, em janeiro de 2006.
265
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Em agosto de 2006, a Embraer anunciou a venda de 50 aviões ERJ 145
e 50 jatos EMBRAER 190 ao Grupo HNA, quarta maior empresa aérea da
China. O negócio representou o primeiro contrato de venda de um E-Jet na
China continental. O valor total das encomendas rmes, ao preço de lista,
é de US$ 2,7 bilhões. As entregas dos ERJ 145 começarão em setembro de
2007. O jato, de 50 assentos, será produzido pela própria HEAI, na cidade de
Harbin, Província Heilongjiang.
Até o nal de 2006 a HEAI terá entregado 13 unidades do ERJ 145
que, somadas às cinco aeronaves vendidas em 2000, antes da implantação
de sua “joint venture”, para a Sichuan, totalizarão 18 jatos em operação por
empresas aéreas chinesas.
Com respeito à região da Ásia Pacíco, desde dezembro de 2000, a
Embraer opera um escritório de vendas e marketing localizado em Cingapura,
Vista aérea da sede da Embraer em São José dos Campos
266
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
com a responsabilidade de desenvolver a estratégia comercial da companhia
para os mercados da região, incluindo o subcontinente indiano.
O mercado aéreo indiano passa por processo de desregulamentação
e com interessantes perspectivas de crescimento. Nesse cenário, a empresa
Paramount, recentemente criada, anunciou o início de suas operações, com
base em dois jatos EMRAER 170 e três EMBRAER 175, sob o regime de
“leasing operacional”.
Foi também na Índia, com governo local, que a Embraer assinou
importante contrato de venda de cinco jatos Legacy 600, congurados
especialmente para atender a requisitos de conforto e segurança aplicáveis às
autoridades daquele país.
Expandindo a base de serviços e apoio ao cliente
A Embraer deverá continuar expandindo a área de serviços, não só no que
diz respeito a assegurar os excelentes índices de despachabilidade para a frota
de seus aviões, mas também servir seus clientes com outros serviços, como a
manutenção e o reparo de aviões, garantindo a sua plena satisfação, condão
essencial à geração dos nossos resultados e crescimento das nossas operações.
Assim é que, além de consolidar sua base de atendimento no Brasil, com
a transferência de seu Centro de Serviços para a Unidade Gavião Peixoto,
foram expandidas sua participação nos Estados Unidos, com a adição de
novas instalações da Embraer Aircraft Maintenance Services (EAMS), em
Nashville, Estado do Tennessee, e também na Europa, com a aquisição da
OGMA Indústria Aeronáutica de Portugal S.A, em Alverca, Portugal,
anunciada em dezembro de 2004, ao nal do processo de privatização.
No início de 2005, a EAMS expandiu suas instalões no Aeroporto
Internacional de Nashville para aumentar a capacidade de realização de serviços
de manutenção, em vista da crescente frota de aviões da Embraer em operação
nos Estados Unidos. Como conseqüência dessa importante decisão, a partir
de 2005, novos empregados foram progressivamente contratados pela EAMS,
cujos quadros contavam, em novembro de 2006, com 277 empregados.
267
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
A OGMA, fundada em 1918, tem desde então se dedicado à manutenção
aeronáutica, sendo hoje importante representante da indústria aeronáutica
européia, oferecendo serviços de manutenção e reparo de aeronaves civis e
militares, motores e componentes, modicações e montagens de componentes
estruturais e suporte de engenharia.
Seus principais clientes militares são a Força Aérea Portuguesa, a Força
Aérea Francesa, a Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos, a Agência de
Manutenção e Suprimento da OTAN e as Marinhas da Noruega e Holanda,
entre outros. No segmento comercial, a OGMA vem prestando serviços a
empresas aéreas como a TAP, Portugalia, British Midland e Luxair, e também
para companhias como a Embraer e a Rolls-Royce.
Além de trabalhos na área de manutenção, a OGMA fabrica componentes
estruturais e materiais compostos para a Boeing, Airbus, Lockheed Martin,
Dassault e Pilatus. Em novembro de 2006 contava com 1.606 empregados,
constituindo-se na maior das unidades e subsidiária da Embraer.
Família EMBRAER 170/190
268
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
A preservação da cultura, valores e atitude:
desao permanente
A velocidade da expansão da Embraer a partir de 1996, ano que marcou
a entrada em operação da aeronave ERJ 145, trouxe consigo enormes desaos
sob os enfoques da preservação da cultura, valores e atitudes que norteiam e
deverão continuar norteando suas ações.
Apenas para exemplicar a dimensão desse desao, basta citar que, em
abril de 1997, a Empresa contava com apenas 3.200 empregados distribuídos
em um total de cinco unidades operacionais, sendo três no Brasil e duas no
exterior. Hoje, decorridos nove anos, são 18.670 empregados distribuídos
em treze unidades operacionais, sendo cinco no Brasil e oito no exterior.
Em apenas uma de suas unidades, situada na França, existem cerca de 26
nacionalidades e 19 línguas distintas dentre 194 empregados.
Saber reconhecer a rica diversidade étnica e cultural de seus empregados
e os diferentes ambientes em que desenvolvem suas atividades, incluídas
as legislações trabalhistas especícas, e, ao mesmo tempo, desenvolver seu
máximo potencial criativo, canalizando suas energias para os objetivos
do negócio, em perfeito alinhamento com os valores éticos e morais da
companhia, constitui uma das grandes prioridades de seus administradores.
O principal elemento no alcance desse intento é a chamada Metodologia
de Gestão pelo Plano de Ação. Anualmente, a Embraer elabora um Plano de
Ação com uma visão de cinco anos e segue um modelo de planejamento
estratégico considerando mercados, competidores, competências da Empresa,
oportunidades e riscos, prioridades e resultados, dentre outros fatores.
O Plano de Ação da Companhia é resultante do desdobramento interno
de planos equivalentes para cada área corporativa, funcional e de negócio,
chegando ao nível de chão de fábrica, a partir da divulgação, na estrutura
organizacional, de diretrizes gerais emitidas pela administração superior para
a Empresa. A política de remuneração variável da Companhia, que se estende
a todos os seus empregados, leva em conta as metas pactuadas entre líderes
e liderados ao longo de toda a cadeia de comando. Em assim sendo, o Plano
de Ação passa a constituir o instrumento central de empresariamento do
negócio, alinhamento e comprometimento de todos os empregados com as
metas e resultados planejados.
269
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Juntamente com a Metodologia do Plano de Ação, a Embraer pratica
uma forte cultura de Comunicação Interna direcionada para a integração entre
empregados e seus familiares e para a disseminação dos principais valores e
conceitos Embraer.
A Comunicação Interna da Embraer atua de forma global e integrada,
lançando mão de ferramentas modernas e de grande atratividade junto aos
empregados:
O Diretor-Presidente da Embraer dispõe de ferramenta própria
de comunicação com os empregados, denominado Em Tempo,
produzido simultaneamente nos idiomas português e inglês. Mais
recentemente, passaram a serem produzidas edições especiais do Em
Tempo gravadas em vídeo;
A Intranet Embraer constitui hoje ferramenta de alcance corporativo
e a principal fonte de informações de nossos empregados, com uma
média de 24,5 mil acessos diários;
Cerca de 600 comunicados internos são produzidos anualmente e
disponibilizados aos empregados via Intranet e em quadros de avisos,
sendo 25% destes comunicados de alcance corporativo;
O informativo Embraer Notícias divulga temas essenciais à cultura
Embraer: a Metodologia de Gestão pelo Plano de Ação, a importância
do discernimento e contenção de custos, o combate ao desperdício, a
integração entre equipes em torno dos grandes objetivos empresariais
da Embraer, etc;
Entrevistas concedidas pelos principais executivos da Empresa são
traduzidas e enviadas para as unidades situadas fora do país. Por
abordarem, invariavelmente, avaliações de mercado, assim como
estratégias e objetivos da Companhia, constituem objeto de grande
atenção por parte dos empregados;
Artigos publicados na mídia nacional e internacional, abordando
temas de interesse aos necios da Embraer, são traduzidos e
disponibilizados aos empregados.
Com essa visão e determinação, centrada em valores éticos e morais, e
tendo a integridade como base do desenvolvimento das ações, a Embraer se
270
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
laa ao empresariamento de um negócio global, extremamente desaante e
competitivo. E o faz levando aos diversos mercados a imagem de uma empresa
brasileira eciente, ágil e com produtos de qualidade e atualidade tecnológica.
271
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
7
26
49
83
96
120
151
Sumário
A recuperação da economia argentina
Aldo Ferrer
Economia da Bolívia: diagnóstico e planos para 2008
Luís Alberto Arce Catacora
Um enfoque qualitativo da economia brasileira
João Paulo de Almeida Magalhães
A economia chilena e os desaos do desenvolvimento
Mauricio Jelvez M.
Economia colombiana na conjuntura:
uma aproximação crítica
Darío Germán Umaña Mendoza
A economia do Equador: um balanço e uma nova noção
de desenvolvimento
Fander Falconí Benítez
Economia da Guiana: avaliação e projeções
Rajendra Rampersaud
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 7 Julho / Setembro 2007
272
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
166
182
205
219
231
251
Paraguai, uma marcha lenta: situação e
perspectiva econômica
Dionisio Borda
A economia peruana e o desao do crescimento
com inclusão social
Enrique Cornejo Ramírez
Suriname: evolução macroeconômica
André E. Telting
A economia do Uruguai: uma perspectiva empresarial
Jorge Abuchalja
A atual fase de crescimento da economia venezuelana
Nelson Merentes
Philip Moore: alma antiga em corpo moderno
Agnes Jones
273
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 6 Abril / Junho 2007
5
15
35
49
61
76
91
Sumário
Realidade da Argentina e região
Cristina Fernández de Kirchner
Diplomacia para a vida
Pablo Solón
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Guido Mantega
A integração regional: fator de desenvolvimento
sustentável
Emílio Odebrecht
Em busca do crescimento com eqüidade
Ricardo Ffrench-Davis
Colômbia: desaos até 2010
Álvaro Uribe Vélez
Um plano para o Equador
Rafael Correa Delgado
274
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
Identidade cultural e creolização
na Guiana
Prem Misir
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Milda Rivarola
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Aníbal Quijano
Combate ao narcotráco no Suriname
Subhaas Punwasi
Mercosul: projeto e perspectivas
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Acerca da grandíssima importância de um partido
Hugo Chávez
Guayasamín por ele mesmo
97
109
132
180
193
202
229
275
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 5 Janeiro / Março 2007
Sumário
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
José Paradiso
A integração da infra-estrutura na América do Sul:
um impulso ao desenvolvimento sustentável e à
integração regional
Enrique García
Paciência e eleições
Antônio Delm Netto
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
Luis Maira
Fatores de força da Colômbia
Fernando Cepeda Ulloa
Política exterior e segurança democrática e humana
Diego Ribadeneira Espinosa
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
Ralph Ramkharan
5
26
36
40
56
78
86
276
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
92
108
128
144
182
191
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
Dionisio Borda
Visão estratégica regional da política externa
do Peru
José Antonio García Belaunde
Suriname por seus autores
Jerome Egger
Mercosul: quo vadis?
Gerardo Caetano
Plena Soberania Petrolífera
Rafael Ramírez
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
María Victoria de Robayo
277
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 4 Abril / Junho 2006
5
16
28
44
66
86
101
Sumário
Objetivos e desaos da política exterior argentina
Jorge Taiana
Bolívia, fator de integração
Evo Morales
Desaos e perspectivas da economia brasileira
Paulo Skaf
Programa de governo (2006-2010)
Michelle Bachelet
A armadilha do bilateralismo
Germán Umaña Mendoza
A Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica (Otca): um desao permanente
Rosalía Arteaga Serrano
A Guiana – vinculando o Brasil ao Caribe:
um potencial que encontra a sua oportunidade
Peter R. Ramsaroop
Eric M. Phillips
278
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
120
134
155
169
206
232
A encruzilhada política paraguaia
Pedro Fadul
A grande transformação
Ollanta Humala
Suriname, uma visão macroeconômica:
desaos e perspectivas
André E. Telting
A inserção externa do Uruguai:
uma visão política e estratégica
Sergio Abreu
“Há um outro mundo, e está neste”
José Vicente Rangel
Pedro Lira
Milan Ivelic
279
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 3 Abril / Junho 2005
280
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
281
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 2 Janeiro / Março 2005
282
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
283
Di p l o m a c i a , Es t r a t é g i a & po l í t i c a ou t u b r o /DE z E m b r o 2007
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 1 Outubro / Dezembro 2004
284
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